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Antropologia

Material Teórico
Natureza e Dinâmica das Culturas

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Rodrigo Medina Zagni

Revisão Textual:
Prof. Ms. Claudio Brites

Revisão Técnica:
Prof. Ms. Edson Alencar Silva
Natureza e Dinâmica das Culturas

• Introdução
• A cultura como Ação Transformadora do Meio e do Homem
• O Problema da Cultura
• O Conceito Antropológico de Cultura
• Etnocentrismo e suas Consequências: Apatia
• As Mudanças Culturais
• Endoculturação
• Contracultura e Subcultura
• Aculturação
• Sincretismo

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Nesta unidade, trataremos do tema “natureza e dinâmica das
culturas”. Para conhecer o conteúdo desta unidade, leia atentamente
o conteúdo teórico, qualquer dúvida entre em contato com seu
professor tutor.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
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Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Introdução
Quando, em alguma situação do nosso cotidiano, dizemos que determinado
indivíduo “não tem cultura”, por não dominar um determinado conhecimento ou
não demonstrar aquilo que entendemos como “boas maneiras”, estamos fazendo
uma afirmação correta ou equivocada?

Existe indivíduo sem cultura? Culturas podem ser superiores ou inferiores?

Ocorre que todo Ser Humano é portador de cultura, ainda que repertórios
culturais sejam completamente distintos uns dos outros.

Mas só o Ser Humano é portador e produtor de cultura, os animais não.

Nesta unidade, conheceremos a natureza da cultura, seus processos formadores


e reprodutores, bem como questões como relativismo e diversidade cultural, o que
nos servirá de base para compreender diferenças culturais que estão em nosso
cotidiano e nos vários grupos e instituições sociais com os quais interagimos.

Em busca das respostas às perguntas aqui elaboradas, embrenhe-se pelo


conteúdo teórico, apresentação narrada e demais materiais desta unidade, a fim de
entender mais sobre a dimensão cultural da condição humana.

A cultura como Ação Transformadora do


Meio e do Homem
Uma forma de se compreender a constituição cultural
das sociedades é a partir da sua função transformadora
do meio ambiente, do meio social e do próprio Homem.

Já nos dissera o historiador e filósofo alemão Oswald


Arnold Gottfried Spengler (1880-1936), que o Homem
não é tal qual aquele das pinturas chinesas, ou seja,
solto no espaço, como se estivesse caindo no nada: o
Homem existe no meio geográfico. Mais do que isso,
ele retira desse meio o necessário à sua sobrevivência.
Pensemos então a dimensão cultural humana a partir
das relações entre indivíduo e meio-ambiente.
Figura 1 – Oswald Spengler
Fonte: Wikimedia/Commons O Homem, que é dotado de necessidades materiais,
literalmente obedecendo a programações biológicas (comer, evacuar, beber, dormir,
procriar, etc.), realiza-as essencialmente no meio-ambiente.

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Pensemos no Ser Humano que atende às suas necessidades de sobrevivência no
meio-ambiente, mas sem interferir nele. A caça e a coleta, por exemplo, foram as
atividades econômicas da maior parte do tempo de vida humana sobre a Terra, e
nela o Homem apenas retirava do meio aquilo que necessitava, sem interferir nele
– ao menos gravemente.

Ocorre que o economista britânico Thomas Malthus


(1766-1834) identificou que haveria um descompasso
nessa relação. As necessidades humanas seriam
maiores, em relação àquilo que o meio ambiente pode
ofertar naturalmente. Malthus demonstrou que as
necessidades humanas seriam então maiores do que
aquilo que o meio ambiente poderia prover, sem que o
Homem interferisse nele.

Desse descompasso resultaria um grave problema


à sobrevivência humana, que depende vitalmente de
alimento e água. Já dissera o filósofo grego Platão, no Figura 2 – Thomas Malthus
séc. IV a.C., que “a necessidade é a mãe de todas as Fonte: Wikimedia/Commons
invenções” e, portanto, para esse problema de sobrevivência a solução encontrada
pelo Homem foi interferir no meio-ambiente.

Figura 3 – Platão de Atenas


Fonte: iStock/Getty Images

A primeira forma encontrada pelo Homem para empreender essa ação


transformadora do meio foi a agricultura. Aliando um bastão de madeira, extraído
da natureza, conjugando-o a uma lasca de pedra polida com o uso de uma amarra
feita com tripas secas de um animal abatido, o Homem desenvolveu a enxada. Com
o uso adequado desse instrumento, o Homem passou a arar a terra e prepará-la
para o plantio de sementes que, por meio da observação, percebeu que poderia
germinar e dar frutos. Irrigando periodicamente o terreno plantado, foi possível
obter mais alimentos e solucionar o problema do descompasso identificado por
Malthus, possibilitando a sobrevivência.

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UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Ocorre que, para que isso ocorresse, foi preciso o de-


senvolvimento de materiais e técnicas: o desenvolvimen-
to dos materiais necessários à atividade do plantio, bem
como das técnicas adequadas para sua utilização. Os ma-
teriais constituem, segundo o filósofo alemão Karl Marx
(1818-1883), os “meios de produção da vida social”, jun-
to do mais importante meio: a terra; as formas ou as técni-
cas para utilizá-los consistem na tecnologia desenvolvida,
ambos, para o trabalho. Segundo a definição marxista, o
Figura 4 – Karl Marx trabalho é a ação transformadora do meio ambiente, que
Fonte: Wikimedia/Commons tem a finalidade de garantir a sobrevivência humana.

Contudo, todas essas relações acabam determinando um outro aspecto da vida


social: a cultura. O desenvolvimento da agricultura, que aqui mencionamos, implica
num desenvolvimento cultural, nesse caso, da “cultura da enxada”. Não é por acaso
que o termo “cultura” foi utilizado pela primeira vez para se referir a atividades
econômicas na lavoura, isso porque, ainda segundo Marx, por meio do trabalho, o
Homem altera não só o meio ambiente, mas a si mesmo.

E como isso ocorre?

Não dissemos, citando Spengler, que o Homem não existe solto no espaço,
que ele existe no meio geográfico? Sendo assim, sua identidade social se constrói
na interação do indivíduo com o seu entorno, com o meio físico, e como
esse entorno foi modificado pelo próprio Homem. Nesse sentido, o Homem
alterou a si mesmo; por conseguinte, alterou suas necessidades; e, sendo novas
necessidades, a mesma forma de trabalho não pode mais dar conta delas, são
necessárias novas ações transformadoras para atender a esse novo Homem e
suas novas necessidades. Por sua vez, o meio é mais uma vez alterado, criando
um novo Homem, portador de novas necessidades, novas formas de trabalho e,
essencialmente, novos sistemas culturais.

É por isso que não existem sociedades estacionadas, todas estão fadadas à
transformação.

Mas, isso dito, parece que estamos então contradizendo Malthus, citado no início
da análise do quadro em questão. Isso porque, tendo alterado o meio ambiente, o
Homem teria resolvido o descompasso entre suas necessidades e aquilo que o meio
ambiente poderia lhe oferecer, isso porque suas necessidades não mais seriam
maiores em relação ao que o meio poderia, transformado, fornecer. Sendo assim,
por que então as sociedades mudam, se o problema do descompasso teria deixado
de existir?

Mudam e mudarão constantemente, isso porque esse autor demonstrou que


o descompasso mencionado nunca deixaria de existir. Para defender a essa
tese, Malthus apresenta que os homens crescem em progressão geométrica
(multiplicando-se entre si), enquanto os meios de subsistência cresceriam em
progressão aritmética (por somatória, não por multiplicação).

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Sendo assim, um novo meio (alterado pela ação humana), traria novos problemas
à existência humana, que demandariam sempre novos tipos de soluções, novas
ações transformadoras, e novos sistemas culturais, que vão se formando daí.
Por que sistemas culturais teriam então, segundo a visão marxista, uma
determinação decorrente das relações de produção?
Ora, para Marx, a infraestrutura econômica das sociedades, ou seja, sua base
econômica, determinaria a superestrutura política e ideológica, sendo a cultura a
somatória dessas relações, pois se inscreve no modus vivendi das sociedades.

Figura 5
Fonte: iStock/Getty Images

A infraestrutura seria o modo de produção da vida social, ou como aquela


sociedade produz o suficiente à sua existência material, produzindo os sentidos,
significados, valores, morais e identidade que mencionamos no início deste texto.
O modo de produção da vida social seria determinado pelo modo de produção de
bens de consumo, composto por sua vez pelos meios de produção (instrumentos,
terra – incluindo seu regime de propriedade –, etc.), força de trabalho (se é
assalariada, escrava, servil, voluntária, etc.), tecnologia (forma com que a força
de trabalho opera os meios de produção), determinando os aspectos políticos,
ideológicos e culturais dessa sociedade.
Nessa perspectiva, o trabalho é a ação transformadora humana do meio
ambiente, geradora de cultura (que também pode ser definida como trabalho),
ato exclusivamente humano por ser consciente de sua finalidade, no que é,
portanto, intencional.
É preciso estar claro que por meio do trabalho o Homem transforma o mundo
e a si mesmo, porque, ao alterar o meio, o Homem altera o próprio Homem.
É preciso que fique claro que, transformando o meio e a si mesmo, o Homem
redefine suas dinâmicas culturais, redefinindo valores, sentidos, significados
e identidades.
A ação transformadora humana na natureza passa a ser mediada pelos símbolos
criados pelo Homem, que dão sentido às suas ações. Dessa forma, a Cultura

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UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

pode também ser definida como o conjunto desses símbolos, relativos no tempo e
espaço, com múltiplas manifestações.

Com isso, o Homem, colocando em movimento o meio, a cultura e dessa forma


a si mesmo, é o único ser histórico consciente de sua condição e, portanto, produtor
de sua própria história.

O Problema da Cultura
O mais importante questionamento já feito pelo Homem em torno dos
fenômenos da cultura foi, indubitavelmente, aquele que se referia às diferenças
culturais. Isso porque, desde os primeiros contatos que grupamentos humanos
tiveram com outros grupos provenientes de outras regiões ou, ainda, dadas as
distintas visões de mundo que as gerações mais velhas manifestavam frente às
gerações jovens, com maior ou menor intensidade, a existência humana pressupõe
o contato com o diverso.

Sendo assim, desde o período mais remoto da existência humana, o Homem foi
impelido pelo questionamento sobre as origens da diversidade não apenas biotípica
(cor da pele, dos olhos, tipo e cor dos cabelos, estatura, compleição física, etc.),
senão também de diferenças culturais (tipos de organização social, de habitação,
de utensílios e técnicas para a sobrevivência, forma de organização econômica,
religiosa, familiar, etc.).

Obviamente, esse questionamento se torna mais grave nos períodos em que o


contato entre distintos grupos humanos se intensifica. Podemos então inferir que,
com o advento das primeiras cidades que se desenvolveram, contemporaneamente,
na região do Oriente Próximo (Egito e Mesopotâmia), Índia e China – provenientes
dos primeiros grandes aglomerados humanos em torno de atividades que requeriam
o trabalho organizado (primordialmente as obras hidráulicas, dado que se tratam,
os três casos, de regiões cortadas por importantes rios que permitem as práticas
agrícolas), as atividades comerciais, os deslocamentos populacionais e até mesmo
as guerras colocaram em contato não apenas povos distintos, senão culturalmente
diferentes, movendo a reflexão humana a questionar as origens das desigualdades.

Desde a Antiguidade, o Homem desenvolveu explicações míticas ou filosóficas


que respondiam a essa questão por meio da hereditariedade e da origem geográfica.

Vimos na unidade anterior, dedicada às “teorias da cultura” que no séc. XIX


desenvolve-se a Antropologia como ciência humana e social, gozando de rigor
metodológico e primeiros referenciais teóricos. O darwinismo social tendia a
fornecer explicações científicas (pautadas na teoria da evolução das espécies) para
uma compreensão então já muito antiga: a da determinação biológica e geográfica.
Sabemos também que o debate teórico em torno dessas questões desmontou,
paulatinamente, as convicções rácicas que determinavam as diferenças culturais,
impondo não apenas outra ordem de compreensão, mas modificando de forma

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irreversível os objetos, objetivos, métodos e a natureza dessa nascente ciência.
Contudo, ainda que liberta das amarras explicativas do evolucionismo, a cultura não
carecia apenas de explicações sobre a questão das diferenças, mas primordialmente
sobre sua natureza, origens e dinâmicas de transformação.

Figura 6
Fonte: iStock/Getty Images

Essas questões ganharam também, com o advento dessas percepções pós-


evolucionistas, outro âmbito de ocorrência, uma vez que diferenças culturais
se verificavam não somente externamente aos grupos sociais, mas também
internamente. Se as explicações evolucionistas não davam conta de esclarecer as
diferenças entre povos distintos, também falharam em atribuir as diferenças entre
homens e mulheres por meio da hereditariedade. Obviamente, homens e mulheres
mantêm relevantes diferenças biológicas; contudo, o papel que desempenham em
distintas sociedades, segundo essas novas percepções, foram sendo definidos por
essas mesmas sociedades, ou seja, os papeis de gênero, e também geracionais,
religiosos, laborais etc., são construídos socialmente, não determinados.

Junto do meio geográfico, o clima também deixou a condição de fator


determinantemente explicativo de diferenças culturais primordialmente utilizados
para escalonar povos mais aptos para o trabalho em climas frios, e menos aptos em
climas quentes. Isso porque uma série de povos, postos sob análise e comparação,
desenvolveram dinâmicas diametralmente opostas em regiões cujas condições
climáticas eram praticamente idênticas. A questão seria então a de que a cultura
que adjetiva outra como menos apta ao trabalho utiliza as suas próprias referências
sobre o que seria a forma e o ritmo ideal de trabalho, ou seja, trata-se de uma
postura etnocêntrica.

Obviamente o clima, assim como a configuração geográfica, incide sobre as


práticas econômicas (agricultura, pastoreio, indústria, comércio, etc.) e, assim sendo,
sobre a própria totalidade da vida social (estruturas políticas, práticas culturais);
contudo, não se trata de fatores únicos e, tampouco, unicamente determinantes.

O que explicaria então as diferenças no próprio perfil desses grupos? Por que
alguns estariam mais inclinados às hostilidades? Por que outros estariam mais
inclinados para a paz?

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UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

O Conceito Antropológico de Cultura

Figura 7–Escravos em plantação de algodão (Ilustração)


Fonte: iStock/Getty Images

Foi preciso praticamente um século para que fosse definida conceitualmente a


“cultura”. Inicialmente, o termo apareceu em documentos escritos que se referiam ao
âmbito da agricultura e, de sua designação como tipo de prática agrícola (cultura da
cana-de-açúcar, cultura do café, etc.), passou a ser utilizado para se referir ao modo
de vida dos camponeses. Com o passar do tempo, do modo de vida de sociedades
simples, o termo passou a ser utilizado para designar a área de estudo que tentava
compreender esses modos de vida. Mas é a perspectiva antropológica que define
mais precisamente a cultura, a partir de 5 de suas características principais:
1. a cultura se refere à transmissão de caracteres extrassomáticos, ou seja, não se
transmitem geneticamente;
2. a cultura é particular ao Homem – os animais possuem, no máximo, sociedades;
3. adaptação: os animais se adaptam ao meio de modo genético e o Homem,
culturalmente, a despeito das adaptações genéticas ao meio ambiente.
Ao inserir elementos de cultura material no processo adaptativo, o Homem
acelera sua adaptação; contudo, retarda sua resposta genética ao meio ambiente;
4. a cultura é padronizada: língua, religião, economia, etc. são convenções simbóli-
cas que existem, ao alcance dos olhos, nas sociedades, constituindo culturas do-
minantes. Nesse caso, os itens de cultura se converteriam em vetores de relações
sociais, cujas referências para a compreensão dessas convenções e símbolos são
partilhadas no contexto dessa sociedade culturalmente padronizada;
5. a sociedade é o veículo da cultura, que só existe sob essa condição. A cultura
dá a tônica da interação entre núcleos, como o educacional e o econômico,
por exemplo.

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Sendo assim, em termos antropológicos, pode-se entender a cultura como o
sistema humano de hábitos ou costumes adquiridos por processos extrassomáticos,
difundidos na sociedade por símbolos ou convenções criadas nas dinâmicas de
adaptação do indivíduo ao meio ambiente.

Essa definição ganha corpo teórico na década de 1930, a partir da obra de


dois autores: Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-1942), que
rompem com o evolucionismo linear assumido pela Antropologia por meio das
teses de Spencer, representante máximo do darwinismo social e que postulava que
o Homem evoluiria do estágiow de barbárie ao estágio de civilização.

Malinowski, rompendo com o evolucionismo, dando ênfase ao relativismo e à


pluralidade da cultura, acrescentou que, em um determinado contexto, a cultura
funcionaria como uma unidade com engrenagens relacionadas.

A resposta dessa Antropologia para a questão da diversidade cultural é o


aprendizado, que se dá por sua vez por meio de relações culturais muito especificas.
Por meio da educação o indivíduo é introduzido ao mundo ou, se quisermos ser
mais profundos, é humanizado; por meio da educação, transmitem-se saberes que
explicam (cada qual a sua forma) o mundo e o Homem, bem como o papel do
Homem no mundo. Diferentes povos desenvolvem diferentes formas de transmitir
seus saberes ou diferentes formas de educar, processo no qual são transmitidos
repertórios culturais inteiros.

Sendo assim, não é nem a genética e nem o meio geográfico que determinariam
o comportamento dos povos e suas diferenças, mas a cultura, por sua vez
distinguida por conta da diversidade de experiências de aprendizado verificáveis
em diferentes povos.

Figura 8
Fonte: iStock/Getty Images

Não se trata de um processo de ensino meramente teórico, a criança que


recebe os primeiros ensinamentos de seus pais, da família, do grupo social ao qual
pertence, da educação formal ou da religião, aprende não só a como interpretar o
mundo, mas como agir sobre ele.

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UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Chamou a atenção de inúmeros estudiosos, fundamentalmente, o fato de que o


Homem, graças à cultura, teria superado suas limitações biológicas. Se pensarmos
nas possibilidades de sobrevivência do Homem frente à hostilidade da natureza
– desde a diversidade do meio, as intempéries do clima, o assédio de animais
predadores e a fragilidade frente aos desastres naturais –, ele não teria sobrevivido
sem o advento da cultura.

Ou seja, ainda que portador de capacidades biológicas simples, se compararmos


o Homem em força, por exemplo, em relação a um leão, o Homem está muito
mais apto a sobreviver do que o leão, primordialmente porque o Homem é, antes
de um ser biológico, um ser cultural.

Isso para dizer que o Homem é capaz, por ser produtor, portador e difusor de
cultura, de adaptar-se ao meio natural ou mesmo de adaptar o próprio meio natural
às suas necessidades; coisa que os leões não podem fazer, apesar da sua imensa
força física e destreza na caça.

A diferença consiste no poder que guarda a cultura, o que faz com que o Ser
Humano não limite a sua existência e suas possibilidades de sobrevivência única e
exclusivamente ao seu potencial biológico, mas também aos instrumentos que cria
para facilitar sua sobrevivência.

Figura 9
Fonte: iStock/Getty Images

Por exemplo, ainda que o Homem seja mais frágil do que um urso em relação
a regiões de clima frio, ele é capaz de desenvolver instrumentos e técnicas que lhe
permitam caçar o urso, extrair sua pele, secá-la e usá-la como vestimenta, para
escapar ao frio e viabilizar com isso sua existência.

Outra questão primordial e que coloca o conhecimento humano à frente do


das demais espécies da natureza, é seu caráter cumulativo. Ou seja, por meio da
educação, são transmitidos saberes culturais já erigidos, permitindo ao Homem
que os recebe pensar para além dessas culturas, propondo e realizando inovações
que, por sua vez, por meio do aprendizado, serão transmitidas às gerações
futuras. Ao longo das gerações, portanto, as culturas se transformam apontando
invariavelmente para horizontes até então inexplorados pelo humano.

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Etnocentrismo e suas Consequências: Apatia
Uma forma extremamente eficiente para entendermos questões de estranha-
mento cultural é imaginar que as pessoas veem o mundo a partir da sua cultura.
Sendo assim, não se trata do mesmo mundo, mas de como ele é lido e interpretado
de diferentes formas por diferentes pessoas, isso porque são portadoras de diferen-
tes sistemas culturais.
O etnocentrismo consiste no fenômeno de o indivíduo, ou um grupo de
indivíduos, considerar a sua forma de interpretar o mundo como a única possível ou
a melhor dentre as demais. Com isso, outros sistemas culturais passariam a ser alvo
de discriminação por serem considerados “tortos”, “distorcidos” ou “equivocados”.
O etnocentrismo é, portanto, valorativo, ou seja, a cultura diversa é sempre
objeto de juízos de valor, entendida como inferior, exótica ou absurda.
Contudo, o comportamento etnocêntrico, nocivo como é, verifica-se como
fenômeno cultural universal; isso porque toda cultura tende a posicionar-se como
central no mundo que interpreta, sendo todas as demais culturas periféricas.
O etnocentrismo, absorvido pela cultura que é dada como inferior, absurda
ou desviada, leva ao fenômeno oposto: o da apatia. Consiste na absorção dos
valores de uma cultura etnocêntrica por parte daquela valorada negativamente,
resultando na depreciação dos indivíduos pertencentes àquela cultura por seu
próprio sistema cultural.

As Mudanças Culturais
A existência humana não consiste apenas em uma existência biológica, trata-se,
primordialmente, de uma existência cultural. Isso porque tudo aquilo que o Homem
cria, ensina, aprende e volta a criar constitui-se como cultura. Ao aprender sobre
aquilo que seus antepassados criaram, o Homem recria a cultura, a natureza e a si
mesmo e, quando passa seu conhecimento às demais gerações, já se trata de uma
cultura recriada.

Figura 10
Fonte: iStock/Getty Images

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UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Mesmo que um indivíduo esteja imerso em um sistema cultural, ele nunca


terá domínio pleno de todos os elementos que constituem aquela cultura, dada a
riqueza e diversidade que preenchem os sistemas culturais. Contudo, ele é forçado
a dominar um número mínimo de caracteres culturais para que seja reconhecido
pelo grupo como alguém pertencente à mesma cultura. Mas a questão é que,
ainda que os indivíduos de um grupo se conectem por meio do mesmo sistema
cultural, ele não é lido nem praticado de forma idêntica por todos. São exatamente
essas nuances e pequenas distinções que desvelam uma importante dimensão dos
fenômenos de mudança cultural.

Culturas mudam constantemente, mesmo porque a natureza, sua base material,


também muda por conta da interferência humana, primordialmente cultural.
Isso para dizer que, ao alterar a natureza (que provêm o Homem da base material,
em estado bruto, de sua existência) para atender às suas necessidades, o Homem,
por meio do trabalho (que envolve o desenvolvimento de meios, ferramentas
e técnicas), altera não só a natureza, mas a si mesmo. Isso quer dizer que, ao
alterar o meio, altera suas formas de interação social. Sendo assim, ainda que
suas necessidades biológicas sigam sendo as mesmas, suas necessidades sociais,
ou culturais, mudam; mudando junto com o meio, novas formas de interferência
à natureza que, como dissemos, não é mais a mesma, tende a produzir sempre
um novo Homem, junto de novas formas de trabalho, organização social e,
primordialmente, sistemas culturais fadados à perene transformação.

Com isso, já podemos dizer que as culturas são distintas não tão somente no
espaço, mas também no tempo, já que nunca permanecem inalteradas, pois, ainda
que lentamente, sempre se verificam transformações sendo operadas.

As mudanças culturais podem ser:


·· Internas ao próprio sistema cultural, transformando-se lentamente e
obedecendo a manifestações internas de mudança;
·· Externas ao sistema cultural, como produto do contato com outro sistema –
caso no qual, em relação à forma interna, é muito mais rápida e dinâmica.

Endoculturação
Antes de tratarmos das categorias fundamentais da Antropologia para a definição
dos mecanismos de mudança cultural, é importante tratarmos daquela que se refere
à sua transmissão que, de alguma forma, também implica em transformação.

Trata-se do conceito de “endoculturação”, conforme empregou o linguista e


antropólogo norte-americano Roger Martin Keesing (1935–1993) para se referir
ao permanente processo de aprendizagem de uma cultura que se inicia já desde
o nascimento do indivíduo, quando passam a ser-lhe ensinados os valores e as
experiências que constituem, paulatinamente, seu repertório cultural. Trata-se de
um processo contínuo, cujo término só se dá com a morte do indivíduo.

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Tanto Felix Keesing como E. Adamson Hoebel  (1906-1993), também
antropólogo norte-americano, e Frost Herskovits, referem-se à função da
endoculturação em constituir o suporte de transmissão dos códigos de conduta
sociais, por meio dos padrões de comportamento social que difundem, o que
tem um papel importantíssimo para a estabilidade do corpo social e do próprio
sistema cultural.

Obviamente, apesar de padrões culturais serem difundidos e assimilados


pelo indivíduo, o espaço do livre-arbítrio opera criando gradações distintas de
comportamento; contudo, é notável a assimilação de comportamentos, verificáveis
inclusive em condutas de desobediência.

Uma contrapartida a essa possibilidade é o caráter de controle exercido pela


sociedade, para condutas desviadas do padrão socialmente construído, bem como
as formas de coerção exercidas para constranger o indivíduo à assimilação dos
valores culturais dominantes.

Sendo assim, a ideia de liberdade deve ser relativizada ao padrão cultural por
meio do qual o indivíduo age, uma vez que suas referências comportamentais,
inclusive para as condutas de obediência e desobediência, são resultado do meio
em que foi socializado.

Contracultura e Subcultura

Figura 11
Fonte: iStock/Getty Images

Ocorre que não podemos incorrer no erro de imaginar que, por haver uma
cultura dominante em sociedade, todos passem a incorporá-la plenamente. Como
dito, há comportamentos de desobediência. Por sua vez, esses comportamentos
desviantes da norma geram outros sistemas culturais, chamados de subculturas,
para o caso de sistemas à margem da cultura dominante, ou contraculturas, para o
caso de sistemas que se defrontam com a cultura dominante.

A contracultura se caracteriza pelo espírito crítico, questionador e desobediente


em relação a tudo aquilo que é visto como vigente em um determinado contexto
sócio-histórico.

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UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

A contracultura, por sua vez, oferece alternativas para interpretar o mundo e,


mais, para defender o mundo que acredita possível. Essas visões alternativas são
expressas nas artes visuais, na literatura e nas ideias, tendo fomentado uma série
de movimentos de contestação em nossa história recente, como: os Hippies, os
Beats, os Punks e o Anarquismo.

Por vezes, movimentos de contestação, na forma da contracultura, conseguiram


vitórias significativas na mobilização das massas para provocar as mudanças que
defendiam. É o caso de John Lennon e Yoko Ono, que deitados na cama de sua casa
ofereceram uma das mais graves resistências à Guerra do Vietnã – defendendo que
se fizesse amor, não a guerra. A opinião pública teve, nesse caso, uma importância
fundamental no conjunto de pressões que culminou na derrota política dos EUA
nesse desigual enfrentamento.

Figura 12 – John Lennon e Yoko Ono em protesto pela paz


Fonte: Wikimedia/Commons

Aculturação
Dentre os processos externos de transformação cultural, o mais significativo é
o da aculturação, decorrente do contato entre duas culturas distintas que, fundidas,
dão origem a uma terceira cultura. Refere-se também a relações assimétricas em
que uma cultura passa a exercer sobre outra um papel de dominação, culminando
na absorção da cultura dominada. Uma questão a se pensar é se, no processo, ainda
que assimétrico, a cultura dominante não assumiria traços da cultura dominada.
Em verdade, as correntes mais recentes da Antropologia e das Ciências Humanas
e Sociais (como no caso da corrente crítica pós-colonial), verificam que contatos
culturais, ainda que assimétricos e vetorizados por relações de força e poder, não
se restringem a meras relações de assédio e resistência, mas resultam em trocas,
negociações e mútuas transformações.

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Sincretismo
O fenômeno do sincretismo se refere a uma fusão de doutrinas de diversas
origens, tanto religiosas como filosóficas.

O termo é utilizado com maior fluência para se referir ao fenômeno da absorção


de traços de uma religião por outra, culminando então numa forma sincrética.
Sendo assim, o conceito é dotado de significados conciliadores entre distintos
repertórios culturais, que passam a complementar-se e a serem compreendidos
por meio de correspondências simbólicas.

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UNIDADE Natureza e Dinâmica das Culturas

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

  Sites
O que é cultura?
JOBIM, Sonia. Site Orixás, disponível no link:
https://goo.gl/zj6t8D

 Livros
O que é cultura?
SANTOS, José Luis. Site Shvoong, disponível no link:
https://goo.gl/CyMy2B

 Filmes
Dersu Uzala
Dersu Uzala; dir.: Akira Kurosawa, Japão / URSS, drama, colorido, 1975.
A Missão
A Missão; dir.: Roland Joffé, Inglaterra, drama, colorido, 1986.
Koyaanisqatsi
Koyaanisqatsi; dir.: Godfrey Reggio; EUA, documentário, 1983.
Baraka: Um Mundo Além das Palavras
Baraka: Um Mundo Além das Palavras; dir.: Ron Fricke; 24 países, documentário,
1992.
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