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Resumo. O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a clínica da coo-
peração, estratégia de intervenção baseada no referencial teórico-prático da
psicodinâmica do trabalho, que se propõe a mapear as relações entre saú-
de mental e trabalho. Trata-se de um artigo teórico-conceitual, embasado
pela experiência dos autores na clínica da cooperação. Inicialmente, contex-
tualiza-se o mundo do trabalho e a abordagem desse estudo. Em seguida,
aborda-se o espaço de discussão e outras condições importantes para a rea-
lização dessa proposta de clínica. A clínica da cooperação é entendida como
forma de potencializar os processos de mobilização dos trabalhadores, para
que possibilitem experiências de autonomia e de transformação da organi-
zação do trabalho. Nessa perspectiva, busca-se apresentá-la como estratégia
de intervenção micropolítica.
Abstract. This article aims at reflecting about the cooperation clinic, inter-
vention strategy based on the theoretical and practical reference from the
psychodynamic of work, which aims at mapping the relationship between
mental health and work. This is a theoretical-conceptual article, based by the
authors’ experience in cooperation clinic. In the beginning, it contextualizes
the world of work and the approach of this study. Then the goal is to think
over on the discussion space and other important conditions for the realiza-
tion of this proposal clinic. Clinical cooperation is seen as a way to enhance
the workers’ mobilization processes that enable experiences of autonomy
and transformation of the work organization. From this perspective, the ar-
ticle seeks to present it as micropolitic intervention strategy.
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Attribution License (CC-BY 3.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição
desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Clínica da cooperação: um caminho para a insurgência e a autonomia
1
O termo elaboração refere-se ao trabalho do inconsciente durante o tratamento psicanalítico (in Plon e Roudinesco,
1998, p. 174).
2
A perlaboração, é uma palavra usada para explicitar a possibilidade de integrar uma interpretação a esse trabalho
inconsciente, bem como superar as resistências que emergem durante esse processo (in Plon e Roudinesco, 1998, p. 174).
3
A transferência negativa é identificada como um “vetor de sentimentos hostis e agressivos” que, segundo Freud,
funciona como uma barreira que indica a proximidade com conteúdos recalcados e com o próprio desejo inconsciente (in
Plon e Roudinesco, 1998, p. 767).
A clínica da cooperação toma tal configu- (2012), só a partir desse conhecimento é pos-
ração como aposta no processo de intervenção sível haver um re-conhecimento, por parte do
e pretende, assim, fomentar desnaturalizações coletivo, do trabalho enquanto criação (poié-
das condições e relações de trabalho, provo- sis), fator primordial para a apreensão do pró-
car estranhamentos que são essenciais para a prio saber-fazer.
mobilização do coletivo em direção à emanci- A confiança está no seio da cooperação,
pação no trabalho (Siqueira, 2013). Com isso, pois é preciso que haja confiança para que as
destaca-se o caráter preventivo dessa clínica, pessoas se mostrem, deem visibilidade ao seu
que tende a colocar em questão e, eventual- trabalho. Por esse motivo, Dejours (2012) nos
mente transformar, ambientes produtores do alerta sobre a necessidade de permitir o surgi-
sofrimento patogênico por meio da mobiliza- mento do processo de construção da confiança
ção do coletivo (Ghizoni, 2013). no espaço coletivo.
Contudo, dar visibilidade ao trabalho signi-
As condições para a cooperação fica, também, tornar visível o real do trabalho4
e as diferenças que ele abarca. É a partir da ne-
Dejours (2012, p. 79) afirma que “todo tra- cessidade de que essas diferenças sejam discu-
balho enquanto trabalho vivo repousa na inte- tidas, admitidas ou rejeitadas pelo coletivo, de
ligência e na mobilização da inteligência”. A acordo com o teor de sua influência no processo
partir disso, torna-se impossível pensar o tra- de cooperação, que a deliberação ocorre.
balho vivo sem uma inteligência inventiva que Em suma, a clínica da cooperação é um
implica, necessariamente, o que há de singular modo de intervenção que permite reunir pes-
no ser humano. quisa e ação (Martins e Mendes, 2012). Ela po-
Tendo visto que a cooperação tem como tencializa os movimentos de fortalecimento
norteador o coletivo de trabalho, não há como dos coletivos, permite cartografar a situação
se pensar esse trabalho vivo e a inteligência sin- de trabalho e vislumbrar novas formas de ser e
gular que ele envolve fora do coletivo. As inte- estar no ambiente ocupacional, sem abdicar de
ligências emergem no coletivo sob a marca da si mesmo enquanto sujeito.
diversidade, que pode gerar divergências ca- Trata-se de uma tentativa de promover, se
racterizadas como desordem ou articuladas em não um encontro, pelo menos um movimento
uma dinâmica coletiva comum (Dejours, 2012). bidirecional entre as instâncias: sujeito dese-
Nesse sentido, o processo de construção do co- jante – aquele que evoca desejos, inconscientes
letivo e a cooperação encontram-se intimamen- de satisfação pulsional– e objetivos organiza-
te relacionados no que tange às suas condições cionais, promovendo mudanças a partir da
primordiais (Lima, 2013) que, dentre outros fa- conscientização da própria situação de traba-
tores, abrangem: as regras de trabalho, a visibi- lho. Em última instância, esse tipo de clínica
lidade, a confiança e a deliberação. propõe, por meio do espaço coletivo, uma re-
A psicodinâmica estabelece a produção das configuração da relação sujeito-trabalho.
regras de trabalho como condição necessária
à cooperação, como as regras que regulam a A clínica da cooperação e o espaço de
convivência (Dejours, 2011) e a relação com o discussão
real do trabalho. Essas prescrições atuam tanto
no nível técnico, já que organizam e direcio- Dejours (2004) propõe que uma confi-
nam o fazer, quanto nos níveis moral e prático guração do trabalho que tenha como base a
no âmbito social, coordenando o viver junto confiança, e a deliberação coletiva demanda
(Dejours, 2012). Todavia, para serem enten- espaços formais e informais de fala –estes
didas como regras favoráveis à cooperação, funcionam como uma clínica da cooperação,
elas precisam se tornar tão dinâmicas quanto à medida que possibilitam um discurso sobre
o contexto em que se inserem. a vivência subjetiva do trabalhador e possibi-
A visibilidade está relacionada ao espaço lidades de transformação.
coletivo, que promove a partilha do conhe- Nesses espaços públicos de discussão, é
cimento sobre o trabalho realizado por cada possível notar que o trabalho tanto é um ele-
um dos seus componentes. Segundo Dejours mento fundamental para a estruturação da
4
O conceito real do trabalho faz referência ao imprevisto, que transcende as prescrições do trabalho e desafia os saberes
técnico e científico. Segundo Ferreira (2013), o conceito de real do trabalho torna visível a experiência de fracasso das
prescrições e os limites do conhecimento.
identidade dos sujeitos – quando estes se sen- dialógico, um movimento coletivo que é cons-
tem reconhecidos e confirmados no âmbito truído e ressignificado cotidianamente. Por
da singularidade do seu saber-fazer – quanto esse motivo, é entendida por Ghizoni (2013)
pode tornar-se uma fonte de sofrimento pa- como uma clínica sempre inacabada, que se
togênico – quando a atividade realizada não transforma a cada momento.
tem sentido para o sujeito e nem é considerada
importante pela organização ou meio social O funcionamento da
(Araújo e Mendes, 2012).
clínica da cooperação
É nesse contexto de dualidade do trabalho
que Lima (2013) destaca como dimensões
A clínica da cooperação no contexto da pes-
importantes para a comunicação, por meio do
quisa é composta por três etapas: a análise da
espaço de discussão, a autenticidade e a inteli-
demanda, as sessões coletivas e a validação dos
gibilidade. O termo autenticidade faz referência
resultados (Araújo e Mendes, 2012). A análise
ao ato de permitir-se sujeito, isto é, consentir a
da demanda é também entendida como uma
experimentação afetiva da situação (Ferreira,
fase de pré-pesquisa, que deve ser revisitada
2013). De acordo com Dejours (2004), a fala au-
ao longo de todo o estudo. As sessões coletivas
têntica só se estabelece no espaço de discussão
constituem a pesquisa de fato, são os momen-
quando há, nesse ambiente, um tipo de relação
tos nos quais ocorrem a coleta dos dados sobre
que envolve a reciprocidade de riscos.
a situação de trabalho e as vivências de prazer
A dimensão da inteligibilidade refere-se à
e sofrimento. A terceira etapa é o momento da
capacidade criativa, à possibilidade de mobili-
validação dos resultados da pesquisa, no qual
zação diante dos imprevistos que a clínica da
cooperação envolve (Ghizoni, 2013). Também os trabalhadores revisitam os dados colhidos
conhecida como inteligência prática, ela é en- durante a pesquisa e discutem as hipóteses
volta por inteligências singulares e coletivas apresentadas pelos pesquisadores.
que valorizam o trabalho enquanto poiésis e Alguns exemplos de experiências de inter-
transformam a organização do trabalho em di- venção com esse tipo de clínica são apresenta-
reção à saúde dos trabalhadores. dos por Araújo e Mendes (2012), com práticas
A inteligibilidade é também fruto de uma realizadas em instituições públicas e privadas.
interseção entre o prescrito, o modo imperativo Ao relatar sobre os resultados dessas expe-
estabelecido pelas organizações para a execução riências, as autoras ressaltam que as princi-
das tarefas e o trabalho real, a maneira encon- pais questões trazidas nesses espaços de fala
trada pelo sujeito para lidar com as situações faziam referência à falta de reconhecimento
que escapam ao prescrito (Costa, 2013b), entre simbólico, à precariedade das relações socio-
as dimensões de coordenação e cooperação, na profissionais e à comunicação sem transparên-
medida em que se utiliza da inventividade para cia. Esses aspectos encontram-se intimamente
flexibilizar as prescrições e traçar caminhos que relacionados ao que Martins (2009, p. 76) apre-
possibilitem novos modos de relação entre o senta como “fontes de impedimento da trans-
trabalhador e o seu trabalho (Ghizoni, 2013). formação do sofrimento em prazer”.
A clínica da cooperação é um espaço de cria- É importante ressaltar a dualidade dessa
ção de referências comuns e compartilhamento proposta clínica, que assim como pode fomen-
do real do trabalho (Dejours, 2012). Esse dispo- tar o protagonismo do trabalhador em relação
sitivo aposta em uma construção coletiva, sem ao seu próprio fazer, também pode se articu-
negar as singularidades de cada trabalhador. lar como forma de manter tais trabalhadores
Tratamos do que Buber (in Holanda, 1999) de- engajados na lógica da produção. Por esse
nominou como relação dialógica, onde a criação motivo, Araújo e Mendes (2012) explicitam a
e o afeto atravessam as singularidades e se esta- importância de uma postura crítica constante
belecem no espaço do “entre”. Isso significa di- em relação à demanda pela clínica da coope-
zer que a produção de sentidos não são parte de ração e a sua prática, no momento em que ela
um trabalhador ou de outro, e sim do encontro acontece. É preciso pensar essa clínica como
entre ambos. É nesse encontro que a ampliação uma metodologia de orientação da prática do
da consciência acontece, dando origem a novos psicólogo nas organizações e como uma ação
olhares sobre si na relação com o trabalho e com de resistência à reprodução das lógicas gestio-
sua própria saúde (Martins e Mendes, 2012). nárias, já que estas produzem a fragmentação
A partir dessa perspectiva, a clínica do tra- dos coletivos, a exacerbação do individualis-
balho pode ser entendida como um processo mo e diversas formas de adoecimentos.
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de discussão: A clínica psicodinâmica do traba- Aceito: 24/08/2015