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Contextos Clínicos, 8(2):165-172, julho-dezembro 2015

Unisinos - doi: 10.4013/ctc.2015.82.05

Clínica da cooperação: um caminho


para a insurgência e a autonomia

Cooperation clinic: A way for the insurgency and the autonomy

Vanessa Ribeiro de Oliveira, João Batista Ferreira


Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Pasteur, 250, 22290-240, Rio de Janeiro, RJ,
Brasil. vanessaribeiro.psy@gmail.com, ferreira.jb@gmail.com

Resumo. O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a clínica da coo-
peração, estratégia de intervenção baseada no referencial teórico-prático da
psicodinâmica do trabalho, que se propõe a mapear as relações entre saú-
de mental e trabalho. Trata-se de um artigo teórico-conceitual, embasado
pela experiência dos autores na clínica da cooperação. Inicialmente, contex-
tualiza-se o mundo do trabalho e a abordagem desse estudo. Em seguida,
aborda-se o espaço de discussão e outras condições importantes para a rea-
lização dessa proposta de clínica. A clínica da cooperação é entendida como
forma de potencializar os processos de mobilização dos trabalhadores, para
que possibilitem experiências de autonomia e de transformação da organi-
zação do trabalho. Nessa perspectiva, busca-se apresentá-la como estratégia
de intervenção micropolítica.

Palavras-chave: cooperação, trabalho, saúde mental.

Abstract. This article aims at reflecting about the cooperation clinic, inter-
vention strategy based on the theoretical and practical reference from the
psychodynamic of work, which aims at mapping the relationship between
mental health and work. This is a theoretical-conceptual article, based by the
authors’ experience in cooperation clinic. In the beginning, it contextualizes
the world of work and the approach of this study. Then the goal is to think
over on the discussion space and other important conditions for the realiza-
tion of this proposal clinic. Clinical cooperation is seen as a way to enhance
the workers’ mobilization processes that enable experiences of autonomy
and transformation of the work organization. From this perspective, the ar-
ticle seeks to present it as micropolitic intervention strategy.

Keywords: cooperation, labor, mental health.

Introdução é a produção do que Baremblitt (2002) deno-


minou de subjetividades assujeitadas. O auto-
Em uma era de fragmentação dos coletivos, matismo e a velocidade das lógicas produtivas
na qual imperam individualismos, automatis- contemporâneas intensificam a perda da capa-
mos das formas de sentir, pensar e viver e, por cidade de sensibilizar-se, que resultam em um
consequência, é cada vez mais difícil pensar viver anestesiado e na impossibilidade de mo-
no trabalhador como sujeito, o que predomina bilização coletiva para ações de transformação

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desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Clínica da cooperação: um caminho para a insurgência e a autonomia

(Ferreira, 2014). Trata-se de um contexto no efetiva participação do trabalhador em todas


qual o trabalho se sobrepõe à vida das pesso- as etapas da produção (Léda e Ribeiro, 2004).
as, pois “se vive para trabalhar e não mais se A partir do advento da Revolução Indus-
trabalha para viver”, e o trabalho torna-se si- trial, a programação, o controle e a cronometra-
nônimo de repetição e cumprimento dos man- gem do tempo, trazida pelos modelos fordista
damentos produtivistas das organizações. O e taylorista, atravessam a relação trabalhador-
trabalho torna-se, assim, apenas um meio de -processo de produção, e novas formas de rela-
subsistência, embora seja vendido como forma ção com o trabalho são criadas. Com isso, novas
de realização pessoal e, aos poucos, produz formas de produção passam a ser incorporadas
desmobilização coletiva, com toda passivida- pelas organizações, resultando em um controle
de associada a esse processo (Rocha, 2008). mais assíduo da vida (monitoramento do tem-
O presente artigo pretende refletir sobre as po livre e das formas de lazer). Esse cenário se
incidências desse contexto nas ações de mobi- intensifica com o surgimento do toyotismo, na
lização e desmobilização dos trabalhadores. década de 1980, que produz a acumulação flexí-
Para isso, apresentam-se considerações sobre vel, a fragmentação dos coletivos e dos proces-
a clínica da cooperação, estratégia de inter- sos produtivos e o regime das especializações
venção baseada no referencial teórico-prático (Léda e Ribeiro, 2004).
da psicodinâmica do trabalho. Essa proposta O novo contexto criado por esses mode-
clínica põe em análise o trabalhar, buscando los produtivos mantém a centralidade do tra-
a promoção do olhar para si mesmo, para a balho, mas cambia o seu significado, pois o
relação com o outro e as configurações do tra- trabalho passa a ser instrumentalizado pela
balho em que se inserem (Dejours, 2011). maior parte da sociedade, como um meio para
Este trabalho surge como resultante da ex- se atingir um fim. Diante disso, a relação tra-
periência dos autores em uma clínica da coope- balho-remuração intensifica-se, e a lógica do
ração. Trata-se de um artigo teórico-conceitual consumo e do valor de troca passam a reger as
que abrange as referências e os aspectos orien- relações humanas (Léda e Ribeiro, 2004).
tadores dessa prática. No primeiro momen-
to, contextualiza-se o mundo do trabalho e a A psicodinâmica do trabalho
psicodinâmica do trabalho, abordagem nor-
teadora deste estudo. Em seguida, expõem-se A psicodinâmica do trabalho é uma abor-
tópicos fundamentais para a realização dessa dagem que surgiu na França, por volta de
clínica, bem como o seu funcionamento. Por 1990, com Christophe Dejours. De acordo com
fim, aborda-se como considerações finais o ca- Mendes (2007), a trajetória dessa abordagem é
ráter político desse processo e as implicações marcada por três fases, que, embora caracte-
do pesquisador-clínico nesse contexto. rizem-se por publicações específicas, se com-
plementam. A primeira fase, por volta de 1980,
Trabalho teve como foco principal o estudo da psicopa-
tologia do trabalho, e é marcada pela publica-
A palavra trabalho origina-se do termo la- ção do livro traduzido para o Brasil como A
tim Tripallium, usado para nomear um instru- loucura do trabalho: estudos de psicopatologia do
mento de tortura. A partir dessa associação, trabalho. Na segunda fase, em 1990, fundou-
surge o significado do trabalho como fardo, sa- -se propriamente a disciplina psicodinâmica
crifício, adotado na Grécia, através do despre- do trabalho, que se ocupou de problematizar
zo por atividades entendidas como trabalho, o sofrimento produzido a partir da relação
por parte dos cidadãos livres e, posteriormen- homem-trabalho, dando ênfase às vivências
te, pelo início do cristianismo, onde o trabalho de prazer e sofrimento e à reestruturação da
passou a ser uma punição pelos pecados (Léda organização do trabalho. A terceira fase carac-
e Ribeiro, 2004). teriza-se pela consolidação e propagação da
Com o Renascimento, começou a surgir uma psicodinâmica enquanto modo de intervenção
ressignificação do trabalho enquanto produtor científica que explica os efeitos do trabalho nos
de identidade e fonte de autorrealização. Essa processos de subjetivação, na emergência de
nova concepção inaugura um olhar em que o patologias e na saúde dos trabalhadores.
trabalho é visto como condição necessária para Trata-se de uma clínica que toma a descri-
a liberdade e o desenvolvimento humano. A ção da organização e das relações de trabalho
produção artesanal constituiu a ampliação da como base do seu fazer, realizando um mape-
autorrealização no trabalho, possibilitando amento da relação sujeito-trabalho dentro do

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contexto de trabalho e/ou durante a própria A proposta da clínica da psicodinâmica é


experiência do trabalhar (Dejours, 2004) e pro- embasada pela lógica relacional e inicia-se com
movendo intervenções pautadas na perspecti- questões amplas, que se delimitam a partir do
va de reconstrução do equilíbrio entre o traba- processo de pesquisar. Essa clínica toma como
lho e a saúde mental a partir de um movimento base científica a chamada pesquisa ascenden-
do próprio sujeito (Ghizoni, 2013). Martins te, que indissocia o saber do fazer e, por esse
(2009) complementa essa definição ao ressaltar motivo, entende que determinadas produções
que a psicodinâmica aposta nos coletivos de teóricas tornam-se possíveis apenas a partir de
trabalho, sem desconsiderar as singularidades intervenções em determinadas situações de
envolvidas na relação entre o trabalhador e a trabalho (Heloani e Lancman, 2004).
organização do trabalho. A psicodinâmica en- Dejours (2010) explicita que as transforma-
tende que a relação estabelecida nos coletivos ções provocadas por esse tipo de clínica seguem
facilita o processo de elaboração1 e perlabora- o mesmo ritmo das mudanças administrativas,
ção2 do próprio sofrimento, bem como a cria- de gestão e da organização do trabalho.
ção de modos de transformação da realidade A clínica psicodinâmica se subdivide em
organizacional, ou pelo menos, a mudança nos três tipos, de acordo com a situação de traba-
modos de relação com essa realidade. lho a ser pesquisada: a clínica da inclusão, clí-
nica das patologias ou clínica da cooperação.
A clínica psicodinâmica do trabalho A primeira é direcionada aos trabalhadores
que vivenciam situações de exclusão, como
A clínica psicodinâmica do trabalho é um desempregados e aposentados, e tem como
método da clínica do trabalho proposto pela aposta a construção do “trabalho como consti-
psicodinâmica do trabalho (Dejours, 2008), de- tuinte do sujeito em situação de não trabalho”
finido por Araújo e Mendes (2012, p. 92) como: (Martins e Mendes, 2012, p. 173). A segunda,
a clínica das patologias, busca principalmente
[...] um espaço com o objetivo de investigar a re- a reconstrução da história do adoecimento ou
lação do indivíduo com a atividade laboral atra- de violência e a produção de formas de mobi-
vés da fala dos sujeitos que executam as rotinas lização dos participantes. E, por fim, a clínica
de trabalho em uma organização, onde pode ex-
da cooperação tem a mobilização coletiva e o
pressar suas impressões, sentimentos e percep-
ções relacionadas aos pares, superiores, subordi- resgate do sentido do trabalho como objetivos
nados, tarefas realizadas, resultado e sentido do principais, e é realizada comumente com um
que fazem. coletivo que possui interseções no que tange
ao trabalho diário (Martins e Mendes, 2012).
A intervenção proposta pela clínica psico- Destaca-se que o sentido do trabalho, um
dinâmica se dá no próprio ambiente de traba- dos pilares da clínica da cooperação, faz alu-
lho, como um espaço de valorização da fala são à representação do coletivo em relação ao
enquanto meio de compartilhamento de expe- ato de trabalhar, que tem como objetivo per-
riências, percepções e sentimentos. Contudo, é passar o sofrimento emergente da dimensão
preciso sublinhar que a análise das situações efetiva dessa atividade (Costa, 2013a).
de trabalho no contexto dessa clínica transcen- Essas clínicas têm como princípio a promo-
de o conteúdo expresso pela fala, porque, para ção de espaços coletivos de discussão, possibili-
além do que é dito, observa-se também o “não tando a construção de modos de resistência ao
dito”, isto é, as contradições existentes entre a sofrimento e à doença produzidos na relação
fala oral e a fala corporal, a configuração do desse trabalhador com a organização do traba-
contexto de trabalho e a dinâmica das relações lho (Martins e Mendes, 2012). Nesse sentido,
circunscritas na instituição. Desse modo, a clí- elas têm como base a noção de um sujeito poten-
nica do trabalho visa prover uma análise das te, capaz de transformar o trabalho mortificado
condições de trabalho e suas oscilações, que pelas inúmeras prescrições da organização em
abarcam desde a relação subjetiva e intersub- prol do que Dejours denomina “trabalho vivo“
jetiva dos sujeitos e o processo de construção (Araújo e Mendes, 2012), uma experiência de
da identidade até a patologia (Dejours, 2011). trabalho que envolve sensações, pensamentos

1
O termo elaboração refere-se ao trabalho do inconsciente durante o tratamento psicanalítico (in Plon e Roudinesco,
1998, p. 174).
2
A perlaboração, é uma palavra usada para explicitar a possibilidade de integrar uma interpretação a esse trabalho
inconsciente, bem como superar as resistências que emergem durante esse processo (in Plon e Roudinesco, 1998, p. 174).

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e a capacidade de criação do sujeito (Ferreira, um sistema defensivo, ao mesmo tempo que


2014). Para Martins e Mendes (2012), nesses autoriza a reorganização de uma nova defesa
espaços, é preciso compreender o discurso de (Mendes, 2014).
cada trabalhador como uma fala singular, já Com base nessas considerações, pode-se
que apenas o próprio trabalhador tem o conhe- perceber que tão importante quanto a criação
cimento do seu fazer e do seu sofrimento. desses espaços de escuta é a postura do clíni-
A respeito da escuta analítica, Mendes co que o promoverá, pois ele possui a função
(2014) pontua a participação do clínico no co- de acolher as demandas que lhe são dirigidas
letivo de pesquisa e no coletivo de supervisão através da palavra e que possibilitarão ao pró-
como condição essencial para esse processo. E prio grupo a construção de um percurso que
apresenta como particularidades desse tipo de possibilite trabalhar os sofrimentos. Com isso,
escuta: a análise da demanda que inicia o pro- o clínico busca ser um facilitador do processo
cesso clínico e a compreensão da dinâmica do de tornar público os incômodos e de questio-
sofrimento como uma etapa fundamental para nar os movimentos que os produzem.
a escuta analítica.
Mendes (in Reis, 2015), em entrevista à re- A clínica da cooperação como
vista en(cena), aponta que a escuta, para além proposta de intervenção
de uma proposta metodológica, é também te-
órica, ao passo que é a partir dessa escuta que No livro Trabalho vivo: trabalho e emancipa-
o clínico pode entender como os sintomas se ção, Dejours (2012) toma como base os estu-
alocam e de que forma a organização do traba- dos da Escola de Frankfurt, que consideram o
lho acessa esse tipo de sintoma. Ela acrescenta trabalho como mediador da autonomia, para
que o processo de escuta analítica não inclui nos apresentar a cooperação como dimensão
apenas o entendimento e a interpretação dos efetiva do trabalho que possibilita um poder
discursos, mas também a transformação do emancipatório ao coletivo.
pesquisador em clínico, que precisará intervir A cooperação promove movimentos de re-
no coletivo para tratar a “psicopatologia da sistência às diferentes formas de dominação,
posição subjetiva” – forma com que os traba- em buscada liberdade para a transformação
lhadores têm se apegado a esses sintomas. da realidade de trabalho.
De acordo com Mendes (2014) a escuta
analítica ocorre a partir de três dispositivos: a A cooperação fundada sobre acordos normativos e
análise da demanda; a transferência e a inter- regras de trabalho passa por uma atividade deôn-
pretação. O primeiro dispositivo de ser articu- tica cujos objetivos são de libertar-se, pelo menos
lado, a necessidade, queixa, sintoma e desejo de forma parcial, da dominação, para reapro-
do coletivo de pesquisa, deve orientar toda a priar-se individual e coletivamente de uma parte
da autonomia, não apenas pelo gosto da liberda-
prática clínica. A esse respeito, a autora alerta
de, da transgressão ou da indisciplina, mas por-
acercada importância da diferenciação entre que esta margem de autonomia é indispensável
a demanda institucional e a demanda do co- para o exercício da inteligência para a formação
letivo de pesquisa. Já a transferência acontece das habilidades e do prazer da subversão poiética
quando os participantes relatam o que está (Dejours, 2012, p. 96).
acontecendo com eles – Mendes (2014) aponta
que, nesse momento, cabe ao clínico acolher Nesse fragmento, a autonomia emerge
os discursos e facilitar a nomeação dos afetos. como o ideal da cooperação e fundamento do
Além disso, a autora expõe que, em situação ser sujeito, que toma a liberdade de construção
de clínica coletiva, a transferência negativa é ou reconstrução da própria vida como base da
comum e, portanto, nesses casos,3 deve-se evi- sua constituição. Isso significa dizer que, à
tar a solução do problema, visto que a tensão é medida que a cooperação possibilita um cami-
produtiva e tem um papel importante na cria- nhar em direção à autonomia, ela também legi-
ção de um cenário propício à nomeação dos tima a busca pelo reconhecimento da própria
afetos. Por fim, a interpretação, último dispo- humanidade, ao possibilitar a apropriação dos
sitivo da escuta analítica, deve ter como foco afetos e a utilização destes para a transforma-
as defesas coletivas, de forma a desmontar ção da realidade (Siqueira, 2013).

3
A transferência negativa é identificada como um “vetor de sentimentos hostis e agressivos” que, segundo Freud,
funciona como uma barreira que indica a proximidade com conteúdos recalcados e com o próprio desejo inconsciente (in
Plon e Roudinesco, 1998, p. 767).

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A clínica da cooperação toma tal configu- (2012), só a partir desse conhecimento é pos-
ração como aposta no processo de intervenção sível haver um re-conhecimento, por parte do
e pretende, assim, fomentar desnaturalizações coletivo, do trabalho enquanto criação (poié-
das condições e relações de trabalho, provo- sis), fator primordial para a apreensão do pró-
car estranhamentos que são essenciais para a prio saber-fazer.
mobilização do coletivo em direção à emanci- A confiança está no seio da cooperação,
pação no trabalho (Siqueira, 2013). Com isso, pois é preciso que haja confiança para que as
destaca-se o caráter preventivo dessa clínica, pessoas se mostrem, deem visibilidade ao seu
que tende a colocar em questão e, eventual- trabalho. Por esse motivo, Dejours (2012) nos
mente transformar, ambientes produtores do alerta sobre a necessidade de permitir o surgi-
sofrimento patogênico por meio da mobiliza- mento do processo de construção da confiança
ção do coletivo (Ghizoni, 2013). no espaço coletivo.
Contudo, dar visibilidade ao trabalho signi-
As condições para a cooperação fica, também, tornar visível o real do trabalho4
e as diferenças que ele abarca. É a partir da ne-
Dejours (2012, p. 79) afirma que “todo tra- cessidade de que essas diferenças sejam discu-
balho enquanto trabalho vivo repousa na inte- tidas, admitidas ou rejeitadas pelo coletivo, de
ligência e na mobilização da inteligência”. A acordo com o teor de sua influência no processo
partir disso, torna-se impossível pensar o tra- de cooperação, que a deliberação ocorre.
balho vivo sem uma inteligência inventiva que Em suma, a clínica da cooperação é um
implica, necessariamente, o que há de singular modo de intervenção que permite reunir pes-
no ser humano. quisa e ação (Martins e Mendes, 2012). Ela po-
Tendo visto que a cooperação tem como tencializa os movimentos de fortalecimento
norteador o coletivo de trabalho, não há como dos coletivos, permite cartografar a situação
se pensar esse trabalho vivo e a inteligência sin- de trabalho e vislumbrar novas formas de ser e
gular que ele envolve fora do coletivo. As inte- estar no ambiente ocupacional, sem abdicar de
ligências emergem no coletivo sob a marca da si mesmo enquanto sujeito.
diversidade, que pode gerar divergências ca- Trata-se de uma tentativa de promover, se
racterizadas como desordem ou articuladas em não um encontro, pelo menos um movimento
uma dinâmica coletiva comum (Dejours, 2012). bidirecional entre as instâncias: sujeito dese-
Nesse sentido, o processo de construção do co- jante – aquele que evoca desejos, inconscientes
letivo e a cooperação encontram-se intimamen- de satisfação pulsional– e objetivos organiza-
te relacionados no que tange às suas condições cionais, promovendo mudanças a partir da
primordiais (Lima, 2013) que, dentre outros fa- conscientização da própria situação de traba-
tores, abrangem: as regras de trabalho, a visibi- lho. Em última instância, esse tipo de clínica
lidade, a confiança e a deliberação. propõe, por meio do espaço coletivo, uma re-
A psicodinâmica estabelece a produção das configuração da relação sujeito-trabalho.
regras de trabalho como condição necessária
à cooperação, como as regras que regulam a A clínica da cooperação e o espaço de
convivência (Dejours, 2011) e a relação com o discussão
real do trabalho. Essas prescrições atuam tanto
no nível técnico, já que organizam e direcio- Dejours (2004) propõe que uma confi-
nam o fazer, quanto nos níveis moral e prático guração do trabalho que tenha como base a
no âmbito social, coordenando o viver junto confiança, e a deliberação coletiva demanda
(Dejours, 2012). Todavia, para serem enten- espaços formais e informais de fala –estes
didas como regras favoráveis à cooperação, funcionam como uma clínica da cooperação,
elas precisam se tornar tão dinâmicas quanto à medida que possibilitam um discurso sobre
o contexto em que se inserem. a vivência subjetiva do trabalhador e possibi-
A visibilidade está relacionada ao espaço lidades de transformação.
coletivo, que promove a partilha do conhe- Nesses espaços públicos de discussão, é
cimento sobre o trabalho realizado por cada possível notar que o trabalho tanto é um ele-
um dos seus componentes. Segundo Dejours mento fundamental para a estruturação da

4
O conceito real do trabalho faz referência ao imprevisto, que transcende as prescrições do trabalho e desafia os saberes
técnico e científico. Segundo Ferreira (2013), o conceito de real do trabalho torna visível a experiência de fracasso das
prescrições e os limites do conhecimento.

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identidade dos sujeitos – quando estes se sen- dialógico, um movimento coletivo que é cons-
tem reconhecidos e confirmados no âmbito truído e ressignificado cotidianamente. Por
da singularidade do seu saber-fazer – quanto esse motivo, é entendida por Ghizoni (2013)
pode tornar-se uma fonte de sofrimento pa- como uma clínica sempre inacabada, que se
togênico – quando a atividade realizada não transforma a cada momento.
tem sentido para o sujeito e nem é considerada
importante pela organização ou meio social O funcionamento da
(Araújo e Mendes, 2012).
clínica da cooperação
É nesse contexto de dualidade do trabalho
que Lima (2013) destaca como dimensões
A clínica da cooperação no contexto da pes-
importantes para a comunicação, por meio do
quisa é composta por três etapas: a análise da
espaço de discussão, a autenticidade e a inteli-
demanda, as sessões coletivas e a validação dos
gibilidade. O termo autenticidade faz referência
resultados (Araújo e Mendes, 2012). A análise
ao ato de permitir-se sujeito, isto é, consentir a
da demanda é também entendida como uma
experimentação afetiva da situação (Ferreira,
fase de pré-pesquisa, que deve ser revisitada
2013). De acordo com Dejours (2004), a fala au-
ao longo de todo o estudo. As sessões coletivas
têntica só se estabelece no espaço de discussão
constituem a pesquisa de fato, são os momen-
quando há, nesse ambiente, um tipo de relação
tos nos quais ocorrem a coleta dos dados sobre
que envolve a reciprocidade de riscos.
a situação de trabalho e as vivências de prazer
A dimensão da inteligibilidade refere-se à
e sofrimento. A terceira etapa é o momento da
capacidade criativa, à possibilidade de mobili-
validação dos resultados da pesquisa, no qual
zação diante dos imprevistos que a clínica da
cooperação envolve (Ghizoni, 2013). Também os trabalhadores revisitam os dados colhidos
conhecida como inteligência prática, ela é en- durante a pesquisa e discutem as hipóteses
volta por inteligências singulares e coletivas apresentadas pelos pesquisadores.
que valorizam o trabalho enquanto poiésis e Alguns exemplos de experiências de inter-
transformam a organização do trabalho em di- venção com esse tipo de clínica são apresenta-
reção à saúde dos trabalhadores. dos por Araújo e Mendes (2012), com práticas
A inteligibilidade é também fruto de uma realizadas em instituições públicas e privadas.
interseção entre o prescrito, o modo imperativo Ao relatar sobre os resultados dessas expe-
estabelecido pelas organizações para a execução riências, as autoras ressaltam que as princi-
das tarefas e o trabalho real, a maneira encon- pais questões trazidas nesses espaços de fala
trada pelo sujeito para lidar com as situações faziam referência à falta de reconhecimento
que escapam ao prescrito (Costa, 2013b), entre simbólico, à precariedade das relações socio-
as dimensões de coordenação e cooperação, na profissionais e à comunicação sem transparên-
medida em que se utiliza da inventividade para cia. Esses aspectos encontram-se intimamente
flexibilizar as prescrições e traçar caminhos que relacionados ao que Martins (2009, p. 76) apre-
possibilitem novos modos de relação entre o senta como “fontes de impedimento da trans-
trabalhador e o seu trabalho (Ghizoni, 2013). formação do sofrimento em prazer”.
A clínica da cooperação é um espaço de cria- É importante ressaltar a dualidade dessa
ção de referências comuns e compartilhamento proposta clínica, que assim como pode fomen-
do real do trabalho (Dejours, 2012). Esse dispo- tar o protagonismo do trabalhador em relação
sitivo aposta em uma construção coletiva, sem ao seu próprio fazer, também pode se articu-
negar as singularidades de cada trabalhador. lar como forma de manter tais trabalhadores
Tratamos do que Buber (in Holanda, 1999) de- engajados na lógica da produção. Por esse
nominou como relação dialógica, onde a criação motivo, Araújo e Mendes (2012) explicitam a
e o afeto atravessam as singularidades e se esta- importância de uma postura crítica constante
belecem no espaço do “entre”. Isso significa di- em relação à demanda pela clínica da coope-
zer que a produção de sentidos não são parte de ração e a sua prática, no momento em que ela
um trabalhador ou de outro, e sim do encontro acontece. É preciso pensar essa clínica como
entre ambos. É nesse encontro que a ampliação uma metodologia de orientação da prática do
da consciência acontece, dando origem a novos psicólogo nas organizações e como uma ação
olhares sobre si na relação com o trabalho e com de resistência à reprodução das lógicas gestio-
sua própria saúde (Martins e Mendes, 2012). nárias, já que estas produzem a fragmentação
A partir dessa perspectiva, a clínica do tra- dos coletivos, a exacerbação do individualis-
balho pode ser entendida como um processo mo e diversas formas de adoecimentos.

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Vanessa Ribeiro de Oliveira, João Batista Ferreira

Considerações finais das experiências dos pesquisadores, necessaria-


mente articulado a essas práticas, e que, portan-
O presente trabalho apresenta a clínica da co- to, podem ser amplificadas e reconfiguradas a
operação como uma forma de intervenção no ce- partir de outras experiências do real do trabalho
nário atual do mundo do trabalho, destacando-a de pesquisa. Nesse sentido, o insipiente desen-
como uma estratégia de intervenção de caráter volvimento teórico-metodológico da clínica da
micropolítico, isto é, um pequeno acontecimen- cooperação com base na psicodinâmica do tra-
to, mas de grande intensidade, responsável pela balho poderá ser enriquecido com a continui-
produção de subjetividades e o fomento à singu- dade das experiências do real do trabalho dos
larização (Guattari e Rolnik, 1986). pesquisadores dessa abordagem, em contextos
A característica política dessa clínica se e com categorias diversas, nos setores públicos
destaca na produção de um olhar consciente e privados, principalmente com as categorias
sobre as situações de trabalho, por meio do que vêm enfrentando precarização ainda mais
compartilhamento de experiências, do res- acentuada no que se refere aos processos de
gate da noção de coletivo e da possibilidade fragmentação dos coletivos, como os trabalha-
de transformação dessa realidade. Périlleux dores com atividades terceirizadas.
(2010) aponta o potencial crítico desse espaço, É importante destacar que os dados reco-
que coletiviza problemas inicialmente tidos lhidos em espaços como esse podem fornecer
como pessoais, sem negar a responsabilidade subsídios para a criação e aperfeiçoamento de
individual e coletiva na manutenção ou trans- políticas de prevenção da saúde mental no tra-
formação dessa realidade. balho, por exemplo. Mas, para que estratégias
Como apontado anteriormente, este tipo de como essa se tornem realidade, é necessário
clínica se configura como um movimento de re- que os profissionais que atuam nessa área es-
sistência às lógicas alienantes que operam auto- tejam atentos e em contato com a sua própria
matismos e a anestesia do viver, explicitando a experiência do trabalhar, afim de que nossa
necessidade da reconfiguração e construção do atuação não se limite às prescrições que os
sentido do trabalho como resultante do reco- subprocessos de gestão de pessoas produzem.
nhecimento do trabalhador-sujeito e da noção É preciso transformar o nosso trabalho em um
de trabalho como relação, como o “viver junto” trabalho vivo, para que possamos promover
apontado por Dejours (2012). Com isso, a clíni- espaços que possibilitem a produção da viva-
ca da cooperação provoca o fortalecimento dos cidade e da saúde no trabalho pelos próprios
coletivos e amplia as possibilidades de trans- trabalhadores.
formação do trabalho, por meio dos espaços de
discussão, entendidos como lugares privilegia- Referências
dos para a nomeação dos afetos, para a desna-
turalização de práticas alienantes e para o en- ARAÚJO, L.; MENDES, A.2012. Clínica psicodinâmi-
contro dos afetos e das inteligências singulares ca do trabalho: o sujeito em ação. Curitiba, Juruá,
em prol da criação de novos modos de ser, estar 156 p.
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Dejours (2004) sublinha nosso papel na Belo Horizonte, Instituto Félix Guattari, 207 p.
reprodução do modo de funcionamento do COSTA, S. 2013a. Sentido do Trabalho. In: F. VIEI-
mundo do trabalho, ao pontuar a transforma- RA; A. MENDES (org.), Dicionário de psicodinâ-
ção da organização do trabalho como resul- mica do trabalho. Curitiba, Juruá, p. 375-379.
tante do zelo daqueles que a fazem funcionar, COSTA, S. 2013b. Trabalho Prescrito e Trabalho
mas também ressalta a nossa capacidade de Real. In: F. VIEIRA; A. MENDES (org.), Dicioná-
rio de psicodinâmica do trabalho. Curitiba, Juruá,
implicação com as possibilidades de transfor- p. 467-471.
mação desse cenário. Esse olhar nos ajuda a DEJOURS, C. 2004. Subjetividade, trabalho e ação.
pensar que o grande desafio dos psicólogos Revista Produção, 14(3):27-34.
e dos demais profissionais que hoje se debru- http://dx.doi.org/10.1590/s0103-65132004000300004
çam sobre essa área é conseguir intervir etica- DEJOURS, C. 2008. Addendum - Da psicopatologia
mente nesse contexto. à psicodinâmica do trabalho. In: S. LANCMAN;
A clínica da cooperação, brevemente apre- L.I. SZNELWAR (orgs.), Da psicopatologia à psico-
dinâmica do trabalho. Rio de Janeiro, Editora Fio-
sentada neste artigo, representa uma entre inú- cruz, Brasília, Paralelo, p. 49-106.
meras possibilidades de intervenção no con- DEJOURS, C. 2010. Clínica do Trabalho e Psiquia-
texto do trabalho. As limitações desta pesquisa tria: roteiro interdisciplinar. In: A. MENDES; A.
referem-se ao recorte que foi realizado a partir MERLO; C. MORRONE; E. FACAS (orgs.), Psi-

Contextos Clínicos, vol. 8, n. 2, julho-dezembro 2015 171


Clínica da cooperação: um caminho para a insurgência e a autonomia

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