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Terra, Território e Direitos em Rondônia: uma história secular por justiça social no campo

Afonso Maria das Chagas

Numa tentativa de compreender a forma e o sentido da ocupação territorial, do Estado de


Rondônia, uma primeira e indispensável constatação é a de que, os processos de invasão destas terras
sempre ocorreram mediante uma lógica de violência de apropriação, imposição e submissão.
Inicialmente “Terras da Coroa” espanhola (Tratado de Tordesilhas de 1494), depois, pela ação
dos Bandeirantes, em nome da Coroa Portuguesa (século XVII), “Terras do Reino de Portugal”. Por
vezes essa história identifica-se em um “Forte militar”, outras, com uma “locomotiva e uma estrada de
ferro”, ligando o Rio Madeira até o Rio Mamoré, por via terrestre, e ainda uma ocupação baseada em
ciclos econômicos (ciclos da borracha, da mineração, da colonização dirigida). Às vezes, este
histórico de ocupação foi narrado pela construção de rodovias (BR 364, BR 419, etc.).
Quase sempre, a questão das terras esteve ligada e compreendida por uma ação externa, não
levando em conta os habitantes originários, povos, comunidades, o povo, enfim. Lembra-se, para tanto
dos “Postos telegráficos” e da Comissão Rondon, dos desbravadores e idealizadores, alçados como
“heróis e missionários”, portadores do progresso e do desenvolvimento. Tais figuras, elevadas ao
patamar de protagonistas da nossa história, restaram perpetuados em nomes das nossas cidades (Rolim
de Moura, Pimenta Bueno, Jorge Teixeira, Presidente Médici, Ministro Andreazza e o próprio
Rondon, enfim), ruas, praças e museus. A questão inicial então, é justamente essa dívida histórica, que
insiste em afirmar que era este espaço, um território sem gente, um vazio demográfico, uma terra de
ninguém, transformada agora em “terra de oportunidades”.
O não reconhecimento das comunidades e ocupações tradicionais, dos povos indígenas,
quilombolas e mesmo os ribeirinhos, depois, é uma proposição que demanda um acerto de contas com
a nossa própria história. Quantas vezes, essa visão não ultrapassava os programas de governo e era
sustentada por colonos-migrantes, pelos de fora que para aqui vieram?
Um segundo e igualmente importante parâmetro de análise passa pela constatação de que o
Estado brasileiro, sobretudo por meio de seus governos ditatoriais, seja do “Estado Novo”, da
Ditadura Vargas (1937-1946), seja da Ditadura militar (1964-1985), sempre operou no sentido de
ordenador, conforme seu rol de interesses, da configuração fundiária, das concessões de terras, da
omissão de políticas públicas que viessem atender as necessidades da população.
Para cada época, um discurso. Getúlio Vargas pregava a “marcha para o oeste”, como uma
missão de salvação. Os militares prometiam ainda mais, “uma terra sem homens para homens sem-
terra”, com a intenção também de salvar a pátria, de “integrar para não entregar”. Reeditava assim, o
“sonho dos bandeirantes”, a dinâmica do “desbravamento”, ou seja, de considerar, tanto os povos
tradicionais quanto a floresta, como objeto a ser “amansado”, ou, seguindo um “destino manifesto”,
exterminado.
Ao naturalizar a relação com a natureza e com os povos e comunidades tradicionais, numa
lógica de estranhamento e submissão, quantas vezes normalizou-se tal comportamento frente a tantas
injustiças sociais, cometidas em nome da colonização? As terras, então colonizadas, enquanto projeto,
sempre pressupôs uma mentalidade colonizadora diante destes “Outros”, estranhos ao processo, que
nas representações oficiais foram retratados como “estranhos”, como problema a ser superado.
Em passadas rápidas, a partir desta dinâmica de colonização, algumas demandas históricas, e
seus desafios, não podem ficar distantes da memória dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, nem
da luta dos povos e comunidades tradicionais. São questões atuais que, estruturais, insistem em se
perpetuar nas demandas por terra e território, ainda hoje.
 A luta pelo reconhecimento e efetivação dos direitos territoriais dos povos originários e
comunidades tradicionais é uma luta legítima e tem que contar com a consciência de
todos e todas que acreditam em justiça social, em democracia e sociedade fraterna e
igualitária;
 O caos fundiário, tem muito a ver com uma política controlada pelo próprio Estado
brasileiro, como uma maneira de blindar a grilagem de terras públicas, alimentar as
pretensões do agronegócio, sobretudo da pecuária de exportação e especulação e, do
comércio imobiliário de terras públicas, ao preço também do desmatamento e
destruição da Amazônia. O desafio aqui, é desmascarar essa política, e seu discurso,
onde quer que estejamos.
 No entanto, esse “Estado” não é uma pessoa fictícia. Tem nome, sobrenome e muitas
vezes um CNPJ. Instala-se nas instituições e muitas vezes convoca, convence e
conquista o nosso apoio. As iniciativas do governo estadual no campo da regularização
fundiária (Decreto nº 4.892/2020), a abertura dos licenciamentos no Decreto da
Mineração nos rios do Estado (Decreto nº 25.780/2021), a tentativa de “passar a
boiada”, promovida pela Assembleia Legislativa no sentido de alterar e reduzir áreas de
conservação e reservas extrativistas do Estado (Lei Complementar 080/2020), são só
alguns exemplos de como as estratégias, sempre estiveram na “ordem do dia”,
infelizmente, da maioria dos políticos que, em nome do povo, conduzem o Estado.
 Especificamente a questão da regularização fundiária, com inúmeras alterações
legislativas promovidas pela Bancada ruralista e pelos últimos governos, pela
imobilidade do INCRA em gerenciar tais questões, pelas ambiguidades do Poder
Judiciário, tanto federal quanto estadual, é imperioso reconhecer que os únicos
prejudicados são os pequenos ocupantes, posseiros e as comunidades tradicionais. A
desorientação governamental historicamente tem prestado um serviço à grilagem de
terras e a “farra imobiliária”, incluindo aqui até venda de terras públicas pela internet.

Ante este cenário, é imperativo seguir apostando na histórica força da união dos pequenos,
na resistência dos povos e comunidades tradicionais e na consciência e defesa dos direitos dos
povos do campo, das florestas e das águas, caminho imprescindível rumo à Justiça social no
campo.

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