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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia

Volume 5: Gênero,
geração e comunidades
tradicionais

Maria de Lourdes Novaes Schefler


Lídia Maria Pires Soares Cardel
Ubiraneila Capinan Barbosa
Danilo Uzêda da Cruz
(organizadorxs)

Salvador
2022
Copyright © 2022 – Danilo Uzêda da Cruz

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios
empregados, sem a expressa autorização.

Capa e arte final


Lucas Kalil
Foto: UMERU

Produção Editorial
Pinaúna Editora

Revisâo
Os organizadores

Direitos desta edição reservados à Danilo Uzêda da Cruz.


A Pinaúna Editora não necessariamente compartilha das mesmas opiniões
expressas pelo autor e seus colaboradores neste livro. A responsabilidade sobre
ideias e opiniões presentes no conteúdo deste livro é estritamente do autor.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

E24 Educação, ATER e Cooperativismos [recurso eletrônico]: processos,


G326 contextos
Gênero,sociais
geração e aprendizagem
e comunidades / organizado
tradicionaispor [recurso
Tatiana Ribeiro
eletrônico] /
Velloso...[et
Maria al.]. -Novaes
de Lourdes Salvador : Pinaúna
Schefler ... Editora,
[et al.].2022.
- Salvador : Aruá
PinaúnaEdições,
Editora
2023.386 p. : PDF. – (Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia;
v.2)
229 p. : il. : ePUB ; 700 KB. – (Coleção Mundo Rural
Contemporâneo na Bahia ; v.5)
Inclui índice e bibliografia.
ISBN:
Inclui 978-65-86319-52-1
bibliografia e índice.(Ebook)
ISBN: 978-65-86319-64-4
1. Educação. 2. Campo. 3. Agricultura familiar. 4. Agricultura. 5.
Democracia. 6. Organização.
1. Agricultura. 2. Campo. 3. 7. Gênero.
Participação social. 8. Bahia.
4. Identidades. I. Velloso,
5. Comunidades.
6. Tatiana
Tradição.Ribeiro. II. Ribeiro,
7. Bahia. Lúcia
8. Rural. Marisy Souza
I. Schefler, Maria. III.deUzêda, Lilian
Lourdes Novaes. II.
FreitasLídia
Cardel, Fernandes.
MariaIV. Lopes,
Pires Márcio
Soares. III.Caetano
Capinan, deUbiraneila.
Azevedo. V. IV. Cruz,
Cruz, Danilo Uzêda da. VI. Título. VII. Série.
Danilo Uzêda da. V. Título.
CDD 370
CDD 630
2022-2501 CDU 37
2023-220 CDU 63

Elaborado
Elaborado por Vagner
por Odilio Hilario Moreira da
Rodolfo Junior - CRB-8/9949
Silva - CRB-8/9410
Índice para catálogo sistemático:
Índice 1.para catálogo
Políticas públicas sistemático:
361
2. Políticas públicas
1. Agricultura 630 364
2. Agricultura 63
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia

Volume 1 Democratização, participação e políticas públicas para


o campo
Organizadores: Clovis Roberto Zimmermann, Danilo Uzêda da Cruz,
Diego Matheus Oliveira de Menezes e Nilson Weisheimer
No primeiro volume da coleção os temas democracia, participação
social e políticas públicas se articulam nos artigos apresentados.
Essa perspectiva teórico-metodológica possibilita colocar em evi-
dencia e diálogo campos de conhecimento ora distantes, mas que
se intercruzam em suas análises, permitindo uma ampla leitura da
realidade social e polítca no mundo rural. Imersos em um contexto
político controverso, do ressurgimento do pensamento conservador
e do amplo processo de desdemocratização e regressão política que
o mundo vive, os textos reunidos aqui podem ser uteis para as pes-
quisadoras e pesquisadores nas diferentes áreas do conhecimento.
Do mesmo modo a avaliação das políticas públicas para o mundo
rural reaparece como um importante espaço de pesquisa e análise.
As diversas pesquisas e análises desse primeiro volume buscam as-
sim apresentar um novo cenário político no campo, mas também
dialogar com arenas tradicionais de participação política, como sin-
dicatos, associações, partidos políticos, etc. Essa dinâmica participa-
cionista fazem parte da longue durée da história dos movimentos
sociais do campo, como também já conta com uma sedimentada li-
teratura sobre o tema no Brasil e na Bahia.

Volume 2 Educação, ATER e Cooperativismos: processos, contextos


sociais e aprendizagem
Organizadores: Lilian Freitas Fernandes Uzêda, Márcio Caetano de Aze-
vedo Lopes, Tatiana Ribeiro Velloso, Lúcia Marisy Souza Ribeiro e Dani-
lo Uzêda da Cruz
O segundo volume reunirá pesquisas que tratem de Educação do
campo, suas tecnologias e metodologías, a ATER e as formas de Coo-
perativismos. As diversas iniciativas e experiências de organizações
da sociedade civil, como também de poderes públicos passam a
ser pesquisadas e sistematizadas a partir dos centros de pesquisa e
aparecem nos programas de pós-graduação consolidando uma im-
portante literatura já disponível. A diversas matrizes teórico-meto-
dológicas e vivencias aparecerão nesse volume a partir das pesqui-
sas em curso ou finalizadas, que permitirá ainda que experiências
de organizações da sociedade civil e poderes públicos sejam publi-
cados, demonstrando a interdisciplinaridade e amplitude do tema.
O volume reunirá assim campos de pesquisa que reconectam edu-
cação, ATER e as múltiplas expressões cooperativistas na perspecti-
va do rural baiano.

Volume 3 Convivência com o Semiárido: experiências, vivências e


transformações
Organizadores: Danilo Uzêda da Cruz, Gilmar dos Santos Andrade, Jor-
ge Luiz Nery de Santana e Tiago Pereira da Costa
O terceiro volume reuniu pesquisas e experiencias em torno do se-
miárido e sua diversidade, os problemas e o relacionamento com
questões históricas, observando a convivência com o semiárido,
agroecologia e bem viver. Ao reunir esses estudos e pesquisas o vo-
lume pretende oferecer ao grande público e ao público especializa-
do alternativas para o existir e o viver no semiárido, oportunizan-
do uma ampla reflexão sobre práticas e políticas nesse lugar social,
ambiental, cultural, econômico e político de grandes contingentes
populacionais.

Volume 4 Terra, territórios e territorialidades


Organizadores: Carla Craice da Silva, Renata Alvarez Rossi, Danilo Uzê-
da da Cruz e Rafael Buti
O quarto volume da Coleção busca refletir as pesquisas sobre o vas-
to tema da Terra, suas implicações nos assentamentos humanos e
as populações camponesas, os territórios e territorialidades. As pes-
quisas que compõem esse volume refletem em alguna medida as di-
námicas mais longevas da questão rual, sobretudo as que envolvem
o pertencimento, identidade e a posse da terra, há décadas como
um problema e dilema social não resolvido por sociedades e go-
vernos gerando e ampliando conflitos e desigualdades duradouras
que repercutem no extenso tecido social. Os artigos aquí reunidos
demonstram o estado da arte das pesquisas em curso sobre a temáti-
ca e ainda possibilita refletir sobre alternativas de políticas públicas
para a melhoria das populações desses espaços, e oferecer possibili-
dades metodológicas para novos horizontes de pesquisa.

Volume 5 Tensões e dilemas do Rural Baiano contemporâneo: gê-


nero, geração e comunidades tradicionais.
Organizadoras: Lidia Cardel, Maria de Lourdes Novaes Schefler, Ubira-
nela Capinan e Danilo Uzêda da Cruz
O quinto volume traz artigos que abordam temas de pesquisa no
campo das relações sociais de gênero, juventude, populações de co-
munidades tradicionais, povos originários e quilombolas. Esse am-
plo tema encontra-se em um momento de pesquisa oportuno, dado
a persistência e permanência de desigualdades duradouras, ou por-
que a pesquisa acadêmica vem ampliando seu olhar para as popu-
lações do campo. Ao contrário do que uma certa tradição histórica de
pesquisa anotou ao longo do século passado, as contradições sociais
não são menores para as populações rurais e a modernidade-mun-
do não representou a superação de dilemas sociais, senão pelo con-
trário. As pesquisas tem apontado que fenômenos interseccionais
atuam sobre essas populações, fragilizam políticas e fragmentam a
experiência social de mulheres, negros, povos originários, jovens e
população idosa. Do mesmo modo, as transformações recentes para
comunidades de fundo e fecho de pasto, ribeirinhas, quilombolas
e assentados tem aumentado o interesse de pesquisa dos centros
universitários.

Volume 6 O desenvolvimento rural e o enfrentamento às


desigualdades.
Organizadores: Danilo Uzêda da Cruz, Andreia Andrade dos Santos,
Egla Ray Passos Costa, Ivan Leite Fontes
As desigualdades persistem como um dilema social longevo. É nu-
trido por contradições históricas não resolvidas que fazem persistir
problemas societais para as populações dos diversos espaços sociais.
As populações rurais sentem em igual medida, ou em determinados
contextos ainda mais, essas contradições. O sexto e último volume
dessa coleção apresenta pesquisas que contribuem de forma inédi-
ta com a compreensão dessas dimensões e dilemas do rural face as
desigualdades. Nele estão abordados trabalhos em torno da supe-
ração dos desafios e dilemas da desigualdade da agricultura fami-
liar e populações do campo na Bahia, o desenvolvimento rural como
um problema político e social e as experiências de políticas públicas
para a superação desses entraves históricos. Por se tratar do último
volume da coleção, também trará um capítulo especial de balanço
dos demais volumes, no qual se abrirá um diálogo em busca de alter-
nativcas para o rural baiano.
Índice
Apresentação Geral da Coleção ...................................................................................... 15
Danilo Uzêda da Cruz (Coordenador Geral da Coleção)

Nota da Editora ..................................................................................................................... 21


Carolina Dantas (Pinaúna Editora)

Apresentação ao Volume 5 ...............................................................................................23


Lidia Cardel, Maria de Lourdes Novaes Schefler, Ubiraneila Capinan e Danilo Uzêda
da Cruz

Prefácio ....................................................................................................................................27
Guimar Germani

Encontros e desencontros: .............................................................................................. 33


mulheres nas organizações solidárias ........................................................................ 33
Maria de Lourdes N. Schefler

Introdução ....................................................................................................................... 33
Mulheres, gênero e economia solidária: os múltiplos sentidos da justiça
36
Poder e empoderamento feminino so múltiplas óticas: breve reflexão sobre o
trabalho da Mulher como promotor da autonomia e empoderamento femini-
no ........................................................................................................................................44
Mulheres, trabalho e poder: o sentido da separação das esferas da vida53
Considerações Finais.................................................................................................. 60

Referências .....................................................................................................................63

A chegada do arame farpado: ........................................................................................69


um estudo de caso sobre as estratégias de resistência das comunidades rurais no
Litoral Norte da Bahia ........................................................................................................69
Diana Anunciação e Lídia Cardel

Introdução .......................................................................................................................69
De Tabuleiro a Curralinho ........................................................................................ 71
A Casa da Torre, Schindler e a Companhia Inglesa ........................................73
A chegada do arame: o cercamento das terras .................................................76
Adaptação, reordenamento e resistência ...........................................................79
Considerações finais....................................................................................................86

Referências .....................................................................................................................89

Visibilizar para reconhecer: ............................................................................................93


uma análise sobre as mulheres agricultoras familiares do recôncavo baseada no
censo agropecuário 2017 ...................................................................................................93
Eliene Gomes dos Anjos e Dilma de Souza da Conceição

Introdução .......................................................................................................................93
A inserção da agricultura familiar baiana em formatos associativos ..97
Rupturas e permanências no ttabalho das agricultoras familiares ..... 101
Deixando de ser coadjuvante para ser protagonista: as mulheres agricultoras
associadas do recôncavo..........................................................................................105
Considerações finais........................................................................................................
115

Referências ................................................................................................................... 117

Mulheres de fibra: ............................................................................................................. 119


da invisibilidade ao empoderamento em assentamentos de reforma agrária
119
Losângela da Cunha Araújo e Nilson Weisheimer

Introdução ..................................................................................................................... 119


Território do Sisal e os assentamentos de Lagoa dos Bois e Nova Palmares
123
As mulheres rompem a invisibilidade na luta por direitos ......................128
Empoderamento das mulheres assentadas do Território do Sisal ........136
Considerações finais .................................................................................................147

Referências ...................................................................................................................149

A Marcha das Margaridas: ..............................................................................................151


história e feminismo no Brasil ......................................................................................151
Dayane Nascimento Sobreira

Introdução ..................................................................................................................... 152

Fontes Documentais .................................................................................................. 173


Referências ...................................................................................................................174

Mulheres em Pau D’arco: ...............................................................................................179


um estudo sobre a visibilização do trabalho feminino no campo ................179
Greice Bezerra Viana

Introdução .....................................................................................................................179
Contextualização da pesquisa ............................................................................... 181
Entre a terra e o rio ....................................................................................................184
Considerações finais..................................................................................................198
Referências ...................................................................................................................200

Feminismo camponês e popular na Bahia: ............................................................ 203


narrativas de um processo em construção ............................................................ 203
Mainara Mizzi Rocha Frota e Clóvis Roberto Zimmermann

Introdução .................................................................................................................... 203


Invisibilidade, Participação e Protagonismo: O caminhar das mulheres no
MST ................................................................................................................................. 205
Em campos opostos: A feminista hegemônica e a feminista que brota da luta
coletiva e constrói o Feminismo Camponês e Popular (FCP) ..................209
Considerações finais.................................................................................................220

Referências .................................................................................................................. 222

Sobre as autoras e autores ............................................................................................ 225


Volume 5: Gênero, geração e comunidades tradicionais
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

Apresentação Geral da Coleção

Danilo Uzêda da Cruz (Coordenador Geral da Coleção)

É com muita honra, alegria e compromisso que ora apresentamos


a Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia, sob selo editorial
da Editora Pinaúna, para a comunidade acadêmica e comunidade
em geral. Os seis volumes que compõem a coleção trazem contri-
buições fundamentais para a compreensão e discussão dos temas
mais relevantes para as populações do campo, seus dilemas, proble-
mas e alternativas sociais desenvolvidas a partir de experiências e
trajetórias culturais, políticas e econômicas.
A Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia, partiu de uma
lacuna existente na pesquisa acadêmica em torno do rural baiano e
sua multidimensionalidade, ensejando ampliar os espaços de divul-
gação das pesquisas em andamento ou concluídas por pesquisado-
ras e pesquisadores em diversos momentos da carreira acadêmica.
A pouca visibilidade das pesquisas sobre o mundo rural tem obriga-
do pesquisadores a buscar referências em realidades e experiências

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Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

distantes, via de regra, no eixo sul-sudeste, e mais recentemente em contex-


tos de outros países latino-americanos.
A coletânea tem o propósito central de oferecer às pesquisadoras e
pesquisadores presentes e futuros, estudantes, poderes públicos, gestores
e comunidade em geral uma ampla visão da pesquisa sobre o rural con-
temporâneo na Bahia, possibilitando o reconhecimento do mundo rural e
sua diversidade, como também um maior conhecimento de métodos e téc-
nicas de pesquisa para compreender/entender esse espaço. Essa múltipla
abordagem e interseccionalidades do fenômeno possibilita que políticas
públicas sejam empreendidas com mais assertividade, como também que
a sociedade se reconheça como sujeito de processos econômicos, sociais,
políticos e ambientais, proporcionando um ambiente pedagógico interes-
sante para a geração presente e futura.
Apesar da existência de programas de pós-graduação, graduação e cam-
pos específicos que analisam o mundo rural baiano, com pesquisas de re-
ferência e centros de excelência científica com enfoque no rural, os estudos
nesse campo são marcados por uma dispersão. A Coleção tenta renovar a
força teórica e metodológica para compreender o campo, o rural, a rura-
lidade e as formas de organização das populações que vivem “do”, “no” e
“para” o campo.
Nesse sentido discutir o mundo rural da Bahia, a partir de uma dinâ-
mica e estratégia de desenvolvimento rural sustentável com pesquisas em
desenvolvimento sobre o tema e trabalhos relevantes que tem contribuí-
do para o desenvolvimento rural e temas afins, é um diagnóstico de que
algo mudou no campo, ou que havia obstáculos políticos, culturais, sociais,
econômicos, simbólicos e ideológicos para que nossa compreensão sobre
esse universo se alargasse e possibilitasse enxergar a diversidade e multi-
plicidade, bem como particularidades do campo, sem que partíssemos de
uma premissa do urbano e da cidade.
A realização dessa coleção, abrigou pesquisadoras e pesquisadores in-
teressadxs no tema do mundo rural baiano. Isso implica em dizer que não
há uma só orientação teórica e metodológica. São várias as experiencias
acadêmicas reunidas no pensamento crítico nas ciências, como também
foram preservados os estilos de escrita e o enfoque de cada um, cada uma.
Há, outrossim, uma premissa que orienta essa coleção. Os estudos aqui
apresentados tem conteúdo científico, portanto acadêmico, e como con-
sequência não estão entre os artigos selecionados aqueles cuja fragilidade

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

teórica ou indução ideológica levam para o lugar obscuro do negacionismo


ou do conservadorismo acadêmico, que apenas é uma face política que des-
acredita e desfavorece o conhecimento e sua amplitude.
Isso não quer dizer que falarão apenas coisas bonitas sobre o rural. An-
tes pelo contrário. Encontramos ao ler os artigos reunidos um rural com
muitos problemas e sob forte ataque da violência, degradação ambiental e
do retorno da pobreza e da miséria. Um lugar que viu crescer e perpetuar
desigualdades duradouras e profundas, diminuindo e ceifando gerações
após gerações de vida digna. É, portanto, uma Coleção comprometida com
o campo e suas populações que criticamente querem analisar e informar
sobre o rural em dinâmica plural.
Esta produção ora oferecida à sociedade, às instituições de ensino, pes-
quisa, fomento, às associações de produtores, às Comunidades, Organi-
zações da sociedade civil, Associações Populares e etc., em algum momen-
to poderá servir de instrumento metodológico para o desenvolvimento
econômico, social e cultural das mesmas populações do campo que foram
sujeitos das pesquisas e ainda para o desenvolvimento de pesquisas ulte-
riores ou formulações de políticas.
A disseminação destes resultados será encaminhada à população, prin-
cipalmente aquela que trabalha ou pesquisa diretamente com o mundo ru-
ral, na promoção do desenvolvimento rural sustentável. Pretende também
alcançar agricultores, líderes de projetos em comunidade e os aplicadores
das técnicas.
Em números, a coleção reúne 150 pesquisadoras e pesquisadoras dos
diversos centros de conhecimento e universidades de todo o Brasil, mas
também com autorias de sujeitos da sociedade civil organizada em colabo-
ração acadêmica com esses centros científicos.
Distribuídos em seis volumes, em temas que se entrecruzam, os 74 arti-
gos recebidos foram analisados e aprovados por pares, em um processo de
envolvimento e dedicação das/os organizadoras/res de cada volume.
O primeiro volume Democracia, participação e Políticas Públicas para
o campo, é organizado por Clovis Roberto Zimmermann, Danilo Uzêda da
Cruz, Diego Matheus Oliveira de Menezes e Nilson Weisheimer e estão re-
unidos artigos que dialogam com o vasto tema da participação e políticas
sociais pra o campo.
Já o segundo volume Educação, ATER e Cooperativismos: processos,
contextos sociais e aprendizagens, organizado por Lilian Freitas Fernandes

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Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

Uzêda, Márcio Caetano de Azevedo Lopes, Tatiana Ribeiro Velloso, Lúcia


Marisy Souza Ribeiro e Danilo Uzêda da Cruz estão pesquisas e experiên-
cias que tratam da Educação "do", "no" e "para" o campo, tecnologias sociais
e cooperativismos.
As pesquisas e experiencias do terceiro volume organizado por Danilo
Uzêda da Cruz, Gilmar dos Santos Andrade, Jorge Luiz Nery de Santana e
Tiago Pereira da Costa, com o título de Convivência com o Semiárido: expe-
riências, vivências e transformações situam-se nas múltiplas abordagens
que o semiárido pode oferecer e sua diversidade bem como com o relacio-
namento das questões históricas, observando a convivência com o semiári-
do, agroecologia e bem viver.
No quarto volume Terra, territórios e territorialidades é organizado por
Carla Craice da Silva, Renata Alvarez Rossi, Danilo Uzêda da Cruz e Rafael
Buti traz pesquisas envolvendo a questão agrária, assentamentos e suas di-
versidades, territórios e as dimensões da identidade territorial.
Em Tensões e dilemas do Rural Baiano contemporâneo: gênero, geração
e comunidades tradicionais, estão reunidos artigos que tratam de temas de
pesquisa no campo das relações sociais de gênero, juventude, populações
de comunidades tradicionais, povos originários e quilombolas. O volume é
organizado por Lidia Cardel, Maria de Lourdes Novaes Schefler, Ubiranela
Capinan e Danilo Uzêda da Cruz
O sexto e último volume O desenvolvimento rural e o enfrentamento
às desigualdades, organizado por Danilo Uzêda da Cruz, Andreia Andrade
dos Santos, Egla Ray Passos Costa, Ivan Leite Fontes estão abordados tra-
balhos em torno da superação dos desafios e dilemas das desigualdades,
da agricultura familiar e populações do campo na Bahia, como também
indicações para pensar a renovação das políticas públicas.
Agradecemos a Pinaúna Editora por aceitar e empreender conjunta-
mente o projeto dessa coleção, mesmo em um momento tão adverso para
toda a sociedade. Em nome de todos as organizadoras e organizadores nos-
so agradecimento. Grato também as autoras e autores que enviaram seus
artigos, as organizadoras e organizadores que atuaram com muita dedi-
cação para que o projeto fosse finalizado.
É uma coleção escrita, organizada e finalizada durante um dos mais
graves momentos mundiais da história, a Pandemia do COVID 19. IO Braisl
pea ausência de políticas de contenção, negacionismos e desmobilização

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

empreendida pelo governo federal foi amplamente impactado, com mais


de 670 mil mortes e milhões de infectados.
Isso também nos mantém reflexivos, atentos e esperançosos por dias
melhores e mais justos.
Esperamos que as leituras e leitores gostem do resultado desse esforço
acadêmico, que é também político.
Boa leitura!

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Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

Nota da Editora
Carolina Dantas (Pinaúna Editora)

A Pinaúna Editora tem o enorme prazer de apresentar o resulta-


do editorial de um grande projeto acadêmico.
A Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia reúne pesqui-
sadores de diversos centros acadêmicos de toda a Bahia e de Univer-
sidades do Sul, sudeste e Nordeste, contando com artigos de pesqui-
sadores de outros países da América Latina.
O circuito que une e enlaça os artigos diz respeito aos temas do
rural baiano e brasileiro. Estão reunidos aqui resultados de pesquisa,
individuais e de grupo, de onde partiram estudiosos já consolidados
e outros em seus momentos iniciais de pesquisa e carreira acadêmi-
ca. Aqui reside um dos grande encontros apaixonantes da coleção:
colocar em movimento pesquisas e pesquisdorxs de diversos perfis
e campos científicos em momentos distintos de partida e de chegada
na pesquisa científica.
O projeto cujo liame foi tecido com paciência pedagógica, cuida-
do e um ambiente de afetividade, foi abraçado pela Pinaúna Editora
desde que nos foi apresentado. Percebemos no projeto uma inicia-
tiva pioneira nos estudos do mundo rural na América Latina. Sua
perspectiva interdisciplinar, histórico-crítica e atenta às mudanças e
aos contextos específicos.
A Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia chega ao públi-
co em sua versão digital e gratuita e está disponível nas plataformas
21
21
Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

da Pinaúna Editora para baixar e compartilhar livremente. Essa in-


ciativa busca promover e estimular novos estudos, novas abordagens
e o acúmulo teórico-metodológico em torno dos temas da coleção.
Esperamos que a Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia
possa servir para o aprofundamento científico, além do aprimora-
mento de políticas públicas para as populações rurais em suas diver-
sas demandas sociais.
A todas as pessoas uma boa leitura!
Pinaúna Editora.

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

Apresentação ao Volume 5

Lidia Cardel, Maria de Lourdes Novaes Schefler,


Ubiraneila Capinan e Danilo Uzêda da Cruz

No quinto volume da coleção Tensões e dilemas do Rural Baiano


contemporâneo: gênero, geração e comunidades tradicionais estão
reunidos artigos que apresentam resultados de estudos e análises
em torno dos temas propostos. Estes encontram-se em um momen-
to de pesquisa oportuno, dado a persistência e o agudizamento das
desigualdades ou, ainda, porque a investigação acadêmica vem am-
pliando seu olhar para as populações do campo. Ao contrário do que
uma certa tradição histórica de pesquisa anotou, ao longo do século
passado, as contradições sociais não são menores para as populações
23
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Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

rurais e a modernidade-mundo não representou a superação de dilemas so-


ciais, senão pelo contrário. As pesquisas indicam que fenômenos intersec-
cionais atuam sobre essas populações, fragilizam políticas e fragmentam
a experiência social de mulheres, quilombolas, povos originários, variadas
gerações e tantos outros grupos centenários. Entretanto, cabe registrar
que a dimensão geracional pretendida para este volume não teve trabalho
submetido, que revela em si a necessidade de maior olhar investigativo ao
tema, sobretudo, no que tange os extremos geracionais de uma população
(crianças, jovens e idosos).
“Comunidade tradicional” encerra em si um leque de apropriações e
sentidos na tentativa de abarcar a diversidade sociocultural de grupos, que
se busca contemplar com este conceito guarda-chuva. Eles convergem ao
fato de serem grupos, que apesar de manterem relações com a sociedade
envolvente, têm suas cosmologias, trajetórias históricas próprias e mantêm
uma relação com o meio ambiente enquanto um bem e não como depósito
de recursos a ser transmutado de forma extensiva em mercadoria. Por sua
vez, comunidade tradicional também é utilizada enquanto uma categoria
política e identitária. Nestas duas perspectivas são objeto de ação dos mo-
vimentos sociais, no sentido de ser um marcador de alteridade frente ao
modus operandi do capitalismo e, portanto, ser, igualmente, um elemen-
to aglutinador de processos identitários densos e, às vezes, combinados de
uma determinada identidade social, que constitui pescadores artesanais,
marisqueiras, quilombolas, ribeirinhos, geraizeiros, povos originários e da
floresta, camponeses etc. Ou seja, é um construto político que busca con-
gregar concepções de tempo e de espaço distintas, em graus variados, que
demarcam oposição as tais concepções predominantes no capitalismo, que
por vez utiliza estes dois indicadores da modernidade como artefatos de
mercantilização da terra, da água e do outro como força de trabalho, se-
quer lhe reconhecendo enquanto um cidadão. Comunidade tradicional,
enquanto categoria de ação política, instrumentaliza os movimentos nas
lutas sociais para garantir direitos, via políticas públicas, sistematicamen-
te negligenciados pelo Estado.
Todavia, faz-se necessário começarmos a discutir de forma mais ampla
o quão as fundamentações dos usos acadêmicos e políticos são distintas em
princípios filosóficos. Se científicamente buscamos, também, trabalhar as
relações específicas de tempo e de espaço cabe questionar o quão “comuni-
dade tradicional”, enquanto um conceito englobante, congela o tempo das

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

comunidades na tradição. Gerando representações sociais que aprisionam


os grupos a um passado atávico e, paradoxalmente, lhes impõe igualmen-
te uma forma linear de transcorrer o tempo tal qual o da modernidade,
como se os grupos não pudessem comungar de variadas temporalidades e
formas de concebê-las. Por sua vez, esta conceituação guarda-chuva exclui
o espaço da definição dos grupos, tanto comunidade quanto tradição reme-
tem a tempo. (MASSEY, 2008) Este rapto é atenuado quando tratamos dos
territórios comumente associados a nomeações das variantes da identida-
de social, que são definidas, preponderantemente, se utilizando as práticas
de trabalho dos grupos, a exemplo das comunidades de quebradeiras de
coco babaçu e, ainda, as de fundo e fecho de pasto. Mas, cabe perguntar se
o espaço social e o território são definidos apenas pelas práticas de trabal-
ho para esses grupos? Sabemos que não. Por ora não encerramos este de-
bate aqui, nos dispomos a contribuir para suscitá-lo, que sigamos criando
construtos teóricos vivos, com carne e sangue como nos dizia Malinowshi
(1984).
Por sua vez, a concepção de sexo/gênero compreende uma categoria de
análise para indicar a diferença sexual não mais como substrato natural e
biológico, mas como um produto da cultura, que reproduz um modelo pa-
triarcal, a partir do qual homens e mulheres são socializados. Sob essa con-
cepção, formulada na década de 1970, reconhece-se que a condição femini-
na é constituída histórica e socialmente, evidenciando o caráter arbitrário
da subordinação das mulheres e, portanto, as possibilidades de transfor-
mação e transcendência dessa condição. O gênero tornou-se, assim, uma
ferramenta conceitual e política imprescindível no desvelamento da rea-
lidade das mulheres, reconhecidas como sujeito de direitos, podendo-se
afirmar que toda e qualquer mudança nas relações sociais encontram-se,
de alguma forma, vinculadas à dimensão de gênero, o que justifica a ne-
cessidade de qualificar os diferentes espaços político-institucionais que se
propõem a endossar as lutas das mulheres contra a dominação masculina
e em prol da ampliação da cidadania feminina. Considera-se, nesse sentido,
que a dominação de gênero expressa um poder que perpassa a economia, a
cultura e a política, moldando todas as instituições que conformam o apa-
relho do estado e da sociedade civil. (SARDENBERG; MACEDO, 2011)
Os condicionamentos e desigualdades de gênero resultam em condições
de vida e trabalho bastante distintas para homens e mulheres, que se esta-
belecem e se cristalizam a partir das assimetrias que colocam as mulheres

25
Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

em uma posição social subordinada. Daí porque, homens e mulheres, mes-


mo situados em condições semelhantes de pobreza ou como membros de
um mesmo grupo doméstico-familiar, vivenciam essa situação de manei-
ra distinta, tendo, portanto, necessidades de gênero diferentes, que devem
logicamente ser atendidas de forma diferenciada, através de políticas de
construção da equidade. (SARDENBERG; MACEDO, 2011) Vale, entretan-
to, atentar que a apreensão desses aspectos, vai além de enfocar exclusi-
vamente às mulheres ou simplesmente nomeá-las (HARDING, 1998), pois
exige uma abordagem relacional, onde as mulheres devem ser analisadas
e socialmente posicionadas em relação aos homens, nas relações econômi-
cas, socioculturais, políticas e, notadamente, nas de trabalho.
Os grupos que são definidos como “comunidades tradicionais” e as mul-
heres vêm lutando por reconhecimento, uma vez que este se tornou o pa-
radigma do conflito político no cenário pós-socialista. Apesar da crescente
desigualdade material que caracteriza todo o mundo. Nancy Frazer (2001)
utiliza o método heurístico de tipos ideais de injustiças e de remédios para
explicar a conjuntura global destas lutas sociais, da qual também fazem
parte a população descendente dos povos africanos que foram subjuga-
dos a diáspora. Num pólo estariam as situações de injustiças econômicas,
solucionáveis com “remédios redistributivos”, isto é, por uma reestrutu-
ração político-econômica de algum tipo. No outro, estariam as injustiças
culturais, passíveis de solução com “remédios de reconhecimento”, ou seja,
ressignificações culturais e simbólicas de grupos estigmatizados. A auto-
ra (Idem) salienta que algumas demandas são ambivalentes, como as das
coletividades abordadas neste volume, pois suas solicitações por uma ci-
dadania plena só podem ser contemplatadas com políticas públicas que
busquem garantir reconhecimento e redistribuição que foram histórica e
estruturalmente negligenciados na Bahia, no Brasil.

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração eApresentação
comunidades ao
tradicionais
Volume 5

Referências

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da jus-


tiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé (Org.). Democracia hoje: novos
desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001.
p. 245 – 282.

HARDING, S. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminis-


ta. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, p. 07-32, 1993.

MALINOWSKI, Bronislaw Kasper. Tema, método e objetivo desta pesqui-


sa. In:_______ Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreen-
dimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova guiñé me-
lanésia. Tradução: Anton P. Carr e Lígia Aparecida Cardieri Mendonça. 3.
Ed. São Paulo: Abril Cultura, 1984.

MASSEY, Doreen B. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tra-


dução: Hilda Pareto Maciel, Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand,
2008.

SARDENBERG, Cecilia Maria B.; MACEDO, Márcia. Relações de gênero:


uma breve introdução ao tema. In: COSTA, Ana Alice Alcântara; RO-
DRIGUES, Alexnaldo Teixeira; VANIN, Iole Macedo (Orgs.). Perspectivas
transversais. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 39-58.

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Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

Prefácio

Guimar Germani

Com muito prazer aceitei o convite para escrever o prefácio do


Volume 5: Gênero, geração e comunidades tradicionais, da “Coleção
Mundo Rural Contemporâneo na Bahia”, organizado por Lídia Car-
del, Maria de Lourdes Schefler, Ubiraneila Barbosa e Danilo UIzêda
da Cruz. As três primeiras, companheiras das caminhadas nos cam-
pos baianos e nos campi de nossa UFBA, entre São Lázaro e Ondina.
É muita satisfação, em tempos tão sombrios, poder desfrutar de col-
heitas tão importantes e assim, também, tecer novas semeaduras e
esperanças.

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Guimar
Maria Germani
de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

Começo destacando o significado das temáticas de gênero, ge-


ração e comunidade tradicional que apareceram com destaque nesta
coleção. Isto acontece, em primeiro lugar, porque nos últimos tem-
pos essas questões emergiram com mais força e alcançaram uma
maior projeção a partir dos próprios sujeitos envolvidos no cotidia-
no das lutas sociais no campo. Mas, também, porque as/os autoras/
es se aliaram a tantas/os outras/os que, ao observarem o movimen-
to da realidade, reconheceram esse protagonismo e alçaram essas
questões a um espaço importante nas suas inquietações e reflexões
acadêmicas, dando a este espaço um status de categoria analítica e,
por conseguinte, garantindo sentido, consistência e atualidade a esta
publicação.
Realidades que não são novas, uma vez que se definem no esteio
das dinâmicas e contradições do nosso processo civilizatório. Ou,
dito de outra forma, da nossa “modernidade”. Contudo, enquanto
ações políticas, as lutas sociais feministas adquiriram maior organi-
cidade em tempos mais recentes. No Brasil, o feminismo conquistou
maior espaço, principalmente a partir da década de 1970, quando as
experiências coletivas no cotidiano urbano, nas lutas e resistências
contra o regime militar confluíram na organização de movimentos
feministas específicos. Esses movimentos vão dando passos firmes
nas questões de gênero articuladas às questões mais gerais de des-
igualdade e injustiças sociais que se reproduzem em diferentes es-
calas e dimensões. Isto, em si, não é novo. O que é novo é o olhar e o
reconhecimento da participação das mulheres no mundo rural con-
temporâneo, que não se limita à esfera da realização do trabalho e
da produção, mas, principalmente, assume uma dimensão política
e se articula ao conjunto das lutas gerais e, o mais importante, for-
ja propostas de enfrentamento na esfera da produção e reprodução
da vida no campo, em suas objetividades e subjetividades. Este é o
salto qualitativo e o avanço no enfrentamento dessas questões na
contemporaneidade.
Se os movimentos feministas ganharam forma a partir do urba-
no, o movimento da totalidade mostra o limite tênue entre urbano
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30
Prefácio
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

e rural, quando se trata do desenvolvimento das forças produtivas


e das relações sociais de produção no modo de produção capitalis-
ta. Assim, as lutas históricas travadas no cotidiano das mulheres no
campo adquirem, também, uma dimensão e organicidade mais ex-
pressiva neste tempo e espaço.
Os sete artigos que compõem este volume são resultados desse
olhar e de um trabalho árduo e longo desenvolvido por suas autoras
e autores, e que se articulam trazendo diferentes dimensões da te-
mática que se revela, em especial, na participação das mulheres nas
atividades no campo.
Ao ler os artigos, me veio à mente os trabalhos de Silvia Federici
(2019) – feminista italiana que escreve a história das mulheres –, que
faz uma relação entre a caça às bruxas na Europa feudal e o processo
de cercamento e privatização de terras comuns no contexto da acu-
mulação primitiva do capital, quando as mulheres engajadas na pre-
servação dos comuns foram acusadas de bruxaria e queimadas vivas
em fogueiras. A autora continua seus estudos buscando entender as
causas da atual onda de violência contra as mulheres e sua relação
com as novas formas de acumulação capitalista, e identificar as mu-
danças no crescimento da resistência das mulheres contra as novas
“caças às bruxas”.
Foi este o fio condutor que identifiquei nos artigos que compõem
este Volume 5. Em tempos em que os espaços comuns têm sido cerca-
dos e duramente atacados, e as mulheres violentamente eliminadas,
tanto no urbano como no rural, continuam as Marieles e as Margari-
das a renascerem a cada dia.
São as mulheres que entram no texto de Maria de Lourdes Sche-
fler – “Encontros e desencontros: mulheres nas organizações soli-
dárias” –, onde a autora analisa as experiências da política da Econo-
mia Solidária. A autora faz uma reflexão das categorias e conceitos
feministas às análises das organizações solidárias. Identifica os fun-
damentos comuns da Economia Solidária e do feminismo, que se ar-
ticulam nos princípios de igualdade, de equidade e de justiça social,

31 31
Guimar
Maria Germani
de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

e destaca a relevância da participação das mulheres na construção


de uma “outra economia” e de um movimento contra hegemônico.
O estudo de caso apresentado por Diana Anunciação e Lídia
Cardel – “A chegada do arame farpado: um estudo de caso sobre as
estratégias das comunidades rurais no Litoral Norte da Bahia” – re-
escreve, de forma atualizada, a acumulação primitiva, trazendo à
tona o cercamento, com arame farpado, de terras das comunidades
do Litoral Norte da Bahia. A cerca de arame farpado desordena as
regras costumeiras de ocupação local, promove a perda sobre a pos-
se da terra e uso dos recursos naturais, causa rupturas e mudanças
permanentes e irreversíveis, impondo novas relações sociais e novos
recortes territoriais.
No artigo “Viabilizar para reconhecer”, Eliane Gomes dos Anjos
e Dilma de Souza da Conceição fazem uma análise sobre as mulhe-
res agricultoras familiares no Recôncavo baiano que foram aponta-
das como principais produtoras nos estabelecimentos familiares no
Censo Agropecuário 2017.
Losângela da Cunha Araújo e Nilson Weiheimer definem as mul-
heres sisaleiras como “Mulheres de fibra”. Apresentam a sua traje-
tória que vai da invisibilidade ao empoderamento das mulheres em
assentamento de reforma agrária no Território do Sisal, e cantam,
com dona Joana, que “não tem dinheiro que pague, uma mulher
sambadeira”.
Greice Bezerra Viana traz resultados de sua pesquisa e extensão
universitária e dá visibilidade às “Mulheres em Pau D’Arco”, povoado
às margens do rio São Francisco, onde a terra e o rio são espaços de
trabalho. A autora acompanha a organização feminina em torno da
horta comunitária, com resultados positivos na renda familiar e na
valorização do trabalho e da vida das mulheres.
Em “A marcha das Margaridas”, Dayane Nascimento Sobreira
apresenta a importância da construção da marcha para a história
do feminismo no Brasil. Mostra como a abertura de espaços é sem-
pre resultado de enfrentamentos e persistência e, em especial, que
as lutas específicas das mulheres não significaram o esvaziamento
32
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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

das lutas gerais da categoria. Ao contrário, convergiram numa força


poderosa da mulherada organizada que se fortalece.
Todo esse caldo fervido e temperado no processo histórico (no
caldeirão de tantas bruxas!) culmina com o artigo de Mainara Mizzi
Frota e Clóvis Roberto Zimmermann, “Feminismo camponês e popu-
lar na Bahia: narrativas de um processo em construção”, que encerra
este volume e abre novas perspectivas para a prática e para a análise
proposta.
Estes artigos produzem um encantamento ao identificar formas
de lutas, resistências e de enfrentamentos construídas coletivamen-
te, que não só trazem alterações na escala do cotidiano da vida das
mulheres do campo, mas apontam potencialidades para as cons-
truções de outras bases de relações em nossa sociedade.
Concluo este prefácio no intervalo entre o primeiro e segundo
turno das eleições presidenciais no Brasil, na expectativa de que a
esperança vença o medo e a barbárie. Porém, com a certeza de que,
independentemente do resultado, este é um caminho sem volta nem
recuos! Sigamos avante, sempre!

Guiomar Germani
Salvador, outubro de 2022

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Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

Encontros e desencontros:
mulheres nas organizações solidárias

Maria de Lourdes N. Schefler

Introdução

O artigo em pauta discute a participação das mulheres trabalha-


doras na Economia Solidária – ES, destacando-se a perspectiva de
gênero – categoria de análise formulada pelo feminismo e conside-
rada central e decisiva na análise social. Problematiza-se, particu-
larmente, a ausência dessa perspectiva, até então negligenciada nos
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Maria
Maria de de Lourdes
Lourdes N. Schefler
Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

debates sobre economia e justiça social e minimizada pelo pensa-


mento econômico hegemônico. (GUERIN, 2005). Trata-se de um de-
bate teórico, cujo objetivo, muito mais do que acrescentar qualquer
reflexão teórica nova, retoma alguns dos desenvolvimentos teóricos
do projeto feminista, com foco nas relações de poder e na divisão se-
xual do trabalho, examinadas sob essa modalidade de organização
associativa de trabalho.
No Brasil, a Economia Solidária (ES) desponta nas décadas de
1980/1990 como resultante da falência das empresas, da subuti-
lização dos solos por latifúndios e do desemprego em massa, fir-
mando-se como uma proposta voltada à superação da pobreza e
da exclusão social (SINGER, 2002). Para tanto, foram mobilizados
movimentos sociais, sindicatos, organizações não-governamentais
e grupos informais, estimulando-os à criação de empreendimentos
de natureza auto gestionária e emancipatória, nos quais trabalhado-
ras e trabalhadores descartados do mercado de trabalho poderiam
vivenciar experiências diferenciadas de organização coletiva, pauta-
das em valores e princípios de cooperação e solidariedade.
Neste artigo, a ES é considerada uma alternativa produtiva e de
trabalho que corresponde às necessidades das mulheres, fato que
se revela pela significativa e crescente participação feminina nesse
sistema, notadamente, os segmentos femininos socialmente mais
frágeis e precarizados1. Lançando mão de pesquisa bibliográfica e do-
cumental, discute-se qual o lugar dessas mulheres nas organizações

1
Em 2005, o primeiro Mapeamento de Economia Solidária no Brasil, realizado pelo
SENAES/SIES, identificou 14.954 Empreendimentos Econômicos Solidários –EES, em
2.274 municípios em todos os estados do país, dos quais 64% dos participantes são
trabalhadores e 36% são mulheres trabalhadoras, responsáveis pelos EES com menor
número de sócios, com menos de 20 integrantes (ATLAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA
NO BRASIL 2005, 2006, P. 12). O segundo mapeamento, realizado pelo SIES, entre
2009 e 2013, registrou 19.708 Empreendimentos de Economia Solidária-EES em 2.713
municípios de diferentes estados brasileiros. Destes, 54.8% operam no meio rural e
72% situam-se na região Nordeste, observando-se a ampliação da participação femi-
nina, constituído por 43,6% mulheres 56,4% homens, perfazendo uma média de 41 ho-
mens e 32 mulheres por EES os quais, integram a maioria das organizações informais
(63,2%). (BRASIL, 2016).

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36
Encontros e desencontros
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

solidárias, problematizando-se a concretização de seus objetivos, ou


seja, até que ponto as perspectivas de emancipação e “empoderamen-
to” das mulheres enunciadas pela ES – movimento tido como porta
de entrada para o alcance dessa condição – se concretizam ou contri-
buem para reprodução das relações de poder e demais mecanismos
da sua própria opressão e exploração. Consideram-se, neste sentido,
as distintas concepções de trabalho e de justiça que aproximam ou
distanciam a ES e os movimentos feministas e movimentos de mul-
heres, bem como os resultados pretendidos por esses movimentos,
quando associados à autonomia e empoderamento feminino.
As reflexões em pauta fundamentadas nas teorias feministas,
questionam a visão essencialista, ainda em vigor, utilizada como
base para justificação de questões, tais como, a desconsideração
invisibilidade, desqualificação e exclusão das mulheres nas estru-
turas de poder e decisão, em especial, na economia e no trabalho.
Sob essa visão, as diferenças biológicas são consideradas “naturais”
e utilizadas como pretexto para justificar e legitimar relações sociais
desiguais entre os sexos e definir o lugar subalterno das mulheres na
sociedade (SARDENBERG; MACEDO, 2011). A ideia é recuperar o ca-
minho percorrido pela crítica feminista aos pressupostos da econô-
mica dominante, que resultou na proposição de uma Economia Fe-
minista, fundamentada nas experiências e na realidade concreta
das mulheres, indicando possíveis intervenções para transformação
dessa realidade. (NOBRE, 2003). Ressalta-se, contudo, que dada a am-
plitude desses campos de conhecimento, as discussões em pauta têm
como propósito tão somente evidenciar a necessidade de uma re-
flexão transversal que considere e articule as categorias e conceitos
feministas às análises das organizações solidárias.
À seguir, além desta introdução, apresenta-se uma breve caracte-
rização da Economia Solidária (ES), enfatizando-se alguns dos prin-
cipais fundamentos que marcam essa nova forma de organização do
trabalho e sua relevância para as mulheres, argumentando-se em fa-
vor de análises que incluam a perspectiva de gênero e atentem para
os diferentes sentidos de justiça perseguidos tanto pela ES como
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Maria
Maria de de Lourdes
Lourdes N. Schefler
Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

pelo Feminismo. Na segunda seção discute-se a conceituação e/ou a


utilização ambígua da perspectiva de gênero e seus desdobramen-
tos, seja pelos organismos púbicos, sociedade civil ou movimentos
sociais, cujo propósito, em geral, visa “empoderar” as mulheres. Na
terceira seção, a divisão sexual do trabalho é a principal referência
crítica à concepção de trabalho sob a economia mercantil capitalis-
ta e sua ênfase à divisão dos espaços público e privado, questionan-
do-se o não reconhecimento e a desvalorização das experiências das
mulheres na produção e reprodução social da existência. Nas con-
siderações finais retoma-se brevemente o veio das discussões para
acentuar as consequências políticas da ausência do diálogo entre a
ES e as teorias feministas na vida das trabalhadoras, nos resultados
da ES e, principalmente, no fortalecimento das organizações sociais
das mulheres.

Mulheres, gênero e economia solidária: os múltiplos sentidos


da justiça

A ES é um movimento de natureza associativa, surgido no Bra-


sil dos anos de 1990, em resposta à pobreza e ao desemprego 2. Con-

2
Embora iniciada na década de 1990, a organização solidária no Brasil intensifi-
ca-se nos anos 2000, com a ampliação do número de grupos, associações, diferentes
entidades e movimentos sociais. Em 2001, é criado o Fórum Brasileiro de Economia
Solidária, com representações em todos os estados, com o objetivo de discutir os prin-
cípios, as políticas e as pautas do movimento, assim como reforçar seus princípios.
Em 2003, ao ES é reforçada com implantação da Secretaria Nacional de Economia
Solidária – SENAES incorporada ao Ministério do Trabalho e Emprego, do Gover-
no Federal, a partir do que o sistema de ES foi expandido e estruturado nos estados
brasileiros, sendo implantado um Sistema Nacional de Informações – SIES, com um
banco de dados alimentado pelas informações produzidas no 1º e no 2º Mapeamen-
to Nacional dos Empreendimentos de ES (EES), realizados, respectivamente, 2005 e
de 2009 a 3013. (BRASIL, 2016). Em 2019, mediante reforma ministerial, a Secretaria
Nacional de Economia Solidária – SENAES foi extinta e vinculada ao Ministério da
Cidadania, passando a denominar-se Secretaria de Inclusão Produtiva Urbana. Dessa
forma, a ES, até então atrelada às políticas de trabalho foi deslocada para o campo da

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Encontros etradicionais
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades desencontros

forme Singer (2002) constitui-se como uma forma alternativa de


produção e de organização do trabalho, decorrente dos impactos
da reestruturação produtiva com o desmantelamento do estado do
bem-estar social, a privatização dos serviços públicos, a desregula-
mentação financeira das empresas e a submissão das economias na-
cionais, notadamente nos países da periferia, às imposições do gran-
de capital financeiro global. As mudanças no padrão de acumulação
capitalista, gerou profunda mudanças nos modos de organização do
trabalho, resultando na ampliação de expressiva massa de desem-
pregados descartáveis ao sistema, paralelamente ao crescimento de
formas vulneráveis e precárias de trabalho. A ES representa, pois,
uma reação aos excessos do neoliberalismo e uma resposta às con-
tradições do capitalismo no campo econômico que, ante um quadro
de desemprego em massa, impulsionou a busca de um novo modelo
de sociedade capaz de superar este sistema, garantindo a todos os
cidadãos a igualdade, liberdade e segurança. O autor analisa, histori-
camente, as origens e a ocorrência dessas iniciativas associativas de
organização do trabalho, em várias partes do mundo, afirmando que
a ES ressurge hoje reinventada, despontando como um sistema dife-
renciado que contempla: “[...] a volta aos princípios, o grande valor
atribuído à democracia e à igualdade dentro dos empreendimentos,
a insistência na autogestão e o repúdio ao assalariamento [...]”. (SIN-
GER, 2002, p. 111)
Constituída pelos movimentos sociais emancipatórios e voltada
para a organização da sociedade civil, a ES valoriza a preservação
do meio ambiente natural, a biodiversidade, voltando-se para os seg-
mentos sociais oprimidos e discriminados, mediante a promoção das
comunidades empenhadas na melhoria de suas condições de vida,
contando para isso com a contribuição do Estado. Ainda segundo

assistência social, limitado à esfera urbana. Brasil/MP (2015). Ver mais em: Silva, S. P.
(2018c). A política de economia solidária no ciclo orçamentário nacional (2004- 2018):
inserção, expansão e crise de paradigma. (Texto para Discussão, n. 2434), IPEA. 2018.
Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8929/1/td_2434.pd Ace-
so em 23/04/2022

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Maria
Maria de de Lourdes
Lourdes N. Schefler
Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

esse autor, a ES poderá se constituir como uma alternativa superior


ao capitalismo, ultrapassando a dimensão econômica, visto que po-
derá ofertar ao mercado produtos e serviços com maior qualidade
e menor preço, proporcionando uma vida melhor às pessoas que
aderem a este sistema, além de possibilitar a escolha do trabalho e a
autonomia da atividade produtiva, o compartilhamento da proprie-
dade dos meios de produção e das decisões, a realização do trabalho
em posição de igualdade, eliminando a competição, bem como, a va-
lorização da produção local, dos saberes e das tradições culturais da
comunidade3. Entre estes atributos Singer (2002) privilegia a auto-
gestão que, superando a necessária condição à eficiência econômica,
vai além da inserção na produção social no enfrentamento da pobre-
za ou como uma exigência coletiva à participação nesse movimento,
configurando-se como um meio para o desenvolvimento humano, a
força da organização e resistência política das pessoas, o que para o
autor guarda outros significados: [...] “Irmanar-se com os iguais, in-
surgir-se contra a sujeição e a exploração constituem experiências
redentoras. Quando reiteradas, modificam o comportamento social
dos sujeitos [...]” (Idem, p. 22).
Guérin (2005) considera a ES relevante na vida das mulheres, afir-
mando que o movimento pode ser promotor de práticas que contri-
buam para rearticular o econômico ao social e o político, sob uma
perspectiva igualitária e democrática de uma nova forma de orga-
nização do trabalho. Entre as características que diferenciam o mo-
vimento de ES, a autora ressalta as práticas reciprocitárias, em que
se combinam dinâmicas de iniciativa e de gestão privada, cuja fina-
lidade não é o lucro mas o interesse coletivo. Dessa forma, o objetivo

3
Com respeito a ES como uma alternativa ao modelo competitivo de organização do
trabalho de todos contra todos que caracteriza as relações capitalistas, Karl Polanyi
(2000, p.51) refere-se a essas relações como a lógica do “moinho satânico”. Ao analisar
a catastrófica desarticulação produzida pela Revolução Industrial no Sec. XVIII e as
consequências sociais da fé inabalável no progresso econômico, o autor questiona:
que [...] “moinho satânico foi esse que triturou os homens transformando-os em mas-
sa? “[...] qual foi o mecanismo por cujo intermédio foi destruído o antigo tecido social
e tentada, sem sucesso, uma nova integração homem-natureza?”.

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Encontros etradicionais
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades desencontros

econômico é acompanhado por objetivos sociais, em que se busca


produzir vínculos sociais e solidariedade [...] “não uma solidariedade
abstrata e institucionalizada, mas uma solidariedade de proximida-
de; o auxílio mútuo e a reciprocidade estão no âmago da ação econô-
mica” (GUÉRIN, 2005, p. 80).
Segundo a autora, as experiências deste movimento se consti-
tuem como espaços intermediários entre privado/doméstico e a vida
pública/monetária e a não monetária, onde os Empreendimentos de
Economia Solidária – EES desempenham o papel de justiça de proxi-
midade, fundamental para o enfrentamento do caráter multidi-
mensional da pobreza, produzindo, igualmente, espaços de diálogo,
reflexão e de deliberações coletivas, como uma forma de acesso ao
mundo público, além da revalorização das práticas reciprocitárias.
A perspectiva apresentada por Guérin (2005) aponta para as poten-
cialidades desses espaços como instâncias de autoconhecimento, de
promoção de novas sociabilidades, de construção de conhecimen-
tos, de aprendizado político e de crescimento, no plano individual e
coletivo/comunitário.
Diversos autores consideram que a ES marca um novo paradig-
ma, concebendo-a como uma “outra” economia que se contrapõe
à econômica mercantil capitalista, orientada pelos pressupostos
inerentes à ciência positiva moderna. O pensamento feminista
compartilha desta posição e defende uma visão alternativa da vida
econômica, privilegiando a sustentabilidade da vida em detrimento
do lucro, além da valorização de princípios humanos éticos, onde ca-
bem valores, tais como a inclusão social, cooperação, solidariedade e
o desenvolvimento humano. A ES funda-se na concepção de que um
novo ser humano é possível, através do estabelecimento de um meio
social pautado na cooperação e solidariedade entre seus membros.
(SINGER, 2002) O feminismo, igualmente, concebe um outro mundo
possível e propõe um projeto alternativo de sociedade, mas que tam-
bém inclua a transformação da ordem patriarcal e de seu poder re-
gulador, base de sustentação e manutenção das relações de gênero.

41 41
Maria
Maria de de Lourdes
Lourdes N. Schefler
Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

À luz do pensamento de Donna Haraway (1995) as feministas


defendem um posicionamento politicamente comprometido com
a mudança social, para o que articulam teoria e práxis com o obje-
tivo de analisar e identificar estratégias de ação que correspondam
efetivamente aos problemas que afetam as mulheres. Sardenberg
(2002) caminha nessa direção, argumentando a favor da construção
de um saber “não inocente” e responsável, ou seja, a construção de
um conhecimento situado que parte das experiências das mulheres,
produzindo coletivamente reflexões e debates sobre as relações de
poder que se estabelecem entre os gêneros, produtoras da opressão e
da posição subordinada desses sujeitos.
A ES e o Feminismo, portanto, compartilham objetivos comuns,
pautados nos princípios de igualdade, de equidade e de justiça social
e um posicionamento situado na contramão da ciência econômica
moderna. Sardenberg (2002, p. 91) salienta que as práticas científicas
feministas estão fundamentadas em uma [...] “práxis política – em um
projeto de transformação das relações de gênero”, o que implica uma
ciência que articula “fatos” e “valores”, desviando-se, pois, da objeti-
vidade e neutralidade pretendidas pelo fazer científico dominante,
na instauração de “verdades científicas”. Neste sentido, acrescenta:

[...] pensar em uma ciência feminista – ou em qualquer outra possi-


bilidade de ciência politizada – requer, como primeiro passo, a des-
construção dos pressupostos iluministas quanto à relação entre a
neutralidade, objetividade e conhecimento científico [...] (Idem, p. 91)

As teorias feministas contribuíram, assim, com um outro modo


de fazer ciência, desnudando a pretensa neutralidade científica an-
drocêntrica que instituiu como sujeito universal o homem, enquan-
to representação do ser humano (HARDING, 1993). Vale lembrar,
conforme Swain (2013, p. 51) que “[...] o ser humano é histórico e as
relações societárias igualmente”, contudo, conforme acrescenta “[...]
é o masculino que encarna a imagem e representação do humano
como a fonte de toda produção e de toda criação” (Idem, p. 52). Neste
sentido, esclarece:
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Encontros etradicionais
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades desencontros

[...] que são as condições socioculturais, políticas, imaginárias que


fundam as representações do mundo e determinam as posições de-
signadas aos indivíduos, bem como seus limites de possibilidades de
ação. Todo discurso é, portanto, situado, no tempo e no espaço. As
significações se entrelaçam e tornam-se nódulos estáveis de verda-
des admitidas que permitem a diversidade de relações sociais, ou, ao
contrário, as enclausuram em restritas normas [...]. (SWAIN, 2013, p.
51)

A concepção de sexo/gênero compreende uma categoria de análi-


se para indicar a diferença sexual não mais como substrato natural,
biológico, mas como um produto da cultura, que reproduz um mo-
delo patriarcal, a partir do qual homens e mulheres são socializados.
Sob essa concepção, formulada na década de 1970, reconhece-se que a
condição feminina é constituída histórica e socialmente, evidencian-
do o caráter socialmente arbitrário da subordinação das mulheres e,
portanto, as possibilidades de transformação e transcendência dessa
condição. O gênero tornou-se, assim, uma ferramenta conceitual e
política imprescindível no desvelamento da realidade das mulheres,
reconhecidas como sujeito de direitos, podendo-se afirmar que toda
e qualquer mudança nas relações sociais encontram-se, de alguma
forma, vinculadas à dimensão de gênero, o que justifica a necessi-
dade de qualificar os diferentes espaços político-institucionais que
se propõem a endossar as lutas das mulheres contra a dominação
masculina e em prol da ampliação da cidadania feminina. Conside-
ra-se, nesse sentido, que a dominação de gênero expressa um poder
que perpassa a economia, a cultura e a política, moldando todas as
instituições que conformam o aparelho do estado e da sociedade ci-
vil. (SARDENBERG; MACEDO, 2011) Segundo essas mesmas autoras:

O gênero além de legitimar e organizar a divisão sexual do trabalho,


também estabelece: [...] a divisão sexual de direitos e responsabilida-
des, o acesso e controle sexualmente diferenciado a oportunidades
de trabalho, bem como a instrumentos e meios de produção, recur-

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Maria
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Lourdes N. Schefler
Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

sos e fontes de renda e crédito, capital, conhecimentos, educação,


instâncias decisórias etc. (SARDENBERG; MACEDO, 2011, p. 4)

Nesse sentido, as autoras advertem que os condicionamentos e


desigualdades de gênero resultam em condições de vida e trabalho
bastante distintas para homens e mulheres, que se estabelecem e
se cristalizam a partir das assimetrias que colocam as mulheres em
uma posição social subordinada. Daí porque, homens e mulheres,
mesmo situados em condições semelhantes de pobreza ou como
membros de um mesmo grupo doméstico-familiar, vivenciam essa
situação de maneira distinta, tendo, portanto, necessidades de gê-
nero diferentes, que devem logicamente ser atendidas de forma
diferenciada, através de políticas de construção da equidade (SAR-
DENBERG; MACEDO, 2011). Vale, entretanto, atentar que a apreensão
desses aspectos, vai além de enfocar exclusivamente as mulheres ou
simplesmente nomeá-las. (HARDING, 1998) Exige uma abordagem
relacional, onde as mulheres devem ser analisadas e socialmente po-
sicionadas em relação aos homens, nas relações econômicas, socio-
culturais e políticas, notadamente nas relações de trabalho.
Bila Sorj (2004) contribui no entendimento de possíveis equívo-
cos e inconsistências conceituais no uso da categoria gênero discu-
tindo, mais precisamente, os desencontros entre distintas visões e
práticas sociais, quando concebidas de forma separada, dividindo
os movimentos sociais. Para tanto, a autora analisa diferentes pers-
pectivas de justiça social, citando as denominadas “políticas redis-
tributivas” e “políticas de reconhecimento” formulada por Nancy
Fraser (2002)4. Mostra que as políticas redistributivas, inspiradas na
tradição socialista, centram suas lutas sociais por igualdade, apoia-
das na luta de classes, privilegiando a transformação dos sistemas de

4
Ver mais à respeito em: FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistri-
buição, reconhecimento e participação In: Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 63.
Out./2002, p. 7-20. Em relação a outras perspectivas de justiça,,à exemplo das “políti-
cas emancipatórias” e “políticas da vida” (Giddens, 1991) ou “políticas universalistas” e
“políticas identitárias” ver citações em Sorj (2004).

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Encontros e desencontros
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

produção, de distribuição de riquezas e da reestruturação do poder.


Já as políticas identitárias são lutas culturais, conduzidas pelos mo-
vimentos sociais pelo reconhecimento de identidades e diferenças,
pela expansão dos direitos humanos e o multiculturalismo, enfim,
são lutas pelo reconhecimento do estatuto subordinado de grupos
excluídos, a exemplo de mulheres, negros/as, indígenas, entre ou-
tros. (SORJ, 2004) Essa dupla concepção de justiça nas sociedades pe-
riféricas, como a brasileira, guarda correspondência com os padrões
assimétricos predominantes de distribuição de recursos e de poder
entre homens e mulheres, denominadas por Nancy Fraser (2006) por
“coletividades ambivalentes” que lutam por políticas de distribuição
e por políticas de reconhecimento. Isso significa tratar tais questões
de forma articulada, observando as formas através das quais a pri-
vação econômica e o desrespeito cultural se entrelaçam e se susten-
tam reciprocamente. Embora tais objetivos pareçam contraditórios
e aparentemente dilemáticos, o fato é que pessoas sujeitas concomi-
tantemente à injustiça cultural – como a justiça de gênero (oprimi-
das e subordinadas) e à injustiça econômica (exploradas e expropria-
das) – sofrem injustiças que remontam ao mesmo tempo à economia
política e à cultura.
Sorj (2004) considera fundamental a articulação desses sentidos
de justiça, mas adverte que é necessário que se tenha clareza sobre o
significado da justiça de gênero, uma vez que esta não pode se limitar
apenas às questões relacionadas a distribuição econômica, “[...] visto
que envolve uma luta contra os valores sexistas e androcêntricos dis-
seminados nas dinâmicas das instituições sociais, na esfera privada
e nas relações intersubjetivas [...]”. (Idem, p. 144).
Vale dizer que a justiça social ou justiça distributiva, por si só, não
dá conta da transformação do padrão cultural androcêntrico e sexis-
ta, que está na raiz de graves problemas que afetam as mulheres, a
exemplo da violência doméstica, assédio sexual, baixa participação
feminina nas estruturas de poder político-institucional e desigual
participação no mercado de trabalho – questões estas que são es-
pecíficas da condição de gênero dos sujeitos e não exclusivamente
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Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

consequências das desigualdades econômicas. Trata-se, pois, de


um padrão cultural que não poderá ser superado com a mera jus-
tiça distributiva, requerendo um reconhecimento específico, que se
manifesta mediante expressões da dominação de gênero e da subor-
dinação feminina, notadamente, no paradigma econômico. (SORJ,
2004).
A persistente precariedade das condições de reprodução social
e as severas privações enfrentadas por grande parte das mulheres
brasileiras indicam que não é possível pensar abstratamente em um
sentido de justiça, mas em uma luta que responda aos problemas
concretos dos sujeitos. Significa não ignorar os problemas evocados
tanto pelas políticas redistributivas como pelas políticas de recon-
hecimento, mas atuar articulando ambas as orientações de justiça.
Conforme sugere Bila Sorj (2004) “[...] O grande desafio certamente é
evitar a falsa dicotomia entre ambas (ou uma ou outra) e reconhecer
as diferenças, fazer avançar o diálogo e desenvolver estratégias de
integração de ambas as lutas [...]”. (Idem, p. 148).

Poder e empoderamento feminino so múltiplas óticas: breve


reflexão sobre o trabalho da Mulher como promotor da
autonomia e empoderamento feminino

Diversos estudos e análises feministas mostram que, mais que


o desconhecimento, são as resistências em abrir mão do poder e
dos privilégios que mantém a sub-representação feminina nas ins-
tituições e organizações sociais. Apoiando-se nos pressupostos pa-
triarcais que definem e hierarquizam as relações de gênero, as mul-
heres não participam da estrutura política e de poder e, mesmo na ES
são mantidas em posições de decisão muito aquém da sua expressiva
participação nesses coletivos
A invisibilidade e exclusão das mulheres nas instâncias de poder
é histórica, perpassa o campo econômico, prolongando-se até os dias
46
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Encontros e desencontros
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

atuais. Até o final da década de 1960, as referências às mulheres nas


políticas públicas enfocavam o seu papel reprodutivo, compatível
com as suas funções de mães e esposas, para quem eram destina-
das políticas de bem-estar, à exemplo da educação, saúde, economia
doméstica. A participação e contribuição econômica das mulheres
tem lugar nas políticas públicas no início de 1970, ainda atreladas
ao ideário econômico desenvolvimentista. (PRÁ, 2010)5 Desde então,
o projeto feminista amplia-se e se consolida, questionando as defi-
nições de políticas públicas que contemplam a inserção econômica
das mulheres, bem como as pautas da agenda estatal que seguem a
lógica da modernização econômica e da democracia de cunho libe-
ral. Nesse percurso, as feministas vêm se dedicando à produção de
um arcabouço conceitual e teórico-metodológico, de forma a respal-
dar cientificamente as lutas pelo reposicionamento desses sujeitos
na economia e nas demais dimensões do social. A implantação e
consolidação das políticas liberais, globalmente e no país, têm exi-
gido um redobrado empenho da crítica feminista, confrontada con-
tinuamente com o receituário neoliberal, e a crescente introdução
e disseminação de noções e estratégias funcionais, sem que sejam
questionadas e alteradas as relações de gênero e de poder6 . Como

5
Os questionamentos sobre o trabalho das mulheres associado aos processos de des-
envolvimento devem-se à pioneira publicação de Ester Boserup, Intitulada Womens’s
Role in Economic Development”, em 1970, considerada um marco na análise sobre o
papel da mulher no desenvolvimento. A autora desafiou os pressupostos da moderni-
zação econômica, evidenciando que as análises e intervenções sob esta ótica, resulta-
vam, em muitos casos, na deterioração das condições de vida das mulheres, afetando
seu status e determinando sua exclusão de atividades produtivas que já praticavam
em suas comunidades. Ver mais em BENERÍA, Lourdes. Desigualdades de clase y de
género y el rol de la mujer en el desarrollo económico: implicaciones teóricas y prác-
ticas. Mientras Tanto, n. 15, p. 91- 111, 1983.
6
No Brasil e globalmente, à partir da década de 1970, são introduzidas e implemen-
tadas de forma decisiva as ideias liberais, como forma de enfrentamento das crises de
acumulação do capital e como meio de impulsionar o capitalismo, via dinamização
da economia de mercado. Desde então, verifica-se uma adesão incondicional ao credo
neoliberal que atribuiu total protagonismo ao mercado como regulador da produção
e distribuição da riqueza, reservando ao Estado o papel subsidiário de garantir as
condições para a reprodução estável do sistema capitalista (estado mínimo). Tais me-
didas crescentemente intensificadas têm resultado no desmonte e mercantilização

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parte deste receituário encontram-se as noções de qualidade total e


eficiência, entre outras, surgidas em paralelo ao conceito de empo-
deramento, que, em relação ás mulheres, consiste em uma estratégia
que permitem a promoção social desses sujeitos. As análises de An-
drea Cornwall (2013) ressaltam o poder de mobilização dessa estra-
tégia, vista como mais uma saída frente aos problemas da injustiça
social, da discriminação e da falta de oportunidades que afetam as
mulheres. A autora ressalta que o empoderamento tem sido ampla-
mente apropriado por diferentes agentes dos setores públicos e da
sociedade civil, mediante múltiplas interpretações que se filiam às
distintas correntes de pensamento, resultando em ressignificação e
destituição do sentido político deste termo. Sardenberg (2018) com-
plementa, afirmando que o empoderamento é assimilado sob dife-
rentes visões, mas as de ordem política são as mais conflitantes, visto
que se contrapõem com a perspectiva feminista, fundamentada na
crítica das mulheres às relações de poder em vigor, principal foco
das lutas voltadas para o desmonte do patriarcado e a transformação
da desigual posição social das mulheres. A esse respeito Andrea Cor-
nwall (2013) chama a atenção para a perspectiva do empoderamento
das mulheres, no âmbito das agências internacionais de desenvolvi-
mento e demais setores coorporativos que contemplam as políticas
de gênero, onde a omissão da dimensão do poder nessas abordagens,
anula o sentido de justiça e equidade ensejado pelas mulheres. Para
essa autora tais abordagens trazem uma perspectiva conciliatória,
que consiste em enfrentar as persistentes desvantagens sociais das
mulheres, mediante a capacitação desses sujeitos para que exerçam
“agency” (ou agenciamento), perspectiva que implica em assertivida-
de. A autora correlaciona esse tipo de estratégia, que denomina como
“empoderamento light”, à concepção de “simulacro”, desenvolvida
pelo teórico francês Jean Baudrillard (1981), que vem a ser:

das políticas públicas, notadamente aquelas voltadas à proteção social, além do des-
mantelamento das relações de trabalho, (flexibilização, desemprego e precarização do
trabalho) atingido sobretudo as mulheres e segmentos socialmente mais vulneráveis.

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Encontros e desencontros
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[...] uma cópia de algo com uma aparência desbotada em relação a


coisa real, mas extremamente em falta em semelhança substantiva
no que diz respeito ao seu conteúdo. De fato, “empoderamento light”
parece com a coisa verdadeira. Soa como coisa verdadeira – toma
emprestadas palavras do léxico feminista, embora quase sempre em
combinações que o destituem de sua força original [...]. (CORNWALL,
REVISTA FEMINISMOS Vol.1, N.2, 2013)

O fato é que, em grande parte das intervenções que contem-


plam as mulheres, o empoderamento vem sendo interpretado como
sinônimo de autonomia econômica ou como uma decorrência do
engajamento das mulheres ao mercado de trabalho e demais alter-
nativas de produção e geração de renda. Sem dúvida, a autonomia
econômica das mulheres é uma das condições necessárias ao seu
processo de empoderamento, constituindo-se, em muitos casos, uma
pré-condição à interrupção do ciclo de violência familiar, fenômeno
recorrente no cotidiano das mulheres. A desigualdade econômica
entre homens e mulheres situa-se, portanto, entre as variáveis pre-
ditivas da violência de gênero, visto que a manutenção do vínculo
de dependência, limita a autonomia das mulheres e respalda simbo-
licamente o sentido de propriedade e de domínio que subjaz às re-
lações de gênero. (SCHEFLER, 2013). Entretanto, o peso atribuído a
essa dimensão econômica na transformação da vida das mulheres,
além de desmesurado e fictício, denota desconsideração ou mesmo
desconhecimento das raízes patriarcais que dão sustentação e sob as
quais se assentam as relações de gênero. Cabe lembrar que a autono-
mia econômica em si, não transforma e nem anula as normas, orga-
nizações e instituições sociais, atravessadas pelas relações de poder
que mantém e reproduz as desigualdades de gênero. A independên-
cia econômica das mulheres, por certo, é um passo relevante nesse
processo, mas não garante o empoderamento.
Sob esse entendimento, argumenta-se que toda e qualquer estra-
tégia de intervenção na perspectiva de gênero, não pode prescindir
da análise das relações de poder, categoria que perpassa as práti-
cas sociais e políticas, movendo a vida de homens e mulheres nas 49
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diferentes dimensões do social. Nas análises sob esta perspectiva,


consideram-se os macro e os micro poderes, que se constroem na
vida cotidiana, perpassando todos os campos sociais, rearticulando e
se inter-relacionando a outras categorias e dimensões do social, além
do gênero, que dão forma e sustentação às práticas políticas que mo-
vem a sociedade, a exemplo da raça/etnia, idade/gerações, classe so-
cial, sexualidades, dentre outras. Afirma-se com Agnes Heller (1987)
que os fatos da vida acontecem no cotidiano de homens e mulheres,
sendo este o lócus da prática política e o espaço privilegiado para o
exercício do poder.
A analítica foucaultiana contribui para o entendimento dos mi-
cropoderes 7. Esta dimensão foi apropriada pelo feminismo desde
sua reivindicação de que “o pessoal é político”, sob o argumento de
que as relações pessoais são também relações de poder, logo, na vida
real, a separação entre o público e o privado, não tinha qualquer base
de sustentação. (SARDENBERG, 2004) Essa posição é reforçada por
Okin quando ressalta:

Nós queremos dizer, primeiramente, que o que acontece na vida pes-


soal, particularmente nas relações entre os sexos, não é imune em
relação à dinâmica de poder, que tem tipicamente sido vista como a
face distintiva do político. E nós também queremos dizer que nem o
domínio da vida doméstica, pessoal, nem aquele da vida não-domés-
tica, econômica e política, podem ser interpretados isolados um do
outro [..]. (Idem, 2008. p. 314)

Sardenberg (2004) complementa, lembrando que a sociedade


é o espaço da produção e da reprodução, das realizações pessoais,
das disputas e conflitos interpessoais e coletivos, onde eclodem os

7
A partir das formulações de Michel Foucault, entende-se que o poder produz sa-
beres e, através de um conjunto de técnicas impostas à sociedade atua produzindo e
reproduzindo mais poder. Esta concepção de poder não se atém ao aparato estatal e
institucional, compreendendo, pois, relações multidirecionais que não se localizam
em nenhum ponto específico da estrutura social e não é propriedade de ninguém,
espraiando-se e reproduzindo-se por todo o corpo social.

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Encontros e desencontros
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antagonismos e, as forças políticas em presença transformam esse


espaço em um palco de lutas e afirmação do poder e isso ultrapassa a
esfera pública, perpassando os âmbitos privados, a exemplo da famí-
lia. A perspectiva de poder que permite a apreensão desta realidade,
requer:

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali,
nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma ri-
queza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas
malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição
de exercer esse poder e de sofrer sua ação, nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centros de transmissão [...] (FOU-
CAULT, 2004 p. 193)

Em sua genealogia ou analítica do poder Michel Foucault (2004),


busca examinar as conexões que o poder estabelece com as ações da
vida social e cultural, indicando a chave para se pensar o que move
a ausência, limites e restrições ao poder/empoderamento feminino8.
O poder aparece como uma forma de saber, constituindo-se uma
atividade que se exercita, constantemente, penetrando nas práticas
sociais cotidianas que envolvem as sociabilidades e todo o processo
de produção cultural, enraizando-se na cultura como uma atividade
desenvolvida por entre as relações sociais, como uma prática positi-
va. Isso significa que homens e mulheres, como sujeitos históricos,
vivenciam relações sociais na vida cotidiana, nos espaços públicos e
privados, constituindo-se em receptáculos e, ao mesmo tempo, pro-
dutores e condutores do poder.

8
Foucault encontra na sua genealogia do poder – entendida como abordagem histó-
rica do poder – o elemento explicativo da produção dos saberes. A concepção de poder
em Foucault tem origem em Nietzsche (1844-1900) onde o poder é visto como uma
atividade individual do homem e vincula-se à ideia de força e potência. Aqui o termo
força não é sinônimo de violência, assim como a ideia de potência não está associada
à opressão, ao contrário, está associada à ideia de libertação, donde vem a possibilida-
de de resistência. (DREYFUS; RABINOV, 2013)
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O que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é o fato de


que ele não pesa como uma força, “[...] mas que de fato ele permeia,
produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discursos [...]”.
(FOUCAULT, 2004, p. 8) O autor reafirma que, em última análise, o
poder produz saber e não há relação de poder sem constituição co-
rrelata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não
constitua, ao mesmo tempo, relações de poder. Cabe observar que,
no poder do saber, os processos e as lutas que atravessam o poder e
que o constituem, determinam as formas e os campos possíveis do
conhecimento. Nessa relação recíproca, a questão do poder torna-se
um instrumento de análise capaz de explicar a produção dos saberes,
os quais têm uma relação com a moral dos povos, com os seus an-
seios e com os seus códigos, assumindo o regime de verdade de cada
sociedade, cujo ethos social consiste no modo de sujeição ou subjeti-
vação dos indivíduos.
Contudo, admitindo-se o poder como uma relação social, abre-se
a possibilidade de um contra exercício ao poder. Isso significa que as
relações de poder abrigam uma potencial reação, com possibilidades
de enfrentamento por parte daqueles/as que estão sofrendo impo-
sição de poder. Nesse sentido, o autor apresenta uma chave de inter-
pretação histórica, pautada em procedimentos de poder próprios das
sociedades modernas, que funciona [...] “não mais pelo direito, mas
pela técnica, não pela lei, mas pela normalização, não pelo castigo,
mas pelo controle e que se exercem em níveis e formas que extra-
vasam do estado e de seus aparelhos [...]”. (FOUCAULT,1988, p. 100)
Envolvendo dominadores e dominados, este poder supõe que as co-
rrelações de forças múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos
de produção, como nas famílias, nos grupos restritos e instituições,
servem de suporte a amplos efeitos de clivagens que atravessam o
conjunto do corpo social. (FOUCAULT,1988)
A perspectiva de poder em Foucault (1988) pressupõe, assim, um
poder que não é essencialmente repressivo, ao contrário, o poder é
igualmente produtivo, ele incita, suscita, produz, logo, admite resis-
tências, no plural, as quais, por definição, não podem existir a não ser
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no campo estratégico das relações de poder. Sob essa visão de poder


admite-se que numa relação de forças, a força afetada não deixa de
ter uma capacidade e uma possibilidade de resistência. Isso é dado
pelo próprio caráter relacional das correlações de poder, reafirmado
pelo autor quando diz que “[...] não existe, com respeito ao poder, um
lugar da grande Recusa [...]”. (FOUCAULT, 1988, p. 106)
Como se pode depreender, o poder é a peça-chave para o empo-
deramento feminino, conceito que, como indica o próprio nome,
dele deriva, denotando a sua origem emancipatória. Magdalena
León (1997) comenta que o uso frequente nas experiências práticas
das mulheres, revela ambivalências, contradições e paradoxos que
indicam desconhecimento do conceito. Embora indiquem uma mu-
dança desejável visando o empoderamento dos despossuídos do po-
der para que adquiram o controle de suas vidas, habilidades para
realizar coisas e definição de suas próprias agendas, não indicam
em que implicam tais mudanças, ou seja, não precisam seu signifi-
cado. A autora compreende com Iris Young que o significado do em-
poderamento para o feminismo implica em uma alteração radical
dos processos e estruturas que reproduzem a posição subordinada
das mulheres como o gênero. Neste sentido, reconhecendo-se que os
problemas e interesses das mulheres não são homogêneos, deve-se
lançar mão de uma estratégia considerando os interesses práticos e
os interesses estratégicos das mulheres, referidos, respectivamente,
à condição social e à posição social das mulheres, dimensões que de-
vem ser vistas de forma associada. (LEÓN, 1997). Cabe, pois, entender
que a condição diz respeito aos aspectos materiais e práticos reque-
ridos para um adequado nível de vida, enquanto a posição refere-se
ao status social da mulher em relação ao homem, os quais expres-
sam as relações de poder9. A transformação da posição social implica
em romper o processo de subordinação da mulher, e isso requer a

9
Cabe lembrar que as necessidades práticas das mulheres se incluem “formalmente”
nas leis universalistas previstas na Constituição Brasileira que garantem um conjun-
to de medidas e serviços essenciais básicos necessários a um adequado nível de vida a
todo cidadão e cidadã brasileira (trabalho, educação, saúde, segurança etc.).

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consciência do seu lugar social, de organização e luta política para


transformá-lo. A dificuldade consiste em não diferenciar os dois ní-
veis de necessidades e proclamar equivocamente o empoderando das
mulheres, quanto, na verdade, não houve qualquer alteração nas re-
lações de gênero ou na posição de igualdade/ equivalência de poder
entre gêneros. Entretanto, o conceito de potencial transformador,
significa que os interesses práticos podem se transformar em estraté-
gicos, ou seja, serem potencialmente utilizados nesse sentido, desde
que imprimindo um caráter político, sem o que o empoderamento
não corresponde à perspectiva feminista. Este é o caso das ações des-
envolvidas na visão do denominado empoderamento neoliberal, que
enfatiza a autonomia econômica das mulheres quando inseridas em
processos de geração de renda, como se esta ação, por si só, resul-
tasse em uma ação empoderadora. Esta ação pode ser considerada
potencialmente empoderadora, desde que, além de intervir na con-
dição de sobrevivência das mulheres, sejam desenvolvidas, paralela-
mente, ações participativas mobilizadoras e formadoras que fomen-
tem o processo de conscientização e organização para a ação coletiva
das mulheres. (SADENBERG, 2018, p. 25) A ideia é abrir espaços que
garantam às mulheres oportunidades de vivenciarem processos de
construção de autonomia, não só econômica, mas também social e
política, que visem o desmonte das estruturas patriarcais. Essa abor-
dagem enfatizando o ativismo político das mulheres, pressupõe mu-
danças no plano individual e da ação coletiva. Neste sentido Kergoat
(2014, p. 21) adverte que “[...] a emancipação coletiva existe apenas se
há emancipação individual, a capacidade de agir, quando ela existe,
desenvolve-se simultaneamente no nível das individualidades sub-
jetivas e do coletivo composto por essas individualidades [...]”. De-
pende, pois, da força da organização das mulheres, a construção de
poderes livres das hierarquias institucionalizadas e das assimetrias
estruturais e legitimadas do poder.

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Mulheres, trabalho e poder: o sentido da separação das


esferas da vida

Conforme já abordado, o gênero é um importante operador ana-


lítico e crítico de dimensões fundamentais da vida das mulheres, po-
rém o uso distorcido deste conceito, dá lugar a argumentações ambí-
guas e despolitizadas, gerando profundas inconsistências analíticas,
como é o caso de abordagens que, por vezes, diluem as desigualdades
na diferença, incorrendo em relativismos que mascaram a realidade
a ser revelada. Já outras abordagens seguem reproduzindo o mode-
lo econômico hegemônico e ignorando as experiências históricas
das mulheres, ou mesmo argumentando em favor de uma posição
conciliatória de complementaridade entre os sexos. Hirata e Kergoat
(2003) mostram que tais argumentos fundamentam-se na teoria
do vínculo social, uma conceituação da divisão sexual do trabalho,
pautada na solidariedade orgânica, na complementaridade, con-
ciliação, coordenação, parceria, especialização e divisão de papéis.
Sob essa visão falaciosa, as relações sociais entre homens e mulheres
são igualitárias, com funções e papeis sexuais bem definidos e que
se complementam: homem provedor/esfera pública, mulher/esfera
privada/vida familiar. A persistência dessa visão resulta em reforço
e legitimação dos papeis sociais e das posições de subordinação e
opressão das mulheres10.

10
Esta realidade é atual e recorrente, como indica a pesquisa, realizada pelo IPEA com
base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), no período de
2001/2015. As análises revelam que neste período, além do trabalho profissional, no
espaço público, a participação das mulheres no domicílio é substancialmente maior
que a dos homens, tanto nos afazeres domésticos, quanto na categoria cuidados. A
proporção de mulheres que realizam afazeres domésticos ficou acima de 91%, já en-
tre os homens, ela variou de 45% em 2001 para 55% em 2015. Análises mais recentes
de 2016/2017 mostram que a participação das mulheres nos afazeres domésticos é
de a 94%, enquanto para os homens é 79%. As mulheres dedicam 40% do seu tempo
aos cuidados, contra 28% dos homens. A maior diferença entre os sexos (37 pontos
percentuais) relativa às atividades domésticas aparece em tarefas que envolvem pre-
parar, servir alimentos, lavar louças e cuidar da limpeza e manutenção de vestuário:

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A divisão sexual do trabalho, discutida nesse texto, filia-se à teoria


da relação social que permite identificar as bases materiais da cons-
tituição das relações de gênero, em articulação com as dimensões de
classe, raça/etnia, entre outras. Essa categoria de análise possibilita
a apreensão do que de fato fundamenta a desigual distribuição de
responsabilidades na produção e reprodução social da existência,
bem como o lugar social que homens e mulheres ocupam nesses pro-
cessos. De acordo com Souza Lobo (1991) a divisão sexual do trabalho
assume formas conjunturais e históricas, construindo-se como prá-
tica social, seja reproduzindo tradições que indicam tarefas masculi-
nas e femininas, seja recriando novas modalidades da divisão sexual
de tarefas. Para esta autora, a divisão sexual do trabalho não é tão
somente uma consequência da distribuição do trabalho por ramos
ou setores de atividade, senão também, o princípio organizador da
desigualdade no trabalho.
A separação entre público e privado, produção e reprodução re-
sulta de uma visão essencialista que marca as representações de
gênero e legitima a divisão sexual do trabalho. Este pensamento,
conforme Susan Moller Okin (2008) persiste contemporaneamente,
constatando-se que inúmeros/as teóricos/as continuam mantendo a
tradição das esferas separadas, ignorando a família, a divisão sexual
do trabalho, a dependência econômica e a estrutura de poder que a
caracterizam11. Segundo a autora é fundamental compreender: “[...]
que as desigualdades dos homens e das mulheres no mundo do tra-
balho e da política são inextricavelmente relacionadas em um ciclo
causal de mão dupla às desigualdades no interior da família”. (Idem,
p. 314)

(IPEA, 2018). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_


content&view=article&id=34450
11
Okin (2008) observa que o pensamento da separação público e privado é histórico,
compartilhado por pensadores como Locke, Rosseau, Engels, por exemplo, que já legi-
timavam o poder masculino na esfera doméstica, sob o argumento da necessidade de
uma razão imparcial no âmbito do estado.

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A divisão sexual do trabalho além de conter as dimensões de


opressão/dominação, está contida na divisão social do trabalho, daí
porque Hirata e Kergoat (2003 p.111) insistem que é preciso falar de
“opressão” e de “dominação” e não apenas de “desigualdade” ou “in-
justiça” quando a referência é a situação das mulheres no trabalho
em comparação aos homens12. As autoras acrescentam que: [...] “a
divisão sexual do trabalho é o suporte empírico que permite a me-
diação entre as relações sociais (abstratas) e práticas sociais (concre-
tas). [...] “A divisão sexual do trabalho está no âmago do poder que os
homens exercem sobre as mulheres”. É preciso, pois, atentar, confor-
me Kergoat (1986, p. 21) “[...] que toda relação social tem um funda-
mento material e não apenas ideológico [...]” e isso significa que:

[...] “as relações sociais de sexo têm uma base material (a divisão
sexual do trabalho) embora tenham, também, uma base ideativa:
qualquer poder, dizia Foucault, precisa de um saber; neste caso, o
naturalismo serve de ideologia de legitimação, de “doxa de sexo”.
Elas podem ser periodizadas, fazem a História assim como as outras
relações sociais. Essas relações sociais se fundamentam primeiro, e
antes de mais nada, sobre uma relação hierárquica entre os sexos;
trata-se mesmo de uma relação de poder, de uma relação de “classe”
- e não de um simples princípio de “classificação”. (KERGOAT, 2002,
p. 51)

A divisão sexual do trabalho, conforme Hirata e Kergoat (2007)


configura-se com base em dois princípios organizadores do trabal-
ho, o princípio de separação (há trabalhos de homens e trabalhos de
mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale”

12
Quirino (2015) lembra que a opressão e a exploração são conceitos distintos, ori-
ginados em diferentes tradições teóricas: A opressão, atitude de se aproveitar das
diferenças que existem entre os seres humanos para colocar uns em desvantagem em
relação aos outros, gera uma situação de desigualdade de direitos, de discriminação
social, cultural e econômica. A exploração, por sua vez, é um fato econômico assenta-
do sobre a submissão de um ser humano ao outro e dá origem à divisão da sociedade
em classes.

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mais que um trabalho de mulher), os quais são válidos para todas as


sociedades conhecidas. Porém, salientam as autoras, a divisão sexual
do trabalho não é um dado imutável, contém uma grande plastici-
dade e apresenta modalidades concretas que variam no tempo e no
espaço, logo, pode ser alterada, desde que se superem as visões deter-
ministas, refletindo-se sobre suas variantes. Isto implica em analisar
“[...] os fenômenos da reprodução social com vistas aos deslocamen-
tos e rupturas, bem como a emergência de novas configurações que
tendem a questionar a existência dessa divisão [...]”. (HIRATA; KER-
GOAT, 2007, p. 56)
Entretanto, cabe lembrar com Quirino (2015, p. 231) que o gênero
é um conceito relacional, “[...] característica que permite considerar
que, tanto o processo de dominação quanto o de emancipação, envol-
vem relações de interação, conflito e poder entre homens e mulheres
[...]”. Isso significa um difícil processo de resistências, lutas e disputas
por mudanças de posições.
Cabe observar que, desde a década de 1970, as mulheres já con-
testavam a visão que se apoiava no sexo biológico para justificar a
separação das esferas sociais, demonstrando que essas ações são
construções sociais que resultavam de relações patriarcais arcai-
cas e passíveis de alterações e mudanças. O conceito de trabalho
foi formalmente interpelado, à partir dos estudos de Danielle Ker-
goat, entre outras pesquisadoras, que procederam a desconstrução/
reconstrução deste conceito, introduzindo a dimensão sexuada do
trabalho, notadamente, o trabalho doméstico e a esfera da repro-
dução, até então ignoradas nas análises sobre o trabalho. Essa recon-
ceituação abrangeu também o trabalho não-assalariado, não-remu-
nerado, não-mercantil e informal. Trabalho profissional e trabalho
doméstico, produção e reprodução, assalariamento e família, sendo
a classe social e o sexo social categorias consideradas indissociáveis.
(HIRATA; ZARIFIAN, 2003) Desde então, referenciada pelo feminis-
mo materialista, Kergoat (2021) formulou a concepção de coexten-
sividade das relações sociais para designar “[...] o fato de que as re-
lações sociais se produzem e se reproduzem umas às outras [...]”, ao
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que acrescentou o conceito de consubstancialidade para indicar “[...]


o nó formado pelas relações sociais, seu entrecruzamento dinâmico
[...]”, conceito que, segundo a autora permite “[...] pensar o mesmo e
o diferente em um único movimento, neste caso, as relações sociais
de sexo, classe e raça [...]” (KERGOAT, 2021, p. 110-111)13. Nas palavras
da autora:

[...] a consubstancialidade, significando “a unidade da substância en-


tre três entidades distintas”, associada à coextensividade, per-
mite dar conta do fato de que essas três relações sociais, ainda que
obviamente distintas, possuem, no entanto, propriedades comuns e,
sobretudo, se entrelaçam de tal forma que nenhuma relação so-
cial pode ser pensada independentemente das demais, sob pena
de que elas sejam reificadas, que elas se constroem e se “fabricam”
mutuamente [...] (KERGOAT, 2021, p. 110-111)

Tais conceitos funcionam como operadores explicativos da inter-


conexão das relações de classe e sexo, indicando possíveis caminhos
que permitem a articulação das diferentes concepções e da ação po-
lítica feminista e anticapitalista14. A consubstancialidade possibilita
que se apreenda como se dá a interpenetração constante das relações
sociais, que no modo de produção capitalista é construído sobre a se-
paração dos lugares e tempos da produção e da reprodução; quando
se sabe que o denominado “trabalho doméstico”, é uma forma his-
tórica particular do trabalho reprodutivo, inseparável da sociedade
salarial, e isto significa que tais relações sociais são consubstanciais.
(KERGOAT, 2021) Avançando nessa reflexão, a autora diz ainda que

13
Cabe aqui atentar que os conceitos “sexo social” e ”relações sociais de sexo”, referi-
dos por algumas autoras vinculam-se a uma tradição francófona, enquanto no Brasil
predomina a utilização do conceito “Gênero”, termo de origem anglo-saxônica para
indicar relações sociais entre homem e mulher.
14
A interseccionalidade constitui-se igualmente uma estratégia analítica feminista
eficaz que permite apreender o entrelaçamento das dimensões de classe, gênero e
raça e a apreensão dos seus efeitos na vida das mulheres. Ver mais em CRENSHAW,
Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação
racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 01, 2002.

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esta ferramenta conceitual permite a identificação não só das dife-


renças entre os grupos, mas também internamente aos grupos, reve-
ladoras de contradições vivas e operacionais, indicando que homens
e mulheres podem estar tanto em uma relação antagônica, quanto
em uma relação de solidariedade necessária. Isso significa que “[...]
há um ponto de ancoragem na materialidade das lutas e não apenas
na dominação [...]”. (KERGOA, 2021, p. 111)
A entrada massiva das mulheres como assalariadas no mercado
de trabalho, a partir da segunda metade do século XX, ou produzin-
do informalmente no campo ou na cidade, motivadas, principal-
mente, pela necessidade econômica, significa acúmulo de jornadas
de trabalho doméstico e não doméstico. A presença das mulheres no
mundo público do trabalho mercantil, dito produtivo, não as isen-
tou e não alterou sua responsabilização pelo trabalho reprodutivo
na esfera privada. Vale dizer que a significativa e crescente partici-
pação das mulheres nas duas esferas jogou por terra a anacrônica
separação entre público/privado. Hirata e Zarifian (2003) referem-se
justamente à falta de sentido da separação das esferas da vida, consi-
derando-se o tempo de trabalho dispendido pelas mulheres na reali-
zação das atividades domésticas e não domésticas.

[...] os limites temporais se dobram e redobram, trabalho doméstico


e profissional, opressão e exploração, se acumulam e se articulam, e
por isso elas estão em situação de questionar a separação entre esfe-
ras da vida – privada, assalariada, política – que regem oficialmente
a sociedade moderna. (HIRATA; ZARIFIAN, 2003, p. 67).

Recuperando a construção histórica do conceito de trabalho, os


autores demonstram a interdependência entre o trabalho produtivo
e reprodutivo (tido como doméstico), ambos necessários à produção
do viver, indicando a premência de reconceituação da concepção do-
minante do trabalho. Nesse sentido, o trabalho como produção do
viver, não deve ser considerado como:

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[...] um efeito secundário da valorização do capital, ou como pura sa-


tisfação das necessidades vitais, mas como um questionamento so-
cial que permite estabelecer uma ponte entre as diferentes esferas de
atividade: privada, assalariada e política (HIRATA; ZARIFIAN, 2003,
ibid ).

Sob essa visão, as análises sobre o mundo do trabalho, envolvendo


homens e mulheres, não podem prescindir da divisão sexual do tra-
balho, categoria que permite desvelar os lugares sociais atribuídos
a homens e mulheres, articulando o trabalho mercantil (assalariado
ou não) e o trabalho doméstico e de cuidados (remunerado ou obri-
gatório e não remunerado), apreendendo a sobrecarga de trabalho, a
opressão e a exploração econômica das mulheres.
As feministas percorreram esse caminho teórico-conceitual para
formular os princípios de uma economia includente, uma Economia
Feminista (EF) – concebida contemporaneamente como uma corren-
te crítica de pensamento que procura tornar visíveis as dimensões de
género nas dinâmicas econômicas. Esta análise apoia-se numa defi-
nição ampla da economia, questionando o enquadramento mercan-
til do trabalho, sob a concepção neoclássica da economia e discute
a relação conflituosa capital-vida para ressaltar o papel do trabalho
doméstico e de cuidados como uma das questões centrais à sustenta-
bilidade da vida e à produção do viver. Para tanto, as teóricas e econo-
mistas feministas vêm construindo um arcabouço teórico-conceitual
crítico ao capitalismo e ao patriarcado, que segue na contramão des-
te sistema centrado unicamente nas relações de produção monetiza-
das e que relegam as demais relações cruciais ao desenvolvimento
da vida. Ante a insustentabilidade do sistema econômico atual, pro-
põem a substituição do objetivo do lucro pela centralidade da vida15.

15
À respeito dos questionamentos sobre a economia neoclássica e a reconceituação do
trabalho na perspectiva feminista, ver as formulações de Cristina Carrasco, Antone-
lla Picchio, Amaia Orosco, além das contribuições de Renata Moreno, Mírian Nobre,
Nalu Farias, entre outras integrantes da “Sempre Viva Organização Feminista-SOF,
organização que tem se notabilizado pela sua prática teórica e política, interpelando

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Considerações Finais

Sem dúvida, a ES figura-se como a proposta alternativa que mais


se distancia das formas capitalistas de produção e que mais se apro-
xima do ideal de um meio social pautado na cooperação e solidarie-
dade entre seus membros. Contudo, a idealização deste meio social
exclui as mulheres, ao que se atribui, em parte, ao não reconheci-
mento dos pressupostos feministas. Para Moreno, Godinho e Faria,
(2020, p. 128) esta é uma questão ainda “[...] não superada no âmbi-
to da esquerda, que a reapresenta sobre novas roupagens, tentando
restringir a ação das mulheres ao cultural/simbólico”. As autoras
argumentam que, apesar do crescimento do feminismo e das lutas
antirracistas, novamente a primazia da classe persiste, tentando re-
duzir o feminismo ao enfrentamento da violência e o movimento
negro ao identitário, ou seja, a permanência da classe no econômico
e o patriarcado e o racismo no cultural. Contudo, ao pretender “[...]
transformar as dinâmicas de produção e reprodução articuladas, o
feminismo anticapitalista e antirracista se apresenta como parte de
um projeto para transformar toda a engrenagem do sistema, e não só
a cultura.” (MORENO; GODINHO; FARIA, 2020, p. 128)
O fato de grande parcela das mulheres brasileiras, notadamente
as mulheres negras, vivenciarem dificuldades de acesso ao trabalho
e aos direitos da cidadania, enfrentando condições de vida precari-
zadas, requer uma perspectiva de justiça abrangente que recubra
suas necessidades gerais, ou seja, tanto aquelas relacionadas às con-
dições de sobrevivência, quanto às demandas específicas dos grupos
identitários, em entrelace, atentando-se para as raízes históricas

o padrão econômico capitalista, androcêntrico e racista e sua concepção de trabalho


excludente em relação às mulheres. Articulando-se a diversos movimentos e organi-
zações de mulheres, em nível nacional e internacional, a SOF integra a RENTE-Rede
Latino-Americana Mulheres Transformando a Economia e a Rede Economia e Femis-
mo, a Macha Mundial das Mulheres e o Fórum Social de Economia Solidária.

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produtoras dessas desigualdades e as perspectivas de superação da


divisão sexual do trabalho perpetuada pelo sistema capitalista.
No caso da ES, por exemplo, isso significa a adoção de uma aná-
lise pautada na consubstancialidade das relações sociais, onde as
mulheres mais empobrecidas, notadamente as mulheres negras da
classe trabalhadora do campo e da cidade, seriam contempladas me-
diante a promoção de “[...] uma perspectiva de mudanças articuladas
nas estruturas de produção e reprodução, enfrentando a materiali-
dade das relações sociais de classe, gênero e raça [...]”. (id, p, 125). Tais
mudanças requerem naturalmente um tratamento diferenciado da
perspectiva liberal de valorização dos direitos individuais, que exal-
tam a conjugação do trabalho doméstico e trabalho profissional,
considerada uma alternativa que permite igualdade de oportunida-
des de trabalho para as mulheres. Sob essa visão, enquadram-se as
crescentes iniciativas que destacam a capacidade empreendedora
feminina, mantendo-se, contudo, inalterada sua responsabilidade
na conciliação entre trabalho e família. Ademais, concorda-se com
Moreno, Godinho e Faria (2020) quando advertem sobre o risco de
convergência entre a lógica da meritocracia, característica da racio-
nalidade neoliberal, e o discurso do empoderamento individual, dis-
sociado, uma vez mais, das dinâmicas das relações sociais. Essa pers-
pectiva difere do processo emancipatório das mulheres que, à luz de
Kergoat (2014, p. 21) depende da “[...] combinação entre a consciência
de gênero, a consciência de classe e a consciência de raça. Sob esse
entendimento, cabe atentar para a forma como as relações sociais
são analisadas (isoladas/hierarquizadas ou como consubstanciais)
visto que têm implicações teóricas e políticas, assim como, as impli-
cações da análise sobre a divisão sexual do trabalho, em termos de
vínculo social ou como relações sociais Hirata (2002). Não se pode
perder de vista que tais implicações influenciarão sobremaneira nos
resultados das análises e das intervenções.
O fato é que, ainda que a ES enuncie princípios que se contrapõem
aos tradicionais pressupostos da economia capitalista hegemônica,
pautando-se na horizontalidade e na solidariedade, qualquer análise
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que confronte os documentos oficiais e as práticas desse movimento,


revela a ausência de formulações que contemplem as experiências
das mulheres, indicando que os princípios declarados se relacionam
tão somente à perspectiva de classe, porém de uma classe assexuada.
Não se percebe qualquer esforço teórico-prático de articulação des-
sa dimensão com gênero, raça, entre outras dimensões do social16.
Tais dificuldades de articulação são admitidas pelo próprio Fórum
Brasileiro de Economia Solidária quando assinala que: “[...] não tem
havido, ainda, o encontro entre as propostas trazidas pela economia
solidária e as reivindicações das mulheres por mais igualdade de
direitos e condições no mundo de trabalho”. (COSTA, 2011, p. 24) No
que pese tais resistências, não se pode desconhecer o persistente em-
penho das mulheres que compõem este Fórum, bem como o perma-
nente empenho da Rede de Gestores Públicos de Fomento a ES que,
atuando nos diversos estados e municípios brasileiros, defendem a
Sustentabilidade de Empreendimentos Solidários-EESs, desde que
pautados em uma Economia que inclua as mulheres. Coerentes com
tais propósitos, adeptos da construção de uma Economia Feminista
posicionam-se à favor do desenvolvimento local, onde os EESs estão
enraizados e com possibilidades de articulação em pequenas redes
de proximidade, visto que se constitui, o locus privilegiado de convi-
vência, de produção e reprodução das mulheres.
Não obstante as dificuldades, entende-se que o diálogo entre o Fe-
minismo e a ES, não só é possível como necessário, considerando-se
que ambos comungam dos mesmos ideais e princípios libertários e
de justiça social. A aproximação entre esses dois campos de ação, à
partir de um maior conhecimento das teorias de gênero e do projeto
feminista, permitiria aprofundar a análise da realidade das mulhe-
res que integram a ES, apreendendo questões, tais como, o domínio
doméstico e o público, suas estruturas e práticas, a divisão sexual do

16
Ver, por exemplo, a Carta de Princípios (proposta pelo Forum Brasileiro de Econo-
mia Solidária- FBES) que embora mencione as mulheres, mantem um enfoque produ-
tivista ao longo do texto. Disponível em: https://fbes.org.br/2005/05/02/carta-de-prin-
cipios-da-economia-solidaria/ Acesso em 23/04/2022.

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trabalho e a distribuição do poder, através de uma análise interre-


lacionada que evidencie as construções hierárquicas de gênero, o
controle e a dominação masculinas. Ademais, permitiria conhecer
as características reais e as distintas formas de operação e gestão
dos EES pelas mulheres que hoje conformam a diversidade desse
movimento, fortalecendo-o institucionalmente. Ademais (indepen-
dente das visões controversas em torno da ES) esse encontro se faz
necessário, levando-se em conta que esse movimento reveste-se de
grande significado para as mulheres trabalhadoras a ele vinculadas,
não só como forma de resistência ao desemprego, mas também por
se sentirem parte da construção de uma outra forma de trabalho que
privilegia a solidariedade e a autonomia, abrindo caminho às novas
sociabilidades e dando sentido às lutas por uma sociedade mais jus-
ta, que afirme a identidade coletiva de mulheres trabalhadoras.
Por último, sendo a ES um processo em construção, logo, passível
de constantes aprimoramentos, sugere-se que o movimento reveja
hierarquias e concepções ideológico-conceituais que mascaram dis-
putas de poder, abrindo-se à incorporação de outras perspectivas de
justiça que incluam as desigualdades de classe, gênero, raça/etnia,
entre outras dimensões do social, diferenciando-se dos pressupostos
econômicos de corte neoliberal, de forma a se afirmar e se fortalecer,
em definitivo, como uma “outra economia” e um movimento contra
hegemônico.

Referências

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DÁRIA NO BRASIL: nota metodológica e análise das dimensões socioes-
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A chegada do arame farpado:


um estudo de caso sobre as estratégias de resistência
das comunidades rurais no Litoral Norte da Bahia1

Diana Anunciação e Lídia Cardel

Introdução

Os processos de territorialização, desterritorialização e reterri-


torialização sempre se fizeram presentes na estrutura fundiária do
Brasil, desde a implantação do regime de Capitanias Hereditárias. A
maneira como a própria legislação agrária foi sendo construída, du-
rante o período de formação da sociedade brasileira, gestou diversos

1
Este trabalho deriva da tese de doutoramento “Esse mundo era todo nosso”: fluxos
migratórios e memória coletiva em uma comunidade rural do Litoral Norte da Bahia,
defendida em 2016, por meio do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal da Bahia.

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entraves que impediam, sobretudo, que “[...] tivessem acesso legal às


terras os povos indígenas, os escravos alforriados e os trabalhadores
migrantes que começavam a ser recrutados”. (ALMEIDA, 2008, p. 39)
Desse modo, a concentração fundiária em monopólio de poucos pas-
sa a ser legalizada desde a promulgação da Lei nº 601 de 18 de setem-
bro de 1850, conhecida como Lei das Terras.
A questão fundiária não encerra em si apenas a problemática da
redistribuição das terras, pautada numa aplicação das políticas pú-
blicas de reforma agrária. Para além disto, também está calcada na
noção legal do ordenamento espacial e reconhecimento territorial.
(LITTLE, 2002) Existe uma dinâmica territorial no país definida por
intensas relações de poder políticas, econômicas, sociais, culturais,
ambientais e religiosas, as quais definem legalmente as formas de
uso e posse das terras. Inclusive, o próprio Estado - por meio de po-
líticas públicas voltadas exclusivamente para o capital e pautadas
em ações de expansão desenvolvimentista, a exemplo da Revolução
Verde e da construção de barragens, hidroelétricas, rodovias em-
preendidas, sobretudo, a partir da década de 1950 -, gesta expulsões e
desapropriações de famílias e comunidades inteiras de suas áreas de
moradia e trabalho.
O cercamento das terras é um fenômeno social que tem início no
Brasil, no século XVI, quando a Coroa Portuguesa decide demarcar
a posse do território brasileiro ocupando as suas terras e extraindo
suas riquezas naturais. O Litoral Norte do estado da Bahia, por ser
uma área estratégica de passagem e ligação com a região litorânea
do Nordeste, esteve inserida no regime de capitanias hereditárias,
compondo uma grande área de sesmaria2. Porém, mais adiante, por
ser também uma localidade de paisagem tropical paradisíaca, de
exuberante beleza natural, tornou-se uma região potencialmente

2
As Sesmarias eram extensas áreas de terra destinadas pela Coroa Portuguesa a
quem se comprometesse a ocupa-la e cultiva-la. Quem a recebia pagava uma pensão
ao estado, em geral constituída pela sexta parte do rendimento através dele obtido.
Estas foram oficialmente extintas em 1812. (FERREIRA, 2010)
No
sentido dado por Norbert Elias (2000).

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chegada do arame farpado
tradicionais

demarcada pelo bloco de interesses econômicos do Estado, passan-


do por vários processos de internacionalização dos espaços, os quais
permitiram que as terras fossem capitalizadas por grupos estrangei-
ros - tanto no século XIX, como no século XX - por meio da indústria
madeireira, da indústria civil e, sobretudo, da indústria turística a
partir da década de 1970. (CARDEL, 2019)
Este trabalho, por conseguinte, pretende trazer uma análise so-
ciográfica3 por meio de um estudo de caso realizado na comunidade
rural Curralinho, situada no município de Mata de São João4 , região
do Litoral Norte do estado da Bahia. Para tanto, utilizou-se de obser-
vação participante, história oral e entrevistas semiestruturadas rea-
lizadas in loco, durante o período de 2010 e 2015 5.
O objetivo fundamental é trazer à tona como se deu o cerca-
mento das terras nesta região e o impacto provocado na estrutura
socioeconômica, ambiental e cultural desta comunidade rural em
específico. Destarte, por meio da explicação sociológica, buscar-se-á
interpretar o sentido das ações empreendidas por este grupo social,
observando as formas como estas se desenvolvem e os efeitos resul-
tantes, além da regularidade sobre a qual se expressa sob as formas
de usos e costumes.

De Tabuleiro a Curralinho

3
No sentido dado por Norbert Elias (2000).
4
Mata de São João localiza-se a 59 km da cidade de Salvador, capital do estado da
Bahia e tem como principal atividade econômica o turismo.
5
Este trabalho teve financiamento por meio de uma bolsa de doutorado da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e de uma bolsa de doutorado san-
duíche, aprovado pelo convênio de cooperação internacional firmado entre a Coorde-
nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Comité Français
d’Évaluation de la Coopération Universitaire et Scientifique avec lê Brésil (COFECUB),
executado durante o período de 2013-2014 na Université de Strasbourg-France.

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De acordo com a memória social do grupo, a localidade do Curra-


linho, provavelmente no período que corresponde ao século XVI até
a primeira metade do século XX, tornou-se uma espécie de “local de
descanso” dos tropeiros e vaqueiros que desciam de variadas cidades
do Litoral Norte em direção à Salvador, à época primeira capital do
Brasil. Este era um lugar estratégico por conta de sua localização pri-
vilegiada, próximo à principal “rodagem” da época e ao rio Sauípe6.
Esta comunidade foi denominada inicialmente pelas seis famílias
que a fundaram como Tabuleiro, fazendo menção à sua área central
com formato arredondado, descoberta de vegetação, mas circunda-
da por brejos e matas nativas, e local onde foi construído um curral
para descanso dos animais. No entanto, a centralidade e a importân-
cia estratégica de sua localização, como ponto de parada para aque-
les que se deslocavam com destino à Salvador, acarretou a mudança
do nome da comunidade de Tabuleiro para Curralzinho, o qual ao
longo do tempo transformou-se foneticamente em Curralinho.
Este grupo social, fincado num forte ethos camponês, é composto
por lavradores/as, extrativistas e artesãos que trabalham em regime
familiar organizado por técnicas tradicionais de produção que, ape-
sar dos avanços das igrejas neopentecostais de inúmeras matrizes
e autodenominações, ainda apresenta uma ética fundamentada nos
princípios da religiosidade de matriz afrobrasileira, na intensa mo-
ral patriarcal, nas relações de parentesco, compadrio e vizinhança,
na unidade doméstica de produção e na relativa e aparente autono-
mia econômica do processo de trabalho (CHAYANOV, 1974).
A estrutura da organização socioeconômica do Curralinho e as
formas de sociabilidade seguem normas e regras derivadas de um
direito costumeiro que dá um caráter particular ao grupo, através
de uma forma de ocupação territorial e de uso tradicionais do solo
e dos recursos naturais da mata atlântica. A comunidade foi se

6
Conhecida atualmente como Estrada do Curralinho/São José do Avena, era o basilar
ponto de ligação entre as comunidades locais (Curralinho, Areal, Santo Antônio, São
José do Avena, Porto de Sauípe, Tancreiras etc.), e no acesso aos municípios de Entre
Rios, Alagoinhas e Itanagra.

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constituindo em torno das práticas de trabalho tradicionais direta-


mente relacionadas ao meio ambiente, em um espaço definido como
próprio e reconhecido como tal pelos grupos vizinhos. As relações
sociais e as econômicas tomaram como ponto de partida o binômio
terra/mata, constituindo uma identidade, fincada também numa di-
visão social do trabalho, em torno da roça (lavrador), da extração de
palha da piaçava (A. Funifera)7 (extratora) e da produção de artesa-
natos (artesão).

A Casa da Torre, Schindler e a Companhia Inglesa

Para falar da ocupação territorial do Curralinho é preciso remon-


tar ao contexto histórico do processo de formação e ocupação do Li-
toral Norte, diretamente relacionada a três períodos fundamentais:
i) ao sistema das capitanias hereditárias, através da sesmaria de Gar-
cia D’Ávila, no século XVI; ii) ao período do domínio das terras por
Sigisfredo Sigismund Schindler em fins do século XIX e primeiras
décadas do século XX e iii) a apropriação das terras pela Companhia
Inglesa, via Banco Inglês, após a Segunda Guerra Mundial.
A princípio, as terras que compunham a região do Litoral Nor-
te baiano foram habitadas pelos índios Tupinambás, praticamente
dizimados, expulsos e escravizados em seu território pelos coloni-
zadores portugueses, que adentraram à localidade com o intuito
de ocupar às terras. Tomar posse das terras era uma das estratégias
que a Metrópole portuguesa tinha para concretizar a colonização do
território brasileiro. A alternativa era enviar aqueles que possuíam
condições econômicas, ou seja, os “homens de posses” para adentrar
o interior do país, explorar as terras e fundar grandiosos engenhos

7
Attalea funifera Martius ou piaçava é uma espécie endêmica da Mata Atlântica,
abundante nas florestas de restinga da região litorânea do estado da Bahia, a sua prin-
cipal área de ocorrência. Suas fibras são utilizadas para a fabricação de vassouras,
artesanatos, cobertura de casas etc. (VINHA; SILVA. 1998).

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de cana de açúcar. Este também tornou-se o meio de classificação so-


cial estabelecido na sociedade colonial, definindo a população entre
nobres, escravos e trabalhadores livres. (BARROS, 1923)
A região foi cotada por sua proximidade com o mar, bom solo
para cultivo e território constituído por uma excelente bacia hidro-
gráfica, com condições que favoreciam a criação de gado, a produção
agrícola da cana de açúcar e a formação de engenhos. Sabe-se que,
em 1549, a comitiva de Tomé de Souza chegou à Bahia, outorgando a
Garcia de Souza D`Ávila uma concessão de terras em regime jurídico
de Sesmarias.
Em 1551, Garcia D’Ávila se estabeleceu no ponto mais alto do Li-
toral Norte, conhecido como Enseada de Tatuapara, atualmente
denominado Praia do Forte. Neste local, até o ano de 1716, a família
Garcia D’Ávila (por sete gerações) construiu e dirigiu a Casa da Torre,
também conhecida por Castelo da Torre. Para erguê-lo, utilizou-se
da mão-de-obra escrava (tanto de indígenas quanto de negros africa-
nos) e de matérias-primas da própria localidade como pedras, tijolos,
barro e madeira. O clã edificou, primeiramente, o monumento da To-
rre, que incluía a capela de Nossa Senhora da Conceição e depois o
próprio castelo.
Após a construção da primeira parte do castelo, Garcia D’Ávila e
seus descendentes buscaram cumprir o Tratado de Sesmarias e a de-
terminação da Carta do Farol, dando início à exploração econômica
das terras a eles concedidas. Assim, estabeleceram o cultivo da mo-
nocultura do coqueiro asiático (também utilizado para demarcar a
posse das suas terras, as quais não eram cercadas), e, principalmente,
as pastagens e o cultivo da cana-de-açúcar. (FERREIRA, 1958)
A localização estratégica da Casa da Torre tornou o castelo funda-
mental nas lutas pela independência e na defesa territorial do Esta-
do. A Enseada de Tatuapara tornou-se a sede do maior latifúndio do
continente Americano, com mais de 800.000 Km² – indo da Bahia ao
Maranhão – com fazendas de plantio de coco asiático, cana de açú-
car e criação de gado, com a posse também de muitos africanos e in-
dígenas escravizados. Também possuía diversas famílias de pessoas
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livres que trabalhavam em suas terras desenvolvendo atividades


complementares como a economia de subsistência e a pecuária ex-
tensiva para abastecimento da Casa da Torre. (OLIVEIRA; CAPINAN,
2012)
Os relatos indicaram que os primeiros moradores da comunida-
de do Curralinho eram trabalhadores livres que realizavam como
atividade principal a policultura de subsistência destinada ao abas-
tecimento da Casa da Torre e ao consumo interno das próprias famí-
lias. Seus pequenos roçados foram concedidos em regime de a meia,
no qual metade do que produziam deveria ser entregue à família
D’Ávila. Além disso, deviam como obrigações: extrair o coco asiático,
cortar a cana-de-açúcar e cuidar do gado.
No século XVII, com a queda da indústria açucareira, toda a re-
gião fica estagnada, trazendo intensas modificações nas relações so-
cioeconômicas locais. Ao final do século XIX, Sigisfredo Sigismund
Schindler8 adquiriu da família Garcia D’ávila uma parcela conside-
rável das terras no Litoral Norte, passando a explorá-las por meio da
instalação e da intensificação do extrativismo de recursos naturais,
a exemplo da piaçava, além de potencializar também a produção de
coco asiático, o qual passa a ser reconhecido como coco-da-baía9.
(SAMPAIO, 1990; STIFELMAN, 1997).
Em seguida, a Companhia Inglesa, por meio do Banco Inglês, ad-
quire as terras do Schindler, tornando-se uma das mais importan-
tes companhias responsáveis pela exportação de diversos produtos
e iguarias do Brasil para a Europa. A Companhia Inglesa teve como
representante legal o inglês Reginaldo Fenton. Este deixou, por meio
de uma procuração, a responsabilidade de administrar as terras da

8
O período de Schindler é bastante confundido pela população local com o mesmo
período de Reginaldo Fenton, responsável pela Companhia Inglesa, não obstante se-
jam temporalmente distintos e tratem-se de personagens diferentes.
9
O coco-da-baía é originário do sudeste da Ásia e foi introduzido no Brasil através
do estado da Bahia (daí a denominação de coco-da-baía), disseminando-se pelo litoral
nordestino, região atualmente responsável por 90% da produção nacional

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Companhia para o Sr. Genésio Tolentino de Jesus10, durante o período


da Segunda Guerra Mundial, em que o mesmo foi convocado para
apresentar-se ao exército inglês. (STIFELMAN, 1997) Posteriormente,
a Companhia vende as suas terras para grandes fazendeiros e para a
Organização Odebrecht11, os quais visavam a especulação imobiliária
e a construção de grandes empreendimentos privados, tanto volta-
dos para o ramo do agronegócio, quanto para o seguimento turístico.
Salienta-se, portanto, que a população de trabalhadores livres do
Litoral Norte, além de pagar o arrendamento da terra em regime de
a meia, também trabalhava no processo de produção e extração dos
produtos destinados à exportação. Importante ressaltar que duran-
te os períodos mencionados – da Casa da Torre, de Schindler e da
Companhia Inglesa – as terras eram mantidas abertas e as famílias
locais, embora pagassem por seu uso e ocupação, mantinham um
sentimento de liberdade. Apenas após a negociação da Companhia
Inglesa com grandes proprietários de terra e com a Organização
Odebrecht na década de 1940, é que inicia-se o cercamento das te-
rras, materializado pela presença das cercas de arame farpado.

A chegada do arame: o cercamento das terras

No espaço territorial do Curralinho, a chegada das cercas de


arame farpado dá-se na metade do século XX, com a expansão das
grandes fazendas monocultoras na localidade, após a venda das te-
rras pela Companhia Inglesa. Os novos proprietários objetivavam

10
O Sr. Genésio Tolentino de Jesus era conhecido como uma pessoa bem letrada, in-
formada e influente na região. Por este motivo, tornou-se empregado da Companhia
Inglesa, e por sua fidelidade e integridade moral foi designado como uma espécie de
gerente da Companhia (STILFEMAN, 1997).
11
A Organização Odebrecht possui origem brasileira, mas tem inserção global, com
negócios diversificados e estrutura descentralizada, atuando nos setores de engenha-
ria, construção civil, indústria, infraestrutura e energia. Disponível em: http://odebre-
cht.com/pt-br/organizacao-odebrecht/sobre-a-organizacao Acesso em: 30 mar. 2016.

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agregar o status de commodities aos produtos encontrados em abun-


dância na região como o coco-da-baía e a piaçava, vislumbrando alta
lucratividade com a exportação destes produtos.
A terra que, até então, era considerada pelo grupo como livre e
um bem comum, (ainda que tivessem que pagar pelo seu uso) assume
a nova posição de terra cercada, propriedade privada, fonte de espe-
culação do capital e acúmulo de riqueza. O cercamento das terras
se instaura abruptamente e, a rigor, de modo violento, promovendo
um desordenamento das formas de ocupação e dos usos territoriais,
bem como a divisão social entre “fortes” (fazendeiros) e “fracos” (la-
vradores). (WOORTMANN, 1997)
A pequena unidade doméstica de produção torna-se, em um re-
duzido período, área de monoculturas cercada por arame farpado, o
qual impede o acesso às matas e/ou passagem de todo o grupo social.
Este processo descaracterizou a autonomia das condições de trabal-
ho do povo do Curralinho. No entanto, para os grandes proprietários,
as cercas são a possibilidade de ampliação das suas propriedades,
transformando-as em renda territorial capitalizada. (MARTINS,
2004) A propriedade privada no Litoral Norte foi edificada, assegu-
rada, legalizada, legitimada e reconhecida pelo Estado Brasileiro. “[...]
Por detrás da aparência de igualdade de direito à todos [...] esconde a
violência da tomada das terras dos camponeses pobres dentro da lei
e da ordem”. (SILVA, 1999, p.33)
O próprio sistema capitalista de produção para se expandir, mo-
difica a condição econômica da terra. A propriedade fundiária em
sua origem pré-capitalista tinha a renda materializada por meio da
cobrança de tributos individuais ao servo pelo senhor. Com o fim do
período de transição entre os sistemas econômicos – feudalismo e
capitalismo – o que ocorre é que o próprio capitalismo a incorpo-
ra, transformando-a em renda territorial capitalizada, ou seja, na
própria mercadoria. Para existir e se expandir, o sistema capitalista
necessita manter relações antagônicas e subordinadas e, portanto,
precisa somar este movimento às relações de produção não-capita-
listas com o objetivo de garantir as suas relações comerciais, fazendo
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com que setores específicos, a exemplo do agronegócio e do turismo,


alcancem altos índices de produtividade e, consequentemente, lu-
cratividade. (MARTINS, 2004)
Este processo da coexistência das relações de produção capitalis-
tas e não-capitalistas mantém, de certa forma, a existência de alguns
grupos tradicionais, porém interferindo na sua forma de produção
e comercialização, como é próprio do processo de ampliação do ca-
pital. Concomitantemente, vemos também um longo e sofrido mo-
vimento de resistência destes grupos sociais que ora vão resistindo,
ora se adaptando e ora se reestruturando para permanecerem en-
quanto tal.
O critério de extensão das cercas das grandes fazendas sobre o
território produtivo do Curralinho se deu de maneira desordenada.
Algumas famílias perderam todas as terras de seus roçados e outras
perderam parte destas, com uma diminuição sensível das áreas de
agricultura e criação de animais. Contudo o mais impactante, a po-
pulação perdeu o acesso às matas nativas mais próximas onde po-
diam extrair as palhas da piaçava e o coco-da-baía, ou ainda o aces-
so às fontes de captação de água. Em alguns casos, o movimento do
arame se deu via procedimentos legais, mas a rigor, as fronteiras
cresceram e as cercas mudaram de lugar, se expandiram e ganharam
o mundo do curralense, transformando a dinâmica local por meio
de medidas violentas contra a população. Segundo as narrativas, as
coações variavam entre ameaças, tortura psicológica ou até mesmo
violência física e agressão sexual. A própria expansão das cercas so-
bre o território de sobrevivência e manutenção das famílias locais,
por si só, foi categorizada pelo grupo como ato violento, haja vista
promover a privação de acesso aos espaços tradicionais. E, em mui-
tos momentos da história local, a violência se dava (e ainda se dá) por
meio de cooptação de agentes locais .12

12
Estratégia comum que gera imensas contradições e impactos na sociabilidade local,
como analisa José de Souza Martins em sua obra “Fronteiras: a degradação do outro
nos confins do humano” (1997)

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Todavia, as medidas violentas foram utilizadas como instrumen-


tos de legitimidade para materializar o poder simbólico dos “fortes”
sobre os “fracos”. O povo curralense ainda está marcado pelo medo
de sofrer retaliações, sobretudo, porque deve favores e obrigações
aos “fortes”, ou seja, estão presos nas relações clientelistas estabeleci-
das entre os envolvidos no processo. (MOURA, 1988)
A expansão das cercas sobre o território curralense desestrutu-
rou as relações socioeconômicas internas, tais quais as práticas de
trabalho tradicionais, mas também as relações externas do nós com
o outro. (BARTH, 1998) É preciso se reinventar, reorganizar, adap-
tar-se às novas condições impostas pelo sistema econômico para so-
breviver enquanto grupo que mantem uma relação de reciprocidade
com a terra e o meio ambiente. Para as pessoas mais velhas do Curra-
linho, reestruturar e reinventar novas maneiras, práticas e relações
de trabalho a partir da chegada do arame farpado, foi um processo
muito mais doloroso, pois eles haviam conhecido o tempo da terra
livre e aberta.

Adaptação, reordenamento e resistência

Entre os elementos de reorganização social, a “migração das es-


tratégias familiares”, com a perda de considerável parcela das terras
de trabalho, é potencializada como a principal alternativa à sobrevi-
vência da unidade familiar. (ANUNCIAÇÃO, 2021b, CARDEL, 2008) A
migração passa a não ser um movimento apenas de jovens do sexo
masculino; adultos mais maduros, homens e mulheres são forçados
a migrar. Há também uma mudança na inserção de campo de trabal-
ho e do local de destino com a entrada destes outros atores. Se antes
migravam temporariamente para atender ao corte da cana-de-açú-
car na região das grandes fazendas entre Alagoas e Pernambuco,
atualmente procuram os canteiros de obras da construção civil e
dos afazeres domésticos nos condomínios de segunda residência
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instalados no Litoral Norte baiano, como também em lares urbanos


de grandes centros como São Paulo e Salvador.
Com o levantamento e expansão das cercas de arame farpado, as
famílias curralenses se percebem obrigadas a cercar também os seus
pequenos lotes de trabalho e, com isso, se instaura a lógica interna
do cercamento das terras, na tentativa de frear o movimento de ex-
pansão das cercas dos grandes proprietários, ou seja, as grilagens.
O território do Curralinho - definido por espaços de trabalho,
áreas comuns e de moradias - até então, era composto por terras
pertencentes à coletividade, embora estivesse tacitamente presente
na lógica costumeira a divisão do patrimônio individual-familiar. O
movimento externo de cercamento das terras ceifou, principalmen-
te, o território de uso, ou seja, os espaços destinados às práticas de
trabalho tradicionais, por se tratar das áreas mais produtivas ou pre-
servadas e mais afastadas das áreas de moradia. E como afirma uma
interlocutora nativa da comunidade: - O arame é a desgraça de tudo
por aqui. Cercou e acabou com tudo. Antes esse mundo era todo nos-
so. (Entrevistada n. 07, 83 anos).
Esta última frase demarca o princípio básico do imaginário local,
onde os indivíduos considerados de dentro estabelecem um corte
temporal nos processos de mudanças impostas pelas transformações
instauradas não apenas pelo cercamento das terras, mas pelas novas
relações e pelos novos recortes territoriais após as intervenções des-
envolvimentista das políticas estatais implantadas a partir da déca-
da de 1990, e que culminou com a construção da rodovia BA099 13.
Antes, os espaços destinados ao roçado e as áreas de extração
situavam-se em terras mais produtivas, geralmente próximas aos
brejos, estendendo-se das margens da área de moradia às fron-
teiras com as comunidades de Tranqueiras, Sauípe e Areal. Estas
não eram cercadas e, segundo os relatos, os espaços de roçado, ou
seja, o patrimônio individual familiar era demarcado por pontos
naturais como pedras, árvores, rios, fontes e brejos. Esta forma de

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Denominada “estrada cicatriz” (CARDEL, 2018)

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demarcação – definida estritamente a partir dos elementos naturais


do espaço, sem qualquer divisória que os delimitasse, mas que eram
reconhecidos e respeitados por todos os membros – compunha a “te-
rritorialidade de identidade de grupo”. (POLLAK, 1989)
Com base nesta análise, o grupo se identifica enquanto coletivi-
dade a partir de uma ocupação ordenada dentro de parâmetros cos-
tumeiros e das variadas formas de uso socioeconômico empreendi-
das no território. É na junção das ações verbais de ocupar e utilizar
o território, bem como das territorialidades pautadas nas represen-
tações sociais e simbólicas e expressas, inclusive, nas manifestações
culturais, que se constitui esta “territorialidade de identidade de gru-
po” (POLLAK, 1989). O que a cerca de arame farpado fez foi desorde-
nar tais regras costumeiras da ocupação local.
Esta demarcação era bem delimitada nos espaços da memória
coletiva e mantinham a coesão interna para a defesa de seu períme-
tro. Embora o território fosse vislumbrado como área de todos, isto
é, pertencente à comunidade de Curralinho, os espaços de moradia
e trabalho, especificamente os roçados, eram definidos por seu ca-
ráter individual-familiar. Neste caso, estas áreas pertenciam às fa-
mílias e estas detinham o poder sobre a posse e o uso das terras. No
entanto, as áreas de trabalho comuns – as matas nativas, as áreas de
monoculturas abandonadas pelos grandes proprietários, os rios e o
mar – eram acessadas por todas as comunidades desta localidade,
as quais sabiam onde iniciava e terminava o perímetro produtivo de
cada uma delas e de cada família, respeitando-se entre si.
Mesmo sem ter mais acesso a tais áreas, o grupo dá grande im-
portância à constituição do “quadro de referência” (HALBWACHS,
1994; 2006.) composto pelos pontos referenciais que delimitavam o
perímetro do território-identidade. A sua existência tradicional re-
siste na memória coletiva e fundamenta a caracterização do ser de
“dentro”, do “pertencer” ao Curralinho e do ser “reconhecido” como
“nativo”. Saber descrevê-lo, portanto, representa socialmente para
o grupo a lembrança do período de fartura da terra e do livre aces-
so e uso dos seus recursos naturais; de ter participado – ainda que
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seja por meio das recordações e das reminiscências dos mais velhos
– do processo histórico de ocupação centenária da terra. Em suma,
no quadro de referência do grupo está estabelecido os principais cri-
térios de pertencimento social que estabelece os elementos identi-
tários do “ser de dentro” e “ser de fora”. Os primeiros, portanto, estão
ligados por relações de parentesco, compadrio e vizinhança, elemen-
tos-chave que acionam o pertencimento a um território muito mais
amplo do que existe atualmente.
Havia também entre Curralinho e as comunidades vizinhas um
sistema de câmbio, firmado nas relações de reciprocidade, solidarie-
dade e confiança. (MAUSS, 1974) Mantinha-se a rotatividade, a fartu-
ra e a diversificação dos produtos trocados, os quais asseguravam a
subsistência das famílias. No entanto, o que se verifica atualmente
é que a redução das áreas de roçados acarretou uma ruptura consi-
derável por parte destes processos e, consequentemente, houve um
arrefecimento na produção da policultura dos grupos domésticos,
que já não possuem quintais e roças com espaço de cultivo suficiente.
O sistema de trocas também foi afetado e hoje acontece com menos
frequência ou, mesmo, não acontece.
O significado e utilidade da terra para o grupo ultrapassam sua
finalidade em si mesma, transcendendo a matéria e alcançando uma
dimensão maior: a da territorialidade como legado imaterial. Como
tal, possui um valor ético que expressa a moralidade das relações
simbólicas e sociais da convivência instituída entre as famílias, cons-
tituindo-se em uma dádiva, isto é, em um bem de valor simbólico,
responsável pela manutenção do imaginário social local.

O arame acabou com tudo. Os Fazendeiro cercaram tudo que era de


Deus. Você sabe né filha? A terra é toda de Deus, é dos seus filho.
Acabou com os brejos, com as fonte, as nascente. Tinha muitas aqui.
Hoje a gente não tem mais nada; não tem mais terra, nem roça. E aí,
como faz pra manter a família? (Entrevista nº 07, 83 anos, nativa do
curralinho).

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Conforme o fragmento da narrativa acima, o significado da terra


se aproxima da perspectiva analítica de Marcel Mauss (1974) sobre a
dádiva e seu sistema de trocas, para o qual o elemento material vai
além de seu valor estritamente econômico e utilitarista. Há, nesta
cosmovisão, um conjunto de valores, de tradições e de crenças que
estabelecem a terra como um território tradicional comum a todos
os membros da comunidade. Nesta perspectiva, a terra, enquanto
parte deste território de trabalho ampliado, é um patrimônio fami-
liar e um espaço de produção e reprodução da sociabilidade campo-
nesa. (WOORTMANN, 1990)
Atualmente, partes deste extenso território de uso tiveram suas
paisagens naturais modificadas pela ação antrópica, e uma nova
conformação baseada na utilidade capitalista da lucratividade foi in-
serida. Substituiu-se uma enorme parcela da riquíssima mata atlân-
tica, de morfologia biodiversa, por elementos exteriores e frios, como
o asfalto da Linha Verde (Rodovia BA-099), a homogeneidade das
plantações de maciços de pinus e eucaliptos transgênicos e o concre-
to dos empreendimentos hoteleiros e dos condomínios de segunda
residências. O Curralinho é só mais uma comunidade cercada por es-
ses elementos estranhos e com o seu território-identidade reduzido
cada vez mais ao Tabuleiro (área central da comunidade), delimitado
forçadamente por uma lógica que prioriza apenas o espaço de mora-
dia em detrimento dos espaços de trabalho. Consequentemente, os
moradores da comunidade se veem obrigados cotidianamente à re-
ordenar a trilogia das suas práticas tradicionais de uso dos recursos
da natureza – terra/matas/água – para se reproduzirem enquanto
grupos domésticos e famílias.
O sistema jurídico brasileiro referente à questão fundiária não
reconhece o pequeno agricultor camponês como o legítimo proprie-
tário da terra, à qual a sua família mora e trabalha centenariamen-
te, pelo simples fato deste não possuir o documento de proprieda-
de. Além disso, o Estado Brasileiro não reconhece a existência de
um território material e imaterial ampliado para além do conceito
de terra nua. Este modus operandi jurídico inviabiliza, inclusive, as
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atividades não-agrícolas do camponês brasileiro com os bens de na-


tureza. Neste cenário, o que prevalece na conjuntura agrária brasi-
leira desde as leis das terras de 1850, são os interesses econômicos,
conjugados aos interesses políticos locais e regionais, que garantem
a transformação das terras comuns em propriedades privadas de
poucos indivíduos e conglomerados.
O mundo de Curralinho se perde para o outro lado do arame e
deixa lacunas que não podem ser preenchidas, sobretudo, para as
pessoas mais velhas. Isto acarreta uma desestruturação simbólica
da hierarquia familiar colocando à prova a relação de aprendizagem
geracional do saber-aprender-trabalhar a terra. Para muitas famílias
não há mais terra de trabalho e os jovens estão preferindo ou sendo
obrigados a migrar.
Com isso, a prática do clientelismo tornou-se ainda mais forte
para os mais velhos. O fraco (o curralense) deve obrigações e obe-
diência ao forte (o fazendeiro), já que este lhe fornece a terra para
trabalho e sustento de sua família, e esta troca hierárquica estrutu-
ra um sentimento de gratidão do fraco ao forte. Ao longo dos anos,
tais práticas se renovam, mas se mantêm como estruturadoras das
trocas de favores estabelecidas em um mundo marcado pela domi-
nação patrimonial, na qual a apropriação da propriedade pública à
transforma em patrimônio privado. (MARTINS, 1994) O camponês
do Litoral Norte baiano vivencia esta prática desde o período da Casa
da Torre; e o que ocorreu entre os tempos do Brasil Colônia até os
nossos dias foi apenas a consolidação dos estamentos e das classes
sociais que exercem o poder de mando sobre os grupos subalternos
em novos formatos.
Trabalhar nas terras dos fortes ou arrendar um lote, embora ga-
ranta o suprimento do mínimo das necessidades básicas – o mínimo
vital14 –, não permite a manutenção do liame firmado centenaria-

14
Tanto Antônio Cândido (2017) como John Bellamy Foster (1999) dialogam com este
conceito marxista que nos ajuda, no sentido epistemológico, compreender as dinâmi-
cas entre o trabalho camponês e os bens de natureza.

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mente entre os homens e as mulheres locais com a terra, as matas, os


rios e os brejos.

Depois a terra foi requerida pelos fazendeiros e tem um gerente que


toma conta e arrenda o terreno. Nós paga um quarto da produção
de mandioca por tarefa a eles. E hoje tudo é cercado de arame. [...]
A terra farta aqui minha filha... é como um mito, só existe na nossa
lembrança. (Entrevistado nº 10, 65 anos, nativo de fato).

Pode-se observar no trecho do relato acima que a terra que per-


tencia a todos os nativos, passou a ser “requerida” (cercada) pelos
fazendeiros, e eles perderam o direito sobre a posse da terra e uso dos
recursos naturais. As terras agenciadas são, ainda hoje, arrendadas
aos fracos (moradores das comunidades locais), e para trabalhá-las
é necessário pagar ¼ (um quarto) da produção por tarefa, sendo que
o lavrador ainda fornece cinco dias de trabalho na plantação mono-
cultora do forte (o fazendeiro). Este fato impacta negativamente a
economia doméstica, haja vista tratar-se, geralmente, da parte exce-
dente que seria comercializada nas feiras livres ou trocada entre as
famílias locais e vizinhas, possibilitando a aquisição de produtos dos
quais não conseguem produzir.
Em tempos em que a safra não é boa, os camponeses que ainda
insistem na lavoura quase não conseguem abastecer internamente
a casa, pois o que de fato “vingou”, ou seja, aquilo que conseguiram
colher deverá ser entregue ao forte como pagamento pelo arrenda-
mento da terra. Ademais, o pouco tempo que podem disponibilizar
para o cultivo da roça familiar, dois dias da semana, não garante um
plantio extenso e bem cuidado, com fartura de uma produção diver-
sificada. As fases da capina, plantio, limpa/cuidado e colheita, por
conseguinte, são prejudicadas pelo tempo que já não pode mais ser
organizado pelo saber tradicional, mas pela perspectiva da lucrativi-
dade da grande fazenda monocultora à qual está inserido.
Outro ponto a se considerar é a mudança dos valores patriarcais
no comando da divisão do trabalho. Como o chefe de família deve
obrigatoriamente cinco dias de trabalho na fazenda, a supervisão do
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roçado tem ficado sobre a responsabilidade das mulheres, ou ainda


de filhos e filhas mais velhos/as, atividade vislumbrada pelo grupo
apenas como ajuda. Embora, os homens ainda definam a organi-
zação do trabalho, a divisão é adaptada à disponibilidade da mulher
e dos filhos e filhas que podem trabalhar a roça e não estão inseridos
nos trabalhos registrados ou em processo de migração.
Vê-se, por conseguinte, que a terra e as matas cercadas pelo arame
farpado existem para o grupo apenas como posse imaterial demar-
cadas pelas lembranças, que compõem a memória coletiva e indivi-
dual, e que por meio da oralidade insiste em sobreviver. Transmitir o
legado do passado de fartura para as gerações mais novas transfor-
mou-se no amálgama da coesão do grupo, assinalando a distinção
estabelecida entre os “de dentro” e os “de fora”, ou os “nativos” e os
“novos moradores”, ou ainda entre os ‘fracos” e os “fortes’. É através
dela que se constitui a identidade e o sentimento de pertencimento
ao Curralinho.
Atualmente, com a invasão de uma parte do território da comu-
nidade por novos moradores, provenientes das desmobilizações da
mão-de-obra empregada sazonalmente por grandes construções de
hotéis, resorts e condomínios, a comunidade de Curralinho vem pas-
sando por fortes transformações. Entretanto, como uma forma de
defesa, o grupo que se autodenomina “nativo”, opera sua cosmologia
identitária com muito mais intensidade, mantendo a comunidade
viva e atuante.

Considerações finais

O arame gesta uma reorganização socioeconômica e constitui


uma nova concepção de espacialidade. Os curralenses se veem ex-
cluídos dos planos modernizantes que são implementados no Litoral
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Norte da Bahia e encontram na resistência uma nova estratégia de


permanecer, sobreviver e se reproduzir na terra, ainda que seja em
espaços reduzidos. Eles “[...] recriam seu espaço social, recompondo
o tempo passado na vida presente pela via da memória, da interpre-
tação dos signos da cultura e do aprendizado [...]”. (RIBEIRO, 1998, p.
92)
Sendo assim, a ruptura do sistema de trocas por falta de terras
para produzir, desestabilizou e enfraqueceu as relações fincadas
no sistema de reciprocidade e solidariedade. Para algumas famílias
não há o que trocar, pois não houve o que produzir. Para os que pro-
duzem, a regra passou a ser a venda já que a produção passou a rece-
ber um valor econômico monetário. A confiança é substituída pelo
imediatismo do mercado na qual o lavrador só entrega o seu produto
mediante o recebimento do pagamento em dinheiro, embora ainda
não tenha como perspectiva a lucratividade capitalista.
Obviamente, o quadro que se tem atualmente é de um sistema
econômico que impõe o seu domínio, mantendo as relações não-ca-
pitalistas de produção, a rigor, subjugadas às relações capitalistas de
produção. Diante disso, a população local tem se subordinado, ora se
integrando, ora resistindo e ora se adaptando à lógica econômica de
um desenvolvimento que prioriza a atividade turística e monocul-
tora no Litoral Norte. A comunidade rural do Curralinho ainda so-
brevive dentro deste sistema, não apenas porque para o capitalismo
ainda é interessante mantê-los subordinados, mas também porque
resiste tentando ressignificar a base da sua estrutura social perante
as impermanências.
Outra questão é que, na atualidade, não há mais apenas o papel
do fazendeiro para absorver o trabalho de todos os curralenses que
perderam as suas terras. Assim, nem todas as famílias possuem te-
rras arrendadas e, por conseguinte, nem todas mantêm atividades
com a terra, apesar de manterem a moradia na comunidade. Isto
ampliou a perspectiva do processo migratório e intensificou a saída
de homens e mulheres, jovens e adultos para os grandes centros ur-
banos em busca de trabalho na construção civil, em lares domésticos
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ou em colheitas temporárias em áreas do agronegócio que permi-


tam a permanência e a reprodução do conjunto familiar no campo.
E para aqueles que não possuem uma qualificação mínima para se
lançarem nas rotas migratórias ou mesmo recursos para bancar a
viagem, a estratégia é tornarem-se diaristas de trabalhos braçais nos
empreendimentos da indústria turística local.
Em suma, as cercas de arame farpado promoveram rupturas e
mudanças permanentes e irreversíveis na estrutura fundiária do
Litoral Norte da Bahia. A produção de identidade das comunidades
locais, dentre elas a comunidade de Curralinho, passou a se pautar,
para além dos polos estruturantes já vivenciados (de dentro x de fora;
moderno x tradicional; terra comum x propriedade privada; passado
x presente), nos eventos gerados pelos novos conflitos estabelecidos
pelo processo de ampliação do capital na região. O Curralinho en-
contra-se nesta luta constante, e a memória coletiva é o que mantém
a comunidade unificada em torno de uma luta de resistência pela
existência.
Assim, este trabalho vislumbra a necessidade da realização de
estudos e pesquisas que possam aprofundar algumas das questões
levantadas no texto, tais quais, as estratégias de resistência que en-
volvem a desorganização das relações intrafamiliares, bem como
dos distintos arranjos e estratégias de trabalho e migração que en-
volvem a perspectiva de gênero, interseccionando-a com a análise
étnico-racial.

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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades tradicionais

Visibilizar para reconhecer:


uma análise sobre as mulheres agricultoras fami-
liares do recôncavo baseada no censo agropecuário
2017

Eliene Gomes dos Anjos e Dilma de Souza da Conceição

Introdução

No Brasil, em 2013, havia 14 milhões de mulheres rurais (14% da


população total do sexo feminino), ainda assim invisibilizadas, seja
no cotidiano dos espaços rurais ou nas narrativas que retratavam a
formação da sociedade brasileira (FAO, 2016). Até o Censo Demográ-
fico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
contribui para manter as mulheres rurais no anonimato ao apontar
que 47,7% das que residem na região Nordeste não são economica-
mente ativas. Para Jesus (2020), essa estatística se explica devido à
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Eliene
Maria de Gomes
Lourdes dos Anjos
Novaes e Dilma
Schefler - Lídiade Souza
Maria daSoares
Pires Conceição
Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

desvalorização do trabalho feminino e a sua invisibilidade na pro-


dução familiar.
A não valorização do trabalho das mulheres não se restringe as
rurais. Centenas de pesquisas realizadas com base na teoria feminis-
ta e no feminismo negro, norteadas pela categoria gênero, revelam
as profundas desigualdades que caracterizam as relações entre ho-
mens e mulheres. Na percepção de Matos (2005), essa categoria apre-
senta uma abordagem relacional, ou seja, trata-se de compreender o
papel social do homem e da mulher, cuja construção se realiza uma
em função da outra, fruto de uma elaboração ao longo do tempo so-
cial, cultural e historicamente definido. Embora tenham alcançado
diversas conquistas para enfrentar as desigualdades de gênero nas
últimas três décadas, a situação de vulnerabilidade socioeconômica
das mulheres ainda é mais destacada do que a dos homens, princi-
palmente para as rurais, indígenas e negras.
Devido a esse contexto, adotamos uma perspectiva de análise que
dialoga com os diversos atributos que são utilizados como mecanis-
mo de opressão das mulheres, além do gênero, a raça e a classe inte-
ragem em um cenário de adversidades que persiste desde os tempos
coloniais (DAVIS, 2016). Essa estratégia teórico metodológica permi-
te que Anjos et al. (2019) afirmem que há desigualdades entre os des-
iguais. Essa tese é defendida quando as autoras analisam a inserção
das mulheres negras em empreendimentos de economia solidária.
Elas constatam que essas iniciativas se constituem no trabalho re-
munerado principal proporcionalmente mais para as mulheres ne-
gras. No entanto, identificam, também, que inseridas em experiên-
cias coletivas, as mulheres adquirem formação para questionar os
papeis que lhes são atribuídos, provocando repercussões nos espaços
públicos e privados nos quais estão inseridas.
Nesta direção, constatamos que o fortalecimento da ação social
nas comunidades rurais fomentou a atuação dos movimentos de
mulheres rurais que estimularam o protagonismo feminino para
aquelas que produzem e se reproduzem da agricultura familiar. A
ação das associações e das cooperativas, além de reduzir as práticas
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Visibilizar para
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tradicionais

abusivas dos atravessadores, propiciou às mulheres um espaço para


descobrir as relações de dominação a que estavam submetidas e a
possibilidade de romper com a cultura patriarcal que reduz o trabal-
ho produtivo feminino ao status de “ajuda”. Segundo Cintrão e Sili-
prandi (2011), a utilização dos espaços ao redor da residência para
plantar e a inserção em empreendimentos econômicos solidários
estão possibilitando, de forma paulatina, a autonomia financeira das
mulheres rurais.
A importância atribuída à ação social nas lutas e conquistas al-
cançadas nos espaços rurais também é salientada por Anjos et al.
(2020) que identificam,a partir da década de 1990, na organização
associativa, papel primordial para assegurar os direitos básicos de
cidadania negados aos trabalhadores rurais, seja no sentido de legi-
timar a aposentadoria rural, através da contribuição sindical, seja
pela participação em associações e cooperativas que se constituem
em fóruns de reivindicações de melhorias nas condições de vida e
canais estratégicos de comercialização.
Os estudos críticos que abordam a busca pela igualdade destacam
a importância da mulher e toda contribuição que elas geram na agri-
cultura familiar, ainda que seu trabalho seja invisibilizado e mini-
mamente reconhecido devido à desigualdade nas relações de gênero.
De acordo com Hora et al. (2021), a partir das lutas dos movimentos
feministas, as mulheres rurais conseguiram denunciar a situação
de subordinação na qual estavam inseridas, ainda que não tenham
alcançado o mesmo status que os homens quando se analisa o tra-
balho produtivo e tampouco alterado a divisão sexual do trabalho no
âmbito doméstico. É esse cenário que motivou a escrita deste capítu-
lo para integrar este volume da Coleção Mundo Rural Contemporâ-
neo na Bahia, visibilizar as mulheres da agricultura familiar que
são as produtoras principais nos seus estabelecimentos. Esperamos,
dessa forma, reafirmar a importância da organização coletiva para
a agricultura familiar e, na mesma perspectiva, assegurar “voz” para
as que foram silenciadas, demonstrando, particularmente, a contri-
buição das agricultoras familiares do Território do Recôncavo.
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Neste capítulo, buscamos caracterizar as mulheres agricultoras


familiares que estão inseridas em alguma organização associativa
com o intuito de proporcionar o reconhecimento do trabalho femi-
nino rural e dimensionar sua contribuição para reduzir a situação
de vulnerabilidade socioeconômica enfrentada pelo segmento. De
forma específica, almejamos: i) visibilizar as agricultoras familiares
inseridas em associações e cooperativas do Recôncavo; ii) apresen-
tar um perfil das agricultoras familiares da Bahia, com mais ênfase
nas mulheres do Recôncavo, correlacionando os atributos de gênero,
raça, geração e escolarização para dimensionar a repercussão desses
atributos nas situações de desvantagens enfrentadas; e, por fim, iii)
compreender o papel desempenhado pela renda obtida nos estabe-
lecimentos familiares associados para dimensionar os desafios en-
frentados pelas mulheres para assegurar a reprodução da família.
Para alcançar os objetivos traçados, utilizamos os dados do Cen-
so Agropecuário 2017, do IBGE, que revelou o retrato da realidade
agrária do Brasil. Optamos por um recorte territorial na Bahia, no
entanto, esta opção metodológica não nos impede de extrapolar a
realidade para além do território, assim como conduzir um olhar à
totalidade da agricultura familiar do estado, em alguns momentos,
sem, contudo, perder o foco das mulheres da agricultura familiar.
Trata-se, portanto, de um estudo quantitativo que selecionou um
conjunto de variáveis que permite caracterizar os estabelecimentos e
as agricultoras familiares associadas, tais como: i) finalidade da pro-
dução; ii) renda obtida das atividades do estabelecimento; iii) acesso
a assistência técnica; iv) escolaridade do/a produtor/a; v) sexo do/a
produtor/a;vi) perfil racial; vii) vinculação a algum formato associa-
tivo etc. A análise das variáveis permitiu traçar um panorama das
condições socioeconômicas das agricultoras familiares associadas e
reconhecer a contribuição da mulher na produção agropecuária do
Território do Recôncavo.
Em que pese a importância de um levantamento nacional sobre
a agropecuária brasileira, Hora et al. (2021) tecem uma crítica, a nos-
so ver legítima, à metodologia adotada pelo IBGE. Constatam que é
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preciso aprimorar os indicadores utilizados no Censo que não supe-


raram o viés do sujeito que produz ser assimilado ao masculino. De
acordo com as autoras, as perguntas estão direcionadas apenas para
o produtor, de sexo masculino. Ainda afirmam que o uso e manu-
tenção de uma linguagem inclusiva de gênero seria uma estratégia
que poderia facilitar maior número de respostas abrangentes para o
sexo feminino. As autoras advogam que, para visibilizar o trabalho
feminino rural, faz-se necessário incorporar a interdependência das
funções desempenhadas no estabelecimento rural, sem criar uma
separação entre o universo da produção e o espaço doméstico, como
apontado pela economia feminista.
Apesar das ponderações de Hora et al.(2021), as análises deste ca-
pítulo que trazem as mulheres agricultoras para a ribalta são basi-
camente embasadas nos dados do Censo Agropecuário 2017 porque
não foi possível realizar pesquisa de campo em 2020 devido à pande-
mia do coronavírus. Apresenta-se divido em 4 seções, além desta in-
trodução. Na segunda, realizamos uma reflexão sobre a agricultura
familiar na Bahia e a incipiência associativa; em seguida, na terceira
seção, uma reflexão sobre as condições de trabalho das agricultoras
familiares, para, na quarta seção, analisaras variáveis selecionadas
do Censo propriamente. Por fim, apresentamos as considerações fi-
nais, reconhecendo o trabalho das mulheres rurais, mas pontuando
os grandes desafios que precisam ser enfrentados.

A inserção da agricultura familiar baiana em formatos


associativos

A denominação agricultura familiar nomeia um conjunto de seg-


mentos que têm em comum a utilização da força de trabalho familiar
predominante nas atividades típicas dos espaços rurais. Esse termo
é definido no âmbito da Lei nº 11.326/2006, regulamentado pelo De-
creto nº 9.064/2017, que assegura um conjunto de políticas públicas
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para diversos trabalhadores rurais que passam a ser enquadrados


como agricultores familiares, ainda que possam ter especificidades
como os quilombolas, os assentados, os pescadores artesanais etc.
O enquadramento jurídico do público denominado agricultor fami-
liar fortalece as práticas econômicas que predominam no âmbito
rural, amenizando as desigualdades entre aqueles que persistem no
campo, mas que enfrentam inúmeras adversidades para inserir sua
produção no mercado, de tal modo que possibilite a superação das
vulnerabilidades que enfrentam cotidianamente. É nesse contexto
que o Programa de aquisição de Alimentos– PAA e o Programa Na-
cional de Alimentação Escolar – PNAE, coma Lei 11.947/2009, que
determina o mínimo de 30% do valor destinado pelo Fundo Nacional
Desenvolvimento da Educação – FNDE à aquisição dos produtos da
agricultura familiar, contribuem com a luta pela melhoria das con-
dições de vida das agricultoras e dos agricultores familiares.
Esses programas de compras públicas demonstram a importân-
cia da agricultura familiar como categoria econômica, pois, segun-
do Silva, Reis e Couto Filho (2020), ela é vital na ocupação das po-
pulações rurais e na produção de alimentos (inclusive com a prática
histórica do autoconsumo), de um lado, e, por outro lado, explicita
a luta travada pelos movimentos sociais rurais para assegurar suas
demandas junto ao poder público.
Anjos et al. (2020) destacam que nas últimas décadas a agricultu-
ra familiar ganhou relevância e centralidade no debate sobre desen-
volvimento rural. O ano de 2014 foi declarado, pela Organização das
Nações Unidas (ONU), como o Ano Internacional da Agricultura Fa-
miliar, reconhecimento em termos mundiais da importância dessa
categoria para a promoção do desenvolvimento socioeconômico e o
papel que desempenha na segurança alimentar e nutricional (SAN).
Esse impulso, além de visibilizar a agricultura familiar na cons-
trução de uma sociedade inclusiva, explicita os processos desiguais
enfrentados pelas comunidades rurais que ainda convivem com o
êxodo rural e grande concentração fundiária na realidade nacio-
nal. Com este cenário, é impossível dizer que as adversidades que
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marcam a realidade dos agricultores e das agricultoras rurais estão


sendo superadas. Guanziroli, Sabato e Vital (2014) apontam aspectos
como o uso de baixa tecnologia produtiva, infraestrutura econômica
deficiente, fragilidade na gestão da propriedade e nas organizações
sociais internas, reduzido tamanho da propriedade, baixa produti-
vidade do trabalho, dificuldades de acesso a crédito, assistência téc-
nica precária, gargalos na comercialização de seus produtos, baixos
níveis de educação e capacitação da força de trabalho, baixo valor
agregado em seus produtos como gargalos que precisam ser enfren-
tados para alcançar uma agricultura familiar mais dinâmica.
Enfocando a realidade do estado, Couto Filho (2007) ressaltou nos
seus estudos a existência de dois novos mundos rurais baianos, com
características bem diferenciadas: o “novo rural atrasado” e o “novo
rural desenvolvido”. Nesse rural “atrasado”, “as atividades econômi-
cas são menos rentáveis, o trabalho é de baixa qualificação, além de
precário no que diz respeito às suas condições e ao cumprimento das
obrigações legais” (COUTO FILHO, 2007, p. 66). O autor conclui que
esse “atrasado” está relacionado com parte expressiva dos estabele-
cimentos agropecuários familiares, cujas atividades asseguram a re-
produção social dos agricultores familiares com limitações estrutu-
rais, o que permitiria denominá-las de “estratégias de sobrevivência”.
Ao discutir a importância da agricultura familiar, ainda que di-
versas análises demonstrem fragilidade na agregação econômica do
segmento, é preciso incorporar uma análise mais abrangente para
além de um segmento produtivo com características específicas,
segundo Anjos, Rocha e Silva (2021). Para essas autoras, a inserção
social de parcela da população baiana, a ocupação de mão de obra
e a perspectiva de práticas mais sustentáveis são apenas alguns as-
pectos importantes que estão associados com a produção familiar.
Nesta perspectiva, as autoras supracitadas afirmam que diversos es-
tudos reforçam o papel da importância da agricultura familiar e de
suas organizações para o desenvolvimento dos territórios rurais.
Os dados do Censo Agropecuário 2017 reafirmam a importância
da agricultura familiar para a economia baiana. Foram mapeados
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762.848 estabelecimentos agropecuários no estado, dentre esses,


593.411 são identificados como de agricultores familiares, o que co-
rresponde a 78% da totalidade da Bahia. A agropecuária baiana
ainda tem um percentual baixo de associação, seja em entidades de
classe ou organizações econômicas, são 277.755 estabelecimentos
associados. Por outro lado, desse montante, 223.185 (80,35%) são de
agricultores familiares, revelando que a organização associativa é
uma estratégia relevante para esse segmento enfrentar as dificul-
dades que persistem para reproduzir seu modo de vida, produzir e
acessar mercados.
O Censo Agropecuário 2017 revelou o crescimento do cooperati-
vismo rural no país nos últimos anos. No Brasil, 579,5 mil estabeleci-
mentos estão associados a cooperativas, abrangendo 11,4% do total
de estabelecimentos agropecuários do país. Em relação ao último
Censo, de 2006, foi observado um aumento de 67,3%. A Região Sul
apresenta o maior percentual de estabelecimentos associados a coo-
perativas (54,1% do total), seguido pela Região Sudeste (28,6%). A Re-
gião Nordeste concentra 45,8% dos estabelecimentos agropecuários
brasileiros. Embora responda apenas por 5,8% do total de estabele-
cimentos associados a cooperativas no país, o Nordeste tem nesse
formato associativo uma estratégia importante para a promoção
do desenvolvimento da sua agropecuária e, de forma mais ampla,
do próprio espaço rural, já que esse segmento tem relevância para
a ocupação de parcela significativa da população do campo (ANJOS;
ROCHA; SILVA, 2021).
Diversos estudos têm demonstrado a relevância do cooperati-
vismo da agricultura familiar para o desenvolvimento socioeconô-
mico (ANJOS; ROCHA; SILVA; SIMÃO, 2020). Isso se expressa, por
exemplo, em políticas públicas como o Programa Ater Mais Gestão,
atualmente implementado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento – MAPA, voltado para a qualificação da gestão
das cooperativas. No âmbito estadual, destacam-se também ações
como o Projeto Bahia Produtiva, da Companhia de Desenvolvimen-
to e Ação Regional – CAR, empresa pública vinculada à Secretaria
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de Desenvolvimento Rural do estado, direcionado para o fortaleci-


mento das organizações econômicas de agricultores familiares, atra-
vés da melhoria de infraestrutura para produção/comercialização,
apoio à gestão e ao acesso ao mercado.
Entre os 593.411 estabelecimentos identificados como da agricul-
tura familiar da Bahia no Censo, apenas 38% (223.185) estão vincu-
lados a formatos associativos. Dentre esses formatos, 118.621 (53%)
estão em sindicatos, 72.440 (32,4%) em associações de produtores, já
71.692 (32,1%) estão em associações de moradores. O número de as-
sociados a cooperativas ainda é reduzido, se comparado aos outros
formatos, somente 9.750 (4,4%) estabelecimentos de produtores fa-
miliares estão vinculados a cooperativas.
A caracterização dos/as agricultores/as familiares associados/as
da Bahia, baseada no Censo Agropecuário 2017, realizada por Anjos,
Rocha, Ferreira e Lima (2019), revela que os estabelecimentos fami-
liares que estão inseridos em associações de produtores e coopera-
tivas, em sua maioria, estão conseguindo comercializar de forma
coletiva, para além de assegurar o autoconsumo. O estudo reforça
a importância da associação e da cooperação para diversificar os ca-
nais de comercialização familiares e aumentar a produção dos esta-
belecimentos. Apesar disso, destaca o baixo nível de associação da
agricultura familiar baiana, que poderia estar em outro patamar se
ampliasse a organização da produção e da comercialização de forma
coletiva.

Rupturas e permanências no ttabalho das agricultoras


familiares

Para vencer a invisibilização e o silenciamento que lhes foram


impostos, as mulheres agricultoras familiares foram à luta e se
constituíram sujeitos e beneficiárias das políticas públicas, como o
Pronaf Mulher. No entanto, cabe destacar que a luta das mulheres
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negras agricultoras transcende séculos porque não alcançaram a


emancipação decretada pela extinção da escravidão no século XIX,
como nos relata Davis (2016). Para as mulheres negras, pondera a
autora, a prática agrícola foi uma continuação do trabalho forçado
vivenciado na escravidão porque a discriminação e o preconceito
não foram alterados com a instituição do trabalho livre. Mas as lu-
tas das agricultoras não se limitam ao campo das políticas públicas,
segundo Cintrão e Siliprandi (2011), a experiência das mulheres tem
contribuído para reforçar a importância de se ampliar a visão do que
é econômico para além do mercado e sobre suas práticas organiza-
tivas e produtivas, especialmente as constituídas em grupos e redes.
Cintrão e Siliprandi (2011) compreendem que a organização pro-
dutiva das mulheres contribui para o enfrentamento das relações de
dominação que ainda imperam nos espaços rurais e promove o for-
talecimento da autonomia econômica.

Movimentos de mulheres rurais vêm reivindicando políticas de


apoio à produção e à comercialização e têm estimulado a consti-
tuição de grupos produtivos de mulheres como uma forma de se con-
trapor a essa realidade. Estes grupos muitas vezes se iniciam a partir
de atividades já realizadas pelas mulheres, tais como artesanato, pro-
cessamento e/ou comercialização de produtos oriundos dos quintais
e arredores da casa (CINTRÃO; SILIPRANDI, 2011, p. 3-4).

A autonomia econômica possibilita o protagonismo feminino a


partir dos trabalhos realizados de forma associativa e colaborativa,
além disso, sentem-se estimuladas por verem reconhecidas suas ca-
pacidades e habilidades. O reconhecimento do trabalho feminino,
como o realizado nos quintais de casa, amplia a possibilidade de co-
mercialização pelas próprias mulheres que vão paulatinamente ga-
rantindo espaços de independência sociopolítica e econômica.
As mulheres agricultoras familiares inseridas em formatos asso-
ciativos, em sua maioria, têm tripla jornada de trabalho. Elas atuam
no trabalho reprodutivo, cuidam da casa e do bem-estar dos mem-
bros da família, trabalham na produção do estabelecimento familiar
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e dedicam horas para viabilizar o empreendimento coletivo em que


estão inseridas. Sabemos que de alguma forma, as agricultoras con-
tribuem na renda familiar, ainda assim enfrentam diversas dificul-
dades para participarem da tomada de decisão da utilização dos re-
cursos financeiros, assim como dos investimentos que são resultados
obtidos com a contribuição do trabalho desempenhado por elas que,
conforme a literatura feminista, é apresentado como “uma ajuda”.
Os homens agricultores são intitulados como chefes de família.
São eles, em sua maioria, que comercializam a produção ao final da
safra e têm acesso aos créditos, excluindo, em muitos casos, suas
companheiras de decidirem o que seria feito dos recursos financei-
ros da família. O quadro narrado pôde ser constatado pelas pesqui-
sadoras nos relatos das mulheres agricultoras na III Conferência Te-
rritorial do Recôncavo sobre a Assistência Técnica e Extensão Rural,
realizada em 18 de agosto de 2021, em ambiente virtual.
Cintrão e Siliprandi (2011, p. 4) afirmam “que apesar de alguns
avanços, a pobreza e a invisibilidade continuam marcando a in-
serção econômica das cerca de 15 milhões de mulheres que vivem no
campo brasileiro”. Para elas, a partir de 2003, o governo Lula, com a
atuação destacada da Secretaria Especial de Políticas para as Mul-
heres (SPM), que detinha o status de Ministério, promoveu o acesso
das mulheres rurais a vários direitos, tais como: melhoria da infraes-
trutura das comunidades rurais, documentação civil, direito à terra
e ao crédito, assistência técnica, organização produtiva, combate à
violência contra mulheres, entre outras ações.
Outros programas importantes destacados do governo federal fo-
ram o Luz para todos e a criação de cisternas para aproveitamento da
água da chuva, Programa de Formação e Mobilização para Convivên-
cia com o Semiárido (PMC). A falta de água atinge principalmente as
regiões semiáridas nordestinas, e para as famílias consumirem água,
são as mulheres que desempenham essa função de buscar água nas
fontes, distantes de suas casas (JESUS, 2020).
As autoras citadas apontam que muitas mulheres vivem reféns
das diversas formas de desigualdades que imperam socialmente, o
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que resulta, em muitos casos, na descrença da própria capacidade


para ocupar espaços, principalmente na esfera pública. Mas essa rea-
lidade vem mudando e novas oportunidades são fomentadas a par-
tir das organizações da agricultura familiar e do fortalecimento dos
movimentos sociais rurais. Segundo Anjos et al. (2018), a atuação dos
movimentos sociais e do poder público no campo propiciou a organi-
zação de várias cooperativas e associações para ampliar o volume da
produção e diversificar os canais de comercialização, além de facili-
tar a compra de insumos, o acesso a serviços e, consequentemente,
a redução da subordinação das agricultoras e dos agricultores aos
atravessadores.
Nesse sentido, os movimentos cooperativistas, associativistas e
sindicais atuaram para inserir a agricultora como sujeito de direito
das políticas públicas, conforme registram Cintrão e Siliprandi (2011,
p. 32):

Em 1997 a articulação Nacional de mulheres Talhadoras Rurais (AN-


MTR) lançou a Campanha Nacional de Documentação da Trabalha-
dora rural. Essa Campanha foi um marco com relação à está questão,
sensibilizando tantos os órgãos públicos como também o próprio
sindicato rural e as organizações não governamentais. Na percepção
dos movimentos de mulheres rurais, a falta da documentação é a ne-
gação do direito a ter direito.

Anteriormente, apenas os homens tinham o nome incluso no do-


cumento que regulariza a terra para obterem créditos para benefi-
ciamento da produção. Com a organização das trabalhadoras rurais,
elas passaram a ter direito de acessar o crédito por terem seus nomes
incluídos na Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP). Ampliou-se
também a participação da mulher nas cooperativas. Tanto as coo-
perativas como as associações diversificam os canais de comerciali-
zação, as práticas produtivas e asseguram alimentos mais saudáveis
(ANJOS; ROCHA; FERREIRA; LIMA, 2020). Esta constatação reforça a
importância da agricultura familiar estar associada, pois possibilita,

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em certa medida, a autonomia econômica com inserção da sua pro-


dução no mercado.
Apesar de algum grau de reconhecimento do trabalho feminino
nos empreendimentos associativos, a Organização das Nações Uni-
das para a Alimentação e a Agricultura – FAO (2016) analisa que mes-
mo trabalhando em quintais, roças, hortas e na criação de pequenos
animais, o trabalho da mulher rural continua sendo invisibilizado
por ser visto como uma extensão do trabalho doméstico, portanto,
uma forma de “ajuda”, como denunciado por Cintrão e Siliprandi
(2011). O termo “mulheres rurais” agrega um grupo diverso, no qual,
segundo a FAO (2016, p.155), estão inseridas “[...] as agricultoras fa-
miliares, assentadas da reforma agrária, quilombolas, atingidas
por barragens, pescadoras artesanais, extrativistas e indígenas.”
Cada segmento tem sua própria singularidade, entretanto, enfrenta
os mesmos desafios na construção da autonomia tão almejada. As
mulheres rurais estão organizadas em diversos movimentos que, em
alguma medida, mobilizaram políticas públicas que estão, paulati-
namente, possibilitando a autonomia econômica para um número
mais expressivo desse contingente.

Deixando de ser coadjuvante para ser protagonista: as


mulheres agricultoras associadas do recôncavo

O Censo Agropecuário 2017, como já sinalizado, apresenta limites


para construir uma análise do setor agropecuário que permita di-
mensionar com profundidade as desigualdades que persistem nos es-
paços rurais. Nesse sentido, cabe destacar a dificuldade de construir
uma análise com o perfil racial daqueles/as que estão associados/as,
assim como enfrentamos dificuldades em analisar as especificidades
dos estabelecimentos que estão vinculados a alguma organização as-
sociativa considerando o gênero em todas as variáveis que seleciona-
mos. Diante desta limitação metodológica, optamos em não ignorar
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o pertencimento racial e o geracional da agricultura familiar do Re-


côncavo, ainda que não possamos trazer esses dados somente para
aqueles/as que estão associados/as.
O Censo registrou 26.057 estabelecimentos da agricultura fami-
liar no Recôncavo, dos quais 16.023 são dirigidos por homens e 10.034
dirigidos por mulheres. Dentre os estabelecimentos que têm as agri-
cultoras como produtora principal, as mulheres negras são majori-
tárias, como demonstrado no gráfico 1.

Gráfico 1 - Número de estabelecimentos da agricultura familiar dirigidos


por mulheres segundo a cor/raça no Recôncavo

Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).

Para dimensionar a presença das mulheres negras agricultoras


no Território estudado, vale informar que na Bahia são 159.860 esta-
belecimentos dirigidos por mulheres, nos quais 124.728 (78%) predo-
minam as agricultoras negras. Assim como no estado, as mulheres
negras são maioria no Território, porém com um percentual mais
expressivo, 90,2%. Como a literatura sobre os empreendimentos da
economia solidária e da agricultura familiar no Nordeste aponta que
as mulheres negras têm presença predominante, em sua maioria,
com baixa escolarização, em idade adulta e classificadas no agrupa-
mento com menor poder aquisitivo, fica evidente a importância da
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organização coletiva para minimizar a situação de vulnerabilidade


socioeconômica desse agrupamento.
Não obstante, faz-se necessário ressaltar que os resquícios da es-
cravidão repercutiram na forma de organização social do trabalho
no Brasil, inserindo parcialmente a população negra no mercado de
trabalho, com mais ênfase na exclusão das mulheres negras, restan-
do o trabalho agrícola em diminutas áreas devido à concentração
fundiária. Esta constatação reforça a importância das cooperati-
vas e associações nos espaços rurais baianos, pois os estudos reali-
zados por Anjos (2016) e Cintrão e Siliprandi (2011) indicam que os
empreendimentos associativos estão contribuindo para alterar, em
alguma medida, a relação de subordinação vivenciada por inúmeras
agricultoras com a conquista paulatina da autonomia econômica.
Outra variável que contribui para a caracterização das condições
de vida do segmento da agricultura familiar no Território é o grau de
escolaridade, expresso na tabela 1, a seguir.

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Tabela 1 – Número de estabelecimentos da agricultura familiar segundo a


escolaridade e o sexo do/a produtor/a no Recôncavo

Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).

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A tabela 1 demonstra que o nível de escolarização da maioria dos/


as agricultores/as do Recôncavo ainda é muito baixo, uma vez que
dos 18.609 que sabem ler e escrever, 95,9% estudaram somente até
o primeiro grau (ensino fundamental). Desses, 63,4% de homens e
36,6% de mulheres. Já entre os 7.448 que não sabem ler e escrever,
28,6% da totalidade de produtores familiares do Território, dentre
eles estão 35,9% de mulheres. Esse contexto, somado à maior pre-
sença de mulheres agricultoras com perfil etário acima de 45 anos
(52,7%), dimensiona o tamanho do desafio para superar a cultura pa-
triarcal na qual foram educadas e serem protagonistas nos percur-
sos pessoais e coletivos.
Quando analisamos a totalidade de estabelecimentos familiares
registrados pelo Censo no Recôncavo, os 26.057 já informados, iden-
tificamos 10.384 (39,8%) vinculados a algum formato associativo, 589
estão em cooperativas, 7.578 inseridos em entidade sindical, 2.856
em associação de produtor e mais 2.831 em associação de moradores.
O fato de nem 50% dos estabelecimentos da agricultura familiar do
Recôncavo estarem vinculados a algum tipo de associação reafirma
nossa análise da agricultura familiar do estado que tem um percen-
tual reduzido de associação. O gráfico 2 , em seguida, apresenta os es-
tabelecimentos familiares associados do Recôncavo segundo o sexo
do/a produtor/a.

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Gráfico - 2 Número de estabelecimentos da agricultura familiar


associados segundo o sexo do/a produtor/a no Recôncavo

Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).

No somatório geral dos/as agricultores/as associados/as, tanto


na Bahia quanto no Recôncavo, os homens têm participação pre-
dominante, no entanto, é preciso destacar que o alto percentual da
presença masculina em cooperativas no estado, 81% contra 19% de
cooperadas, destoa do contexto do Território analisado. Nele, há
39,4% de mulheres cooperadas, restando 60,6% de homens coope-
rados. Considerando que a cooperativa é a entidade jurídica com
finalidade econômica, os dados constatados sugerem maior partici-
pação das mulheres do Recôncavo para diversificar os canais de co-
mercialização, de um lado. Por outro, nos permite indagar se há mais
mobilização das agricultoras do Território no enfrentamento das
desigualdades de gênero que estruturam a inserção sociopolítica de
homens e mulheres nos espaços de poder. Uma hipótese que poderá
ser testada em uma pesquisa qualitativa futura.
Entre os/as produtores/as que estão vinculados a alguma orga-
nização associativa, 1.970 (19%) recebem algum tipo de orientação
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técnica, enquanto 8.814 (81%) não recebem. Esses dados não destoam
da totalidade da agricultura familiar do Recôncavo, que apresenta
um percentual maior ainda dos que não têm acesso à assistência
técnica, 90%, o que equivale a 23.422 estabelecimentos que não têm
acesso ao serviço de ATER. A incipiência desse serviço pode ser uma
das razões de o Censo ter captado somente 6.499 estabelecimentos
identificados como da agricultura familiar possuidores da Decla-
ração de Aptidão ao Pronaf (DAP).
O quadro descrito até então possibilita vislumbrar as dificulda-
des enfrentadas para inserir os produtos familiares no mercado, in-
clusive das agricultoras que estão em formatos associativos, contan-
do também com pouca assistência técnica. Não obstante, a tabela 2
apresenta a finalidade de toda a produção da agricultura familiar do
Recôncavo.

Tabela 2 – Finalidade da produção familiar do Recôncavo

Fonte IBGE - Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).

O Censo apontou que a grande maioria dos estabelecimentos


familiares do Recôncavo destina sua produção à comercialização,
76,3%. Ainda que seja consenso a importância desempenhada pelo
autoconsumo para assegurar, inclusive, a segurança alimentar e nu-
tricional dos segmentos mais vulneráveis, identificar que a produção
familiar tem volume para comercializar é um indício de mudança
nas práticas familiares do estado e do Território.

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Como não é possível realizar um cruzamento pelo sexo do/a pro-


dutor/a para obter os percentuais do destino e da renda gerada no
estabelecimento que está vinculado à organização associativa, apro-
fundamos a análise entre os/as que estão associados/as e os/as que
não estão associados/as, conforme o gráfico 3.

Gráfico 3 – Finalidade da produção familiar dos que são associados e dos


não associados do Recôncavo

Fonte IBGE - Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).

Entre os 26.057 estabelecimentos de agricultores familiares do


Recôncavo, 6.176 destinam sua produção para o autoconsumo, sendo
que a grande maioria desse subconjunto é formada pelos não-asso-
ciados, 4.337 (70%). Já para os 19.881 do subconjunto que destina à
produção para o comércio, são associados 8.545 (43%). O que poderia
ser uma contradição, os não-associados comercializarem mais do
que os associados é explicado pelo número mais reduzido de agricul-
tores associados e, também, pelo percentual mais elevado da agricul-
tura do território que visa à comercialização da sua produção.
No entanto, quando observamos a finalidade da produção
para aqueles estabelecimentos do estado da Bahia associados às
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cooperativas, o percentual que destina principalmente para a comer-


cialização é de 67%, já entre as associações de produtores o percen-
tual é de 52%. Já no Recôncavo, daqueles que estão em cooperativas,
92% destinam para a comercialização; enquanto aqueles que estão
em associação de produtores, 89% apresentam o comércio como fi-
nalidade principal da sua produção. Esses percentuais expressivos
sugerem que as mulheres agricultoras que são as produtoras princi-
pais dos seus estabelecimentos também estão inserindo seus produ-
tos no mercado. Dessa forma, entendemos que os dados analisados
sugerem que elas estão alcançando poder econômico que possibili-
taria, em alguma medida, sua autonomia das relações de dominação
que caracteriza a cultura patriarcal, sobretudo, nos espaços rurais.
No que tange à questão da renda obtida com as atividades desen-
volvidas nos estabelecimentos associados, os agricultores familiares
que estão em associações de produtores e cooperativas na Bahia, 66%
e 55% respectivamente, afirmam que os rendimentos com essas ati-
vidades são menores que os oriundos daquelas atividades realizadas
fora da propriedade. Dessa forma, os dados manuseados demonstra-
ram que, no âmbito estadual, a renda obtida do que é produzido na
propriedade tem caráter complementar a outras rendas obtidas em
outras atividades que podem ser agrícolas ou não agrícolas. No en-
tanto, quando visualizamos a realidade do Recôncavo nesse quesito,
verifica-se que é muito distinta da apresentada pelo estado, como de-
monstrado na tabela 3.

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Tabela 3- Renda maior obtida pelas atividades do/a agricultor/a familiar


desenvolvidas nos estabelecimentos associados na Bahia e no Recôncavo

Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).

Para os agricultores familiares, desses formatos associativos no


Território do Recôncavo, os percentuais dos que afirmaram ser maior
a renda das atividades dos seus estabelecimentos revelam sua impor-
tância para reduzir a situação de vulnerabilidade socioeconômica
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das famílias rurais. Dos 2.856 que estão em associações e dos 589
em cooperativas no Recôncavo, 69% e 76%, de modo recíproco, afir-
maram que os rendimentos oriundos das atividades dos estabeleci-
mentos são maiores do que a renda obtida das atividades em outros
espaços. Considerando que neste universo estão mulheres negras
agricultoras, entendemos que, em alguma medida, a inserção em for-
matos associativos na agricultura familiar está contribuindo para
diversificar os canais de comercialização e ampliar o horizonte da-
quelas que se reproduzem do trabalho realizado no âmbito familiar,
mas, ainda assim, são invisibilizadas e não têm reconhecida sua luta
para romper com a condição de pobreza que caracteriza as comuni-
dades rurais do Território do Recôncavo e do estado da Bahia.

Considerações finais

Este estudo buscou caracterizar as mulheres agricultoras fami-


liares associadas do Recôncavo que foram apontadas como principal
produtora do estabelecimento familiar no Censo Agropecuário 2017.
Embora a análise centrada nas agricultoras na condição de produto-
ras permitiu visibilizá-las com o reconhecimento do trabalho femi-
nino rural que, em certa medida, contribui para reduzir a situação de
vulnerabilidade socioeconômica da agricultura familiar, a perspec-
tiva interseccional demonstrou que as mulheres negras continuam
sendo mais oprimidas do que suas congêneres, inclusive nas escol-
has metodológicas de retratar os diversos atores que compõem o se-
tor agropecuário brasileiro.
O referencial teórico utilizado demonstrou a importância da or-
ganização associativa para o desenvolvimento rural, mas, sobretu-
do, para possibilitar a autonomia econômica das agricultoras que
historicamente foram renegadas como protagonistas das atividades
agrícolas. A luta e as conquistas das mulheres rurais as colocam em
outro patamar quando o objeto de análise de uma pesquisa é o setor
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agropecuário. Ainda assim, percebe-se que a própria forma de captar


os dados que retratam a agropecuária brasileira não favorece a visi-
bilização do trabalho feminino, mantendo a hierarquização patriar-
cal do espaço rural como espaço de poder do homem branco.
Embora as variáveis analisadas tenham permitido verificar que
a agricultura familiar do Recôncavo, com ênfase naquelas/es que es-
tão associadas/os, está rompendo com o ciclo da produção para o au-
toconsumo como destino fundamental, a finalidade principal para a
comercialização parece ser uma tônica que nos permite afirmar que,
em alguma medida, está contribuindo para a autonomia econômica
das mulheres. Por conta da pandemia do coronavírus, não foi possí-
vel realizar uma pesquisa de campo que poderia apontar com mais
concretude o papel das associações de produtores/as e das cooperati-
vas na inserção dos produtos do quadro social no mercado. Também
poderia ter sido captada a própria percepção das agricultoras fami-
liares, com mais ênfase na experiência das mulheres negras, sobre
seu “lugar” na produção familiar e se consideram que alcançaram a
tão almejada autonomia econômica.
Destarte, nas últimas três décadas as mulheres rurais alcança-
ram conquistas relevantes para seu protagonismo, no entanto, ao
final deste estudo é possível afirmar que velhos problemas persistem,
como a falta de assistência técnica e a precária condição de vida nas
comunidades rurais. Esse contexto demonstra o árduo caminho que
mulheres e homens que vivem da agricultura familiar terão que per-
correr para se afastar das vulnerabilidades. Não obstante, é perceptí-
vel que as mulheres agricultoras, em sua grande maioria negras, não
aceitam mais ser coadjuvantes nas batalhas travadas no cotidiano,
ainda que sejam minoria como produtoras principais do estabele-
cimento, estão demonstrando para além da estrutura patriarcal e
discriminatória que impera também no modo de fazer pesquisa, que
são protagonistas nesta história. O que falta é reconhecer!

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tradicionais

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Mulheres de fibra:
da invisibilidade ao empoderamento em assenta-
mentos de reforma agrária

Losângela da Cunha Araújo e Nilson Weisheimer

Introdução

Este artigo tematiza a situação de mulheres agricultoras em as-


sentamentos de reforma agrária. Busca reconstruir sociologicamen-
te práticas sociais que evidenciaram a superação da invisibilidade e
o empoderamento feminino através da mobilização coletiva, acesso
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às políticas públicas e o fortalecimento da agricultura familiar oco-


rrida no Território do Sisal, na Bahia, Brasil.
A condição feminina é vivida por mulheres camponesas em re-
lações sociais especificas que reproduzem uma posição social sub-
alterna, de exploração e invisibilidade social nos processos sociais
agrários. Os trabalhos de Heridia, Gracia e Garcia jr. (1984), Woot-
mann (1995), Brumer (2004) e Heridia e Cintrão (2006), buscam rom-
per com essa invisibilidade ao abordarem as relações sociais no in-
terior de unidades de produção familiares destacando o papel das
mulheres nas dinâmicas produtivas e reprodutivas da agricultura
familiar. Descrevem uma divisão sexual do trabalho, onde as mul-
heres executam com exclusividade o trabalho doméstico; tornam-se
responsáveis, algumas vezes com os jovens, também pelo entorno da
casa e; o manejo de animais de pequeno porte ligados ao autoconsu-
mo das famílias. Tarefas essas que, simplesmente, por serem realiza-
das por mulheres, não são reconhecidos como trabalho. Além disso,
elas atuam ao lado dos homens na “lida da roça” no trabalho agrícola
estrito, que envolve desde a preparação para plantio até a colheita,
sendo essa participação de mulheres caracterizado como “ajuda”.
Concluem que as mulheres têm participação relevante no trabalho
familiar, tanto nas atividades consideradas produtivas, quanto na-
quelas tarefas que são reprodutivas da força de trabalho, e das unida-
des de produção familiar.
Para tratar da “mulher” como categoria sociológica dentro da
agricultura, precisamos considerar que o conceito de gênero está
relacionado a relações sociais que evidenciam desigualdades entre
homens e mulheres. Desse modo, essa diferenciação implica uma
relação de poder instituída socialmente que reproduz práticas de
discriminação e opressão das mulheres. Assim consideramos, junta-
mente com Scott (1995) que:

(...) o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções


culturais” – a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis
adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se

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referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas


de homens e mulheres. (Scott, p.75, 1995)

A diferenciação entre os gêneros acontece por estereótipos, ou


seja, através de uma divisão de nomes e categorias baseadas em cri-
térios, tais como, sexo e associações psicológicas idealizadas pela
sociedade. A noção de patriarcado explica que as diferenças de gê-
nero também estão relacionadas a um conjunto de desigualdades.
As relações sociais no meio rural, por muitos anos, também estão
baseadas em sistemas de dominação, que se reproduziram através de
instrumentos materiais e simbólicos que sustentam as desigualda-
des de gênero impostas pela sociedade. As mulheres foram vítimas
da produção e reprodução dessas desigualdades, já que o seu papel
era apenas dentro da família, cuidado da casa, filhos, mas envolve
a criação para o autoconsumo e o trabalho agrícola, sem nenhum
retorno financeiro e sem reconhecimento.
A participação política e as lutas sociais são essenciais no proces-
so de empoderamento da mulher agricultora. Hilhorst e Wennink
(2010), afirmam que as diversas formas de participação social das
mulheres tornaram-se poderosos instrumentos para a ampliação
dos seus direitos, construindo assim, diferentes relações de solida-
riedade, e desenvolvendo ações com variadas experiências na to-
mada de decisão, no papel de liderança e de transformação da sua
própria história de autonomia, empoderamento e principalmente
na conquista das políticas públicas. A organização, então, é antes de
tudo, fundamental para superar a condição de desigualdade, e um
forte instrumento para garantir a universalidade de direitos, permi-
tindo a ampliação e o acesso aos diversos espaços sociais e políticos
por essa categoria. As mulheres, aos poucos, se tornaram agentes de
mudanças da sua própria história e passaram a se destacar pelo pa-
pel importante na transformação da sociedade civil e política. Lo-
pes e Zarzar (2008) tratam da relação de gênero em assentamentos,
ressaltando a noção de empoderamento nesses espaços, e destacam
que a luta das mulheres rurais assentadas no Brasil representa uma
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ruptura social, ou seja, é um marco em meio à discriminação e à ideia


de submissão que as mulheres no campo estavam inseridas.

A análise deste aspecto tem como referência a noção de “empode-


ramento”, que vem sendo utilizada na avaliação do impacto de po-
líticas públicas sobreas condições de gênero. Os assentamentos são
um recorte empírico privilegiado no uso e discussão do “empodera-
mento da mulher”. Isto porque, na medida em que estão vinculados a
mobilizações prévias de populações carentes, são objetos de variadas
experiências de organização coletiva da produção, e de organização
coletiva e política dos assentados, apresentando processos sociais si-
milares àqueles que constituem a própria noção de empoderamento.
(Lopes; Zarzar, p.220, 2008).

Essa observação de evidências empíricas de superação da invisi-


bilidade social, assim de empoderamento de mulheres agricultoras,
também se fazem perceber no Território do Sisal, na Bahia. O proble-
ma sociológico decorrente, consiste em saber: como se desenvolveu
a superação da invisibilidade e o empoderamento de mulheres agri-
cultoras assentadas pela reforma agrária e quais práticas sociais que
possibilitaram esse processo? Esse questionamento foi levantado
através da análise de quatro eixos de investigação. 1- Organização so-
cial e a formação política das mulheres nos assentamentos agrários.
2- Formas de socialização, produção, organização e cooperação agrí-
cola, 3- Acesso a políticas públicas de desenvolvimento agrário, 4-
Práticas de superação da invisibilidade social e empoderamento das
mulheres nos assentamentos de reforma agrária.
O objetivo geral do artigo, é analisar o processo de empodera-
mento e redução da invisibilidade das mulheres agricultoras as-
sentadas no Território do Sisal. Tendo como objetivos específicos: 1.
Caracterizar a composição social, o processo de organização político
e dinâmicas produtivas dos assentamentos do Território do Sisal; 2.
Identificar como se deu o acesso às políticas públicas para a agricul-
tura familiar pelas mulheres assentadas; 3. Analisar o processo de

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empoderamento e superação da invisibilidade da mulher nos con-


textos dos assentamentos agrários no Território do Sisal.
A presente pesquisa baseia-se no pressuposto de que as mulhe-
res agricultoras assentadas, através da organização social, passaram
a ter acesso às políticas públicas de desenvolvimento rural, que in-
fluenciaram a expansão da agricultura familiar, e resultaram no seu
empoderamento social, político e econômico. A unidade de análise e
sujeitos da pesquisa são as mulheres ocupadas na agricultura fami-
liar, residentes nos assentamentos de reforma agrária de Lagoa dos
Bois Santaluz - BA e em Nova Palmares, Conceição do Coité - BA, no
Território do Sisal.
Este estudo utiliza uma abordagem mista, quantitativa e qualita-
tiva, de construção de dados por fontes primarias e secundárias. As
fontes secundárias de dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE, do Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA,
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
O método misto de fontes primárias, envolveu a aplicação de ques-
tionários padronizados com amostra representativa das mulheres
agricultoras assentadas, entrevistas semiestruturadas individuais,
grupos focais com mulher de ambos assentamentos, e observação
sistemática de longa duração. Com essas técnicas obtemos eviden-
cias sobre o processo de participação social, formação política, ca-
pacitação, socialização, organização em associações, cooperativas
de produção e comercialização de produtos da agricultura familiar,
assim como o acesso a políticas públicas pelas mulheres assentadas
no Território do Sisal.

Território do Sisal e os assentamentos de Lagoa dos Bois e


Nova Palmares

A ideia de território, surge em referência espaço físico, geografica-


mente definido, identificado por características multidimensionais e
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culturais, envolvendo características comuns em termos de ambien-


te, economia, cultura, contextos sociais e políticos. No Brasil, essa
noção de território vai ser assumida pelo Estado, como dimensão
estratégica para promover o desenvolvimento rural, nos anos 2000.
Tendo como marco, a criação da Secretaria do Desenvolvimento Te-
rritorial - SDT, no âmbito da Ministério do Desenvolvimento Agrário.
– MDA, no ano de 2003. Na Bahia, em 2005 foi criada a política de
desenvolvimento territorial, e também se definiu os territórios de
identidade da Bahia como estrutura e diretriz estadual para organi-
zar suas políticas públicas. Essa opção política, de considerar a di-
mensão territorial como lócus da intervenção do Estado, na Bahia
atinge seu marco atual na Lei 13.214/2014, que institui o Conselho Es-
tadual de Desenvolvimento Territorial e os Colegiados Territoriais de
Desenvolvimento Sustentável.
O Território do Sisal é formado por vinte municípios, apresenta
características essencialmente rurais, com uma vegetação que re-
sistem a longos períodos de estiagem, a população compartilha uma
identidade histórica e sociocultural comum. O sisal, que é referên-
cia na região sisaleira como fonte de renda, contribuiu para deno-
minação desse território de identidade, é uma planta que tem seu
surgimento no México, também conhecido como Agave do Semiári-
do e chegou na Bahia em 1903 pelo agrônomo Horácio Urpia Júnior.
Atualmente, o Brasil é referência na produção de sisal do mundo e
a Bahia é responsável por 90% da produção da fibra, em nível na-
cional. A fibra das folhas é a principal matéria-prima do sisal, que
após o beneficiamento, é destinada à indústria de cordas, tapetes e
automobilística. O contexto agrário do Território do Sisal também é
marcado pela concentração fundiária, no qual os agricultores vivem
em pequenas propriedades rurais e precisam desenvolver estratégias
direcionadas para a produção e comercialização de produtos da agri-
cultura familiar para sobreviverem.
A principal dificuldade enfrentada pelas famílias residentes em
assentamentos de reforma agrária no Território do Sisal é a seca. A
escassez de chuva prejudica a agricultura de subsistência e vários
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núcleos familiares, antes do acesso às políticas públicas de desen-


volvimento rural, viveram por muitas décadas no semiárido em si-
tuação de extrema vulnerabilidade social. Os primeiros assentamen-
tos fundados são maiores em termos populacionais e extensão de
terra na região são Lagoa dos Bois em Santaluz - BA e Nova Palmares
- Conceição do Coité – BA. Eles foram os pioneiros na luta pela terra
na região, e atualmente, são referências para os demais assentamen-
tos em organização social, possuindo um grande número de famílias.
O Projeto de Assentamento (PA) Lagoa dos Bois, conhecido tam-
bém como Comunidade de Rose, no Município de Santa Luz – BA,
foi fundado em 10 de julho de 1989, como área de reforma agrária.
Inicialmente, foi ocupada por 78 (setenta e oito) famílias acampadas
que receberam o título da terra em 1996. Atualmente, no PA residem
290 pessoas, tendo uma história de vida marcada por várias con-
quistas sociais e também inúmeras dificuldades. Historicamente a
população de Lagoa dos Bois luta pelo bem-estar das suas famílias
contribuindo com a estruturação de outros assentamentos do Te-
rritório através da troca de experiências. Foi fundada na década de
1990 a Associação dos Pequenos Agricultores da Comunidade Rose
– APACOR, o Grupo de Mulheres Produtoras do Rose GMPR e a Liga
Desportiva e Cultural dos Assentamentos da região do Sisal - LIDER.
Através das reivindicações sociais, inicialmente, os moradores de La-
goa dos Bois foram beneficiados com um crédito habitacional para a
construção de 78 casas através da Caixa Econômica Federal que divi-
diram de forma igualitária os lotes de produção, numa área total de
1.360 hectares.
Em termos de organização social, o assentamento também conta
com um Conselho Escolar denominado Dez de Julho; o Grupo Cultu-
ral de Mulheres Rosas Vivas, que compõem e cantam samba de roda;
Grupo Griôs Sisaleiros, que é composto por cinco membros, dos
quais, duas mulheres e três homens mestres da tradição oral; grupos
de Catequese; benzendeiras e Casa das Artes, formando um espaço
onde são comercializados artesanatos e produtos das mulheres ar-
tesãs assentadas. A participação popular, através dos movimentos
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sociais no espaço rural, é essencial na luta por políticas públicas atra-


vés das instituições (associações e cooperativas) e essa organização é
visível no contexto do assentamento de Lagoa dos Bois. No início da
luta pela terra, o assentamento contou com a contribuição de várias
organizações da sociedade civil, a exemplo do Movimento de Organi-
zação Comunitária – MOC, da Associação dos Pequenos Produtores
Rurais - APAEB de Valente, dos Sindicatos dos Trabalhadores Ru-
rais de Retirolândia e Conceição do Coité e também da Fundação de
Apoio à Agricultura Familiar do Semiárido da Bahia - FATRES.
Atualmente, residem no PA 88 (oitenta e oito) mulheres, que tra-
balham na agricultura familiar e ajudam os companheiros através
da produção e comercialização de produtos da agricultura familiar,
99 (noventa e nove) homens e 103 (cento e três) entre crianças e ado-
lescentes. A raça predominante entre a população é a negra, a faixa
etária da maioria dos sujeitos está entre 20 (vinte) e 40 (quarenta)
anos. Contudo, também se faz presente, nesse contexto, alguns ido-
sos, inclusive foram reconhecidos como mestres da tradição oral
pelo extinto Ministério da Cultura. É importante ressaltar que o êxo-
do rural é quase insignificante no Assentamento de Lagoa dos Bois
atualmente. Segundo os líderes comunitários locais, nos últimos 02
(dois) anos, não houve nenhum registro de jovens que saíram da co-
munidade para trabalhar em outras regiões.
Nos últimos anos, as mulheres têm ganhado espaço no Assenta-
mento de Lagoa dos Bois, principalmente através do grupo de pro-
dução GMPR, já citado, que produz e comercializa produtos da agri-
cultura familiar por meio do Programa de Aquisição de Alimentos
- PAA com a Companhia Nacional de Abastecimento - CONAB e do
Programa Nacional de Alimentação Escolar PNAE – o qual, através
do Decreto 11.947 de 16 de junho de 2009, normatizou que 30% da me-
renda escolar deve ser adquirida através de produtos da agricultura
familiar. Assim, a produção das mulheres é vendida para a merenda
escolar do município de Santaluz - BA.
O assentamento de Nova Palmares foi fundado no dia 12 (doze) de
janeiro de 1998, quando vários pequenos agricultores, denominados
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Mulheres
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tradicionais

“sem-terra” da região do sisal, ocuparam a fazenda Berimbau, per-


tencente ao município de Conceição do Coité no sertão da Bahia. A
fazenda Berimbau possuía 7.500 (sete mil e quinhentas) hectares, e a
ocupação contou com o apoio dos Sindicatos dos Trabalhadores Ru-
rais da região, do Movimento de Organização Comunitária – MOC,
da igreja católica e das lideranças sociais da região. Ressalta-se que
o processo de implantação do assentamento também teve o apoio de
organizações públicas e principalmente dos movimentos sociais do
Território do Sisal.
Atualmente, a comunidade possui 579 (quinhentos e setenta e
nove) habitantes, de acordo com os cadastros da Agente de Saúde lo-
cal, tendo moradia fixa, ou seja, que residem no assentamento. Desde
sua fundação, alguns moradores de Nova Palmares voltaram para
seus municípios ou migraram para outras regiões, pois não resisti-
ram às inúmeras lutas e dificuldades enfrentadas, inicialmente no
PA. Uma característica marcante da comunidade é a luta pelo acesso
à educação do campo para atender a população local, justamente por
entender que essa política é essencial para a melhoria da qualidade
de vida da população e principalmente para a transformação do ser
humano e o acesso à cidadania. O assentamento possui 158 (cento e
cinquenta e oito) mulheres, e menos de 2% são analfabetas. A comu-
nidade conta também com 145 (cento e quarenta e cinco) homens,
147 (cento e quarenta e sete) crianças e 129 (cento e vinte e nove) ado-
lescentes e jovens.
A principal lucratividade concentra-se na extração da fibra do si-
sal e na agricultura familiar. A maior parte das mulheres sobrevivem
trabalhando no sisal. Porém, outras vivem apenas da agricultura fa-
miliar, através da venda de hortaliças, galinha caipira, verduras, pol-
pas de frutas, farinha e na criação de caprinos, suínos e ovinos, junto
com o núcleo familiar. Assim, em Nova Palmares, existem várias
mulheres que comercializam derivados da agricultura familiar atra-
vés do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE e tam-
bém nas feiras locais. Destaca-se que o trabalho das mulheres nes-
se programa está ajudando a suprir, parcialmente, as necessidades
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Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

nutricionais dos alunos beneficiários. Através da oferta de, no míni-


mo, uma refeição diária, busca-se atender os requisitos nutricionais
referentes ao período em que esses alunos se encontram na escola e
este processo tem contribuído para aumentar a renda das mulheres
agricultoras do assentamento.

As mulheres rompem a invisibilidade na luta por direitos

Para os propósitos deste trabalho busca-se discutir como as


mulheres se inserem nas dinâmicas sociais da agricultura familiar
e na luta pela reforma agrária de modo a superarem a invisibilida-
de social e constituírem processos relativos de empoderamento, ao
se fazerem sujeitos de direitos. Assim o debate envolve três série de
questões. Parte da realidade dominante da divisão sexual do trabal-
ho e a invisibilidade da mulher na agricultura familiar. Avança para
participação política das mulheres nos assentamentos de reforma
agrária e acesso apolíticas públicas como oportunidade de autono-
mia e empoderamento.
Inúmeras pesquisas focam na divisão do trabalho por sexo na
agricultura familiar. Segundo Brumer (2004), esses estudos permi-
tem concluir que as mulheres estão inseridas em uma posição in-
ferior dentro da produção e seu trabalho geralmente aparece como
uma forma de ajuda, mesmo que elas trabalhem tanto quanto os ho-
mens ou executem as mesmas atividades dentro da agricultura fami-
liar. Apesar de contribuir para a renda da família e dos avanços do
reconhecimento formal das mulheres como trabalhadoras rurais, o
trabalho feminino na agricultura familiar ainda é considerado com-
plementar ao trabalho masculino. Daí constata-se a desvalorização
da mão de obra feminina no trabalho familiar agrícola. Dessa for-
ma, a falta de reconhecimento e as marcas do patriarcado têm como
consequência a permanência da invisibilidade do trabalho feminino
dentro do setor produtivo da agricultura.
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Mulheres
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades de fibra
tradicionais

A noção de invisibilidade social remete a situações em que deter-


minados sujeitos se encontram imperceptíveis nas relações sociais.
Trata-se portando, de uma ação social, que implica em não ver o
outro, não enxergar sua existência social e tudo que decorre desse
fato. Corresponde a todo um processo de não reconhecimento e in-
diferença em relação a sujeitos subalternos da sociedade. Essa invi-
sibilidade social se configura numa das expressões mais cruéis de
exclusão social, uma vez que se nega ao outro o direito ao reconheci-
mento e a identidade social. (Weisheimer, 2013). A invisibilidade que
acompanha essas mulheres dentro da agricultura, tem fortalecido as
diferenças de gênero e a reprodução das desigualdades. Pacheco ar-
gumenta que: “O trabalho produtivo realizado pelas mulheres no âm-
bito da agricultura familiar é grandemente subestimado pelas fontes
estatísticas oficiais, pois parte-se da premissa que a mulher ocupa o
espaço da casa e que sua ocupação principal é, portanto, a ativida-
de doméstica (Pacheco, 1996, p. 1). A dimensão dessa invisibilidade
do trabalho feminino no campo, pode ser observada pela proporção
de mulheres ocupadas sem remuneração, que é significativamente
mais elevado na agropecuária, em comparação com os demais seto-
res da economia. (BRASIL, 2006, p. 52-54). É nesse sentido que se pode
afirmar, inclusive, que a percepção do trabalho feminino nas esta-
tísticas oficiais, reproduz a invisibilidade da mulher na agricultura.
Então, não podemos negar que a cultura dominante, possui uma
formação ideológica que coloca sempre o homem como chefe de fa-
mília e também como detentor e dono do saber na agricultura fami-
liar. O rural brasileiro nega a mulher como agricultora, já que o es-
paço social agrícola, é marcado pelo patriarcado e seus estereótipos,
segundo os quais, a mulher deve ser educada para cuidar da casa,
reproduzir filhos e ajudar o marido na agricultura sem nenhuma
remuneração. Ressalta-se que, além da desvalorização da sua capa-
cidade produtiva, ocorre também uma discriminação desses sujeitos
como chefes de família quando não possuem companheiros. Dessa
forma, as agricultoras permaneceram invisíveis por muitos anos,
trabalho não reconhecido, sem acesso às rendas agrícolas e tratadas
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pelos companheiros com discriminação e sem nenhuma retribuição.


Essas práticas contribuíram para a invisibilidade do papel da mul-
her na agricultura, que busca reconhecimento a autonomia como
agricultora. Contudo, as mulheres vêm conquistando espaços antes
negados, principalmente através da organização social e do acesso
às políticas públicas, direcionadas para a inclusão social. Segundo
Melo (2003), estaria havendo um aumento da participação da mul-
her como chefe de família no espaço rural, fortaleceu-se também
a presença dos filhos e companheiro nas tarefas domésticas, ainda
que, em nível de ajuda.
Ao analisar a participação das mulheres no processo de luta pela
terra, é necessário atrelar as questões agrárias que fazem parte da
história do Brasil, que sempre foram marcadas por hierarquias, re-
lações de poder político, econômico, social e cultural, que envolvem
inúmeros interesses, principalmente da elite agrária no país. Dentro
desse processo de lutas, é visível um forte embate entre proprietários
e grupos econômicos, inclusive muitas vezes, tendo o Estado ao seu
lado e contra trabalhadores/as rurais (posseiros, meeiros, arrenda-
tários, assalariados, pequenos produtores e assim por diante), histo-
ricamente colocados em uma situação de extrema vulnerabilidade
social, tendo seus contextos marcados pela pobreza. Todas essas
lutas envolveram diferentes segmentos das classes subalternas do
campo, com o intuito de terem acesso a melhores condições de vida
no meio rural. Pensar as mulheres como sujeitos dos conflitos socais
agrários é também analisar as condições de vida, de exclusão e de
desigualdade social que elas sempre estiveram inseridas. As mulhe-
res agricultaras do Território do Sisal, também, começam a partici-
par das lutas sociais, conforme nos relata Siliprandi (2015), em um
período em que já emergiam diversas campanhas das mulheres ru-
rais por ampliação dos seus espaços de representação e por maior
visibilidade para suas reivindicações, o que levou as mulheres si-
saleiras a engajar-se em um movimento. Com efeito, a participação
política das mulheres assentadas se deu, principalmente, através
dos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e outras
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organizações sociais. Marco dessa participação resultou na Marcha


das Margaridas, organizado pela CONTAG em 2000. Desde então,
essas mobilizações têm colaborado para as transformações que oco-
rreram na realidade destes sujeitos dentro dos assentamentos.
As agricultoras do Território do Sisal passaram a conciliar jorna-
das múltiplas, portanto, não deixam de serem esposas, mães, agri-
cultoras, chefes de família e sindicalistas, etc. Após essa experiência
de engajamento, a família passa a ser compreendida a partir da par-
ticipação de todos os seus membros: mulheres e homens. Assim, um
avanço observado tem sido os novos sentidos assumidos pelo con-
ceito de família. Reconhecendo as Mulheres Chefes de Família e sua
inclusão em espaços políticos e sociais onde até então as mulheres
haviam sido excluídas. Isso se reflete numa crescente participação
dessas mulheres agricultoras assentadas. A participação social e a
formação política das mulheres assentadas são desenvolvidas pelo
Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais ligados a FE-
TAG-BA1 e por organizações civis, tendo o Movimento de Organização
Comunitária - MOC2 como pioneiro nesse processo em parceria com
os STRs. Atualmente além do MOC e dos STRs, destaca-se também a
atuação da Fundação de Apoio à Agricultura Familiar do Semiárido
da Bahia – FATRES3 , que tem fortalecido as ações direcionadas para
o empoderamento feminino, dentro da agricultura familiar.
Ao tratar do incentivo das organizações civis para a participação
social e a formação política de mulheres no espaço dos assentamen-
tos do Território do Sisal, é importante ressaltar que esse processo
ocorre, principalmente, através de associações e cooperativas locais,
as quais, reivindicam o acesso às políticas públicas, assim como a so-
cialização, produção, organização e cooperação solidária de grupos

1
Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura no Estado da Bahia.
FETAG-BA. Fundada e 1963.
2
O Movimento de Organização Comunitária - MOC. Em funcionamento desde outu-
bro de 1967.
3
Fundação de Apoio à Agricultura Familiar do Semiárido da Bahia – FATERS em fun-
cionamento desde 1996.

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produtivos femininos da agricultura familiar. Quando se aborda o


empoderamento da mulher, Saffioti (2004), destaca que ele se mate-
rializa quando ocorre o rompimento com o cotidiano. Dessa forma, é
preciso que as mulheres conheçam seus direitos, suas possibilidades
e potencialidades, para, assim, lutarem pela sua autonomia. Lisboa
(2008), destaca que o empoderamento feminino acontece quando as
mulheres são capazes de mudar suas crenças e comportamentos, lu-
tando contra as diversas formas de opressão e submissão, inclusive
em espaços rurais dentro da agricultura familiar.

O movimento de mulheres tem situado o empoderamento no campo


das relações de gênero e na luta contra a posição socialmente subor-
dinada das mulheres em contextos específicos. O termo empodera-
mento chama a atenção para a palavra “poder” e o conceito de poder
enquanto relação social. O poder (na ciência política geralmente vin-
culado ao Estado) pode ser fonte de opressão, autoritarismo, abuso e
dominação. Na proposta do feminismo, porém, pode ser uma fonte
de emancipação, uma forma de resistência. (LISBOA, 2008, p. 5).

Tratando a questão do empoderamento como forma de eman-


cipação, é importante ressaltar que, inicialmente, é preciso que as
mulheres conheçam e tenham acesso a seus direitos, para, então, su-
perar a subordinação na qual foi inserida por meio de estereótipos
e ideologias dentro de uma sociedade marcada pela discriminação
feminina, principalmente, no espaço rural brasileiro. Dados levan-
tados pela Secretaria de Irrigação e Reforma Agrária – SEAGRI-BA
apresentam que 27% dos lares rurais no Brasil são chefiados por
mulheres, algumas são divorciadas (separadas), enquanto outras, os
companheiros precisam migrar para regiões diversas à procura de
trabalho, pois nos grandes períodos de estiagem, principalmente no
semiárido da Bahia, são comuns as dificuldades enfrentadas na agri-
cultura familiar, atingindo inúmeros pais de família, que precisam
garantir o sustento dos núcleos familiares.
Não podemos negar que o atual sistema capitalista excluden-
te tem influenciado negativamente na conquista de espaços pelas
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mulheres, na luta pelo seu empoderamento. Mas, mesmo assim, elas


persistem e muitas têm na agricultura familiar sua fonte de renda e
sustento da família. Ou seja, os ajustes econômicos e a exploração
capitalista aprofundam ainda mais a desigualdade entre homens e
mulheres. Carneiro e Teixeira (1995) destacam que, em meio à cons-
trução de uma nova identidade da mulher na agricultura, a sua mo-
bilização popular pode ser analisada também como uma forma de
garantir visibilidade e participação na economia familiar. O papel
econômico que as mulheres desempenhavam dentro da agricultura,
sem o devido reconhecimento, pode justificar a urgência que mobi-
liza as exigências sobre os direitos das mulheres do campo. As lutas
sociais para a autonomia das mulheres agricultoras que venham a
resultar no seu reconhecimento, como sujeitos, na condição de pro-
dutora e trabalhadora ativa no campo, derivam no fortalecimento
de uma nova identidade feminina da mulher, pautada nos direitos
sociais. Através da pressão dos movimentos de mulheres, já se regis-
tram inúmeras conquistas no campo dos direitos e da implantação
de novas institucionalidades:

No Brasil, foi através da mobilização das mulheres por sua valori-


zação e reconhecimento como trabalhadoras rurais, intensificada na
década de 1980, que elas conquistaram direitos previdenciários. [...]
A atuação do Estado na agricultura familiar resultou na criação de
novas medidas para assegurar os direitos das mulheres ao crédito,
como o PRONAF Mulher (introduzido no Plano Safra 2003-2004) na
forma de adicional de 50% aos recursos absorvidos pelos agriculto-
res familiares dentro do programa. (BRASIL, 2006, p. 234-238).

Ainda é alto o número de mulheres que necessitam de apoio e


do acesso às ações e práticas que permitam o seu empoderamento
e sua autonomia no meio rural, mesmo essas demandas não sendo
tão recentes. Por outro lado, atualmente, em várias regiões do Bra-
sil, incluindo o Nordeste, há algumas ações de incentivo para a or-
ganização das mulheres rurais em cooperativas solidárias para pro-
duzir e comercializar produtos da agricultura familiar, através da
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economia solidária. Percebe-se que a união de mulheres rurais em


cooperativas através da economia solidária é um passo na luta pelo
reconhecimento das mesmas, podendo ser um importante instru-
mento para seu empoderamento dentro da agricultura. Mesmo ain-
da atuando de forma tímida nos contextos rurais, as cooperativas de
produção e comercialização estão contribuindo para a diminuição
da invisibilidade das mulheres, principalmente no semiárido da Ba-
hia, todavia, essas ações solidárias precisam de incentivos. É visível
que os movimentos sociais têm contribuído na redução das desigual-
dades, através de suas lutas, garantindo resultados positivos na vida
das mulheres do campo no Brasil. A política de produção e comercia-
lização de produtos da agricultura familiar almeja viabilizar o empo-
deramento para algumas mulheres, de forma que, libertando-se do
domínio dos companheiros, através do acesso a informações de seus
direitos, sejam incluídas social, geográfica e politicamente. Então, é
possível concluir que as mulheres agricultoras estão conquistando
seu espaço e superado os estereótipos que marcaram a sociedade
brasileira por tanto tempo, como a imagem da mulher como um su-
jeito subalterno e sem autonomia. Essa realidade está refletindo di-
retamente na conquista da sua autonomia e do seu empoderamento.
O acesso a políticas públicas pelas mulheres agricultoras no Bra-
sil pode ser caracterizado como um processo recente, pois durante
muito tempo esses sujeitos foram vítimas da discriminação sem
nenhuma resistência, sendo colocados em um patamar de inferio-
ridade pela sua condição de gênero. Entretanto, não podemos negar
que esses sujeitos possuem um importante papel na produção da
agricultura direcionada para o consumo familiar e também para a
comercialização que é incentivada pelas políticas públicas.

Uma outra iniciativa e que responde mais diretamente às pautas


dos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais, foi a criação em
2002 do “Programa de Ações afirmativas para Promoção de Igualda-
de e Oportunidade de Tratamento entre Homens e Mulheres”, vin-
culado ao MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário. Em 2003

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seu nome foi mudado para “Programa de Promoção da Igualdade em


Gênero, Raça e Etnia”. O Programa tem o objetivo de promover e ar-
ticular ações que fortaleçam a cidadania e a justiça social no meio
rural brasileiro. Sua atuação envolve o diagnóstico, a viabilização e o
aperfeiçoamento de políticas públicas capazes de corrigir processos
seculares de exclusão, subsidiando o MDA e o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (IINCRA) na elaboração de políticas.
Entre os principais pontos abordados estão o acesso à terra, políti-
cas de crédito, a titulação conjunta, e os programas de capacitação
voltados para o público rural feminino. [...] Além deste Programa, é
possível verificar a preocupação com a incorporação da perspectiva
de gênero em várias das Secretarias e Órgãos do Ministério do Des-
envolvimento Agrário. No entanto, a efetivação das ações é um pro-
cesso lento. (HEREDIA; CINTRÃO, 2006, p.18).

Foram criados programas específicos para a mulher, dentro da


reforma agrária, que buscam garantir o direito da mulher sem-terra,
de ser beneficiada com acesso à terra igualmente aos homens e o
Programa Nacional de Crédito Fundiário – PNCF, uma política com-
plementar de reforma agrária que financia a aquisição de imóveis
rurais que não podem ser desapropriados para exploração em regi-
me de economia familiar por trabalhadoras rurais sem terra ou com
pouca terra. O reconhecimento dessas mulheres como produtoras na
agricultura familiar foi uma das principais demandas no decorrer
do processo das lutas pelos direitos das mulheres agricultoras. Mas,
para analisar se realmente ocorreu o empoderamento e a superação
da invisibilidade da mulher nos assentamentos de reforma agrária
no Território do Sisal, é necessário compreender também que as re-
lações de gênero no espaço rural sempre foram estruturadas, através
de sistemas de dominação e exploração. Portanto, as mulheres não
são invisíveis, elas são invisibilizadas em um contexto marcado his-
toricamente pelo poder patriarcal. Siqueira (2014) destaca que, na
perspectiva das lutas pelos direitos das mulheres, o empoderamento
é, pois, entendido como o processo da conquista da autonomia, da

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autodeterminação, implicando, portanto, na libertação das mulhe-


res das amarras da opressão de gênero.

O termo empoderamento se refere a uma gama de atividades, da as-


sertividade individual até à resistência, protesto e mobilização co-
letivas, que questionam as bases das relações de poder. No caso de
indivíduos e grupos cujo acesso aos recursos e poder são determi-
nados por classe, casta, etnicidade e gênero, o empoderamento co-
meça quando eles não apenas reconhecem as forças sistêmicas que
os oprimem, como também atuam no sentido de mudar as relações
de poder existentes. Portanto, o empoderamento é um processo di-
rigido para a transformação da natureza e direção das forças sistê-
micas que marginalizam as mulheres e outros setores excluídos em
determinados contextos. (BATLIWALA, 1994, p. 130).

As ações voltadas para o empoderamento das mulheres almejam,


principalmente, propiciar condições para que elas possam questio-
nar, desestabilizar e se organizar com vistas à erradicação da ordem
patriarcal vigente de poder. Nos últimos anos, estamos presenciando
várias transformações nesses contextos com uma participação cada
vez maior das mulheres em espaços que antes eram direcionados
apenas para homens, exemplo disso, é a agricultura familiar e a re-
forma agrária do Brasil.

Empoderamento das mulheres assentadas do Território do


Sisal

As mulheres agricultoras vêm se destacando e ganhando seu es-


paço há algumas décadas no Brasil, através de suas inúmeras lutas
sociais. No Território do Sisal, na Bahia essa realidade não é dife-
rente. A ideia de mulheres de fibra, para definir as sisaleiras, vem do
grande índice desses sujeitos que trabalham na extração da fibra do
sisal. Oliveira (2010), ao abordar sobre a população do Território do
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Sisal, destaca que vários elementos vão se reunindo no espaço e no


tempo para formar a personalidade e a cultura dos sisaleiros, o qual
vai adquirindo características próprias, que os distinguem da popu-
lação de outros territórios na Bahia.
Os assentamentos são ambientes marcados por inúmeras lutas
sociais, pelo direito do acesso à terra, foi em meio aos conflitos que
os sujeitos foram ganhando vozes e as mulheres estiveram presen-
tes nesses embates no Território do Sisal. Segundo Dona Maria Baia,
griô4, mestre da tradição oral, residente no Assentamento de Lagoa
dos Bois, “nós somos mulheres, mas, também lutamos pela terra,
além de acompanhar os homens para derrubar acerca da fazenda,
éramos nós que cozinhávamos, lavava, passava e também entrava na
briga pela terra”. Questionada sobre o reconhecimento dos homens
sobre esses esforços da categoria feminina na luta pelo direito a pro-
priedade rural, Dona Maria Baia ressaltou que:

Pouco era valorizado o nosso trabalho naquele tempo, lá para os


anos 80, a gente queria era um pedaço de terra para diminuir o nosso
sofrimento, depois foi que veio os grupos de mulheres e passamos a
lutar pelos nossos direitos e também pelo nosso dinheirinho, mesmo
contra a vontade dos maridos.

Uma reflexão importante a partir das afirmações de Dona Baia é


que, após a posse da terra, as mulheres se organizaram em grupos,
“que passaram a lutar pelo seu dinheirinho”. Assim, é possível perce-
ber que essas organizações coletivas foram essenciais nas resistên-
cias dessa categoria e na luta pela sua autonomia, inclusive a finan-
ceira. Já para Dona Joana, de 62 anos, essas mulheres já trabalhavam
na agricultura antes dos assentamentos e do acesso às políticas pú-
blicas. O que era produzido com a agricultura alimentava a famí-
lia: “tinha seca, mas dava para guardar alguns alimentos, às vezes

4
O termo griô tem origem nos músicos, genealogistas, poetas e comunicadores so-
ciais, mediadores da transmissão oral, bibliotecas vivas de todas as histórias, os sa-
beres e fazeres da tradição, sábios que representam nações, famílias e grupos de um
universo cultural fundado na oralidade da África.

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até vendia um pouco”. Entretanto, ela afirma que era necessário a


cooperação entre os membros da comunidade para poder extrair al-
gum rendimento do sisal. Assim na lavoura do Sisal, as famílias se
reuniam para extrair em conjunto, compravam o motor e trabalha-
vam em coletivamente para sobreviver. Ela então foi para obter a sua
autonomia como mulher assentada, em meio as práticas produtivas
coletivistas presentes no território, ela responde:

Eu sempre labutei para criar os filhos, depois de um tempo trabal-


hando na roça para viver, o marido passou a me dá um dinheirinho,
pouco, mais era do trabalho do sisal e do que vendia da roça, sou can-
tadeira e sambadeira do grupo Rosas Vivas. E sempre falei ao marido
que ele não ia “impatar” eu dançar. Hoje sou aposentada rural, mais
antes disso vivia do trabalho na roça e era e sou feliz. Ainda crio a ga-
linha, planto na roça e isso me faz feliz, sou sim dona da minha vida.

“Labutar” é sinônimo de trabalhar, “impatar”, no dito popular,


é sinônimo de proibir. Assim, identificamos que há uma grande co-
ragem e audácia nas mulheres ao afrontar os companheiros. Essa
ousada segurança, autoestima e lutas contra o machismo, surge jus-
tamente das resistências, vivências e militâncias. São reflexos das
formações políticas e participações sociais, nas quais passam a rei-
vindicar seus espaços e tomar consciência de seus direitos enquanto
sujeito. Portanto, resultado da conquista de sua autonomia e con-
dição de empoderamento.
A partir de uma interação com campo da presente pesquisa, ini-
cialmente, foram elaborados quatro eixos temáticos para análise
que norteiam o estudo. 1- Organização social e a formação política
das mulheres nos assentamentos agrários. 2- Formas de socialização,
produção, organização e cooperação agrícola, 3- Acesso a políticas
públicas de desenvolvimento agrário, 4- Práticas de superação da in-
visibilidade social e empoderamento das mulheres nos assentamen-
tos de reforma agrária. As vertentes partiram de um olhar sobre a
realidade dos sujeitos, considerando as ações e movimentos dessas

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mulheres, as quais resultaram nas diversas lutas pela sua autonomia


e empoderamento.
A participação dessas mulheres assentadas na luta por políticas
públicas, para sua categoria, pela libertação das amarras de um sen-
so moral que dita a submissão delas a uma cultura machista, é uma
importante forma de resistência. Quando esses sujeitos se inserem
em movimentos de reivindicações, estão contribuindo não só para
a superação de sua invisibilidade e conquista de espaços sociais,
mas, principalmente, influenciam na construção de uma sociedade
livre de imposições preconceituosas e discriminações contra as dife-
renças de gênero.
No Quadro 1, é apresentado o resultado em percentuais das res-
postas afirmativas das entrevistadas. Inicialmente observa-se que
70% das mulheres destacaram que participaram de atividades e prá-
ticas de formação política e social. Destaca-se que 80% frequentam
e participam de organizações sociais, como Sindicatos de Trabalha-
dores Rurais e grupos de igrejas; 70% são beneficiadas direta e in-
diretamente pelos grupos de produções através da comercialização
de produtos da agricultura familiar; 85% recebem o Bolsa Família,
um importante complemento para a renda familiar. Já 25% fazem
parte de grupos culturais através de cantigas e samba de roda; 55%
acessam o PRONAF e investem na produção agrícola; 70% vendem
para o PAA e PNAE; 65% trabalham na extração da fibra do sisal; 60%
ressaltaram que seus companheiros reconhecem e valorizam o tra-
balho da mulher na agricultura familiar e, por fim, 80% abordaram
que a agricultura familiar é essencial para seu empoderamento e au-
tonomia enquanto mulher.

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Quadro 1. Síntese das variáveis.

Fonte: Trabalho de Campo, ARAUJO / NEAF, 2017.

Frente às principais variáveis que nos permitem identificar as


transformações que ocorreram na vida das mulheres assentadas no
Território do Sisal. Como resultado, essas mulheres estão conquis-
tando mais autonomia, ocupando mais espeço sociais, não apenas
de produção, mas também os espaços de decisão. Contudo, é preciso
destacar que esse processo foi construído através de inúmeras lutas e
reivindicações como relatam as próprias mulheres.
Partindo de um olhar sobre o assentamento de Lagoa dos
Bois em Santaluz-BA, quando falamos de participação social, po-
demos destacar os Cursos de Gestão de Água para Produção de Ali-
mentos – GAPA. Os cursos de GAPA orientam como usar de forma
sustentável as tecnologias sociais de captação de água e são as mul-
heres que dominam a produção de hortaliças dentro dos assenta-
mentos através de seus quintais, sendo que o valor adquirido com a
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Mulheres
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comercialização desses produtos contribui para a autonomia finan-


ceira das próprias mulheres.

A produção ao arredor de casa, também conhecida como quitais,


é desenvolvida onde o solo é mais fértil, é nesses espaços que ar-
mazenam água e depois distribuída para o consumo da família, para
as plantas e pequenos animais. E é nesses espaços que boa parte da
mão de obra, especialmente das mulheres e filhos está mais dispo-
nível e acessível à produção e para o auto consumo. [...] O modo de
se alimentar sempre ultrapassa o simples ato de comer e se articula
com outras dimensões sociais e com a identidade. A alimentação hu-
mana, como um ato social e cultural, contribui para a constituição
de diversos sistemas. [...] Diante disso, a garantia da soberania e da
segurança alimentar e nutricional passa por uma concepção de des-
envolvimento sustentável, que se baseia numa agricultura familiar
agroecológica que garanta a sociodiversidade e o respeito à natureza
(MDA, 2014, p. 56-57).

Assim, mais de 70% das mulheres entrevistadas nessa pesquisa


afirmou participar ou já ter participado, de algum curso de formação
política, e 80% delas também ressaltaram frequentar socialmente
vários espaços como associações, sindicato de trabalhadores rurais,
grupos de igrejas e cooperativas para reivindicar seus direitos. A
formação política, segundo elas, acontece também nas atividades
desenvolvidas pelos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais – STR por
meio da Secretaria de Mulheres. Foram destacadas atividades como
palestras para apresentação da Lei Maria da Penha, capacitações so-
bre habitação rural, cursos de gestão de recursos hídricos, cidadania
e também formações na área de assistência técnica rural - ATER atra-
vés dos projetos do Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA.
Outro exemplo é da Edilaine Oliveira Santiago, casada, 27 anos,
militante do coletivo de jovens do Sindicato dos Trabalhadores Ru-
rais de Conceição do Coité-BA, residente no Assentamento de Nova
Palmares. A mesma foi candidata à vereadora pelo Partido dos Tra-
balhadores – PT no município no pleito eleitoral de 2016, na ocasião
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Nilson Weisheimer
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obteve 278 votos. Edilaine também é vice-presidente da Associação


dos Pequenos Produtores e Assentados de Nova Palmares e destaca
que: “As mulheres assentadas estão participando de diversos espaços
de empoderamento, as quais, estão se tornando lideranças comuni-
tárias e políticas. Estão se tornando presidentes de associações, di-
retoras de sindicatos, coordenam grupos de produção, isso é uma
grande evolução para nós”. A afirmação de Edilaine é baseada nas
suas experiências como militante, pois, até recentemente, apenas os
homens eram representantes no legislativo e também lideravam as
associações. O índice de mulheres dentro da gestão pública no Terri-
tório do Sisal, até meados da década de 1990, era nulo, porém, atual-
mente, temos várias representantes, sobretudo no poder legislativo
dos municípios.
A cooperação é essencial para a autonomia e empoderamento fe-
minino através do Grupo de Produção de Mulheres Produtoras do
Rose – GMPR, que comercializa os derivados da agricultura familiar
como ovos, galinha caipira, bolo, beijus, hortaliças, sequilhos etc,
nas feiras regionais para o PAA e PNAE. O grupo é composto direta-
mente por vinte mulheres, ou seja, apenas 23% das assentadas locais,
mas também beneficia as demais moradoras, por meio da compra
de seus produtos para a revenda. 70% das entrevistadas no assenta-
mento afirmaram que o excedente produzido na agricultura fami-
liar não consumido é repassado para a revenda, através do grupo de
produção. O GMPR tem sede própria no assentamento e atualmente
conta com um patrimônio de 40 mil reais. Nas entrevistas, as mulhe-
res afirmaram que “tem mês de conseguir retirar quase um salário
mínimo e que essa cooperação é essencial para sua autonomia”, pois
o valor é ganho com seus esforços, é usada para a compra de utensí-
lios pessoais e para seus filhos, sem precisar “pedir” aos companhei-
ros. Patrícia Santiago, líder do grupo, destaca que até dá para fazer
uma poupança e avalia o GMPR como um importante instrumento
para o empoderamento socioeconômico das mulheres assentadas
em Lagoa dos Bois.

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Mulheres
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Tratando do Assentamento de Nova Palmares em Conceição do


Coité-BA, a cooperação de mulheres também é uma prática constante
através do grupo de produção Mulheres de Fibra de Nova Palmares.
Criado em 2013, é uma organização que conta com a participação di-
reta de nove mulheres, que produzem poupas de frutas, hortaliças e
outros derivados da agricultura familiar para o consumo da própria
família e também para a comercialização através do PAA e PNAE. O
grupo ainda não possui sede própria e usa o espaço da associação lo-
cal, mas, segundo Jovelina Santiago, membro da cooperação, assen-
tada, 33 anos, casada, mãe de dois filhos, “as políticas públicas como
PAA e PNAE estão contribuindo para melhorar a vida das mulheres
assentadas, já que o valor ganho com a comercialização dos produ-
tos da agricultura familiar contribui para a nossa sobrevivência”. En-
tretanto, constatou-se que a união dessas mulheres é uma ação refle-
xo das suas lutas por melhores condições de vida, ou seja, diante da
ausência de trabalho elas passaram a utilizar os produtos da agricul-
tura familiar como fonte de renda e estão ganhando cada vez mais
espaços nas feiras regionais do Território do Sisal. Entre os dias12 e
13 de maio de 2017, aconteceu a 8ª Feira da Agricultura Familiar, Eco-
nomia Solidária e Reforma Agrária do Território do Sisal em Valen-
te-BA e essas mulheres estiveram presentes vendendo seus produtos.

Nesses grupos, além da produção para a geração de renda, encontra-


mos os movimentos sociais de mulheres trabalhadoras rurais e re-
des de mulheres que em uma região do Estado ou mesmo numa rede
regional, buscam sua autonomia através da organização produtiva
e mostram a diversificação da produção econômica das mulheres
que vai do agrícola ao não agrícola, passando por uma diversidade
impressionante das formas de inserção das mulheres na economia
rural (MDA, 2006, p. 103).

Assim, os trabalhos coletivos são exemplos de lutas conta as des-


igualdades enfrentadas por essas mulheres, que aos poucos estão
tendo a própria renda e com isso conquistam a independência finan-
ceira e o seu empoderamento, tornando-se sujeitos reconhecidos e
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valorizados através das suas lutas sociais, vencendo as diversas for-


mas de discriminação que enfrentaram por décadas.
Tratando das políticas para as mulheres assentadas em Lagoa dos
Bois e Nova Palmares, através da pesquisa, é possível destacar que to-
das elas já acessaram ou acessam algum tipo de programa ou projeto
social. O Bolsa Família é o mais presente nesses contextos. 85% das
mulheres entrevistadas afirmaram receber o benefício, enquanto
55% delas também foram contempladas com o PRONAF e afirmam
ter investido sobretudo na aquisição de animais de pequeno porte
como aves, suínos, ovinos e caprinos.

O PRONAF trata-se de uma linha especial que teve seu acesso facili-
tado através da garantia de uma operação a mais por família, inde-
pendente do crédito que tenha sido contratado pelo grupo familiar.
Através desse crédito podem ser financiados atividades agrícolas e
não-agrícolas iguais ou distintas daquelas que vem sendo pratica-
das pelas unidades familiares que a elas integram. Este crédito pode
ser acessado de maneira individual ou coletiva. [...] Com a criação do
PRONAF como linha especifica houve uma melhoria na distribuição
regional dos contratos (MDA, 2006, p. 110).

Outras ações governamentais que beneficiam as mulheres da pre-


sente pesquisa são os programas PAA e PNAE. Como vimos, 70% das
mulheres assentadas são contempladas por essas políticas, pois ne-
gociam seus produtos, contribuindo para melhorar a sua renda. As-
sim, tanto o acesso ao crédito como as vendas da agricultura familiar
possuem grande importância no incentivo e continuidade das ações
produtivas das mulheres assentadas no Território do Sisal de forma
individual e também coletiva. Isso possibilita a superação da invisi-
bilidade do trabalho reprodutivo agrícola no cotidiano da unidade
familiar enfrentada historicamente por esses sujeitos. Nesse sentido,
abre-se um caminho para o empoderamento e a autonomia econô-
mica das agricultoras, permitindo que elas contribuam efetivamente
para a renda familiar, o que, consequentemente, permite também
um aumento da participação em espaços públicos e políticos. É
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perceptível que as políticas públicas, reivindicadas pelas mulheres


assentadas e implantadas em suas comunidades, foram fundamen-
tais no processo de empoderamento dessa categoria no Território do
Sisal. Isso se justifica, pelo fato de tais políticas terem contribuído
para o fortalecimento da comercialização, financiamento da pro-
dução agrícola, através do acesso ao crédito, elevação da leitura e
escrita desses sujeitos, permitindo a diminuição do analfabetismo.
Impactando ainda, na diminuição das desigualdades de gênero. Por-
tanto, só após várias reivindicações, que as vozes das mulheres as-
sentadas começaram a ser ouvidas e suas lutas recompensadas, já
que passaram a ter acesso a projetos e programas que tem contribuí-
do para o aumento da sua autonomia e superação de sua invisibili-
dade. Dona Maria Baia, mulher guerreira, também organizou dentro
do assentamento de Lagoa dos Bois um grupo de dez mulheres, onde
ensinou por um ano suas receitas alternativas e também em parceria
com a Escola Municipal Dez de Julho da comunidade ministrou du-
rante um semestre em 2012 aulas para as crianças sobre a culinária
regional. Dona Baia destaca:

Eu hoje não sou mais mulher que antes, mas posso dizer que tenho a
“minha vida”. Mando e desmando em mim (risos), sou mãe, mulher
assentada e agricultora, meu marido teve que aprender que posso
construir a minha história, e o meu livro está lançado. A gente mul-
her tem que lutar pelos direitos, e meu companheiro Isael me apoia,
antes reclamava. Hoje tenho mais autonomia. A seca não deixa col-
her muito, mas temos o ovo da galinha, a criação de animal... Tudo
isso ajuda a gente na roça, o que sobra a gente vende, quando não dá
para vender a gente come.

Entretanto, percebemos que as resistências das mulheres assen-


tadas não são ações novas, sempre lutaram, inovam e criaram meios
de sobrevivência para o núcleo familiar. Frequentam vários espaços
sociais, trabalham na agricultura, mesmo tendo de cuidar da casa e
dos filhos. São sujeitos que protagonizam as transformações sociais
ao seu redor, comparecem na cena pública para debater questões
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que lhes dizem respeito, colocando em pauta a sua autonomia e


empoderamento.
O acesso às políticas públicas para a agricultura familiar foi es-
sencial para as transformações ocorridas no cotidiano das mulheres.
Entretanto, essas conquistas acontecem em meio a inúmeras afron-
tas, conflitos e militâncias como já comprovado no decorrer dessa
análise de dados. Ao contrário dos estereótipos e rótulos cridos sobre
as mulheres assentadas, que eram simples donas de casa, Dona Joa-
na nos mostra que esses sujeitos sempre trabalharam na agricultura,
mesmo antes do acesso às políticas públicas que se fortalecerem a
partir de 2002. Há muitos anos essas mulheres já labutavam na roça,
entretanto, sem o seu devido reconhecimento. Além de apresentar
suas experiências cotidianas de lutas, essas expressões culturais são
importantes instrumentos de superação do machismo, uma vez que
muitas mulheres enfrentam os maridos, vão dançar e sambar atra-
vés da apresentação do grupo Rosas Vivas, mesmo alguns deles de-
fendendo a tese antiquada e preconceituosa de que mulher casada
não deve se expor.

Fui vender uma boiada

No campo grande da feira,

Não tem dinheiro que pague,

Uma mulher sambadeira;

Resposta:

Uma mulher sambadeira

Merece um laço de fita,

Não há dinheiro que pague,

Um beijo de uma moça bonita.

(Letra: Joana Santiago)

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Na cantiga exposta, produzida por Dona Joana, na primeira es-


trofe, é possível concluir que se refere às feiras de gado que tem aos
sábados no município de Santaluz - BA, onde em algumas ocasiões
as mulheres do grupo se apresentam, desconstruindo os estereótipos
que, por serem mulheres, devem ficar em casa e cuidar dos filhos. Na
frase “Não há dinheiro que pague uma mulher sambadeira” está tra-
tando do fato de que nenhum valor simbólico e material são equiva-
lentes à liberdade de se apresentar em espaços que antes eram ape-
nas frequentados por homens, exemplo das feiras de gado da região.
“Uma mulher sambadeira, merece um laço de fita”, ou seja, merece
ser reconhecida, valorizada e respeitada, já que o fato de dançarem
e cantarem não as tornam sujeitos inferiores, ao contrário, compro-
vam que vêm conquistando cada vez mais espaço e através de mobili-
zações coletivas contra as diversas formas de preconceitos e estereó-
tipos que enfrentaram durante anos.

Considerações finais

Ao finalizar o trabalho de campo, e considerar os dados da pre-


sente pesquisa, foi possível constatar que houve transformações nas
formas de vidas das mulheres assentadas do Território do Sisal. Elas
passaram a ocupar diferentes espaços sociais que antes lhes eram
negados. Adquiriram o poder de lutar pelos seus direitos e essas lutas
que são constantes entre as mulheres de fibra, agricultoras e sisalei-
ras, estão transformando a apropria realidade. É possível afirmar
que houve inúmeras mudanças na vida dessas mulheres, transfor-
mações que impactaram na sua autonomia, empoderamento e na
superação da sua invisibilidade.
Podemos verificar que autonomia socioeconômica das mulheres
assentadas se dá principalmente através do trabalho cooperado e so-
lidário dos grupos de produções agrícolas. As mulheres assentadas
procuram construir condições de autonomia material, passando a
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ter vozes ativas nas comunidades, as quais estão inseridas, e também


se expandem para além dos limites dos assentamentos, descons-
truindo estereótipos de inferioridade e submissão impostos pela so-
ciedade machista. As políticas públicas direcionadas para a agricul-
tura familiar lograram contribuir para a redução da invisibilidade
das mulheres assentadas. No momento em que essas mulheres se
inseriram nos embates políticos reivindicando-se como sujeito de di-
reitos, isso impulsionou novas dinâmicas dentro dos assentamentos
de reforma agrária. A participação em espaços sociais e políticos que
antes eram ocupados pelos homens. Nos assentamentos de Lagoa dos
Bois e Nova Palmares do Território do Sisal na Bahia, presencia-se
uma ampliação da organização das mulheres, o que se evidenciou
não só na esfera especifica dos direitos das mulheres, mas também
na sua presença nos grupos de produção que revelam processos de
empoderamento feminino. O empoderamento das mulheres assen-
tadas agricultoras ocorre a partir do desenvolvimento socioeconô-
mico e da superação da sua invisibilidade em seus contextos sociais.
Elas romperam com a ideia de que a mulher assentada, deveria ape-
nas cuidar da casa e dos filhos. Superam no cotidiano de suas práti-
cas as amarras do machismo e se apossaram de espaços efetivos de
recriação e transformação da sua realidade social. Suas resistências
possibilitaram a superação da invisibilidade das mulheres agriculto-
ras assentadas se tornaram agentes históricos das mudanças de sua
condição de gênero ocupada enquanto sujeitos.
O estudo desenvolvido permitiu constatar que houveram
avanços em relação à conquista de visibilidade e empoderamento
dessas mulheres. Com efeito, esperamos com esse estudo, contribuir
para fazer conhecer as trajetórias dessas mulheres de fibra, que inse-
ridas no contexto de assentamentos de reforma agrária no Território
do Sisal, na Bahia, conseguiram transformar sua realidade por meio
de sua ação coletiva marcada por lutas, resistências e conquistas.

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A Marcha das Margaridas:


história e feminismo no Brasil

Dayane Nascimento Sobreira

Elas marcham, cheias de esperança

Ao mundo se lançam

E querem um futuro melhor…

São bromélias, são margaridas,

Santas Marias de todo o Brasil

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Maria Nascimento
de Lourdes Novaes Sobreira
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Vão buscando respeito,

Igualdades, direitos

Garantindo um papel social

Vem dos campos plantados

Trazendo às cidades

As sementes de um novo ideal

Porque são!

Trabalhadoras rurais

Que alimentam a nação

Tragam consigo a certeza

Que no campo e cidade

Somos todos irmãos!

(FERNANDES, 2012)

Introdução

Homenagens a Margarida Maria Alves, sindicalista assassinada


em 1983 em Alagoa Grande, na Paraíba, são cantadas até hoje, muitas
vezes evocando sua fé, sua inspiração e semente. Semente, metáfora
do nascer, da colheita. Aludindo a uma memória de luta e sofrimen-
to, as Margaridas marcham desde os anos 2000, querendo um futuro
melhor, como canta Ernandes Fernandes (2012) na canção acima.

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A Marcha das
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tradicionais

Surgida em um cenário enrijecido às causas sociais, a Marcha das


Margaridas emergiu na aurora dos anos 2000 denunciando o cará-
ter excludente do neoliberalismo e as desigualdades sociais do con-
texto. Anos 2000, a mística virada do milênio... No Brasil, a égide das
comemorações dos 500 anos de “descobrimento”.
No imaginário religioso popular predominava a crença de que
representaria o fim do mundo. Para as mulheres do campo, fim do
mundo era a situação em que viviam, atravessando secas, fome,
analfabetismo, pouca atenção do governo nos sertões mais pro-
fundos. Os direitos sociais garantidos pela Constituição não as al-
cançavam. Só há pouco tinham conquistado direitos básicos como o
auxílio-maternidade.
Segundo Zarzar (2017), a realização da Marcha das Margaridas
representou ousadia e foi pensada antes que o crime de Margarida
Alves prescrevesse. Significou o levantar de bandeiras próprias das
mulheres do campo, pois mobilizações já existentes como o Grito da
Terra, não incluíam suas pautas.
De acordo com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do
Estado de Sergipe, a Fetase (s/d), o Grito da Terra Brasil é uma ação
de massa do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais. Como a Marcha das Margaridas, é promovido pela CONTAG
(Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agri-
cultura), FETAGs (Federações dos Trabalhadores na Agricultura) e
STRs (Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais). É um
espaço de proposição, reivindicação e negociação de políticas públi-
cas para o campo e a floresta, além de ser um processo mobilizador,
formativo e informativo envolvendo as bandeiras de luta da popu-
lação rural.
Nesse cenário, “a Marcha das Margaridas enfrentou dois desafios
iniciais importantes: convencer a CONTAG sobre a sua necessidade e
a sua viabilidade; e construir um campo de alianças com feministas
urbanas e rurais capaz de sustentar essa iniciativa dentro e fora da
Confederação” (ZARZAR, 2017, p. 201).

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Dayane
Maria Nascimento
de Lourdes Novaes Sobreira
Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

Num contexto de desafios inclusive financeiros, as federações es-


taduais, em aliança com a Central Única dos Trabalhadores, Movi-
mento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, organizações
não governamentais e a Marcha Mundial de Mulheres, se organiza-
ram em prol de visibilidade nos movimentos sindical e feminista,
dois espaços de exclusão às sujeitas do campo. Logo, “a Marcha das
Margaridas significou uma ação com protagonismo das mulheres e
com autonomia para reivindicar o que queriam” (ZARZAR, 2017, p.
200).
A MM também foi inspirada na Marcha Pão e Rosas, realizada no
Québec, Canadá, quando as mulheres marcharam em crítica contun-
dente ao sistema capitalista, tendo conquistado algumas reinvindi-
cações como o aumento do salário-mínimo. O Fórum Social Mundial
realizado em Porto Alegre-RS em 1999 foi um importante momento
desse diálogo. Nesse sentido, a emergente Marcha das Margaridas se
conectava ao cenário internacional de lutas por meio de inspirações
e conexões com a Marcha Mundial de Mulheres, por exemplo, tam-
bém criada em 2000.
De acordo com Mirla Cisne (2014), num contexto em que o femi-
nismo brasileiro tinha passado a ter uma forte perspectiva de insti-
tucionalização pós-Conferência de Beijing, a MMM passou a repre-
sentar uma importante retomada de ações de rua, oferecendo o pano
de fundo necessário para o feminismo popular em atividades de
protesto e reinvindicação tendo a luta anticapitalista como norte. O
que acabou se configurando também “como uma tática para inserir
a perspectiva feminista na luta da classe trabalhadora, como para in-
serir a dimensão de classe na sua agenda” (CISNE, 2014, p. 231). Vem
da MMM a máxima proclamada na Marcha das Margaridas: “segui-
remos em marcha até que todas sejamos livres”.
A Marcha Mundial de Mulheres e a Articulação de Mulheres Bra-
sileiras (parceiras da Marcha das Margaridas) são analisadas por Cis-
ne enquanto constituintes do campo anticapitalista na luta feminis-
ta e de classes, no qual também incluímos a Marcha das Margaridas,
entendida por nós como um grande guarda-chuva de experiências
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A Marcha das
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tradicionais

e resistências camponesas no Brasil, enquanto expressão de “uma


luta contra o capital e a afirmação da vida livre de opressões e explo-
rações” (CISNE, 2014, p. 215).
Como Cisne (2014), Ana Alice Costa (2005) também pontua
que a movimentação pré e pós-Conferência de Beijing foi respon-
sável por ter dado energia ao movimento feminista brasileiro, in-
clusive tendo levado (a longo prazo) a uma melhor assimilação das
demandas das mulheres por parte do governo federal, além de ter
evidenciado as diferenças e o caráter plural do próprio movimen-
to. Afinal, como considera Claudia Ferreira Silva (2014), para além
de uma ação, a Marcha das Margaridas reúne aspectos que tornam
possível identificá-la como um movimento social – e que considera-
mos aqui, nesse artigo, enquanto um guarda-chuva aglutinador de
experiências fundantes de um feminismo rural com pés na história e
olhar para o futuro, no Brasil.
É nesse sentido que esse texto visa elucidar traços dessa história
no interregno de quinze anos, entre 2000 e 2015, que compreende as
primeiras cinco edições da Marcha. Para isso, realizamos um levan-
tamento documental e travamos um diálogo com autoras do campo
feminista, que têm importantes pesquisas nas áreas da Sociologia,
da Ciência Política e da História.
A primeira Marcha das Margaridas teve como lema 2000 razões
para marchar contra a fome, a pobreza e a violência sexista, e seus
eixos de discussão incluíram pautas da Marcha Mundial de Mulhe-
res como terra, trabalho, direitos sociais e soberania (MMM, 2000).
Em tom crítico ao modelo de desenvolvimento vigente, por sua vez
aliado ao agronegócio e ao patriarcado, exigia igualdade no cam-
po, bem como políticas de desenvolvimento rural implantadas por
meio do Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável
(PDRS) e que fosse capaz de combater a fome, a pobreza e a violên-
cia sexista (CONTAG, 2000a), na esteira das abordagens apontadas
por Caroline Moser (1989) com relação aos programas desenvolvidos
desde a década de 1970 no âmbito do eixo mulheres, gênero e des-
envolvimento, a saber: bem-estar, equidade, antipobreza, eficiência
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e empoderamento. Nessa linha, foram desenvolvidos vários progra-


mas e projetos com apoio de órgãos como as Nações Unidas e o Ban-
co Mundial.
De acordo com Nanes, Quadros e Zarias (2017), historicamente, as
mulheres vêm sendo negadas ou encaradas como receptoras passi-
vas nas políticas de desenvolvimento. Esse mesmo desenvolvimento
que, vendido como um projeto de modernização ocidental, não re-
presentou, contudo, melhorias das condições de vida das populações
(homens e mulheres) do Sul (BRAIDOTTI et al, 1994).
Ao invés de trazer melhorias, o processo de desenvolvimento e
modernização vivido, por exemplo, no Brasil na segunda metade do
século XX, trouxe uma disparidade econômica e de gênero contras-
tante ao acúmulo de capital dos macrosetores da economia, tendo
extenuado, inclusive, os limites da própria Natureza, escasseando,
consequentemente, os meios de vida das mulheres, suas condições
e possibilidades.
Propositiva de um caminho alternativo para o desenvolvimento
e, particularmente, para as reverberações desse na vida das mulhe-
res rurais, a primeira Marcha das Margaridas congregou mais de 20
mil mulheres reunidas em Brasília-DF.
No seu Texto-Base lemos seus principais eixos reivindicatórios:
acesso das trabalhadoras rurais à documentação; participação efe-
tiva das mulheres na reforma agrária (como a titulação de terras e
a assistência técnica específica, só conquistadas posteriormente);
participação efetiva das mulheres nas políticas públicas; valorização
da participação da mulher na preservação do meio ambiente; maior
acesso das mulheres aos programas de geração de emprego e renda,
à formação profissional e extensão rural; garantia e ampliação dos
direitos trabalhistas e previdenciários; garantia e ampliação dos di-
reitos sociais; combate a todas as formas de discriminação e violên-
cia sexista e garantia do acesso das trabalhadoras rurais aos meios
de comunicação.
O documento elucida a potencialidade da participação das mul-
heres no projeto de desenvolvimento diferenciado que propõe,
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alinhado aos reais interesses da população, entendendo “que a si-


tuação de fome, pobreza e violência que afeta as trabalhadoras rurais
denuncia a ausência do enfoque na igualdade de direitos e equidade
de gênero nas políticas nacionais voltadas para o desenvolvimento
rural” (CONTAG, 2000a, p. 10). Também descreve a pouca visibilidade
do trabalho feminino e as condições de saúde e educação dessas mul-
heres, ainda piores no semiárido nordestino, como coloca.
Percebemos a construção de um/a sujeito/a político que passa
pelas categorias: mulher, mulheres e trabalhadora rural. Era preciso
demarcar esses dois espaços de luta ou a Marcha não tinha seu sujei-
to/a político ainda bem delimitado? As Marchas de 2007 e 2011 pro-
blematizaram essa pauta interna, quando da necessidade de incluir
outras denominações, como veremos.
O documento de avaliação da 1ª Marcha permite-nos antever
uma radicalidade das propostas que parecem ficar “mais amenas”
nas edições posteriores, como a própria reinvindicação por reforma
agrária. A pauta, adormecida durante mais de 12 anos, retomou as
reivindicações de cenário nacional com a Marcha (DEERE, 2004).
De acordo com Carmen Deere (2004), o reconhecimento dos di-
reitos das mulheres à terra deu-se através dos argumentos produti-
vista e de empoderamento. O primeiro referindo-se ao aumento do
bem-estar das mulheres no meio social, bem como de sua produti-
vidade; o segundo ao aumento do poder de barganha das mulheres
nesses espaços, contribuindo de forma quase imediata à igualdade
entre os sexos.
A pauta da reforma agrária, contudo, foi ritmada pelo Movimen-
to Sem Terra (MST), enquanto a CONTAG, Central Única dos Trabal-
hadores (CUT) e os movimentos de mulheres trabalhadoras rurais
deram mais atenção ao reconhecimento da profissão “trabalhadora
rural” (DEERE, 2004), como explicita-se na propositura da própria
Marcha. O que não quer dizer, contudo, que o MST não tenha tido
suas próprias contradições com relação às mulheres e à categoria
gênero.

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Naquele momento já se circunscrevendo como a maior mobili-


zação de mulheres do país, a Marcha das Margaridas foi capaz de
mobilizar mulheres nas bases a partir de parcerias com organizações
mistas e saídas criativas para angariação de fundos e mobilização.
A realização de rifas, sorteios, venda de artesanatos e produtos da
agricultura familiar até hoje são meios de arrecadação de recursos
para custeio dessas mulheres para ida a Brasília, incluindo o próprio
transporte, nem sempre garantido pelas Federações.
Já então definida como “um grande processo de animação e mobi-
lização das trabalhadoras rurais em todos os estados brasileiros, que
busca contribuir para garantir e ampliar as conquistas das mulheres
trabalhadoras rurais” (CONTAG, 2003a, p. 04), a MM realizou a sua
segunda edição em 2003, num cenário de grande êxodo rural e pouco
acesso das mulheres trabalhadoras rurais à renda.
Em 2003 também era o segundo ano de um mandato de esquerda
na presidência da República, um governo apoiado e eleito pelos mo-
vimentos sociais. Eram muitas, portanto, as expectativas como cons-
ta no Texto-Base para Debates da 2ª Marcha: “esperamos que o atual
governo, eleito e respaldado pela maioria do povo brasileiro, assuma
compromissos com esta nossa luta” (CONTAG, 2003a, p. 07).
Entendia-se que o Estado brasileiro tinha uma dívida histórica
com as mulheres a partir da efetivação de um modelo capitalista ins-
talado com a Revolução Verde. Aponta o caminho da agroecologia,
pois “é preciso que a sustentabilidade ambiental caminhe junto com
a equidade de gênero” (CONTAG, 2003a, p. 20), afinal “desigualdades
estão fundamentadas em aspectos culturais, estruturais e institucio-
nais, tendo por base o modelo de família patriarcal e a divisão sexual
do trabalho” (CONTAG, 2003a, p. 11). Sinaliza, portanto, as bases a se-
rem superadas em prol de um projeto de agroecologia e de desenvol-
vimento sustentável mais filógino.
A Marcha das Margaridas traz uma proposta, de fato, de uma
nova relação com os bens naturais, acesso à terra e à educação. No
seu texto-base, cuja finalidade era “subsidiar as rodas de conversas
com os grupos de mulheres e orientar o debate político em torno
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dos temas prioritários” (CONTAG, 2003a, p. 04), vê-se o debate dos


seguintes temas: acesso à terra; meio ambiente; salário-mínimo; saú-
de pública com assistência integral à mulher; violência sexista, que
se seguem a propostas/estratégias concernentes ao trabalho interno
com os respectivos temas.
Desse debate, sua pauta de reivindicações expressa o modelo de
desenvolvimento e sociedade que se defende e que se articulou em
torno dos seguintes eixos: a reforma agrária como estratégia para
o desenvolvimento rural sustentável; meio ambiente – promover a
sustentabilidade com a agroecologia e um novo padrão energético;
por uma política nacional de valorização do salário-mínimo – uma
política possível e necessária; saúde pública com assistência integral
à mulher; contra a violência sexista e toda forma de discriminação e
violência no campo; por uma educação do campo (CONTAG, 2003b).
Além disso, de acordo com Sara Pimenta (2013):

A Marcha das Margaridas, desde a sua primeira mobilização, em


2000, além de apresentar pautas de reivindicações ao Estado, apre-
senta pautas internas, dirigidas ao próprio movimento sindical. Es-
tas focalizam, dentre outros, o cumprimento das medidas que garan-
tem o exercício sindical das mulheres, como a política de cotas e a
garantia dos recursos materiais e não materiais, a formação política,
o combate a todas as formas de violência e o funcionamento efetivo
das comissões de ética (PIMENTA, 2013, p. 173).

Da primeira para a segunda marcha percebe-se uma maior clare-


za do que fazer, para quê e por meio de que. No documento de ava-
liação desta edição, elaborada pela Comissão Nacional, os impactos
da ação puderam ser sentidos no que diz respeito ao empoderamen-
to das mulheres nos espaços de negociação das políticas públicas, na
ampliação da capacidade de proposição e negociação dessas mesmas
políticas, da demanda por maior integração e articulação das ações
entre as diversas secretarias e instâncias da CONTAG e governo fede-
ral, além da ampliação da exigência de intervenções mais qualifica-
das (CONTAG, 2003c).
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Tendo reunido 50 mil mulheres em Brasília, a segunda versão da


MM teve como lema 2003 razões para marchar por terra, água, sa-
lário, saúde e contra a violência. Sua construção levou em conta a
experiência metodológica da Marcha de 2000 e primou pela atuali-
zação dos temas, destacando propostas de políticas públicas a serem
encaminhadas ao governo federal. Esse caráter de negociação é mar-
ca da Marcha das Margaridas.
Já a terceira edição da Marcha, realizada em 2007, com o lema
2007 razões para marchar contra a fome, a pobreza e a violência
sexista, levou 70 mil mulheres à Brasília mobilizadas em torno dos
seguintes eixos: terra, água e agroecologia, segurança alimentar e
nutricional e a construção da soberania alimentar, trabalho, renda
e economia solidária, garantia de emprego e melhores condições
de vida e trabalho das assalariadas, política de valorização do salá-
rio-mínimo, previdência social pública, universal e solidária, defesa
da saúde pública e do SUS, educação do campo não sexista e combate
à violência contra as mulheres.
Retomou o título da marcha anterior, não sem atualizar, contudo,
suas pautas, “reconhece os esforços do Governo Lula para superar
as desigualdades sociais, com iniciativas para distribuição de ren-
da e inclusão social, porém ainda insuficientes diante da realidade
das mulheres trabalhadoras rurais” (CONTAG, 2007a, p. 02). Como
se lê na Carta da Marcha das Margaridas, a reforma agrária aparece
como condição primordial para a mudança de situação das mulhe-
res trabalhadoras rurais e para construção de um país justo, sobera-
no, democrático e sustentável. Na mesma carta, lê-se:

A Marcha das Margaridas acredita que outro país é possível, sem


fome, sem pobreza, sem violência, se as mulheres trabalhadoras do
campo e da cidade estiverem fortalecidas em sua autonomia e par-
ticipação política. É preciso que as mulheres estejam efetivamente
ocupando os espaços de poder e representação política, condição
fundamental para fazer avançar a democracia e superar as desigual-
dades de gênero (CONTAG, 2007b, p. 02).

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Da análise dos documentos dessa Marcha percebe-se uma propo-


sição mais qualificada e enfática, com verbos no infinitivo, demar-
cando o que se espera do governo a partir da ação interseccionada de
seus diferentes ministérios.
Sara Pimenta (2013) pontua que as respectivas marchas de 2003,
2007 e 2011 se deram já em contextos políticos mais favoráveis ao
diálogo entre movimentos sociais e governo federal se comparadas
com a marcha pioneira. De acordo com a autora:

Isso se comprova pela crescente participação das mulheres em me-


sas de diálogos e em negociações no âmbito do executivo e legislativo
e, de forma mais permanente, na esfera pública, em conselhos, co-
mitês, conferências e fóruns, expressando a forte articulação entre
democracia participativa e o exercício da cidadania política e social
(PIMENTA, 2013, p. 165).

Em um exercício comparativo entre as três primeiras marchas, a


de 2000 e a de 2003 vincularam-se à reivindicação de políticas públi-
cas como crédito, assistência técnica, educação, combate à violência
e outros. Essas reinvindicações foram se tornando mais específicas,
mais pontuais a cada edição. A marcha de 2007 apresentou novos
conteúdos (explícitos), dentre estes a agroecologia e o empodera-
mento das mulheres (SILVA, 2008).
Importa dizer que o processo de construção dessa Marcha des-
tacou a importância de nomear as mulheres trabalhadoras enquan-
to do campo e da floresta, tratando-se, portanto, de uma categoria
política negociada (AGUIAR, 2015). Essa nomeação aparece de forma
tímida, tendo ganhado mais substancialidade na Marcha de 2011. É
nesse sentido que concordamos com Aguiar quando entende que

O espaço conformado pela Marcha das Margaridas pode ser per-


cebido também como um “entre-lugar”: um espaço de negociação,
contato, interação, diálogo e articulação onde diferentes grupos, de
natureza político-cultural e social diversa, convivem e negociam a

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sua existência; um espaço fronteiriço, situado entre as várias desig-


nações de identidades (AGUIAR, 2015, p. 13).

Figura 01 – Cartaz da 3ª Marcha das Margaridas (2007)1

Fonte: Transformatorio Margaridas, 2018

Do cartaz vê-se que a 3ª Marcha passou a ser realizada em dois


dias (diferente das anteriores), o que representou a realização de
uma programação mais ampla. O primeiro dia do evento foi reser-
vado à realização de uma feira, em que as mulheres puderam exibir
suas produções agrícolas e realizar troca de sementes. O segundo dia
foi reservado ao ato em si e à apresentação da pauta de reivindicação
ao governo (CAMARGO, 2006).
Vemos também a menção às organizações parceiras, a saída de
algumas com relação à Marcha de 2003 e a entrada de outras. A Mar-
cha Mundial de Mulheres, por exemplo, deslocou-se da condição
de apoio para a de parceria. O MAMA (Movimento Articulado de

1
Disponível em: <http://transformatoriomargaridas.org.br/?page_id=243>. Acesso
em: 10 nov. 2018.

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Mulheres da Amazônia), Rede LAC (Rede de Mulheres Rurais da Amé-


rica Latina e Caribe) e COPROFAM (então chamada Confederação
das Organizações dos Produtores Familiares do Mercosul), estas de
âmbito internacional, se somaram às parcerias.
De acordo com Aguiar (2015), essa relação das organizações com
a Marcha representa um campo flexível, híbrido, constituído a partir
de muitas posicionalidades e tensões por meio de uma tentativa de
articulação na construção da Marcha. Silva (2008) pergunta como
se dá o equilíbrio de relações de poder a partir dessas configurações.
A CONTAG, organização central nessa construção, é a coordenação
executiva dentro de uma Comissão Nacional da Marcha. Até que
ponto a fala da CONTAG representa a MM? Essas relações, bem como
a disposição das demais organizações nesse campo, conferem até
certo ponto uma autonomia relativa e parcial às Margaridas.
O documento de avaliação da terceira Marcha pontua que o con-
texto de sua realização incitou desafios, mas também novas aber-
turas. Traz já haver um “reconhecimento geral do investimento em
políticas públicas para mulheres nos últimos anos” (CONTAG, 2007c,
p. 01). Para tanto, esse alcance ainda era insuficiente e por isso era ne-
cessário continuar cavando “possibilidades concretas de se avançar
no diálogo político orientado por uma leitura feminista das questões
sociais e do mundo rural” (CONTAG, 2007c, p. 01).
No ato de encerramento da Marcha, a coordenadora da Comissão
de Mulheres da CONTAG e vice-presidente da CUT, Carmen Foro, se
referiu ao processo de preparação da Marcha e às suas dificuldades
que passam pela sustentabilidade econômica e machismo presentes
inclusive nas instâncias sindicais: “é preciso ter muita coragem para
fazer uma Marcha como esta. Em cada cantinho deste Brasil nós tive-
mos de vender bolos, camisetas, cabritos, vaquinhas, bordar chapéu,
fazer ações entre as mulheres” (FORO, 2007 apud FETRAECE, 2008).
Neste sentido, ir a Brasília é uma ação planejada desde muito an-
tes, envolvendo as bases nos processos de mobilização e formação
nas comunidades, municípios e estados. É um processo que começa
ao fim da Marcha anterior. A Marcha é, então, um processo contínuo.
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Como expressão pública, o marchar alude a um caminhar organi-


zado, geralmente coletivo, com algum fim. Em marcha o movimento
do corpo torna-se discurso; é representação e simbolismo. Segundo
Solnit (2016):

As marchas públicas misturam a linguagem da peregrinação, na


qual se caminha para demonstrar devoção, com o piquete de uma
greve [à moda norte-americana], no qual se demonstra a força de um
grupo e a própria persistência andando-se o tempo todo, e com a fes-
ta, na qual as fronteiras entre desconhecidos desaparecem. Camin-
har transforma-se em testemunho (SOLNIT, 2016, p. 360).

Estudando a Marcha Nacional dos Sem-Terra, realizada em 1997,


Christine Chaves (2000) elucida o caráter de mescla entre religião
e política como característica do Movimento Sem Terra enquanto
ator social. As romarias marchando em direção aos espaços sagra-
dos “converteram-se em marchas rumo aos centros de poder políti-
co, reivindicando direitos que cumpre ao Estado fazer valer” (CHA-
VES, 2000, p. 22). Nesse sentido, as tradições religiosas populares são
ressignificadas pelo MST ao passo que adquiriram características
próprias, como foi/é o caso da realização das Romarias da Terra, ri-
tuais político-religiosos cuja origem se deu a partir das Comunidades
Eclesiais de Base na década de 1980 (NOVAES, 1997).
A Marcha Nacional dos Sem-Terra é analisada pela autora en-
quanto um ritual de longa duração, marcado por uma caminhada
de mais de dois meses que percorreu a pé vários estados do Brasil.
Tendo sido constituída por três colunas que partiram das cidades de
São Paulo-SP, Governador Valadares-RJ e Cuiabá-MT, sua culminân-
cia deu-se em Brasília em 17 de abril de 2000, data significativa pois
alusiva a um ano do Massacre de Eldorado dos Carajás, episódio em
que 19 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados pela Polí-
cia Militar no sudeste do Pará.
Os trabalhadores faziam uma caminhada até a cidade de Belém
em protesto contra demora na reforma agrária no local, quando
foram impedidos pela polícia de prosseguir. Mais de 150 policiais
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– armados de fuzis, com munições reais e sem identificação nas


fardas – foram destacados para interromper a caminhada, o que
levou a uma ação repressiva extremamente violenta e à morte dos
trabalhadores.
Associada ao Êxodo e à Vida Sacra, a Marcha Nacional tinha uma
cruz à dianteira e contou com o apoio da Confederação Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), tendo conseguido respaldo por onde
passava, não sem críticas, contudo, de algumas instâncias como a
CONTAG. A imagem de peregrinos em jornada sacrificial rumo a Bra-
sília aludia, segundo a etnografia de Chaves (2000), a um processo de
sacralização, porquanto “apenas dessa forma ela poderia tornar-se
fonte potencial de subversão consentida da norma” (CHAVES, 2000,
p. 204).
Diferente da Marcha das Margaridas em objetivos e em sua exe-
cução, a Marcha Nacional dos Sem-Terra enquanto ritual de longa
duração, representou a culminância de construções coletivas feitas
durante dois meses e que desembocaram em uma ação maior, pro-
cesso fruto de uma elaboração própria do MST. O ápice dessa Mar-
cha foi o encontro das três colunas em Brasília, em um dia de luto,
mas também de luta para os movimentos sociais do campo.
Importa mencionar que a realização de atividades em datas alusi-
vas a mortes ocasionadas em conflitos no campo, quando geralmen-
te seus feitores seguiram impunes, é uma marca dessas duas mar-
chas: a primeira, tendo tido suas três primeiras edições realizadas
no mês de agosto e depois passando a se realizar no dia 13 de agosto,
em homenagem ao dia de sepultamento de Margarida Alves, líder as-
sassinada em 1983, hoje instituído como dia nacional de luta contra
a violência no campo; a segunda em alusão ao truculento massacre
ocorrido no Pará.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que realiza
pesquisas sobre conflitos no campo em âmbito nacional desde a dé-
cada de 1960, o ano de 2019 registrou o maior número de conflitos da
década, sendo a maior parte deles por terra, elucidando a (ainda) ex-
trema desigualdade no acesso a esta no Brasil (CPT, 2020). Não à toa
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essas duas marchas trouxeram e ainda traz (para o caso da Marcha


das Margaridas) o mote da reforma agrária como elemento de justiça
social no país.
A simbologia em datas faz parte da mística desses movimentos,
como o chapéu de palha, a bandeira, a inspiração em mulheres como
Margarida Alves. A mística, entendida como a própria experiência, a
expressão simbólica da/na luta, emoção e sentimento, é também as
representações que abrem ou fecham encontros, eventos, reuniões
e as próprias marchas (MEZADRI et al, 2020). Geralmente esses atos
reúnem vários desses elementos e seu objetivo gira em torno de man-
ter aceso o espírito de luta, passando pela dimensão da sensibilidade.
Ao atuarem no coletivo marchando essas mulheres transpõem
o espaço de suas casas, sítios e ambiente familiar para se expressa-
rem como seres sociais e políticos. Em crítica ao modelo civilizatório
em voga e em denúncia à crescente violência no campo – que atin-
ge principalmente suas vidas – se articulam e (re)harmonizam suas
cosmovisões,

Fortalecem seus rituais, festividades, saberes, sabores, ritmos, cores,


musicalidade, dança, gerando comunidades transterritoriais e novas
relações sociais, em que se realizam trocas de sementes, de receitas
alimentares e medicinais, de sabores e saberes que motivam novas
sociabilidades e se misturam ao debate político sobre agronegócio,
monocultura, natureza destruída, uso de agrotóxicos, neoliberalis-
mo, internacionalização do capital, alimentos transgênicos, reforma
agrária, direitos humanos, alimentos saudáveis, relações de gênero e
projeto popular para o país (ESMERALDO, 2014, p. 262).

“Participando e sem medo de ser mulher”, como entoa uma


canção de Zé Pinto (s/d), essas mulheres em respeito às que as an-
tecederam, potencializam suas experiências históricas e resistindo
fazem ecoar suas vozes desde grandes lonjuras, pois habitam os dife-
rentes recantos do país. “A partir de suas múltiplas identidades, não
se conformam com o destino ‘injusto e amargo’ reservado a elas no
patriarcado” (SILIPRANDI, 2015, p. 338).
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Foi assim, que depois de quatro anos, elas, as Margaridas, mar-


charam novamente, dessa vez com o lema 2011 razões para marchar
por desenvolvimento sustentável com justiça, autonomia, igualdade
e liberdade, alterando o slogan que vinha sendo lapidado desde a
Marcha de 2000, e contou com a participação de quase 100 mil mul-
heres. Importante destacar que essa marcha foi a primeira realizada
durante o mandato de Dilma Rousseff, primeira mulher presidenta
do Brasil, e sob o mandato de Agnelo Queiroz como governador do
Distrito Federal, ambos eleitos pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Esses elementos são importantes para perceber a relação da própria
Marcha com o Estado.
Como enfatizamos, a Marcha é um processo. Conforme Aguiar
(2015), esse processo pode ser sistematizado em três etapas: prepa-
ração da marcha, momento ritual e pós-marcha. O primeiro momen-
to se inicia geralmente no ano anterior à realização do ato e envolve
a formação política das mulheres, bem como o planejamento, viabi-
lização de recursos e infraestrutura necessária à sua realização. É,
também, o momento de definição de objetivos, construção de mate-
riais de divulgação, pauta e organização política.
O segundo momento é a realização da Marcha enquanto ato, em
que as mulheres se alojam em Brasília, se encontram e marcham,
mas não só isso, pois esse momento também é marcado pela reali-
zação de oficinas, plenárias e atividades culturais, além da própria
cerimônia de abertura e ato de encerramento e de místicas, que
abrem e/ou fecham esses encontros. O terceiro momento é marcado
pelo balanço e avaliação. Está relacionado com o acordo dos pontos
negociados e o monitoramento dessas ações junto aos poderes públi-
cos. Essa sistemática, contudo, não isenta o caráter permanente da
ação, por vezes assumindo até uma institucionalidade própria.
Aguiar (2015) ainda nos atenta para o caráter específico que a
Marcha de 2011 adquiriu pela rede de relações envolvendo parcei-
ros, apoiadores, patrocinadores e o próprio Estado, o que “lhe impri-
me um caráter específico como movimento, ao se configurar como
um campo político de atuação híbrido, que congrega atores com
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formatos institucionais e ações bastante variadas” (AGUIAR, 2015, p.


210).
As seguintes organização atuaram como parceiras da Marcha
2011: Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS); Movi-
mento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE); Mo-
vimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB);
Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia (MAMA); Articu-
lação de Mulheres Brasileiras (AMB); Marcha Mundial das Mulhe-
res (MMM); União Brasileira de Mulheres (UBM); Central Única dos
Trabalhadores (CUT); Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do
Brasil (CTB); Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe
(Rede LAC); Confederação de Organizações de Produtores Familiares
Campesinos e Indígenas do Mercosul Ampliado (COPROFAM).
Lembramos, contudo, que o campo político da Marcha é móvel,
as organizações entram e saem da condição de parceiras nesse ma-
crocampo. A construção das pautas se dá a partir do diálogo dessas
entidades no nível de uma comissão ampliada efetiva a partir dessa
edição, coordenada pela Secretaria de Mulheres da CONTAG, com
representações estaduais e regionais. Essas organizações não estão
localizadas unicamente no âmbito da atuação nos territórios rurais,
extrapolam essa macroterritorialidade como é o caso da MAMA,
UBM, AMB e MMM (AGUIAR, 2015).
De acordo com Aguiar (2015), a atuação dessas parceiras acaba
por trazer a qualificação de debates presentes na pauta de reivindi-
cação da Marcha, principalmente temas da agenda feminista, geran-
do um diálogo (não sem tensões) com o movimento sindical. Essas
parcerias envolvem muitas negociações, cujo papel maior é colabo-
rar nesse processo de construção.
Como consta em sua pauta política, “a Marcha das Margaridas,
em sua 4ª edição, revela sua abrangência política, de caráter femi-
nista, ao abraçar os desafios que a conjuntura atual apresenta para
todas as mulheres trabalhadoras do Brasil, especialmente do campo
e da floresta” (CONTAG, 2011, p. 02). O que, de acordo com Pimen-
ta (2013), “guardou tensões próprias às mobilidades identitárias,
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principalmente por deslocar a identidade de mulher trabalhadora


rural, consolidada no âmbito do movimento sindical” (PIMENTA,
2013, p. 165).
Os sete eixos temáticos se apresentaram distribuídos agregando
temas afins, sendo eles: 1) Biodiversidade e Democratização dos Re-
cursos Naturais; 2) Terra, Água e Agroecologia; 3) Soberania e Segu-
rança Alimentar e Nutricional; 4) Autonomia Econômica, Trabalho e
Renda; 5) Educação Não Sexista, Sexualidade e Violência; 6) Saúde e
Direitos Reprodutivos; 7) Democracia, poder e participação política.
A pauta é apresentada com verbos no infinitivo (criar, garantir, as-
segurar), articulando medidas a serem garantidas de acordo com as
reinvindicações postuladas.

Figura 02 – Cartaz da 4ª Marcha das Margaridas (2011)2

Fonte: Transformatório Margaridas, 2018

O conjunto das peças de divulgação aparece feito com capricho,


demonstrando mais cuidado, talvez pela própria consolidação da

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Disponível em: <http://transformatoriomargaridas.org.br/?page_id=243>. Acesso
em: 10 nov. 2018

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ação. Do cartaz acima vemos a grafia do título “Marcha das Marga-


ridas 2011” em fonte próxima à da logomarca da Marcha Mundial
de Mulheres, lembrando uma escrita à mão. Do lema, dois elemen-
tos merecem destaque: a inclusão dos termos igualdade e liberdade
e sua escrita por extenso. O mesmo perfil de gravura com cores em
que o lilás é predominante e traços que também remetem ao fazer
artesanal, à mão, também está presente nos cartazes das marchas
subsequentes. Uma linha diagonal separa o território de proveniên-
cia dessas mulheres e o espaço do marchar. Elas seguem nesse en-
tre-lugar ou nesse lugar entre o campo e a luta.
A 5ª edição da Marcha das Margaridas (2015) realizou-se em um
contexto de profundas bipolarizações e misoginia explícita que aca-
baram por desembocar no impeachment da presidenta Dilma Rous-
seff em 2016, deslegitimada (com forte protagonismo da mídia) para
legitimar o golpe parlamentar. “Tal caminho de deslegitimação, po-
rém, precedeu o processo da crise e do impeachment e ocorreu mes-
clado com outras dimensões da crise política em si” (ARAÚJO, 2018,
p. 34) e da própria dimensão de gênero em uma “articulação escusa
para retirada da primeira mulher presidenta” (GOMES, 2018, p. 150).
De 2011 a 2016 o Brasil foi governado por uma presidente mul-
her e contou com uma maior presença de mulheres nos ministérios,
além de ter havido o fortalecimento de órgãos como a Secretaria de
Políticas para Mulheres (SPM) com a chefia de uma ministra ligada
ao movimento feminista e o aumento do orçamento da pasta (RU-
BIM; ARGOLO, 2018).
A Marcha se posicionou diante do cenário que se delineava,
marcado por manifestações pró e contra o impeachment, já anun-
ciado, como a ocorrida no dia de 13 de março de 2015, elucidando
a importância da presença e posição dos movimentos sociais nesse
“combate”.
Em nota pública, a Marcha das Margaridas destacou os desafios
do cenário que pedia atuações pontuais: era preciso hastear mais
alto a bandeira da democracia. Nesse sentido, ao lema da Marcha de
2011 foi somada a luta por democracia, ficando: Margaridas seguem
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Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades Margaridas
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em marcha por desenvolvimento sustentável com democracia, jus-


tiça, autonomia, igualdade e liberdade.
“A Marcha sabe de que lado está”, afirmou Alessandra Lunas
(2015 apud CONTAG, 2015) (Informação Verbal), coordenadora da
edição, na cerimônia de abertura da 5ª Marcha, que contou, dentre
outras presenças, com a da presidenta Dilma, da ministra Eleonora
Menicucci e do ex-presidente Lula. As falas que marcaram a cerimô-
nia evocaram o processo de construção da Marcha, mas reforçaram
principalmente a postura desta com relação ao cenário político – as
Margaridas saíram em defesa de Lula e Dilma. Se comparada com a
Marcha de 2011, a Marcha de 2015 representou menos efetivação das
demandas das Margaridas. Uma postura mais radical fora assumida.
Importa destacar que em 2015 também ocorreram outras mobili-
zações como a Marcha das Mulheres Negras e a 4ª Ação da Marcha
Mundial de Mulheres, além de uma série de manifestações virtuais e
de rua contra posturas conservadoras do Congresso e o assédio que
ficou conhecida como Primavera das Mulheres.
A Marcha deste ano reuniu 100 mil mulheres em Brasília e articu-
lou-se a partir dos seguintes eixos: soberania alimentar; terra, água
e agroecologia; sociobiodiversidade e acesso aos bens comuns; auto-
nomia econômica: trabalho e renda; educação não sexista, educação
sexual e sexualidade; violência; direito à saúde e direitos reproduti-
vos; democracia, poder e participação.
Além de encaminhar propostas ao Congresso, essa edição elencou
proposições que reivindicam a rejeição, pois retroagem em direitos
na área do trabalho, reforma agrária e outras, como o PL 8099/2014,
que propôs inserir na grade curricular das redes pública e privada
de ensino conteúdos sobre criacionismo e o PL 5444/2005, que esta-
belecia que um acordo coletivo disporia sobre as horas in itinere do
trabalhador rural, sua remuneração e a média de horas a ser contada
na jornada de trabalho, a citar alguns.
A partir de Fraser (2007) pensamos a Marcha das Margaridas en-
quanto uma tentativa feminista de confronto às injustiças de má dis-
tribuição, não reconhecimento e má representação, conduzida pelas
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mulheres do campo no Brasil. Em um contexto de capitalismo glo-


balizado é a elas que recai o peso da simbiose articulatória dos siste-
mas de opressão que se interseccionam. Ao exigirem documentação
exigem não só por cidadania, mas também por acesso aos meios de
produção, pela garantia da titulação conjunta da terra que lutaram
para conquistar.
Trabalhos como os de Fischer (2012), Schwendler (2009), Scwade
(2014), Cappelin e Castro (1997) destacam o protagonismo das mulhe-
res na luta pela terra no país, elucidando a ampla participação delas
principalmente no momento de luta e ocupação.
A pesquisa de Fischer (2012) mostrou que a maioria delas ingres-
sam na luta guiadas pelo desejo de emancipação e de melhoria da
condição da família. Vem de muitas a decisão de acampar, só poste-
riormente tendo a aprovação dos maridos. Embora participem efe-
tivamente dessa primeira fase de conquista de seus lotes, no geral
seguem apartadas das instâncias de decisão dentro dos assentamen-
tos, o que corrobora com as conclusões de Carmen Deere e Magda-
lena Léon (2002), em estudo sobre o acesso das mulheres à terra na
América Latina, quando trazem que a relação mulheres-terra é apar-
tada por razões legais, estruturais, ideológicas, culturais ou institu-
cionais, e que, mais, “todas as leis de reforma agrária latino-america-
nas favorecem os agricultores como beneficiários de suas reformas”
(DEERE; LÉON, 2002, p. 145).
Para as autoras, mesmo quando as mulheres herdam a terra, elas
não a controlam. E complementamos: mesmo quando a conquistam,
são muitos ainda os entraves para essa efetivação. É tão somente de
2002 a opção pela titulação conjunta. Além disso, Deere e Léon obser-
varam o preconceito também na venda de terras para mulheres, sem
falar na exímia desvantagem – elas geralmente têm menos crédito,
menos suporte e menos acesso à comercialização. É perceptível um
esforço da Colômbia e, a partir da Marcha das Margaridas, também
no Brasil, com relação ao despendimento de esforços na alteração
dessa lógica patriarcal.

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tradicionais

Reivindicando não só justiça de gênero, passando-se pelos âm-


bitos da redistribuição, reconhecimento e representação, a Marcha
das Margaridas requesta justiça social e ambiental, tendo contri-
buído inclusive à consolidação da agroecologia na agenda política
brasileira.
A cidadania, entendida enquanto um espaço de disputa (VALEN-
TE, 2000), é o tempo todo negociada desde as bases através dos pro-
cessos de formação e mobilização da MM, até o diálogo travado com
o governo federal na última década e acompanhamento deste de for-
ma orgânica.
Os últimos anos têm colocado desafios às suas lutas, e foi em meio
a desafios que as Margaridas marcharam também em 2019, mas esse
já é assunto para uma próxima conversa. É, por fim, através da busca
por “brechas cidadãs”, construídas a partir de uma perspectiva femi-
nista (VALENTE, 2000), que as Margaridas marcham. E continuam
marchando.

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Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade


Federal de Pernambuco, Recife-PE.

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Mulheres em Pau D’arco:


um estudo sobre a visibilização do trabalho femini-
no no campo

Greice Bezerra Viana

Introdução

A Bahia é um estado de grandes proporções territoriais, e nele


distintas configurações sociais e culturais se moldaram ao longo de
anos. Qualquer trajeto que te leve de Salvador ao oeste do estado,
ao recôncavo, ao sul, à região do baixo sul e extremo sul, a Chapada
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Diamantina, em todo o interior encontram-se mulheres e meninas


que estão no campo e em relações as mais variadas possíveis com a
terra.
É um fato a presença das mulheres rurais na produção agrícola
familiar. Ainda que exista um cenário de invisibilidade, paulatina-
mente transformado pela luta destas1, é notória sua atuação com a
ocupação de terra e territórios, plantando, colhendo, nas labutas das
casas, do cuidado, dos quintais e do roçado.
Desse modo, o presente texto apresenta reflexões sobre o proces-
so de visibilização do trabalho feminino no campo e as questões so-
ciais envolvidas, a partir de um debate em torno da teoria do campe-
sinato e da agricultura familiar. Para isso, um diálogo foi construído
com mulheres moradoras do vilarejo de Pau D’arco, no município de
Barra2.
Assim, este artigo apresenta uma caracterização social dessa co-
munidade por meio de uma compreensão acerca de questões que
envolvem elementos do modo de vida camponês, bem como de uma
perspectiva de mudança social através da abordagem sobre o trabal-
ho das mulheres. Para tanto, foi destacado a relação de produção do
grupo com seus distintos espaços sociais e, principalmente, a organi-
zação feminina frente a uma horta comunitária.

1
Ao longo de décadas as mulheres rurais organizadas em movimentos sociais têm
emergido enquanto agentes políticas no combate à invisibilização da mulher do cam-
po como trabalhadora. Desde a década de 1980 diversas ações e movimentos foram
organizados na luta por acesso a direitos sociais (HEREDIA, 2006). A principal pauta
na origem dos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais era o reconhecimento
da profissão de agricultora (e não como doméstica, visando quebrar a invisibilidade
produtiva do trabalho da mulher na agricultura); a luta por direitos sociais, especial-
mente o direito à aposentadoria e ao salário ma¬ternidade; o direito à sindicalização;
e questões relacionadas com a saúde da mulher. Também se tornou notória a bandei-
ra da Reforma Agrária e sua incorporação a reivindicações com especificidades de
gênero (HEREDIA, 2006).
2
Esse texto é fruto de pesquisa de campo e trabalho monográfico escrito em 2009,
posteriormente publicado na Coleção Monográficas da Editora Segundo Selo (VIANA,
2020).

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Mulheres tradicionais
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades em Pau D’arco

A partir do enfoque de uma teoria clássica sobre campesinato, a


perspectiva inicial construída na pesquisa apontou a relação com a
terra como um destaque para os distintos grupos sociais que vivem
no meio rural. Nesse contexto, a agricultura, em geral, tem grande
relevância, não obstante variadas outras atividades possam marcar
a organização social de agentes sociais que vivem no campo.
Desse ponto de vista, a pesquisa partiu para o entendimento de
como o processo de visibilização do trabalho feminino no campo se
constituiu como fator de ruptura de uma realidade vista anterior-
mente por uma literatura especializada e, ao mesmo tempo, como
esse processo contribuiu para a reprodução social do grupo. Para
isso, foi realizado estudo de caso com a comunidade já referenciada.
Tal artigo se propõe, então, a apresentar uma caracterização social,
bem como a dinâmica do processo de visibilização do trabalho das
mulheres dessa comunidade.

Contextualização da pesquisa

A pesquisa de campo para a construção do texto que originou


este artigo aconteceu, entre 2006 e 2008, em paralelo ao projeto de
extensão universitária Semiárido: Superação da pobreza pelo desen-
volvimento autossustentável, realizado pelo Núcleo de Estudos Ru-
rais e Ambientais, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia.
O principal objetivo do referido projeto foi a caracterização de
três comunidades do município de Barra: Brejo do Saco, Pau D’arco
e Canudos, através da metodologia “Análise Diagnóstico de Sistemas
Agrários”, para a realização de intervenção educacional em técnicas
de manejo, educação ambiental e associativismo nas comunidades
abrangidas pelo projeto.
Foram realizadas oito visitas ao município e às comunidades,
tanto para realização do trabalho de campo do projeto como para o
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estudo proposto, com uma permanência que variava entre dois e seis
dias. O desenvolvimento metodológico partiu da pesquisa qualitati-
va, por meio de estudo de caso, com variadas técnicas de coleta de
dados, como pesquisa bibliográfica, observação participante, entre-
vistas semiestruturadas e abertas.
O município de Barra está situado no noroeste do estado da Bahia,
entre o privilegiado encontro do Rio Grande com o Rio São Francis-
co – importantes rios da região, tanto econômica como socialmente.
Barra, assim como toda a região do Médio São Francisco (MSF),
teve também sua história intimamente relacionada à concentração
de terras. Os conflitos sempre foram constantes na região3, com o
elemento do coronelismo marcando a história local por muito tem-
po. Os fenômenos relacionados ao mandonismo e à violência estão
diretamente associados à concentração da posse da terra (GERMA-
NI, 2006).
Um aspecto relevante que envolve o tema proposto nesse trabal-
ho se dá em torno da desigualdade na distribuição de terra. Barra
é um dos maiores municípios em extensão da região do Médio São
Francisco e do estado da Bahia, e possui a maior relação de concen-
tração de terras. Localizando-se em um território historicamente
marcado pela disputa fundiária entre grandes proprietários, Barra
possui o maior índice de Gini da região do Médio São Francisco, com
um número de 0,9594.
A concentração fundiária é assunto fundamental para se visuali-
zar como distintos grupos sociais, que dependem essencialmente de

3
O documentário “O massacre da Lagoa da serra”, dirigido por Juvenal Neves de
Souza, explicita bem essa situação de conflitos de terra na região. Mostra a contenda
da comunidade de Lagoa da serra entre donos de terras e grileiros no Vale do São
Francisco, Oeste da Bahia, em 1972. Os posseiros da Fazenda Lagoa da Serra sofriam
pressão dos grileiros para abandonar suas terras. O conflito terminou com a queima
de todos os casebres e a expulsão das famílias. O filme mostra mais um conflito de
terra que termina impune; até hoje o massacre não foi julgado.
4
O Índice de Gini é usado em todo o mundo para calcular a concentração de terras,
servindo também para o cálculo de renda. Quanto mais próxima de um, maior é a
concentração de terras.

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sua relação com a terra, sofrem graves consequências em seu modo


de vida quando submetidos ao perverso modelo de concentração de
grandes extensões nas mãos de poucos proprietários. A ocupação de
terras no MSF, pautada na colonização através da doação de posse de
sesmarias, favoreceu a formação de imensos latifúndios na região
(GERMANI, 2006).
A economia do município gira em torno da agricultura, da pesca
e da extração, principalmente por parte do campesinato local. A fei-
ra, que é realizada nos dias de sexta, é uma ótima demonstração das
atividades desempenhadas pelos grupos sociais, sua dinâmica cum-
pre importante papel para a economia local e para aprovisionamen-
to doméstico para as famílias.
A rapadura, a cachaça e a farinha são produzidas nos engenhos,
nos alambiques e nas casas de farinha dos brejos barrenses, área
onde as culturas de cana-de-açúcar e de mandioca se sobressaem. O
mel encontrado é coletado na mata local, extraído das colmeias que
são feitas nos troncos de árvores, ou obtido através de sua criação,
em caixas, por apicultores. A produção de mel é realizada tanto na
área dos brejos como na ribeirinha, sendo que nesta é mais comum
a criação de abelhas.
Dentre os principais cultivos, destacam-se feijão de corda, aipim,
milho, verduras, legumes, hortaliças e alguns frutos da região, como
o pequi, o murici e a saeta (buriti). Desses frutos são feitos doces, e da
palha do buriti e da carnaúba são feitas peças do artesanato local,
como chapéus e esteiras.
Durante toda a sua história, Barra desenvolveu um modo de vida
que articulava a agricultura (nos brejos e na caatinga, nas regiões de
sequeiro, nas roças de ilha5 e na beira de rio) e a pesca, além da ex-
tração e da coleta de palha e de algumas frutas. Tal articulação en-
tre modo de vida e produção pode ser inicialmente visualizada por
quem vem de fora e tem um contato inicial com a feira local.

5
Ilhas são trechos de terra situados no rio São Francisco, lugares usados pelas comu-
nidades para desenvolvimento da agricultura em alguns períodos.

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Entre a terra e o rio

Pau D’arco beira as margens do São Francisco e tem sua organi-


zação social marcada por relações de produção que se vinculam en-
tre a terra e o rio. É assim nomeada pela abundância de pau d’arco,
árvore6 que fazia parte da vegetação nativa. Nomear um lugar por
árvores e outros elementos que compõem o ambiente é muito co-
mum no sertão baiano. Tal ato expressa, muitas vezes, uma pequena
parte da relação de distintos grupos sociais com o ambiente e com
o território ocupado, não de uma forma idílica, mas de uma forma
simbólica, na qual a relação com ambiente/território expressa uma
lógica de interação.
O acionamento de elementos da natureza presente, no caso, a
árvore, também expressa, fundamentalmente, uma apropriação do
território e a expressão de uma memória social que, ao lembrar-se de
como se construiu sua nomeação, recorda-se do tempo mítico de sua
constituição, bem como de um tempo em que o ambiente era outro.
Essas percepções inevitavelmente contribuem na constituição de
noções de pertencimento.
Segundo moradores mais antigos, Pau D’arco começou a ser
ocupada por volta de 1800, pelas famílias de Zé Batista e dos Souza,
famílias de criadores de gado. Assim como a história da ocupação
do Médio São Francisco e do município de Barra, a formação local
se configurou em torno da criação de gado por grandes fazendei-
ros. A proximidade da sede da cidade e a familiarização local com o
processo de criação de animais estimularam o governo local na im-
plantação da Monta. Esta foi um posto de criação de animais repro-
dutores, com sede no distrito, onde muitos homens da comunidade
trabalhavam não só como vaqueiros, mas também com a adminis-
tração das atividades. Tal posto foi criado pela prefeitura, que orga-
nizou estrutura física na comunidade, com escritório, curral para

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Tabebuia avellanedae, também conhecida como Ipê Amarelo.

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criação do gado e pasto, empregando muitos homens do local, o que


proporcionou uma geração de renda diferenciada para a realidade
da região na época (segundo os moradores mais antigos, esse período
era a década de 1930).
A história e o imaginário da comunidade giram em torno do tem-
po da Monta, para eles um tempo de fartura e de muito trabalho.
Para Marshall Sahlins (1990), o evento não só modifica o futuro, mas
também transforma o sentido do passado para determinado grupo.
Este “[...] transforma-se naquilo que lhe é dado como interpretação.
Somente quando apropriado por e através do esquema cultural, é
que adquire uma significância histórica” (SAHLINS, 1990, p. 5). Para
Weber (1999), o evento está pautado no imaginário que permanece
nos indivíduos após a sua passagem e que dá origem a intensas mu-
danças estruturais.
Caracterizada pelos membros do grupo e por circundantes como
ribeirinha, essa comunidade possui muitos pescadores, em sua
maior parte homens. Em contrapartida, a pesca não é tida como a
única atividade fundamental que identifica as relações de produção.
A agricultura realizada pelos grupos domésticos é significativa, e
tece uma rede de organização social para o conjunto de moradores.
Com base na representação social local, pode-se afirmar que a co-
munidade tem sua lógica de vida pautada numa ética camponesa,
cuja forma social é fundamentada na relação entre propriedade, tra-
balho e família (QUEIROZ, 1973).
Atualmente, dimensões políticas, sociais, culturais, ambientais,
de gênero e étnicas têm sido parâmetro de acionamento de identi-
dade de distintos grupos sociais, entretanto, o elemento de ocupação
tradicional de um território e suas formas de uso comum se configu-
ram como uma situação que os associa.
Pau D’arco é o povoado mais próximo da sede do município, com
uma distância de 4 km. Até o período da pesquisa de campo, era
formada de 87 casas, 93 famílias e um número aproximado de 370
moradores. As casas ficavam dispostas num formato de vila, com as
habitações muito próximas umas as outras, em torno de uma rua
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principal onde está inserida uma pequena igreja católica de Santo


Antônio. A espacialização das casas se dava de modo diferenciado.
Entretanto, ao longo do século XX, as sucessivas enchentes do rio
São Francisco obrigaram os moradores a modificarem a estrutura
do povoado. As casas eram, em sua maioria, de taipa e palha; hoje,
grande parte é de alvenaria.
A territorialidade do grupo e sua organização socioespacial, en-
trelaçadas por meio de relações de produção exercidas entre a terra
e o rio, representa a reprodução social dos grupos domésticos. Nos
seus distintos espaços, podemos observar a mudança de significação
por que passam as relações desse grupo social. Em Pau D’arco esses
espaços são: roça de ilha, roça de caatinga (roça de chuva), roça de
beira de rio (vazante), horta comunitária, rio (São Francisco), casa e
quintal. Essa separação tem apenas um efeito didático de apresen-
tação de espaços que constituem parte da territorialidade do grupo e
que compõem as etapas de suas relações de produção.
A territorialidade pode ser compreendida como a delimitação
de uma terra de pertencimento coletivo que converge para a cons-
tituição de um território (ALMEIDA, 2006). Por sua vez, funciona
como fator de identificação, defesa e força dos “[...] laços solidários
e de ajuda mútua [que] informam um conjunto de regras firmadas
sobre uma base física considerada comum, essencial e inalienável”
(ALMEIDA, 2006, p. 24).
Quem chega a Pau D’arco pode perceber seus espaços sociais ape-
nas com uma rápida conversa com alguma moradora ou morador lo-
cal sobre as atividades que realizam em sua vida cotidiana. É através
da relação do grupo com esses distintos espaços que podemos per-
ceber a representatividade que cada um deles possui na sociedade
local. Pois, como ambiente construído, é um espaço significado, cujo
uso social lhe atribui um sentido. “A noção de ambiente inclui, então,
as relações sociais e a cultura que fazem da ‘população’ desse ecossis-
tema uma sociedade” (WOORTMANN, 1991, p. 28).
A roça de caatinga é o espaço onde o trabalho agrícola só é execu-
tado no período de chuva (de janeiro a março), à exceção da colheita,
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que ocorre na estiagem. A maior parte do trabalho é realizado no


período de chuva, por isso alguns moradores se referem a ela como
“roça de chuva”. O milho, o feijão e a melancia são as principais pro-
duções agrícolas desse espaço e, secundariamente, vem o cultivo da
abóbora e da mandioca. É também nessa área e nos seus arredores
que os agricultores exercem suas atividades extrativistas. A lenha e
a madeira utilizadas nos afazeres domésticos são de lá extraídas. A
palha da carnaúba para a esteira e a tala para a rede de pesca tam-
bém são retiradas da mata onde se encontram essas roças. Igual-
mente nesse espaço é realizada a extração do mel de abelhas.
Algumas famílias possuem criação de gado, em número pequeno,
e de outros animais de pequeno porte, como ovelha, porco, galinha,
etc. O gado e a ovelha são geralmente criados soltos nas roças de ca-
atinga e de ilha.
Na ética camponesa, a família é a unidade social de trabalho e de
exploração da propriedade, e as atividades de trabalho são divididas
entre os membros do grupo doméstico, de acordo com uma divisão
social do trabalho (QUEIROZ, 1973). Em Pau D’arco, essa divisão en-
tre gênero e gerações se dá de variadas maneiras, entretanto, a com-
plementaridade de atividades produtivas em determinados espaços
passou a ser incorporada ao modo de vida do grupo.
A estrutura hierárquica e de gênero do processo de trabalho e da
unidade familiar sempre foi uma questão tratada nas pesquisas que
se propuseram a estudar o caráter específico das sociedades cam-
ponesas (QUEIROZ, 1973; MOURA, 1986; HEREDIA, 1979; WOORT-
MANN, 1997; 1991). Beatriz Heredia (1979), em Morada da Vida, livro
que aborda o caráter peculiar da unidade camponesa da fazenda Boa
Vista no município de Riacho Doce, Zona da Mata pernambucana,
detalha a ligação de espaços diferenciados de trabalho, gênero e hie-
rarquia, apontando ainda como se aplica a categoria trabalho para
os membros dos grupos domésticos. Sua observação mostrou que os
membros das famílias desenvolviam tarefas no campo segundo dife-
renças de sexo e idade, mesmo que em diversos momentos todos os
membros realizassem o mesmo tipo de tarefa no roçado, mostrando
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também como a categoria trabalho não se aplicava às mulheres e às


crianças.
A noção de trabalho, como categoria subjetiva, e o processo de
trabalho, como encadeamento de ações, marcam distinções de gê-
nero (WOORTMANN, 1997). No estudo realizado por Woortmann
em Sergipe, assim como em outras formas camponesas no Brasil, a
categoria trabalho só se aplica ao homem, mais diretamente ao pai.
No espaço da roça, no sítio, a mulher, os velhos e os não-adultos em
geral não “trabalham”, sua atividade é definida como ajuda. É só no
âmbito da casa que a atividade feminina é considerada trabalho
(ainda que menos valorizado), marcando assim espaços de gênero
(WOORTMANN, 1997).
Com base numa literatura clássica sobre campesinato, visuali-
zam-se os vínculos que se estabelecem no meio de muitas comuni-
dades rurais como relações pautadas na hierarquia de gênero, que
não categoriza as atividades femininas no campo como trabalho,
mas sim como ajuda. Todavia, contextos de busca por melhoria de
qualidade de vida, de um modo geral, e o envolvimento em lutas por
direitos sociais tem modificado a visão e o engajamento das mulhe-
res nos processos produtivos e mesmo políticos.
Na roça de caatinga em Pau D’arco, mulheres e homens realizam
a produção; o grupo doméstico divide suas atividades entre o plantio
e a colheita. O homem tem forte atuação nesse espaço, pois o perío-
do de intenso trabalho agrícola é também o período do defeso7 (1º de
novembro a 28 de fevereiro). Dessa forma, estão mais distantes da
ocupação com a pesca e, por isso, se envolvem mais com a lavoura.
São eles também que mais atuam nas atividades de coleta do mel.
Contudo, a mulher, além de atuar no período do plantio, também or-
ganiza o processo de colheita.
O uso comum da terra em Pau D’arco se dá em torno da roça
de caatinga, através das atividades extrativistas, da coleta do mel,
da criação de gado e do plantio. Esse grupo social possui áreas

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Período em que a pesca é proibida.

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socialmente delimitadas e reconhecidas, através de regras de apro-


priação, para os grupos domésticos individualmente.
Ademais, podemos sinalizar que esse espaço teve distintos usos
ao longo do tempo, associados ao processo histórico do município
com o ciclo do gado e ao uso comum da terra. Para Almeida (2006), “a
utilização de formas de uso comum nos domínios em que se exercem
atividades pastoris [caso de Barra] parece ser uma prática por demais
difundida em todo o sertão nordestino, desde os primeiros séculos
da frente pecuária [...]” (ALMEIDA, 2006, p. 103).
Os ribeirinhos de Pau D’arco não possuem a titulação da terra,
são considerados posseiros. Em 2004, o INCRA tentou implantar um
programa de documentação. No entanto, isso não foi possível, visto
que as terras do local fazem parte do território da União e são contro-
ladas pelo Ministério da Agricultura.
O grupo possui uma modalidade própria de ocupação do territó-
rio, de base histórica e tradicional, que não corresponde a aparatos
formais do ordenamento jurídico do Estado.
Nesse contexto, cada grupo doméstico configurou também es-
paços de produção individualizados, por meio de um processo de
ocupação reconhecido por todos do grupo. Cada família, por exem-
plo, possui em média duas tarefas e meia na roça de caatinga, o equi-
valente a 9.150 m².
As roças de beira de rio (também conhecidas como vazantes) se
constituem como plantações na margem do rio, em uma área que se
distancia por volta de uns quatro ou cinco metros do nível da água.
As plantações nesse espaço se iniciam logo que o rio começa a baixar
(vazar), e esse momento varia conforme o crescimento do nível de
água em cada ano. As mulheres são quem mais se dedicam a tal tra-
balho, pois a época de plantio nesse local coincide com o período em
que a atividade da pesca está em alta.
Os cultivos mais fortes nesse espaço são o milho e o feijão, que são
plantados consorciados. Em segundo plano, vem o plantio de capim,
para alimentação do gado; depois, a mandioca e a cana-de-açúcar.
Esses dois últimos cultivos, antes da década de 1980, eram plantados
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em abundância, contudo, os moradores se desestimularam devido


às sucessivas enchentes que provocaram estragos e prejuízos muito
grandes para essa lavoura. A produção na roça de beira de rio se dá
geralmente entre os meses de junho a novembro, mas esses meses
de trabalho não são fixos, pois o rio pode começar a baixar seu ní-
vel mais cedo ou mais tarde, dependendo do período de chuva ou de
possíveis enchentes.
A roça de ilha, em termos de plantio, é praticamente uma ex-
tensão do que se planta nas roças de beira de rio e do que se cria nas
roças de caatinga. Boa parte da plantação é realizada na margem que
a circunda. Além das margens, o meio da ilha também é ocupado
pelo plantio e por pequenos pastos para o gado. Na época de chuva
são formadas várias lagoas, que, na época de estiagem, se tornam
mais uma área para plantação. A época de plantio nessa área é prati-
camente a mesma da vazante, variando de acordo com a enchente do
rio a cada ano. São as mulheres também quem dirigem a plantação
nas lavouras realizadas na roça de ilha.
As casas, locais privados, fundamentais para a reprodução do
grupo doméstico, compreendem o espaço físico preenchido pela
construção e o espaço livre em seu fundo, os quintais. Além de ser
o lugar da moradia, é também o ambiente do trabalho doméstico,
realizado fundamentalmente pelas mulheres, com raras exceções
de auxílio dos maridos e dos filhos homens. Aqui não há a ideia e
o exercício da complementaridade. Lugar privado e considerado de
domínio feminino, o trabalho realizado é feito no dia a dia: a comida,
a limpeza, o cuidado com as crianças, a lavagem das roupas (tam-
bém realizada no rio), etc. Contudo, o sábado é o dia dedicado aos
afazeres da casa. É comum passar pelas casas da comunidade no
sábado e encontrar todas as mulheres realizando alguma atividade
doméstica. Nesse dia elas vão bem cedo para a horta, mas voltam ra-
pidamente para a habitação. “Sábado é o dia em que paramos para
cuidar da casa, porque depois de passar a semana toda trabalhando
na roça, temos que limpar direito a casa”, afirma uma moradora da

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comunidade. É comum também nos dias de sábado ver mulheres e


filhas no rio, lavando roupas e/ou louças.
O quintal é um espaço contínuo da casa, e em Pau D’arco sua es-
trutura difere um pouco mais da de outros grupos camponeses. Nes-
sa comunidade, o quintal varia muito de casa para casa: em muitas
habitações seu tamanho é bem reduzido e, em outros, é bastante
grande. Algumas têm seu quintal batido com cimento, para a reali-
zação de eventos. São comuns festas, promovidas pelos donos dessas
casas, que transformam seu quintal em bar e espaço para shows.
O quintal, de forma geral, é tido como uma continuação da roça,
só que em proporções menores, onde o predomínio de trabalho tam-
bém é essencialmente feminino. As plantações de verduras, legumes
e ervas, realizadas anteriormente nos quintais, transferiram-se hoje
para o espaço da horta comunitária. O plantio mais comum atual-
mente nos quintais é o das árvores frutíferas. As mais vistas são: seri-
guela, umbu, manga, limão, goiaba, laranja, melancia, pinha, acero-
la, entre outras. Contudo, não raro, encontramos as plantações que
são típicas das outras roças, como a mandioca e a abóbora. O quintal
também é o espaço de criação de pequenos animais, como a galinha
e o porco. A área do quintal se difere de outras estruturas de quintais
de outros grupos camponeses, pelo fato de sua produção tradicional
ter se expandido para o espaço da horta comunitária.
A horta comunitária surgiu como uma transferência de pro-
dução. O que antes se plantava no quintal, num espaço privado, nos
jiraus, apenas para consumo doméstico, transferiu-se para a horta
comunitária, espaço público de domínio feminino, e passou a ser
uma produção voltada para a busca de novas rendas para o grupo
familiar. Sua área total é de 1,5 hectares. Ela foi organizada a partir
da fundação da Associação das Produtoras Rurais de Pau D’arco (a
Associação de Mulheres) em 16 de agosto de 19998.

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A comunidade possui mais outras duas associações: A Associação de moradores,
que no momento da pesquisa estava inativa, e a Associação de Apicultores de Barra
(APIBA), criada com incentivo da EBDA para a produção de mel, mas a associação de
mulheres é a mais representativa.

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O espaço do quintal, sendo uma espécie de continuação da casa, é


um recinto social marcadamente feminino, assim como o é também
o ambiente da horta comunitária. Por meio da organização e mobi-
lização das mulheres na manutenção e consolidação desse espaço é
que outras lutas foram construídas, e o papel das mulheres frente às
relações de produção local foram reconfiguradas.
A horta comunitária foi criada a partir da articulação das mulhe-
res da associação, em conjunto com o Projeto Distrito Brejos da Barra,
que na época tinha como parceira a CODEVASF. O Projeto organizou
a assistência para a formação da horta, e as mulheres entraram com
um empréstimo através do Pronaf B, para conseguirem verba para
as instalações necessárias à horta, tais como a bomba de irrigação, a
placa e as cercas. A produção da horta se constitui de legumes, verdu-
ras, hortaliças e ervas medicinais: rúcula, alface, coentro, cebolinha,
beterraba, cenoura, salsa (principais produtos de venda), “sete dor”,
“vick” (menta), “novalgina”, alfavaca, hortelã, “malgeron”, pimentão,
manjericão, tomate, arruda, alecrim, berinjela, couve, feijão de cor-
da, maxixe, urucum (corante), jiló, entre outros.
O trabalho na horta é também essencialmente feminino. O espaço
já é característico das mulheres e de suas jovens filhas, que acompan-
ham o processo de trabalho ali desde a infância. É a mulher, nesse
caso, que é a detentora do saber-fazer. Todavia, essa forte atuação
não exclui a ajuda masculina. Filhos e maridos participam do proces-
so agrícola, só que em outra intensidade e de forma complementar. A
noção de complementaridade aqui é vista como uma ajuda recípro-
ca, tal como é para E. Woortmann (1991), pois da mesma forma que o
grupo doméstico se divide para as atividades agrícolas organizadas
pelas mulheres, elas, em diversos momentos, complementam o tra-
balho da pesca, essencialmente visto como masculino, no trato do
pescado e na ajuda para confecção dos materiais da pesca.
A horta comunitária, apesar de ser uma extensão do quintal, que
é um lugar privado, é um espaço público de domínio feminino e se
constitui como a principal fonte de renda para os grupos domésticos
da comunidade. É, fundamentalmente, na horta comunitária que
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podemos visualizar o elemento de ruptura com um modo de vida


característico de um campesinato histórico, no que diz respeito à di-
visão social do trabalho. O trabalho agrícola feminino, aqui, é visto
e considerado enquanto trabalho. Ao contrário do que podemos ver
na literatura especializada, a categoria “ajuda” é incorporada ao tra-
balho masculino, pois são as mulheres quem organizam, trabalham,
produzem e comercializam toda a produção da horta comunitária e
mesmo das outras roças. Vem desse espaço boa parte do sustento fa-
miliar. A vice-presidente da associação fala da renda proporcionada
pela horta:

Eu cheguei aqui no Pau D’arco, as casa eram de taipa, de palha ainda.


E hoje você não vê isso na comunidade, e isso foi depois da horta,
foi a horta que ajudou as famílias. A horta é um ponto de referência
que a gente tem aqui dentro da comunidade, chamou muita gente
a atenção, porque antes tinha a coroa [a coroa é formada quando o
rio seca e forma um lugar mais propício ao banho, o que atrai mui-
ta gente do município para a comunidade], as pessoas vinham mais
para se divertir. Mas a horta aí, tava sendo um ponto de referência
de chamar as pessoas atenção, porque tudo quanto era lugar chegava
gente aí para ver a horta. Assim, um lugar respeitado que as pessoas
pediam licença para chamar alguém para entrar lá dentro, não era
uma coisa que chegava lá e entrava. (Moradora 1)

A visibilidade do trabalho agrícola feminino nesse espaço propor-


cionou, em conjunto com outros elementos, tais como a atividade de
pesca dos homens, a visibilização do trabalho agrícola feminino em
outras esferas e mesmo a visibilização de seu trabalho em todos os
âmbitos.
No contexto da vida social local, vale destacar que o Rio São Fran-
cisco tem grande importância para esse grupo. Para os ribeirinhos
não existe uma diferenciação entre terra e água; o trabalho é sem-
pre contínuo, pois o rio enche e esvazia, e onde se pesca em certo
momento, se planta em outro. O rio é para eles uma fonte de vida,
que proporciona a agricultura, a presença da água e a fertilidade.
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Quando o rio está cheio e não se pode plantar nas roças de ilha e de
beira de rio, esses espaços estão passando por um período de descan-
so. É aí que se atua na roça de caatinga, quando o nível da água do rio
é reduzido. É o momento do plantio, da fertilidade que a água do rio
trouxe sobre as terras. É também o momento da pesca e do pescado.
Mesmo sendo uma comunidade ligada essencialmente à agricul-
tura e apresentando uma ligação com um modo de vida camponês, a
pesca também tem seu destaque. Essa atividade é mais uma atuação
que contribui para a reprodução social das famílias.
A pesca é identificada como masculina. Praticamente todos os
homens da comunidade pescam e têm sua identidade mais forte
enquanto pescadores, mesmos que trabalhem em certos momentos
com a lida da terra e em outras ocupações.
Os pescadores de Pau D’arco são associados à colônia de pesca-
dores de Barra e vendem o peixe, quando se tem em boa quantida-
de, na própria comunidade, para interessados e atravessadores. No
caso das mulheres, apenas cinco exercem essa atividade de forma
frequente, possuindo inclusive vínculo com a colônia. Algumas ou-
tras realizam a atividade de forma mais esporádica. Contudo, mes-
mo para essas mulheres, quando o assunto é a comercialização, esta
é realizada por seus maridos, o que demarca um espaço de atividade
eminentemente masculino. Outra demonstração disso é que a pesca,
geralmente quando realizada por mulheres, é sempre feita em com-
panhia dos seus maridos:

Eu pesco desde 25 anos atrás, tenho 25 anos de casada. Desde quando


eu me casei, pescando mais meu marido, de dia, de noite. O sol entra,
eu pescando direto com meu marido até quando o sol sai, de 6 às 6,
pescando. Pego peixe grande, pesco peixe pequeno. Há muito tempo
que era pra eu ter a minha carteira... (Moradora 2)

Para as mulheres que não pescam, sua ligação com essa atividade
se dá em torno do trato do peixe e, em alguns momentos, com o ato
de tecer as redes utilizadas por seus maridos e filhos.

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É no período do defeso do São Francisco e do Rio Grande que a


maioria dos homens fica com tempo mais livre e se dedica mais à
agricultura. Alguns, no entanto, ficam sem exercer nenhuma ativi-
dade nessa época, apenas tratam de tecer suas redes esperando o fin-
dar o momento do defeso.
No início do século XX, a pesca era feita com arco, flecha e tarra-
fa de caroá, e apenas era realizada para o autoconsumo. A partir de
1979 foi que se tornou uma das atividades para comercialização, e
os peixes mais pescados e procurados na época eram surubim, pira,
mandim, curim e dourado. Foi também a partir do período mencio-
nado que os pescadores passaram a usar com mais frequência a rede
e o anzol como instrumentos de trabalho. No período da pesquisa de
campo, o curumatá e o tambaqui foram os peixes mais encontrados.
A diferenciação entre terra e água não existe para esse grupo so-
cial, tal separação é realizada apenas como uma forma de apresentar
a realidade estudada. Os espaços de trabalhos que descrevemos são
para eles roça, ilha e rio, todos complementares e fundamentais para
seu modo de vida. A lida da terra e as atividades que antes alguns
homens desempenhavam, como a de vaqueiro, marcaram muito a
identidade geral, uma vez que a história de ocupação local se deu
através de famílias camponesas que ali se instalaram para trabalhar
em fazendas de criação de gado. A pequena agricultura se desenvol-
veu paralelamente ao trabalho para os fazendeiros, e a pesca era um
complemento para a alimentação dos grupos domésticos, que só pas-
sou a ser vista como uma atividade mais comercial e outra forma de
renda a partir de 1979, mas sempre foi de fundamental importância
para o grupo.
A agricultura e a pesca são hoje as atividades mais importantes
para a comunidade. Contudo, a predominância dessas atividades
não exclui trabalhos realizados fora do âmbito rural. A migração e a
pluriatividade são uma constante para as pessoas de Pau D’arco e de
outras comunidades do município. É comum encontrar aqueles que
lidam com o comércio – principalmente bares –, os que trabalham

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com construção, e aqueles que são professores. Os programas9 “Bolsa


Família”, “Bolsa Escola” e a “Aposentadoria Rural” também consti-
tuem para a realidade local uma renda a mais para a manutenção
do grupo. Essas rendas e os trabalhos que alguns executam fora do
âmbito rural não desarticula o vínculo da maioria com a terra e o pa-
trimônio. As mulheres sempre falam de um bem a ser deixado para
seus filhos. Uma das moradoras relatava que mantinha a casa para
seus filhos que estão morando fora. Em sua perspectiva, o patrimô-
nio e a herança têm de ser preservados para seus filhos que voltarão.
“A herança a gente não quebra assim, não”10.
O espaço de trabalho ainda é distinguido pelo tempo hierárqui-
co, assinalado pela divisão de gênero e geração, que distribui para
cada membro de um grupo familiar as funções que este deve desem-
penhar em determinada área específica. As referidas duas categorias
funcionam como elementos estruturadores de sociabilidade do gru-
po, assegurando a simbologia subjacente nas relações estabelecidas,
que imprime ao tempo cultural, social, econômico e político um ca-
ráter expresso nos espaços domésticos (casa e quintal), da terra de
trabalho (roça e horta comunitária) e das áreas coletivas (igreja, asso-
ciação, feira, rios etc.) (ANUNCIAÇÃO et al, 2008).
Pau D'arco e seus habitantes se articulam em torno de uma vida
cotidiana que permeia fortemente os espaços de trabalho que des-
crevemos e as redes de sociabilidade que tecem as relações locais. O
ambiente como espaço social marca profundamente as relações do
grupo e a territorialidade. O mesmo acontece com a sociabilidade,
que se fundamenta até hoje através das relações do parentesco, da
religiosidade, das relações de vizinhança e da organização local.
As atividades e os trabalhos que realizam os grupos domésticos,
principalmente mulheres e filhos, hoje organizados em sua maio-
ria pelas mulheres, desencadeiam um processo de visibilização do

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Programas vigentes no período realização da pesquisa de campo.
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Moradora 3

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trabalho feminino no município, mais precisamente nas atividades


de organização e na lida da terra.
Os trabalhos realizados e organizados por elas nos diversos es-
paços em que atuam, principalmente na horta comunitária, se cons-
tituem como fator fundamental de iniciação desse processo. Pu-
deram, através dele, de diversas maneiras começar essa etapa, seja
proporcionando um aumento da renda, seja pela comercialização
realizada por elas mesmas, ou seja, pela inserção em atividades polí-
ticas, como as realizadas através da associação.
O trabalho, antes realizado no espaço privado dos quintais, ao
passar para um espaço considerado público, como o da horta comu-
nitária, contribuiu de forma significativa para o processo de visibili-
zação do trabalho feminino:

A mulher sempre trabalhava mais em casa; o valor que ela tinha era
só dentro de casa. Mas na roça, não. E hoje mudou porque, tanto faz,
ser em casa como na roça, ela tem o mesmo valor, tem o valor da roça
e tem o valor de casa. (Moradora 4)

Eu nasci e me criei aqui, trabalhando na roça direto, na roça e em


casa. Depois surgiu essa horta, a gente uniu todo mundo: ‘Vamos
fazer uma horta? Vamos!’. Aí a gente começou a trabalhar na horta,
na roça e em tudo. (Moradora 4)

As atividades realizadas pelas mulheres na roça e no quintal,


assim como na pesca, não eram consideradas trabalho, mas se en-
caixavam na categoria ajuda. Hoje, são os homens que falam que
ajudam suas mulheres na produção que eles (homens e mulheres)
consideram ser a que mais gera renda para o grupo doméstico: a hor-
ta comunitária.
É necessário afirmar, no entanto, que esse processo de visibili-
zação do trabalho das mulheres não configura uma valorização do
trabalho agrícola feminino. Tal valorização não é uma constante,
mas pode se tornar o início de um processo, haja vista a maior parte
da renda vir do trabalho feminino, já que a ocupação com a qual os
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de Lourdes VianaSchefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

homens mais se identificam, a pesca, passa por um grande período


de desvalorização, tanto pela degradação do rio como pela forte di-
minuição do pescado.
O processo de visibilização do trabalho feminino se iniciou tam-
bém pelo fato de a comunidade ser não só agrícola, mas também
pesqueira, ainda que a identidade de pesca se relacione com maior
intensidade aos homens. Contudo, observamos que o fator mais sig-
nificativo para o impulsionamento desse processo foi realmente a
organização feminina em torno da horta comunitária.
Essa situação de visibilização representa uma ruptura em relação
ao modo tradicional como foram estudados grupos camponeses.
No entanto, proporciona uma manutenção de seus modos de vida,
ao agregar o trabalho familiar a sua produção, contribuindo não só
para o aprovisionamento do grupo, mas também para a manutenção
de suas relações e da sociabilidade, tão fundamentais para a cons-
trução de suas histórias de vida.

Considerações finais

Nos últimos vinte anos no país, desdobramentos das lutas sociais


se desmembraram para além de entidades sindicais, o que motivou
novos padrões de relação política tanto no campo como na cidade.
Nesse bojo, distintos grupos incorporaram fatores étnicos, elemen-
tos de consciência ecológica, critérios de gênero e de autodefinição
coletiva, que concorrem para relativizar as divisões político adminis-
trativas e a maneira convencional de pautar e encaminhar deman-
das aos poderes públicos (ALMEIDA, 2006). Nesse movimento, segue
a organização de mulheres em Pau D’arco, que por meio essencial-
mente de critérios de gênero, se mobilizou na busca pela garantia de
seus direitos sociais e na reprodução do modo de vida do grupo do
qual fazem parte.

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O protagonismo de mulheres no campo tem interferido nas


dinâmicas de transformação pelas quais passa o meio rural. A pre-
sença feminina tem representado a continuidade e a permanência
da terra-patrimônio e da terra de trabalho (GARCIA JÚNIOR, 1983;
WOORTMANN, 2007). A atuação delas em estruturas organizativas
e também o seu papel no campo da religiosidade, da família e na vi-
zinhança muito têm contribuído para o reforço da sociabilidade no
campo e, consequentemente, para a manutenção de vários aspectos
que sempre permearam a ética camponesa. Diversos estudos sobre
o papel das mulheres no meio rural têm confirmado a situação des-
crita (HEREDIA, 1977, 2006; PAULLILO, 2004; KARAM, 2007; SCHE-
FLER, 2007; SALES, 2007; WOORTMANN, 1991).
Foi através da apresentação de algumas questões que considera-
mos centrais para o entendimento do modo de vida do campesinato
e, em sentido mais estrito, da pesca artesanal, que tentamos explici-
tar como o processo de visibilização do trabalho feminino no campo
tem se tornado um elemento de ruptura com a percepção outrora
afirmada pela literatura especializada com relação à divisão social
do trabalho e ao trabalho agrícola das mulheres no meio rural.
No estudo de caso realizado, observamos que a organização fe-
minina frente a uma associação de mulheres e a produção agrícola
em uma horta comunitária refletiu na visibilização do trabalho ru-
ral dessas mulheres, uma vez que essa visibilização se expandiu para
outros espaços para além da horta. Percebemos que esse processo se
configurou como um elemento de mudança social para o grupo em
questão, uma vez que o trabalho agrícola feminino não era conside-
rado enquanto tal. Era visto e apontado apenas como uma ajuda, às
vezes uma complementaridade, e não um domínio.
Essa mesma visibilização e todo o processo que envolveu a sua
ascensão, apesar de se configurar como uma ruptura que provoca
uma mudança social para o mencionado grupo, é paradoxalmente
um instrumento que rompe amarras para a manutenção da repro-
dução social. Isso porque proporciona estímulos e agrega caracterís-
ticas fundamentais do processo produtivo dessa categoria. Com isso,
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de Lourdes VianaSchefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

a manutenção do trabalho familiar é reforçada, além de promover


uma nova geração de renda.
O que observamos fundamentalmente foi que o processo de visi-
bilização do trabalho feminino no campo é um elemento novo para
o modo de vida de grupos sociais que vivem uma ética camponesa,
configurando-se como uma transformação que, paradoxalmente,
contribui para a manutenção e a reprodução social dos grupos do-
mésticos em questão.

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Feminismo camponês e popular na Bahia:


narrativas de um processo em construção

Mainara Mizzi Rocha Frota e Clóvis Roberto Zimmermann

Introdução

O debate sobre feminismo no Brasil ganha evidencia a partir dos


anos 70, enquanto Movimento organizado de mulheres representa-
do, inicialmente, pela figura da mulher hegemônica, a saber: branca,
urbana, intelectual e com privilégio de classe. Três décadas após o

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surgimento do movimento feminista, as mulheres Sem Terra co-


meçam a discutir sobre uma possível vinculação das suas lutas, pau-
tas e reivindicações com o feminismo. Essa identidade foi/está sendo
construída a partir das experiências coletivas de ser mulher no MST
e é a partir dessa construção que boa parte das mulheres do Movi-
mento, especialmente nos últimos anos, tem reivindicado e defen-
dido essa identidade feminista de maneira contundente. Para ten-
tar compreender esses meandros que culminam com a associação
das mulheres do MST ao Feminismo Camponês e Popular faremos
inicialmente uma breve contextualização sobre os caminhos perco-
rridos e “lugares” destinados a elas dentro do Movimento. Posterior-
mente traremos uma discussão sobre o feminismo hegemônico para,
finalmente, abordar o Feminismo Camponês e Popular tendo como
foco as narrativas subtraídas das histórias de vida de Beth e Liu.
A escrita desse artigo é um recorte da tese de doutorado de Mai-
nara Mizzi Rocha Frota que teve como objetivo traçar as histórias de
vida (HV) de Vera Lúcia Da Cruz Barbosa (Lucinha), Elizabeth Rocha
de Souza (Beth) – ambas ex-Dirigentes Nacionais (DN) do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST-BA – e a história de vida
da atual Diretório Nnacional do MST-BA Lucineia Durães do Rosário
(Liu). A partir dessas narrativas, buscamos compreender como elas
foram “forjadas” a assumirem cargos de liderança historicamente
ocupados por homens dentro do Movimento. Apoiada nessa pesqui-
sa, propomos discutir neste artigo o processo de formação da mul-
her feminista no MST a partir da construção coletiva do Feminismo
Camponês e Popular (FCP) – sob o escopo da perspectiva teórica de-
colonial. Para tanto, utilizaremos como fonte de dados os relatos e
perspectivas sobre o feminismo e a construção do Feminismo Cam-
ponês e Popular (FCP) apresentadas por Beth (DN no período de 2011-
2016) e por Liu (DN desde 2016-atual) subsidiada, especialmente, pe-
las bibliografias decoloniais e cartilhas do Movimento.

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Invisibilidade, Participação e Protagonismo: O caminhar das


mulheres no MST

Ao reportar a história do processo de gestação e territorialização


do Movimento, é fato que a presença da mulher sempre foi uma figu-
ra constante. Essa realidade pode ser aludida a ideia de que o MST,
enquanto movimento camponês, estabeleceu, desde o início, a uni-
dade familiar como referência de luta. Assim, “desde os trabalhos de
base, o núcleo gerador da organização é composto pelos grupos de
famílias” (FERNANDES, 2001, p. 182). Esses grupos se revezavam nas
comissões, coordenações, setores e coletivos e, dessa forma, incenti-
vavam “a todos para tomarem parte na construção da luta e resistên-
cia” (FERNANDES, 2001, p. 182).
O lugar das mulheres na construção da luta pela terra e na iden-
tificação do feminismo enquanto bandeira de luta foi sendo cons-
truído a partir das experiências organizativas dentro do próprio Mo-
vimento desde o final dos anos 70 e também junto aos movimentos
sociais campesinos tanto a nível nacional quanto a nível interna-
cional. Para compreendermos melhor essa caminhada, tomaremos
como suporte a percepção elaborada por Rosana Fernandes, coorde-
nadora político-pedagógica da Escola Nacional Florestan Fernandes
(ENFF):

Nós, mulheres do MST vivemos pelo menos três fases distintas nesses
36 anos. A primeira fase ainda lá no início do MST no final da década
de 70 e oficialmente em 84 quando o MST é fundado. Nesse período,
as mulheres viveu a fase da invisibilidade. Mesmo o MST compreen-
dendo que a luta não é só do companheiro, que a luta é da família.
Mas nós mulheres não eram reconhecidas, não eram vistas dentro
desse processo pela sua capacidade política de fazer esse movimento
acontecer [...]. Uma segunda fase - fase de participação das mulheres,
participação, reconhecimento e importância das mulheres poderem
estar em espaços de decisões e poder estar participando ativamente
das lutas. E um terceiro momento que estamos vivenciando de um

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tempo para cá que é a fase de protagonismos das mulheres, prota-


gonismo não só na luta pela terra, mas de protagonismo nas articu-
lações que fazemos com as forças sociais, com a classe trabalhadora
rural e trabalhadoras urbanas. Protagonismos a partir das ações do 8
de março que nós fazemos todos os anos. A partir, especialmente, de
2006 quando as mulheres mostram para a sociedade e internamente
para o MST que somos capazes de enfrentar o capital quando hou-
ve a ocupação da Aracruz Celulose lá no Rio Grande do Sul. Marca
o protagonismo das mulheres e de 2006 pra cá mostra que temos
feito o 8 de março com muita força, com muita coragem, com mui-
ta ousadia, conspiração feminista e demarcando esse período que as
mulheres então são reconhecidas como protagonistas nas lutas que
desenvolvemos no MST1 . (Rosana Fernandes, 2020, grifos nossos).

A primeira fase pontuada por Rosana Fernandes é a da invisibi-


lidade da mulher enquanto sujeito social e político – e é expressa-
da, sumariamente, pela caracterização da mulher Sem Terra como
assujeitada e subordinada – reflexo também da figura feminina no
contexto rural brasileiro até início da década de 80 (ESMERALDO,
2016). Com isso, as suas identidades estavam vinculadas à vida fa-
miliar/conjugal e cabia a elas a restrição ao espaço da casa/quintal
cumprindo ali o trabalho produtivo, reprodutivo e doméstico. Este
lugar ocupado pelas mulheres Sem Terra está relacionado com as
construções simbólicas e culturais que evidenciam as desigualdades,
define papeis sociais e estabelece hierarquias entre os corpos mascu-
linos e femininos – locus do exercício do poder (SAYÃO, 2003).
Essas construções, passam a identificar uma suposta inferiorida-
de feminina inscrita em um corpo frágil, com fala dócil, emocional-
mente afetiva, naturalmente propensa aos cuidados da família e do
lar, suscetível a realização de trabalhos leves e que fornece “ajuda”
nas atividades produtivas. Tais características as ligam diretamente

1
Fala colhida durante a realização da mesa: “Mulheres construindo a Resistência Ati-
va” durante o I Encontro Nacional de Mulheres Sem Terra – 05 a 09 de março de 2020
– Brasília, DF.

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a esfera da vida privada e reprodutiva ficando condicionadas ao


espaço doméstico enquanto os homens são partícipes da vida pro-
dutiva e pública sendo reconhecidos por serem ativos, provedores e
capazes de realizar o trabalho pesado. Esse quadro vicioso de repor-
tar a fragilidade e a incapacidade física e intelectual na realização
de determinadas tarefas pelas mulheres, tanto rurais quanto urba-
nas, pode ser compreendido a partir da sua vinculação ao sistema
patriarcal e eurocêntrico instituído pelo colonialismo que impôs a
hierarquização dos papeis sociais e criou a divisão sexual (e racial)
do trabalho (QUIJANO, 2005). Dessa forma, o híbrido entre colonia-
lidade e patriarcado – e todas as suas derivações – culminaria em
um patriarcado colonial moderno e na colonialidade de gênero
(LUGONES, 2014; SEGATO, 2012) que, segundo Lugones (2014, p. 941)
permite “compreender a opressão como uma interação complexa de
sistemas econômicos, racializantes e engendrados, na qual cada pes-
soa no encontro colonial pode ser vista como um ser vivo, histórico,
plenamente caracterizado”.
Assim, dentro desse contexto inicial, as desigualdades de gênero,
por não fazerem parte de uma demanda central – luta pela terra, pela
reforma agrária e pela transformação social – não eram alvo direto
de contestação e de desconstrução e, além disso, o Movimento enten-
dia que o surgimento de pautas consideradas identitárias poderiam
fragmentar a luta classista, fragilizar a unidade da classe trabalhado-
ra rural (PAULILO, 2004) e, por fim, poderiam comprometer a plena
realização dos objetivos finais: a revolução da classe trabalhadora.
O cenário político dos anos 90 – especialmente, a partir de 1995 –
marcou a emergência do segundo momento das mulheres no MST –
o momento da participação. Esse período, segundo Esmeraldo (2016)
foi caracterizado pelas lutas organizadas tanto em movimentos au-
tônomos quanto em movimentos mistos que tinham como princi-
pal finalidade o reconhecimento da identidade feminina dissociada
da sua condição conjugal e familiar e associada a um ofício produ-
tivo que as colocavam como integrantes na classe de trabalhadora
rural. A autora evidencia ainda que, estes “são tempos de luta pelo
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reconhecimento de direitos para a mulher numa sociedade em que


os direitos humanos são sexistas e androcêntricos, em que o homem
é o sujeito universal de direitos” (ESMERALDO, 2016, p.142).
Tomadas por essa conjuntura, as mulheres do MST passaram a
vivenciar e a problematizar, de forma mais intensa, suas próprias
contradições. Esses processos resultaram no fortalecimento das
alianças nacionais (ANMTR) e internacionais, especialmente, com
a Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo
(CLOC – Via Campesina), na conquista de direitos básicos enquan-
to classe trabalhadora (políticas públicas, documentos, titulação
conjunta), na criação de espaços de formação das mulheres (com o
intuito de desconstrução do “padrão autorizado”), na vinculação do
gênero com as questões de classe (final dos anos 90), na emergência
de pautas específicas que buscavam problematizar o lugar que elas
ocupavam no processo revolucionário e na necessidade em pautar
as “questões das mulheres” como questões de gênero envolvendo, as-
sim, tanto as mulheres quanto os homens na luta por novas relações
de gênero. Essa mudança política resultou na alteração do nome do
Coletivo Nacional de mulheres para Coletivo Nacional de Gênero e, fi-
nalmente, no ano 2000 transformou-se no Setor Nacional de Gênero.
Foi, portanto, com a emergência do Setor Nacional de Gênero
aliada a todas as transformações políticas provocadas pelo momento
anterior que, Rosana Fernandes, demarcou esse período como sen-
do de protagonismo das mulheres do MST. Aliada a conquista da
paridade ocorreu uma emergente participação protagonista de mul-
heres acampadas e assentadas na esfera pública – lutando contra a
violência do capital sobre seus corpos e territórios –, nos processos
de produção, na construção da Reforma Agrária Popular, no enfren-
tamento do capital no campo – representado pelo agronegócio, hi-
dronegócio e o mineronegócio –, na gestão das atividades, nas ocu-
pações de terra – que foi sendo consolidada e se tornando uma das
principais ferramentas de emancipação política e autonomia femi-
nina na luta pela terra – nas articulações com a classe trabalhadora

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do campo e da cidade e com as/sujeitas/os LGBTs e na conspiração


feminista pautado no Feminismo Camponês Popular.

Em campos opostos: A feminista hegemônica e a feminista


que brota da luta coletiva e constrói o Feminismo Camponês e
Popular (FCP)

A associação entre feminismo e MST é, de fato, muito recente


e fruto de intensos debates, articulações, construções e descons-
truções históricas. Foram vários os caminhos percorridos por essas
mulheres até o reconhecimento de que as articulações políticas, as
reivindicações, o protagonismo feminino e as lutas em torno do di-
reito à terra, da produção agroecológica, da defesa e recuperação das
sementes crioulas e contra todos os tipos de violência tinham vincu-
lação direta com as pautas feministas.
No entanto, nem sempre foi assim. Durante muito tempo, as
mulheres Sem Terra entendiam que o feminismo não era para elas.
Essa percepção estava aliada a, pelo menos, três componentes: por
um lado, “havia uma satanização do movimento feminista pela so-
ciedade patriarcal e machista2” (MAZIOLI, 2019) incluso nesse ponto,
como já ressaltado anteriormente, havia ainda, o receio de que a pau-
ta feminista pudesse fragmentar e dividir o Movimento e, por outro
lado, o movimento feminista era representado, sumariamente, pelo
movimento feminista hegemônico, a saber: branca, urbana, intelec-
tual e com privilégio de classe. Ao falar sobre a representação dessa
mulher feminista, Liu nos apresenta a seguinte percepção:

Enquanto elas estavam debatendo feminismo nós estávamos cuidan-


do dos filhos delas, nós estávamos produzindo o mingau, a comida

2
Fala de Itelvina Maria Mazioli colhida durante o I Encontro Nacional das Mulheres
Sem Terra realizado em março de 2020. Todas as citações de Mazioli nesta sessão
estão vinculadas a esse momento.

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dos filhos delas. Então e ninguém cuida dos nossos filhos, ou seja,
no nosso feminismo precisa ter o componente do choro, da agonia
das visitas nos presídios, é do choro pra os nossos camaradas presos
injustamente nos processos de luta. [...] Então [...] a gente começou
primeiro questionando (companheiras do MST)"esse negócio de fe-
minismo não é pra nós não. Ah, quieta com isso, muito radical!"),
que aí quando pau, pau, pau nos homens a gente começa a entender
(companheiras do MST)" não, se a gente fizer assim nós estamos só lá
no meio da roça"), aí a gente começou a sentir que não estava dando,
não era ali pra nós, ou uma hora a gente passava a não entender o
que estava sendo dito, o que estava sendo debatido, não conseguin-
do participar, então virava também um espaço de constrangimento.
E a gente que já tímida, então a gente ao invés de ir pra os espaços
fazer debate de feminismo e se sentir empoderada e se sentir uma
mulher mais livre a gente voltava entendendo que (companheiras do
MST)"Isso não é para nós. Ah, isso não é coisa pra mulher da roça,
mulher sem-terra, não"). [...] (Entrevista com Liu, 03/02/20).

Esse modelo representado pelo movimento feminista hegemôni-


co não retratava a realidade vivida e nem as demandas das mulheres
camponeses, refletindo, com isso, esse “não-lugar” descrito por Liu.
Nessa perspectiva, apesar de reconhecer a contribuição e protagonis-
mo do Movimento feminista no processo de democratização do Esta-
do, na esfera da conquista dos direitos formais da mulher, na identi-
ficação com as lutas populares (demandas por creches, por exemplo),
nas lutas pela anistia, na centralização “das análises em torno do ca-
pitalismo patriarcal (ou patriarcado capitalista)”, evidenciando “as
bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres” (GONZALES,
2011, p. 12), nas proposições de discussões acerca da sexualidade e
na implementação de importantes políticas públicas voltadas para
a promoção da igualdade de gênero, combate à discriminação e a
violência doméstica e sexual contra as mulheres (CARNEIRO, 2003a;
GONZALES, 2011), Lélia Gonzales afirma que havia uma dificuldade
em reconhecer a diversidade interna do movimento – omitindo e ne-
gligenciando a dimensão racial nas hierarquias de gênero. Assim, ao
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propor uma universalização dos valores da cultura hegemônica (oci-


dental) para todas as mulheres, sem reconhecer os processos de do-
minação, violência e exploração sofrida por mulheres que não per-
tenciam a esse paradigma dominante, o movimento não dava conta
de representar a grande maioria das mulheres latino-americanas e
recaia “numa espécie de racionalismo universal abstrato, típico de
um discurso masculinizado e branco” (GONZALEZ, 2011, p. 14) inse-
rindo-se, portanto, numa perspectiva eurocêntrica e neocolonial. Co-
rroborando com essa perspectiva, Susana de Castro (2020) ressalta
que

Toda categorização envolve o pressuposto do modelo a partir do qual


essa categoria é utilizada. A categoria “mulher” possui como modelo
exemplar que lhe dá base de sustentação, ainda que não explicita-
mente, a mulher branca, burguesa e heterossexual e, quando apli-
cada às mulheres de cor, como hispânicas, as negras e as asiáticas,
invisibiliza suas especificidades e tipos de opressão, pois são discri-
minadas tanto por serem mulheres quanto por serem racializadas
(CASTRO, p. 148, 2020).

O duplo caráter de discriminação pautado nas suas condições


biológicas – racial e sexual – “faz com que elas sejam as mulheres
mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriar-
cal-racista dependente” (GONZALEZ, 2011, p. 17). Ao analisar a ques-
tão de classe, Gonzáles ressalta ainda que as mulheres ameríndias e
amefricanas estariam submetidas, na verdade, a um triplo caráter de
discriminação, já que, são elas as principais representantes da classe
proletária. Segundo Liu, essa tripla camada de opressão – intersec-
cionadas a partir da classe, do gênero e da raça foram assim proble-
matizadas pelo MST:

Então, na verdade, eu acho que entendendo a luta de classes é que


o movimento entendeu que era necessário a gente fazer o debate de
gênero. Porque como tá na nossa gênese que nós queremos a trans-
formação da sociedade é por isso que nós lutamos, então, nós fomos

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entendendo que nós fomos historicamente margeados, nós somos o


povo que que descende de gente escravizada, se você observar a po-
pulação camponesa ela é majoritariamente negra. Então a gente des-
cende daí, né? Dos resquícios dos quilombos, então nós fomos excluí-
das da terra e continuamos até então excluídos da terra (Entrevista
com Liu, 03/02/20, grifos nossos).

A compreensão do processo histórico colonial e escravagista que


fundou a nação brasileira e estabeleceu o cerne da desigualdade e da
exclusão social através do massacre dos povos originários, da escra-
vização dos povos africanos e da efetivação da estrutura fundiária
através da Lei de Terras de 1850 – pensada para excluir o povo preto,
os povos originários e os trabalhadores rurais da terra é o eixo cen-
tral da fala de Liu.
A partir dessa formação neocolonial, multirracial e pluricul-
tural percebemos que o viés eurocentrista, vigente no feminismo
brasileiro, projetou um silenciamento pujante nas outras formas de
opressão para além do sexismo. Essa assertiva é corroborada quan-
do revisitamos as pautas mais difundidas pelo movimento acerca do
mito da fragilidade da mulher, da “rainha do lar” e da garantia das
mesmas oportunidades no mercado de trabalho para homens e mul-
heres – de qual mulher se fala? (CARNEIRO, 2003b).
Diante da exposição de Liu e da percepção apresentada por Sueli
Carneiro fica claro que as demandas apresentadas pelo movimento
feminista não contemplavam a realidade das mulheres negras, peri-
féricas, camponesas, quilombolas, indígenas, da floresta, quebradei-
ras de coco, marisqueiras, trabalhadoras da classe popular e etc. E,
muito menos, conseguia representar as mulheres negras e campone-
sas. Esse silenciamento demonstrava a insuficiência teórica e prática
desse feminismo hegemônico. Além do silêncio sobre as outras for-
mas de opressão (CARNEIRO, 2003a), esse feminismo hegemônico,
de matriz liberal e pequeno-burguês

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[...] não representa senão uma modalidade de consciência utópica


no sentido de desejar e lutar por uma transformação parcial da so-
ciedade, acreditando ser possível conservar intactos os fundamen-
tos desta. Desenvolver as forças produtivas da sociedade capitalista
implica, simultaneamente, dar a mulher oportunidades de trabalho
remunerado e auxiliar a liberação, por parte da estrutura de classes,
de ponderável parcela da força de trabalho feminina. Deste ângulo,
o feminismo pequeno-burguês não é, na verdade, um feminismo.
Representa, ao contrário, uma força de consolidação da sociedade
de classes na medida em que permite a esta assumir uma aparência
que melhor dissimule suas contradições internas3 (SAFFIOTI, 2013,
p.194).

A transformação parcial da sociedade apontada por Saffioti pode


ser relacionada a metáfora do porão proposta por Arruzza, Bhatta-
charya e Fraser (2019) que, por sua vez, sentencia o “não-lugar” da
mulher representada por Liu dentro do Movimento Feminista he-
gemônico. Ao negarem esse “não-lugar”, essas mulheres Sem Terra,
antes invisibilizadas e vinculadas, principalmente, “à representação
histórica e construída, culturalmente, de forma subordinada, no in-
terior da família camponesa, ao pai, homem, marido e filho” (ESME-
RALDO, 2016, p. 145), compreenderam que não existia só um feminis-
mo e, por isso

3
Aliada a essa percepção Cinzia ARRUZZA, Tithi BHATTACHARYA e Nancy FRASER
ressaltam que esse “[...] feminismo propõe uma visão igualmente baseada no merca-
do, que se harmoniza perfeitamente com o entusiasmo corporativo vigente pela “di-
versidade”. Embora condene a “discriminação” e defenda a “liberdade de escolha”,
o feminismo liberal se recusa firmemente a tratar das restrições socioeconômicas
que tornam a liberdade e o empoderamento impossíveis para uma ampla maioria
de mulheres. Seu verdadeiro objetivo não é a igualdade, mas a meritocracia. Em vez
de buscar abolir a hierarquia social, visa a “diversificá-la”, “empoderando” mulheres
“talentosas” para ascender ao topo. Ao tratar as mulheres como grupo sub-represen-
tado, suas proponentes buscam garantir que algumas poucas almas privilegiadas al-
cancem cargos e salários iguais aos dos homens de sua própria classe. Por definição,
as principais beneficiárias são aquelas que já contam com consideráveis vantagens
sociais, culturais e econômicas. Todas as demais permanecem no porão” (ARRUZZA,
BHATTACHARYA, FRASER, 2019, p. 37-38, grifos nossos).

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[...] Era preciso construir a nossa concepção de feminismo, não po-


demos estar só no debate do feminismo aquilo que já é constituído
pela academia ou que a gente está discutindo com os movimentos
urbanos, até porque, [...] têm algumas situações específicas do campo
que esse feminismo não responde”. (Entrevista com Beth, 30/01/20).

Com esse intuito, a questão a ser respondida era: “Como é que nós
mulheres do MST ou mulheres camponesas podemos debater femi-
nismo ou construir concepção sobre feminismo, a partir da nossa vi-
vência, da nossa atuação, do que é ser mulher do campo, agricultora
rural?” (Entrevista com Beth, 30/01/20). A partir desse questionamen-
to, veio junto a compreensão que sem feminismo não há revolução e
que era preciso ressignificar e reivindicar suas lutas cotidianas con-
tra o patriarcado capitalista e o agronegócio como pautas feministas.
Esse “despertar” foi potencializado por um debate político interno de
mudança estrutural que ganhou força a partir dos anos 2000. Para
Gema Esmeraldo (2010), esse processo gerou uma nova força política
no interior do MST: a força feminina. Beth descreve resumidamente
esse período:

[...] quando chega esse debate na instância, na direção do Movimen-


to, das mulheres, principalmente, porque quem começou a puxar o
debate foi as mulheres, eu estava ainda na direção. [...]. Primeiro teve
o estranhamento interno, entre nós também. Porque assim, a gente
estava recém – do ponto de vista temporal – absorvendo e compreen-
dendo o conceito de feminismo, né? O feminismo tem várias verten-
tes, mas... Uma outra dificuldade nossa sempre foi o seguinte, que
tem a ver com feminismo camponês. Quem sempre debateu o femi-
nismo foram as mulheres da cidade, quem construiu as concepções,
quem dialoga, quem faz o debate, quem pesquisa, quem formula...[...].
(Entrevista com Beth, 30/01/20, grifos nossos).

A fala de Beth retrata o estranhamento inicial gerado quando ti-


veram o primeiro contato direto com o feminismo – resultado dos
dois componentes já sinalizados anteriormente: a visão distorcida
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e preconceituosa do movimento aliado a crítica de fragmentação e


a não representatividade. Essa percepção, no entanto, começa a ser
reformulada a partir de um processo educativo com a apropriação
de novos conhecimentos e com a construção articulada com os de-
mais setores de mulheres do campo popular. Tais processos foram
fundamentais para fomentar a incorporação de “outras ferramentas
reflexivas – como a epistemologia feminista – para ampliar os ca-
minhos emancipatórios do projeto socialista” (ESMERANDO, 2016,
p. 155). Como resultado, Beth afirma que,

[...] com o tempo [...] começou um debate no coletivo de mulheres que


nós não podíamos esquecer que nós éramos mulheres e que essas
mulheres precisavam ter espaço enquanto mulher, né? Como mul-
her. Não apenas como dirigente, como militante, mas como mulher.
[...] Nós só começamos a compreender isso minimamente na nossa
prática, já agora, vamos dizer aí... Já nesse século (risos) [...]. Esse de-
bate começa a surgir até por influências externas, né? Então a aca-
demia, nossas relações com outras mulheres, com outros grupos fe-
ministas também de apoio à luta pela terra. [...] (Entrevista com Beth,
30/01/20, grifos nossos).

É, portanto, nesse fazer-se coletivo – fortalecendo a luta, a organi-


zação social e política, a solidariedade de classe, o internacionalismo
e a construção de alianças – que o MST inicia em 2001 “[...] transfor-
mações que repercutiram nos debates programáticos sobre a refor-
ma agrária e sua articulação com o feminismo” (ZARZAR, 2017, p.
230). Esse processo ancorou-se no fomento à auto-organização e na
formação que proporcionou às mulheres do Movimento um maior
protagonismo na luta pela terra e nas articulações políticas contra o
capital. Com isso, o “Feminismo e o Socialismo passam a ser a base do
processo de formação das lideranças femininas, conceito de gênero
deixa de ser o eixo central desse processo” (MST, 2010a, p. 30).
É dentro dessa conjuntura – marcada pelo silenciamento das
pautas das mulheres camponesas no Movimento feminista he-
gemônico, nos processos educativos e nas articulações nacionais e
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internacionais – que tem sido construído o Feminismo Camponês e


Popular que está fortemente ligado às lutas de resistência das mul-
heres do campo4 frente a um contexto histórico de resistência e en-
frentamento ao capitalismo colonial e extrativista que, há séculos
promove o saqueamento das riquezas naturais, dos territórios dos
povos originários e tradicionais e das terras das/os trabalhadoras/es
rurais (MAZIOLI, 2020).
O desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo no cam-
po tem aprofundado, cada vez mais, as desigualdades sociais, a cri-
minalização dos movimentos sociais, o ataque ostensivo e criminoso
ao meio ambiente como uma política de governo, o crescimento dos
conflitos no campo, a liberação negligente de agrotóxicos de extre-
ma e alta toxicidade, o aumento indiscriminado de alimentos trans-
gênicos, o aparelhamento e sucateamento do INCRA e o avanço cada
vez mais violento do modelo agro-hidro-mineral subordinado aos in-
teresses imperialistas. Diante dessa conjuntura, as mulheres Sem Te-
rra vêm reafirmando suas lutas como manifestação do feminismo de
todas aquelas que “não puderam escrever sobre feminismo, mas que
resistiram uma vida inteira contra o patriarcado e contra esse siste-
ma capitalista que [...] nos oprime” (Entrevista com Liu, 02/02/20).
Nesse caminhar,

[...] nós entendemos que nós somos mulheres, Sem Terra, então, da
roça, então nós queremos que o feminismo nos caiba e se ninguém
fez esse feminismo até agora então nós queremos debater o feminis-
mo que nos cabe, porque nós entendemos que o feminismo é, assim
como todos os outros espaços, a gente precisa colocar nele as nossas
cores, os nossos amores, os nossos sentimentos, os nossos pensamen-
tos, as nossas palavras. Palavras por vezes muito, muito comum, mas
carregadas da nossa vivência e da nossa experiência. Então, e isso
também nos obrigou a ir também para um lugar, que é o lugar de
escutar e valorizar o saber popular, porque aí nós já tínhamos as sis-

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O Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) é uma importante referência para
pensar e propor o Feminismo Camponês e Popular.

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tematizadoras, mas nós não queríamos que só quem sabe escrever


fale de feminismo, nós queremos, por exemplo que entre no nosso
feminismo as diversas formas de luta que as amas de leite tinham,
que as doceiras, quituteiras [...]. (Entrevista com Liu, 03/02/20).

Esse lugar que lhes cabe, que lhes fornece acolhimento e pertenci-
mento está sendo gestado como instrumento de resistência e luta dos
povos a partir de “um feminismo das trabalhadoras, portanto, um
Feminismo Combativo e Revolucionário” (MAZIOLI, 2020). Assim, o
Feminismo Camponês e Popular acredita que a “igualdade substan-
tiva, plena, nas relações de gênero não é possível de ser alcançada in-
teiramente nos marcos do capital” (SETOR DE GÊNERO, 2015, p. 3) e,
por isso, a luta é “pela destruição de todas as formas de dominação e
de exploração deste nefasto modelo” (SETOR DE GÊNERO, 2015, p. 3).
Nesse caminhar, essas mulheres foram/estão construindo uma
consciência feminista e compreendem que o feminismo é um Mo-
vimento político das mulheres que abriu caminho para o reconheci-
mento e conquistas de direitos historicamente negados. Ao explicar
o caráter popular e camponês desse feminismo e sua vinculação com
a reforma agrária popular, Liu traz a seguinte abordagem:

[...] nós temos esse entendimento de que se a gente não cuidar a gen-
te faz o feminismo para uma categoria e nós não queremos que ele
seja só camponês. Então, porque nós identificamos que tem os femi-
nismos mais acadêmico, [...] alguns movimentos feministas já falam
que tem o feminismo branco e tal, nós queremos um feminismo que
caiba a diversidade. E nós não estamos falando, fazendo isso, é, de
maneira desrespeitosa é porque nós queremos deixar nesse popular
de que pode e precisa ser esse, esse fazer a todas as mãos, pra gente
ter um feminismo que realmente nos liberte. Porque então a gente
quer discutir, nós não queremos falar só da liberdade das mulheres
e não falar da liberdade da terra, nós não queremos falar só da liber-
dade das mulheres e não falar da liberdade dos modos de produção,
meios de produção, então, queremos falar sobre tudo. Então por isso
precisa ser popular, quando nós estamos demarcando o camponês

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[...] nós estamos dizendo que [...] já tem esse componente, nós esta-
mos nos propondo no componente camponês, mas que é aberto para
essa construção popular, para essa construção coletiva, que dialoga
com a reforma agrária popular? Dialoga. Porque também a reforma
agrária popular nos ajuda a fortalecer essa ideia de que precisava ser
camponês e popular, né? Porque é exatamente onde chega à reforma
agrária popular chega o feminismo camponês e popular. Porque [...]
essa reforma agrária popular é construída por nós também, então,
mas também nós estamos colocando isso porque nós temos também
no campo as/as comunidades indígenas que tem as suas especifici-
dades e que nós não estamos nós mulheres Sem Terra, é, então aí eu
falo aqui do lugar que eu piso, né? [...] É o meu lugar de fala falar em
nome das mulheres negras, é, é sim. Então, mas não termina nisso,
as mulheres negras que tem no movimento, porque nós temos o povo
quilombola, as mulheres quilombolas que tem todo o direito de falar
desse feminismo, então, acaba que a gente, quando a gente coloca o
popular é pra gente não pegar uma, eh::, uma bandeira no meio do
negócio que é um todo a gente pegar uma faixa e sair, a gente não
quer construir uma faixa dentro do feminismo, a gente quer apre-
sentar uma proposta dentro de feminismo que caiba as mulheres
que lutam por uma sociedade justa, [...] que caibam as mulheres que
questionam todas as propriedades, que querem coletivizar os bens
[...] (Entrevista com Liu, 03/02/20).

A fala de Liu faz uma síntese da construção coletiva em torno


do Feminismo Camponês e Popular e traz um elemento importante
para se pensar o lugar dessa mulher camponesa e negra dentro do
MST. Ao evidenciar e demarcar esse lugar de fala, ela ressalta:

Uma coisa que a gente tá ensaiando fazer o debate é que nós estamos
entendendo que debater o feminismo significa debater junto a ques-
tão do racismo, mas aí já entra no outro processo porque as primei-
ras mulheres Sem Terra que elaboram não necessariamente são mul-
heres pretas. Mas já são companheiras que tenham uma percepção
sobre isso e que entende que é necessário. [...] então assim, já começa-
mos a pensar que não basta a gente debater só um, porque o racismo

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e o machismo eles são igualmente violentos, né? São estruturantes,


igualmente violentos pra nós (Entrevista com Liu, 03/02/20).

Essas discussões já vêm sendo formuladas a nível internacional


pela CLOC/VIA CAMPESINA desde os anos 2000. Em 2010, durante a
realização da IV Assembleia Latinoamerica das Mulheres do Campo
em Quito-Equador elas afirmaram categoricamente que: “Sem Femi-
nismo não há Socialismo!” proporcionando a ampliação do debate
político e ideológico sobre o socialismo a partir de uma concepção
anticapitalista, antipatriarcal e antiracista. Quase 10 anos após o
reconhecimento de que “Sem Feminismo não há Socialismo”, essas
mulheres se reuniram em Cuba por ocasião da VI Assembleia de
Mulheres CLOC/VIA CAMPESINA e constataram:

Durante estas dos décadas de formación sociopolítica hemos dedica-


do un afanoso estúdio a las categorías de género, clase y ético/racia-
les, comprendiendo que las desigualdades que afectan a las mujeres
son estructurales de una sociedad capitalista, patriarcal, colonialista
y racista. Estamos ciertas que no se puede eliminar la opresión, do-
minación y explotación de género y racial sin eliminar la opresión
de classe (CLOC/VIA CAMPESINA, 2019, p. 1).

Esse campo de negociação interseccional tem sido fomentado


especialmente, pelas mulheres e está alinhado ao fato de que a luta
pela terra por si só não é suficiente para combater todas as formas de
opressão, especialmente, aquelas sofridas pelas mulheres negras e
camponesas. É neste mesmo encontro que elas afirmam: “¡Con femi-
nismo construimos socialismo!”
Por um lado, o Feminismo Camponês e Popular entende que a
luta pela emancipação das mulheres deve estar ancorada com a luta
pelo fim da propriedade privada, pelo direito à terra e ao território,
pela Reforma Agrária Popular, contra o racismo, contra as transna-
cionais, contra os agronegócios, contra os transgênicos, contra os
agrotóxicos e contra toda forma de violência e exploração dos seres
humanos e da natureza. E, por outro lado, propõe a luta em defesa da
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vida, dos bens da natureza, das sementes crioulas como patrimônio


dos povos e a serviço da humanidade e pelo resgate ancestral como
um novo jeito de se relacionarem com a natureza.
Esse projeto feminista tem sido fortalecido na solidariedade de
classe nacional e internacionalista a partir das alianças transnacio-
nais que reafirmam a ideia de que todas as formas de violência é par-
te integrante do funcionamento da sociedade capitalista e, por esse
motivo, urge a construção de outro projeto de sociedade e de campo.
Com esse entendimento Liu ‘sentencia’: “O feminismo é fundamen-
tal para que a gente avance no nosso projeto de sociedade. Então eu
acho que isso tudo no nosso Movimento fecha bem que é com aquela
nossa palavra de ordem que é “quando uma mulher avança nenhum
homem retrocede!”.”
Ao assumirem o Feminismo como uma práxis revolucionária
que permite avançar na luta pela emancipação da humanidade, as
mulheres assumem também que os desafios na formação política, no
desenvolvimento de lutas permanentes e articuladas a nível nacio-
nal, continental e intercontinental e a construção de alianças entre
campo e cidade deve ser uma luta firmada por todas e todos.

Considerações finais

O caminho trilhado pelas mulheres no MST – desde o lugar da


invisibilidade até o lugar do protagonismo (anos 2000) – foi fruto
de um intenso processo coletivo de amadurecimento político e de
afirmação identitária pautada em negociação, disputas e contra-
dições internas. Com esse acúmulo político-organizativo, as mulhe-
res avançam em alguns pontos fundamentais: 1. Na compreensão e
elaboração sobre o patriarcado e o racismo como elementos estru-
turantes do capitalismo; 2. No avanço da construção do Feminismo
Camponês e Popular – via articulação com a CLOC – Via Campesina e
outros Movimentos de mulheres camponesas – como um movimento
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político que propõe uma luta concreta e permanente contra os inimi-


gos comuns e na luta em defesa da vida, dos bens da natureza, das
sementes que são patrimônio dos povos e devem estar a serviço da
humanidade, por direito igualitário de acesso à terra, por salários
justos e igualitários e contra a exploração e todas as formas violên-
cia. Essa dimensão feminista da luta pela terra, segundo orientação
do próprio Movimento, deve ser assumida por mulheres e homens
revolucionários, 3. Na constatação de que a igualdade substantiva e
plena nas relações de gênero, de raça e de classe não são possíveis
de serem alcançadas inteiramente nos marcos do capital e, por isso,
elas pontuam que o Socialismo e o Feminismo são parte do horizonte
estratégico de transformação radical da sociedade e, 4. Na formação
de quadros femininos para além da agitação e propaganda dentro da
juventude Sem Terra.
Nesse caminhar de 37 anos de construção do MST as mulheres
têm sido participantes ativas desse processo – mesmo quando eram
invisibilizadas – e foram construindo um espaço politizado, espe-
cialmente, a partir da impossibilidade de serem representadas pelo
masculino enquanto sujeito universal. Esse amadurecimento políti-
co resultou na criação de novas articulações, estratégias e espaços
de formação que ressignificaram as práticas, os discursos políticos
e o sentido da defesa da vida humana e da mãe-terra. Sem dúvidas,
foi a ação política das mulheres que garantiu a elas o protagonismo
criando as condições que permitiram pautar o debate do Feminis-
mo para o conjunto do Movimento e a construção em curso de uma
concepção de Feminismo Camponês e Popular que, ao lado de uma
crítica ao sistema patriarcal, capitalista e racista elas apresentam,
inclusive, um projeto feminista que se pauta na descolonização do
socialismo.
É, portanto, nessa conjuntura que o Feminismo Camponês e Po-
pular tem sido elaborado continuamente com o objetivo de sanar
as demandas reais das mulheres do campo, construir uma nova so-
ciabilidade que tenha por base novas relações de gênero e uma ma-
triz produtiva baseada na agroecologia, na soberania alimentar, na
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alimentação saudável e na Reforma Agrária Popular. Ao lado desse


processo que ainda está em construção, entendemos que é neces-
sário que essas mulheres se mantenham organizadas acumulando
forças, inclusive, com outros movimentos sociais do campo e da ci-
dade para que possam reafirmar suas identidades enquanto mulhe-
res do campo e feministas. Dessa forma, urge fomentar estratégias
de auto-organização com o intuito de priorizar cursos de formação
que abordem, cada vez mais, as pautas de gênero e que dialoguem
com temas transversais e interseccionais como raça e sexualidade.

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do) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia,Universidade Federal de
Pernambuco, CFCH. Recife, 2017.

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Sobre as autoras e autores


Volume 5: Gênero, geração e comunidades tradicionais

Clóvis Roberto Zimmermann Graduado em Sociologia e Teologia


pela Universidade de Heidelberg na Alemanha e doutorado em
Sociologia pela mesma universidade. Atualmente é professor as-
sociado de Sociologia da Universidade Federal da Bahia e mem-
bro do Programa de pós-graduação em Ciências Sociais dessa
universidade. Tem experiência na área de Sociologia, atuando
principalmente nos seguintes temas: teoria das políticas sociais,
participação popular e direitos humanos.

Dayane Nascimento Sobreira Doutora pelo Programa de Pós-Gra-


duação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo (PPGNEIM) da Universidade Federal da Bahia. É pro-
fessora substituta na Universidade Estadual da Paraíba, campus
III. Mestre em História (UFPB), especialista em Educação do Cam-
po (UFPB), é graduada em História e em Ciências Sociais. Integra
os grupos de pesquisa ProjetAH – História Das Mulheres, Gêne-
ro, Imagens, Sertões e CIGE/NEIM – Ciência, Gênero e Educação,
além do GT de História Agrária (ANPUH-BA).

Diana Anunciação - Socióloga, Doutora em Ciências Sociais e


Professora Adjunta do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da
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Volume
Maria 5: Gênero,
de Lourdes geração
Novaes Scheflere -comunidades tradicionais
Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É membro


titular do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra
do Estado da Bahia. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Ambien-
tais e Rurais (NUCLEAR/UFBA/CNPq). É vice-diretora da ABRAS-
CO – gestão 2021-2024 e membro do GT Racismo e Saúde.

Dilma de Souza da Conceição Graduada em Tecnologia em Gestão de


Cooperativas pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
– UFRB

Eliene Gomes dos Anjos Doutora em Ciências Sociais, docente da


Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, integra o
Programa de Pós-Graduação em Gestão de Políticas Públicas e Se-
gurança Social e a Incubadora de Empreendimentos Solidários
– Incuba.

Greice Bezerra Viana é socióloga de formação. Mestra em Ciências


Sociais pela Universidade Federal da Bahia e atualmente cursa
doutorado em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Iniciou a área acadêmica estudando o cinema rural
brasileiro e o trabalho feminino no campo. Em sua trajetória tem
trabalhado com comunidades tradicionais, cartografia social,
conflitos territoriais, questões de gênero e saúde coletiva.

Lídia Cardel - Bacharel em Ciências Sociais, Doutora em Antropolo-


gia Social, Pós-Doutora em Sociologia pela Université de Stras-
bourg/France. Professora Associada da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), coordenadora do Núcleo de Estudos Ambientais e
Rurais (NUCLEAR/UFBA/CNPq) e professora Associada a Univer-
sidade Federal de Brasília (UnB).

Losângela da Cunha Araújo Jornalista, Assistente Social e Sociólo-


ga. Mestra em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais: cultura, desigualdade e desenvolvimento
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Sobre as autoras
Coleção Mundo Rural Contemporâneo na Bahia - Vol. 5 - Gênero, geração e comunidades e autores
tradicionais

(PPGCS/UFRB). Assessora Técnicas da Fundação de Apoio à Agri-


cultura Familiar do Semiárido da Bahia – FATERS. Pesquisadora
do Núcleo de Pesquisa em Agricultura Familiar e Desenvolvimen-
to Rural – NEAF/UFRB.

Mainara Mizzi Rocha Frota Possui graduação em Ciências Sociais


pela Unimontes (2008), Mestrado em Ciências Sociais pela Uni-
versidade Federal do Recôncavo da Bahia (2012) e doutorado em
Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (2021). Atual-
mente é professora Adjunta da Universidade Estadual do Sudoes-
te da Bahia. Tem experiência na área de Sociologia, atuando prin-
cipalmente nos seguintes temas: políticas sociais, movimentos
sociais, MST e feminismo.

Maria de Lourdes N. Schefler é Socióloga, Doutora em Ciências So-


ciais, pela FFCH/UFBa e Pesquisadora Associada do Núcleo de Es-
tudos Interdisciplinares sobre a Mulher- NEIM/UFBa.

Nilson Weisheimer Cientista Social. Doutor em Sociologia pela


UFRGS. Professor Associado da UFRB. Professor Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais: cultura, des-
igualdade e desenvolvimento (PPGCS/UFRB) Líder do Grupo de
pesquisa Núcleo de Pesquisa em Agricultura Familiar e Desenvol-
vimento Rural – NEAF/UFRB.

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Maria de Lourdes Novaes Schefler - Lídia Maria Pires Soares Cardel - Ubiraneila Capinan Barbosa - Danilo Uzêda da Cruz

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