Você está na página 1de 11

ANTROPOLOGIA NA ESCOLA: algumas contribuições do ofício de etnógrafo a práxis docente

Vítor Gonçalves Pimenta(torpimenta@gmail.com)


Pós-graduando em Ciências Sociais e Educação Básica no Colégio Pedro II e doutorando em Antropologia no Programa de Pós-
graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Laboratório de Etnografia e Estudos em
Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC-UFF).

Introdução

Pareceu-me pertinente indagar como o ofício do etnógrafo no seu fazer antropológico - visto como

exercício de construção do conhecimento - pode contribuir na práxis do professor de Sociologia na Educação

Básica. Assim, neste trabalho, trago algumas reflexões sobre a minha experiência como professor contratado

da Secretaria de Estado e Educação (SEEDUC), pensando na relação simbiótica entre a pesquisa e a

docência. Nesse sentido, concebo que minha atuação como pesquisador está conjugada a minha atuação

como professor e vice-versa em qualquer sala de aula, passando da creche à universidade. Considero que o

ofício do professor ou de qualquer profissional, ainda mais sendo servidor público na área da educação, deve

ser pautado em uma práxis - ação e reflexão – (FREIRE, 2011) (auto)crítica sobre seu papel social.

Ao adotar essa postura analítica, penso que meu ofício como pesquisador-professor deve contribuir

tanto para a reflexão sobre meu trabalho como professor dentro e fora da sala de aula quanto sobre o

funcionamento da instituição educacional. Dessa maneira, como antropólogo, tenho a tendência de participar

efetivamente da instituição que integro e, concomitante, refletir sobre o papel institucional da mesma -

imagino que seja uma marca do ofício ao atuar em um ambiente institucional. Esse tipo de envolvimento

ocorreu quando participei do projeto “Uma proposta de Habitat Saudável em comunidade vizinha ao Campus

Fiocruz da Mata Atlântica: Geração de metodologias e intervenção social para a melhoria do ambiente

construído”, cujo referencial conceitual encontrava-se pautado nos Determinantes Sociais da Saúde (DSS) de

janeiro de 2009 a dezembro de 2010. Nessa espécie de experimentação in vivo (LAPLANTINE, 2004), senti e

pensei a minha inserção e relação com a instituição na forma de um grande “laboratório”.

O objeto de pesquisa não era somente aqueles elaborados e presentes nos projetos da instituição, mas, acima
de tudo, o meu grande objeto era desenvolver uma reflexão sobre a atuação da Fiocruz na localidade. Em outras
palavras, o meu intuito era desvelar por quais caminhos as relações sociais se processam no encontro entre o
saber formal institucional e o saber oral local, uma vez que a instituição adota uma linha de participação
social no desenvolvimento dos seus projetos. (PIMENTA, 2015, p. 20).

Em outras palavras, como antropólogo, tenho a inclinação de transformar, pelo menos mentalmente,

uma atividade de trabalho institucional aos moldes de um trabalho de campo. Assim, a escola torna-se meu

local de trabalho e meu objeto de pesquisa. Vamos ao seu encontro!

Olhar e ouvir a escola

Cheguei às 17h30, em 02 de setembro de 2016, no Colégio Estadual Finlândia, localizado na Rua do

Canal do Rio Caçambê, 392, no bairro Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro – RJ, para ministrar a
2

disciplina Sociologia nas turmas 1002, 2003 e 2004, respectivamente no 1º tempo, 2º tempo e 4º tempo das

sextas-feiras. Apesar de ter escolhido o colégio pela sua localização, não o conhecia antes desse primeiro

encontro. Ele fica a mais ou menos 10 quilômetros da minha residência, localizada na Estrada do Rio Grande

no bairro Taquara, motivo pelo qual optei por exercer a função de professor regente de turma em regime de

contrato temporário de 16 horas em suas salas de aula. As minhas opções foram oferecidas, anteriormente,

em reunião com os representantes da regional Metropolitana VI – Rua Jorge Rudge, nº 61, no bairro de Vila

Isabel - da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC). Primeiro, a regional ligou-me convocando para

comparecer ao endereço acima em data marcada. Chegando lá, apresentaram-me uma lista de escolas com

as turmas disponíveis para que eu as escolhesse, completando no máximo 12 tempos em sala de aula,

conforme contrato de prestação de serviços por tempo determinado. Assim, a relação processou-se de forma

burocrática, quando assinei o contrato e escolhi a escola e as respectivas turmas.

Agora, saindo da regional e voltando à escola, a rua naquele entardecer não se apresentava tão

escura como nos minutos posteriores, marcada por uma iluminação precária e pela escuridão do rio que

margeia a passagem. O muro alto descorado, que não permite comunicação visual entre os de fora e de

dentro da escola, e as grades robustas azuis, em seguida, foram os primeiros artefatos que se apresentaram

aos meus olhos. Ao pisar no chão da instituição, fui recebido pela direção da escola, na figura do diretor, com

certo entusiasmo, uma vez que muitas turmas tinham falta de professor. Nesse primeiro encontro,

conversamos no interior de sua sala sobre o funcionamento da escola e regras estabelecidas pela SEEDUC.

As dependências da direção da escola encontravam-se desorganizadas naquele momento, pois a cozinha

estava em obra. Assim, amontoavam-se secretaria, sala da direção, sala dos professores e uma cozinha

improvisada sem pia, em um pequeno espaço mal iluminado, uma característica que se percebia em grande

parte da escola. Às 18h o colégio era um vazio estarrecedor. A ausência de corpos, ruídos, movimentos era

notável.

Com esta pequena descrição, desejo chamar a atenção do professor-pesquisador para o seu olhar

dentro da escola. O olhar aqui percebido como “faculdade do entendimento” sociocultural ou “ato cognitivo”,

maneira pela qual construímos nosso saber (OLIVEIRA, 2000). Vamos aflorar um pouco mais nossa

compreensão sobre o olhar. Primeiro, como sugere Laplantine (2004), deve-se operar a distinção entre ver e

olhar. Para o autor, ver é receber imagens. Está na ordem do imediatamente visto sem ponderações, no

plano do intuitivo. “Olhar consiste numa reiteração daquilo que se encontra diante de nós e a visibilidade,

enquanto forma primeira de conhecimento, afeta-nos ao mesmo tempo em que sentimos afetados por aquilo
3

que (a) percebemos”. (LAPLANTINE, 2004, p. 20). O olhar como ato de percepção e conhecimento é

mediado, diferenciado, reavaliado, instrumentalizado pelo escopo da nossa área de formação e pelos

artefatos de pesquisa, como caneta, gravador, câmeras e, ainda, posteriormente, recriado com a escrita.

A partir desta perspectiva etnográfica, reivindico que o olhar do pesquisador-professor ou do

professor-pesquisador na escola, assim como o olhar do etnógrafo em campo, precisa ser inquieto,

questionador, buscando o desvendamento das relações sociais nos entre muros institucionais. É o exercício

contínuo de olhar bem e olhar tudo, distinguindo e discernindo o que se encontra mobilizado, mas sem perder

a leveza e abertura para os imprevistos e para o inesperado. Afinal, encontrar o desconhecido e revelá-lo é

aprofundar o nosso conhecimento sobre o mundo.

O ofício do etnógrafo, marcado pela etnografia – escrita do ver – engloba outros atos cognitivos que

entram em jogo as qualidades de observação, de sensibilidade, de inteligência e de imaginação científica do

pesquisador. É bom que se diga que eles não estão desassociados no encontro de pesquisa. Eles operam

juntos, podendo um ou outro ser mais direcionado em um momento específico. Assim, destaco agora o ouvir

como elemento fundamental no ato de conhecer o outro. Para que se tenha êxito em uma pesquisa social,

deve-se ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre aquilo que elas fazem. Conforme Becker, descobrir “o que

as pessoas pensam estar fazendo, como interpretam os objetos, eventos e pessoas em suas vidas e

experiência”. (BECKER, 2007, p. 33).

Com essas referências metodológicas, volto à escola com os ouvidos bem abertos. Depois do primeiro

encontro com o diretor, tive uma reunião com a coordenadora pedagógica e outros professores novos que

estavam chegando naquele período, quando ela completou as informações organizacionais sobre a escola.

Nessa conversa, ela tratou dos horários, calendário, avaliações, conselho de classe, confraternização entre

outros assuntos. O que mais impactou meus ouvidos como professor de Sociologia foi ouvir o horário de

funcionamento da escola na prática. Oficialmente, o colégio funciona das 18h às 22h50. Dessa forma, o

horário se divide da seguinte maneira: 1º tempo, de 18h às 18h45; 2º tempo, de 18h45 às 19h30; Recreio, de

19h30 às 19h50, 3º tempo, de 19h50 às 20h35; 4º tempo, de 20h35 às 21h20; 5º tempo, de 21h20 às 22h05;

6º tempo, de 22h05 às 22h50. Entretanto, como a coordenadora alegou e tive a oportunidade de presenciar

desde o primeiro dia na escola, a maior parte dos discentes só chega entre 18h30 e 19h. Da mesma maneira,

o término, que no mundo ideal se encerra às 22h50, no cotidiano finda-se às 22h, no máximo. Dessa

maneira, o tempo de aula que tinha 45 minutos passou a ter 30 minutos na melhor das hipóteses. A angústia

que se apresentava ao ouvir essas informações era tamanha, que não parava de pensar nas seguintes
4

questões: Como trabalhar com um tempo de 30 min em cada turma? O que é possível fazer com esse

tempo? Qual é a relação dos discentes e a disciplina Sociologia em um tempo de 30 minutos semanalmente?

Foram essas perguntas que martelaram meu corpo nessas primeiras experiências no Colégio Estadual

Finlândia.

Nesse encontro com a direção, ouvir dos próprios agentes públicos sobre o funcionamento da escola

foi algo revelador para o entendimento tanto sobre a dimensão micro do colégio quanto a dimensão macro da

educação. Fiz alguns questionamentos sobre a impossibilidade de realizar um bom trabalho com um tempo

tão exíguo. Ela respondeu-me que os discentes não chegavam de forma alguma às 18h, mesmo depois de

muitas conversas. E não era possível finalizar as aulas às 22h50, dadas as circunstâncias de violência na

cidade. Esse horário seria muito tarde para que o corpo escolar voltasse às suas casas.

Fiquei com esse tema na cabeça, principalmente, por causa do impacto da violência externa, afetando

diretamente o funcionamento do colégio. Assim, resolvi ouvir os discentes sobre o entorno da escola. Elaborei

um pequeno questionário com três questões: 1) O que você gosta no lugar onde você mora?; 2) O que você

não gosta?; 3) O que você faria para mudar aquilo que você não gosta? Solicitei ainda que os estudantes

escrevessem seu endereço, apontando a localidade onde residiam. Das 3 (três) turmas com média de 35

discentes, responderam 20 estudantes da 1002, 21 estudantes da 2003 e 16 da 2004. Naquele momento, não

tinha o número de evasão de cada turma em mãos. Considerando as 3 (três) turmas, a categoria

“tranquilidade”, agregando os vocábulos natureza, pessoas, amizade entorno dela, foi a que mais teve

incidência com mais de 15 citações pelos alunos e alunas, referentes à primeira pergunta. Sobre a segunda

questão, a categoria relações de vizinhanças (bar, barulho, bagunça) teve mais de 10 incidências, falta de

infraestrutura (transporte, comércio, falta de água e esgoto, praças, quadras, falta de iluminação, lixo)

apareceu mais de 20 vezes nos questionários, a milícia como problema, mais de 10. Como resposta à

terceira questão, os discentes gostariam de ter mais infraestrutura, mais segurança com mais policiais na rua

e o fim da milícia. Sobre essa questão da milícia, alguns estudantes responderam da seguinte maneira:

“Acabaria com as drogas assaltos tirava crianças do mundo e colocaria na escola. Milícias seriam presos faria

uma reforma. Baile com horas corretas para acabar e proibia a entrada de crianças entre outros”. (ALUNA,

1002). “Se eu pudesse eu acabaria com o poder miliciano e todos as irregularidades da comunidade”.

(ALUNA, 2003). “Eu faria uma coisa que eu não gosto tira todos milicianos da comunidade prende todos para

ser um lugar mais em paz”. (ALUNO, 2004).


5

Com essas respostas dadas pelos estudantes, trago a importância de ouvi-los atentamente e

cuidadosamente sobre suas experiências sociais no bairro onde moram. Para que avancemos no

conhecimento sobre a escola, é necessário buscar um diálogo mais próximo com os discentes, para que

tenhamos um processo de ensino-aprendizagem mais dialógico e participativo, no qual todos se sintam

responsáveis pela construção pedagógica da escola. Assim, podemos aprofundar o nosso entendimento

sobre o sentido dado pelos estudantes, por exemplo, sobre a violência cotidiana que eles vivenciam na

região, procurando-se problematizar a relação da escola e do seu entorno. Mas para realização de tal tarefa

com profundidade, o método indicado seria fazer uma entrevista, ou seja, um ouvir especial. Em outras

palavras, “a obtenção de explicações fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigada

permitiria obter aquilo que os antropólogos chamam de ‘modelo nativo’, matéria-prima para o entendimento

antropológico”. (OLIVEIRA, 2000, p. 22). Não se pensa aqui apenas num momento de entrevista, mas de

encontros entre pesquisador-professor e discentes ao longo do tempo, para que seja possível aprofundar as

questões pertinentes à escola. Todavia, a entrevista como método de pesquisa apresenta uma grande

dificuldade relacional entre pesquisador e pesquisados, mundos distintos que se encontram para ser revelado

por um dos lados. Segundo Bourdieu (2003), a relação de pesquisa se distingue da maioria das trocas da

existência comum, já que seu fim é o conhecimento, entretanto, trata-se de uma relação social que exerce

efeitos sobre os resultados obtidos. Levando-se em consideração que as metodologias se apoiam em

interações sociais que ocorrem sob a pressão de estruturas sociais, aqui o nosso intuito se difere das

abordagens tradicionais, já que estas ignoram as estruturas sobre as interações, por exemplo, entre médicos

e enfermeiros, professores e alunos, e interações com pessoas submetidas à observação ou à interrogação.

O autor complementa com a seguinte abordagem metodológica:

Só a reflexividade, que é sinônimo de método, mas uma reflexividade reflexa, baseada num ‘trabalho’,
num ‘olho’ sociológico, permite perceber e controlar no campo, na própria condução da entrevista, os
efeitos da estrutura social na qual ela se realiza, ou seja, começar a interrogação já dominando os efeitos
inevitáveis das perguntas. (BOURDIEU, 2003, p.694).

Aqui, busca-se a passagem de uma relação pesquisador e informante, considerada vertical, para uma

relação mais horizontal, transformando o informante em interlocutor.

Ao trocarem ideias e informações entre si, etnólogo e nativo, ambos igualmente guindados a
interlocutores, abrem-se a um dialogo em tudo e por tudo superior, metodologicamente falando, a antiga
relação pesquisador/informante. O ouvir ganha em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão
única, em uma outra de mão dupla, portanto, uma verdadeira interação. (OLIVEIRA, 2000, p. 24).

Nessa interação de ouvir os estudantes e revelar as relações entre a escola e a cidade, conforme

Dayrell (1999), podemos analisar a escola como espaço sociocultural. Falar da escola nesses termos,
6

significa focar no papel dos sujeitos na trama social que a constitui, enquanto instituição. Dessa maneira,

deve-se compreender os jovens que chegam à escola como sujeitos socioculturais. “Trata-se de compreendê-

lo na sua diferença, enquanto indivíduo que possui uma historicidade, com visões de mundo, escalas de

valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos, com lógicas de comportamento e hábitos que lhe são

próprios”. (DAYRELL, 1999, p. 5). Para o autor, os estudantes levam à escola suas experiências vivenciadas

em múltiplos espaços, uma cultura própria, que vê, sente e atribui significado ao mundo. Nesse sentido,

precisamos olhá-los, ouvi-los, pesquisá-los para que possamos ser assertivos no cumprimento de uma

proposta educacional efetiva. Entretanto, para se realizar tal tarefa, como bem apontou Bourdieu (2003),

temos que levar em consideração que o próprio lugar do professor-pesquisador na escola está sobre os

efeitos da estrutura social na qual ela se pratica. Assim, não podemos ignorar a posição do professor na

estrutura escolar e naturalizar o que é familiar, pois o familiar não se faz conhecido pela simples presença ou

proximidade. É necessário relativizar o conceito de distância, já que as categorias sociais costumam estar

hierarquizadas, envolvidas em noções de poder e dominação. (VELHO, 2002). Estas dimensões estruturais

da escola precisam ser consideradas nessa análise social. Outro ponto importante é ter claro que a nossa

maneira de olhar a realidade não escapa do esquema conceitual da nossa disciplina formadora. (OLIVEIRA,

2000). O importante é deixar claro para todos que acompanham nossas investigações, quais são os diálogos

teóricos e metodológicos que propomos na nossa análise empírica.

Escrever/Descrever a escola

O produto final da nossa investigação como pesquisador/professor é o texto. Estou aqui, neste

trabalho, sugerindo que a antropologia, no seu fazer etnográfico pode auxiliar os professores no seu ofício na

sala de aula, ao buscar-se uma postura analítica e reflexiva a partir do seu fazer no dia a dia da escola. Como

descrevi anteriormente, o início do trabalho é marcado pelo o olhar e o ouvir o outro na experiência da escola

como trabalho de campo, e o final, pelo escrever fora da presença do outro.

O outro aqui é a escola, os muros, as paredes, as escadas, os corredores, o chão, o refeitório, o

banheiro, a quadra, a biblioteca, os murais, as salas administrativas, as salas de aula, os porões, os

estudantes, os funcionários, os professores, os pais, os vizinhos da escola, os responsáveis pela educação,

etc. No ato de escrever, devemos sair desse ambiente, depois de uma imersão sensorial, quando buscou-se

olhar e ouvir com atenção para todas aquelas coisas que compõem o cenário escolar já naturalizadas com o

convívio diário. Nesse momento anterior à descrição daquilo que se experienciou, tentou-se abrir o campo

perceptivo ao máximo no encontro com o outro, aflorando todos os sentidos. Buscou-se ouvir de corpo inteiro,
7

sentindo os ruídos, os silêncios, os gritos, os suspiros, as músicas, as poesias que reverberam desse templo

do saber, que é a escola. Como bem apontou Oliveira (2000, p. 25), “se o olhar e o ouvir podem ser

considerados como os atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo [...], seguramente, no ato de

escrever, portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento torna-se

tanto ou mais crítica”.

Depois dessa imersão experimentando a escola como trabalho campo, envolvendo todos os sentidos,

na qual destaquei o olhar e o ouvir, chegamos ao ato de escrever essas experiências marcadas no corpo, que

foram trabalhadas exaustivamente na relação com o estudante e funcionários da escola. Até alcançar o

momento da escrita, o pesquisador-professor produziu anotações, imagens, dados etnográficos, diário de

campo, um corpus de pesquisa que será a matéria-prima do seu texto.

O momento do escrever, marcado por uma interpretação de e no gabinete, faz com que aqueles dados
sofram uma nova "refração", uma vez que todo o processo de escrever, ou de inscrever as observações
no discurso da disciplina, esta contaminado pelo contexto do being here - a saber, pelas conversas de
corredor ou de restaurante, pelos debates realizados em congressos, pela atividade docente, pela
pesquisa de biblioteca ou library fieldwork, como, jocosamente, se costuma chama-la, entre muitas outras
atividades, enfim pelo ambiente acadêmico. (OLIVEIRA, 2000, p. 27).

Para o autor, o ato de escrever não escapa nem da experiência de campo nem da experiência do

profissional na sua instituição. Assim, o texto que se produz não é uma tradução da “cultura nativa” na

“cultura antropológica”, e sim uma interpretação organizada pelos conceitos básicos constitutivos da

antropologia.

É o escrever “estando aqui”, portanto fora da situação de campo, que cumpre sua mais alta função
cognitiva. Por quê? Devido ao fato de iniciarmos propriamente no gabinete o processo de textualização
dos fenômenos socioculturais observados “estando lá”. Já as condições de textualização, isto é, de trazer
os fatos observados - vistas e ouvidos - para o plano do discurso, não deixam de ser muito particulares e
exercem, por sua vez, um papel definitivo tanto no processo de comunicação inter pares - isto é, no seio
da comunidade profissional -, como no de conhecimento propriamente dito. (OLIVEIRA, 2000, p. 25).

Na etnografia, a produção de conhecimento passa por esta relação do “estando aqui” escrevendo,

reverberando as experiências olhadas, ouvidas, sentidas no “estando lá”. Se me permite, volto agora à escola

Finlândia, neste momento da escrita para problematizar este ato cognitivo. Como são produzidas as linhas

que se seguem neste trabalho? Volto a descrever e a pensar sobre aquelas primeiras experiências no

colégio. O drama que se apresentava naqueles primeiros momentos me fez refletir sobre o currículo mínimo

exigido pela SEEDUC, uma vez que tinha que dialogar com a prática cotidiana da escola, o saber local dos

discentes e os temas, habilidades e competências, orientados pelo currículo. Assim, conseguiria lograr com

algum êxito meu ofício como professor-pesquisador.


8

Desde 2012, a Seeduc vem oferecendo mais uma ferramenta importante para auxiliar no seu
planejamento escolar. O Currículo Mínimo serve como referência a todas as nossas escolas,
apresentando as competências e habilidades básicas que devem estar contidas nos planos de curso e
nas aulas. Sua finalidade é orientar, de forma clara e objetiva, os itens que não podem faltar no processo
de ensino-aprendizagem, em cada disciplina, ano de escolaridade e bimestre. (RIO DE JANEIRO, 2012).

Nesse contexto escolar, ficamos entre o sistema organizacional institucional ideal e o mundo real da

escola. Para ser mais específico, darei o exemplo da minha relação com a turma 1002, o caso ainda mais

grave diante das duas turmas do segundo ano, já que a nossa aula era no primeiro tempo, ou seja, de 18h30

às 19h. Convido você a entrar na sala de aula da turma 1002. Uma sala pálida de tamanho regular com

carteiras e cadeiras desgastadas pelo tempo, com iluminação precária, algumas lâmpadas piscando

intermitentemente e um ventilador barulhento localizado no fundo da sala. Nosso primeiro encontro aconteceu

no início de setembro em meados do terceiro bimestre. Nesse período escolar, segundo as orientações do

currículo mínimo para o terceiro bimestre, o tema a ser trabalhado é Cultura e identidade. Foi com essa

direção que enfrentei o desafio de planejar as aulas nesta fase do ano.

Imagem 1 – Currículo mínimo 2012 - Sociologia

Fonte: Secretaria de Estado e Educação (SEEDUC)

Com o currículo mínimo em mãos, o que fazer em um tempo que dura mais ou menos 20 minutos,

quando os estudantes vão chegando aos poucos, onde a estrutura da escola é precária e a desvalorização

dos profissionais da educação é visível? Busquei seguir as orientações do currículo mínimo e o livro

Sociologia Hoje (2013), adotado pela escola, dialogando com a direção, professores e discentes,

empenhando-me para que os estudantes construíssem conjuntamente nossas aulas. De maneira geral,

conseguimos apenas ler o livro conjuntamente, discutindo os principais conceitos abordados, buscando trazer

o contexto da região a partir de alguns exemplos. Enfim, tentei fazer o que era possível nesse contexto

escolar. A dificuldade maior nessa conjuntura é procurar enfrentar as ausências estruturais da escola, da falta

de iluminação à participação na gestão, e, ainda, observar que os dias vão passando e nada, ou quase nada,

muda. A energia corporal (física e mental) vai se esvaindo no embate com essa estrutura precária, ou melhor,

precarizada. É necessário muito esforço para manter uma postura (auto)crítica, que pelo menos não faça

você naturalizar esse tipo de escola.


9

Este pequeno relato sobre a minha relação com a turma 1002 serve para apresentar ao leitor uma

interpretação analítica da realidade que no dia a dia da escola aparece de forma fragmentada. Em outras

palavras, quero mostrar como a escrita nos permite elaborar, construir, criar em diálogo com as experiências

vividas no trabalho de campo, como o olhar, o ouvir, etc., fazendo com que aquela realidade caótica se torne

mais inteligível.

Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica, o


escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever e
simultâneo ao ato de pensar. Quero chamar a atenção sobre isso, de modo a tornar clara que – pelo
menos no meu modo de ver - e no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha,
encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados provenientes da
observação sistemática. [...]. Pelo menos minha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar
são de tal forma solidários entre si que, juntos, formam praticamente um mesmo ato cognitivo.
(OLIVEIRA, 2000, p. 31-32).

Conforme o autor nos apresenta, escrever é pensar sobre a realidade empírica pesquisada. É nesse

momento que conseguimos dar forma e articular as partes que olhamos, ouvimos, sentimos, anotamos, etc,

pois mesmo que nos esforcemos para dar conta da totalidade social, o que conseguimos são trechos dessa

realidade. Em outras palavras, conforme Laplantine (2004), a etnografia se faz no processo de mostrar aos

outros aquilo que olhamos e ouvimos. Ela se concretiza com palavras, com nomes. Nesse ofício, a atividade

de percepção é quase inseparável de uma atividade de nomeação. Sem a escrita, o visível permaneceria

confuso e desordenado no corpo do pesquisador. A etnografia é, precisamente, a elaboração pela escritura

dessa experiência perceptiva.

Como se observa, o ofício do etnógrafo e do pesquisador-professor só se realiza na escrita. É neste

ato cognitivo que se organiza o ouvível e o visível em texto. Ao se produzir uma obra escrita, torna-se

possível comunicar os resultados da experiência no trabalho de campo de forma sistemática, permitindo que

outros pesquisadores conheçam uma realidade a partir da dimensão microscópica. Nesse sentindo, é

importante que o professor-pesquisador transforme sua escola em um campo de pesquisa e escreva sobre

sua experiência profissional, analisando a escola e educação por intermédio do seu ofício e lutando contra o

esquecimento da sua experiência.

Prospectiva

Neste trabalho, recorri, principalmente, aos trabalhos de Laplantine (2004) e Oliveira (2000), na

tentativa de demonstrar o quanto a antropologia, na dimensão do seu fazer etnográfico, pode auxiliar no ofício

do professor-pesquisador tanto na produção de conhecimento sobre a escola quanto na sua pedagogia com

os discentes. Compreendo que etnografia pode colaborar justamente nessa pedagogia de aprender com o

outro, que o olhar, o ouvir, o estar presente de corpo inteiro engendra outra possibilidade de se pensar e
10

produzir conhecimento. “Não existe etnografia sem confiança mútua e sem intercâmbio [...]”. (LAPANTINE,

2004, p. 23). Assim, nessa relação entre pesquisador e interlocutor, “a antropologia também é a ciência dos

observadores susceptíveis de se observar a eles mesmos, procurando que uma situação de interação

(sempre inédita) se torne o mais consciente possível”. (ibid., p. 26). São nessas interações que o olhar e o

ouvir nos permite relacionar com o outro, buscando-se conhecer esse outro em sua realidade empírica. Esse

é o caráter fundamental da etnografia no campo epistêmico, isto é, sua produção se processa em uma rede

intersubjetiva de saberes entre pares e não pares. Assim, por um lado, sobre esta questão do texto

etnográfico, segundo Oliveira (2000, p. 31),

[...], deve-se pensar as condições de sua produção a partir das etapas iniciais da obtenção dos dados - o
olhar e o ouvir -, o que não quer dizer que ele deva emaranhar-se na subjetividade do autor/pesquisador.
Antes, o que está em jogo e a “intersubjetividade” - esta de caráter epistêmico -, graças a qual se
articulam, em um mesmo horizonte teórico, os membros de sua comunidade profissional. E é o
reconhecimento dessa intersubjetividade que torna o antropólogo moderno um cientista social menos
ingênuo. Tenho para mim que talvez seja essa uma das mais fortes contribuições do paradigma
hermenêutico para a disciplina.

Por outro lado, a etnografia possibilita uma experiência corporal com os não pares da antropologia,

fazendo do encontro etnográfico um mergulho profundo no entendimento da subjetividade do outro. Assim,

a etnografia é uma experimentação in vivo, isto é, é antes de tudo uma experiência física de imersão total,
consistindo numa verdadeira aculturação ao invés, onde, longe de tentar compreender uma sociedade
unicamente nas suas manifestações “exteriores” (Durkheim), eu devo interiorizá-la através das
significações que os próprios indivíduos atribuem a seus próprios comportamentos. (LAPLANTINE, 2004,
p. 23).

Nessa experiência de mergulhar no mundo do outro, busca-se compreender as significações dos

indivíduos por dentro de sua cultura, introjetando-a no seu corpo. A “observação participante”, conforme nos

atenta Oliveira (2000), se efetiva nesse encontro do outro, quando o pesquisador assume uma postura

perfeitamente aceitável pela sociedade observada, de maneira que a interação flua sem grandes

sobressaltos. Não à toa que DaMatta (1978) enfatiza o caráter subjetivo do trabalho antropológico, iluminando

os aspectos interpretativos necessários para que a essência das questões possa se revelar em seus

pequenos detalhes, não evidentes, quase escondidos nas relações humanas.

Nessa perspectiva pedagógica em relação ao outro, há de se valorizar os encontros intersubjetivos

cotidianos presentes na escola entre professores, discentes e funcionários, para que possamos produzir um

conhecimento que compreenda a diferença e a diversidade cultural presente no ambiente escolar, e, para

isso, parece-me que a prática etnográfica pode contribuir e muito para realização de tal tarefa.

Por fim, assim como Oliveira (2014) e Dauster (2007), considero que a Antropologia pode colaborar na

área da Educação tanto na prática docente, questionando professores e professoras sobre o etnocentrismo
11

escamoteado no seu cotidiano e no seu fazer pedagógico, quanto na prática etnográfica, trazendo novos

olhares sobre o campo educacional, e assim, contribuindo para uma formação docente mais ampla, na qual o

professor se veja como pesquisador, produtor de conhecimento da Educação Básica.

Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. Compreender. In: BOURDIEU, Pierre (Org.) A miséria humana. Petrópolis, RJ: Vozes,
2003.

DAMATTA, Roberto. O Ofício de Etnólogo ou como ter Anthropological Blues. Cadernos de antropologia e
imagem, v.1, 1978.

DAUSTER, Tânia. Uma saber de fronteira – entre a antropologia e educação. In: DAUSTER, Tânia (Org.).
Antropologia e Educação: um saber de fronteira. Rio de Janeiro: Forma & Ação, 2007. p. 13-35.

DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In:______. Múltiplos olhares sobre educação e
cultura. Belo Horizonte: EdUFMG, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

LAPLANTINE, François. A descrição etnográfica. Tradução João Manuel Ribeiro Coelho e Sérgio Coelho.
São Paulo: Terceira Margem, 2004.

OLIVEIRA, Amurabi. A antropologia e a formação de professores. Revista Cocar, vol. 8, n.15, jan.-jul, 2014.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. In: ______. O trabalho do
antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: UNESP, 2000. p. 17-35.

PIMENTA, Vítor Gonçalves. Corpo-arquivo: reflexões da memória encarnada em uma experiência etnográfica
em Jacarepaguá. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense. Departamento de Antropologia,
2015.

RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Educação. Currículo mínimo 2012 – Sociologia. 2012. Disponível
em: <http://www.conexaoescola.rj.gov.br/curriculo-basico/sociologia>. Acesso em: 15 set. 2017.

VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea. 6ª
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2002.

Resumo

Neste artigo busco trazer a Antropologia para dentro da Educação Básica, percebendo o ofício do etnógrafo
como revelador de “atos cognitivos” – olhar, ouvir e (d)escrever, que podem colaborar, na práxis cotidiana
do(a) professor(a) na sala de aula, tanto na produção de conhecimento sobre a escola quanto na sua
pedagogia com os discentes. Ao considerar que o ofício docente deve ser pautado em uma ação reflexiva e
(auto)crítica em relação ao outro, pensando principalmente na relação simbiótica entre a pesquisa e a
docência, compreendo que a etnografia pode colaborar na pedagogia de aprender com o outro. Ao olhá-lo
cuidadosamente, ao ouvi-lo atentamente, estando presente de corpo inteiro, pode-se vislumbrar outra
possibilidade de se pensar e produzir conhecimento. Assim, o trabalho destaca a valorização dos encontros
intersubjetivos cotidianos presentes na escola entre professores, discentes e funcionários, na tentativa de
elaboração de um saber que compreenda a diferença e a diversidade cultural existente no ambiente escolar.

Palavras-chave: Antropologia, Escola básica, Atos cognitivos, Etnógrafo, Docente.

Você também pode gostar