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ÚLTIMA ORAÇÃO À QUEIMA-ROUPA

(Conto-pastiche)

Per què he de buscar Déu en el misteri, quan és tan tangible en la vida?


Lluís ‘Lucho’ Espinal, Pregàries a boca de canó

Atado nesta entranhada noite acre me foge o sopro pelas narinas como se quisesse voltar
ao Criador. Sinto o paladar ferroso gosto primordial do barro da terra de que todos fomos feitos
pó das Escrituras pisado e batido. Antes de qualquer fiapo de luz refletir meu resignado mutismo
último fôlego que antecede ao mergulho fatal sou arrebatado por este coalho amargo atravessado
mais que a dormência magoada nos dedos e a fedentina seca. Tenho sede. A nuca empapada
gotejante, feito palha no sereno. Grude inclassificável desce dos cabelos à aspereza do encosto
gradeado esfolado pela ferrugem. Num guiso de vento sinuoso arrepio serpenteia o tinto legado
de maltrato dos talhos deixados no corpo encravado testemunho da satisfação passageira tara
mórbida que escraviza meus captores. Todos podemos enlouquecer também eles agonizam suas
próprias noites de chumbo.

Abro os olhos. Tal como aqui havia uma porta entreaberta claridade vazava transbordante
pelos cantos familiarmente em tantas alvoradas de meu noviciado Deus in adjutorium meum
intende por entre pedras e arcos da velha abadia Domine ad adjuvandum me festina. Não estou
mais livre em minha antiga cela – estou? – atormentado pelo cilício gloria Patri et Filio et Spiritui
Sancto há muito esquecido no colégio abandonado embora envolto numa disciplina voluntária
feito penitente sertanejo meus pés não me trouxeram aqui sicut erat in principio et nunc nem a
lugar algum nunca desde quando nasci estou onde deveria estar et semper et in sæcula sæculorum
onde sempre estive de onde fugi de onde nunca saí preso à minha própria liberdade amen. Onde
estou se estilhaça a imaginação porque a realidade é mais inverossímil que os sonhos laus tibi
Domine rex æternæ gloriæ.

No outro cômodo uma conversação abafada. Tom cúmplice de banca examinadora.


Nenhum prenúncio inesperado solenemente informal de alguma nova primavera na Igreja de um
Deus feito ausente por nossa comodidade quase-coerência seguido daquela inundação de mitras
caudaloso rio branco interminável a perder de vista entornado sobre a praça num turbilhão
espetaculoso tampouco o burburinho pequeno-burguês mundano e aconchegante no saguão
acarpetado em alguma sala de projeções cada um de nós a mercê de todos qual um cacho de uvas.
Os desalmados confabuladores de agora quiçá velhos conhecidos de anteontem não parecem
estudantes universitários nem companheiros de viagem dispostos a gastar a vida pelos demais.
Parecem personagens de faroeste mexicano bandoleiros que saltaram da tela montam corcéis a
diesel e portam armas automáticas na solidão do crime do sofrimento e do túmulo. Se formos
sinceros nos sentimos irmãos de todos esses culpados. Vos oferecemos nossa solidão, Senhor
Jesus, nossa completa solidão.

O silêncio em passo solene cerimonial de entronização traz consigo a coroa de espinhos


do constrangimento. Olhares cruzados. O futuro mistério nosso doloroso de cada dia sempre
pareceu uma garganta monstruosa prestes a engolir nossa vida num trago. Andamos de costas
pelo caminho da existência. Tudo que temos são coisas passadas. Sou observado por olhos de
lince e encaro um riso sardônico clichê da perversidade. Deus também está nestes rostos, nestas
pessoas que agora me rodeiam? Neste sadismo, nesta malícia toda? Há lágrimas por detrás destes
olhos? Na servidão do tempo quando soubermos será tarde demais. Vos brindamos o futuro,
Senhor, tal gladiadores na arena. No alaranjado aceso da ribalta na corda bamba do presente nosso
único instante possuído afronta-nos o problema do mal caminho absurdo por um vale tenebroso
rumo a um deserto sem horizonte. Não mero arsenal de palavras em tese de licenciatura segura e
acomodada perda de tempo. Sucede que nossa urgência também não agradou ao generalíssimo se
a tenha visto algum dia investida de besta-fera contra o capote do toureador naquele ano de
barricadas errante icei encarnada bandeira e aportei aqui neste altiplano onde depois de sonhos de
morte e violência finalmente não me sinto mais um estrangeiro.

Pendido em minha cruz que reconheço na hora nona ser a mesma velha conhecida cruz
de meus primeiros votos todavia não me ofereceram nenhuma esponja ensopada de vinagre
apenas o látego da cana sem o alívio do hissopo e o escárnio cuspido dos fariseus e soldados
romanos. A árvore de nossa vida podada a golpes de foice não acolherá nunca mais com sua
sombra os cadáveres de tantos ideais. Pensava que talvez Vós, Senhor, pudésseis estar junto aos
prosélitos dessa vivaz religião da matéria tornados ateus por nossa máxima culpa que não
proclamamos sobre os telhados descarnamos nossa fé e professamos um Deus que na verdade não
existe. A noite é sempre mais opaca para os que sofrem. Novamente contado entre os malfeitores
sou castigado entalhado feito cavaco açoite em sobra de madeira carne viva malho de trigo massa
sovada cruz marcada no peito. Nossa oração é alvoroço de vento numa casa em ruínas. Temos
medo. Fortaleza de barro edificada sobre areia. Livrai-nos da desesperança, Senhor, mesmo ao
chamar-nos náufragos desta vida com a voz do desengano pelos atalhos do pecado experiência
cotidiana de mediocridade. Jesus Cristo, dai-nos o Vosso amor, apagando nossas limitações no
enxerto desse presente diáfano da eternidade somos enlutadas imagens. Nossos pés seguem
caminhos tortos sabemos também tuas mãos nos magoam defloram a alma e arrancam os brotos
da ilusão. Dai-nos a coragem para nos lançarmos na corrente da vida e não nos deixe morrer em
passiva amargura. Estais tão perto, Senhor, em tudo que fascina ou fere nossa angústia do ser
homem que é um erro sairmos ao longe em Vossa busca. Nada temos de tão íntimo de tão nosso
que Vossa presença em nós mesmos profundo amor sem palavras constelação de coisas boas. Vós
sois a alma de nossa alma e nós somos carne da Vossa carne. Juntos formamos um único Corpo,
o Cristo Total. Tudo quanto ocorre no mundo ocorre dentro deste nosso Corpo de Cristo. Só nos
falta abrir os olhos e vê-Lo em todos os rostos humanos. Não somente no crucifixo mas na
crucificação última ilusão apodrecida dos que estão mais cansados que nós porque já nem
possuem fé. Somos feridas abertas...

Meus artesãos também já se cansam da carpintaria sangrenta. Não lhes interesso mais
prazer cruel minha vida nunca os interessou. Nada temos de novo, Senhor, porque toda a novidade
já se passou em Vossa ressurreição triunfo definitivo sobre a morte. Lavam as mãos impassíveis
e limpam as sarapintadas lascas de seu ofício cruento num breve entreato entregues à mundana
tentação da prudência buscam evitar qualquer embaraço na precisão da mira ao enxugarem dos
olhos o suor da lide grotesca praguejando feito o mau ladrão. Começas a agir precisamente em
nossa derrota, Senhor. Talvez assim possamos compreender que mais vale a adoração do que
todas nossas demais ações neste mundo deixado em nossas mãos inábeis e livres para destroçá-
lo. Nossa vida está encharcada de graça e mesquinharia na mesma medida e apenas por soberba
acreditamos ser excessivamente maus. Na frieza da pedra e do aço as armas são conferidas e
municiadas. Prelúdio improvisado de insultos para tenor e barítono servirá de marcha fúnebre
vexatória elegia. Não recebo a humana graça enganadora do indulto na hora da sorte suprema. As
últimas ordens são para não me concederem morte rápida nem instantânea. Meu rosto não será
desfigurado pelos projéteis e amanhã corpo presente mais uma vez as manchetes regarão com
sangue as sementes da revolução. Vivemos somente de aparências nos fiando em nós mesmos
nosso único erro no fundo é não crermos que a verdade nos fará livres. Encenação farsesca na
qual os inimigos andam de mãos dadas por detrás dos panos no cenário da história o partido seguiu
a impulsiva deixa do comandante sob os cordéis da mesma régua e compasso discretos a depender
do lado da moeda tudo e nada é pessoal. Trespassado no ofuscante estardalhaço sinto correr entre
as pernas espesso calor ardente paroxismo das estocadas transpostas em baixo-relevo sob o
crescendo da cantilena interminável de ofensas sobrepondo lentamente ao zumbido nos ouvidos
embalado no presságio de alvorecer translúcido e inefável a se aproximar passo a passo
iluminando para sempre a entranhada noite sem tempo e sem estrelas de nossa alma bendita
imprudência de um Amor que não morre toda vida nada fiz de extraordinário apenas o que tinha
de ser feito. Posso agora render-Vos meu espírito, Senhor, tudo está consumado.

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