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Clarice Lispect or e a lat ent e escrit ura do desast re Clarice Lispect or and t he lat ent writ ing of t he disa…
Joanna M . Moszczynska
Mort e na glória: horizont e global e paisagem local em "A hora da est rela", de Clarice Lispect or
Marcelo Diego
OFÍCIO DE ADIVINHOS:
CARTOMANCIA E FICÇÃO EM
MACHADO DE ASSIS, CLARICE
LISPECTOR E LÚCIA BETTENCOURT
Rafael Climent-Espino
Baylor University
Introdução
A cartomancia, considerada uma arte de adivinhação secular, ainda hoje tem grande
interesse para a população e muito sucesso em todas as camadas do Brasil. Anúncios em
jornais e televisão, notícias no rádio, cartazes nas ruas, a publicidade de cartomantes e
adivinhos é uma prática comum na vida cotidiana brasileira.1 Esse fato implica o consumo
de um tipo de práticas esotéricas ou ocultistas por parte do povo brasileiro que pode ser
pensado como uma característica de pré-modernidade ainda hoje no século XXI e que ficaria
enquadrada no que tem sido chamado de neo-esoterismo contemporâneo (Esquenazi 8).2
Os naipes são um instrumento de adivinhação que “põe em contato a sensibilidade
e a experiência de um homem com a inacabável colheita do imaginário” (Cousté 53). O
desejo por conhecer o futuro, ou repensar o presente, tem exercido grande fascinação no
humano desde o início dos tempos. Esse interesse pela adivinhação ou predição de fatos, e
pela cartomancia como via possível para entender presente e futuro, também tem repercussão
dentro das humanidades e, especificamente, na literatura. No campo dos estudos filológicos,
há uma grande variedade de pesquisas que se aproximam ao tarô e que vão desde a linguística
(Aphek, “Image”) até a semiologia (Aphek, “Semiology”) e a semiótica (Aphek,
“Semiotics”, Thibault). Os historiadores têm se preocupado em oferecer um relato dessas
prácticas (Rákóczi, Cousté, Decker, Dummett “Tarot cortesano”, History of the Occult) e dos
jogos e leituras de cartas (Esquenazi; Dummett, History of Games; Jodorowsky).
1
Fátima R. Gomes Tavares elaborou um estudo sociológico sobre o tarô na cidade
de Rio de Janeiro onde relata o processo pelo qual uma pessoa chega a ser vidente. Um estudo
informativo sobre o tarô, sua história e elementos compositivos é O tarô ou a máquina de
imaginar de Alberto Cousté.
2
Sobre a história e influência dos conceitos de ocultismo e esoterismo interessa o
estudo de Mircea Eliade (69-96).
243
244 Ofício de adivinhos
3
O pano de fundo das três histórias é o Rio de Janeiro. Tanto Machado como
Bettencourt são cariocas. Como é sabido, Lispector morou no Rio grande parte de sua vida.
4
Importantes e recentes pesquisas abordam questões ligadas à intertextualidade
(Salomão 37-92) e à emulação (Rocha A roda de Machado de Assis) como técnicas centrais
na obra de Machado de Assis.
5
O tema da cartomancia e da adivinhação é antiquíssimo, pode-se relacionar com a
literatura clássica que introduz o oráculo no argumento como, por exemplo, no Amphitruo de
Plauto (Climent-Espino “Tradición clásica”). Sobre a influência de Machado em Lispector,
interessa o detalhado estudo de Cátia Castilho Simon.
Rafael Climent-Espino 245
6
Segundo Mattia Thibault, desde uma perspetiva semiótica: “Fortune telling always
involves two people of differing status. The first one (A) is the fortune teller, and the second
one (B) is the person whose future is being told. For A, if the signs on the cards only pertain
to a code, B replaces the variable signifiers with specific meaning issued from his personal
situation. In order to make cartomancy work, therefore, the meanings of the cards have to
cover every possible life situation. In other words, according to a Saussurean conception of
signs, A only has access to the signifier and the signified, while the referent is only accessible
to B. The distribution of cards in fortune telling determines that some sentences will focus
on the past and present of B” (3).
246 Ofício de adivinhos
do presente e futuro por parte de uma pessoa capaz de decifrar um código: a cartomante.7
Desde a écfrase e a visualidade, a leitura desse código, dos naipes, gera uma representação
da realidade, um relato, uma ficção. Nos textos analisados, o leitor pode imaginar quais são
as cartas que a cartomante lê para melhor entender o acontecer narrativo. O aspecto esotérico
da cartomancia tem levado importantes figuras das letras universais a criarem histórias
tomando as cartas como tema principal da ficção.8 Como foi mencionado, as letras brasileiras
não são exceção nesse interesse por levar a cartomancia à literatura.9
7
Na semiótica, entende-se por meio um sistema de signos qualquer usado para
transmitir informação.
8
Entre as figuras do século XX destacam o italiano Italo Calvino com O castelo dos
destinos cruzados (1969), romance onde o relato é contado em paralelo com uma tirada de
cartas do tarô. Também o argentino Manuel Puig introduz um capítulo em Boquitas pintadas
(1969) que é representativo de todo o romance e onde a cartomancia tem um papel
fundamental como analisei em Del manuscrito al libro (Climent-Espino Del manuscrito 81-
107).
9
Na introdução de O castelo dos destinos cruzados, Italo Calvino define o tarô como
“multiplicidade potencial do narrável” e como “máquina narrativa combinatória” (3).
10
Algumas crónicas de Machado (Obra completa) publicadas originalmente na
Gazeta de notícias (Rio de Janeiro entre o 24/04/1892 e o 11/11/1900) mostram interesse
pela cartomancia e a feitiçaria. Assim, nas crónicas do 24 de Junho de 1894 e do 10 de Março
de 1895 há referencias à cartomancia e à adivinhação do futuro.
Rafael Climent-Espino 247
carioca fica fora dessa órbita de influência e propõe uma nova teoria de entendimento do
mundo. Refiro-me ao humanitas ou humanitismo.11 O humanitismo é também uma sátira do
positivismo de Auguste Comte e relativiza, embora na ficção, a ânsia pelas respostas
científicas das últimas décadas do século XIX. Machado participou até da chamada
Sociedade Petalógica e interessa a origem do nome12:
A ideia era promover uma reunião para o estudo da mentira, da lorota, da
peta, daí o nome ‘Petalógica’. Seus membros entendiam que através da
profunda observação da mentira poderiam penetrar com mais acuidade na
alma humana. Pensavam, também, em prejudicar os mentirosos,
fornecendo material para que estes fossem se desmoralizando a cada vez
que repetissem, julgando ser verdades, as mentiras ouvidas dos membros
da Sociedade. (“Você sabe o que é a Sociedade Petalógica?”)
Destaca-se, assim, a importância da mentira, tema principal n’“A cartomante” de Machado
junto com a infidelidade. Na segunda metade do século XIX outras correntes de pensamento
não cientificistas como o esoterismo, o ocultismo e a teosofia tiveram um auge sem
precedentes na Europa e nos Estados Unidos. O Brasil não ficou alheio à influência dessas
correntes.13 Entre essas práticas esotéricas estaria a cartomancia como uma manifestação
11
A teoria do Humanitas se acha principalmente no capítulo VI de Quincas Borba
(16-21) onde se encontra a famosa frase “Ao vencedor, as batatas” que tem sido ligada com
a lei do mais forte. Eis o parágrafo com a explicação do conceito de humanistismo: “Não há
morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a
supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de
uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe
tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma
das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há
batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não
chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição;
a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a
alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das
ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo
motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe aprazível ou vantajoso, e pelo
motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao
vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.” (Machado de Assis, Quincas 19-20).
Com menor intensidade, o humanitismo também aparece no capítulo 157 de Memórias
póstumas de Brás Cubas.
12
Para as dinâmicas internas da Sociedade Petalógica interessa o ensaio de Bruno
Martins. Sobre a Sociedade Petalógica, Francisco de Paula Brito afirma que: “A verdade, que
parece criada para felicidade do homem, às vezes é tão nociva que empregá-la pareceria um
crime. Também a mentira, que parece criada pelo gênio do mal, tem às vezes salvado a vida,
a honra ou a fortuna...” (Martins 8). Esta citação resume à perfeição o que acontece com a
mentira no conto de Machado.
13
Como prova o fato de que a primeira sociedade teosófica brasileira foi fundada no
Rio em 1919.
248 Ofício de adivinhos
mais dentro das correntes ocultistas em auge na segunda metade do XIX. Numa crônica
datada em 23 de agosto de 1884¾mesmo ano da publicação do conto¾o escritor carioca
afirma: “Cartomancia, heráldica, pindaíba de tatu, ou vinhos confeccionados no fundo do
armazém, tudo isso vem a dar na lei de Darwin” e adiciona que “cito-lhes uma ‘grande
cartomante’ (sic) da Rua da Imperatriz, que dá consultas das 7 às 9 da manhã”.14 Machado
escreve sobre uma prática que conhece de primeira mão. 15 Importa esse olhar atento de
Machado ao acontecer cotidiano das classes populares em práticas como a cartomancia:
“Machado também aceita a contribuição do que não é logicismo absoluto, do que nos vem
através do conhecimento imediato, intuitivo, afetivo, respeita a parte de miséria que há nos
seres, particularmente no ser humano, e reconhece a contribuição do irracional” (Coutinho,
A filosofia 29). 16 Machado aceita o irracional como fator vital que influencia a vida das
pessoas, a cartomancia pode ser considerada como um desses fatores.17
Resumidamente, o conto relata a história de um triângulo amoroso entre
Rita¾“dama formosa e tonta [...] graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e
interrogativa” (Machado de Assis, Várias 59)¾, seu marido, Vilela¾magistrado e
advogado¾, e seu melhor amigo, Camilo. O conto se inicia com uma conversa dos amantes:
Rita e Camilo. Rita revela que foi visitar uma cartomante por medo de perdê-lo, Camilo ri
deixando claro que isso não vai acontecer. Rita mostra-se como uma mulher que acredita na
cartomante, o que para Camilo é bobagem. A cartomante se passa por uma charlatã, só que
Rita acredita nela e, quando o caso de Rita e Camilo está quase para ser descoberto, Camilo,
desesperado, recorre à pitonisa, que o ilude da mesma forma que a Rita. Confiando na
cartomante, Camilo vai ao apartamento de Vilela e encontra Rita morta e depois é assassinado
à queima-roupa por Vilela, já que sabia da traição deles. O conto lembra a Dom Casmurro e
o possível triângulo amoroso entre Bento, Capitu e Ezequiel.
N’ “A cartomante” há uma posição dicotômica entre uma cultura escrita,
hegemónica e racionalista¾as cartas/missivas anônimas com textos caligrafados que avisam
a Rita e Camilo do perigo pela infidelidade¾frente a uma cultura popular irracional¾as
cartas/naipes nas quais Rita e Camilo acabam acreditando e que os conduzirão à morte. O
que interessa nestes dois tipos de “cartas” é que seus leitores não as sabem ler. Desde uma
14
Em Comentários da semana (63) aparece uma crônica de 1861 em que Machado,
sob o pseudônimo de Gil, faz referência ao oráculo e às sibilas, o que mostra uma reflexão
precoce sobre o tema da adivinhação.
15
Miécio Táti (149-55) oferece uma amostra da grande frequência em que os jogos
de cartas aparecem na ficção de Machado. Atendendo a esses dados, parece que Machado os
praticava.
16
Afrânio Coutinho (A filosofia) salienta que a forte influência de Pascal em
Machado é pertinente para contextualizar a produção machadiana no âmbito filosófico e para
compreender, grosso modo, as linhas de pensamento dentro da ficção do autor carioca.
17
Paul Dixon assinala como nos contos de Machado há “uma refutação dos aspectos
identificados com o positivismo; o discurso machadiano satirizará o pensamento
enciclopédico, destruirá hierarquias, glorificará a alinearidade e o subjetivismo, e proclamará
as verdades relativas” (Os contos 14).
Rafael Climent-Espino 249
18
Se entendermos por semiótica um sistema de signos, seja qual for, que possibilita
uma comunicação entre indivíduos.
250 Ofício de adivinhos
significados.19 Na minha opinião o conto oferece referências ocultas a quatro cartas do tarô
ou arcanos maiores que estão fortemente ligadas à história de Machado: Os namorados, O
carro, O louco, e A torre. Como mostrarei, estes naipes são elementos compositivos que, com
algumas variáveis, se repetem nos três textos literários que se analisam. Assim, uma tirada
que subjaz no conto de Machado seria: 1- Arcano VI- O Namorado (= triângulo amoroso
entre Camilo, Rita e Vilela), 2- Arcano VII- O Carro (= tílburi e acidente da carroça antes de
chegar à casa da cartomante, o tílburi que leva Camilo à casa de Vilela) 3- Arcano XXII- O
Louco (= a cartomante) 4- Arcano XVI- A Torre, onde duas pessoas estão caindo (= a casa
de Vilela onde morrem Rita e Camilo). Para Enrique Esquenazi a carta de ‘Os namorados’
no plano espiritual “indica a necessidade de escolha entre duas alternativas importantes e
mutuamente excludentes. A escolha aparece como proba e os atrativos de ambos caminhos
resultam sedutores. Porém, se atingiu um ponto onde há que escolher. Isto indica tensão que
é também oportunidade de progresso” (153). Sem dúvida, o caminho que escolhe Camilo é
o errado. ‘O Louco’ representa a cartomante: “É o início de um ciclo e, ao mesmo tempo, seu
fim: é o caos prévio ao cosmos [...] O Louco expressa o irracional, o inconsciente, o
radicalmente outro. É a profusão das possibilidades não realizadas” (Esquenazi 130-31).
À luz da análise feita, e do exposto por Maria J. Somerlate Barbosa e Paul B. Dixon
no artigo “Olhos de ressaca: as alusões literárias de Clarice Lispector a Machado de Assis”
se estuda a fundo a influência que “A cartomante” de Machado tem na cena da cartomante
19
Para este trabalho uso as pesquisas e a interpretação que sobre o tarô têm sido
feitas por Basil Rákóczi, Enrique Esquenazi, Michael Dummett (“Tarot cortesano”) e
Alejandro Jodorowsky, as mais sérias entre as inúmeras publicações sobre o tema.
Rafael Climent-Espino 251
n’ A hora da estrela.20 Clarice alude a essa cena estabelecendo uma ligação com o conto de
Machado. A alusão é um “enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de sua
relação entre ele e outro enunciado ao qual remete” (Genette 14), ou seja, não aponta
diretamente um fato, apenas o sugere através de caraterísticas secundárias ou metafóricas.
Para Barbosa e Dixon “a alusão no texto lispectoreano exige uma noção mais ampla do
conceito de ‘linguagem compartilhada’, uma noção que inclua uma gramática de motivos,
situações e justaposições” (49). No exemplo que analiso, as alusões vão além da temática
compartilhada. Para explicar minha tese, tomo como ponto de apoio essa “gramática de
motivos” que sugerem Barbosa e Dixon, que comentam os vínculos entre os dois textos da
seguinte maneira:
Outro exemplo da aproximação entre os textos de Machado e Lispector
encontra-se em uma narrativa de encaixe de A hora da estrela (a visita que
Macabéa faz a Madama Carlota). Vê-se ali o mesmo final irônico do conto
A cartomante de Machado de Assis. Nas duas histórias as cartomantes
ganham a confiança dos clientes e predizem um final feliz para a história
amorosa deles. O desfecho da história de Machado descreve a Camilo
chegando à casa de Rita para encontrá-la morta e, em seguida, ser
assassinado pelo marido dela. Madame Carlota prevê um casamento feliz
para Macabéa com Hans, um estrangeiro alto e louro que ela conhecerá no
futuro próximo. Logo depois que Macabéa sai da casa da cartomante, ao
atravessar uma rua, é morta por um homem que foge do local dirigindo um
Mercedes Benz. As semelhanças entre o final do conto de Machado de
Assis e do romance de Lispector são óbvias. (58)
Lispector explicou a origem do final de seu romance: “Peguei o ar meio perdido do nordestino
no Rio de Janeiro... Daí começou a nascer a ideia de um... Depois eu fui a uma cartomante e
imaginei... Ela me disse várias coisas boas que iam me acontecer e imaginei, quando tomei
o táxi de volta, que seria muito engraçado se o táxi me atropelasse e eu morresse depois de
ter ouvido todas essas coisas boas. Então daí foi nascendo também a trama da história”
(Lerner 26). Esta citação nos deixa saber, primeiro, que Lispector não menciona Machado ao
falar da cena da cartomante. Segundo, Lispector praticava a cartomancia, acreditava nela e
tinha conhecimentos do tarô.21 A escritora faz ficção com uma realidade presente no mundo
dela, não inventa do nada.22
20
Uma análise minuciosa e de interesse de A hora da estrela é a de Edgar Cézar
Nolasco. Nela relacionam-se pontos da escrita de Lispector com a de Machado (Nolasco 18,
48), com Humilhados e ofendidos de Dostoiévski (59-69) e com Alice no país das maravilhas
(1865) de Lewis Carroll (103-05).
21
Lygia Fagundes Telles fez uma viagem de avião com Clarice a Colômbia, houve
algumas turbulências e ante o medo de Lygia, Lispector disse: “Fique tranquila porque a
minha cartomante já avisou, não vou morrer em nenhum desastre!” (Telles 14).
22
A biografia de Lispector escrita por Benjamin Moser envolve a vida da autora em
um halo de misticismo, mistério, onirismo e clarividência tendo como pano de fundo as raízes
judias da família Lispector. Nolasco (21-31) problematiza e questiona o que críticos como
252 Ofício de adivinhos
Nelson Vieira (100-150) têm dito a respeito da importância da herança judaica da escritora
para entender sua obra.
23
Nolasco (103-26) reflete sobre a importância que os produtos da cultura popular
têm no romance. Marilena Chaui oferece um estudo essencial sobre a cultura popular no
Brasil.
24
Surpreende o grande interesse que Clarice Lispector, como figura ficcional, tem
para outros literatos brasileiros. Há várias biografias ficcionais da autora como Claricianas
(2006) e Quem tem medo de Clarice Lispector? (2014) de Edgar Cézar Nolasco, ou Clarice
(1996) de Ana Miranda.
25
A quiromancia é uma prática esotérica do gosto de Clarice sobre a qual fala na
correspondência com Fernando Sabino (apud Moser 1). O problema da alteridade em Clarice
tem sido analisado em vários estudos (Climent-Espino, “Jogos de alteridade”).
26
Há um método de leitura do tarô relacionado com a cabala e com a árvore da vida
como explicam Rákóczi (38-43) e Cousté (41-47). Também Jodorowsky (13-17) liga seu
interesse pelo tarô com seus antepassados judios.
27
Clarice foi convidada ao Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria em Bogotá,
Colômbia em 1975, dado de importância se pensarmos que nessa altura Clarice estaria imersa
na escrita de A hora da estrela. Nesse congresso, “O ovo e a galinha” foi lido ao público. A
escritora refletiu sobre o fato da crítica considerá-la hermética (Lispector, Descoberta 79),
também em Borelli (65-88) se acha certa preocupação por não ser entendida.
Rafael Climent-Espino 253
28
Giordano Paz Ravel (99) sublinha a importância do triângulo amoroso na narrativa
de Machado. No caso de Clarice Lispector, o triângulo amoroso é frequente, aparece em
Perto do coração selvagem, O lustre, A maça no escuro, e n’ A hora da estrela. Neste
romance os três nomes (Macabéa, Olímpico de Jesus e Glória) remetem a um campo
semântico de temática bíblica.
254 Ofício de adivinhos
29
É possível que o nome de Madama Carlota venha de uma empregada de Clarice
(A descoberta 88), que parece ter tido uma cozinheira vidente (A descoberta 48).
Rafael Climent-Espino 255
cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho” (A hora 79).30 Por que “um
cavalo como resposta”? Acho que aqui se oferecem dicas para uma nova interpretação do
texto. Proponho neste ponto, através do tarô, o que acho ser uma novíssima leitura do
romance, até agora não desvelada. Olhemos embaixo o arcano número VII do tarô, ‘O Carro’
ou ‘A Carroça’, e uma descrição dele: “Dois cavalos arrastram uma sorte de caixa, montada
sobre duas rodas e coberta por um baldaquino, na qual há um homem coroado e levando um
cetro na mão direita. As rodas e a caixa são de cor carne com exceção do reborde superior
desta última, que é amarelo; um escudo com as letras S.M. está inscrito na sua cara frontal
(única visível)” (Cousté 135, grifos meus). Os cavalos, as rodas, a cor amarela e,
principalmente, as letras S.M. levam a pensar que Lispector se inspirou nesta carta do tarô
para planejar a cena. Esta carta, de suma importância no conto de Machado, aparece
novamente e de forma contundente n’A hora da estrela estabelecendo uma relação
intertextual sui generis.
As similitudes com a citação de acima (A hora 79) são
claras: a cor amarela, o carro e o cavalo são elementos que aparecem
no romance. Ainda mais significativo e evidente é o fato das letras da
carta, S.M., eis o possível motivo do sobrenome do narrador: Rodrigo
S.M.31 Levando a leitura deste achado ao limite, proponho que, como
mostra a carta, o motorista do carro que atropela e mata Macabéa não
é outro que Rodrigo S.M. Assim, esta leitura faz de Rodrigo
S.M.¾“Na verdade Clarice Lispector” (A hora 9) ¾o assassino de
“Macabéa [que] ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro
fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de Madama
Carlota” (A hora 80).32 Há certo tom irônico do narrador na morte de
Macabéa que é apresentada como uma boneca em suas mãos: “Eu
ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e
recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na
calçada” (80). S.M. rejeita um destino de felicidade para Macabéa.
30
É provável que Clarice pegue a cor do carro dos táxis amarelos do Rio de Janeiro.
A figura do chofer de táxi aparece com alguma recorrência n’ A descoberta do mundo (251-
52, 458). Esquenazi (156) assinala que a cor amarela é uma correlação esotérica de “O carro”.
31
Sobre o significado de S.M. há várias possibilidades. A primeira, que considera
S.M. como siglas de “Sua Majestade”. Uma segunda leitura alquímica em relação aos três
componentes básicos: Sulfeto ou enxofre, Mercúrio e Sal. Assim S.M. seria Sulfeto (enxofre)
e Mercúrio, na alquimia o enxofre e o mercúrio são sustâncias opostas, o sal é o termo meio,
nexo entre elas. O enxofre (masculino, quente, fixo, ativo) é a forma enquanto o mercúrio
(feminino, frio, volátil, passivo) é o movimento. Segundo Enrique Esquenazi nas correlações
esotéricas ‘O carro’: “é o sendero que liga a Binah (Entendimento. Saturno) com Gerubah
(Severidade. Marte). Entendimento da severidade” (156). Aqui temos outra possibilidade de
S.M.: Saturno e Marte.
32
Esta leitura oferece uma nova possibilidade de interpretação e questiona a proposta
de Silviano Santiago com a que parece concordar Nolasco (70) em relação ao significado das
letras S. M.
256 Ofício de adivinhos
33
Para mais informação sobre O Carro, remito a Jodorowsky (188-193), Cousté
(135-140) e Esquenazi (155-57).
34
Para mais informação sobre o arcano XVII, A Estrela, remito a Jodorowsky (252-
57), Cousté (186-90) e Esquenazi (179-82).
Rafael Climent-Espino 257
Começo este apartado com as palavras de Bettencourt que situam a Machado como
uma influência central na produção da autora:
Eu não tenho nenhuma restrição a Machado, acho Machado um gênio da
literatura, acho que ele é um grande escritor que merecia muito mais estudo
e conhecimento do que ele tem, ele é extraordinário. Clarice... ela é uma
escritora que eu nem li todos os romances de Clarice não, eu não sou uma
clariceana [...] os contos eu acho que li todos, mas os romances... A hora
da estrela eu li, A paixão segundo G.H. também li, mas eu acho que foi só,
não li mais. O que eu acho que existe em Clarice que algumas histórias
dela são tão fortes e são tão dialogais com Machado... porque a Clarice é
machadiana também. As pessoas podem até não reconhecer, mas a Clarice
tem muita coisa de Machado. Através de Machado eu cheguei a Clarice e
então é essa simbiose, claro que existe uma admiração. (“Lúcia Bettencourt
at San Diego State University”)
Há aqui um triângulo literário: Machado, Lispector e Bettencourt. Interessa o fato de
Bettencourt chegar a Lispector através de Machado pois, como assinalo a seguir, há mais
semelhanças entre os textos de Bettencourt e Lispector que entre “as cartomantes” de
Bettencourt e Machado. A escritora carioca tem falado em várias ocasiões sobre a ligação de
sua técnica de escrita com a literatura: “Sou uma pessoa muito ligada à literatura, sempre
gostei muito de literatura. E os meus contos têm uma espécie de diálogo com livros, com
autores e com situações literárias” (“Lúcia Bettencourt”), Bettencourt avisa de que para fazer
uma análise de sua obra será preciso olhar com atenção questões de intertextualidade. Essa
ligação com a literatura é óbvia na coletânea A secretária de Borges, à qual pertence “A
cartomante”, cujo título faz referência a Borges, escritor extremamente complexo em
questões de intertextualidade se pensarmos, por exemplo, em “Pierre Menard, autor do
258 Ofício de adivinhos
Quixote” de Ficções (1944).35 Ao estabelecer essa ligação com Borges, Bettencourt cria, de
forma proposital, uma rede potencial de conexões com outros textos literários que vai fazer
ao leitor redimensionar os limites da interpretação do texto. No conto “A cartomante” há uma
clara tentativa de filiação por parte da autora com os trabalhos de dois dos mais grandes
escritores brasileiros: Machado e Lispector.
No caso de Lispector e Bettencourt, sugere-se que as cartomantes são prostitutas,
fato que não acontece no conto de Machado. Embora a autora afirme ser mais machadiana
do que clariceana, o texto de Bettencourt tem muito mais a ver com A hora da estrela do que
com o texto de Machado apesar de o título ser uma alusão (Genette 14) clara ao relato do
autor de Dom Casmurro. Todavia, o argumento e a situação descrita é uma emulação de A
hora da estrela. A descrição kitsch de Madama Carlota (A hora 72) e a vida ligada à
prostituição¾“Ai que saudade da zona! Eu peguei o melhor tempo do Mangue que era
frequentado por verdadeiros cavalheiros. Além do preço fixo, eu muitas vezes ganhava
gorjeta [...] quando eu já estava ficando muito gorda e perdendo os dentes, me tornei caftina”
(A hora 75)¾reflete no conto de Bettencourt onde a cartomante, Mme. Olenska, é um travesti
que se prostitui36: “Ele não devia ter vindo. ‘Que vergonha!’ Uma cartomante travesti, a
vizinha do lado julgando que ele era um ‘amigo’” (A secretária 91). A descrição feita de
Mme. Olenska é, como n’ A hora da estrela, kitsch: “Mme. Olenska voltou. Tinha passado
um batonzinho básico, vestido um penhoar cheio de babados, inspirado em alguma fantasia
rumbeira dos anos 50” (92). O jeito de desenhar a cartomante emula claramente o texto de
Lispector.
Apesar do fim trágico, o conto tem um forte componente humorístico após conhecer
que Mme. Olenska é um travesti, informação omitida pelos amigos que tinham aconselhado
a visita: “Os amigos diziam que ela era extraordinária. ‘Parecia até que me conhecia’ foi o
comentário de uma colega” (90). Ao saber que a cartomante é travesti e se prostitui a leitura
dos conselhos se torna ambígua: “ela era extraordinária” em que sentido? Há aqui uma
possível brincadeira dos amigos que o enviam não se sabe se à cartomante ou ao travesti que
se prostitui.
No conto de Bettencourt, o personagem anônimo parece querer saber sobre seus
relacionamentos íntimos, a tirada de cartas é a seguinte: “Faça o favor de partir o baralho em
três [...] e agora parta este montinho do meio mais duas vezes, e coloque assim, em formato
de cruz” (93). Tirar as cartas em formato de cruz é uma das formas mais populares de leitura,
é conhecido como o Método de Péladan, Guaita e Wirth.37 Nesse método cada carta está
ligada a uma ideia:
35
O título do último romance de Bettencourt também tem um apelo a outro
conhecido escritor: O regresso, a última viagem de Rimbaud (2015).
36
É possível que a autora tenha escolhido o nome da cartomante de Ellen Olenska,
mulher fatal e protagonista do filme A época da inocência (1993), interpretada por Michelle
Pfeiffer.
37
Para mais informação sobre este método se pode consultar Cousté (68-73) e
Jodorowsky (556-57). Sobre o método da cruz céltica remito a Enrique Esquenazi (246-49).
Rafael Climent-Espino 259
3
Discussão
(Juízo)
1 5 2
Afirmação Síntese Negação
(Pro) (Contra)
4
Solução
(Sentencia)
No fim do conto, após o personagem principal, como Macabéa, ser atropelado por
um carro é que uma nova carta vai finalizar a tirada: “A última coisa que notou foi o letreiro
260 Ofício de adivinhos
luminoso de um bingo, onde se destacava, piscando, o desenho de uma carta de baralho. Mas
era um ás de ouros” (95):
Se pensarmos nos elementos compositivos do conto, são os mesmos elementos achados n’“A
cartomante”, de Machado, e A hora da estrela, de Lispector, embora apareçam em ordens
diferentes: namorados, cartomantes, tílburi/carroça/carro, morte. Assim, voltando às cartas
do tarô temos praticamente os mesmos naipes, com a diferencia final do ás de ouros, a moeda
dourada que representa o sol. Esquenazi assinala que a estrela “pode ser guia que dirige ao
reino do sol” (180), há aqui um vaso comunicante entre o romance de Lispector e o conto de
Bettencourt:
O ás de ouros tem a equivalência com o arcano XVIII do tarô: o Sol. Assim, se no romance
de Lispector o final se liga à estrela, no conto de Bettencourt a ligação é com ás de ouros: o
sol. Segundo Jodorowsky, nessa carta “O calor do sol está sempre disponível para todos.
Contudo, não esqueçamos que um excesso de sol produz a morte, a sequidão” (269).38 Como
n’ “A cartomante” de Machado e n’ A hora da estrela de Lispector os elementos compositivos
n’ “A cartomante” de Bettencourt são praticamente os mesmos.
Conclusão
Ao interpretar os textos à luz das cartas e as cartas à luz dos textos e mostrar que
Machado, Lispector e Lúcia Bettencourt conheciam e tiveram contato direto com a
38
Sobre o arcano do Sol remito a Jodorowsky (265-69) e Cousté (196-99).
Rafael Climent-Espino 261
cartomancia, não é disparatado pensar que poderiam ter trabalhado com os arcanos do tarô
na gênese textual de suas ficções, esses naipes parecem ter sido o baseamento primigénio dos
textos analisados. 39 Concluo salientando, primeiro, a importância dos temas esotéricos
dentro da literatura brasileira; em segundo lugar é preciso, como mostrei, fazer análises de
caráter transversal entre escritores de épocas diferentes, pois possibilita um entendimento
geral da matéria tratada. Finalmente, após examinar o tarô como subtexto nas três narrações
e mostrar que tem uma repercussão de primeira ordem na análise literária deles, proponho
levá-lo em consideração para futuros análises. O papel da cartomancia na literatura brasileira
desde uma perspetiva mais abrangente é uma pesquisa ainda por fazer.
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39
Há recentes textos literários brasileiros que incluem cartas do tarô desenhadas
como elemento compositivo, é o caso do poemário A mão esquerda de Vênus (2016) de
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262 Ofício de adivinhos
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