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Formação de

Mediadores de Educação
para Patrimônio

Os “lugares”
e sua dimensão imaterial

Aterlane Martins
SUMÁRIO
1. Apresentação ............................................................................. 99
2. Lugar e espaço ......................................................................... 100
3. Lugares de memória ................................................................ 102
4. Locais da recordação .............................................................. 103
5. O registro e a patrimonialização dos “lugares” ...................... 104
6. Bens imateriais registrados na categoria “lugares” ............... 106
7. Uma perspectiva do patrimônio integral................................ 109

Referências bibliográficas ........................................................... 111


1.
APRESENTAÇÃO
Não se encontra o espaço,
é sempre necessário construí-lo.
(Bachelard)

ara compreendermos a cate-


goria “lugar” no vasto e com-
plexo mundo do patrimônio
cultural brasileiro, vamos tri-
lhar por três vias distintas, mas
que se entrecruzam constante-
mente. São elas:

• Uma breve abordagem con-


ceitual sobre os termos lugar,
espaço e local numa perspectiva
Decolonial
patrimonial; Campo do
• A análise do “lugar”, objetiva e legal- conhecimento
mente como categoria patrimonial, que se originou
com a produção
no âmbito dos processos de patri- de intelectuais do
monialização dos bens imateriais; chamado Terceiro
• Uma avaliação de casos específicos Mundo, muitos
deles radicados nos
da patrimonialização de “lugares”,
Departamentos de
seja pelo tombamento ou pelo re- Estudos Culturais
gistro, buscando uma visão que de universidades
aponte para a compreensão da pre- inglesas e norte-
servação do patrimônio integral. americanas. Esse
campo se concentra
Conceitos e obras abordados aqui são em denunciar a
oriundos do trabalho de pensadores ociden- dependência dos
países ditos em
tais, cuja trajetória inspirou a profissionais desenvolvimento,
do campo patrimonial brasileiro. Aborda- como o Brasil, perante
gens outras, como a perspectiva decolonial a hegemonia de
ou os processos patrimoniais orientais, em- pensamento dos países
bora já nos cheguem ao conhecimento, não europeus e dos Estados
Unidos, propondo
serão alvo de nossa empreitada, visto que
ações e maneiras de
ainda se encontram distantes de uma real pensar autônomas
incorporação na práxis preservacionista do desses centros
patrimônio cultural brasileiro. de saber e poder.

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2.
LUGAR E ESPAÇO
uando Michel de Cer-
teau (1998) propôs, em
sua obra A invenção do
cotidiano, uma distin-
ção entre “lugar” e “es-
paço”, nos trouxe uma
reflexão sobre as opera-
ções que estabelecem
esses conceitos. A des-
peito de o historiador
francês ter especifica-
do nesta obra a cidade
como lócus de suas reflexões, podemos, por
analogia, estender suas proposições a ou-
tras geografias, que não apenas a urbana.
A cidade em sua materialidade plas-
mada em ruas, praças ou jardins, no sen-
tido estrito de seu planejamento e cons-
trução, por exemplo, pode ser lida como
um lugar, sem significações simbólicas
relevantes para os sujeitos, que não esta-
belecem com ele qualquer vínculo relacio-
nal. É a partir do habitar a cidade que ela
passa a ser significada e pode ser trans-
mutada em espaço. Assim, podemos dizer
que o espaço é aquele lugar ocupado,
apropriado e transformado pelos sujeitos

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que ali transitam e o (res)significam a par-
tir de suas vivências particulares e sociais.
Espaço que nunca é um dado natural e é PARA OS
sempre construído. CURIOSOS
Podemos pensar ainda sobre este trân-
sito entre o lugar e o espaço, resultante
da ação dos sujeitos, como um ato so-
cialmente compartilhado. Daí se criam Quer saber mais sobre o conceito
permissões e interdições, tácitas ou explí- de referências culturais?? Pois não
citas, conflitos e harmonizações que se in- deixe de consultar a publicação O
serem nas disputas de poder pelo discur- registro do patrimônio imaterial:
so significativo e hegemônico do lugar. dossiê final das atividades da
Então, se fazem escolhas, se determinam comissão e do grupo de trabalho
memórias e interpretações sobre as vivên- patrimônio imaterial.
cias ali realizadas. O espaço é, portanto, Disponível em: http://portal.
resultante de um campo de disputas, inte- iphan.gov.br/uploads/publicacao/
rações, barganhas, conquistas e derrotas. PatImaDiv_ORegistroPatrimonioIma
O espaço, apesar de vivido individual- terial_1Edicao_m.pdf
mente pelos sujeitos, vai se configurando
Indicamos ainda o artigo Referências
num lugar comum, compartilhado, pos-
culturais: base para novas políticas
sibilitando uma referência cultural que
de patrimônio, de Maria Cecília
possa significar o coletivo e não apenas
Londres Fonseca.
o sujeito individual. O lugar, em sua am-
pla acepção, depois de significado, pode Disponível em: http://portal.
remeter a uma ou a várias identidades, iphan.gov.br/uploads/ckfinder/
pode constituir-se num lugar de memória, arquivos/3%20-%20FONSECA.pdf
como afirmou o francês Pierre Nora (1993).

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3.
LUGARES
DE MEMÓRIA
ierre Nora pontua uma série to, uma associação de antigos comba-
de possibilidades materiais e tentes, só entra na categoria se for obje-
simbólicas para caracterizar to de um ritual. Mesmo um minuto de
o que ele define como lugar silêncio, que parece o extremo de uma
de memória. significação simbólica, é, ao mesmo tem-
Para o autor, os aspectos po, um corte material de uma unidade
“material, funcional e simbóli- temporal e serve, periodicamente, a um
co” constitutivos do “lugar de lembrete concentrado de lembrar
memória” são coexistentes e, (NORA, 1993, p. 21-22) GRIFOS NOSSOS.
necessariamente, a relação Por sua vez, a memória, que vem se
entre eles é que caracteriza a experiên- agregar ao lugar, é compreendida como um
cia ali vivida, dando-lhe sentido e significa- pilar dos bens patrimoniais, que lhe são ele-
do. Conservam em si uma memória social do mentos constitutivos e indissociáveis, con-
acontecimento, que é transmitida pelas épo- juntamente à identidade. Conforme Candau:
cas que se sucedem a outros sujeitos que ali
não viveram, mas que se identificaram com Se identidade, memória e patrimônio são
ele e com o que ali sucedeu no passado, sob ‘as três palavras-chave da consciência
o selo do pertencimento histórico. contemporânea’ – poderíamos, aliás, re-
duzir a duas se admitirmos que o patri-
Mesmo um lugar de aparência puramen- mônio é uma dimensão da memória – é a
te material, como um depósito de arqui- memória, podemos afirmar, que vem for-
vos, só é lugar de memória se a ima- talecer a identidade, tanto no nível indivi-
ginação o investe de aura simbólica. dual quanto no coletivo: assim, restituir a
Mesmo um lugar puramente funcional, memória desaparecida de uma pessoa é
como um manual de aula, um testamen- restituir a sua identidade (2012, p. 16).

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4.
LOCAIS DA
RECORDAÇÃO
odemos cruzar a definição de Com a noção de “locais da recordação”,
Pierre Nora com o intuito de Assmann incorpora e amplia aos lugares o
ampliar a compreensão da sentido de mediadores na renovação da
noção de lugares – sempre na memória cultural. Não são os lugares em
perspectiva patrimonial –, com si, mas o que neles está contido e como eles
outra cunhada pela pensadora são acessados pelos indivíduos e grupos
alemã Aleida Assmann e apre- sociais que deles se apropriam, sempre no
sentada em seu livro Espaços presente, que os pode fazer seguir existindo,
de recordação: formas e trans- por vezes determinando-os sob nova signifi-
formações da memória cultural. cação e sentido.
Essas ideias iniciais visam ampliar nosso
Locais da recordação são fragmentos ir-
entendimento do que são os lugares, espa-
rompidos da explosão de circunstâncias
ços e locais, em especial quando associa-
de vida perdidas ou destruídas. Pois,
dos ou implicados diretamente à questão
mesmo com o abandono e a destruição de
patrimonial, o que pode ocorrer de modo
um local, sua história ainda não acabou;
oficial, quando o Estado age na patrimonia-
eles retêm objetos materiais remanescen-
lização de bens culturais, ou de forma não-
tes que se tornam elementos de narrativas
-oficial, quando a sociedade civil realiza,
e, com isso, pontos de referência para uma
sem a formalidade e a legalidade do Estado,
nova memória cultural. Esses locais, po-
os processos patrimoniais.
rém, são carentes de explicações; seus sig-
nificados precisam ser assegurados com-
pletamente por meio de tradições orais.
A continuidade que tenha sido destruída
pela conquista, pela perda e pelo esqueci-
mento não pode ser reconstruída em um
momento posterior, mas pode se rees-
tabelecer o acesso a ela no médium da
recordação (ASSMANN, 2011, p. 328-329)

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5.
O REGISTRO E A
PATRIMONIALIZAÇÃO
DOS “LUGARES”
ara fins de proteção patrimo-
nial aos lugares e seus aspectos
imateriais, temos no registro,
no inventário e nos planos de
salvaguarda os instrumentos
de preservação legal.
Como já sabemos, esses
instrumentos estão dispostos
no Decreto nº 3.551/2000,
aquele mesmo que rege a
patrimonialização dos bens imateriais,
Acautelamento criando o instrumento de acautelamento
É um termo de uso desses bens e o Programa Nacional do
jurídico que se refere Patrimônio Imaterial (PNPI).
às medidas que
Neste decreto são arrolados os Livros
visam dar proteção
imediata ao bem de Registro, entre os quais se encontra o
cultural. Por exemplo, Livro de Registro dos Lugares, que traz de
no tombamento, forma sucinta os aspectos que conceitual-
desde a sua fase mente estamos explorando desde o início
inicial (tombamento
deste fascículo:
provisório), dá
providências para que IV – Livro de Registro dos Lugares, onde
ele não seja afetado serão inscritos mercados, feiras, santu-
por qualquer ato que
ários, praças e demais espaços onde
venha comprometer
sua integralidade se concentram e reproduzem práticas
até o final do culturais coletivas.
processo e a decisão
de tombamento
Compreendemos que, de modo geral, o
definitiva. texto legal deve ter a escrita concisa, coeren-
te e objetiva. Talvez, por este motivo, é que
no trecho aqui abordado, lugar e espaço se-
jam utilizados sem maiores distinções con-
ceituais, o que poderia causar estranhamen-

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to e questionamentos diversos de nossos
leitores e cursistas. Contudo, dada a distin-
PARA OS ção estilística entre o texto legal e o texto
CURIOSOS científico,, não entraremos neste debate,
sendo esta apenas uma observação pontual,
mas necessária para não confundir ninguém.
Pois bem, a proposta do legislador, num
primeiro momento, pode nos soar restrita,
Para consultar o texto integral do configurando o lugar apenas no seu aspec-
Decreto nº 3.551/2000, acesse o to material. Mas ao seguirmos a leitura desta
endereço: http://www.planalto.gov. definição, dois outros aspectos nos permi-
br/ccivil_03/decreto/D3551.htm tirão compreender a amplitude da concep-
E para uma maior compreensão ção de “lugar” inseridas no texto da lei.
do conceito e dos processos Quando o legislador escreve “espaço”, re-
de patrimonialização dos bens fere-se a determinados lugares (mercados,
imateriais, consulte a Cartilha feiras, santuários e praças), identificando-os
Patrimônio Cultural Imaterial, como locais de práticas culturais cole-
disponível no site do Iphan, no tivas.. Você consegue perceber aí, então, a
seguinte endereço: conformidade com as reflexões de Michel de
Certeau, Pierre Nora e Aleida Assmann, an-
http://portal.iphan.gov.br/
teriormente abordadas em nosso fascículo?
uploads/publicacao/cartilha_1__
As ações humanas dadas num determi-
parasabermais_web.pdf
nado “espaço” configuram-se como forma-
doras deste mesmo espaço. Quando signi-
ficadas coletivamente e assim incorporadas
às tradições próprias do local, dão a este o
seu sentido. Tornam este espaço, como afir-
ma Assmann, local da recordação,, cujo
acesso às práticas ali criadas e vividas se dá
pela repetição, garantidora da continuidade
histórica, pela (re)vivência, mediada pela
memória dos sujeitos do presente, que reco-
nhecem e se identificam com esta trajetória.

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6.
BENS IMATERIAIS
REGISTRADOS
NA CATEGORIA
“LUGARES”
ntre os 47 bens imateriais já regis-
trados como patrimônio cultural
brasileiro, listamos aqueles espe-
cificamente inscritos no Livro de
Registro dos Lugares. São eles,
por distribuição regional:

• Nordeste: Feira de Caruraru (PE);


Feira de Campina Grande (PB).
• Norte: Cachoeira de Iauaretê: lu-
gar sagrado dos povos indígenas
dos rios Uaupés e Papuri (AM);
• Sul: Tava, lugar de referência para o
povo Guarani (RS).

As regiões Sudeste e Centro Oeste não


apresentam ainda bens registrados ou em
Processo de Instrução para Registro na ca-
tegoria “lugares”, restando nessa última
condição apenas a Feira de São Joaquim,
em Salvador (BA), também no Nordeste.

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Como podemos ver, nesta pequena lista Após o árduo trajeto, marcado por diversas
acima se sobressai a região Nordeste com paradas em pontos referenciais da zona
dois registros. Ambos são feiras públicas SE rural e urbana da cidade, no qual também
tradicionais. Também observamos que no LIGA! muitas brincadeiras ocorrem, o Cortejo do
Sul e no Norte do país a característica co- Pau chega à Praça da Matriz de Santo An-
mum é o pertencimento a povos indíge- tônio, onde a bandeira com a imagem do
nas. Essas observações nos permitem algu- padroeiro da cidade será enfim hasteada.
mas reflexões e questionamentos quanto à O processo de instrução para o
Neste momento, milhares de espectadores
valoração e a determinação conceitual dos registro de um patrimônio imaterial
e participantes da festa assistem entusias-
bens registrados na categoria “lugares”. começa quando a sociedade civil
mados o levantamento do Pau da Bandeira,
Até o momento há uma prática de ins- organizada ou uma instituição
deixando explícita a devoção barbalhense
crever os bens culturais de natureza imate- ao santo padroeiro e a permanência da
governamental solicitam o registro
rial em apenas um dos Livros de Registro junto ao órgão de proteção e, ao
tradição local (BRASIL, 2015a, p. 24)
(Celebrações; Saberes; Formas de Expres- pedido, são agregados uma pesquisa O trajeto geograficamente marcado no
são; Lugares), caracterizando-os univoca- documental e de campo sobre o território, desde o sítio na zona rural, donde
mente, quando muitos poderiam tran- bem cultural a ser registrado, um se extrai o mastro da bandeira, até a praça da
sitar em mais de uma categoria. Um diagnóstico sobre sua vulnerabilidade, matriz (carregamento do pau) onde o mesmo
destes bens, ao qual nos deteremos um recomendações para a sua é fincado para o hasteamento da flâmula, são
pouco mais, é a Festa do Pau da Bandei- salvaguarda, além de comprovantes claramente compreensíveis como “espaços
ra de Santo Antônio em Barbalha, no da mobilização social do grupo onde se concentram e se reproduzem prá-
Ceará, que você, cursista, conheceu bem detentor do bem para a sua inscrição ticas culturais coletivas”, sendo destas um
pela apresentação em módulo anterior. em um dos Livros do Patrimônio eminente condicionante para a sua realização.
A Festa está registrada exclusivamente Imaterial: Celebrações, Lugares,
no Livro de Registro das Celebrações. Con- Saberes e Formas de Expressão. Neste sentido, uma questão sobre a qual
tudo, considerados o Parecer Conclusivo necessariamente temos de tratar refere-se
Para consultar toda a lista de
do Departamento de Patrimônio Imaterial ao processo do corte, carregamento e
bens imateriais registrados ou
(DPI) e o Parecer do Conselho Consultivo do hasteamento do pau da bandeira de
em Processo de Instrução para
Iphan, bem como o texto Alguns registros Santo Antônio. Todo o cortejo do pau da
Registro, consultar as listas na
sobre a Festa de Santo Antônio, do histo- bandeira evoca a noção de devoção e sa-
página do Iphan, nos endereços:
riador Igor Soares (2013), podemos evocar crifício em torno do santo padroeiro. (...) E,
http://portal.iphan.gov.br/pagina/
a força do “lugar/espaço” na constituição para além de uma integração social, ocor-
detalhes/606 e http://portal.iphan.
patrimonial deste bem. re uma proximidade entre o meio natu-
gov.br/pagina/detalhes/426/
Diversos são os pontos no Parecer do ral e o meio urbano, entre o tradicional
DPI que denotam a força motriz do “lugar” e o moderno, garantindo uma espécie de
como constituinte desta festa/celebração. comunhão simbólica, que evidentemente
Entre eles, nos atemos àquele redigido no envolve pessoas e os diferentes espa-
item III, sobre o “objeto do registro”: ços da cidade (BRASIL, 2015a, p. 198)

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É nessa confluência de diferentes “espa- Tomemos agora a Cachoeira do Iaua-
ços da cidade”, dessa proximidade entre o retê como outro exemplo de patrimônio
“meio natural e o meio urbano”, suscitada PARA OS imaterial registrado. Ressaltamos as con-
pelo trajeto do cortejo celebrativo, que além CURIOSOS siderações do antropólogo Roque de Bar-
do que se realiza em cada lugar ocupado, per- ros Laraia, em seu parecer apresentado
cebe-se a inegável relação entre as categorias ao Conselho Consultivo do Iphan, em 2 de
lugar e celebração. Os lugares ocupados por agosto de 2006:
usos peculiares, desde aqueles do trabalho, Sobre a noção de paisagem (...) Um lugar somente pode ser consi-
da brincadeira, do profano, àqueles do sa- consultar as obras: Paisagem e derado como passível de registro como
grado, do ritual oficial, tramam e reafirmam a memória, de Simon Schama (1996); Patrimônio Cultural Imaterial, quando
teia desta integração no espaço da festa. A invenção da paisagem, de Anne uma população lhe atribui importan-
O historiador Igor Soares, no que se refe- Cauquelin (2007). tes significados culturais que estão
re à patrimonialização da festa, inseriu uma
Para a interface entre a paisagem e vinculados à sua história, à sua mitologia
nova perspectiva para a sua abordagem e
o patrimônio cultural, consultar: e a sua própria identidade cultural. Este é
leitura. Perceba:
Paisagem cultural e patrimônio, de o caso da Cachoeira do Iauaretê. (...) Con-
Não restam dúvidas de que a Festa de Rafael Winter Ribeiro (Iphan, 2007) siderando a importância simbólica de
Santo Antônio, como construção paisa- disponível em: abrir o Livro dos Lugares com um espaço
gística de Barbalha, reflete sobremanei- geográfico que recebeu atribuições
http://portal.iphan.gov.br/
ra uma referência cultural da cidade; culturais bem antes da formação do
uploads/publicacao/SerPesDoc1_
a festa sintetiza, portanto, uma ideia de nosso país (BRASIL, 2006, p. 7 -10).
PaisagemCultural_m.pdf
uma coerência comunitária da sociedade
Minuta da Portaria Iphan nº A reiterada atribuição de significados
de Barbalha expressa por meio de cons-
127, de 30.04.2009, que “define simbólicos específicos ao lugar é des-
truções ritualísticas e performáticas que
paisagem cultural brasileira e tacada novamente, como frisa o próprio
convergem a um elemento central – a fé
estabelece a chancela como antropólogo em seu parecer, entre tantos
em Santo Antônio (SOARES, 2013, p. 244)
instrumento de reconhecimento do outros similares que nos remetem à identi-
Ou seja, ao aproximar da Festa do Pau da patrimônio cultural”: dade cultural dos diferentes povos indíge-
Bandeira à noção de paisagem, já difundi- nas do Amazonas. O específico do local (AS-
https://www.normasbrasil.com.br/
da no meio patrimonial, embora ainda não SMANN, 2011, p. 319) é também o comum,
norma/portaria-127-2009_214271.html
incorporada definitivamente às práticas pre- compartilhado entre os diversos povos,
servacionistas brasileiras, esses historiadores como figura no Dossiê de Registro:
abrem espaço para uma abordagem mais
O que há de comum é, de fato, passível de
ampla e integrativa do patrimônio cultural.
circular em um domínio público; já o co-
Assim, analisar uma celebração, é pen-
nhecimento a respeito do que é particular
sar sobre o conjunto da sua realização,
se restringe às unidades e subunidades
sobretudo na relação entre a sua configura-
desse extenso sistema social, isto é, aos
ção espacial e as práticas culturais que “ne-
grupos exogâmicos e seus clãs compo-
las” e tão somente “com elas” se realizam.
nentes específicos (BRASIL, 2008, p. 83).

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PARA OS
CURIOSOS
7.
UMA
Os campos de concentração
foram erguidos pelo governo do
estado do Ceará, em dois períodos:
PERSPECTIVA 1915 e 1932. Eram espaços de
DO PATRIMÔNIO aprisionamento para evitar que
os retirantes da seca, saídos do
INTEGRAL interior em busca de socorro e
nalisemos agora o tomba- sobrevivência, muitos deles doentes,
mento do Sítio Histórico do famintos, em andrajos, chegassem
Patu, na cidade de Senador ao centro da capital, Fortaleza. Para
Pompeu (CE), realizado em saber mais sobre o tema, consultar:
julho de 2019, pela Prefeitu- a. Isolamento e poder. Fortaleza
ra Municipal, questionando e os Campos de Concentração
a eficácia deste instrumento na seca de 1932,, de Kênia
e a necessidade do reconhe- Rios. Disponível em: http://
cimento do uso conjunto do www.repositorio.ufc.br/
registro como forma de ga- bitstream/riufc/10380/1/2014
rantir a preservação integral do bem, dada _liv_ksrios.pdf.
a sua condição de lugar geográfico e espaço
b. Das santas almas da barragem
de peregrinação religiosa na atualidade.
à caminhada da seca:
O recorte espacial Sítio Histórico do
projetos de patrimonialização
Patu compreende edificações remanescen-
da memória no sertão
tes do ano de 1919, acrescidas de outras
central cearense (1982 –
do ano de 1932, totalizando 12 edifícios
2008),, de Aterlane Martins.
(integrais, em ruínas e inconclusos), que ini-
Disponível em: http://www.
cialmente serviram de suporte às obras de
repositorio.ufc.br/bitstream/
construção da barragem do Patu e, poste-
riufc/14518/1/2015_dis_
riormente, à administração do Campo de
rapmartins.pdf
Concentração do Patu.
c. Assista ainda o longa-
metragem Currais, ganhador
, ganhador
do Prêmio Abraccine na
categoria Melhor Filme
Brasileiro de Diretor Estreante,
na 43° Mostra Internacional de
Cinema, realizada em outubro
de 2019, na cidade
de São Paulo.

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Deste conglomerado de edificações nos Conjuntamente à dimensão imaterial significativo valor imaterial: a devoção às
importa, para a análise, o Cemitério da Bar- sobre a qual se fundam estas crenças Santas Almas da Barragem, que no nosso
ragem, dada a sua configuração e uso pas- e práticas devocionais legadas no co- entendimento é o que sustentou, sustenta
sado e atual. Esse lugar permite a rememo- tidiano familiar, comunitário, perma- e amplia a “vida” do local.
ração dos episódios vividos ali na década de nece também deste momento inicial Acreditamos que é nesta confluência
1930 e os atualiza socialmente, em pequena um vestígio palpável, material, um entre o material e o imaterial que o bem
ou em larga escala quando, respectivamen- espaço sagrado. O campo santo: o Ce- cultural deve ser visto e preservado, a des-
te, as famílias o visitam em culto privado mitério da Barragem. Ali, onde foram peito do trabalho ficar pela metade, in-
aos seus mortos ou quando realizam a Ca- enterrados e repousam os mortos da completo e incorreto, quando apenas uma
minhada da Seca, na qual milhares de de- epidemia de cólera em 1932, é o local dimensão do bem é protegida pelos atos
votos o tomam em romaria, desde os anos por excelência para o exercício de culto formais do Estado.
1980. É no “campo santo” que hoje melhor se às Santas Almas. (MARTINS, 2017, p. 48). O tombamento e o registro são instru-
situa o sentido e o significado das memórias Este cemitério, lugar construído, traz mentos acessórios entre si para a real pro-
do Campo de Concentração. em si os aspectos material, funcional e teção do bem na condição de “lugar”, assim
O tombamento em questão abrange simbólico que os sujeitos lhe aplicaram ao se considera também a sua dimensão ima-
esta edificação apenas no aspecto físico do longo da história e isto lhe garante a con- terial, pois não há atribuição de significado
lugar (o muro de alvenaria, o território cer- dição de lugar de memória. Há, contudo, e sentido dado pelas práticas culturais que
cado, as pequenas construções religiosas ali uma importante prática cultural e religio- se substancie de outra maneira.
erigidas, os túmulos e seus cruzeiros). Cabe- sa a considerar, que dota este espaço de Lembramos, então, que nos é muito im-
-nos retomar a premissa que nos guiou até portante que o(a) cursista procure ler nossas
aqui: a compreensão do processo de trans- indicações e procurem similaridade em seu
formação do lugar em espaço; do vestígio município ou estado de casos de tombamen-
material em espaço significado, abarcan- to e registro e os analisem à luz do que apren-
do nessa passagem o aspecto patrimonial: deram por aqui e dos casos aqui ilustrados.

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REFERÊNCIAS AUTOR
BIBLIOGRÁFICAS Aterlane Martins é professor efetivo
do Instituto Federal do Ceará (IFCE)
e coordenador de Extensão do
ASSMANN, Aleida. Espaços da MARTINS, Aterlane. Das santas almas Campus de Quixadá. Historiador do
recordação: formas e transformações da da barragem à caminhada da seca. patrimônio cultural. Educador de
memória cultural. Campinas: Editora da Fortaleza: Museu do Ceará, 2017. museus e centros culturais. Mestre
Unicamp, 2011. NORA, Pierre. Entre memória e história: a em História Social pelo Programa
CANDAU, Joël. Memória e identidade. problemática dos lugares. Tradução Yara de Pós-Graduação em História
Tradução de Maria Letícia Ferreira. São Aun Khoury. In: Projeto História, São e Licenciado em História pela
Paulo: Contexto, 2012. Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. Universidade Federal do Ceará (UFC).
CERTEAU, Michel de. A invenção do SOARES, Igor de Menezes. In: Alguns Foi pesquisador-bolsista da Unesco
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RJ: Vozes, 1998. SILVA, Ítala Byanca de Morais; SOARES, Igor Patrimônio (PEP Ip han/Unes co).
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Pau da Bandeira de Santo Antônio festa e carregamento em Barbalha. Iphan,
Fortaleza, 2013, p.238-256. Memória UFC/CNPq (GEPPM) e da
em Barbalha/CE. 2015. Disponível em: Coordenação Nacional do Grupo
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uploads/ckfinder/arquivos/Parecer_conselho_
consultivo.pdf Acessado em: 31.01.2020.
________. Dossiê de Registro da
Cachoeira do Iauaretê. Lugar sagrado dos
povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri
(AM). 2008. Disponível em: http://portal.
iphan.gov.br/uploads/publicacao/PatImDos_
iauarete_m.pdf Acessado em: 31.01.2020.

Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 111


Este fascículo é parte integrante do projeto
Formação de Mediadores de Educação
Patrimonial, em decorrência do Termo de
Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito
Rocha e a Secretaria Municipal de Cultura de
Fortaleza, sob o nº 02/2019.

Todos os direitos desta edição reservados à:

Fundação Demócrito Rocha


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EXPEDIENTE:
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)
João Dummar Neto
Presidente
André Avelino de Azevedo
Diretor Administrativo-Financeiro
Marcos Tardin
Gerente Geral
Raymundo Netto
Gerente Editorial e de Projetos
Emanuela Fernandes
Analista de Projetos

UNIVERSIDADE ABERTA
DO NORDESTE (UANE)
Viviane Pereira
Gerente Pedagógica
Marisa Ferreira
Coordenadora de Cursos
Joel Bruno
Designer Educacional
Thifane Braga
Secretária Escolar
CURSO FORMAÇÃO DE MEDIADORES
DE EDUCAÇÃO PARA PATRIMÔNIO
Raymundo Netto
Coordenador Geral, Editorial e Revisor
Cristina Holanda
Coordenadora de Conteúdo
Amaurício Cortez
Editor de Design e Projeto Gráfico
Miqueias Mesquita
Diagramador
Daniel Dias
Ilustrador
Thaís de Paula
Produtora
ISBN: 978-85-7529-951-7 (Coleção)
ISBN: 978-85-7529-958-6 (Fascículo 7)

Apoio

Universidade
Estadual do Ceará

Realização

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