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Mestrado em Sociologia do Desenvolvimento

Modulo: sociologia urbana: teorias e debates


Peter R. Beck, Maputo 05/10/2021
peter.beck@uem.ac.mz

Sobre a relevância da cadeira no âmbito das teorias de


desenvolvimento e sobre o seu âmbito teórico:
Documento de Síntese

1. Introdução geral: a abordagem sociológica e a sociologia urbana

Num curso desse tipo, que se quer aberto para interessados oriundo de disciplinas
académicas diferentes, talvez importa clarificar sobre a perspectiva, o olhar sociológico sobre
a sociedade em geral, os relacionamentos e comportamentos sociais, e sobre a urbanização e
a vida urbana em particular. Urbanização em par com a burocratização figura entre as
características as mais marcantes nas teorias de mudança social e da sociedade moderna cujas
consequências sociais incluem o surgimento da sociologia como disciplina autónoma que,
desde do seu início, reconheceu a importância central da urbanização e de burocratização
sobre a vida social e o seu estudo. Estudos sociológicos, que se caracterizam de uma vaste
gama de paradigmas teóricos que resultaram e resultam em explicações diferentes sobre o
seu significado cultural e social. Neste último aspecto, a sociologia absorbeu também, como
revelam os estudos urbanos de George Simmel ou de Louis Wirth, a herança da filosofia que
deu um olhar cético sobre as consequências desse desenvolvimento sobre a vida e o
desenvolvimento social, tudo ao contrário da teoria económica que abordou a urbanização e
a burocratização tanto como resultados, quanto como veículos de desenvolvimento social e
como vetores chaves do desenvolvimento económico. 1 A visão cética de Simmel, Wirth e
outros sobre as consequências culturais e socioculturais da urbanização da vida social
encontrou o seu polo oposto na sociologia urbana Marxista que aborda a urbanização, tal

1
Raramente, nos manuais economistas se encontra o termo capitalismo. Nos influentes manuais de micro e
macroeconomia de Pindyck & Rubinfeld e de Mankiew não há menção desse conceito enquanto o termo capital
ser presente em todas as combinações e variações que da impressão que a ciência económica que defende o
capitalismo e os seus virtudes, se mostrar alérgica contra a palavra capitalismo, bem diferente do economista
francês Thomas Piketty que, na sua obra sobre o capitalismo no seculo 21 promoveu a reintrodução desse termo
nas analises económicas. Robert Pindyck & Arthur Rubinstein (2001) Microeconomics, Prentice Hall. Gregory
Mankiew (2003) Macroeconomics, Worth Publishers, NY. Thomas Piketty (2014) Capital in the Twenty-First
Century, The Belknap Press, Harvard, Cambridge, Massachusetts. Thomas Piketty (2020) Capital and Ideology, The
Belknap Press, Harvard, Cambridge, Massachusetts.

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com a burocratização como sendo resultados e veículos do desenvolvimento capitalista e,


neste âmbito, autores como Henri Lefebvre e David Harvey tem atribuído a urbanização e
ao desenvolvimento urbana uma direita função no processo de acumulação do capital, como
constituindo um 2º circuito de capital, que complementaria o primeiro ciclo ‘produtivo’
descrito por Marx. Na construção desse conceito, Lefebvre recorreu ao lema de Marx que
salientou a necessidade incessível do capitalismo de expandir. “O capitalismo parece estar sem
fôlego. Ele encontrou nova inspiração na conquista do espaço — em termos triviais, na especulação
imobiliária, projetos de capital (dentro e fora da cidade), e compra e venda do espaço (…) em escala
mundial”. Portanto, “o espaço não é mais um meio indiferente, a soma de lugares nos quais mais-valia é
criada, realizada e distribuída”. Em vez disso, “se torna o produto do trabalho social, o próprio objeto geral
da produção, e consequentemente da formação de mais-valia”. Assim, em uma depressão, o capital flui para
ele e “o circuito secundário serve como um amortecedor.”2 Esta dinâmica expansiva capitalista deixa a
sua marca não somente sobre as dinâmicas e a direcção de urbanização, mas também sobre
as políticas urbanas e representa a forca motriz para a mercantilização do espaço urbano que,
nesta constelação, se torna, no mesmo tempo, tribuna e objecto de especulação financeira de
mercado imobiliário. Um desenvolvimento que deixa as suas marcas históricas na estrutura
arquitectónica e espacial-social das cidades e resulta nos processos de segregação espacial-
social e de gentrificação que está a condicionar o acesso ao espaço urbano ao poder de
compra. A gentrificação descreve o “processo de transformação urbana que consiste em
“expulsar” moradores antigos de bairros a baixa renda para a sua transformação em zonas
nobres com poder de compra para rentabilizar esse investimento financeiro. Para os
sociólogos urbanos John Logan & Harvey Molotch, esses processos resultam de coligações
pelo crescimento entre a especulação imobiliária e as politicas publicas urbanos de renovação
urbana motivados pelo mesmo objectivo, isto é, de tronar a cidade uma máquina de
crescimento cujas promessas de taxas altas de rendimento serve para atrair o capital neste 2º
circuite do capital.3
Temos aqui um exemplo do olhar sociológico que tenta de revelar a realidade detrás da
realidade visível, os processos e mecanismos, as forças e factores, os interesses e ideias e os
seus respectivos grupos portadores cuja identificação e análise permite fazer sentido e

2
Henri Lefebvre (2003) The urban revolution, citado in: Maria Ceci Misoczky & Clarice Misoczky de Oliveira (2018)
A cidade e o urbano como espaços do capital e das lutas sociais: notas sobre a duradoura contribuição de Henri
Lefebvre, Revista de administração púbica, vol. 52/nr.6/Nov. - Dez. 2018, p. 1022.
3
John Logan, Harvey Molotch (1987) Urban Fortunes: the political economy of space, University of California Press,
Berkeley, LA 1990. Vide também a discussão critica dessa tese sobre a coligação de crescimento in Mike Savage,
Alan Warde & Kevin Warde (1993) Urban sociology, capitalism, and modernity, Palgrave, MacMillan, 2003

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explicar dessa realidade visível, seja a nível da vida urbana, seja a nível da vida social ‘tout
court’.
1.1. A particularidade da perspectiva sociologia: Portanto, é legítimo de questionar
sobre a diferença entre um olhar sociológico e outras olhares sobre a sociedade e o
capitalismo, sobre a urbanização e vida urbana, tal como pode se encontrar na perspectiva de
utilitarista que prima, como vimos, na teoria económica da cidade. Se compara também com
a perspectiva civilizadora do historiador, ou ainda com a perspectiva de engenharia social do
planificador e gestor urbano. A caracterização dessa especificidade do olhar sociológico e as
respostas que gerações de sociólogos têm apresentado pode se resumir à seguinte forma.

1º Todos os fenómenos e artefactos sociais, materiais ou simbólicos têm de ser vistos


como constructos sociais, como sendo resultados de construções sociais do passado ou que
nascem e se fabricam no contexto de interacções sociais. Este axioma tem a ver com o facto
que o acto de pensar usa conceitos e símbolos linguísticos que todos têm um significado
predeterminado e, sendo construções do mundo da vida, te, uma validade imediata, não
questionada e absoluta.4 Este paradigma construtivista, exemplificado no ensaio famoso de
Peter Berger e Thomas Luckmann sobre a ‘construção social da realidade’, tem por
consequência de associar a sociologia do conhecimento com a teoria social e da sociedade.5
Resulta de definir o mundo, incluindo os desejos biológicos, e a forma como está percebido,
visto, partilhado e vivido com um mundo preenchido de significados que garanta que os
artefactos e fenómenos fazer sentido para nos e se tornam comunicável, podem fazer parte
de reflexões e nos discursos. Essa abordagem permite também de religar as perspectivas
teóricas culturalistas e estruturalistas. Uma divisão de perspectivas que, segundo o sociólogo
urbano William Flannagan, iriem caracterizar as abordagens sociológicas face a fenómeno
urbano e a urbanização.6

4
“O mundo da vida representa a realidade pré-científica que está englobando esta do cientista e que, por esta
razão, está detrás da ação cientifica positivista. Esse conceito do mundo da vida se tornou um conceito chave na
sociologia, tanto a nível da teoria social, quanto para a nível da de teoria de conhecimento. ”Em uma definição
geral, podemos entender mundo da vida como a experiência e o conjunto coerente de vivências pré-científicas,
como "[...] o mundo permanentemente dado como efetivo na nossa vida concreta" (HUSSERL) em contraste com o
mundo propriamente científico, no qual a realidade é analisada a partir dos elementos próprios da ciência corrente,
com seus correspondentes pressupostos e orientações de método, sejam tais pressuposições explícitas ou não.”
Juliana Missaggia (2018) A noção husserliana de mundo da vida (Lebenswelt): em defesa de sua unidade e
coerência, Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 1, p. 191-208, Jan./Mar., 2018.
5
Peter Berger & Thomas Luckmann (1966) The social construction of reality, Anchor Books, NY.
6
William Flannagan (1990) Urban sociology, images and structure, Allyn & Bacon, Boston 1999, p. XI

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A diferença entre teoria social e da sociedade7 é que a primeira visa mais de estabelecer
os elementos universais do social8, enquanto a teoria de sociedade se concentra em destacar
as características especificas de uma dada sociedade que figura como objecto empírico
concreto pela teoria social. A sociedade moderna, por exemplo, e entre outros atributos
pode ser caracterizada como sociedade urbana9, uma caracterização que coloca a sociologia
urbana no centro de uma teoria de sociedade contemporânea. Para um sociólogo, a cidade, a
aglomeração urbana representa um novo contexto social de sociedade urbana e urbanizada –
Lewis Mumford tinha falado da cidade como novo tipo de teatro apontando para o carácter
teatral da cidade que data da cidade antiga e continua caracterizando a cidade moderna com
as suas construções enormes e os seus estátuas e monumentos10 - que, tal como os contextos
históricos sociais anteriores ou esses contemporâneos da sociedade rural, está a representar o
resultado tangível de um processo de mudança social, mas que, no mesmo tempo está a
orientar e a influenciar a direcção do processo de desenvolvimento social, económico e
cultural através da sua influencia sobre as ideias e praticas, sobre comportamentos e
interacções e sobre a organização das relações sociais e da sua interpretação como algo de
normal ou de desviante.

2º Se todos estes constructos e construções devem ter um significado cultural geral ou


específico, isso não quer dizer que deve existir unanimidade sobre o valor e o significado
atribuído a este significado cultural. Isso apesar do que foi dito que tiram a sua validade do
mundo da vida.11 No entanto, como salientou Kant, esses significados que alimentam as
nossas convicções, crenças e maneiras de ver, interpretar e explicar o mundo podem perder

7
Segundo Habermas, uma teoria sociológica da sociedade se caracteriza pelos seguintes objectivos: determinar a
condição social da sociedade, a sua estrutura organizacional; identificar suas possibilidades e potencialidades de
desenvolvimento incluindo essas ainda não discutidas e/ou realizadas. Bem como, no fim, identificar quais são os
seus padrões de relacionamento, de atitudes e comportamentos características. Jürgen Habermas; Theorie de
Gesellschaft oder Sozialtechnologie, in Jürgen Habermas & Niklas Luhmann (1971) Theorie der Gesellschaft oder
Sozialtechnologie, Suhrkamp, Frankfurt/Main 1974
8
Talcott Parsons (1951) The social system, Routledge, London, 1991. Talcott Parsons (1964) Evolutionary
Universals in Society. American Sociological Review, vol.29/ nr.3.
9
Flannagan (1999) ibid., p. 3
10
Munford citado in Flanngan (1999) ibid., p. 9
11
Conduziu o Alfred Sohn-Rethel de estipular, contra a teoria de conhecimento de Kant que enquanto os conceitos
tem a sua origem histórica, tem a sua natureza social. Enfatizou, neste âmbito, a necessidade que estudos sociais
deviam incluir uma reflexão epistemológica sobre os conceitos e metodológica sobre a abordagem. Alfred Sohn-
Rethel (1978) Intellectual and manual labour: a critique of epistemology, Macmillan Press, London, p. 7

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o seu estatuto de verdade imediata e se tornar objecto da reflexão. Essa problematização das
convicções e práticas costumeiras é associada e faz parte do processo de mudança social; um
processo que Max Weber, numa formulação bem feliz, descreveu como articulação entre
ideias e interesses que, a partir de um certo momento, e provocado pela descoberta de novas
técnicas ou tecnologias, de novos produtos podem se dissociar e resultar criar conflitos entre
grupos sociais. Marx descreveu este processo de construção de significados em direita
articulação com a produção das condições sociais da vida. Resumiu este facto no famoso
prefácio da crítica da economia política do capitalismo da seguinte forma: “Na produção social
da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade;
essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas
materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base real
sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social,
política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social
que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De
formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então,
uma época de revolução social.” 12 Chegado a este estádio, as construções do senso comum do
mundo da vida se substituem, pelo menos em parte, pelas ideologias politicas associadas aos
grupos de interesse e que tem por função de legitimar a dominação ou a vindicação de
dominação de uma dado grupo. Tornando em ideologia dominante tenta de impor a sua
visão o mundo, o seu mundo de significados como o único possível. Faz que não todo o
consenso é produzido de forma livre e democrático. Neste contexto, Michael Burawoy falou
de um consenso fabricado.13 Ou seja, indivíduos não somente entram em competição sobre
o controlo e o fecho de acesso aos recursos materiais e simbólicos e sobre posições,
estatutos sociais e dos privilégios que estão a oferecer, mas também sobre o poder de
interpretação de situações e de significados. Por este efeito lutam para poder impor as suas
ideias políticas e económicas, morais e culturais. Assim, para legitimar estes interesses e para
cementar a revindicação de autoridade, actores sociais se esforcem de impor a sua visão das
coisas e torna-la a visão dominante e culturalmente aceitada. Assim Weber concebeu o seu

12
Karl Marx (1859) Prefácio a crítica da economia política. Editora Expressão Popular, São Paulo 2009, p.47
13
Michael Burawoy (1979) Manufacturing Consent: Changes in the Labor Process Under Monopoly Capitalism,
University of Chicago Press, 1982

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olhar sociológico como um interessado de revelar as articulações históricas e/ou circunstais


de ideias e de interesses.14 Para o sociólogo político checo Karl Wolfgang Deutsch, o poder
tem mais uma outra característica, além de traduzir na capacidade de impor a sua vontade
sobre o seu ambiente e sobre outrora, como salientou Weber, mesmo quando se trata de fins
ilícitos ou criminosos. Para ele, o poder se traduz também na ‘possibilidade’ de ignorância,
no facto que o poder dar o seu detentor esta capacidade de não ter que aprender.15 Ou seja
enquanto construções culturais, tal como costumes e convenções, praticas e rituais serviram
para estabelecer um senso comum que legitima desigualdades sociais, são os últimos que,
representando o berço de diferencias de interesses capaz de questionar a legitimidade desse
senso comum de cancelar o consenso social e, através disso, começar a contestar o senso
comum e a ordem social que está a representar e justificar. Um processo de mudança social
que, para Weber, se explica através da sociologia de ideias e de interesses.16
1.2. A teoria de conhecimento sociológico: o debate sobre o positivismo: O olhar
sociológico, herança da filosofa de esclarecimento e das suas filosofias de conhecimento que
primou ainda na sociologia clássica viu-se desafiado de uma tradição mais nova oriundo do
utilitarismo económico e que tem por objectivo de definir o papel da sociologia e do seu
conhecimento como ciência de engenharia social que, tal como a psicologia a nível do
individuo, iria encontrar o seu campo na gestão de crises sociais e económicas ameaçando o
equilíbrio e a ordem social. Crises, que resultam das políticas públicas que tem como
referencial filosófico principal a expansão da lógica capitalista para todos os sectores da
sociedade.17 Mas também, no mesmo tempo, de defender a legitimidade desse referencial
capitalista. 18 Nesse tipo de engenharia social que domina tanto nas sociologias
14
Raymond Boudon baseou a sua sociologia de desenvolvimento e as suas críticas aos modelos explicativos
estruturalistas e económico-utilitaristas sobre esta figura teórica-metodológica de Weber. Raymond Boudon
(1984) La place du désordre, Quadrige, PUF, Paris 1991.
15
Sven Papcke & Georg W. Oesterdiekhoff (ed. 2013) Schlüsselwerke der Soziologie (Obras chaves de sociologia),
VS Verlag, Wiesbaden, p. 102. Para Deutsch, esta forma de ‘autismo de poder‘ iria fazer parte dos sintomas
patológicos de sistemas de poder além de aumentar o risco de entropia organizacional e sistémica.
16
Max Weber: Wirtschaftsethik der Weltreligionen, in Weber (1988) Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie,
J. B. Mohr, Tübingen, p. 252. Charles Wright Mills & Hans Gerth: Introduction in Mills & Gerth (1946) From Max
Weber: Essays in Sociology, Oxford University Press, NY
17
Levou o Habermas para formular a sua tese sobre a colonização do mundo de vida, desenvolvida in: Jürgen
Habermas (1981) The Theory of communicative action, vol. 2: Lifeworld and system – a critique of functionalist
reason, Beacon Press, Boston 1987
18
Jürgen Habermas (1973) A crise de legitimação no capitalismo tardio, Tempo Brasileiro, RdJ. 1980. Vide também
a descrição de Tocqueville sobre as causas do fim do regime antigo, in Alexis de Tocqueville (1856) O Antigo
Regime e a Revolução, Fundação Universidade de Brasilia,1997

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especializadas, bem como na indústria de desenvolvimento fonte de demanda deste tipo de


sociólogo, já não e questão de teoria de sociedade porque está a aceitar a sociedade tal que é
como a única realidade possível. Por um lado, o cientismo está confundindo o carácter
construído dessa realidade como uma condição natural do mundo da vida como criticou o
filósofo Edmund Husserl.19 Por outro lado, está estabelecendo os seus princípios cientistas
como a única fonte de verdade.
Enquanto Husserl apontou para a dissociação entre o cientismo positivista e as questões
essenciais da vida cujas origens ele retraçou até Kant, uma crítica que encontrou o seu eco na
definição do programa da imaginação sociológica de Charles Wright Mills20, a crítica de
Durkheim que, neste âmbito, deu seguimento as observações de Kant e inspirou a teoria de
conhecimento de Gaston Bachelard21, focalizou sobre a necessidade de romper com esse
senso comum que caracteriza o mundo da vida e que determina a sua fronteira. Para Jürgen
Habermas, que associou conhecimento aos interesses e que distinguiu entre três tipos de
constelações entre conhecimento e interesse: o interesse contabilista que iria primar na
concepção positivista do conhecimento científico – o cientismo; o interesse de compreensão
que prima nas teorias hermenêuticas de conhecimento, e o interesse prático que iria primar
nas teorias críticas de conhecimento, esse cientismo e a sua pretensão de representar a
racionalidade científica pura e livre de valores ficaria no coração dessa concepção positivista
da ciência, iria se levantar e cair com esses princípios do positivismo.22 “Scientism means science
believe in itself. That is the conviction that we can no longer understand science as one form of possible
knowledge, but rather must identify knowledge with science’.” 23 Mas ai já estamos á entrar no campo

19
Edmund Husserl (1913) A crise das Ciências Europeias e a fenomenológica transcendental: Uma Introdução à
Filosofia Fenomenológica, Forense Universitária, RdJ 2012. No entanto, a crítica de Husserl ao cientismo e a crise
da ciência que iria representar focaliza sobre a sua incapacidade, segundo ele, de oferecer respostas sobre as
questões essenciais da existência.
20
Charles Wright Mills (1959) The sociological imagination, Oxford University Press, 1961
21
Gaston Bachelard (1938) A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanalise do conhecimento,
Contraponto, RdJ, 1996
22
Jürgen Habermas (1972) Knowledge and Human Interest, Beacon Press, Boston. Jürgen Habermas (1967) On the
logic of social sciences, MIT Press, Cambridge, Massachusetts 1988. Jürgen Habermas (1968) Técnica e Ciência
como ideologia, Edições 70, Lisboa
23
Habermas in David Frisby: Introduction, in as the Theodor W. Adorno, Hans Albert, Ralf Dahrendorf, Jürgen
Habermas, Harald Pilot & Karl Popper (1977) The positivist dispute im German sociology, Heineman, London, p. xiv.
Vide também a discussão no início do capítulo anterior. p. xiv. Recoloca questões levantadas por Theodor W.
Adorno & Max Horkheimer no seu famoso ensaio sobre a ‘Dialéctica de Esclarecimento’ de 1949 escrito ainda sob
impressão dos horrores do Nazismo e da 2ª guerra mundial.

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da sociologia de conhecimento e em debates que deviam ser reflectidos em outras cadeiras


nesse curso com um âmbito mais geral em termos de teorias e métodos de conhecimento.
1.3. A Sociologia geral e a sociologia urbana: Uma sociologia da urbanização e do
urbano não faz exceção desse debate teórico e metodológico sobre o olhar sociológico e o
conhecimento sociológico. Por um lado, interessou-se em estudar processos de urbanização,
as suas origens, as forças e factores sociais que causaram, moldaram ou influenciaram estes
processos e permitem explicar a sua direção, bem como as suas características e os seus
significados sobre a organização de aspectos cruciais da vida, tal como a habitação, o
trabalho, a mobilidade ou os tipos das relações e interacções sociais que caracterizam a vida
urbana.
Outros se interessaram e estão a continuar interessar-se mais em decrepitar o significado
cultural da urbanização e dos fenómenos urbanos que tem pela organização de aspectos
vitais da vida quotidiana, tal como a habitação, o trabalho, a mobilidade, a saúde, os lazeres,
bem como os tipos de relações e interacções sociais de sobre- e subordinação, de
competição e de disputas (Georg Simmel), de amizades, da vida sexual, do romantismo, de
cortesia, de desprezo etc. Ou ainda, como estes fenómenos estão a impactar sobre o
desenvolvimento de caracteres e de personalidades e, por esta via, influenciando o decurso
da vida social.
Na sociologia urbana, encontram-se também, como vamos ver, as três grandes
perspectivas teóricas que resultam, cada uma, no seu modelo explicativo: a perspectiva
estruturalista incluindo a teoria funcionalista e sistémica que considera a sociedade como
organismo vivo cujas necessidades se impor os comportamentos por via das instituições
sociais e o processo de socialização e que interpreta os primeiros sob ângulo de adaptação
como meio principal de integração social.24
A perspectiva individualista partindo do individualismo metodológico e da teoria de
escolha racional até ao interaccionismo simbólico que focaliza sobre as necessidades
individuais, os seus interesses, percepções e interpretações de situação e para qual as
instituições sociais não deviam ser vistas como quadros de orientação normativos fixos com
capacidade de vincular as escolhas e comportamentos de que como regras de jogos que,
como defenderem Michel Crozier & Erhard Friedberg, esta a deixar zonas de incertezas
irredutíveis e exploráveis pelos agentes sociais conforme com os seus interesses e

24
Talcott Parsons (1937) The structure of social action: A study in social theory with special reference to a group of
European writers, The Free Press, 1949. Talcott Parsons (1964) Social structure and personality, The Free Press,
London, 1970.

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desenvolver ideias e comportamentos que vão ao detrimento dos comportamentos


previstos.25 Quanto á teoria de escolha racional radical, que domina na teoria económica,
interpreta as instituições sociais como sendo um resultado criado nas interacções sociais e
cuja função primordial iria consistir em oferecer soluções aos agentes sociais em vez de
estabelecer o sistema social como estipulou a teoria estruturo-funcionalista.
O paradigma de interaccionismo simbólico também veja quadros normativos
institucionais como scripts e tribunas (Erving Goffman) que deixam espaço para
interpretação de papéis e onde podem sair novas convenções ou padrões das interacções
sociais como defendeu o interacionismo simbólico.26 Herbert Blumer avançou, portanto, que
a racionalidade dos agentes sociais, as suas escolhas e comportamentos, estiveram a basear-se
no significado que essas coisas tenham para elas e que esses significados sejam os resultantes
das suas interacções sociais que, no fim da conta, podem mudar o significado das
convenções e práticas sociais institucionalizadas.27
No final, a teoria marxista usa abordagens estruturais, de escola racional e internacionais
pelo estudo de estruturas, instituições e das práticas, escolhas e comportamentos sociais,
com o fim de determinar até que ponto foram criadas para figurar como instrumentos de
dominação ou estão a subir e revelar os efeitos desta dominação social e/ou simbólica. Estão
a aplicar aquilo que Anthony Giddens chamou o teorema de dualidade estrutural.28
A teoria de estruturação ou de dualidade estrutural teve como objectivo de esclarecer
sobre as articulações mútuas entre estruturas estratificadas que se revela através da
organização institucional e simbólica das regras e recursos sociais29, e entre as interpretações

25
Michel Crozier & Erhard Friedberg (1977) L’Acteur et le système, Editions du Seuil, Paris.
26
Por exemplo: Erving Goffman (1993) A apresentação do eu na vida de todos os dias, Antropos, Relógio d’Agua,
Lisboa
27
Herbert Blumer (1966) Symbolic Interactionism: Perspective and method, University of California Press,
Berkeley.
28
Anthony Giddens (1984) The Constitution of society: Outline of the Theory of Structuration, Polity Press,
Cambridge, UK.
29
O último no sentido do poder simbólico de Pierre Bourdieu definido como “poder de construir a realidade que
tende a estabelecer uma ordem gnosiológica, o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social”.
Bourdieu recorre a Durkheim e o seu conceito de “conformismo logico, quer dizer uma concepção homogénea do
tempo e do espaço.” Pierre Bourdieu (1989) O poder simbólico, Difel, Alvès, Portugal, p. 9. O poder simbólico
encontra o seu fundamento nessas construções de senso comum ‘naturalizadas’ que estruturam o mundo de vida
descrito Edmund Husserl. Por um lado resiste a “imigração das ideias” novas descrita por Marx e por Weber novas.
Perceções e ideias novas que refletem mudanças materiais na organização dos mundos de vida e o surgimento de
novos grupos e categorias de interesses como Weber salientou na sua sociologia de ideias e de interesses
elaborada no ensaio dobre a etica económica nas religiões mundiais. Max Weber (1988) Gesammelte Aufsätze zur

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situacionais, e sobre as escolhas racionais dos agentes, tomadas sobre o background desta
estrutura estratificada como objectivo não somente de explicar interacções e
comportamentos sociais mas também ate que ponto essas interpretações e escolhas que
portam que implementam as configurações estruturais e institucionais constituem fontes de
mudança social. Escolheu o conceito de dualidade em substituição do conceito de dialéctica
que também requer um pensamento em simultâneo, mais usado na sociologia Marxistas para
explicar as articulações mútuas entre estruturas, ideias e escolhas e significados permitindo
formular explicações racionais aos comportamentos sociais, as suas razões e raciocínios e
reconstruir motivos e motivações.
A citação de Marx acima apresentada e tirada do Prefácio à “Contribuição à Crítica da
Economia Política” fornece um exemplo da concepção Marxista dessa ‘dualidade estrutural’ de
Giddens. Parte da observação que as regras que organizam estrutura social e fazem sentido
dessas e da distribuição e o acesso aos recursos sociais que resulta dessa organização acabam
não somente negando a liberdade de escolhas racionais sociais, mas a cobertura ideológica
desse facto nega a possibilidade para encontrar escolhas e soluções alternativas visando
restabelecer essa liberdade de escolha.
Representa uma problemática que ressurgiu na sociologia urbana de Henri Lefebvre
nomeadamente no seu ensaio sobre “O direito a cidade.’ David Harvey resumiu as teses de
Lefebvre de seguinte forma: “o direito à cidade, como slogan e como ideal político, (…) levanta a
questão de quem comanda a relação entre a urbanização e a produção do lucro. A democratização desse
direito, e a construção de um amplo movimento social para fazer valer a sua vontade são imperativas para
que os despossuídos possam retomar o controle que por tanto tempo lhes foi negado e instituir novas formas de
urbanização. Lefèbvre estava certo ao insistir em que a revolução tem de ser urbana, no sentido mais amplo
do termo; do contrário, não será nada.”30 Esse parágrafo ilustra, outra vês, essa articulação íntima
entre a sociologia geral e a teoria de cidade e a sociologia urbana.
Teorias Marxistas e teorias críticas da sociedade têm em comum de recorrer ao método
de crítica das ideologias, a herança a mais consequencial da filosofia de esclarecimento, para
tirar os véus de percepções e teorias criadas para justificar estas relações de dominação, os
seus meios e as suas causas que tem por fim de capacitar os agentes sociais de ver a realidade
sem estes veios ideológicos criados para esconder as relações de dominação.

Religionssoziologie, Mohr, Tübingen, p, 252. Por outro, o poder simbólico tem um significado politico e entrevem
nas lutas politicas e “pela produção do senso comum” usando-o para impor a sua “visão legitima do mundo social.”
É neste sentido que concluiu que o poder está a constituir um capital. Ibid., p. 146.
30
David Harvey (2013) O direito à cidade, tribuna livre da luta de classes, Edição 82, Julho 2013,
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-direito-a-cidade/

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2. A sociologia urbana no contexto das teorias sociológicas de mudança e de


desenvolvimento social: No âmbito de um curso de sociologia de desenvolvimento, o
‘fenómeno urbano’ (Velho) ocupa um lugar central considerando que é, no mesmo tempo,
resultado e catalisador de processos de mudanças social – um processo que, como vamos
demostrar mais para frente sociólogos têm interpretado de formas diferentes. Se partimos
da hipótese que a diferencia principal entre a sociologia de mudança social e a sociologia de
desenvolvimento social podia ser caracterizada da seguinte maneira: que o primeiro fosse
caracterizado pela ausência de um propósito, de uma lógica qualquer, enquanto o ultimo
seria fruto de um processo de desdobramento de um propósito qualquer, seja em termos
filosóficos – a razão ou a ideia de homem-, ou sociológicos – o desenvolvimento da
sociedade individualista e do capitalismo31 (Raymond Boudon) – vide a discussão mais
adiante -; é conveniente constatar que o surgimento de urbanização e a constituição de
aglomerações urbanas, hoje em dia, tornam-se forcas e factores incontornáveis de
desenvolvimento e de mudança social. Uma mudança social, e neste âmbito houve mais um
consenso, que foi provocada pelo crescimento demográfico que por sua vez foi resultado
de mudanças na produção e organização económicas e que ganhou a sua expressão mais
notável no surgimento das cidades e das características sociais que incluía.
Robert Merton, adoptando uma perspectiva funcionalista, tentou captar a nova
articulação que criou entre processos de desenvolvimento e de mudança social através da
distinção entre funções manifestes e latentes, entre processos de desenvolvimento
propositados e orientadas pelas necessidades funcionais dos respectivos sistemas sociais e
que serviram para afastar o perigo de entropia, e entre efeitos colaterais, nem previstos,
nem desejadas e susceptíveis de por em causa a funcionalidade e estabilidade do sistema
social em questão e que, segundo Merton, representam as forcas de mudança social nas
sociedades modernas. Mudança social, nesta perspectiva, já não caracteriza processos cegos
de desenvolvimento de que resultados inevitáveis de acção humana racional, de acções
propositadas e planejadas; uma interpretação que coloca a construção destas racionalidades
– as formas de construção da realidade e processos de tomada de decisão – no centro do
estudo sobre processos de desenvolvimento e de mudança social. Salienta a importância
das instâncias de governação, politicas e económicas, na construção da realidade e na
formulação dos propósitos políticos, económicos e sociais, questões discutidas, entre
outras, através do conceito de ‘hegemonia’ que esta substituindo a ideia teleológica da

31
Boudon (1984) ibid.

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história como a teleologia da dominação de classe e que já não representam fontes que
‘forças de resistência’ á mudança social.
Esta ideia transpirou já na fórmula famosa de Hegel colocada na filosofia de direito
que estipula que enquanto o galo como foi no caso do ‘galo francês’ na revolução francesa
que sempre canta na madrugada anunciado o início de uma nova época, o seu
conhecimento, a sua interpretação iria encontrar a sua expressão simbólica na imagem do
voo da coruja, da ‘coruja de Minerva (que) alça seu voo somente com o início do crepúsculo”. Através
disso, Hegel quis dizer que a história ria revelar o seu sentido, o seu propósito teleológico,
somente a partir do momento quando o seu resultado se tornar visível, uma ideia que
define o processo de conhecimento sociológico como sendo a reconstrução retrospectiva
do processo histórico e do seu ‘propósito’ teleológico imanente. Salienta que a
interpretação de processos de desenvolvimento, a interpretação evolucionista e historicista
de processos de mudança social sempre foi e é fruto de uma interpretação ex-poste,
partindo do resultado que corre o risco e a tentativa de querer imputar um propósito um
lógica interna que têm orientado o processo de desenvolvimento/mudança social e que
torna-a vulnerável de interesses políticos ou económicos hegemónicos de classes
dominantes.

3. Desenvolvimento social e desenvolvimento das personalidades: A reflexão sobre o


desenvolvimento não seria completa sem discutir também um breve comentário sobre a
relação entre a filosofia de esclarecimento e a sociologia uma vez que a segunda é herdeira da
primeira. Neste âmbito importa lembrar que o grande tema que motivou a reflexão filosófica
nesta época era de reflectir sobre as condições para o aperfeiçoamento do homem, tanto no
que diz respeito ao desdobramento das suas capacidades de conhecimento, às suas
capacidades de influenciar o seu ambiente natural, quanto no diz respeito ao
desenvolvimento das suas capacidades éticas-morais, as suas capacidades de se dar uma
organização social justa e á altura destas capacidades morais. A forma como a sociologia
nascente interpretou este programa filosófico foi sob forma de uma ruptura, não somente
com o método especulativo da filosofia metafísica, mas também sob forma de uma
descontinuação temática, uma ruptura que foi influenciada pela concepção positivista sobre a
sociologia que, para atingir o estádio de uma ciência, de uma ‘física do social’ (Comte) devia se
desfazer deste programa político e moral. Devia, pelo contrário, concentrar estudar sobre os
fundamentos sociais da moral, e sobre o seu papel na integração social e funcional dos
indivíduos considerado como pressuposto indispensável para a criação e manutenção da
ordem social. Assim a sociologia, a começar com a sociologia clássica lançou-se em conduzir

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estudos sobre fenómenos sociais emergentes., tal como a urbanização e o urbanismo, a


burocracia, a democracia, ou a organização racional do trabalho considerados como
constituindo os novos parâmetros sociais para o desenvolvimento de moral.
Assim, a ruptura consistia em inverter a lógica: em vez de abordar o desenvolvimento
social, económico e político como sendo resultado de uma Acção colectiva esclarecida, esta
ultima é abordada como sendo a resposta lógica, isto é, resposta racional e moral, às
necessidades objectivas de integração social, onde o individuo está socializado de ver a
sociedade e as instituições sociais como a realidade externa que tem o papel de moldar, por
via da internalização dos requisitos sociais, a sua realidade interna (Peter Berger & Thomas
Luckmann).32 Já não é a ideia que é o homem a fazer a sua história e que interpreta-lo como
sendo o reflexo do progresso alcançado no processo da emancipação moral e social da
humanidade (Marx), mas domina agora a percepção que o homem, o seu desenvolvimento
cognitivo e moral ser o resultado das condições sociais. Neste âmbito importa acrescentar
que esta condição é, em grande parte, a condição urbana que representa o mundo da vida
dominante nas sociedades modernas. Esta observação está a incluir os cientistas sociais e
humanas, os economistas, os sociólogos e os psicólogos.
O primeiro objectivo orientou a avaliação feita pela filosofia de esclarecimento que
insistiu em ligar a criação de novas formas de organização político e social com esta sobre a
emancipação da humanidade e da sua libertação dos constrangimentos externos, tanto social
de que ambiental (Rousseau). A avaliação sobre a utilidade e a legitimidade das novas formas
de associação social e de governação foi baseada sobre a questão em que medida estão
contribuindo de elevar o homem do estádio da sua minoria para um estádio intelectual e
ético- moral mais desenvolvido (Kant). Esta ideia orientou a crítica de economia política do
capitalismo de Marx cujas análises sobre a teoria económica clássica e a sua interpretação da
economia política do capitalismo – que ele interpretou como ultima etapa da pré-história
humana - tinham como finalidade de contrastar a sociedade capitalista com as ‘promessas’ de
emancipação da humanidade formuladas pela filosofia de esclarecimento; promessas de
‘liberdade, igualdade e fraternidade’, de uma vida sem medo, e onde há o ‘governo do povo, pelo povo,
pelo povo’, onde o burguês se transforma em cidadão (Marx). As promessas que a nova
32
Fazem a distinção entre o mecanismo de institucionalização de um sistema de posições e papéis sociais, de
artefactos e dos seus significados resultando na naturalização e rotinização de crenças, escolhas e praticas sociais
articuladas com este sistema e consideradas como sendo socialmente necessárias e culturalmente justas e
legitimadas por um lado. E esse de internalização dessas crenças, escolhas e práticas por outro lado, que passa por
via dos processos de socialização e de aprendizagem. Ambos processos resultariam em que os membros da
sociedade estão a ver e viver a sociedade como como realidade objectiva e subjectiva. Berger & Luckmann (1966)
ibid.

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sociedade falhou de cumprir, em colocando os progressos associados com a urbanização


como, por exemplo, o nascimento de regimes democráticos, o espaço público e os
movimentos trabalhistas num novo contexto de dominação, a dominação capitalista que deu
corpo a novas formas de dominação politica como o imperialismo, o colonialismo, o
militarismo e o totalitarismo. A razão quanto ao porque o capitalismo está comprometendo
esta promessa, Marx recorre á instituição da propriedade; representa um mecanismo de zero
sum uma vez que a forma como define os direitos de propriedade é desvantajosa para uns e
vantajosa para outros. Weber, além de recorrer a burocracia e os direitos de propriedade que
inclui como forma institucionalizada de organização capitalista, salienta os efeitos culturais
da burocracia em termos de aprendizagem coletivo, nomeadamente a aceitação de submissão
á autoridade despersonalizada e de uma organização metódica da vida; criando por um lado
uma sensação moralmente justificada de autoridade e de poder, e por outro, encontra uma
atitude onde a obediência disciplinada é vista como um dever moral.

4. O contexto social e filosófico da sociologia urbana. Enquanto Marx focalizou a sua


atenção sobre os aspectos burocráticos que dominaram, no capitalismo, a organização de
trabalho industrial, uma organização que resultaria numa serie de alienações do trabalhador
de si e do seu processo de produção e do produto final e que, como salientou Weber, requer
o desenvolvimento da ética de trabalho como requisito cultural para o desenvolvimento da
ética capitalista virada a produtividade como meio principal da produção do lucro e que
deixou por traz o seu fundamento religioso caracterizado como a ética protestante, a
perspectiva sociológica de Durkheim saiu da fabrica e abordou as consequenciais sociais da
divisão de trabalho, isto é, o facto que quanto maior o grau de divisão social de trabalho que
iria resultar no processo de individualização e em criar laços funcionais entre os agentes
sociais. Concluiu portanto que quanto maior seriem os laços de dependência funcional entre
os indivíduos. Mas laços funcionais e interessadas têm um defeito. Podem ser reguladas por
princípios legais definidos no direito privado, mas estes princípios legais estão a faltar os
fundamentos morais necessários para completar os laços contratuais com estes de
confiabilidade. Em vez de confiar nos indivíduos, concluiu Niklas Luhmann no seu ensaio
sobre ‘A confiança’ de 1975, devia se confiar no sistema e na neutralidade do sistema
jurídico.33 Ambos identificaram a cidade, a metrópole como o lugar emblemático onde
houver a ilustração da modernidade e da forma como iria estruturar a vida social.

33
Por isso caracterizou a confiança como mais um ‘médium simbólico de comunicação’ tal como o dinheiro ou o
poder, onde se acredita no sistema e nas instituições e não nas pessoas. Algo que seria uma das características

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Enquanto Durkheim tentou de descrever as suas características estruturais, o Georg


Simmel concentrou em discutir as características psicossociológicas da cidade que estudou
com base das suas observações feitas na metrópole de Berlin. Neste âmbito, David Frisby
tem comparado o olhar de Simmel e a sua concentração sobre os fenómenos sociais mais
efémeros com este do ‘flâneur’ descrito por Charles Baudelaire34. Ainda para acrescentar que
Durkheim e Simmel se tornaram fontes de inspiração teórica importantes pela sociologia
urbana Americana, a escola de Chicago, ao lado do pragmatismo e de George Herbert Mead
que influenciou também o interacionismo simbólico.35

5. Sociologia e a herança da filosofia de esclarecimento e como impacta sobre o


conceito de modernidade. Como já foi observado, diferente da abordagem critica Marxista,
as interpretações sociológicas apresentadas pelos sociólogos da 1ª geração, nomeadamente
Durkheim, Weber, de Simmel ou Pareto tinham em comum de ter rompido com a tradição
do esclarecimento e da sua concepção de racionalidade humanista. Recusaram de empregar o
progresso na emancipação humana como critério de avaliação do progresso social, político e
tecnológico. Este último torna-se uma finalidade por si mesma, uma ideia que encontrou a
sua apoteose na teoria de económica política reformulada simbolizado no emprego fetiche
do conceito de crescimento económico e de racionalização do processo de produção que,
para Marx, seria nada mais que o resultado da lógica intrínseca de expansão capitalista, isto é:
a busca incessante para acumulação do capital. Apresentam interpretações de racionalidade
influenciadas por definições utilitaristas (em particular as teorias de escolha racional
sociológicas e económicas e, entre quais, a teoria marginalista), seja em termos económicos
focalizando sobre a relações entre meios e fins (Weber), seja em termos funcionalistas
focalizando sobre a integração social e sistémica. Em ambos casos a definição dos fins já não
faz parte da reflexão sociológica, mas são interpretados como “Sachzwang” objetivo, como
impedimento prático definido como ‘a força normativo da estado actual’ (Luhmann), que, tal
como a lei da gravitação, representa um constrangimento inevitável e incontornável para
qualquer definição sobre aquilo que pode ser considerado como ‘acção racional’. Neste

culturais das sociedades complexas, individualistas modernas. Niklas Luhmann (1973) Vertrauen: ein Mechanismus
zur Reduktion sozialer Komplexitaet, Enke, Stuttgart
34
David Frisby (1986) Fragments of Modernity: Theories of Modernity in the Work of Simmel, Kracauer and
Benjamin, Routledge, London. Charles Baudelaire (1857) Les fleurs du mal. https://www.poesie-
francaise.fr/charles-baudelaire-les-fleurs-du-mal/
35
George Herbert Mead (1934) Thought as internalized conversation, in Randall Collins (ed. 1994) Four sociological
traditions, Oxford University Press,

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âmbito a definição de racionalidade aproxima-se a definição de adaptação e de afastar o


conceito da racionalidade ainda mais da definição das finalidades e como critério de seleção
de meios para dados fins. Já não e questão de debruçar sobre o sentido do jogo e das suas
regras, da sua validade ou utilidade moral; a questão de racionalidade está a reduzir-se agora
sobre a questão de procurar e de decidir sobre a melhor e forma de mover os pões, de
definir a forma mais eficaz e eficiente para derrotar o concorrente e para vencer o jogo,
qualquer jogo que seja. Assim, a vitória serve como critério final para decidir em que medida
a estratégia escolhida foi racional ou não.

5.1. A ruptura sociológica com a herança da filosofia de esclarecimento. Apesar de


estudos a denunciar esta concepção em estudando, por exemplo, as formas iniquais – em
termos de regras e recursos - de competição entre indivíduos e grupos sociais nos diferentes
‘campos sociais’ (Pierre Bourdieu) entre quais de competição pelo estatuto social por via de
diplomas escolares (por exemplo Paul Willis, Samuel Bowles & Herbert Gintis, Raymond
Boudon, James Coleman),36 oferecendo diferentes montantes e capital simbólico, descrito,
como evocamos, por Pierre Bourdieu, a sociologia, além da sociologia critica, e apesar das
suas diferencias, em termos de perspectivas e métodos, optou em favor de uma ruptura com
o âmbito humanista da filosofia de esclarecimento, uma ruptura que considerou condição
‘sine qua non’ para estabelecer a sociologia como nova ciência social normal.
Assim, para Durkheim, a sociologia da divisão social do trabalho não devia interessar-se
de estudar se está a contribuir a tornar a sociedade um conjunto mais feliz, de que concentrar
estudar como impacta sobre a construção da ordem social e sobre as formas de integração
social dos seus membros. Constatou que a capacidade de manter a ordem social na sociedade
individualista moderna requer ajustamentos paralelos a nível institucional e a nível da
socialização algo que, mais tarde, Parsons tinha definido usando o conceito de
‘individualismo institucionalizado’, um conceito que salienta que o desenvolvimento das
personalidades competentes consistia em criar padrões de atitudes conforme com as
expectativas normativas e as necessidades funcionais sociais que estão governando o
funcionamento nos diferentes sectores de actividade. Iria caracterizar o individuo moderno

36
Paul Willis (1977) Learning to labour, Saxon House, Farnborough, UK. Nadine Dolby, Greg Dimitriadis & Paul
Willis (2004) Learning to Labor in New Times, Routledge, Samuel Bowles & Herbert Gintis (1976) Schooling in
Capitalist America: Educational Reform and the Contradictions of Economic Life, Haymarket Books, Chicago, 2011.
Raymond Boudon (1973) L’inégalité des chances, Armand Colin, Paris, 1979. Pierre Bourdieu (1979) La distinction:
critique social du jugement, Les Éditions du Minuit, Paris. James Coleman (1988), Social capital in the creation of
human capital, AJS, vol. 9; supplement Organizations and Institutions, www.jstor.org.

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como actor social disposto e capaz de gerir entre as exigências opostas e resultando na
diversificação de papéis sociais, entre condutas morais e papéis funcionais, entre a gestão de
relações íntimas de família requerendo uma atitude altruísta, e entre a gestão de relações
profissionais requerendo manter a distancia onde primam relações despersonalizadas e
funcionais seja em termos de competições, seja em termos de relações de subordinação e de
superordenação (Simmel) em contextos burocráticos.

5.2. A burocracia, a sociologia crítica e a figura teórica do homem administrado. É fácil


de ver que no modelo de personalidade de Parsons a ideia antiga sobre o aperfeiçoamento
do homem avaliada na sua capacidade de emancipação dos constrangimentos internos como
a superstição e externos como as relações de dominação e capaz de determinar com base de
uma reflexão colectiva as formas de coabitação social e do seu quadro normativo e
regulador, uma projecto que foi identificado como projeto e promessa da modernidade, já
não existe mais. Prima agora o modelo do homem definido agora como portador de funções
determinadas pelos impedimentos normativos, através da sua capacidade de funcionar em
dados contextos sociais e sem criar fricções. As contribuições de autores tão diversos como a
filósofa Hannah Arendt, os sociólogos da Escola de Frankfurt, ou ainda os psicólogos como
Philip Zimbardo ou de Stanley Milgram têm em comum de revelar os perigos de obediência,
os efeitos colaterais de disciplina e os efeitos que têm sobre a constituição de personalizadas
deformadas pela submissão cega a autoridade; de personalidades condicionados de ver na
cadeia de comando a expressão de uma sabedoria maior que justifica a atitude de submissão
sem questionar, nem a autoridade e o seu representante, nem a ordem recebida. A
personalidade autoritária oferece uma descrição mais aprofundada e completa sobre o novo
tipo de funcionário que Weber, na ‘Ética Protestante’ caracterizou como “especialistas sem
espirito, gozadores sem coração,” e condicionados de funcionar numa ‘caixa de ferro’ numa
‘estrutura de aço’ sem saída que nem a revolução iria conseguir em destruir. Ficou bastante
próximo da visão pessimista de Pareto para quem a história tem figura de um processo
circular de alteração de elites, uma ideia que não foge muito do tipo de dominação
carismática, cuja capacidade de ruptura, porque é intimamente ligada a lealdade
personalizada, é limitada e condenada de ser absorbida pelas rotinas burocráticas. A morte
precoce de Weber lhe poupou de assistir aos derives da dominação carismática e da sua
associação como grupos de interesse poderosos por um lado, e com os aparelhos
burocráticos por outro lado.

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5.3. A cultura e a figura teórica da personalidade urbana. Já foi mencionado que Simmel
concentrou sobre os aspectos psicossociólogos da vida urbana. Para ele esta iria se reduzir a
uma dissociação entre cultura subjectiva e objectiva onde a vida e determinada pelas ‘leis’ da
economia monetária e que iriam contribuir a atomização da vida social. A monetarização das
relações sociais, como concedeu Durkheim, iriem fortalecer as relações de competição o que
iria aumentar o risco de minar as garantias sociais de ‘confiança’ mútua, uma garantia que
encontro o seu fundamento no facto da embebição das instituições e transacções
económicas nas instituições sociais gerais (Karl Polanyi). Por esta razão, se tornariam
possíveis fontes de anomia social, e não somente em períodos de crise económico com altas
taxas de desemprego, subemprego e de condições de trabalho precário. Para ele, resultariam
do desencaixamento (disemebeddment) das instituições económicas do quadro institucional
geral onde prima a instituição do contrato que figura como equivalente funcional as relações
de confiança nas transacções económicas modernas, transacções motivados pelas leis da
competição capitalista.37 Durkheim argumentou que para a instituição do contrato seria um
equivalente insuficiente para criação e manutenção dos laços sociais em razão em razão da
sua orientação estritamente legal que não podia esconder a fraqueza do seu fundamento
ético-moral que iria caracterizar as relações e laços sociais no capitalismo.
Esta interpretação de Durkheim foi validada por Weber para quem a generalização da
instituição de contrato representa uma etapa crucial no processo de racionalização das
instituições e das atitudes. Muda o fundamento da confiança porque, como notou Luhmann,
permite de despersonalizar o risco de confiar noutro uma vez que o risco é transportado da
responsabilidade individual para uma responsabilidade sistémica e, para estruturas
burocráticas e, antes de tudo, para o sistema de direito que figura agora como instância de
controlo e de legitimação. Reduz a complexidade e a contingência social.38 O que importa é
que para o já mencionado Luhmann, o tópico de confiança (trust) é um que está surgindo em
situações de risco e fora daquilo que deve ser considerado como ‘habitual’. É uma das
características da sociedade moderna qualificada como ‘sociedade de risco’ (Beck) onde
enfrentar situações de risco faz parte da experiencia quotidiana e onde indivíduos têm de ter

37
Esta tese sobre o desencaixamento das actividades e do raciocínio económica das estruturas, instituições e
relações sociais que condicionou e propeliu o desenvolvimento da economia e sociedade capitalista vem de Karl
Polanyi (1972) A grande transformação: as origens da nossa época, Editora Campus, São Paulo, 2000
38
Niklas Luhmann (1973) Vertrauen: ein Mechanismus zur Reduktion sozialer Komplexitaet, Enke, Stuttgart. Uma
discussão mais recente sobre a problemática da confiança se encontra in Anthony Giddens (1991) As
Consequências da modernidade, Editora UNESP, São Paulo que oferece também uma reinterpretação da ‘filosofia
de dinheiro’ de Simmel

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fé para ariscar-se de confiar noutro. Precisa-se ter confiança para ter confiança (Simmel). A
burocratização, as suas regras e rotinas, apesar que enquadrando-se na lógica de dominação,
tem o propósito de inspirar esta confiança sem qual as relações contratuais não podiam
funcionar. Este aspecto está ressurgindo no institucionalismo económico atribuindo a
burocracia vantagens em termos de custos de transação tendo em conta que oferece um
melhor controlo sobre o cumprimento das obrigações contratuais (Oliver Williamson).
Todavia, nesta teoria se a capacidade controlar aumenta a confiança ela enquadra-se
totalmente na lógica hierárquica descrita em termos das relações entre ‘o principal e o agente’.
Reduz a complexidade ao longo das linhas do direito sobre a propriedade (property rights); ou
seja, na lógica da dominação do capital sobre o trabalho. Urbanização e burocratização não
somente se condicionaram mutualmente e representam dois aspectos marcantes da vida
moderna e como esta experimentada. Não é por acaso que encontraram um eco literário nas
novelas de Honoré de Balzac, de Charles Dickens, de Heinrich Mann, de Upton Sinclair ou
de Franz Kafka, entre outros. A sociologia salientou a ambiguidade da experiencia moderna
que encontrou a sua apoteose na vida urbana oscilando entre os conceitos de ordem e de
desordem, entre o risco e as rutinas.

6. A diferenciação sociológica de perspectivas teóricas e de abordagens metodológicas:


Esta interpretação oriunda da sociologia clássica deu o tom e orientou o pensamento
sociológico de focalizar sobre as adaptações cognitivas e comportamentais face aos novos
impedimentos estruturais do capitalismo e da vida urbana, seja aplicando uma atitude mais
descritiva e fenomenológica (Weber, Simmel), seja em tomando uma atitude mais normativa
(Durkheim). Têm em comum de ter ‘expulsado’ a questão sobre o carácter moral destes
impedimentos estruturais e das adaptações individuais da faixa das preocupações
sociológicas, outra vês, seja em argumentando que se trata, aqui, de um julgamento de valor
onde a ciência e a sociologia não tem voz (Weber), ou seja em reafirmando o carácter
positivo e lógico destes impedimentos e das adaptações – uma ideia ‘funcionalista’ outrora
defendida por Hegel concluindo que o racional ser o real e o real ser o racional, e
ressuscitada por Durkheim, e mais tarde por Parsons e Luhmann. Em soma, eliminaram o
objectivo da filosofia do esclarecimento do programa de estudos da nova ciência social da
sociologia.
Esta concepção da sociologia como ciência positiva e comportamental desenvolvida em
volta dos factos sociais estruturais, conceptualizados como quadros institucionais ou como
escolhas racionais deixou as suas marcas tanto na sociologia urbana, quanto na sociologia
geral contemporânea, onde as correntes teóricas interessadas de reavivar a ligação com as

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promessas da filosofia de esclarecimento representam um campo bastante minoritário e


periférico na teorização sociológica orientado de substituir o método filosófico especulativo
da metafísica por uma abordagem metodológica baseado sobre factos empíricos. Trata-se de
combinação daquilo que Weber identificou com constituintes indispensáveis do
conhecimento sociológico: a compreensão que antecipa a explicação e que por sua vez
aumenta a compreensão do fenómeno em questão.
Além da sociologia neomarxista, como por exemplo a versão apresentada por Henri
Lefebvre no ‘Direito à Cidade’, ou por Charles Wright Mills na “Imaginação Sociológica’ que
defendem a existência de uma outra realidade possível e/ou exigem à sociologia de abordar
fenómenos sociais aplicando uma perspectiva que tenta reconstruir a sua articulação com
factos sociais e problemas biográficos, a sociologia critica se colocaram e continuam de se
colocar na tradição de esclarecimento. Quanto ao Lefebvre está a confrontar, nas suas
análises sobre a urbanização, o urbanismo e a vida quotidiana, a lógica capitalista que domina
tanto o processo de desenvolvimento urbano e a vida urbana que coloca a cidade, no mesmo
tempo como lugar de consumpção e como lugar consumido, com a ideia inclusiva da
cidadania que essa lógica está a por em causa.
O seminário vai oferecer oportunidades de discutir estes aspectos relacionados ao
desenvolvimento (e de ver em que medida ficam reflectidos nas contribuições e abordagens
teóricas dos autores escolhidos.

7. A história da urbanização e a mudança social. A problemática de urbanização fez,


deste o início, parte integral de teorias de desenvolvimento social a procura de reconstruir o
processo histórico e de determinar quais os factores e forças sociais susceptíveis de ter
causado este desenvolvimento urbano. Teorias culturalistas abordam o fenómeno urbano e o
seu desenvolvimento no contexto do processo de civilização urbano. Partem do pressuposto
que o surgimento de cidades estava a coincidir com a capacidade de produzir um excedente
económico (Gerhard Lenski, Gideon Sjoberg). Os inícios de urbanização oferecerem uma
tribuna para o surgimento e o desenvolvimento de novos sistemas de valor, de novas crenças
e práticas culturais (Norbert Elias) que impactaram sobre padrões comportamentos e de
relações sociais. A produção de um excedente agrícola é atribuída as mudanças provocadas
pela revolução neolítica, uns 10.000 anos atrás, isto é, o desenvolvimento da agro-pecuária, a
transformação de um modo de vida pastoral nómada para um modo de vida sedentário, e o
surgimento de grandes aglomerações, as primeiras cidades (Gordon Childe). Limitou o
crescimento de cidades, uma limitação que foi ultrapassada somente com o surgimento da
industrialização.

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A constituição de cidades teve também um impacto forte sobre a divisão de trabalho,


um aspecto que prima nos modelos explicativos de Marx e de Durkheim, mas também a
separação de ‘esferas de valor’ (Weber, Durkheim). Ambos deixaram as suas marcas na
organização espacial-social da cidade. A transformação de meras aglomerações populacionais
em ‘cidades’ é acompanhada pelo surgimento de um novo centro político e religioso, ‘la cité’
que incarna antes de mais a mudança institucional que o nascimento de cidades está a
simbolizar: isto é, a ideia de uma comunidade política independente, constituindo uma
sociedade política independente composta de homens livre, com seu próprio governo, leis,
religião e maneiras. (Foustel de Coulange). Além de promover o desenvolvimento de formas
burocráticas de administração (Weber), o desenvolvimento das cidades está promovendo a
separação entre espaço privado e público por um lado, que serviu para transformar as
formas comunitárias de democracia e governação que, nesta altura, ficaram ainda embebidas
nas estruturas de parentesco; e entre espaço profano e sagrado por outro lado, e que fez que,
até hoje, os edifícios de poder estão transpirando um significativo simbólico particular e
quase-religioso (Lewis Mumford), que foi interpretado como o “deplacement du sacre” (Alain
Touraine). Assim, a separação entre o profano e sagrado é transversal ao conflito entre
autoridade e da construção da sua legitimidade e democracia. (Jürgen Habermas)

8. A sociologia clássica na tradição de Marx, Durkheim e Weber. A abordagem clássica


que está incluindo Simmel vis-à-vis a problemática da urbanização foi também menos
interessada em identificar as características estruturais e culturais do mundo urbano no
sentido de uma sociologia do urbano, que de abordar a cidade e as aglomerações urbanas
como casos e exemplos empíricos que permitiram estudar a sociedade moderna e as
mudanças sociais, económicas e culturais responsáveis pela urbanização. A sociologia urbana
surgiu como consequência deste tipo de estudos, com execução talvez de Simmel, cujos
estudos e teses, como já foi dito, inspiraram a Escola de Chicago. No entanto, Marx,
Durkheim e Weber concentraram os seus estudos urbanos em olhando sobre a articulação
entre urbanização, estilo de vida urbana e sociedade em geral e do seu desenvolvimento,
aplicando raciocínios diferentes mas interligados tal como esse de racionalização cultural
(Weber), de diferenciação social (Durkheim) ou de dominação social (Marx). Na
terminologia de Durkheim, estudar espaços urbanos e o seu desenvolvimento iria permitir
reconstruir o desenvolvimento de factos sociais culturais e a sua articulação com factos
sociais estruturais, por sua vez movimentados por mudanças demográficos. Fala do aumento
do crescimento demográfico e o aumento das trocas e interacções entre membros sociais
causado por ele, e que iria ‘obrigar’ os seus membros não somente de desenvolver ramos de

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actividades diferentes, sendo a origem da ‘divisão social de trabalho’, mas também de


inventar novas crenças e regras morais.
Tentou desmarcar-se do materialismo histórico Marxista que também partiu da
primazia das estruturas sociais sobre as suas formas políticas e culturais utilizando o mesmo
argumento de crescimento demográfico como a sua causa principal. Tanto na ideologia
alemã, quanto no primeiro volume do capital Marx estipulou que o desenvolvimento da
economia de mercado e a nova divisão de trabalho industrial criaram consequências
espaciais-sociais e, antes de tudo, resultaram na “separação entre cidade e campo”. Esta tese da
separação ressurgiu nas interpretações de Weber para quem a urbanização na Idade Media
ocidental foi estimulada pela decisão política de acordar as cidades um estatuto político e
legal particular, uma decisão motivada pela importância económica das cidades como centros
de comercio que, por sua vez, preparam o caminho para o desenvolvimento de uma
economia urbana ‘de mercado’ como instituição económica central, bem como para o
desenvolvimento de formas alternativas e pré-democráticas de organização política criando
novas formas e instituições de dominação e de governação política.
A observação que este tipo de urbanização aconteceu somente em alguns lugares no
Ocidente em vez de representar um padrão geral, levou Max Weber e as correntes
sociológicas influenciadas de rejeitar modelos explicativos Marxistas acusados de
evolucionismo hegeliano de determinismo histórico em favor de uma interpretação que
interpreta o processo de desenvolvimento social como combinação contingente entre
interesses (económicas) e ideias (religiosas, politicas e culturais). Esta contingência que, até
agora, caracterizou o processo de mudança social é evacuada somente no limiar de
racionalização e da institucionalização da racionalidade instrumental e da sua extensão para
todos os sectores da vida, onde o processo de desenvolvimento social perde do seu carácter
contingente e aberto, e fica sob impulsão da racionalidade burocrática descrita como “pesada
estrutura de aço” povoado por “especialistas sem espírito, folgazões sem coração: estes nadas pensam ter
chegado a um estádio da humanidade nunca antes atingido.”39 (Weber: Ética Protestante).
A teoria de Durkheim que interpretou os novos modo de vida urbana caracterizados
pelo individualismo dos estilos de vida como resposta cultural e sociocultural a mudança de
estruturas sociais. Acabou influenciando estudos ulteriores sobre os fundamentos estruturas
e morais deste novo individualismo, um interesse que é reflectido nas contribuições de
Talcott Parsons até Ulrich Beck. Levou, entre outros, na introdução do conceito de

39
Max Weber: A ética profissional do protestantismo ascético, in: Max Weber (1904) A ética protestante e o
espírito do capitalismo, Editorial Presença, Lisboa 2005, p. 252

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‘individualismo institucionalizado’ para salientar a capacidade do homem moderno de


equilibrar entre as exigências morais e funcionais e de harmonizar diferentes papéis sociais
referente as diferentes referencias e exigências sectoriais, aquilo que Robert Merton chamou
o ‘role set’. Neste âmbito a urbanização e a vida urbana foram interpretados como um
‘laboratório’ (Robert Park) permitindo estudar a articulação entre as formas socioculturais e
os processos e formas de organização espacial-social, incluindo a gestão de papéis sociais
opostas e as novas atitudes e comportamentos associados com a vida e a cultura urbana
(Georg Simmel).40 Simmel inspirou-se das teses de Durkheim nos seus estudos de sobre a
vida e a cultura urbana, e, por via este, influenciou também as abordagens da Escola de
Chicago – que não tem nada a ver com a Escola de Chicago que caracterizou, mais tarde, os
protagonistas da economia monetarista e neoliberal – nos seus estudos sobre a cultura
urbana (Robert Park, Louis Wirth ou ainda William Isaac Thomas e a sua tese sobre os
quatro desejos que, para ele iriem constituir os padrões motivacionais basais. Suscitou
debates em volta da anomia urbana e de processos de assimilação cultural e preparou o
terreno para introdução do conceito de rede social, um conceito introduzido por Simmel, e
popularizado por autores como Claude Fischer enfatizando o papel das redes sociais de
amizade ou como Mark Granovetter que salientou o papel das redes sociais extensivos como
transitório de informação sobre o mercado de trabalho.41
Apesar das diferencias acima resumidas, as interpretações de Max Weber sobre
urbanização e urbanismo enquadram-se mais numa abordagem Marxista que Durkheimiana,
partilhando como o primeiro o interesse de formular uma teoria de economia política da
cidade e de urbanização articulada com outras eixos de racionalização tal como a burocracia.
No seu ensaio sobre a cidade interpreta o nascimento de uma economia urbana como motor
do processo de racionalização que coincidiu com o surgimento de novas ideias religiosas.
Completa os estudos sobre a burocracia e sobre a ética protestante abordando aspectos da
racionalização das instituições, das crenças e das atitudes. Tanto na Ética Protestante, quanto
no ensaio sobre a cidade defende que o processo de desenvolvimento capitalista foi possível
somente através da combinação entre interesses e ideias a condição que seja apropriadas e
defendidas por grupos sociais poderosas. As cadeias de comando e o secretismo burocrático
acabaram como ‘sapere aude’ da filosofia de esclarecimento. Tornou possível de ultrapassar as
estruturas sociais antigas e criar as bases para o nascimento da sociedade moderna e

40
Robert E. Park, Ernest Burgess & Roderick McKenzie (1925) The City: Suggestions for Investigation of Human
Behavior in the Urban Environment, University of Chicago Press, Chicago 1984
41
Mark Granovetter (1973) The strength of weak ties, American Journal of Sociology, Vol. 78/ Issue 6/May 1973

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capitalista, (caracterizado como processo de desencantamento) modificando crenças,


instituições sociais (antes de tudo resultou no processo de burocratização) e atitudes
(submissão a autoridade impessoal e ética profissional), e de instaurar um regime mais
racional de dominação ‘dos poucos sobre os muitos’ (Weber).
Diferente de Simmel ou da Escola de Chicago Weber, além de pronunciar-se sobre
questões de urbanismo como novo modo de vida, usou os seus estudos sobre a cidade para
complementar estes realizados no famoso estudo sobre a ‘ética protestante’ sobre as raízes
religiosas (protestantes) do espírito capitalismo e o surgimento de um novo padrão de
atitudes económicas e sociais. Caracterizou o processo de urbanização como catalisador no
somente para o desenvolvimento de capitalismo resultando na introdução de novas formas
de organização racional do trabalho, mas também para o surgimento de novos grupos sociais
como o operário industrial, o funcionário, e o burguês representantes de novos tipos de
valores e de comportamentos, introduzindo novas solicitações sobre a participação e a
gestão política da cidade. A questão de desenvolvimento de economia de mercado e o
surgimento de mercados de trabalho, ocuparam um lugar privilegiado nas análises urbanas de
Weber. Concluiu que nestas novas formas de organização sociopolítica e económica da
cidade iriam encontrar-se o modelo organizacional do Estado capitalista e burocrático
moderno. É através desta articulação que acabou-se a autonomia relativa das cidades como
centros políticos e económicos uma vez que foram absorbidas pelos novos Estado-nações
nascentes, um facto que salienta, para Weber, a articulação intima entre sociologia urbana e
política. Um aspecto que vamos aprofundar ao longo do módulo.

9. As contribuições da Escola de Chicago servirão como ponto para introduzir e discutir


teorias mais viradas para uma sociologia urbana. Os sociólogos de Chicago introduziram o
conceito de ‘ecologia humana’ (Ernest Burgess, Roderick McKenzie) como conceito chave
de um modelo explicativo biologista para qual as formas e processos de urbanização, de
crescimento urbano e de organização espacial-social iriam ser causadas e pela existência de
processos simbióticas subjacentes a acção humana que iriam empurrar os indivíduos e
grupos para a competição resultando em criar e recriar segregações espaciais-sociais. Estas,
por sua vez, iriem provocar respostas socioculturais oscilando entre a recriação de espaços
naturais e a assimilação sociocultural reciproca. O modelo de ecologia humana, além da sua
distinção Durkheimiana entre factos sociais estruturais e culturais, inspirou-se da teoria de
Darwin sobre a selecção natural de espécies, e pintou a segregação social-espacial como facto
inevitável da programação simbiótica criando ao longo de tempo sempre novos movimentos
de invasão espacial e de sucessão populacional exprimindo as diferencias de poder entre

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indivíduos, grupos e colectividades e criando sempre formas novas de distinção, de


interacção, e de comunicação. O programa de estudos urbanos desenvolvido por Robert
Park, bem como de Louis Wirth e de Claude Fischer mais tarde se localizam numa tradição
temática urbana de Simmel, enquanto esse de Burgess e McKenzy fica mais influenciado
pelo estruturalismo funcional de Durkheim.
O modelo explicativo da Escola de Chicago contrasta não somente abordagens cujos
modelos explicativos sobre processos de estruturação social espacial têm como referencial de
base as necessidades de acumulação capitalista cujos principais características vamos resumir
a seguir, mostra-se mais compatível com modelos explicativos emendando do individualismo
metodológico e mais especificamente da teoria de escolha racional uma vez que estão a
oferecer explicações em termos de ‘teorias de acção’ sobre as respostas socioculturais
descritas, entre outros, por autores como o Park. Neste âmbito, incluem-se as contribuições
de um economista Thomas Schelling salientando a racionalidade limitada que caracteriza a
agregação das escolhas racionais individuais onde o resultado contradiz os resultados
esperados; uma interpretação que é associável á abordagem individualista de Boudon no
estudo de processos de mudança social. Pode também evocar-se autores como Ervin
Goffman e a sua teoria de Acção dramatúrgica, ou ainda representantes da psicologia social
como em particular Fritz Heider e a sus teoria das relações interpessoais cujos princípios
foram apresentados no estudo sobre a ‘psicologia das relações interpessoais’ de 1964 lançando a
influente teoria de atribuições. Têm em comum de abordar urbanização e urbanismo como
decoro social cujo conhecimento considera-se como factor indispensável para o estudo e a
explicação teórica de interacções de dia-de-dia, seja no âmbito de uma teoria de Acção
dramatúrgica (Goffman), seja no âmbito de processos de atribuição entre causas e feitos,
efeitos e causas, modelos explicativos e criadores de senso comum que permitem revelar
como atores referem a uma psicologia ingénua nos seus actos de construção e de
interpretação do mundo social (O psicólogo social Fritz Heider fala de uma ‘psicologia
ingénua’ e capaz de recriar explicações mitológicas)42.
10. Sociólogos neomarxistas e o referencial capitalista. Teorias urbanas neomarxistas
concentraram e concentram, mais sobre a questão em que medida estas características
justificar de definir o ‘urbano’ como campo de estudo singular. Criticaram que estas
características urbanas caracterizariam a sociedade capitalista per se, e que não justificam
falar de uma sociologia urbana. Tomaram a sério o argumento de Durkheim sobre a ruptura

42
Fritz Heider (1964) The Psychology of Interpersonal Relations, John Wiley & Sons, New York,

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necessária entre preconceitos imediatos e conceitos científicos em argumentando que cada


disciplina para defender a sua autónima devia, primeiro, constituir o seu objecto, fruto de
uma reflexão teórica. Agora, a cidade representa uma particularidade social e cultural? Não
representa per se, porque a particularidade da cidade iria determinar-se somente, como
vimos já na introdução, mediante do seu papel na política económica capitalista. A partir dai,
autores como Manuel Castells, Henri Lefebvre, David Harvey ou ainda Peter Saunders,
sociólogo britânico antimarxista, argumentavam em favor de estudar o papel a e as funções
das cidades e das suas características urbanísticas e urbanas na economia politica capitalista,
seja no que diz respeito as politicas publicas e o seu papel na organização do consumo
coletivo (Castells, Saunders43), seja no que diz respeito a articulação entre urbanização e vida
urbana e o seu papel no processo geral de acumulação do capital (Lefebvre, Harvey). Seja
como for, a escolha do referencial capitalista caracteriza a maior parte dos estudos urbanos e
de urbanização mais contemporâneas variando dos estudos de sociologia urbana a partir dos
anos 1970 e 1980, - a título exemplar pode colocar-se ‘A questão urbana’ de Manuel Castells,
os estudos sobre ‘A revolução urbana’ e sobre ‘O pensamento marxista e a cidade’ de Henri
Lefebvre, ou ainda sobre ‘A justiça social e a cidade’ de David Harvey que fazem parte do nosso
programa de leituras propostas.
As análises de Castells concentraram-se sobre questões em torno do consumo colectivo
considerado como indicador de uma transformação das lutas sociais cuja centralidade sobre
questões de trabalho e de emprego ter-se-ia direccionado para outras linhas de conflito
‘urbanas’ como, por exemplo sobre as condições de transporte urbana, habitação e estilos de
vida que deram nascimento a movimentos sociais como novas formas organizacionais, uma
observação nomeadamente aprofundada pelo sociólogo francês Alain Touraine.44
Lefebvre no quadro das suas análises urbanas introduziu o conceito de ‘segundo
circuito de capital’ o circuito caracterizada pela busca da renda através do investimento no
espaço urbano e no sector imobiliária urbana que, segundo Harvey representaria uma
alternativa quanto ao primeiro circuito de capital caracterizada pela produção industrial e a
busca do lucro. Para Lefebvre, a crescente importância do 2º circuito seria resultado da
mudança que caracteriza o desenvolvimento da economia capitalista dirigido pelo constante
processo de acumulação de capital enquanto para Harvey representaria um campo de

43
Manuel Castells (1972) The Urban Question: A Marxist Approach, MIT Press 1979, Peter Saunders (1981) Social
theory and the urban question, Routledge, London 2003
44
Alain Touraine (2006) Na fronteira dos movimentos sociais, Sociedade e Estado, Brasília, vol. 21/nr.1/jan./abr.
2006

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investimento alternativo cuja dimensão seria influenciada pelas conjunturas económicas


industriais e as taxas diferenciais de lucro entre ambos. Assim, para ele, o segundo circuito
iria ganhar de atracão para investimentos de capital sempre que teria acontecendo uma queda
na produção de mais-valia industrial. Representam modelos explicativos teóricas para, no
mesmo, abordar a influencia dos processos capitalistas tanto sobre a organização espacial –
social urbana, quanto sobre o desenvolvimento urbano, o seu ‘metabolismo’ bem como a
sua estrutura arquitectural. Importa notar que insistem que as formas de segregação social
que produzem mudam ao longo do tempo e em função de factores conjunturais ligados a
dinâmica e a direcção do processo de acumulação de capital.

11. O referencial capitalista na sociologia não Marxista. O referencial capitalista foi


também adoptado por sociólogos não-Marxistas como, por exemplo pelo sociólogo Peter
Saunders acima já evocado, que usou no seu estudo sobre Social theory and the urban question’ .
Voltou a discutir a questão do consumo e propus fazer distinção entre a regulação social por
via do Estado em oposição da regulação por via do mercado. Uma distinção que, para ele,
iria caracterizar a nova fronteira entre classes sociais. Estudos não-marxistas focalizam
também sobre os processos de reestruturação económica causada pelo novo ciclo de
inovação tecnológicas, e sobre as consequenciais sociais e espaciais dos processes de de-
industrialização e a organização da mudança estrutural nos centros urbanos. Autores como
John Logan & Harvey Molotch no estudo sobre ‘Urban Fortunes’ focalizam sobre o papel das
cidades no processo de crescimento assumindo o papel de máquinas de crescimento
económico. Propõem um modelo explicativo sobre processos de urbanização e urbanos
localizado fora dos modelos explicativos Neomarxistas e o seu foco o papel das cidades no
processo de acumulação do capital, focalizando sobre as acções de grupos sociais como
agentes económicos e de ‘real estate’ e gestores políticos, sintetizadas em volta do conceito da
cidade como ‘máquina de crescimento’.
A obra de Mark Gottdiener: The new urban sociology’ aplicando uma abordagem espacial –
social oferece um modelo explicativo semelhante, estipulando que a abordagem espacial
social tenta sintetizar os quatro aspectos considerados como centrais para a sociologia
urbana: adoptar uma perspectiva regional; analisar o impacto da economia capitalista; o papel
das políticas urbanas; finalmente, a perspectiva de espaço vital. Já foi mencionado o
excelente livro de Mike Savage & Alan and Kevin Ward sobre ‘Urban sociology, Capitalism and
Modernity’, que fornece uma síntese crítica das diferentes teorias e abordagens. Salienta
também a influencia ideológica que o paradigma neoliberal teve sobre a direcção da
sociologia urbana de novo interessado nos aspectos culturais e simbólicas, uma reorientação,

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como argumentam os autores que, no entanto, devia explorar muito mais as contribuições de
Walter Benjamin que tentou decifrar o significado cultural de inovações arquitecturais, na
altura os famosas ‘passagens’ Parisianos que nos encontramos hoje sob forma de aeroportos,
caminho-de-ferro ou ‘shopping malls’, de que estas de Simmel.45

12. A questão da segregação social espacial. Quanto ao ultimo aspecto referendo a


construção e organização de relações urbanas de dia-de-dia, estudos Neomarxistas têm
optando de enquadrar o estudo sobre os processos de segregação social no estudo de
processo de investimento capitalista descritos, entre outros, em termos de gentrificação que
esta dando um outro significativo e esta oferecendo uma explicação mais materialista aos
processos de segregação e de estruturação espaciais e sociais urbanas completando as
analises de Thomas Schelling sobre as escolhas racionais individuais que, na sua agregação
colectiva, podem criar resultados colectivos não desejadas e qualificados como irracionais.46
A partir dai, estudos urbanos serviam de base para revelar e denunciar os aspectos críticas do
capitalismo global focalizando sobre aspectos nefastas de segregação espacial e social geral e
urbana como o crescimento e a gestão social e política de fenómenos como as desigualdades
sociais, socioeconómicas e socioculturais, a precariedade e a pobreza urbana e o fenómeno
de exclusão e de marginalização social, e como transpiram através de novas lutas e
movimentos sociais. Ai encontramos a tradição de Castells, Harvey, Touraine ou Bourdieu,
mas mais ainda de Loïc Waquant que fara parte do programa de leituras propostas. É neste
âmbito colocamos também a contribuição de Habermas sobre o espaço público que liga a
burguesa Weberiana com surgimento da ideia da cidadania emergente e que culmina na
construção de uma teoria discursiva de democracia que está colmatando as ideais da filosofia
de esclarecimento, em particular de Kant, com os requisitos de sociedades individualistas,
burocráticas e capitalistas, e antecipa, para já, aspectos abordados, mais tarde, em obras
ulteriores incluindo na teoria de agir comunicativa.

12. O referencial de globalização. O referencial capitalista na sociologia urbana


fortaleceu-se ainda mais através dos debates mais recentes sobre a globalização e como
impacta sobre os processos de urbanização. Neste âmbito, é conveniente evocar ainda mais
o David Harvey e ‘a breve história de Neoliberalismo’, ou a socióloga Americana Saskia

45
Walter Benjamin: Paris – Capital of the Nineteenth Century, citado in Peter Beck (1986) Grundzüge der
Erfahrungstheorie Walter Benjamins, Tese de MA de Sociologia, Universidade de Heidelberg
46
Thomas schelling (1978) Micromotives and Macrobehvior, W.W. Norton, NY

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Sassen cuja obra torna em volta da descrição das articulações entre metrópoles distantes
formando redes de poder económico e cultural, culminando criando uma rede estratificada
entre as cidades e Metrópolis do mundo. Encontramos aqui uma tradução da tese de Weber
sobre a existência de diferentes tipos de cidades – cidades comerciais, industriais ou ainda
cidades sede do nível do Estado-Nação para o nível global e transnacional.
O referencial de globalização que alargou este sobre o capitalismo encontrou a sua
definição política no “Consenso de Washington”, o manifesto do referencial neoliberal do mais
antigo ajustamento estrutural que está a fornecer o quadro referencial para definição de
políticas com relevância urbana. 47 Se opõe a teorias criticas do ajustamento estrutural e têm
criados modelos explicativos críticos desse referencial capitalista. Neste âmbito, importa
mencionar teorias como a ‘teoria de troca desigual’ (por exemplo Samir Amin e outros), ou a
‘teoria de desenvolvimento dependente’ (por exemplo Gunder Frank e outros) cuja crítica
estende também aos efeitos da globalização. Para Saskia Sassen a globalização muda também
o papel das cidades consideradas como constituindo um nexos globalizado entre as grandes
cidades metrópoles centros de tomada de decisão política, económica e financeira na escala
global, e que resulta de transformar a divisão funcional de cidades, já escrita por Weber, num
nível global de sistema mundo (Wallerstein) Assim o referencial de globalização encontra-se
também na grande maioria de estudos e publicações sobre processos de urbanização e de
urbanismo nos países de ‘terceiro mundo’. O âmbito de tópicos abordados dentro deste
quadro geral de globalização seja na sua interpretação Marxista ou não Marxista, vai de
questões de desequilíbrios regionais e de migrações rural urbanos ate questões sobre a vida
urbano em termos de segregação social e de gentrificação, de habitação, de transporte
urbano, de economia urbano, emprego e de segmentação de mercados, até questões sobre as
desigualdades sociais e da pobreza urbano e como impactam sobre a organização social e da
participação política bem como sobre politicas urbanos e modelos de gestão. Estas questões
serão abordadas e discutidas com base de textos seleccionados e de preferência disponíveis
em Português.

13. A sociologia urbana no 3º Mundo. O tópico da sociologia urbana no terceiro


mundo irá concluir o programa desta disciplina e complementar aspectos e questões levados
e discutidos em outras disciplinas constituintes deste mestrado. Questões ressurgindo de

47
Instituições económicas internacionais tal com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional figuram
dentro dos protagonistas desses princípios neoliberais continuando a política de condicionalidade entre a
implementação de programas de ajustamento estrutural (SAP) e o apoio financeira.

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debates anteriores como processos e formas de estruturação espacial social, e forcas e


factores atrás de processos de gentrificação e de segregação espacial social. Colocam-se
questões ligadas as problemáticas de migrações rurais-urbanos; de organização e participação
política, de estratificação e de desigualdades sociais e económicas; de economia urbana e as
articulações entre economia formal e informal, da economia da rua, de mercados de trabalho
segmentados; de pobreza urbana e á questões ligadas como transporte, habitação e acesso as
infra-estruturas e serviços básicos etc. Estes debates serão iniciados com base de leituras de
estudos de Josef Gugler e Alan Gilbert. Mas também, como salientou Georges Balandier,
apontar sobre os custos sociais do progresso, e sobre as interacções e articulações entre
sistemas e circuitos modernos e tradicionais.48 Neste âmbito, importa evocar o uso feito de
Samuel Eisenstadt do da sociologia de dominação de Weber que resultou na construção do
conceito de neopatrimonialismo, a combinação entre estruturas legais burocráticas e
tradicionais patrimoniais que, segundo ele, iriem caracterizar o processo de modernização
nos países não ocidentais e em particular estes no chamado “Terceiro mundo’ cujos
estruturas politicas iriem, portanto, representar variações dessa combinação entre lógicas
modernas e tradicionais.49 Balandier tratou o surgimento de estruturas neopatrimoniais como
forma racional moderna e de adaptação criativa para gerir o processo de desenvolvimento
explorando e combinando os elementos de poder que caracteriza, tanto o sistema
tradicional, quanto moderno.50 Foi aplicado num documento sobre o Moçambique
publicado pelo USAID.51

48
Georges Balandier (1971) Sens et puissance : les dynamiques sociales, Quadrige, PUF, Paris 1986
49
Samuel Eisenstadt (1973): Traditional Patrimonialism and Modern Neopatrimonialism, Sage Publications,
London. Hinnerk Bruhns (2012) Conceito de Patrimonialismo e Suas Interpretações Contemporâneas, Revista
Estudos Políticos, nr. 4, 2012
50
Georges Balandier: Structures sociales traditionelles et changements economiques, in Balandier (1986) ibid., pp.
217ff
51
Derick W. Brinkerhoff & Arthur A. Goldsmith (2002) Clientelism, Patrimonialism and Democratic Governance: An
Overview and Framework for Assessment and Programming

30

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