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Memória:

articulações de narrativas e acepções do tempo


MOHANA RIBEIRO BARBOSA*

Resumo
O artigo tem por objetivo pensar as diversas concepções de tempo e suas
relações com a Memória no que se refere à formação de narrativas. Embora
seja uma construção de caráter mutável e repleta de subjetividades, a Memória
é muitas vezes encarada como uma fonte de verificação e legitimidade para a
História, gerando diversos problemas teóricos. Busco discutir os problemas
relativos à relação entre a memória enquanto construção afetiva e a História
enquanto ciência. Encontramos no cinema e na literatura um ponto de interface
com a História no que tange as vinculações entre tempo, memória e
esquecimento. Trata-se de uma análise acerca das formas de registrar ações e
percepções humanas no tempo, bem como do caráter sempre mutável da
Memória.
Palavras-chave: História, Lembrança, Esquecimento, Testemunho.
Abstract
The article aims to consider the different conceptions of the time and his
relationship with Memory as regards to the formation of narratives. Although it
is a construction of character changing and full of subjectivities the Memory is
often seen as a source of legitimacy and verification for History, generating
several theoretical problems. I seek discuss the problems concerning the
relationship between the Memory as subjective construction and the History as
a science. Found in cinema and literature a point of interface with the History
regarding the connections between the time, the memory and the forgetting.
This is an analysis about forms to record human actions and human perceptions
in the time, as well as the ever-changing character of Memory.
Key words: History, Memory, Forgetting, Testimony.

*
MOHANA RIBEIRO BARBOSA é Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Goiás.
A memória, encarada como capacidade que não está sendo vivenciado no tempo
de lembrar, de reter informações, e no espaço presentes. Paul Ricoeur
impressões e ideias, possui importância ressalta que a noção de distância
fundamental para o indivíduo, para a temporal é inerente à ideia de memória
formação de sua consciência, de sua e que, a princípio, é essa noção de
personalidade, de suas ações sobre o distanciamento que diferenciaria
mundo. A memória também é memória e imaginação (RICOEUR,
valorizada pelos historiadores, que ao 2007). A imaginação faz com que
escreverem seus trabalhos a encaram nossos pensamentos e lembranças
como fonte de verificação e de tornem-se imagens, a memória
legitimidade, uma aliada na busca pela enquanto rememoração transformaria
verdade. nossas lembranças em imagens
possíveis de serem compreendidas e
Embora já bastante criticada – desde
dotadas de significado.
Nietzsche que no interior de sua crítica
ao historicismo condenava os abusos no Mas se não há problema em supor que a
uso da memória por parte da História - imaginação está repleta de elementos do
essa busca pela verdade concreta ainda passado, mesmo quando voltada para
existe e por vezes ainda coloca a pensar o futuro, o mesmo não acontece
memória como o melhor caminho para com a memória. A vertente que encara a
se alcançar um registro fidedigno dos memória como fonte de informações
fatos. “certas” e precisas sobre o passado, não
aceita com facilidade que essa mesma
Em A Memória, a História, o
memória possa ser permeada de
Esquecimento Paul Ricoeur discute a
imaginação.
relação entre memória e imaginação,
reafirmando que nos discursos A confusão entre memória e imaginação
filosóficos e literários, desde a vem, segundo Ricoeur, levantando
antiguidade, são atribuídos à memória o problemas “tão antigos quanto a própria
compromisso de ser fiel ao passado, filosofia ocidental” (2007, p. 27), uma
justamente porque a memória seria o vez que admitir que a memória possa
único caminho seguro par nos levar até ser penetrada por ações, sentimentos e
aquilo que já passou e dotá-lo de lembranças do presente, ou de
significado em nosso presente. acontecimentos anteriores e posteriores
ao que se deseja lembrar, pode ser um
Em última análise, o que justifica
essa preferência pela memória golpe contra seu caráter de fidelidade ao
“certa” é a convicção de não passado.
termos outro recurso a respeito da A subjetividade e a imprecisão da
referência ao passado, senão a
memória é um fato bastante conhecido
própria memória (...).
no interior das ciências humanas. Mas,
Se podemos acusar a memória de embora os historiadores saibam que a
se mostrar pouco confiável, é memória é uma construção e não um
precisamente porque ela é nosso registro, ainda encontramos inúmeros
único recurso para significar o trabalhos onde a memória é utilizada
caráter passado daquilo que para legitimar e provar hipóteses, sendo,
declaramos nos lembrar.
portanto encarada como o caminho
(RICOEUR. 2007.p. 40)
“certo” e “seguro” para o passado.
Tanto a memória quanto a imaginação Percebemos que a questão não é apenas
têm a capacidade de representar algo repensar o papel da memória, mas
também refletir sobre os objetivos da estão sempre mudando, de acordo com
História enquanto ciência. as carências de cada época. Essa
característica tão básica do fazer história
Em seus estudos sobre o tempo e a
torna evidente que, ainda que fosse
memória, Henri Bergson concebe a vida
possível aos homens do passado
como criação, como algo que se move e
registrar suas memórias de forma
se transforma. A própria duração para
correta – tal como um carimbo em uma
Bergson é marcada pela mudança, pois
folha de papel - ainda assim essa
aquilo que não é marcado pela criação
memória não teria o mesmo significado
está morto, destruído, não pode durar.
para os seres humanos do futuro, uma
Nesse sentido a memória não é algo já
vez que os interesses se transformam ao
concretizado, um simples rastro do
longo da duração.
passado. A memória é algo a ser
realizado, não é um presente que já Sobre o trabalho de construção da
passou, mas uma criação a partir do História, Bergson nos fala ainda dos
presente. A memória é criativa, essa signos indicadores, traços de memória
criatividade vem das experiências do necessários para a (re)construção do
presente. Por esse motivo a memória passado, e destaca a relatividade desses
pode nos enganar, principalmente se for indicadores, uma vez que os fatos
encarada como fonte fiel do passado. considerados importantes em um
Essa questão, bastante complexa, pode determinado presente, não o eram – ou
ser melhor discutida a partir de uma poderiam não ser – no passado
citação da obra O Pensamento e o estudado.
Movente de Bergson: Transmitimos às gerações futuras
Queremos dizer que é preciso um aquilo que nos interessa, o que
feliz acaso, uma oportunidade nossa atenção fixa à luz de nossa
excepcional, para que notemos evolução passada, mas não o que o
justamente, na realidade presente, o futuro terá tornado interessante
que terá mais interesse para o para eles, através da criação de um
historiador futuro. Quando este interesse novo, de uma nova
historiador considerar esse presente direção imprimida à sua atenção.
para nós, ele aí procurará, Em outros termos, enfim, as
sobretudo a explicação de seu origens históricas do presente, no
presente, para ele, e, que ele tem de mais importante,
particularmente, daquilo que seu não poderiam ser completamente
presente conterá de novidade. elucidadas, pois não a
Dessa novidade, não poderemos ter reconstituiríamos integralmente, a
nenhuma idéia hoje, se ela é menos que o passado pudesse ter
criação. Como então nos sido expresso pelos
orientaríamos atualmente por ela contemporâneos em função de um
para escolher, entre os fatos, futuro indeterminado que era, por
aqueles que é preciso registrar, ou isto mesmo, imprevisível.
antes, para fabricar fatos recortando (BERGSON, 1979, p. 109)
segundo essa indicação a realidade Segundo Bergson, nossa lógica de
presente? (BERGSON, 1979, p.
pensamento é uma lógica da
109)
retrospecção que precisa buscar no
Sabemos que a história não estuda o passado – ao menos de forma virtual ou
passado pura e simplesmente, mas o faz em forma de possibilidade – as
a partir de questionamentos feitos no realidades atuais. Isso acontece, na
presente, questionamentos esses que concepção do autor, porque a lógica
utilizada para pensar o tempo não memória, bem como o papel da
admite que possa surgir algo novo imaginação na construção dessa última.
simplesmente a partir de uma mudança Um exemplo é o filme Spider
de percepção. As novidades se reservam (CRONENBERG, Canadá/Inglaterra,
apenas ao futuro, que é uma progressão 2002). Nesse filme, o personagem
do passado. Bergson utiliza como principal é um homem que tem a mente
exemplo para essa afirmação, a tentativa perturbada por uma confusão de
de encontrar elementos que lembranças e recalques. A vida do
caracterizavam o romantismo do século personagem central é um emaranhado
XIX na obra dos clássicos: de acontecimentos e recordações
obscuras, o que é representado por sua
Mas o aspecto romântico do obsessão por teias de aranha (ele
classicismo apenas se desprendeu,
próprio fabrica teias artificiais com
por efeito retroativo, do
romantismo uma vez aparecido. Se linhas) e pelo cenário do filme, bastante
não houvesse existido Rousseau, sombrio. O filme se passa em Londres e
Chateaubriand, Vigny, Victor a cidade aparece como um lugar
Hugo, não somente não teríamos excessivamente sujo e escuro.
percebido, mas não teria havido
realmente romantismo nos O personagem, chamado de Spider (um
clássicos, porque esse romantismo apelido dado por sua mãe devido a seu
dos clássicos só existe devido a hábito de confeccionar teias artificiais)
seleção de certos aspectos em suas viveu um grande trauma na infância, e o
obras, e essa seleção, na sua forma recalque desse trauma faz com que ele
particular, não existia na literatura viva constantemente em estado
clássica antes da aparição do psicótico. O filme tem início com a
romantismo (...) (BERGSON,
volta de Spider para Londres, depois de
1979, p. 109)
ter passado um longo período internado
Bergson alerta para o fato de que não é em uma instituição psiquiátrica. Ao
possível abandonar essa lógica de voltar para o lugar onde cresceu, Spider
retrospecção com a qual o tempo é tenta se lembrar de sua infância, mas
pensado, uma vez que o tempo histórico suas memórias são incompreensíveis, e
não é reversível, mas é preciso alargá- no interior de sua mente perturbada, os
la, é preciso adaptar essa lógica à uma acontecimentos vivenciados na infância
duração que está sempre mudando. A se confundem com seu próprio presente,
evolução é criadora, e as transformações enquanto o tempo em que passou
não modificam apenas o presente e o internado não existe. Percebemos, com
futuro, mas o próprio passado em seu o filme, que ao perder a capacidade de
significado. Nesse sentido, Flávia Bruno se orientar no tempo, ao ir
afirma que em Bergson “(...) o passado constantemente ao passado e considerá-
não sucede ao presente, ele coexiste lo uma realidade, Spider possui uma
com ele, mas não é a coexistência de espécie de dupla personalidade, uma
um passado particular. É, ao contrário, a vez que seu eu adulto e seu eu criança
coexistência do passado puro, isto é, de convivem juntos e ao mesmo tempo.
todo o passado, integralmente.” (Bruno,
2009, p. 8). O personagem vive aprisionado em suas
próprias memórias e essas memórias
O cinema nos fornece bons exemplos interferem na maneira como ele percebe
para pensar as confluências entre as o ambiente ao seu redor. Spider tenta
diversas concepções de tempo e a organizar a confusão de sua mente
anotando as próprias lembranças, porém sua vida, bastante marcada pela figura
em um determinado momento do filme do pai (figura que desperta ao mesmo
podemos visualizar seu caderno de tempo amor e medo. Em um ambiente
notas e perceber que elas não fazem que foi de absoluta liberdade para o
sentido, são um emaranhado de rabiscos narrador – a África – o pai representava
semelhantes às teias de aranha artificiais a disciplina excessiva e o poder
que ele fabrica. Ao perder a noção do colonial). As memórias desse narrador
tempo, Spider perde a capacidade não são traumáticas e obscuras como as
narrativa e entra em um estado de de Spider, são repletas de afetividade e
loucura, aqui compreendida como perda possuem ampla relação com os lugares
da noção de realidade e, e as paisagens.
consequentemente da capacidade
narrativa (MORAIS, 2011). Em O Africano os significados de
grande parte das memórias
A origem do trauma do personagem é autobiográficas do narrador só vão
apresentada durante o filme: Spider sendo reveladas na medida em que a
acredita que seu pai teria assassinado narrativa avança, esses significados vão
sua mãe quando ele ainda era criança. O surgindo na mente do narrador, na
pai assassino teria escondido o corpo da medida em que este organiza seus
mulher e colocado uma amante pensamentos, permitindo que
prostituta em seu lugar, tentando fazer sentimentos e lembranças que
com que o filho aceitasse a substituição. permaneciam no inconsciente cheguem
No filme, a princípio, essa lembrança a superfície. Isso evidencia que o
pode ter dois significados: a) é real e é o inconsciente não é apenas um lugar de
motivo da perturbação de Spider; b) recalque, um abrigo para experiências
Pode ser fruto de sua imaginação, uma traumáticas.
vez que o personagem possui uma
patologia mental. Em O Africano, assim como em Spider
as lembranças passam do inconsciente
Ao final do filme percebemos que
para o consciente de maneira
Spider, que desde a infância era incapaz
involuntária a partir de sensações:
de diferenciar imaginação de realidade,
matou acidentalmente a própria mãe, Ás vezes, no entanto, vou andando
que ele amava profundamente, o horror ao acaso pelas ruas de uma cidade
de tal acontecimento faz com que sua e, bruscamente, ao passar por uma
lembrança seja apagada, tornando-se porta, na parte baixa de um imóvel
uma memória recalque, que é em construção, aspiro aquele cheiro
substituída, por meio de um mecanismo frio de cimento recém molhado e
de defesa, por uma memória cuja eis que estou na choupana de
passagem de Abakaliki (...) (Le
aceitação é menos dolorosa. A memória
Clézio,2007 p. 119)
recalque volta para a consciência de
Spider de forma involuntária, No caso do livro há uma estreita ligação
impulsionada por uma série de entre as lembranças e o próprio corpo:
sensações – cheiros, imagens, sons - que
são (re) vividas por Spider ao retornar A África era mais corpo que rosto.
ao lugar onde tudo aconteceu. Era a violência das sensações, a
violência dos apetites, a violência
Outro exemplo a ser destacado é o livro das estações. A primeira lembrança
O Africano (2007), escrito por Le que tenho desse continente é de
Clézio, o narrador conta a história de meu corpo coberto por uma erupção
de bolhinhas causadas pelo extremo Os trabalhos de Levi são diferentes da
calor (...) (Le Clézio, p. 12) maioria dos textos autobiográficos, pois
o autor não narra propriamente a
No livro de Le Clézio percebemos que a história de sua vida, ele escreve sobre a
narração não tem a pretensão de ser experiência de sobreviver. Mario
aceita como absolutamente verídica, Barenghi afirma que a obra de Levi,
como um relato totalmente verdadeiro definida por ele como “A mais
da infância de um menino europeu na importante experiência memorialística
África. As memórias contidas no livro, do século XX tardio” é diferente de
antes de serem “verdadeiras”, são outros trabalhos de cunho biográfico,
memórias “necessárias”, talvez até pois nele não encontramos a trajetória
idealizadas. É preciso guardar essas da construção de uma identidade, mas a
memórias, preservá-las com carinho, imposição de uma não–identidade.
pois é bom revivê-las, elas representam (BARENGHI, 2005)
um refúgio tranquilo e livre na história
da vida que nos é contada. A questão do esquecimento – abordada
diversas vezes através do termo
Foi aqui, neste cenário, que vivi os “desmemória” é amplamente discutida
momentos da minha vida selvagem, pelo autor em três momentos
livre, quase perigosa. Uma específicos:
liberdade de movimentos,
pensamentos e emoções que nunca a) No que se refere à
conheci depois. As lembranças por esmagadora maioria de não
certo enganam. Essa vida de sobreviventes, que na visão do
liberdade total, eu a terei, sem autor são as pessoas que
dúvida, mais sonhado que vivido realmente chegaram ao fundo,
(...) Os dias de Ogoja tinham se “viram a Górgona” e cujas vozes
tornado então meu tesouro, o jamais serão ouvidas.
passado luminoso que eu não podia
perder. (Le Clézio, 2007 p. 18-19). b) Quando menciona os
sobreviventes que não
Muito se fala a respeito da memória conseguem ou não suportam
atuando na formação da identidade, falar sobre suas experiências,
tanto individual quanto de um povo, uma vez que ao recordá-las
entretanto cabe-nos pensar também na trazem de volta,
existência do esquecimento e em suas involuntariamente, parte do
consequências – e mesmo em sua terror vivenciado. Trata-se de
função – para a sociedade e para uma busca pelo esquecimento.
história. Com o objetivo de pensar essa
c) O terceiro momento onde
questão, destaco o trabalho de Primo
Levi trata do esquecimento é
Levi, judeu sobrevivente de Auschwitz.
quando pensa “o opressor” 1: os
Em seu livro Os afogados e os
nazistas que mandaram construir
sobreviventes (2004), Levi registra suas
fornos crematórios; a população
memórias enquanto sobrevivente do
civil que se calou diante do que
Holocausto, buscando fornecer mais
acontecia porque “não sabia” e
que um simples testemunho, mas
também reflexões sobre o significado
1
dos episódios vivenciados por ele e “Vítima” e “opressor” são termos utilizados
principalmente por aqueles que não por Primo Levi, mas vale destacar que o autor
não defende, e se esforça para não utilizar,
sobreviveram.
dualismos simplificadores em seus livros.
não procurou saber o que estava que na crônica retrospectiva. (Levi,
acontecendo; e todos aqueles 2004. p. 29.)
que “apenas cumpriram ordens”. Nesse aspecto a obra de Levi apresenta
Aqui Levi trabalha com uma característica paradoxal e
memórias forjadas, camufladas, extremamente interessante, pois embora
com “verdades de o próprio autor tenha alertado sobre as
conveniência”, e afirma que, muitas falhas da memória enquanto
nesse caso específico, é fonte de verdade e certeza, seu trabalho
impossível diferenciar quando o foi e ainda é encarado como um
esquecimento e a negação são registro, uma fonte de conhecimento
forjados e quando são sobre o Holocausto, considerado por
verdadeiros. Nesse ponto o autor muitos a maior tragédia do século XX.
percebe uma analogia entre a
vítima e o opressor, uma vez que Entretanto, Levi destaca que o que deve
o opressor também sofre com a ser considerado em sua obra, e na obra
lembrança do que ocorreu. A de outros sobreviventes, é justamente
consciência do absurdo aqueles que não sobreviveram e nunca
praticado faz com que esse poderão testemunhar. O que é relevante
opressor busque uma verdade na concepção de Levi, mais do que
alternativa, algo que diminua sua ouvir e ler relatos de sobreviventes de
culpa e sua vergonha, nesse Auschwitz e de outros campos, é pensar
processo ele vai da mentira ao acerca dos “afogados”, refletir sobre
auto - engano, camufla e aqueles cujas histórias nunca serão
modifica a própria memória e ouvidas e cujos nomes serão
acredita nela. esquecidos. Esse ponto é comum em
muitos trabalhos referentes ao
Primo Levi deixa claro que seu trabalho Holocausto, nos relatórios de objetos
não tem a pretensão de ser uma obra que pertenceram a pessoas
historiográfica, trata-se de uma desconhecidas, nas fotografias de
“memória”, de uma “recordação”, de crianças assassinadas, nas roupas, nos
uma “lembrança”, e esses termos são escritos. O que fica em destaque não é a
empregados pelo autor no sentido mais memória, mas o esquecimento.
comum e tradicional das palavras. Levi (DANZIGER, 2004)
não é um historiador, nem um filósofo e “De resto toda a história do curto Reich
não tem pretensão de sê-lo. Levi vive Milenar pode ser relida como guerra
uma situação limite e seu objetivo ao contra a memória” (LEVI, 2004, p. 26).
escrever e dar um testemunho, que ele Essa guerra contra a memória pode ser
sabe que jamais poderia ser imparcial. compreendida em duas dimensões:

Uma defesa é necessária. Este a) uma guerra contra os fatos,


mesmo livro está embebido de uma tentativa de apagar os
memória: ainda por cima, de uma absurdos cometidos durante a
memória distante. Serve-se, guerra.
portanto, de uma fonte suspeita, e
deve ser defendido contra si b) Uma tentativa de apagar a
mesmo. Daí que contenha mais memória individual de cada
considerações do que lembranças, prisioneiro dos campos de
se detém de boa vontade mais ao concentração. Os prisioneiros
estado da coisa tal como é hoje do tinham seus objetos pessoais
expropriados, eram afastados de poucos sobreviventes, escrever é quase
suas casas, não tinham acesso a uma obrigação para com aqueles que
nenhuma fonte material de não sobreviveram, que foram afogados
memória: fotografias, livros, e serão esquecidos.
nem mesmo roupas. Até mesmo
A obra de Levi é marcada pela busca
a individualidade de seu corpo
por compreensão, a escrita do autor
era destruída, uma vez que seus
consiste muitas vezes em um esforço de
cabelos eram raspados e sua
superação da comoção que suas
aparência física completamente
memórias causam (nele mesmo e
transformada. A perda da
também nos leitores), é preciso
memória individual leva a perda
racionalizar e tentar compreender os
da própria humanidade, ao
acontecimentos, essa é a única maneira
aniquilamento moral e a sujeição
de evitar que fatos terríveis como os
psicológica.
vivenciados em Auschwitz venham a se
Primo Levi enfatiza que o principal repetir.
objetivo de sua obra não é fornecer Nesse sentido o autor se posiciona em
relatos chocantes sobre as atrocidades oposição às narrativas que afastam os
cometidas durante a Segunda Guerra crimes cometidos em campos de
Mundial, nem formular acusações concentração e extermínio da “vida
contra as pessoas que planejaram e real”, buscando construir a ideia de que
permitiram a existência de campos de esses fatos foram frutos de uma
extermínio. O que o motiva a escrever insanidade coletiva e de mentes
seus relatos é a vontade que tem de diabólicas, algo isolado no tempo e no
fornecer documentos que auxiliem na espaço e que não voltará a se repetir.
compreensão do que aconteceu. Levi Levi compreende que, embora o horror
deseja que seu depoimento possa dizer testemunhado por ele pareça absurdo
algo significativo sobre o homem e sua demais para ser colocado no interior da
natureza. história real, foram produzidos por seres
racionais. Daí a dificuldade de
O autor tem consciência de que ter compreender tais fatos. A luta travada
sobrevivido à Auschwitz não o torna pelo autor contra suas próprias
uma autoridade no assunto. Levi sabe angústias e a afetividade de sua
que são muitos os elementos que podem memória se estende ao leitor, que ao
interferir na “pureza” de suas tomar conhecimento dos fatos narrados
lembranças: suas experiências é levado a refletir sobre seu papel
vivenciadas após 1945, os relatos de enquanto testemunha e participante da
outros sobreviventes com os quais o história.
autor teve contato, as expectativas e os
questionamentos de seus leitores. Mas
ainda sente que escrever é uma
necessidade, pois é um sobrevivente,
viveu uma experiência limite, marcante
e significativa, não apenas para os
estudos referentes à Segunda Guerra
Mundial e ao Holocausto, mas para a
própria compreensão do que o autor
define como a “alma humana”. Além
disso, diante do fato de ser um dos
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