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A urbanização é um fato irreversível em praticamente todo planeta. No início do século XX apenas 10% da
humanidade residia em áreas urbanas, hoje metade, mais de 2,9 bilhões, vive em cidades. Existem 19 mega-
cidades, das quais 15 localizadas nos países ditos em desenvolvimento, com uma população acima de 10
milhões de habitantes(1). Essa evolução, por si só, já faz da ecologia urbana um tema fundamental. Nos
primórdios do movimento ambientalista havia correntes levantavam a tese de uma inviabilidade estrutural das
cidades tidas como irreparavelmente ingovernáveis. Atualmente poucos ecologistas vislumbram seu próprio
futuro e o da humanidade fora de um contexto urbano. Os ambientalistas cuja ação, desde meados dos anos
70, privilegiara questões globais como as florestas, a camada de ozônio ou as mudanças climáticas, envolvem-
se, cada vez mais, de forma prática e teórica, com os variados desafios envolvendo as cidades e sua
sustentabilidade.
Jane Jacobs, veterana jornalista, urbanista e militante comunitária americana, que escreveu o extraordinário
Death and Life of Great American Cities (aqui Morte e Vida das Grandes Cidades, ed Martins Fontes), tem
uma outra obra, menos conhecida, The Economiy of Cities onde desenvolve uma tese revolucionária: ao
contrário do que aprendemos na escola, os assentamentos humanos precederam e não sucederam o
surgimento das primeiras culturas agrícolas. Segundo ela os primórdios da urbanização se relacionam com o
processamento de produtos da caça e do extrativismo. Assentamentos humanos precederam tanto a
agricultura como a pecuária. Ela identifica cidades primordiais, com cerca de dois mil habitantes, a 8 500 anos
antes de Cristo.
(...) não foi a agricultura, em que pese toda sua importância que foi a mais relevante invenção ou
ocorrência da Era Neolítica. Foi o advento de uma economia citadina, sustentável, interdependente e
criativa que tornou possível novas formas de trabalho, entre elas a agricultura. (2)
A tese é naturalmente polêmica. De qualquer forma se as origens remotas da urbe são ainda discutidas, o
futuro não deixa margem a muitas dúvidas: a grande maioria da humanidade residirá nas cidades.
Precisaremos, mais que simplesmente "esverdeá-las", torná-las sustentáveis do ponto de vista ecológico,
econômico, social e energético.
Por muito tempo as relações entre o ambiente natural e o construído foram vistas sob o prisma do conflito.
Mundos separadas, até centro ponto, contrapostos, um servindo de pano de fundo ou jardim, ao outro. A idéia
da separação, do confronto, da subjugação do ambiente natural frente à vontade criadora e construtora foi uma
constante. Na ótica marxista, que influenciou tantos urbanistas no século XX, “a contradição entre o homem e
a natureza” precedia e sucederia àquela entre classes sociais. Mesmo as correntes de arquitetos que
aparentemente valorizavam os espaços verdes não conseguiam perceber que a cidade de concreto, asfalto e
vidro, na verdade, não constituía um ente separado da natureza, mas natureza transformada, um novo
ecossistema integrado, modificado, diferente do ambiente natural mas não fora dele, não imune aos seus
cíclos, dinâmicas e reações.
No meu livro Ecologia Urbana e Poder Local procurei ilustrar essa idéia:
A criação do homem interage incessantemente, para o bem ou para o mal, com o ambiente natural que
a rodeia e envolve. No ambiente construído, a natureza não chega a desaparecer; permanece à vista e
não está apenas nas árvores e áreas verdes das ruas, das praças, dos parques, dos jardins e até
mesmo dos terrenos baldios. Está no ar, nas águas dos rios, canais e lagoas; está na fauna, nos
insetos e nos microrganismos que convivem conosco no ambiente urbano. As nossas construções são
assentadas sobre uma geologia específica, que tem influência sobre tudo o que vai acontecer com elas
e os seres humanos que as habitam. Os materiais utilizados nelas (areia, terra, rocha, pedras, mármore,
concreto, asfalto) pertenceram ao entorno natural. Sua extração tem certas conseqüências, da mesma
forma que o modo como o homem os utiliza, dando forma aos projetos arquitetônicos. A
impermeabilização do solo, as concentrações de edifícios, os desmatamentos em encostas ou margens
de rios, o assoreamento e a retificação ou canalização de rios são ações que afetam o ambiente natural
de uma determinada maneira. Se a ação do homem tende ao desequilíbrio, o ambiente natural
certamente reage, trazendo efeitos inesperados para o ambiente construído e seus ocupantes:
inundações, secas, microclimas adversos, erosão, desabamentos, enchentes, voçorocas, ambientes
internos insalubres. (3).
Devo a clareza desse conceito à Ann Whinston Spirn. No seu livro, de 1984, The Granite Garden (4) encontrei
a melhor explanação desses postulados da ecologia urbana. O livro de Spirn, uma professora de paisagismo,
arquitetura e planejamento regional da universidade da Pennsylvania, é recomendado com entusiasmo por
Jane Jacobs, hoje anciã, mas sempre lúcida e aguda, que há muitos anos mora em Toronto, onde, por um
tempo, assessorou a Prefeitura contribuindo para tornar esta cidade canadense algo bastante especial e
distinto do padrão norte-americano. No a sua obra mais famosa, Life and Death o Great American Cities (5)
escrita no final dos anos 50, mais de uma década antes do surgimento do movimento ambientalista
contemporâneo, ela estabeleceu os alicerces para um pensamento de sustentabilidade urbana.
A urbanização vertiginosa dos últimos 40 anos não é, ao contrario do que imaginam alguns, simples
subproduto de uma estrutura rural fundiária injusta. Ou de um tipo de agricultura cada vez mais mecanizada e
menos intensiva em termos de absorção de mão de obra. É principalmente movida pelo desejo da juventude
rural de acesso a oportunidades, bens materiais, conhecimentos e vivências que só a urbe tem como oferecer
precisamente pela sua imensa gama de oportunidades de contato. O australiano David Engwicht no seu livro
Towards an Eco-City define isso de forma eloqüente:
As cidades forma inventadas para facilitar a troca de informação, amizade, bens materiais, cultura,
conhecimento, intuições, habilidades e também troca de apoio emocional, psicológico e espiritual.
Essa troca é mais dificil se as pessoas ficam espalhadas pela área rural e não têm acesso a essa troca
de oportunidades. É por isso que construímos cidades. Cidades são a concentração de de gente e
estruturas que possibilita a mútua troca minimizando a demanda de viagem. As pessoas desejam
acesso a essa rica diversidade de trocas de oportunidades para sua sobrevivência e crescimento como
seres humanos. As cidades são o reconhecimento de que para desenvolver nossas plenas
potencialidades, necessitamos daquilo que outras pessoas nos podem dar. cidade é um ecossistema
criado pelas pessoas para sua mútua realização. Num ecossistema, assim como numa floresta tropical
tudo está interrelacionado e é interdependente. Cada organismo provê algo essencial para a vida de
outros organismos e, em troca deles, recebe aquelas coisas essenciais para sua própria sobrevivência
e bem-estar. (7)
Ecologia urbana, portanto, não se confunde com simples conservação do verde e de amenidades
paisagísticas, nem com um zoneamento nostálgico da vida rural como os subúrbios motorizados de classe
média americana. A ecologia urbana tem como base a multiplicidade de relações que compõem a diversidade
desse complexo ecossistema identificado por Engwitch e como critério fundamental de sucesso ou fracasso a
noção de sustentabilidade econômica, social, energética, e humana, no físico e no espiritual.
A CIDADE INFORMAL
O maior problema eco-urbanístico do sul do planeta é a cidade informal das favelas, loteamentos clandestinos
e similares com seus variados nomes: villas miséria, poblaciones, townships, shanty towns, bidonvilles,
casbah. Nas grandes cidades latino-americanas, asiáticas, africanas, árabes e em partes crescentes da
Europa do leste, proporções variando de 20% a mais de 80o% das edificações são ilegais, foram construídas
sem licença e fora das leis urbanísticas, em terrenos que raramente pertencem aos ocupantes dessas
benfeitorias. Foi o impacto da intensa urbanização dos últimos 40 anos, confrontada com a inadequação das
regulamentações edilícias e com os anacronismos da estrutura fundiária urbana.
Em todas as cidades brasileiras, em maior ou menor escala, encontramos a cidade informal. A pobreza e a
exclusão social são, sem dúvida alguma, desequilíbrios que comprometem a existência de um ecossistema
urbano sadio. Porém, se a miséria sempre está na cidade informal, nem toda cidade informal é completamente
miserável. Há uma certa mobilidade social que dá acesso a novos bens de consumo e espaços de moradia
mais amplos (em geral, crescimento vertical das habitações). Dentro da própria comunidade ocorre um
desdobramento social com uma pirâmide local de “ricos”, classe média e pobres. Ao lado disso persiste a
precariedade no saneamento básico, na coleta de lixo e, em muitos casos, os riscos de desabamento ou
inundação.
Algumas medidas são fundamentais, e a primeira delas é estabelecer políticas públicas que levem à integração
com a cidade formal, à transformação da favela em bairro, não obstante condições urbanísticas originais, o que
implica em urbaniza-la, melhorar sua acessibilidade, legalizar a posse dos terrenos e das edificações, fazendo
os novos proprietários pagarem IPTU, ainda que reduzido, e manter a presença constante do poder público.
Isso exclui apenas uma fração relativamente reduzida de edificações em área de risco, irreparavelmente
insalubres ou situadas dentro de logradouros públicos, que devem ser removidas. Implica, ainda, construir
limites, fronteiras físicas claramente demarcadas entre a comunidade e seu entorno natural. Naturalmente, tais
limites físicos, sejam muros, grades ou cercas, nada garantem se não resultarem de um acordo de regulação
do crescimento pactuado com a comunidade o que é muitas vezes viabilizado pelo subsídio a projetos
geradores de renda, como mutirões remunerados de reflorestamento, lixo ou saneamento, a partir dos quais o
poder local passa a ter mecanismos de pressão.
Um aspecto crucial da integração desses bairros informais na cidade formal é criar regras próprias de uso do
solo e de edificações, adaptadas às condições locais e pactuadas entre os poderes públicos, as comunidades
e os demais interessados. Ou seja, a criação de um código de obras e de um código de procedimentos
ambientais adaptados àquela realidade específica, uma nova política integrada de regularização, ordenamento
e contenção da favelização e do loteamento ilegal, novos instrumentos como o parcelamento e utilização
MOBILIDADE E ENERGIA
É bastante patente a crise do modelo de transportes rodoviarista: nos últimos 30 anos os maiores
investimentos públicos foram feitos para melhorar a circulação dos automóveis que são usados por uma
minoria da população nas cidades. O caminho mais fácil no âmbito do transporte coletivo foi deixa-lo nas mãos
das empresas particulares de ônibus, que transportam entre 60% e 80% dos passageiros urbanos. Essas
empresas, solidamente instaladas em quase todas cidades brasileiras, titulares de um dos serviços mais
lucrativos --mercado garantido e remuneração imediata, líquida-- depois de décadas de maus serviços,
conseguiram entrar em crise. Seu inferno astral não veio de uma nova severidade regulatória do poder público,
contra a qual sempre se prepararam montando poderosos lobbies e "caixinhas", parlamentares e dentro dos
executivos estaduais e locais, mas do surgimento de um similar ainda mais agressivo e difícil de regular, as
vans e kombis que oferecem um serviço mais apreciado, sobretudo nas áreas periféricas.
O resultado é uma situação caótica onde, para resistir aos seus novos concorrentes, as empresas de ônibus
multiplicam o número de veículos, em áreas nobres, e diminuem em áreas periféricas. Nas primeiras surgem
filas de veículos vazios contribuindo para tornar o trânsito ainda mais caótico e poluente. Nas segundas os
ônibus simplesmente desaparecem consagrando os coletivos de pequeno porte. No Rio de Janeiro, por
exemplo, o número de ônibus aumentou de 6500 para mais de 8000 entre 1996 e 2002, sem que isso tivesse
produzido nenhuma melhoria aos usuários, pelo contrário. Do ponto de vista ambiental esse aumento, bem
como o dos engarrafamentos, contribui para piorar a qualidade do ar.
Um maior investimento em transporte de massa sobre trilhos (metrô, VLT, trens) representa uma alternativa
óbvia mas cara. Nenhuma cidade sozinha tem condições de arcar com esse tipo de investimento. A situação
financeira catastrófica da maioria dos governos estaduais coloca a possibilidade desse financiamento na
dependência de recursos federais, do BNDES, agências multilaterais tipo BID ou BIRD e/ou de uma aporte
privado que não virá sem uma forte parceria pública.
O próprio sistema de ônibus, no entanto, poderia ser singularmente aperfeiçoado e racionalizado com
canaletas exclusivas para veículos articulados de grande capacidade, confortáveis e abastecidos a gás natural,
cuja implantação encontra barreiras dentro da cultura vigente e práticas correntes das empresas de ônibus.
Elas reagem ao uso de veículos de alta capacidade e movidos a gás, pois têm como hábito rodar veículos
novos durante dois ou três anos, em grandes cidades, e, depois, transferi-los para o interior onde ônibus desse
tipo não teriam uso. Toda uma reengenharia das próprias empresas se faz necessária e parece plausível supor
que ela venha a ocorrer por questão de sobrevivência.
Um desafio que se coloca para a mobilidade urbana é a iminente revolução tecnológica cujos protótipos já
pululam nos EUA, Japão e Europa. Novamente o Brasil poderá aguardar que o novo ciclo se implante nos
A gestão das águas e dos resíduos sólidos envolve dois grandes fluxos com várias interfaces e mútuas
interferências ambos marcados, na maioria dos casos, pela insustentabilidade. Os números citados pelo
relatório Cities in a Globalizing World do Habitat revelam que:
Cerca de 3 bilhões de pessoas não dispõem de um acesso adequado ao saneamento, o dobro dos que
não dispõe de acesso à abastecimento seguro de água. As doenças de veiculação hídrica associadas
são especialmente preocupantes em áreas de rápida urbanização. Precisamos de programas que façam
a ponte entre tratamento de águas servidas, educação higiênica, disposição e coleta de esgotos e
gestão do resíduos sólidos. (11)
Nas cidades brasileiras houve significativos avanços no abastecimento d'água e, menos significativos, no
saneamento. Mas o abastecimento d'água ainda sofre perdas de mais de 50%, em muitas grandes cidades, na
fase de transporte e distribuição. O desperdício do que sobra para o consumo é considerável, fruto de uma
cultura da abundância, entranhada num país que detêm 13% do 1.5% das águas aproveitáveis do planeta,
essas cada vez mais escassas. A cobrança por "estimativa", e não por consumo efetivo, amplamente praticada
por concessionárias, é altamente deseducativa. Mas o maior problema aqui é a poluição de redes pluviais, rios,
canais, lagoas, baias e oceano pelos efluentes líquidos não tratados, industriais e domésticos.
Algum progresso foi registrado, nos últimos anos, em relação às industrias mas a situação dos esgotos
domésticos é caótica. São poucas as partes dos sistemas de esgotamento que passam por estações de
tratamento, do que tipo for, e o funcionamento destas estações e sua própria manutenção constitui um
problema que raramente é satisfatoriamente resolvido. Nossas cidades estão cheias de exemplos caricaturais
de estações que não funcionam, mal funcionam ou, simplesmente, são “baipassadas” pela rede de esgotos.
Algum progresso foi logrado na tarefa crucial de retirar as valas negras da proximidade das moradias mas uma
parcela superior a 70% das nossas internações hospitalares continua vinculada a algum tipo de infecção de
veiculação hídrica, o maior problema de saúde pública continua sendo a água contaminada.
A gestão das águas e do lixo estão totalmente desassociadas. Uma depende freqüentemente da esfera
estadual e a outra dos municípios. Dentro da própria gestão das águas o abastecimento e esgotamento estão
separados da drenagem e da conservação dos corpos hídricos. A presença de lixo agrega-se a dos esgotos e
qualquer estratégia visando a sustentabilidade precisa levar em conta ambos fluxos poluentes. Nas inundações
e desabamentos o problema dos resíduos sólidos torna-se particularmente dramático. A vulnerabilidade
climática e topográfica é exacerbada pela impermeabilização de imensas superfícies urbanizadas com
escassos pontos de absorção de águas na enorme manta de concreto e asfalto.
UTOPIA URBANA?
Atingir o objetivo de uma cidade sustentável não é uma meta utópica, ela depende de uma série de ações
perfeitamente alcançáveis, conquanto algumas difíceis por fortes injunções culturais, políticas e econômicas.
Depende também de condicionantes de macro-economia internacionais e nacionais: é difícil conceber cidades
sustentáveis dentro de uma aguda crise econômica e social com desemprego em massa, recessão, etc... Por
outro lado, o fator violência urbana, hoje o problema mais terrível com o qual se defrontam nossas cidades,
tem uma influencia desagregadora e entrópica imensa.
Por outro lado, ações de gestão urbana que promovam cidades sustentáveis contribuem de forma
cumulativamente positiva para a economia local, regional, nacional e global e criam uma situação mais
favorável no combate à violência e à corrupção. A médio e longo prazo a saída está no que se conseguir fazer
hoje no sistema educacional, sobretudo, na educação infantil, por um lado, e, por outro, no segundo grau, com
programas focados nos adolescentes em idade de risco. Muito também vai depender, no futuro, da adoção de
uma estratégia alternativa, menos estúpida, para lidar com o problema das drogas, trazendo-o para o campo
da saúde pública e retirando-o do contexto da economia e das guerras urbanas.