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DIREITO À CIDADE
Heloisa Soares de Moura Costa¹
Este texto visa associar a questão ambiental ao direito à cidade por meio de um esforço para
compreender a cidade – e o processo de urbanização de forma mais ampla – a partir da natureza.
Ao fazê-lo propõe ampliar o conceito de direito à cidade à emergência e consolidação de outros
direitos.
Entretanto, há também partes de cidades construídas sobre manguezais, aterros, dunas, margens
de córregos, rios e lagoas, terrenos impróprios à urbanização, alterando os uxos das águas e dos
solos, nas quais a natureza se torna visível principalmente quando reclama seu espaço original e
desencadeia processos de risco e vulnerabilidade social e ambiental. O urbanista americano Mike
Davis (2001) costuma chamar tais processos de revanche da natureza.
Escorregamentos de encostas, enchentes, transbordamentos de rios são cada vez mais freqüentes,
incidindo sobre áreas vulneráveis das cidades com efeitos dramáticos sobre as populações
atingidas. Embora potencializadas por alterações climáticas mais recentes, tais eventos
constituem uma perversa associação de décadas de pouco de investimento em infraestrutura de
drenagem urbana, com ausência de alternativas habitacionais de interesse social, que relegaram
às populações de baixa renda os espaços não utilizados pelo capital imobiliário, seja por serem
inadequados para a habitação formal, seja por constituírem áreas de proteção, importantes para
o equilíbrio ambiental. Marandola e Hogan (2009) fazem uma interessante distinção entre
vulnerabilidade das pessoas e vulnerabilidade dos lugares.
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Nas situações mencionadas acima estas vulnerabilidades e riscos tem se mostrado cumulativos,
revelando uma das piores facetas da desigualdade socioespacial inerente à produção capitalista
do espaço urbano nos países da sul global. Tais eventos, bem como as desigualdades que os
geram, tem sido cada vez mais naturalizados pela mídia e pelo senso comum, muitas vezes
deixando implícita uma certa culpabilização das vítimas. Neste sentido, dar visibilidade e
compreender a natureza e seus ciclos dentro do processo de urbanização constitui uma condição
essencial para fortalecer a luta por políticas públicas e processos de apropriação coletiva do
espaço que resultem na universalização da urbanização e da moradia adequada e de qualidade
para todos.
Com honrosas exceções, o processo de expansão nas cidades brasileiras ocorreu historicamente
ignorando e desaando a natureza, mas também tirando partido e se apropriando dela como
elemento de valorização fundiária e imobiliária. Durante muitos anos, principalmente desde nais
do século XIX e primeira metade do século XX, a perspectiva de domar a natureza por meio da
técnica marcou as principais intervenções urbanas. O chamado urbanismo higienista e sanitarista
dominou as concepções de reformas urbanas das áreas centrais de muitas capitais brasileiras,
desenhando avenidas, encaixotando cursos d'água, removendo populações pobres das áreas
centrais, mas também criando parques e jardins, enm promovendo o que foi chamado de
modernização e embelezamento. Á semelhança de reformas urbanas que vinham ocorrendo em
cidades européias, no Brasil esse processo veio associado a medidas sanitárias e de saúde pública,
controle de doenças e campanhas de vacinação, provocando à época protestos e resistências
quanto à obrigatoriedade das mesmas. Naquele momento tem origem também a percepção de
que o estado seria o agente responsável pela implementação de tais medidas, dando início às
ainda tímidas legislações urbanísticas, construtivas, sanitárias e ambientais.
SOBRE A MOBILIDADE...
Outro elemento importante para uma compreensão ampliada das dimensões ambientais da
urbanização diz respeito à consolidação de uma rede viária de grandes avenidas, que buscavam
garantir funcionalidade à cidade e marcaram as grandes direções de expansão urbana. Esse
movimento, denominado por Campos Filho (1989) como urbanismo técnico-setorial, se deu ao
longo de grande parte do século XX, e de certa forma continua até o momento atual
materializados em grandes projetos urbanos e exemplos de âmbito regional, como os recentes
projetos parcialmente implementados de arcos e anéis de contorno metropolitanos com
expressivas implicações urbanísticas e ambientais de alteração dos espaços e das atividades
desenvolvidas nestes percursos.
Parte dessa rede viária foi e é constituída por avenidas sanitárias, com canalização de cursos
d'água e impermeabilização de suas margens.
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Além dos aspectos ligados à invisibilização das águas nas cidades e da alteração de seu curso e
regime, tal movimento reforça e consolida a opção pela matriz de deslocamento rodoviário, em
detrimento do transporte de massa sobre trilhos, ainda muito restrito a alguns trajetos em
poucas cidades. De matriz energética fóssil, ambientalmente superada, o transporte coletivo
rodoviário sem controle ou regulação ecaz por parte do poder público tem sido gerador de
vários tipos de poluição, congestionamentos, e uma crescente imobilidade urbana.
Uma mudança radical do atual paradigma de mobilidade metropolitana envolve, entre outros
aspectos, prioridade do investimento em transporte público/coletivo, modernização tecnológica e
energética do setor, incentivo a modos alternativos de deslocamento - bicicleta, caronas
solidárias, etc. Uma alternativa que ganha corpo no debate urbano-ambiental diz respeito à
redução nas necessidades de deslocamentos diários, o que requer o fortalecimento de múltiplas
centralidades pelo território das cidades, congregando trabalho, serviços, lazer e cultura
próximos aos locais de residência, gerando ganhos importantes em termos de redução da
poluição do ar, gastos de energia e desgaste físico e emocional dos indivíduos (Amaral, 2015).
Cabe ressaltar o papel do sistema viário e dos transportes na expansão urbana, valorizando a
terra – um bem comum da natureza há muito tempo tornado propriedade privada (Harvey, 1996)
- e induzindo seu parcelamento e ocupação, em condições bastante variadas de qualidade da
urbanização e de respeito à natureza, dependendo da faixa de renda da população a que se
destinam. São comuns imagens de loteamentos fechados e condomínios exclusivos que
ressaltam os atributos da natureza como forma de valorização imobiliária, tais como paisagens
exclusivas, vegetação exuberante, acesso exclusivo a praias e lagoas, proximidade com áreas de
preservação, alguns deles incorporando em seu interior elementos da legislação ambiental como
RPPNs – Reservas Particulares de Patrimônio Natural - como estratégia de agregar valor ao
produto imobiliário (Costa, 2006).
O crescente comprometimento da terra com a urbanização, seja essa especulativa ou não, tem
dicultado a manutenção de práticas de uso da terra mais associadas aos ciclos da natureza,
como as práticas agrícolas, criação de animais, pesca, artesanato e outras atividades que
preservam, resistem ou buscam manter elementos de ruralidade nas, ou no entorno das, áreas
urbanas. Muitas destas práticas estão respaldadas em saberes tradicionais ou ancestrais cuja
transmissão vem mantendo regiões e modos de vida importantes para a reprodução de outras
relações de produção e apropriação do território, em que a natureza tem um papel central.
Algumas práticas são também importantes para a produção de alimentos saudáveis, em circuitos
curtos, aproximando produtores e consumidores e contribuindo para a segurança alimentar e
nutricional da população. Nestes casos o acesso à terra e à água de qualidade, entre outros
elementos, é primordial.
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Se perceber a natureza na urbanização requer um ajuste do olhar, o mesmo ocorre com a busca e
identicação desses nichos, grupos, territórios, práticas, saberes populares tradicionais que se
espalham pelas áreas urbanas e rurais, invisibilizados mas atuantes e resistentes, apontando para
muitas e diversas possibilidades de apropriação do território e da natureza. Experiências de
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caboclos, de pescadores, de agricultores, cuidadores de
nascentes, são alguns exemplos e tais possibilidades.
SOBRE DIREITOS...
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QUESTÕES PARA REFLEXÃO
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