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De mortos, adubos, esperas e sonhos: o trabalho da memória em favelas do

Rio de Janeiro e as batalhas dos “Condutores de Memória”


Marize Cunha1

Eu sempre sonho que uma coisa gera,


Nunca nada está morto,
O que não parece vivo, aduba,
O que parece estático, espera
(Adélia Prado)

Elas sonham que uma coisa gera. Por isso, tiveram a idéia de fazer algo que, de
acordo com Mauriléia Januário Ribeiro, “procurasse mudar a imagem da favela”, que
mostrasse que “a luta não foi apenas pela ocupação”, que “a luta continua”, “se
perpetua”, “é contra tudo que está aí”, contra “esta discriminação social”, “esses
conceitos”, “esses preconceitos”.
Elas pensam que nunca nada está morto e o que não parece vivo, aduba. Por
isso, criaram um projeto onde, segundo Ruth Barros, “o morador pudesse contar sua
história”, “numa versão pouco conhecida pelas pessoas, aquela que o morador não
conta, e nem mesmo o morador recente, assim como os migrantes não conhecem”.
Unindo sonho e adubo, mortos e vivos, convivendo com esperas, elas
desenvolvem um trabalho voltado para memória local das favelas. Porque “a memória
existe para nos levar ao passado e os sonhos para nos levar ao futuro”, lembra Maria
Aparecida Coutinho, inspirando-se em um texto que havia acabado de ler2.
Elas são educadoras, nascidas e criadas em morros da Grande Tijuca. Mauriléia
Ribeiro, Ruth Barros e Maria Aparecida Coutinho formam o Condutores de Memória,
um grupo que, desde o ano 2000, vem atuando em favelas da mencionada região, e
levando também sua experiência para localidades situadas em outras áreas do município
do Rio de Janeiro3.
1
Este texto está originalmente publicado em Gouveia, Coelho, Teixeira. Uma Favela Cordial: imagens,
discursos e experiências em comunidades, Viçosa: Ed. UFV, 2007.
Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do DENSP/ENSP- Fiocruz
2
Os extratos do depoimento de Mauriléia, Ruth e Maria Aparecida, foram extraídos do texto apresentado
no Seminário A Memória das Favelas, organizado pelo ISER, em 2003, e que deu origem à publicação
que encontra-se nas referências bibliográficas.
3
A Grande Tijuca é uma área de alta concentração de favelas e intenso intercâmbio sociocultural e
demográfico que, inevitavelmente, concentra conflitos e tensões entre a classe média e os grupos
O texto que trazemos aqui é uma reflexão sobre a experiência deste grupo,
procurando levantar aí o que o gera e o que o aduba. Compreender quais os caminhos
trilhados por estas educadoras para dar sentido àquilo que parece morto. E busca ainda
identificar o que parece estático, e espera.

“Batalhas da memória”: a valorização da memória das favelas

De início, gostaríamos de lembrar que o projeto Condutores de Memória faz


parte de um movimento maior de iniciativas, em gestação ou em desenvolvimento, e
que vêm se debruçando sobre a memória das favelas. São iniciativas que procuram
romper com os estigmas que historicamente cercam as favelas, procurando atravessar a
“fronteira do desconhecido”, escavando registros que ficaram para trás, e fazendo falar
os silêncios prisioneiros do passado4. Algumas destas iniciativas são institucionais,
como de ONG´s. Muitas resultam de uma ação informal: são professores de escolas
públicas, localizadas nas favelas, grupos locais, ou pesquisadores envolvidos em
projetos de construção de memória local5. Traduzem, pois, objetivos, ênfases e
caminhos diferenciados de ação. Contudo, em maior ou menor grau, todas vêm se
expandindo através de um diálogo que envolve múltiplos agentes sociais: educadores e
lideranças comunitárias, ONG´s e universidades.
O que vem contribuindo para esta expansão? Para que muitos agentes sociais
atravessem a fronteira do desconhecido, voltando-se para a memória das favelas?

populares do lugar. Agrega um conjunto de bairros e 29 favelas que representam aproximadamente 12,5
% da população total da região e 6% da população favelada do Rio de Janeiro.
4
Recorremos à expressão “fronteira do desconhecido”, inspirando-nos em Thompson que, ao analisar o
trabalho do historiador, lembra: “(...) nas margens do mapa, encontraremos sempre as fronteiras do
desconhecido. O que resta fazer é interrogar os silêncios reais, através do diálogo do conhecimento. E, à
medida que esses silêncios são penetrados, não cosemos apenas um conceito novo ao pano velho, mas
vemos ser necessário reordenar todo o conjunto de conceitos” (1981,p:185)
5
Há um leque de iniciativas. Citamos aqui algumas delas: a Rede de Memória do CEASM (Centro de
Estudos e Ações Solidária da Maré), que tem à frente pesquisadores, professores e estudantes de cursos
universitários da região; o Centro Histórico da Rocinha criado por volta de 2000, época em que José Luis
de Souza Lima, um dos seus fundadores, desenvolvia uma monografia no curso de História do
IFCS/UFRJ; o Favela tem Memória, integrante do portal Viva Favela do Viva Rio, envolvendo um
conjunto de atores diferenciados. Fundamentais também são os projetos ou programas de instituições,
como a iniciativa do UrbanData que recuperou a memória escrita sobre as favelas, originando a
publicação organizada por Valladares e Medeiros (2003). Cabe destacar ainda os eventos que procuram
dar visibilidade ao que vem sendo realizado e promover a troca de experiências entre as várias iniciativas.
Nos últimos anos, foram organizados pelo menos três eventos: o Seminário Memória das Favelas, em
2003, promovido pelo ISER e que deu origem à publicação do ISER; A Memória das Favelas; Memória
Social e Favelas sob a coordenação da Profa Lygia Segalla, ocorrido na Faculdade de Educação da UFF,
em 2004; e também em 2004, Grande Tijuca tem memória e História para contar, realizado pela Agenda
Social Rio e apoiado pela Universidade Cândido Mendes.
Poderíamos iniciar a resposta, lembrando que o tema da memória, de forma
geral, tem despertado a atenção dos pesquisadores, e não apenas em nosso país. A este
respeito, Pollack, há quase quinze anos, já questionava porque “assistimos a um
interesse renovado, nas ciências humanas e na história, pelo problema da forte ligação
entre memória e identidade?”. Interesse que se expressa em “muitas publicações, que
utilizam métodos muito diferentes, tais como a análise das comemorações, dos lugares,
mas também a análise dos discursos, de textos, de entrevistas e de histórias individuais”
(1989:2). Não é objeto desta reflexão buscar o que vem gestando, e adubando, as
iniciativas em torno da memória, mas arriscamo-nos a levantar que, em certa medida, o
interesse pelo tema resulta do crescente esgarçamento do tecido social das sociedades
ocidentais contemporâneas, marcadas pelo desafio de construir ou reconstruir
identidades pulverizadas, seja pelas configurações político-sociais que produziram os
dramas das minorias étnicas e dos diversos “marginalizados”, seja pelos processos
políticos e econômicos, que se traduziram no chamado neoliberalismo, reproduzindo
em escala ampliada a imagem do “excluído”. Assim, neste caso, mais do que um tema
que acena com uma dimensão de “preservação”, uniformização ou estabilidade,
resgatando a análise do próprio Pollack, a memória busca reabilitar “a periferia e a
marginalidade”, e “entra em disputa”, num terreno de conflito e competição entre
memórias concorrentes (1989).
No caso que nos interessa, a memória das favelas do Rio de Janeiro, há
elementos particulares a destacar, relacionados à forma como os desafios das
configurações político sociais e os efeitos das políticas neoliberais se processaram aqui.
Começamos por seguir a avaliação de Lícia Valladares e Ligia Medeiros
indicando que, sobretudo, a partir dos anos 90, há uma “verdadeira explosão” de estudos
relacionados: às intervenções do poder público e das ONG´s, em uma “linha de ação
que se distancia das práticas antifavelas anteriores”; e, também, à “percepção social da
violência urbana nas favelas do Rio de Janeiro”. Neste âmbito, “as favelas passam a
alimentar o debate em torno da ‘cidade partida’, insistindo-se na dicotomia favela-
asfalto como nova matriz de análise”( 2003, p.12).
Dentro desta nova paisagem, a memória vai ocupando um lugar fundamental nas
iniciativas sociais desenvolvidas nas favelas e na pesquisa acadêmica. Por um lado, vem
constituindo-se num dos caminhos através do qual é possível pensar a identidade da
favela, e entre as favelas, num momento em que as lutas destas localidades, típicas dos
anos 80, sofrem uma inflexão, e o crescimento das disputas entre os comandos do
tráfico criam divisões entre as “comunidades”. É através dela que é possível também
revisitar os limites do chamado movimento comunitário, e os conflitos presentes na
relação das favelas com o poder público, que aumenta sua presença nestas localidades
de forma diferenciada, e atua também no sentido de criar concorrência entre elas. Ou
seja, a memória, assim como temas ligados à cultura produzida nas favelas, é um
elemento que promove elos, num território em que multiplicam divisões, dentro de cada
localidade, e entre elas. Funciona como uma espécie de alimento através do qual é
possível repensar tais elos, e fertilizar uma prática que contribua para romper com o
isolamento das chamadas “comunidades”. Com ela, é possível trazer à tona a
diversidade abrigada dentro da favela, e na relação de uma localidade com outra. E, ao
mesmo tempo, costurar esta diversidade, criando um solo comum onde seja possível
uma construção coletiva. Poderíamos dizer que é um alimento cuja dinâmica encontra-
se em dois caminhos, que se cruzam num mesmo processo: um deles, o conhecimento ,
o outro, o reconhecimento. O primeiro faz emergir o que ficou oculto, subterrâneo, ou
esquecido, seja pela força de representações estigmatizadoras, seja pela ação recorrente
de processos repressivos de destituição da fala. O segundo, constrói ou procura
reconstruir tessituras perdidas, relações que foram se esgarçando ou que se encontram
partidas, por várias razões, sendo que, em tempos recentes, especialmente pelo modus
operandis das políticas do Estado e da organização do narco tráfico.
Para compreender melhor o que está em jogo aqui, vale a pena recuperar um
pouco o sentido que vem sendo conferido ao trabalho desenvolvido por grupos ou
instituições que atuam nas favelas do Rio de Janeiro, como o CEASM e Centro
Histórico da Rocinha, por exemplo.

Uma outra coisa que me chamou atenção e que está no jornal O Cidadão é a
palavra “mareense”. Mas será que isso existe? O jornal sempre trabalha com a
categoria bairro. Porém, são dezesseis comunidades e algumas pessoas levantaram
essa questão: “Mas, espera aí, Maré, não. Eu não moro na Maré. Eu moro na Nova
Holanda”. Essa discussão é bem interessante. A gente mostra a história da Maré
como um todo. E mostra que, por exemplo, a Nova Holanda, o Timbau, a Baixa do
Sapateiro, na época do Projeto Rio, se uniram. As associações se uniram porque a
dificuldade era uma só para todo mundo. E, na verdade, essa dificuldade ainda hoje
tem a participação de todos, todos participam. Inclusive, na Rede Memória também
é assim, no CEASM também é assim. Participam pessoas de todas as comunidades.
Todas essas pessoas trabalhando a Maré como um todo 6.

A Rocinha é dividida em cerca de 21 localidades e cada uma tem suas


especificidades, suas diferenças, sua forma de se organizar. A gente está
começando a entender isso. Nossa discussão com esses jovens é pensar que dentro
dessas diferenças nasce também um processo coletivo. A gente não quer igualar a
comunidade para que todos pensem igual, todos queiram as mesmas coisas. O que
a gente busca é recriar, reconstruir dentro da favela o movimento comunitário. 7.

É importante registrar ainda que o debate da “cidade partida”, e a percepção


social da violência urbana, ao dar projeção as clivagens presentes na cidade, traz o
desafio de se repensar sua configuração histórica e social, em busca das relações
existentes entre o “morro” e o “asfalto”. Neste âmbito, surge um eixo de análise que
procurar romper com leituras dicotômicas, lançando luz sobre as trocas subterrâneas
entre a favela e o restante da cidade, ao longo da história do Rio de Janeiro. É o que nos
sugere as reflexões de Zaluar & Alvito que avaliam que “a classificação bipolar não
poderia representar a peculiar mistura de ordem e desordem que sempre caracterizou o
Rio de Janeiro”, onde é possível, identificar “diferentes maneiras de se relacionar com o
estranho, com o que não é amigo nem inimigo, assim como diversos modos de criar
pontes entre amigos e inimigos” (1998, p:20). Os mesmos autores ainda concluem:

A favela elege políticos (ou os faz cair em desgraça), proporcionando material


midiático valioso sob a forma de medo ou estranheza, gera financiamentos
nacionais e internacionais, tanto para ações diretas de caráter assistencial e/ou
religioso quanto para pesquisas; a favela é o campo de batalha freqüente pela
conquista da opinião pública. É o espaço de práticas de enriquecimento (lícito e
ilícito), é o palco de ações que se traduzem em promoções de carreiras, em
prestígio ou desgraça junto aos pares (do quartel ou da academia, por exemplo). E
sempre foi sobretudo o espaço onde se produziu o que de mais original se criou
culturalmente nesta cidade: o samba, a escola de samba, o bloco de carnaval, a

6
Depoimento de Alexandre Dias, estudante de história da UFRJ, que atua na Rede Memória, projeto
desenvolvido pelo CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidária da Maré). Novas fontes e projetos para
contar a história da Maré. Comunicações do Iser, no59. Rio de Janeiro: Iser, p.18.
7
Depoimento de José de Luiz de Souza Lima, historiador e membro fundador do Centro Histórico da
Rocinha. Na Rocinha, tecendo memórias entre jovens e idosos. Comunicações do Iser, no59. Rio de
Janeiro: Iser, p.32.
capoeira, o pagode de fundo quintal, o pagode de clube. Mas onde também se faz
outro tipo de música (como o funk), onde se escrevem livros, onde se compõem
versos belíssimos ainda não musicados, onde se montam peças de teatro, onde se
praticam todas as modalidades esportivas, descobrindo-se novos significados para a
capoeira, misto de dança, esporte e luta ritualizada (p:22)

O que foi dito acima nos faz dar atenção ao fato de que por detrás de
determinados fenômenos econômicos e político-sociais, e de expressões e
representações culturais, há processos históricos que alimentaram, e alimentam, a
relação entre a favela e o restante da cidade. A investigação destes processos é um
campo a ser desbravado, onde o trabalho da memória assume particular significado: ele
comparece aqui, mais uma vez, testemunhando elos, traduzidos nos registros destas
trocas, o que contribui para se relativizar a noção da “cidade partida”. Este é o sentido,
por exemplo, das pistas que vem sendo apontadas através de levantamentos de memória
local que testemunham o papel representado pelas favelas nos anos de ditadura militar,
quando algumas destas localidades serviram de abrigo aos perseguidos pela repressão
política.

Marcos Alvito faz um trabalho de memória no morro de São Carlos e me contou,


numa entrevista, que o morro abrigou pessoas fugidas durante a repressão militar.
Eu não sabia, a cidade não sabe. A imprensa brasileira não sabe. A memória
brasileira não sabe. A história brasileira não sabe. Não vi registro ainda disso! 8

Por fim, podemos lembrar ainda que os centenários, como sabemos, despertam a
curiosidade e reflexão histórica. Os cem anos que marcam a origem das favelas na
cidade adubaram o estudos sobre estas localidades, de forma geral, e, em particular,
reflexões que localizam os percursos da favela, cruzando-os com as tramas da cidade. O
livro organizado por Zaluar & Alvito (1998) – Um Século de Favelas – , resultante da
investigação acadêmica de pesquisadores que vêm se voltando para o tema, tornou-se
também signo deste movimento que dá visibilidade à existência secular da favela na
cidade, através de publicações e artigos em jornais.
8
Depoimento de Flavio Pinheiro, jornalista e consultor do site Favela Tem Memória, Favela tem
Memória: para cada dúvida, a busca de uma resposta produtiva, Comunicações do Iser, no59. Rio de
Janeiro: Iser, p.80. A respeito do lugar da favela nos anos de ditadura militar, vale lembrar os
levantamentos realizados pelo Favela tem Memória do portal Viva Favela, iniciativa do Viva Rio,
veiculados em matérias, como Esperança Vermelha e Nas barbas da ditadura, ambas de Marcelo
Monteiro. (www.favelatemmemoria.cm.br).
Este deslocamento que vêm dando à favela um maior espaço nos estudos e
iniciativas voltadas para a memória, e na reflexão histórica, é recente. Mas é um
movimento cuja potencialidade encontra-se no fato de que está criando um solo comum
onde se encontram agentes sociais, pertencentes a lugares sociais diferenciados. E ao
fazê-lo, abre possibilidades de ruptura com leituras substancialistas, a respeito do
trabalho voltado para as favelas, que têm servido muito mais para confundir e
inviabilizar a pesquisa e o movimento social nestas localidades. Leituras que trazem
dicotomias do tipo: “dentro” X “fora”, “teoria” X “prática”, “reflexão” X
“intervenção”, “academia” X “movimento comunitário”.
De forma geral, estas iniciativas integram-se às abordagens que buscam trazer à
tona as memórias subterrâneas, configurando o que Pollack chama de “batalhas da
memória”, ou seja, localizam-se em um terreno de disputa, onde existe conflito entre
memórias concorrentes (1989). São experiências que buscam fazer falar o silêncio de
um passado que se repõe, porque se referenciam na perspectiva de que aquilo que
parece morto, aduba. E que apostam na potencialidade do trabalho da memória local
como um caminho que gera. Gera ações e imagens a respeito das favelas, capazes de
contribuir na (re) construção de identidades, no combate aos estigmas que cercam estas
localidades, e em sua visibilidade positiva no espaço da cidade.
Com efeito, o caminho percorrido por estas experiências aproxima-se da
proposta de Walter Benjamin de que o historiador trabalhasse como o físico na
desintegração do átomo, com o fim de liberar as enormes forças que ficaram presas na
explicação linear da história, que teria sido “o narcótico mais poderoso de nosso
século”9. Um trabalho que envolve, usando um termo do mesmo autor, “pentear a
história a contrapelo”. Aqueles que investem, pois, nas batalhas da memória, apostam
na libertação não apenas de registros históricos, mas de forças que ficaram presas nas
representações que foram se acumulando acerca das favelas, e de seus moradores. E se
como nos lembra Francisco de Oliveira (2000:59), a formação social brasileira é um
“processo complexo de violência e proibição da fala”, “de negação da parcela dos sem
parcela”, de “anulação da política”, a aposta na liberação destas forças é, sobretudo, um
projeto político que busca “desnarcotizar” as explicações/representações correntes sobre

9
Walter Benjamin apude Fontana (1998: 276). A fonte de Fontana é Walter Benjamin, Paris,
capitale du XIXe siècle. Le Livre des passages I, Editions du Cerf, 1989, p.480.
as favelas, dar vida ao que parece morto, e potencializar o lugar histórico dos “sem
parcela”, que foram submetidos à violência e tiveram suas falas destituídas10.
Seguindo esta trilha, as “batalhas da memória” das favelas cumprem ainda um
papel fundamental, bem indicado por Machado, ao analisar as experiências que vêm
sendo desenvolvidas:

Recuperar a memória da experiência compartilhada nesses variados territórios da


cidade, como muitos grupos estão fazendo é uma forma, fundamental, rica e fortemente
mobilizadora, de regenerar o tecido social tão esgarçado pelas razões que conhecemos.
E uma condição para prosseguir o trabalho no qual estamos empenhados, de colaborar
no processo de democratização de nosso país, reduzindo a desigualdade característica
da estrutura urbana carioca 11.

Sonhando com uma coisa que gera: a proposta dos Condutores de Memória

Há dois anos, em um seminário a respeito da memória das favelas, o historiador


Marcos Alvito refletia sobre as diferenças e diálogos entre memória, jornalismo e
história. E fazia uma comparação, afirmando que, assim como aconteceu com o
problema da água e da luz, são os moradores das favelas que estão buscando dar um
jeito no problema da história das favelas. “Estão vendo que se eles não escreverem a
própria história, os historiadores mesmos, os acadêmicos e tal não vão se interessar por
isso”12.
O “jeito” dado tem sido através de grupos locais que vêm se destacado em meio
às iniciativas que se debruçam sobre a memória das favelas. Alguns possuem pouca ou
nenhuma visibilidade. Outros são mais visíveis e atuam em diálogo com ONG´s e
universidade, particularmente com pesquisadores voltados para o tema, como é o caso
do grupo Condutores de Memória. 13
10
A análise de Oliveira fundamenta-se na interpretação de Rancière, e refere-se a sua concepção de
política, como a reivindicação da parcela dos que não têm parcela, desentendimento em relação a como se
reparte o todo. Francisco de Oliveira inspira-se em Jacques Rancière para analisar o Estado do Bem Estar
Social e suas contradições, bem como os processos políticos no Brasil. A obra em questão, de Rancière,
é O Desentendimento, São Paulo: Editora 34, 1996.
11
MACHADO, Luís A.Solidariedade e Sociabilidade Violenta: verso e reverso da “moeda” memória.
“Memória das favelas”. Comunicações do Iser, no59. Rio de Janeiro: Iser, p.108.
12
ALVITO. M. A favela venceu. “Memória das favelas”. Comunicações do Iser, no59. Rio de Janeiro:
Iser, p.115
13
Há 5 anos, acompanhamos o trabalho do grupo Condutores de Memória, junto com outros
pesquisadores, em particular Patrícia Gouveia da Silva e Mariana Cavalcanti, que desenvolvem
investigações acadêmicas também em interlocução com o grupo Condutores de Memória. Parte das
reflexões que se seguem foram baseadas em um trabalho anterior (CUNHA, Marize &GOUVEIA,
Um dos aspectos marcantes do percurso dos Condutores é o fato de ser uma
proposta nascida e criada no âmbito de um curso de formação de gestores sociais,
desenvolvido pela Gestão Comunitária: Instituto de Investigação e Ação Social, e
voltado para lideranças locais. Foi aí que, em 2000, três participantes do curso (as já
mencionadas Maria Aparecida Coutinho, Mauriléia Januário Ribeiro e Ruth Pereira de
Barros) discutiram a idéia de um projeto que permitisse aos moradores das favelas da
região, à vizinhança e ao público em geral, conhecer a história e a cultura de suas
localidades. Na época, o Favela Bairro acabava de entrar em algumas favelas da
Grande Tijuca, segundo nos conta Ruth Barros:

Com o Favela Bairro fazendo as obras de infra-estrutura, as comunidades passaram


a ter melhores acessos e mais pessoas visitavam as favelas. Foi um boom de gente.
E muitas pessoas queriam saber como era a história da nossa comunidade, assim
como a de outras, saber porque tem tal nome, como surgiu. Mas os moradores, em
geral, não sabiam como era essa história14.

De certa forma, o fato reforça o que levantamos antes a respeito das razões que
contribuíram para o surgimento destas iniciativas: o impacto da entrada do programa
Favela Bairro levanta um conjunto de questões e ações que buscam repensar a favela e
sua inserção na cidade. A memória local emerge aí como uma pergunta cuja resposta
precisa ser construída, e exige trocas de conhecimentos e debate. O projeto dos
Condutores traduz bem o sentido deste movimento, tendo sido criado no âmbito da
Agenda Social, em meio à interlocução entre vários agentes sociais 15. Assim, tanto a
elaboração do projeto, quanto seu posterior desenvolvimento, dá-se em diálogo com
diferentes técnicos e pesquisadores que atuavam na Agenda.

Patrícia. Condutores de Memória: Histórias e Identidades Locais, trabalho apresentado no VII


Congresso Luso Afro-Brasileiro, Associação de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa,
Universidade Cândido Mendes, IUPERJ, setembro de 2002)
14
Condutores de Memória: retratar e reviver histórias de lutas e conquistas na Grande Tijuca. “Memória
das favelas”. Comunicações do Iser, no59. Rio de Janeiro: Iser, p.20-26.
15
O projeto recebeu apoio financeiro e técnico da Agenda Social Rio (movimento que reúne um conjunto
de entidades, grupos e pessoas que desenvolvem iniciativas na Grande Tijuca) e da Gestão Comunitária:
Instituto de Investigação Social, e faz parte de um programa maior: Centro de Memória da Grande Tijuca,
coordenado pela própria Gestão Comunitária, o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas), além do Núcleo de Antropologia e Imagem e a Rede de Observadores Urbanos, ambos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
É dentro deste campo de discussão que os Condutores lançam sua proposta,
elegendo a memória local como uma forma de responder aos desafios que se
colocavam, alguns dos quais são destacados pelas educadoras responsáveis16:

Porque o que se mostra da comunidade? Só violência, só coisa ruim. “A


comunidade é isso, a comunidade é aquilo. É favelado”. Toda a discriminação se
dirige às favelas. Essas não têm nada de bom, nunca tem. E a gente precisava
mudar isso, mostrando que a comunidade tem coisas boas sim (Ruth Barros)

Como já foi dito aqui, a favela é vista sempre pelo aspecto negativo. O próprio
falar em favela já tomou a conotação de coisa que não serve: “isso é favela”, isso
aqui está parecendo favela”. Se a gente não se policia acaba repetindo. Mas, a
gente sabe que favela não é isso. Ela tem os seus valores. Uma coisa importante no
projeto é mudar a imagem da favela (...) Devemos pensar melhor, então, sobre a
discriminação social. E os Condutores procurar trabalhar com isso o tempo todo. O
que se quer é levantar a auto-estima dos moradores e promover uma integração
entre as gerações, já que trabalhamos com crianças e idosos.
(...) Entendemos que a partir do momento em que a comunidade conhece o seu
passado, vai poder estar melhor entendendo o seu presente. E assim, vai ter
condições de estar influindo em seu futuro de uma forma positiva. O jovem, por
exemplo, quando sabe que os avós, os pais lutaram para ele estar ali, que antes não
tinha água, luz, não tinha nada, e que hoje tem praticamente tudo, esse jovem vai
ficar sensível em relação à luta. Estamos buscando despertar no jovem, na criança,
esse espírito de luta constante (Mauriléia J. Ribeiro)

A proposta é elaborada então com a perspectiva de combater os efeitos negativos


do estigma relacionado à favela e seu entorno, através da valorização de suas lutas e dos
personagens “anônimos”, e de seus bens culturais. Há todo um esforço de investir na
afirmação da auto-estima de seus moradores, no plano pessoal e coletivo, buscando com
isso, a longo prazo, redimensionar a cultura política local, atuando particularmente
junto a gerações mais jovens, e gerar ainda uma visibilidade social positiva ao espaço
urbano-social da “favela”.

16
Depoimentos extraídos do texto Condutores de Memória: retratar e reviver histórias de lutas e
conquistas na Grande Tijuca. “Memória das favelas”. Comunicações do Iser, no59. Rio de Janeiro: Iser,
p.20. p.20-26
Em seu desenho inicial, a perspectiva do projeto era a formação de um grupo de
jovens que ficariam responsáveis pelo trabalho de promoção da memória. Daí veio o
nome, “Condutores”. Contudo, a idéia de reservar aos jovens o lugar de “promotores”
da memória esbarrou no impasse bem resumido por Mauriléia Januário Ribeiro: “para
levar esta história era preciso conhecê-la, e o jovem não conhece”. A proposta sofreu,
então, reajustes, e a formação dos jovens perdeu o espaço central, cedendo lugar às
“oficinas de memória”, realizadas nas favelas, e dinamizadas pela equipe do projeto,
contando com a participação de diferentes segmentos das localidades.
O trabalho dos Condutores desenvolve-se fundamentalmente através da
interação dos agentes participantes - particularmente a articulação entre a equipe
técnica, os grupos de jovens e idosos, e demais segmentos envolvidos.
A equipe busca atuar de uma forma onde os moradores possam se exercitar
enquanto sujeitos. Aqui, a idéia de promoção histórica e cultural das favelas tem como
perspectiva não repetir caminhos já conhecidos, que colocam aqueles que devem ser
beneficiados pelo projeto, no simples espaço de usuários. Procura-se então, digamos,
construir uma outra história, avaliando-se que, quando está em jogo aquilo que ficou
subterrâneo, o trabalho da memória implica em compartilhamento, de forma a
assegurar o espaço dos beneficiados como produtores do conhecimento que está sendo
produzido a respeito de suas localidades. É esta forma de atuação que fertiliza os
caminhos do conhecimento e do reconhecimento, aos quais já me referi anteriormente.
Ao longo de seus cinco anos de existência, o grupo já desenvolveu várias
atividades, procurando responder à necessidade de ampliar seu campo de ação, e
orientado pelo objetivo de intensificar as relações entre os diversos atores presentes na
favela, e também entre a favela e demais espaços sociais. Com isso, conferiu ênfases
diversas ao trabalho, sempre considerando a experiência que as educadoras responsáveis
vão acumulando e em diálogo com os desafios trazidos pela prática do trabalho. Por
exemplo, em seus primeiros anos de existência, o projeto deu prioridade às oficinas de
memória desenvolvidas nas localidades da Grande Tijuca. No ano seguinte, agregou a
esta atividade, as ações desenvolvidas nas escolas públicas. E a partir de 2003, reforçou
as atividades que os colocam em intercâmbio com favelas de outras áreas do município
e com agentes sociais diferenciados. Mas, em resumo, os Condutores tem operado
através de quatro eixos de ações:
- Oficinas de Memória: onde as lembranças da localidade são levantadas, discutidas e
construídas, junto ao debate de temas importantes da história da cidade, bem como
questões atuais a respeito da favela; são dinamizadas pela equipe do projeto e
registradas através de relatórios escritos, fotos e instrumentos de aúdio e vídeo.
- Escolas Públicas: leva-se para o espaço da construção do “saber formal” a memória
das favelas, onde moram grande parte dos alunos. Assim, os alunos podem conhecer a
história através do depoimento de moradores anônimos, privilegiando uma visão que
não se encontra nos livros didáticos.
- Eventos locais: encontros comunitários e em outros fóruns sociais, com a participação
da equipe dos ‘Condutores’ apresentando o trabalho realizado e, ainda, expondo
documentos, fotos e outros materiais relativos à história local.
_ Oficinas de capacitação: começaram a ser desenvolvidas em 2005; o grupo leva sua
experiência para favelas de diferentes regiões, socializa informações a respeito da
história das favelas na cidade e procura incentivar projetos de memória local.
As principais ações dos “Condutores de Memória” são realizadas nas favelas
onde ocorrem as oficinas, onde a equipe pode coletar, sistematizar informações sobre
as favelas e, ainda, sensibilizar os moradores em relação à necessidade de promover a
memória cultura local. A própria realização das oficinas já cumpre um papel importante.
Contudo, como a perspectiva do grupo é divulgar o material coletado e a construção de
um centro de memória, há a preocupação com o registro das experiências através de
relatórios escritos, fotos e instrumentos de áudio e vídeo, tendo já sido realizado um
filme a respeito da duas primeiras localidades contempladas pela ação dos Condutores:
o Morro do Borel e a Chácara do Céu, além da produção de quatro folhetos
informativos.
Freqüentemente, nestes encontros, surgem temas que ultrapassam a história de
formação da comunidade (o meio ambiente, a educação, relações de gênero e
familiares). É que recordando e discutindo a ocupação e desenvolvimento de suas
comunidades, seus participantes vão amarrando outros fios a suas memórias. Fios que
muitas vezes tecem, falando do futuro, conforme expressa um dos moradores do Borel,
presente nas oficinas:

Então a preocupação da gente é a seguinte: nós que estamos falando de história aqui
no Borel, hoje, nós estamos em final de carreira. A nossa preocupação hoje é com
nossos netos, né? Como vai funcionar a tecnologia. Como será isso? Como vai
acontecer? Como se resolver esse problema que a tendência é piorar a situação do
planeta ? 17

Os temas vêm sendo discutidos sob uma perspectiva histórica, numa abordagem
que amplia a noção de “história local”, para além dos aspectos tradicionalmente
enfocados. Ou seja, compreende-se que a memória da comunidade não passa apenas
pela história das lutas de organização comunitária, mas também, e principalmente, pelas
formas de viver, sobreviver, namorar etc. O que percebemos é que, de forma dinâmica,
se dá uma redefinição da categoria de memória para além dos conflitos imediatamente
percebidos na sociedade, principalmente aqueles que opõem o morro e o chamado
asfalto.
O projeto buscou ultrapassar as portas das “comunidades”, estendendo sua
atuação para as escolas públicas da região. A parceria com a escola é muito importante
porque sensibiliza educadores a respeito da questão, e estreita os laços com a favela,
contribuindo na valorização da cultura local e na chamada integração ‘morro e asfalto’.
Em particular, aponta a perspectiva de reprodução de uma política pública fundamental
às relações socioculturais e políticas estabelecidas no complexo ambiente urbano.
Afinal, desenvolve formas de ação e uma metodologia onde um espaço público é
ocupado pela favela, discutindo-se questões que dizem respeito à história e ao cotidiano
de seus moradores e abrindo espaço à presença de educadores comunitários na escola.
Enfim, é uma forma de intervenção que percorre o caminho contrário das políticas
educacionais e propostas pedagógicas que não dialogam com as experiências e visões de
mundo dos alunos e pais/responsáveis, apesar de acolherem a perspectiva de incorporar
em sua agenda as necessidades e a diversidade cultural presente nas favelas, de onde
vem a maior parte dos alunos que freqüentam as escolas públicas.

Relação, mediação: adubos nas batalhas da memória

No caminho seguido pelos Condutores há algumas questões fundamentais, que


particularizam a experiência e lhe dão força. Em primeiro lugar, como já afirmamos, as
oficinas de memórias colocam em relação moradores antigos, mais velhos e os jovens 18.
17
Oficina de Memória no Morro do Borel, 2001. (eu retirei o meio ambiente; havia uma idéia de fazer
oficinas temáticas mas ela foi deixada de lado)
18
Os grupos de idosos locais e a população infantil e juvenil têm especial importância nas localidades,
atingidas pelas recentes mudanças trazidas por projetos de urbanização e programas sociais. Pensamos
aqui na necessidade de tais mudanças virem acompanhadas da integração de antigos moradores e da
A interelação direta entre estes dois grupos tende a favorecer a valorização social dos
idosos e a potencializar a experiência e o compromisso comunitário dos jovens. Assim,
permite uma troca geracional positiva que contribui para redefinir a sociabilidade local e
atua sobre a identidade da favela. Maurileia Ribeiro nos fala a respeito:

É interessante ver o idoso da Chácara do Céu, por exemplo, contando a história da


comunidade para os jovens e eles atentos ouvindo, como foi o caso de seu Cícero.
Mais interessante ainda foi o parecer dos jovens sobre o que ouviram. Acreditamos
que assim, contribuímos para os laços de afeto entre os moradores da comunidade.
Isso, contribui, em última instância, para identidade comunitária 19.

Em segundo lugar, as atividades educativas desenvolvidas nas escolas públicas,


relaciona alunos/pais/responsáveis e profissionais mediadores, notadamente os
educadores, colocando em questão a relação entre a favela e o chamado asfalto. Levar o
projeto para a escola significa ultrapassar as fronteiras locais, desenvolvendo este
trabalho em espaços onde estão instalados confrontos de conhecimentos e conflitos
simbólicos, que fazem parte da história das relações da favela com a cidade. Aqui, a
escola pública é um lugar fundamental, pois é o serviço social mais utilizado pelas
comunidades, sendo também o espaço formal da disseminação de uma história instituída
da cidade, atravessada por representações acerca de seus moradores e dos diferentes
espaços urbanos. Mas, por agregar um grupo diferenciado de atores sociais, é um lugar
social onde há possibilidades de produção de novos conhecimentos e culturas políticas,
capazes de transpor os muros escolares, assumindo uma proporção pública.

Relação e Interação são palavras chaves no trabalho dos Condutores e cumprem


um papel de adubos nesta experiência. O importante é que o projeto se desenvolva
através de um processo de interação entre diferentes atores. No caso da favela, ainda
que localizados no mesmo espaço e grupo social, jovens e velhos encontram-se
atravessados por uma diferença geracional. Na escola, se encontram ou desencontram
segmentos sociais que tem diferentes posicionamentos na sociedade.

juventude. Os primeiros, muitas vezes, sentem-se perdendo suas referências passadas e até mesmo seu
espaço - físico e subjetivo - dentro das comunidades. Constituem mesmo um dos segmentos mais
estigmatizados, ainda que sejam portadores da memória viva do lugar. As crianças e jovens são alvos de
diversos projetos sociais e ocupam atualmente um particular espaço em seu desenvolvimento, sendo
atores centrais nas respostas aos desafios que estão por vir.
19
Condutores de Memória: retratar e reviver histórias de lutas e conquistas na Grande Tijuca. “Memória
das favelas”. Comunicações do Iser, no59. Rio de Janeiro: Iser, p.20. p.20-26
Neste processo de interação, se dá a promoção de uma memória, compreendida
como trabalho, criação20. Um ato coletivo, produzido na relação entre diversos atores,
onde o lembrar não é reviver, mas principalmente um refazer juntos.

As lembranças grupais se apóiam umas às outras formando um sistema que


subsiste enquanto puder sobreviver a memória grupal. Se por acaso, esquecemos,
não basta que os outros testemunhem o que vivemos. É preciso mais: é preciso
estar sempre confrontando, comunicando e recebendo impressões para que nossas
lembranças ganhem consistência.21

É assim que experiências percebidas muitas vezes numa dimensão individual, ao


serem trocadas são redimensionadas para um campo comum, criando novos processos
identitários. Isso acontece particularmente nas oficinas onde jovens e velhos se
encontram, recriando um campo simbólico comum, que relativiza as visões já
construídas pelas duas gerações, alargando a compreensão não apenas daquilo que se
passou mas também do presente e do futuro.
Em todo este processo, as educadoras que criaram o projeto e são responsáveis
por sua execução, apresentam-se como “mediadoras” da relação. Com efeito, nas
“batalhas da memória” das favelas, localizadas num terreno de disputa, as lideranças
locais que levam a frente o trabalho assumem um papel fundamental, uma vez que, em
interlocução diferentes agentes sociais, situam-se na fronteira entre diferentes espaços,
em pontos onde ‘as estruturas sociais estão em ação”, como diria Bourdieu (1997). No
caso dos Condutores, as educadoras que criaram o projeto e são responsáveis por sua
execução apresentam-se como mediadoras dos diálogos que vão sendo travados nas
várias atividades desenvolvidas pelo projeto. Maria Aparecida Coutinho chama atenção
do fato ao recordar:

Quando chegávamos em outras comunidades e dizíamos que éramos moradores de


comunidades como eles, os olhares eram de admiração, principalmente os
adolescentes. Isso porque os moradores de comunidade estão acostumados a
receber o que as pessoas de fora levam para eles. Ao verem as coisas sendo
produzidas pela própria comunidade, por gente como eles, valorizam e se espelham

20
Em relação ao conceito de memória, recuperamos a abordagem de Eclea Bosi (1987)
21
BOSI. Eclea. 1987. Lembranças de Velhos. 2aed. São Paulo: T.A. Queiroz Editor Ltda: Editora da
Universidade de São Paulo, p.336.
no intuito de conseguirem, algum dia, criar algo de bom para seus locais de
moradia também22.

Moradoras de favelas, mas com uma experiência acumulada em diferentes


projetos sociais, governamentais e não governamentais, elas transitam por vários
espaços da sociedade. São, portanto, personagens centrais ao processo, localizando-se
numa região de fronteira, entre a favela e o “asfalto”, o que lhes dá particular
visibilidade para atuar e mediar a recuperação da memória. Com isso, a legitimidade
construída em sua experiência de trabalho potencializa o ato de rememorar, conferindo
um significado particular ao “testemunho” dado por cada um dos agentes. Um
significado que aproxima-se daquilo que Bourdieu lembra em suas reflexão:

“(...) aproveitar essa situação como uma ocasião excepcional que lhes é oferecida
para testemunhar, se fazer ouvir, levar sua experiência da vida privada para a esfera
pública; uma ocasião também de se explicar, no sentido mais completo do termo,
isto é, de construir seu próprio ponto de vista sobre eles mesmos e sobre o mundo
(...) (1997).

A geração e a espera: possibilidades e limites da proposta dos Condutores

O projeto dos Condutores de Memória vem sendo desenvolvido num tempo


histórico onde a paisagem das favelas é bastante distinta, se comparada à época das
lembranças mais remotas dos moradores antigos. A relação das favelas com os serviços
sociais atualmente também apresenta diferenças em relação ao passado. Desde os anos
80, em função da pressão dos movimentos comunitários, houve um avanço dos serviços
de infra estrutura urbana e sociais em numerosas favelas. Atualmente, muitas delas são
atingidas por processos de urbanização que buscam transformá-las em bairros
populares. No entanto, o processo apresenta limites. O diálogo das comunidades com o
Estado tem se desenvolvido através de um novo padrão de relação onde as associações
de moradores, e também cada vez mais outras entidades comunitárias, aparecem como
parceiras dos órgãos públicos e em vários casos, de ONG´s. Tal mudança se opera
dentro dos marcos das políticas neoliberais de privatização e desregulamentação, e da

22
Condutores de Memória: retratar e reviver histórias de lutas e conquistas na Grande Tijuca. “Memória
das favelas”. Comunicações do Iser, no59. Rio de Janeiro: Iser, p.20. p.20-26
expansão de formas de gestão das políticas sociais marcadas pela terceirização. É uma
nova composição de forças sociais, em que as entidades atuantes nas favelas são
apresentadas não mais como interlocutores políticos, mas como parceiras na execução e
gerenciamento de programas e serviços públicos.
É neste contexto que a promoção da memória, com a discussão da história da
favela no âmbito da cidade do Rio de Janeiro, apresenta-se como um instrumento
fundamental a ação de lideranças, educadores, grupos comunitários, e mesmo
moradores em geral em sua relação com o poder público e instituições da sociedade
civil. Como lembra Pollack, “memória e a identidade são valores disputados em
conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos
políticos diversos” (1992). Com isso, as “batalhas da memória” das favelas abrem
possibilidades de recriação do universo simbólico dos agentes sociais participantes do
processo, com a perspectiva de reposicionamento destes agentes, de redefinição de
conceitos e imagens sociais, com a configuração de novas negociações de significados
dados a experiências passadas e presentes.
No caso das “batalhas” dos Condutores, passados cinco anos de projeto, é
possível afirmar que a fertilidade deste caminho dos “Condutores de Memória” está
associada a duas características do projeto, que queremos aqui reafirmar. Em primeiro
lugar, todo o trabalho é mediado pelas educadoras comunitárias, o que facilita a
participação dos moradores das favelas. Desta forma, contribui-se também para o
reposicionamento destes atores no processo de promoção da memória de suas
comunidades, onde eles tendem a se perceber como sujeitos. Outro elemento: a
diversidade de agentes envolvidos no trabalho favorece a configuração de um campo
simbólico comum capaz de ultrapassar as fronteiras da comunidade e desalojar
determinadas representações estigmatizadoras das favelas.
Contudo, no caminho do grupo há também dificuldades. Como se trata de um
terreno marcado por ambiguidades temporais, espaciais e socio culturais (asfalto e
morro; dentro da comunidade e fora da comunidade; hoje e ontem; jovens e moradores
antigos), a perspectiva de romper com representações estigmatizantes apresenta riscos.
Ela pode levar à reprodução de outras imagens e leituras substancialistas, como por
exemplo aquelas que afirmam as noções de identidade e comunidade, numa perspectiva
a-histórica e não relacional. Desta forma, o desafio é não atribuir determinadas
características essenciais a identidade local e às comunidades, buscando-se sempre
compreendê-las no âmbito da dinâmica do processo histórico.
Este problema tem especial impacto quando o que está em jogo é o processo de
intervenção social. Aqui, as ambigüidades e dicotomias contribuem para opor as
favelas entre si e agravar as tensões das favelas com o chamado asfalto, o que reforça
um mapa discriminatório e estigmatizador no espaço urbano.
O projeto tem procurado sempre responder a este desafio, expandindo seu raio
de ação e incorporando diferenciados agentes sociais. Avança, desenvolvendo-se em
múltiplos espaços, como junto a projetos públicos voltados para os jovens das favelas.
Para além das favelas, dialoga com outras iniciativas afins, procurando contribuir no
desenvolvimento de novas formas de intervenção social e uma nova cultura política, que
afirme uma visibilidade positiva à favela. E, diante de acontecimentos importantes na
dinâmica da cidade, marca sua posição, como ocorreu por ocasião de uma polêmica a
respeito da violência no Rio de Janeiro, e particularmente na região da Grande Tijuca.
Neste período, atuando nas escolas, a equipe do projeto procurou aproximar as histórias
das várias localidades da região, mostrando que elas possuíam identidades comuns e
procurando diluir os antagonismos que colocam determinadas favelas em campos
inimigos23.

No enfrentamento deste desafio tem sido importante a relação do grupo com


técnicos de ONG´s e, especialmente, com pesquisadores. Ano passado, por exemplo,
foi oferecido às educadoras do grupo um curso voltado para a história das políticas
públicas em relação à favela e que abordava metodologias de pesquisa no campo da
antropologia24. Na ocasião, em meio a uma discussão a respeito da necessidade de
estranhar o familiar, Ruth Barros, observou: “quando você está em uma comunidade
que não é a tua, você consegue ter este olhar, você consegue olhar com outro olhar
porque você tem distância...”.
O que a experiência indica é que o diálogo com o conhecimento crítico
produzido na universidade pode atuar no sentido de que os agentes locais envolvidos
nestas experiências ampliem sua percepção a respeito das trajetórias de suas localidades,
compreendendo-as no âmbito de mudanças históricas mais amplas, o que contribui para

23
Na região da Grande Tijuca, e em todo o Rio de Janeiro, as favelas estão ocupadas por facções
diferenciadas do narcotráfico. Ao longo do primeiro semestre do ano 2002, na região da Grande Tijuca,
ocorreram várias disputas entre estas facções do narcotráfico, dificultando a circulação dos moradores das
favelas e instalando a insegurança nas áreas do “asfalto” , também atingidas pelos conflitos. Um dos
efeitos mais nocivos de tal situação é a oposição entre as comunidades, que são dominadas por grupos
inimigos. Mas é importante destacar que a concorrência pelo acesso aos serviços públicos e programas
sociais também contribui para agravar as disputas entre as comunidades.
24
Relatório de observação do Curso ministrado pela Prof a Neiva Vieira da Cunha, promovido pela
Agenda Social Rio, 2003.
repensar os elos comuns entre as favelas e desalojar representações que foram se
acumulando ao longo destas mudanças, e que se traduzem nas dicotomias já referidas.
Para além do papel da universidade, mediando uma reflexão teórica e
metodológica no âmbito destes projetos, há ainda outros aspectos importantes a
considerar no referido diálogo. Um deles diz respeito à divulgação das experiências e do
material aí levantando, de forma a alcançar o objetivo mais amplo de dar visibilidade ao
lugar da favela na história da cidade. E outro se refere ao apoio no trabalho de coleta,
transcrição de fitas, sistematização, catalogação e organização de todo o material
levantado, bem como em sua preservação. O material levantado, em oficinas de
memórias como aquelas acima mencionadas, apresenta uma potencialidade, cuja
exploração depende de recursos técnicos e financeiros.
A universidade, e particularmente a investigação histórica, por sua vez, encontra
neste diálogo um terreno fértil para o avanço de pesquisas que se propõem a romper o
silêncio em relação ao lugar da favela na história. Como já levantamos acima, pode
identificar pistas que unem a favela a processos históricos que marcam a sociedade
brasileira, como por exemplo, os anos de repressão militar, tão amplamente
contemplados pela produção acadêmica. Anos em que houve também uma violenta
investida contra as favelas, empreendendo-se aquilo que, recuperando mais uma vez
Francisco de Oliveira, podemos chamar de “destituição da fala” e “anulação da
política”(2000: 59). O rompimento deste silencio se faz tanto mais fundamental, se
considerarmos que a favela atualmente volta a inspirar o debate da “remoção”, onde
estão inscritas representações centenárias a respeito destas localidades25.
O que queremos destacar aqui é que memória e história podem se alimentar,
num diálogo, numa “batalha comum”, através do qual podemos desbravar a fronteira do
“desconhecido”, produzindo uma história das favelas, que vá além da história das
intervenções públicas nestas localidades. Pois, como bem lembra Marcos Alvito: “ A
história ainda não fez a sua parte. A história não desempenhou o seu papel. Ainda não
escreveu nem um esboço da história das favelas”26.
Este não é um diálogo fácil. Assim como não o é aquele que coloca em relação
os projetos de memória local e outros espaços, como a escola pública. Com efeito, a

25
A respeito das representações centenárias a respeito das favelas, é bastante enriquecedor o artigo de
VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca: a produção anterior às ciências sociais. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, vol.15, no44, 2002.
26
ALVITO. M. A favela venceu. “Memória das favelas”. Comunicações do Iser, no59. Rio de Janeiro:
Iser, p.116
“batalha em comum” encontra-se em espera. Mas, certamente, é neste campo mais
amplo de diálogo com outros agentes, que é possível pensar iniciativas locais, como a
experiência dos Condutores, como um caminho capaz de adubar uma agenda alternativa
de políticas sociais em relação às favelas e um novo olhar sobre estas localidades. Um
sonho que gera.
Referências Bibliográficas

ALVITO. M. A favela venceu. “Memória das favelas”. Comunicações do Iser, no59.


Rio de Janeiro: Iser, p.p.110-116.
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Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
BOURDIEU, P (Coord). A Miséria do Mundo, Petrópolis: Vozes, 1997.
CUNHA, Marize & GOUVEIA, Patrícia. Condutores de Memória: Histórias e
Identidades Locais, trabalho apresentado no VII Congresso Luso Afro-Brasileiro,
Associação de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa, Universidade
Cândido Mendes, IUPERJ, setembro de 2002.
OLIVEIRA, Francisco. Privatização do Público, destituição da fala e anulação da
política: o totalitarismo neoliberal. In: OLIVEIRA, F. & PAOLI. M.C. Os sentidos
da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global, 2 a ed., Petrópolis/RJ:
Vozes, 2000, p.55-81.
POLLACK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol2, no3, 1989, p:3-15.
_________________. “Memória e Identidade Social”. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol5, no10, 1992, p:200-212.
RANCIÉRE, Jacques. O Desentendimento, São Paulo: Editora 34, 1996.
VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca: a produção anterior às ciências
sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.15, no44, 2002.
___________________& MEDEIROS, Lídia. Pensando as favelas no Rio de Janeiro:
1906-2000, uma bibliografia analítica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, FAPERJ,
Urbandata Brasil: 2003,
THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria, Rio de Janeiro: Zahar ed, 1981.

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