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Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS

Faculdade de Artes, Letras e Comunicação – FAALC


Letras Português/Inglês – 5º Semestre
Disciplina: Teoria da Literatura IV
Docente: Flávio Adriano Nantes
Discente: Carolina Barbosa e Daniel Matias
Data: 05/07/2021

Avaliação 2

A partir da Leitura de Estorvo, de Chico Buarque, publicado em 1990, é possível empreender


uma série de leituras, pois cf. se entende o texto literário é por excelência plurissignificativo,
entre elas, uma que trate do romance como um constructo contemporâneo, como demonstra
Giorgio Agamben, em O que é o contemporâneo? Com este pensamento, escreva um texto,
ancorado nas proposições de Agamben, e de Maria Adélia Menegazzo, em seu “A poética do
recorte”, elucidando as razões pelas quais podemos tratar o romance como contemporâneo.
Justifique sua resposta com excertos do texto de Buarque. [10,0]:
A atividade deve ser desenvolvida em dupla e não deverá ultrapassar 3 laudas digitalizadas
em times new roman, 12, espaçamento 1/1,5. Colocar no assunto do e-mail
nome+Letras/Inglês+P2+Teoria Literária IV.
As discussões acerca do que é contemporâneo e como as obras são classificadas dessa
maneira existem há muito tempo. O filósofo italiano Giorgio Agamben (2009) trata sobre esse
tema em sua obra O que é contemporâneo?, apresentando diversas questões que circundam a
contemporaneidade, seja enquanto sujeito ou constructo artístico. Ao longo do texto, o autor
destaca diversos elementos extremamente importantes para a compreensão da
contemporaneidade. Podemos pensar esse conceito por meio de duas perspectivas: o tempo e
o ser contemporâneos.
O tempo contemporâneo é o presente, ou seja, cada pessoa é contemporânea ao seu
próprio tempo. Por outro lado, a conceituação do ser contemporâneo é um pouco mais
complexa. De acordo com Agamben (2009, p.58), o sujeito contemporâneo é deslocado, não
se ajusta às expectativas, ao modo de viver e pensar de seu tempo “mas, [...] exatamente
através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de
perceber e apreender o seu tempo”. No entanto, não é um nostálgico que deseja viver em
outra época, pois sabe que “lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu
tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Portanto, a primeira característica de um sujeito
contemporâneo é a dissociação do seu próprio tempo.
Outra característica do sujeito contemporâneo, é que ele consegue apreender as
obscuridades de seu tempo, exercendo uma atividade de reflexão ao observar o que os outros
não conseguem ver, não se deixando cegar pelas luzes de seu próprio tempo. Dessa forma,
esse sujeito enxerga o que está claro e o que está obscuro, fazendo uma leitura muito mais
profunda sobre a realidade e a sociedade. Conforme Agamben (2009, p.72),

O contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente,


nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o
tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros
tempos, de nele ler de modo inédito a história.

A obra em questão é o romance Estorvo, escrito por Chico Buarque de Holanda. Foi
publicado pela primeira vez em 1991 pela Companhia das Letras e trata sobre vários temas
relacionados à diversas esferas sociais, políticas e emocionais/psicológicas. Narrado em
primeira pessoa, o romance consiste em fluxos de consciência do protagonista, um sujeito que
não se encaixa nos padrões da sociedade e que foge de um homem, provavelmente um
conhecido, que bateu à sua porta.
Debater sobre obras de Chico Buarque requer antes o destaque à época em que se
insere, visto que o autor é totalmente contemporâneo ao tempo que vive. Para essa discussão,
dois momentos são selecionados: o golpe de 64 e a última década do século XX. Durante a
ditadura militar, havia uma exigência implícita de manifestações dos artistas segundo suas
áreas de atuação contra o regime instaurado, como é visto na carreira do autor com Fazenda
Modelo (1974). Em 1991, porém, Chico foge da perspectiva do todo e destaca a relevância do
indivíduo. Esse processo de representação do período histórico-social vivenciado pelo autor e
presente em sua obra é, segundo Menegazzo (2004, p. 15), a verossimilhança ideal para a
contextualização do discurso realista, que é “capaz de dar informações com começo, meio e
fim, a respeito das personagens, do tempo, do espaço e da história”.
Uma das principais características da obra é que as personagens e os cenários variam
de modo a abranger a estranheza proposta pelo autor, o que Menegazzo (2004) apresenta
como uma desordem de linguagem. Por conta disso, o texto pode ser considerado como
plurissignificativo, uma vez que “definir o que seja uma obra de arte é tarefa impossível, mas
podemos generalizar afirmando que é sempre algo transgressor do pensar, do sentir, do olhar”
(MENEGAZZO, 2004, p. 16).
A desordem de linguagem apresentada por Menegazzo (2004, p. 29) perpassa o
conceito de esquizofrenia, não como patologia clínica, identificando a “quebra de relação
entre os significados, a quebra do efeito de sentido entre passado, presente e futuro”, como é
possível observar em todo o decorrer da obra em questão. Esse recurso dá a impressão de ser
uma narrativa circular, visto que são abertos vários ciclos de pensamento que não são
concluídos, sendo coberta por devaneios e digressões, a começar pela descrição do homem
estranho que chegou à casa do protagonista no início da narrativa e que, até o fim, essa
descrição permanece insuficiente/vaga.
Por meio da linguagem do texto, é possível notar uma sensação de vazio e pequenez
do protagonista, que pode ser considerada como um paradigma, pois representa a condição de
todos os seres humanos, ou, ao menos, da maioria. Essa sensação de impotência revela a
condição de hipocrisia da sociedade, ao viver de aparências e espetáculos, que, apesar do
vazio interior, prega a felicidade e a homogeneidade, sendo este um padrão de vida
inalcançável. Como uma metáfora da falsidade humana, em Estorvo, há uma representação de
uma pessoa alterada, distorcida através do olho mágico. E que, como variação da própria
figura da personagem principal, a amálgama de passado e presente faz com que haja de
relance uma visão futura, mas indefinida e turva.
O vazio do romance pode ser identificado ainda por meio das personagens, pois
nenhuma delas têm nome, ou seja, não possuem identificação primária e pessoal da
convivência em sociedade. Sem nomes, não passam de seres desajustados e incompletos.
Desta forma, é possível observar como toda a obra é sustentada pelo dúbio e pelo incerto; os
elementos não têm definição explícita e, por conta disso, o romance parece nebuloso, o que
reflete na vida e características dos personagens.
É possível perceber a contemporaneidade em Estorvo, pois, apesar de ter sido
publicado há 30 anos, aborda temáticas que são relevantes e presentes até hoje, ao
protagonizar um sujeito anônimo, fragmentado, em conflito constante consigo mesmo e com a
sociedade, tendo uma contínua sensação de vazio. A obra de Chico Buarque mostra esse
sujeito que escapa aos padrões impostos pela sociedade, que tentam homogeneizar os
indivíduos. Essa discussão nos remete às discussões raciais, sociais e de gênero, que, agora
mais do que nunca, se fazem muito presentes.
Portanto, esse romance requer um leitor que tenha condições de se debruçar, se
concentrar e empreender, por meio da leitura, sentidos à obra. A leitura deste texto não se dá
por meio de uma perspectiva contemplativa – muito pelo contrário –, é um texto constituído
pela marca da contemporaneidade ao discutir temas atuais e relevantes.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.


HOLANDA, Chico Buarque de. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte: estudo de literatura brasileira
contemporânea. — Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 2004.

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