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ORGANIZADORES

Juliana Pacheco
Nelson Nunes
Narrativas de vida dos trabalhadores
terceirizados do CEFET-MG
Campus I
Copyright © by CEFET-MG
Todos os direitos reservados.

N234 Narrativas de vida dos trabalhadores terceirizados do CEFET-MG


campus I / Juliana Pacheco, Nelson Nunes (organizadores).
Belo Horizonte: CEFET-MG, 2020.

136 p. : il. Narrativas de vida dos trabalhadores


ISBN: 978-85-99872-54-3 terceirizados do CEFET-MG
Campus I
1. Escrita – narrativas pessoais. 2. Escritos de trabalhadores
brasileiros. 3. Extensão universitária. I. Pacheco, Juliana. II.
Nunes, Nelson. III. Título.

CDD: 920
1º Edição

Ficha elaborada pela Biblioteca Campus I CEFET MG Belo Horizonte | 2020


Bibliotecário:Leôncio d Assumpção CRB6 3348
Organização Equipe do projeto
Juliana Pacheco Adriana de Paula Reis
Nelson Nunes Alcione Gonçalves
Arthur Anderson Quadra Alves da Silva
Professores responsáveis pela atividade Beatriz Electo Maciel
de produção dos textos Bruna Fontes Ferraz
Bruna Fontes Ferraz Cláudio Humberto Lessa
Cláudio Humberto Lessa Edna Vieira da Silva
Mariana Jafet Cestari Evandro Andrade Carneiro
Juliana Pacheco
Revisão Kênia Mara da Silva Chagas
Bruna Fontes Ferraz Laís Silva
Juliana Pacheco Mariana Jafet Cestari
Nelson Nunes Nelson Nunes
Sergio Roberto Gomide Filho
Edição
Bruna Fontes Ferraz Colaboração
Nelson Nunes Abelardo Bento Araújo
Ana Flávia Silva Pinto
Entrevistas Brígida Mattos Ornelas
Adriana de Paula Reis Cláudia Gomes França
Arthur Anderson Quadra Alves da Silva Cláudia Lommez de Oliveira
Nelson Nunes Elisa Avelar
Radija Ohana
Transcrição Hugo Seemann
Adriana Reis Igor Guilherme Tameirão de Jesus
Alessandra Silva Pinto Júlio Cezar de Oliveira Sardinha
Crisitna Xavier Cordeiro Lorena Fernandes
Nelson Nunes Pollyanna de Mattos de Moura Vecchio
Priscila de Souza Maciel
Diagramação e Ilustração Thalyta Martins Gonzaga
Brígida Mattos Ornelas Thiago Guedes de Oliveira
Financiamento
Financiamento Sumário
Centro
Centro Federal
Federalde
deEducação
EducaçãoTecnológica
Tecnológicade
deMinas
MinasGerais
Gerais
Diretoria
Diretoria de
deExtensão
ExtensãoeeDesenvolvimento
DesenvolvimentoComunitário
Comunitáriododo Derrubando muros, compartilhando sonhos
Cefet- Juliana Pacheco e Nelson Nunes 12
Cefet- MG
MG(DEDC)
(DEDC)através
atravésdo
doEdital
EditalCefet
CefetEXT
EXT2018
2018

Prefácio
Mariana Cestari 17

Autobiografias
Adão Matias da Silva 20

Adilson Pereira Estevão 21

Adrianne Cristina Batista da Silva 22


Execução
Aline da Silva Santos 24

Claudete da Silva 27

Cláudia Aparecida dos Santos 30

Cleuza Maria Dias Lopes 35

Donizete Soares Ferreira 38

Ediléia Oliveira Pinto 43

Eliana de Oliveira 44

Apoio Elizabeth das Graças Coelho 46

Flávia Cristina Silva 47

Francislaine dos Santos De Moraes 50

Helvécio Alaécio de Jesus 56

Joelita Francisca da Cruz 57

José Carlos Venâncio Moreira 58

Josefa Antonia de Jesus 61

Julimar Rodrigues dos Santos 62

Jussara Mendes Rodrigues 69


Lidiana Marques Aniceto 70

Maria Aparecida Procópio 72


Maria Ivonete de Barros 73

Maria Silvana Alves 75

Marinete Araújo Sena 76

Onofre Lopes da Costa 77

Patrícia Isabel Oliveira Niles 79

Paulo Santos Crisóstomo 83

Reinaldo Gonçalves Santos 90

Ronaldo Oliveira Mendes 95

Vânia Antunes 103

Vera Lúcia dos Reis 106

Vera Lucia Lopes dos Santos 108

Wanderlei Pereira de Araujo 111

Wesley Gondinho dos Santos 114

Cheguei à conclusão de que não necessitamos


As vozes de quem faz o Brasil
Adriana de Paula Reis 119 perguntar nada a ninguém. Com o decorrer
do tempo vamos tomando conhecimento de
Reflexões de uma professora-alfabetizada
Beatriz Electo Maciel 124 tudo.
Carolina Maria de Jesus
“Amor palavra que liberta”: conhecendo a história de
vida dos terceirizados do CEFET-MG
Bruna Fontes Ferraz 127

Por uma educação emancipadora Eu não nasci rodeada de livros e, sim,


Cláudio Humberto Lessa 131 rodeada de palavras.
Conceição Evaristo
Derrubando Muros, esta história. Certa manhã de 2016, Cida me pediu que
Compartilhando Sonhos colocasse o seu celular para despertar, pois ela estava
Juliana Pacheco e Nelson Nunes tendo dificuldades em manuseá-lo. Prontamente
ofereci ajuda, mas me espantei quando ela me informou
Abstrato e concreto, teoria e prática. Ao cruzar uma que o horário que eu deveria colocar era às 3h da
dessas linhas e mesclar conhecimento e ação, o mundo manhã. Quando Cida saiu da sala, imediatamente
muda. Mas nem todos têm coragem de quebrar o muro tive a certeza de que gostaria de conhecer um pouco
que separa o espaço do saber do espaço da aplicação. mais das histórias desses colegas, e, assim, aliada ao
Ao tentar mudar o nosso mundo, as teorias começam Nelson, resolvemos escrever o projeto “A escrita de Si
a falhar e a prática se mostra muito mais difícil do que como instrumento de Visibilidade para os terceirizados
previsto. Se é assim com números e objetos, imaginem do CEFET-MG”.
como é com pessoas? Mas é aí que o desafio se torna
mais saboroso. Ao se trabalhar com sujeitos, a troca Retomamos, novamente, a fala conjunta. Desde então,
é certa e, geralmente, ganhamos muito mais do que foi muito trabalho para transformar a nossa vontade
conseguimos oferecer. abstrata de proporcionar aos terceirizados do CEFET-
MG o sentimento de pertencimento que eles merecem e
Em maio de 2016, nós (Juliana Pacheco e Nelson de fazer com que a instituição os reconhecesse em uma
Nunes) cruzamos essa linha ao elaborar um projeto de ação concreta, que tornasse esse sonho realidade.
extensão que tivesse como objetivo um curso de escrita
para os trabalhadores terceirizados do CEFET-MG. O projeto foi submetido a editais de extensão em 2016
e não foi aprovado. Só em 2018, quando foi novamente
O mote para tal foi o encontro de Cida e Juliana: a colocado para avaliação, recebemos a aprovação. Tinha
primeira é trabalhadora terceirizada do CEFET-MG, e que ser. Com a presença de professores e de bolsistas,
a segunda, Asistente em administração. Eu, Juliana, a comunhão foi perfeita. Tínhamos e temos uma
assumo, portanto, a escrita deste parágrafo para contar equipe apaixonada por gente. Com tanto desafios, a

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participação de colaboradores, que foram se juntando Nas aulas, o aprendizado formal vem também com
à equipe, ora de maneira espontânea ora aceitando debates que proporcionam pensar sobre a própria
nosso convite, formou um grupo que colocou razão e realidade, sobre o trabalho e sobre as relações sociais.
coração, conhecimento e paixão no trabalho, com o A sede de conhecimento despertada pelo curso levou
intuito de dar aos nossos estudantes tudo o que eles alguns dos estudantes ao Exame Nacional para
mereciam e esperavam. Certificação de Competências de Jovens e Adultos
(Encceja) e também proporcionou novas perspectivas
As nossas expectativas e, temos certeza, as deles eram para todos. Antes de completar um ano de projeto,
altas. Depois de seis meses pensando e organizando alguns alunos já haviam eliminado disciplinas do
as ações, em fevereiro de 2019 começaram as aulas. Ensino Médio e do Ensino Fundamental através da
Quase três anos depois daquele encontro, finalmente aprovação no Encceja.
o abstrato e o concreto, a teoria e a prática tornaram-
se uma coisa só. E foi muito melhor do que nós As experiências enriquecedoras vividas pelos estudantes
esperávamos. Houve cumplicidade instantânea entre que foram compartilhadas em sala de aula dariam
os estudantes e a equipe, a curiosidade e as demandas um livro para cada um deles. Contudo, vamos reunir,
de ambos os lados fizeram o projeto crescer e tornar- nesta obra, o que eles produziram sobre si mesmos e
se imprescindível tanto para quem ia às aulas, quanto que decidiram apresentar ao mundo. Esse também é
para os que trabalhavam nos bastidores. As aulas eram um ato de tornar concretas as atividades abstratas que
desafiadoras tanto para a equipe, quanto para os alunos, foram desenvolvidas no curso. Este livro contêm textos
e, assim, fomos aprendendo juntos e construindo um autobiográficos que foram elaborados em sala de aula,
alicerce fincado na democratização do conhecimento, relatos orais autobiográficos transcritos e textos da
na popularização da ciência e no compartilhamento de equipe. Ao final foi realizada uma revisão levando em
experiências e histórias de forma horizontal. conta os aspectos ortográficos, concordância sintática
verbal e nominal, paragrafação e pontuação.

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As estruturas centenárias do CEFET-MG reproduzem as Prefácio
desigualdades existentes no mundo e, principalmente,
no país. Os trabalhadores manuais são, provavelmente, A seguir, podem ser lidas narrativas de vida produzidas
os mais importantes quando fazem seu trabalho, mas no âmbito de um projeto de extensão que certamente já
também os mais relegados quando não estão no seu virou referência na trajetória e no cotidiano do CEFET-
labor. Mudar esse arranjo mental e social não é fácil MG: A Escrita de Si. As trabalhadoras e os trabalhadores
e não é rápido, mas esperamos que outras iniciativas terceirizados participantes do projeto durante o ano de
que valorizem os terceirizados ocorram para que, pelo 2019 realizaram uma série de atividades didáticas em
menos dentro do nosso trabalho, possamos derrubar torno de textos diversos, com destaque para a produção
alguns dos muros que cultivamos. Acreditamos nas das grandes escritoras brasileiras Carolina Maria de
políticas inclusivas para que as pessoas invisibilizadas Jesus e Conceição Evaristo. Um dos resultados do
pelo Estado possam ter as mesmas oportunidades dos processo de ensino-aprendizagem foi a escrita dos
demais. textos reunidos no volume que você tem em mãos. Esse
é um jeito de apresentar e de se compreender o que é
este livro.
Nós dois sonhamos juntos um sonho inclusivo, no
qual cada um dos participantes – bolsista, docente ou Convido cada leitor(a) a uma perspectiva um pouco
estudante – é responsável por incluir seu pedacinho de diferente. Nas páginas seguintes, podemos ler a escrita
sonho para crescermos juntos.   de si e a história se fazendo no que as palavras dizem e
no que elas calam. Podemos ouvir as cadeiras e carteiras
se arrastando, o burburinho e o silêncio que tomam
conta quando um tema polêmico ou doloroso surge nas
aulas. Também podemos flagrar alguns momentos de
insurgência da palavra contra o silenciamento histórico.
Foi o caso de um relato de racismo feito em sala por uma

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senhora para lá de corajosa, depois ecoado pelas vozes de Isso ainda seria pouco: podemos ler mais, como
colegas que compartilhavam experiências semelhantes nos propõe Paulo Freire, bell hooks e tantos que
àquela narrada. Esses relatos viraram uma atividade de inspiram A Escrita de Si e outras práticas de educação
denúncia no espaço escolar. comprometidas com os saberes do povo, com a vida
e com a liberdade. Ler o mundo dos sujeitos que se
Com atenção, sem fazer alarde, podemos perceber uma percebem, se reconhecem ou mesmo se desconhecem
lágrima escapulida e logo disfarçada em uma história quando leem, discutem e escrevem sobre a sociedade
sobre a mãe e o irmão que já se foram. Escutar no sorriso atravessada por desigualdades, que afetam o acesso a
de canto de rosto as gargalhadas de uma narrativa que muitos direitos sociais, como os direitos à escolarização,
era contada nos tempos de criança. Nos olhos parados à leitura, à escrita e à norma padrão da língua. Cada
diante da folha em branco, a vergonha, o desafio, o narrativa participa de um movimento de inscrição
desejo? Nos passos apressados no corredor, podemos do sujeito no texto e na história por meio da palavra
observar os professores ansiosos e empolgados, escrita ou oral. E esse gesto de escrever sobre si como
carregando livros, papéis coloridos e o coração satisfeito parte do retorno aos bancos escolares interditados,
pelo aprendizado que vivenciam e proporcionam. em algum momento, à maioria das autoras e autores
Pelas frestas das portas, podemos espiar as rodas de que vocês conhecerão nas próximas páginas produz
estudantes, as mãos acostumadas com a labuta se transformações tantas que não tem livro que comporte
tocando pela primeira vez de forma tímida em um jogo sua grandeza. Que os nomes próprios e as histórias
proposto para se apreender a sonoridade da poesia. particulares que se apresentam aos nossos sentidos
Ah, o som do lápis traçando com capricho uma letra, contribuam para a visibilidade e para a escuta das
uma frase, a estrofe de um poema! Sem dizer do cheiro vozes dessas pessoas, de suas lutas pelo sustento, pelo
do pão de queijo fresquinho e das especiarias de um conhecimento e pelos seus sonhos.
bolo aguardado em um encontro de confraternização do
projeto. São as saudades ou, infelizmente, as dores da
infância nas memórias partilhadas sobre quando o pão Mariana Jafet Cestari
faltou. 27 de junho de 2020

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Adão Matias da Silva Adilson Pereira Estevão
Autobiografia oral transcrita O meu nome é Adilson Pereira Estevão. Nasci em
Contagem, Minas Gerais, onde passei minha infância
com minha mãe, Onízia Pereira Estevão, que era uma
Eu sou Adão Matias da Silva. Nasci em Mantema, Minas pessoa muito boa, e meus oito irmãos. Estudei até a 7ª
Gerais. Tenho 65 anos. Já trabalhei em marmoraria, série na Escola Estadual Padre Henrique Brandão.
também já fui porteiro e vigia. No CEFET trabalho há
5 anos e 8 meses. Meu sonho é construir minha casa Hoje tenho 48 anos, sou jardineiro, estoquista e
no lote que tenho e comprar um sitiozinho em Três faxineiro e moro com meus cinco irmãos.
Marias. Eu estou juntando dinheiro para isso. Eu não
paro não. Nesse ano devo aposentar. Quero cuidar das Moro no bairro Madre Gertrudes, conhecido como
plantações e pescar. Favelinha, lá é muito bom. Pena que eu já perdi meu
pai e minha mãe! Na Favelinha, eu perdi muitos irmãos.
Mas é legal viver lá, é meu lugar preferido. Deus é fiel!

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No projeto A Escrita De Si, voltei a ler e a exercitar
minha mente. Tem sido uma experiência incrível! Neste
ano de 2020, estou iniciando uma nova trajetória no
projeto e, agora, vai ter mais matérias, o que para mim
é muito gratificante.

Nos tempos livres, gosto de ir ao cinema, a lugares


abertos, como sítios e parques, onde posso ver a
natureza, que me faz tão bem. Gosto também de ver
vídeos instrutivos, que me ensinam sobre algo que me
Adrianne Cristina interessa. Isso tudo, para mim, é espetacular!
Batista da Silva
Tenho expectativa de voltar aos estudos para aprender
Eu sou Adrianne Cristina Batista da Silva, nasci no dia
uma profissão e poder ter maiores planos no futuro.
18 de abril de 1994 em Belo Horizonte. Os meus pais
se chamam Rívea e Carlos e tenho mais 5 irmãos. Fiz
o 2º grau completo nas escolas Hermenegildo Chaves e
Maria do Socorro Andrade.

Desde os 16 anos trabalho. Já trabalhei no comércio,


em salão de beleza, em supermercados, onde exercia a
função de operadora de caixa.

Atualmente sou faxineira na empresa Conservo. Sou


amasiada e não tenho filhos.

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mas há cinco anos teve um AVC. Ele ainda está se
recuperando. Minha mãe é diarista, sempre batalhou
para nos criar.

Fui para a escola pela primeira vez aos 7 anos.


Eu chorava demais, não queria ficar lá, pois era
muito tímida e envergonhada, mas, depois, fui me
acostumando. Gostava de Matemática e de Educação
Física. Meu esporte favorito é o futebol. Participei de
vários campeonatos de futsal durante meu tempo de
Aline da Silva Santos escola.

Eu nasci em Betim. Tenho 6 irmãos: uma de 25 anos, Escrever redação sempre foi difícil para mim. Antes eu
um de 24, uma de 17, uma de 14 e um pequeno de 2 gostava de ler, mas agora o tempo é muito corrido. Eu
anos. Moro em um bairro pequeno, em uma roça que passei por 3 escolas. Comecei a trabalhar com 17 anos
possui fossa, não tem rede de esgoto e a empresa de como embaladora em um supermercado. Trabalhava
água cobra caro. Os vizinhos são bons. das 14h às 22h. Chegava tarde em casa e tinha que
levantar às 5h da manhã, por isso não consegui
Tenho 23 anos e sou casada há 1 ano. Meu marido é continuar a estudar. Dormia na sala de aula.
bombeiro hidráulico. Moramos perto da casa dos meus
pais. Quando eu saí desse trabalho no supermercado, porque
a gerente era muito arrogante, voltei a estudar, mas
Eu e meus irmãos ajudamos nossos pais a catar parei de novo. Em 2018, fiz EJA (Educação de jovens
materiais recicláveis, nas tarefas de casa, na criação e adultos) e me formei no Ensino Médio na Escola
dos animais (porcos e galinhas). Meu pai é pedreiro, Estadual Gabriel Passos.

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Em outubro de 2018, comecei a trabalhar no CEFET.
Fiz a entrevista no dia do meu aniversario, no dia 17 de
setembro. No começo, era “ferista”, o horário mudava
todo mês. Foi muita correria, mas consegui permanecer.
Foi bem puxado! Conciliar o trabalho com os estudos
não é nada fácil. Além disso, o serviço é muito longe
de casa, gasto cerca de uma hora ou mais para fazer o
deslocamento de casa para o trabalho e a escola onde
fiz EJA fica em outro bairro, longe também. Foi com
muito esforço e dedicação que consegui conquistar
mais um objetivo em minha vida e concluir o Ensino Claudete da Silva
Médio.
Minha família veio do norte de Minas: meu pai é de
Pretendo tirar minha carteira de motorista e fazer um Nanuque e minha mãe, de Bocaiúva. Somos seis filhos.
curso de Engenharia Mecânica ou Gastronomia, para Todos os meus irmãos são de Montes Claros, eu fui
conseguir um serviço melhor na área que eu gosto. privilegiada, nasci em Belo Horizonte, a única a nascer
em um hospital. Como se diz, sou a rapa do tacho.
Todos diziam que eu era diferente dos meus irmãos
por ter a pele mais clara, cabelos encaracolados e
loiros, e bochechas rosadas. Por isso meus irmãos me
colocaram um apelido: macarrão da Santa Casa.

Lembro-me da escola, que tempo bom! Estudei na


Escola Municipal Eliza Buzelim, no bairro Piratininga.
Quando soava o sinal, fazíamos fila para cantar o hino
nacional. A melhor professora era a da minha classe, se

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chamava Dulce e lecionava Comunicação e Expressão. emprego, com apenas 17 anos de idade, era temporário,
Eu gostava do recreio, das brincadeiras, da merenda por contrato em época de natal, e exerci a função de
então... eu chegava a repetir a comida, servida em balconista na antiga Lojas Brasilia. Acabei ficando
pratos de alumínio e caneca de plástico. O que eu mais lá por dois anos. Depois fui balconista de padaria na
gostava era o arroz temperado. Tinha também uma rua da Bahia. Trabalhei também em restaurantes, fui
professora de Educação Física, seu nome era Marcela babysitter, faxineira, cuidei de idoso e, agora, estou no
e, a cada brincadeira, ela nos dava um pirulito. Ah, que CEFET. Aqui é muito prazeroso, sou amiga de todos,
saudade! gosto dos meus encarregados, que me aconselham.
Sempre aprendo bastante com eles.
Eu fui muito levada no primário, batia nos colegas e
desabotoava as saias das meninas. Minha mãe sempre Depois de tantos anos longe da escola, através do
tinha que ir à escola, mas, mesmo levada, sempre projeto “A escrita de si”, tive a oportunidade de terminar
tirava nota dez. Com o tempo fui para o ginásio e o Ensino Fundamental, conciliando os estudos com o
mudei meu comportamento. Estudei até a sétima série, trabalho. Sou grata por tudo e espero ir mais longe,
tive que sair por ter engravidado. Aí a vida começou a concluir o Ensino Médio e me formar fiscal de vigilância
ficar difícil. Casei sem amor, pois queria sair de casa. sanitária. Este é o meu sonho: levantar, com muito
Fiquei casada por seis anos. Veio a separação devido orgulho, um canudo com o meu diploma!
às traições do meu marido. Fui pai e mãe, sempre
trabalhando fora. Venci! Hoje meus dois filhos são
meu orgulho. Minha filha Brígida me deu duas netas,
Izadora e Izabely, meus xodós. Meu filho Jhonatan já
quer casar, um ótimo filho. Sou uma pessoa feliz.

Quanto à vida profissional, me senti muito importante


quando tirei minha carteira de trabalho. Meu primeiro

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muito bom! Eu estudei na Escola Ápio Cardoso. Esse
foi um dos melhores períodos da minha vida. Ah! Eu
gostava das brincadeiras, das matérias e tinha uma
professora que era o meu xodó. As matérias que eu
mais gostava eram História, Ciências e Português. Eu
estudei até a sétima série, até quando pude estudar.
Foi uma época muito boa, aprendi bastante coisa.

Os meus namoros de adolescência me afastaram da


escola. Então, fui para a EJA, onde eu aprendi muito. Já
Cláudia Aparecida dos Santos estava casada, com dois filhos e uma família formada.
Na época, eu só cuidava dos meus filhos e da casa, mas
Eu nasci na cidade de Contagem. Nasci bem no centro me arrependi de não ter me formado.
de Contagem, perto do comércio e de onde todo mundo
trabalha. Lá eu me sinto bem. É uma cidade que eu Na EJA, o conteúdo era bem explicado, e a turma
gosto bastante. também era bem unida e isso me estimulava bastante.
Lembro-me de uma vez, quando estudávamos “verbo”.
Tenho uma família bem unida: nós somos quatro A minha professora batia bastante na tecla e eu fui
irmãos e somos amigos e parceiros. A minha infância praticando e comecei a gostar. Achava que era uma
foi tranquila, saudável, com a minha família: tudo forma diferente de ensinar, ela enfatizava bastante,
transcorreu muito bem. ensinando e explicando.

Nos meus primeiros anos na escola, eu gostava da Hoje eu gosto de estudar. A escola é muito importante,
professora, de brincar na rua com as crianças e de correr é uma porta, um caminho para a gente chegar ao
bastante. Gostava de bater papo com a vizinhança: era sucesso e ter uma carreira profissional. Quando meus

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filhos foram crescendo e eu tive segurança de deixá- que me aceitaram do jeito que eu sou. Eu tenho prazer
los em casa, resolvi iniciar minha carreira profissional. de vir trabalhar todos os dias. A cada amanhecer,
Eu sou bastante responsável naquilo que eu faço, eu encontro um sorriso, um abraço, um aperto de mão.
sou mãe, sou profissional e as outras coisas serão Tudo isso faz com que eu me sinta renovada. O
acrescentadas de acordo com a necessidade. reconhecimento que recebo das pessoas é o que me
motiva todos os dias.
Minha primeira experiência de emprego foi traumática.
Eu não tinha, na verdade, experiência nenhuma. Eu não Quando eu fiquei sabendo do projeto “A escrita de si”,
tinha conhecimento do que era uma vida profissional, fiquei muito feliz. Eu tinha certeza de que algo ia ser
do que era trabalhar com o público, com as pessoas. acrescentado na minha vida, como está acontecendo.
O tempo, as pessoas e os verdadeiros amigos que eu Então, a cada vez que eu saio da aula e que retorno
encontrei me deram um alicerce para chegar onde eu para minha casa, vou com meu coração cheio. Eu tenho
estou. Eu falo que eles são anjos na minha vida. Eles aprendido muito! Fico esperando sempre a próxima
me ajudaram a ser quem eu sou hoje, a enxergar a vida semana para uma nova aula. Eu gosto das atividades,
de uma maneira diferente. dos temas discutidos.

Tive outros empregos sem carteira assinada, que Vejo o CEFET como uma Instituição que ensina,
também me deram experiência, mas o maior retorno que leva o aluno e seus profissionais para frente. Eu
que eu tive foi aqui dentro do CEFET. Aqui aprendo procuro ser a melhor profissional possível. Falo todos
todos os dias da minha vida o que é lidar com público, os dias: quando entro na portaria do CEFET, eu sou
com as pessoas e a como tratá-las. São conhecimentos a profissional e os meus problemas e dificuldades
que eu quero levar para vida toda, todos os dias. ficam lá fora. Eu procuro ser amiga, parceira, ajudar e
colaborar sempre que precisarem. E me sinto realizada
Eu amo trabalhar no CEFET, porque aqui eu tenho por isso, é o que eu gosto de fazer.
amigos. São pessoas acolhedoras que me abraçaram,

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Hoje a minha vida se resume em poucas palavras e
pessoas: eu, meus dois filhos e meu netinho. Procuro
ser pai e mãe, além de amiga e companheira, alguém
que está presente o tempo todo ao lado deles. Não abro
mão disso. Meus filhos são prioridade na minha vida, o
resto a gente resolve aos poucos. As coisas, assim, vão
dando certo.

Cleuza Maria Dias Lopes

Eu tenho 61 anos. Nasci em Teófilo Otoni. Vim para


Belo Horizonte com dois anos de idade. Tenho 10 filhos
e 10 netos.

Trabalho há 7 anos no CEFET. Sou copeira.

Tenho dois sonhos: ter uma casa e fazer um curso de


confeiteira. Eu quero ser confeiteira, porque gosto de
fazer bolos, pães e doces. Sempre, no final do ano, faço
um almoço especial para todos.

Minha infância foi marcada por muito tropeço: eu era


a mais velha. Eu e meu primo sofremos muito. Minha

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mãe não teve estudo, por isso ela achava que a gente Quando o mês venceu, meu pai foi receber meu salário.
não precisava estudar. A gente vivia mudando de Até aí tudo bem, mas quando lhe pedi para fazer minha
bairro, até que a patroa da minha tia deu a ela uma matrícula na escola, meu pai sorriu e disse: “Você não
casa. Foi quando eu comecei a estudar. Fiquei muito vai estudar à noite, porque você vai inventar moda”.
feliz, mas a felicidade durou pouco.
Foi, assim, que tive que substituir os estudos pelo
Comecei a estudar com 10 anos, mas só estudei por 2 trabalho.
anos e 3 meses. O meu pai comprava um caderno, um  
lápis e uma borracha e queria que desse para o ano
todo, só que não dava. Quando a gente falava para ele
que o material tinha acabado, começava a briga. Ele
não queria comprar, ficava falando pra gente pedir à
diretora. Eu tinha vergonha de pedir, então lhe dizia:
“Eu não vou pedir”. E ele respondia: “Escreva no jornal,
escreva com o dedo”.

Enfim, um dia eu virei para ele e disse: “Eu não vou


mais à aula, eu quero trabalhar, porque eu não vou
mais pedir nada à diretora. Vou comprar os meus
materiais”. E ele falou que iria arrumar um emprego
para mim.

A princípio, fiquei toda feliz. Comecei a trabalhar como


babá, mas também tinha que arrumar, lavar, passar e
cozinhar, isso tudo para ganhar meio salário mínimo.

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nossas plantações e do dinheiro que meu pai ganhava
trabalhando do corte da cana de açúcar no interior de
São Paulo. Lembro-me que ele viajava para São Paulo
todos os anos em maio e só voltava em novembro.
Eu e meus irmãos ficávamos lá cuidando da lavoura,
que era de onde tirávamos parte do nosso sustento.
Geralmente, tínhamos quase tudo, como arroz, feijão,
amendoim, mandioca, cana de açúcar...

Comecei a estudar numa escolinha com seis anos


Donizete Soares Ferreira de idade. A escola era na sala da casa da professora,
não tinha mesa nem cadeira, só tinha bancos. Para
Meu nome é Donizete Soares Ferreira, tenho 43 anos, escrever, tínhamos que ajoelhar no chão e usar o
trabalho aqui no CEFET-MG desde o ano de 1996. banco para apoiar o caderno. Era muito difícil, pois
Moro no Bairro Teixeira Dias em Belo Horizonte, mas a professora abusava um pouco da humildade dos
nasci numa cidade bem pequena chamada Chapada alunos. Lembro que, às vezes, antes da aula, tínhamos
do Norte, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. que cortar capim para alimentar as criações dela. Na
A cidade onde nasci não era dividida por bairro, e sim época até achava normal aquilo, pois não conhecia
por córrego. Tinha o Córrego das Gamelas, Córrego do outras escolas. Estudei lá até a terceira série. Depois
Engenho e o Córrego João Gomes, que foi onde nasci, minha mãe resolveu colocar a mim e a meus irmãos
e isso era tão sério que vinha escrito nos registros de numa escola da cidade. Era muito longe, dava uma
cartório. hora e meia de distância da nossa casa e tínhamos que
ir a pé. Tínhamos que sair muito cedo para chegar lá
Morávamos numa casa bem modesta, mas ainda assim às 7 horas da manhã. Chegando na escola da cidade,
era uma das melhores do nosso Córrego. Vivíamos das vimos que estávamos muito atrasados nos estudos,

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pois a diretora resolveu nos colocar na primeira série de que ir e voltar sozinho. Continuei até me formar na
novo, mas estávamos na terceira série. Ficamos tristes oitava série, pois era o último ano de ensino da escola
e felizes ao mesmo tempo: tristes por ter voltado para onde eu estudava.
a primeira série, mas felizes por estarmos numa escola
boa, onde tinha mesas, cadeiras, livros, cadernos, e Dali pra frente, para fazer o segundo grau, tinha que
merenda um pouco melhor do que a que tínhamos na morar em república em outra cidade, e o meu pai não
escolinha do Córrego. tinha condição de pagar aluguel para mim. Foi muito
triste, mas tive que parar de estudar. Naquele ano,
Além de ter que acordar cedo para chegar a tempo que já era 1995, fui trabalhar no interior de São Paulo
na escola, voltávamos ao meio-dia com muito sol e para colher café. Morei em um alojamento durante três
poeira, e descalços, pois não tínhamos calçados. Não meses. Foi um sonho realizado, pois nunca tinha viajado
conseguia estudar muito em casa, mas, geralmente, para outra cidade, nem nunca tinha ganhado dinheiro,
tirava as melhores notas da classe, os professores era pouco, mas, naquela situação em que estava, era
gostavam de mim, pois era um aluno muito aplicado. muito. Depois voltei para o interior de Manaus e, de
Quando cheguei na quinta série é que complicou tudo, lá, já no fim do ano, vim para Belo Horizonte para ser
pois da quinta série em diante teria que estudar à padrinho de casamento do meu irmão e, com isso,
noite e a maioria dos outros colegas já não queria mais estou em BH até hoje, eu, meus irmãos e meus pais.
estudar. Eu e meu irmão continuamos e, nesse meio,
conhecemos umas meninas de uma família de outro Chegando aqui em BH foi muito difícil, pois fui morar
córrego: nos encontrávamos na metade do caminho na Vila Ideal, uma vila em Ibirité. No ano de 1997, eu
para irmos e voltarmos juntos. O caminho era escuro, já estava pensando em ir embora para a roça de novo.
tínhamos que usar lanternas ou mesmo velas, pois era Foi quando conheci o Reinaldo, que me convidou para
mais barato e era o que o dinheiro dava para comprar. trabalhar no CEFET, na empresa Enservis. Comecei
Estava indo tudo bem até o meu irmão tomar bomba como auxiliar de limpeza, trabalhei três anos e meio,
na sexta série e desistir. Eu continuei, mesmo tendo depois passei para a empresa Conservo e passei a

40 41
trabalhar como carpinteiro, onde trabalhei mais de
cinco anos. Depois fiz curso de elétrica e, vendo as
pessoas trabalharem, aprendi a fazer várias coisas,
como trabalhar com serviços de rede de computadores
e serviço de telefonia. Em 2006, passei a trabalhar
na manutenção do CEFET Campus I, Campus II e
Campus VI. Viajei para todas as unidades, Varginha,
Timóteo, Divinópolis, Curvelo, Araxá e Leopoldina,
onde fiz alguns serviços. Em 2017 fiz curso no Progest-
Cefet-MG, pois queria um pouco mais de teoria na área
elétrica. Hoje, graças a Deus, trabalho como oficial de Ediléia Oliveira Pinto
manutenção predial, ganho um salário razoável que dá
pra viver bem tranquilo. Eu sou Ediléia Oliveira Pino. Nasci na cidade de
Divinolândia em Minas Gerais. Lá vivi com minha mãe,
Maria Aparecida dos Reis, e meus oito irmãos. Estudei
até a 4ª série na escola Municipal José Teófilo dos Reis.
Hoje tenho quarenta e nove anos, moro em Belo
Horizonte e trabalho como copeira. Eu e meu
companheiro, Edisom dos Santos, moramos juntos há
sete anos.

Continuo estudando. Participo do projeto “A escrita


de si”, promovido pelo CEFET-MG, e fiz a prova do
Encceja, para concluir o Ensino Fundamental.

42 43
muito bom! Quando tinha 12 anos, mudamos do interior
para Belo Horizonte, resolvi parar de estudar e comecei
a trabalhar em casa de família. Eu e minha irmã mais
velha ajudávamos meus pais com as despesas. Com 22
anos casei e voltei a morar na cidade de Bom Jesus do
Amparo, onde morei por muitos anos.

Tive muitas experiências de trabalho: casa de família,


balconista de barzinho e, até, em colheita de café. Há
11 anos meu esposo faleceu e resolvi vir para Belo
Eliana de Oliveira Horizonte, onde meus pais e irmãos moram. Não foi
fácil deixar minha cidade. Arrumei um trabalho em
Nasci numa cidade do interior chamada Bom Jesus uma empresa e trabalhei durante dois anos. Saí, porque
do Amparo, onde passei a maior parte da minha vida. a empresa havia perdido o contrato. Fiquei muito
Lembro da minha infância: brincávamos na rua, era triste, pois gostava muito de trabalhar lá. Achei que
muito bom! Pensando bem, foi a melhor parte da minha não encontraria outro trabalho como aquele, mas me
vida. Brincávamos de esconde-esconde, queimada enganei, porque Deus me deu um outro muito melhor,
e, até, de bolinha de gude. Lembro que eu pegava as na família Conservo. Gosto muito de trabalhar aqui no
bolinhas de gude do meu irmão e nós jogávamos a CEFET, gosto dos alunos, dos professores, das pessoas
valer. Eu as perdia e ele ficava muito bravo comigo. que trabalham aqui pela educação e com carinho.
Tenho muito orgulho de fazer parte, de certa forma, do
A escola onde estudei era muito boa, os colegas e CEFET, agradeço pela oportunidade oferecida de poder
os professores também, enfim... No mês de junho aprender um pouco mais. Agradeço a todos que estão
tinha festa junina, dançávamos quadrilha na praça nessa caminhada comigo. Espero continuar no CEFET
e participávamos do desfile do dia 7 de setembro; era por muitos anos, pois gosto muito daqui.

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Elizabeth das Graças Coelho Flávia Cristina Silva
Autobiografia oral transcrita Sou Flávia, nascida e criada em Belo Horizonte, em uma
família de irmãos, mãe e vovó. Minha vovó trabalhava
Sou Elizabeth das Graças Coelho. Nasci em Belo como salgadeira e minha mãe, do lar. Vovó costumava
Horizonte. Tenho 43 anos. Trabalho no CEFET há 5 chegar tarde, pois trabalhava muito para sustentar a
anos. Tenho 4 filhos e 6 netos. casa quando minha mãe não trabalhava. Nos finais
de semana, vovó costumava nos levar para o parque
Meu sonho é vencer na vida. Penso em estudar mais municipal. Era muito bom, brincávamos até cansar e
e aprender tudo o que deixei para trás. Antes só sabia depois íamos para casa. Eu ficava muito satisfeita ao
assinar o nome. Eu quero aprender agora, com essa passear, pois era uma diversão e tanta.
oportunidade do projeto “A escrita de si”.
Meus tempos de escola foram muito bons! Adorava as
Eu quero aprender mais para me sentir feliz. brincadeiras na Educação Física. Sou da época que
não podia entrar na escola sem o hino nacional, pois

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era obrigatório. Fazíamos uma fila reta e ai de quem filhos, acordo cedo para trabalhar, gosto do que faço,
conversasse. A merenda era bem farta, eu gostava mas, às vezes, me sinto cansada, estressada, com
quando tinha macarronada, mingau de chocolate e tantas coisas. Sou separada há quatro anos, sou mãe
toddy com biscoito. A hora da merenda era uma festa, e pai dos meus filhos e, às vezes, acho que não vou dar
pois em casa não tínhamos coisas tão gostosas para conta de tantas coisas.
comer, em casa era um pouco difícil, comíamos o
que tinha. Lembro também que tinha um garoto bem Trabalho no CEFET há oito anos e gosto muito! Fiz
gordinho, ele corria para a cantina para merendar, tantas amizades boas, mas tem uma pessoa muito
comia tanto que parecia que o mundo ia acabar em especial, pois, quando passei por minhas dificuldades,
comida. ela abriu seu coração para mim na hora em que mais
precisei. Gosto muito de trabalhar no CEFET, pois tem
Com o passar dos anos minha avó faleceu de repente, tantas pessoas legais, como os alunos, apesar de nem
foi muito difícil encarar isso, pois nossa vovó era tudo todos tratarem a gente com educação. É bom saber que
para nós. Depois vieram as dificuldades, tivemos de há pessoas legais no ambiente de trabalho, mas têm
largar os estudos para trabalhar, foi uma luta, minha situações no CEFET, que não gosto: a desigualdade.
mãe nunca tinha trabalhado. Ô época difícil! Eu já Fico chateada por isso, só porque somos terceirizados,
trabalhava em casa de família, comecei muito nova, aos trabalhamos no setor de limpeza... Merecemos ser
12 anos. Como diz o ditado, tudo tem a sua primeira respeitados. Todo trabalho é digno, seja ele qual for.
vez, não é? Minha mãe também começou a trabalhar,
pois nós morávamos de aluguel, não era fácil, passamos Gostaria que todos os meus filhos tivessem estudado
dificuldades, mas nunca perdemos a fé em Deus. mais para hoje terem um futuro melhor, terem melhores
condições de vida: esse é o meu desejo. Meus planos
Seguimos nossos rumos. Meus irmãos conseguiram para meu futuro são: me casar, estudar, aprender mais
arrumar emprego, e as coisas ficaram melhores, depois e continuar trabalhando, seja na limpeza ou em outro
que cada um seguiu sua vida. Hoje moro com os meus emprego, e ver meus filhos formados.

48 49
sumiu. Depois de 25 anos, ele voltou, mas eu não tenho
muita convivência com ele, não.

Minha relação é boa com a minha mãe. Quando eu


morava com ela, às vezes a gente se desentendia muito,
mas foi bom. Isso foi antes de a gente ter filho. Hoje em
dia, graças a Deus, está tudo tranquilo. Também tenho
boa relação com meu irmão: ele me ajuda, sempre me
ajudou no que precisei, e eu o ajudei também.

Francislaine dos Estudei na Escola Roberto de Aguiar, lá em Contagem.


Santos de Moraes Tenho até o primeiro ano do Ensino Médio. Me divertia
muito com as meninas, as colegas de escola. Tinha uma
Autobiografia oral transcrita
professora que ajudava muito a gente, dava atenção
para a gente, ela era muito legal! A professora era a
Meu nome é Francislaine, tenho 26 anos eu nasci na
Carla, de Português. Entre os colegas de escola, fiz
cidade de Belo Horizonte, no Hospital Odete Valadares.
uma única amiga de verdade, a gente ficava brincando;
Na minha infância, eu morava em Contagem. Tive uma
com os outros, muita desavença. Mas, graças a Deus,
infância boa! Eu brincava muito de bola, de tacar bolo nos
foi tranquilo!
colegas, de bolinha de sabão... brincava de comidinha de
boneca. Minha infância foi boa mesmo! Eu morava com
A gente jogava muito queimada, no campo. Futebol eu
minha mãe e dois irmãos e era uma convivência boa.
não jogava, jogava basquete. Minha adolescência foi
Às vezes, eu e minha irmã gêmea brigávamos muito,
bacana. Brincava muito e brigava também. Eu gostava
com meu irmão também, às vezes eu e minha mãe nos
muito do cantor Eduardo Costa e eu curtia muito a
desentendíamos. O meu pai, para nós, não existia, porque
música sertaneja. Na escola tinha essas danças para a
nunca criou a gente, né? Ele só engravidou minha mãe e

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gente ensaiar. Estudei até o primeiro ano direto e parei irmão, e minha família ficou alegre porque eu poderia
porque engravidei. Engravidei com 16 e ganhei com 17. ajudar. Morávamos eu, minha mãe e meu irmão,
Comecei a trabalhar em 2013, com 19 anos, na estação porque minha irmã já tinha saído de casa.
do metrô Eldorado, depois ia para a Vila Oeste, rodava Quando eu morava em Contagem, havia voltado a
as estações trabalhando na limpeza. Fiquei lá três estudar. Eu levava minha menina para a escola e
anos e nove meses, aí a firma faliu. Fiquei quase um estudava, mas estava um pouco difícil, porque ela já
ano desempregada, foi quando vim para o CEFET-MG. não me deixava estudar e não tinha ninguém para
Comecei a trabalhar porque já tinha filho, para ajudar ficar com ela. Parei novamente e até hoje não voltei.
minha mãe, porque a gente sempre morou de aluguel. Mas oportunidade, se a gente quiser, a gente tem,
Minha filha, Maria Eduarda, estuda próximo de casa, oportunidade de estudar, de ser alguém na vida. Para
na escola Itamar Franco, no bairro Vale do Jatobá. isso basta querer. Hoje, eu casei e minha filha fica com
minha cunhada e com minha sogra nas férias. Quando
Meu primeiro emprego, consegui por indicação de uma ela está na escola fica das 7h20 às 17h20.
tia. Ela ficou sabendo que lá estava pegando gente para
trabalhar. Eu e ela fomos olhar: esperamos na fila, Gosto do trabalho, me dou bem com todo mundo.
fizemos a entrevista e, no outro dia, já começamos a Sempre falo que quem me colocou no CEFET-MG foi
trabalhar. Eu ajudava em casa, às vezes fazia comida, Deus. Uma colega falou que tinha entregado currículo
mas geralmente arrumava a casa e minha mãe fazia na Conservo, resolvi fazer o mesmo: entreguei o meu
comida. Não lembro muito da minha infância, quando currículo no dia 5 de julho de 2018. No dia 21 de agosto
eu era pequena. de 2018, me ligaram. Fiz o processo, falaram que eu ia
trabalhar no CEFET-MG, perguntaram se eu queria a
No primeiro emprego, o salário dava e não dava, porque vaga e foi isso. Faço limpeza no prédio administrativo.
o aluguel era muito caro e, por isso, não sobrava muito. Quem faz o CEFET-MG somos nós, não a mesa, não a
Mas o pior nem é isso: é que quando trabalhava na cadeira. Acho que o que tem que melhorar no CEFET-
estação a firma era muito ruim, enrolava para pagar, MG é a falta de amor entre as pessoas.
atrasava... Eu comecei a trabalhar depois do meu

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Gosto muito de passear, mas não passeio tanto, brinco que está bom, não procura saber se está precisando de
muito com minha filha, arrumo casa. Sou mais caseira alguma coisa, de uma roupa, um leite. Infelizmente.
também.
Quando fiquei com o pai da Duda, infelizmente Não pretendo ficar na limpeza pelo resta da vida. Pretendo
engravidei. Não por causa dela, que é uma benção em crescer mais, mas, para isso, tem que ter estudo direito,
minha vida, mas por causa do pai. Quando descobri se não, não tem como.
que estava grávida, fiquei arrasada, pensava em tirar,
porque ele estava com medo. Eu era nova, 16 anos, uma
criança ainda. Fiquei muito assustada, preocupada,
pensava: “E agora, como vai ser?”. Não tentei, mas eu
queria tirar... Deus não permitiu. Ainda bem! Minha
mãe ficou assustada, me xingou, depois se acostumou
com a ideia.

Casei faz pouco tempo. Conheci meu marido em 2012


na casa de uma prima. Ele trabalhava com o marido
da minha prima. A gente namorou, mas só por quatro
meses. Depois, ficamos mais de dois anos separados.
Quando voltamos a namorar, acabamos casando. Ele é
motorista de caminhão, trabalhava antes no depósito,
agora trabalha fazendo mudanças, dirigindo o carreto.
O pai da Duda dá uma pensão de R$ 200,00, mas não
dá, né? A pessoa pensa que só de estar dando aquilo ali
já está bom, mas não é assim, porque menino gasta. R$
200,00 não dá pra nada direito. Ele só dá isso e acha

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Helvécio Alaécio Joelita Francisca da Cruz
de Jesusmoraes
Autobiografia oral transcrita Autobiografia oral transcrita

Eu sou Helvécio Alaécio de Jesus. Nasci em Senhora do Nasci em Almenara, Minas Gerais. Vim para Belo
Porto, distrito de Guanhães, Minas Gerais. Tenho 55 Horizonte com 18 anos. Hoje tenho 53 anos. Quando
anos. Vim para Belo Horizonte em 1989. Trabalho no cheguei em Belo Horizonte, trabalhei em casa de
CEFET há 11 anos. Sou jardineiro, o único do CEFET . família. Como era sozinha e não tinha parentes aqui,
eu tive de morar com os patrões. Depois casei e pude
Antes era servente. Já fui capineiro e depois jardineiro. ter minha casa e minha família. Trabalho há 25 anos no
CEFET. No começo, eu não queria participar das aulas
É bom ver as plantas florirem. Aprendi a cuidar, podar do projeto “A escrita de si”. Mas fui e gostei. Voltei a
e adubar. Eu gosto de cuidar das plantas. estudar. Agora estou na EJA à noite, no primeiro ciclo.
Trabalhar e estudar é bem puxado. Tem dia que durmo
na sala. Meu marido dá uma força para eu dar conta.

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colocaram na FEBEM de Valadares, que tinha o nome
de “Cidade dos Meninos”.

Em 1968 eu queria conhecer o Rio de Janeiro, por causa


do Roberto Carlos, o cantor, e do Fio Maravilha, um
jogador de futebol, que virou música do Jorge Bem. Daí
fugi da FEBEM de Valadares. Fui para a estrada pegar
carona, mas acabei indo parar no Espírito Santo. Me
colocaram na FEBEM de novo. Fiquei quase dois anos
lá. Mas fugi de novo. Em 1970, consegui chegar no Rio
José Carlos Venâncio Moreira de Janeiro. Trabalhava vendendo jornais e calções.

Autobiografia oral transcrita


Um dia fui atropelado por um fuscão amarelo, lá no
Rio de Janeiro. Eu devia ter uns 13 anos. Foi quando
Eu nasci no dia 30 de janeiro de 1959, na cidade de
me levaram para a terceira FEBEM. Passei por três
Governador Valadares, Minas Gerais. Tenho 61 anos.
FEBEM’s. Sou vitorioso, não tenho do que reclamar.
Minha infância foi boa, mas tive problemas. Eu passei
Eu vim para Belo Horizonte, depois que o Brasil
por três FEBEM’s na infância. Minha mãe foi mãe
tomou o “7 a 1”. Antes estava em Valadares. Tive duas
solteira. Naquele tempo chamavam as mães solteiras
famílias. Tenho 4 filhos. Hoje moramos eu, um filho e
de biscates. Tinha muito preconceito. Ela sofreu muito.
minha esposa, em Belo Horizonte. Tenho até bisneto!
Quando conheci meu pai, eu já tinha 15 anos, a idade
No CEFET sou ajudante de manutenção há 3 anos.
em que fui pai, pela primeira vez.

Espero chegar aos 70 anos tranquilo. Sou paciente.


Minha mãe trabalhava na casa do coronel da cidade.
Tenho experiência de vida e sei o que quero. Eu quero
Ela era muito rude. Quando chegava em casa, batia
mais da vida. Afinal, enquanto houver vida, tem
muito em mim. Por isso, fugi. Eu tinha 9 anos. Me

58 59
esperança, né? Nossa mente é um computador. Sou
bom de memória. Lembro que, com 4 anos, minha mãe
me queimou. Tem 56 anos isso e eu lembro! Eu nunca
prejudiquei ninguém.

Às vezes, os outros me veem como doido. Eu gosto


de tudo. Sou pecador. Todos somos pecadores. Tem
pessoa que quer que a gente só goste do que ela gosta.
É chato. Eu gosto de tudo. Sou sambista. Gosto de jazz,
de reggae, de rock e de pagode. Eu sou aventureiro e
quero passar aonde ninguém passou. Eu quero ir além. Josefa Antonia de Jesus
Eu tenho um amigo e um inimigo: meu amigo é a morte
e o inimigo sou eu mesmo. A gente pode deixar a morte Autobiografia oral transcrita

pra lá, mas ela te acompanha desde que você nasceu.


Melhor ser amigo dela. Agora tem o bem e o mal. Eu Sou nordestina. Nasci no Piauí. Tenho 45 anos. Há 30
sobrevivi às FEBEM’s, porque não entrava no problema anos estou em Belo Horizonte. Trabalho há 12 anos
dos outros, na confusão. Eu sempre fui objetivo, tive no CEFET. Antes trabalhava em casa de família. Eu
caminho. E ninguém me desvia do meu caminho. Meu gosto de trabalhar aqui. Gosto do que faço. Gosto
caminho é viver minha vida, sem prejudicar o próximo. do meu estudo e gosto muito da minha professora,
Uma música que pode me definir é “Tente outra vez”, do Beatriz. Ela faz tudo para a gente aprender. Agradeço a
Raul Seixas. Eu gosto dos versos: “Tenha fé em Deus. Deus. Tenho saúde e estou trabalhando. Tenho muitos
Tenha fé na vida. É de batalhas que se vive a vida. Não parentes no Piauí. Vou visitá-los de ônibus. São três
diga que a vitória está perdida”. E, como ele também dias para chegar. Mas de avião não vou não! E não vou
já dizia: “Sonho que se sonha só. É só um sonho que desistir do curso.
se sonha só. Sonho que se sonha junto é realidade”.
Então vamos em frente!

60 61
bola. Minha infância foi assim até uns 12, 13 anos.
Nessa época, eu devia ter uns cinco anos, fui para o
Jardim de Infância. Foi minha primeira escolinha, ela
chamava Dona Joaninha, e minha mãe nos deixava lá:
eu e meus dois irmãos. Lá fazíamos o lanche matinal,
almoçávamos e só retornávamos para casa às 4 horas.
Era tipo uma creche, né? Só que era gratuito, era do
estado. Minha mãe conseguiu uma vaga para mim e
meus irmãos, por ter uma colega que trabalhava lá.
Foram bons tempos!
Julimar Rodrigues dos Santos
Aos 7 anos eu comecei a estudar na escola Interventor
Autobiografia oral transcrita
Alcides Lins, que era no centro da cidade. Lá fiz da
primeira a oitava e foi um tempo muito bom também:
Eu sou daqui de Minas Gerais, nasci em João Pinheiro,
a escola era muito grande, tinha três andares e
mas não tenho lembrança da cidade, porque, após
corredores. Uma das únicas coisas que lembro dessa
minha mãe se separar do meu pai, ela, minha avó, eu
época: a gente chegava na escola e tinha que ir para o
e meus dois irmãos fomos morar em Curvelo. Cheguei
pátio cantar o hino, né? Depois faziam uma chamada
lá com 3 anos. A única lembrança que tenho da minha
e falavam: primeira série para tal corredor, segunda
chegada é que fomos morar numa casa bem humilde,
série... até a oitava série. A gente chegava na sala e tinha
mas com quintal muito grande, frutífero: havia pé de
o nome escrito no papel na porta da sala. Fiquei muito
café, pé de manga, abacate... Eu cheguei lá com três
ansioso, lembro que, no dia anterior, até para dormir
anos de idade e minha infância foi toda nessa casa.
foi difícil, preocupado em ir para escola e querendo que
o dia chegasse rápido.
Foi uma infância bem sadia, brincávamos muito
de rouba bandeira, de queimada, de garrafão, de

62 63
Depois da quarta série, o número de matérias aumentou, No Alcides Lins, fiz a oitava série, depois fui para o
além de Português e Matemática. Tinha a Rita, que Ensino Médio – Escola Ministro Adauto Lúcio Cardoso,
era uma professora bem brava do cabelo cortado mais que era mais próxima da minha casa. Quando eu tinha
curto, morena do cabelo preto, e tinha a Eliane, que de 15 pra 16 anos, mudei dessa primeira casa em que
também era bem austera e cobrava muito. A Eliana era nós moramos por uns 12 anos para uma casa num
um pouquinho gordinha e alta, elas cobravam muito bairro mais próximo da escola. Foi uma mudança
nessa época, mas eram ótimas professoras. Lembro- muito grande, porque a escola cobrava muito. Nessa
me de dois colegas, Silas e Daniel, eu sentava ao lado época, fiquei muito disperso na escola, formar foi
deles e, nessa época, o pessoal que entrava na primeira muito dificultoso. Chegava na sala e os professores não
série geralmente estudava junto até o final da oitava. tinham aquele compromisso com os alunos. Eu formei
Das brincadeiras, lembro do pingue-pongue, na hora nessa escola em 1999.
do recreio, depois da merenda, a gente ia para o pátio
jogar. Tinha até campeonato. Formei e, até os 22 anos, trabalhei como autônomo.
Estava doido para trabalhar fichado, para começar
Com 13 anos fui estudar à noite. Foi uma época muito a pagar o INSS. Nessa época, a gente já tinha essa
difícil porque de 14 para 15 anos, comecei a trabalhar. preocupação, foi quando conheci um encarregado de
Trabalhava numa fábrica têxtil. Foi uma época difícil, uma empresa chamada Plantar. Pedi a ele um emprego
porque passei a estudar à noite e a trabalhar na fábrica. e lembro que a primeira coisa que ele me perguntou
Pegava lá das 4h20 às 13h40 e, algumas vezes, eu foi se eu já tinha formação no médio. Como eu tinha,
passava na casa da minha tia Maria Marta, que morava ele arrumou para mim uma vaga nessa empresa
lá perto, para almoçar. Estudava das 16h30 às 21h30. de reflorestamento. Eu trabalhava na produção da
Foi uma época muito puxada, muito cansativa. Eu empresa e no depósito. Na produção trabalhava até
trabalhei nessa fábrica, se não me engano, durante um certo horário e, no depósito, trabalhava na contagem
ano e pouco. Nessa época menor de idade ainda podia da produção, num horário intermediário, que era
trabalhar. Quando não pôde mais, o patrão dispensou depois do almoço, até a hora de ir embora. Como
quem era menor.

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estava muito interessado em continuar estudando, trabalho, apesar de ser um trabalho que cobra muito e
fiz amizade com vários funcionários do escritório, que tem muita responsabilidade. Agora, com “A escrita de
falaram que lá tinha um incentivo à educação, que, se si” tenho mais prazer ainda de estar trabalhando.
você fizesse uma faculdade, eles ajudavam, pagavam A relação mais próxima que tenho é com minha mãe,
até 70% do valor integral da faculdade. Isso foi em que mora comigo até hoje. Ela sempre me deu força,
2004. Fiz cursinho, a empresa pagava 50% do curso, sempre me incentivou, como aconteceu na época em
e, em 2004 mesmo, prestei vestibular, mas não passei que fui fazer faculdade e a empresa parou de pagar
na faculdade lá de Curvelo. Era muito difícil passar. o incentivo. Minha mãe queria que eu continuasse,
Em 2005, estudei por conta própria e passei: fiz minha só que eu sabia que teria muita dificuldade para
inscrição e comecei a estudar. Porém, depois de sete continuar pagando a mensalidade, por isso tranquei
meses, a empresa cortou o incentivo à educação, e o curso. Pretendo ainda fazer faculdade, sonho em ter
tive que trancar o curso: a mensalidade da faculdade meu ensino superior.
era R$778,00, e meu salário apenas R$637,00. Nessa
empresa trabalhei de 2003 até 2012. Por ter passado O que a gente podia fazer para melhorar o ambiente de
na faculdade, me promoveram para auxiliar e depois trabalho? Eu acredito que o programa “A escrita de si”
para encarregado. Em 2012, mudaram a mentalidade é um incentivo, uma semente que vai germinando no
da empresa, mecanizaram tudo e mandaram muitos coração de cada um, que se sente acolhido, se sente
encarregados embora. Eu fui nessa leva.... reconhecido, como se alguém estivesse olhando por
todos nós, preocupados com o nosso crescimento, com
Fiquei um tempo sem trabalhar. Foi nessa época que o nosso aprendizado. Trabalho no CEFET-MG há oito
conheci minha esposa. Ela morava aqui em Contagem anos: esse curso melhorou o ambiente. Os funcionários
e vim morar com ela, na casa dos pais dela. Depois achavam que o CEFET-MG não os via, e, quando o
fomos morar juntos. Aí, eu arrumei o serviço no CEFET- curso veio, todos se sentiram envolvidos, foi como um
MG, que foi através de uma amiga dela, que hoje é afago, um carinho.
minha amiga também. Tenho muito carinho por esse

66 67
Quando eu não estou trabalhando, como eu sou
evangélico, leio muito a Bíblia e vou aos cultos da
minha igreja. Estou sempre envolvido em alguma
coisa da minha igreja no período em que não estou
trabalhando.

Jussara Mendes Rodrigues

Eu sou Jussara Mendes Rodrigues. Nasci em Belo


Horizonte e sou filha de Jurandir e Júlia.

A minha infância foi boa. Meus pais, sempre por perto,


cuidavam de nós todos, com carinho e atenção. Meu
pai era motorista e minha mãe cuidava da casa, ela
fazia tudo com muito amor.

Estudei até a 7ª série e depois comecei a trabalhar.

Hoje tenho quarenta e seis anos, trabalho na Conservo,


sou solteira e moro com meus dois irmãos, Daniel e
Elias.

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ele tem 28 anos, a mãe dele era minha madrinha, me
ensinou muito. Muita coisa que sei, aprendi com ela.

O programa “A escrita de si” tem incentivado a todos


nós. Por causa desse projeto, estou tendo interesse em
fazer alguns cursos, como o de cuidador de idoso e o
de segurança.

Lidiana Marques Aniceto

O meu nome é Lidiana Marques Aniceto. Nasci em Belo


Horizonte. Sou filha de Jacira e João e tenho 6 irmãos.
Fiz o 2º grau na Escola Estadual Padre João Botelho.
Hoje tenho 35 anos. Trabalho como auxiliar de serviços
gerais. Sou casada com o Eduardo, com quem tenho
dois filhos: Kelten e João.

Minha infância foi assim: não tínhamos muitas


condições, meu pai bebia muito, mas era trabalhador.
Minha mãe era faxineira, ganhava pouco. Por causa da
situação, comecei a trabalhar com 10 anos de idade.
Olhava um menino bebê, que se chama Eleandro. Hoje

70 71
Maria Aparecida Procópio Maria Ivonete de Barros

Eu sou Maria Aparecida Procópio. Nasci na cidade de Eu, Maria Ivonete de Barros, nasci em 22 de maio de
Itaúna, onde eu vivi até os oito anos. Depois eu e minha 1961 em Rio Branco, Minas Gerais. Sou filha de Maria
família mudamos para a cidade de Contagem. Sou filha Pereira da Silva e José Heleaterio de Barros. Somos
de Osvaldo José Procópio e Divina de Jesus. Tive oito três filhos, sendo dois legítimos e um de coração.
irmãos. Comecei a estudar com dez anos na escola municipal
da minha cidade. Lá tive uma professora muito boa,
Estudei até os treze anos. Parei para trabalhar como com quem aprendi a escrever o meu nome. Meu irmão
babá e ajudar no sustento da casa. estudou até o 4º ano, porque era homem.

Aos vinte e nove anos, tive uma filha, que hoje tem Apesar de gostar da cidade onde nasci, precisei mudar,
trinta anos. É uma filha maravilhosa. pois Rio Branco não oferecia muitas condições de
trabalho.
Sou casada com Pedro, que é um marido bom e
atencioso.

72 73
Atualmente eu moro em Belo Horizonte e trabalho na
empresa Conservo. Tenho quatro filhos, três mulheres
e um homem, e já tenho até bisneta.

Maria Silvana Alves


Autobiografia oral transcrita

Meu nome é Maria Silvana Alves. Tenho 47 anos. Nasci


em Belo Horizonte. Há 6 anos e 7 meses, trabalho no
CEFET. Tenho 7 filhos e 5 netas. Tenho dois sonhos:
comprar uma casa melhor para meus filhos, com
quintal para minhas netas brincarem, e fazer um curso
de informática.

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Marinete Araújo Sena Onofre Lopes da Costa
Autobiografia oral transcrita

Eu sou a Marinete Araújo Sena. Sou do Maranhão. O O meu nome é Onofre Lopes da Costa, nasci em Raul
município é Olho d’Água das Cunhãs. Não lembro há Soares, Minas Gerais, e sou filho de Idelzete Rosa da
quanto tempo estou em Belo Horizonte. Tenho 54 anos. Costa e Abel Lopes da Costa. Tenho cinco irmãos:
No CEFET trabalho há um bom tempo. Meu sonho é Noberto, Geraldo, Maria, Eva e Ana Maria.
voltar para o Maranhão, se eu conseguir me aposentar.
Já comprei minha casinha lá em Olho d’Água das Minha infância foi alegre, mas, ao mesmo tempo, triste:
Cunhãs. Meus irmãos cuidam dela. Quando vim para meu pai morreu quando eu tinha 9 anos de idade. Por
cá, vim de ônibus. Meus pés incharam muito. Mas isso parei de estudar na 4ª série, pois precisei ajudar
agora, quando eu voltar para lá, irei de avião. Eu minha mãe a cuidar dos meus irmãos. Passamos por
agradeço que estou aqui porque aqui tem serviço. Mas, muitas dificuldades, mas não desistimos de lutar.
quando eu me aposentar, eu vou viver sossegada. Eu Minha mãe foi uma guerreira.
gosto da minha cidade. É pequena, mas é minha terra.
Sonho em continuar a estudar.

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Não tive, então, na minha infância, nenhuma
oportunidade, como a que estou tendo agora. A minha
vida era só trabalhar, trabalhar, não tive tempo de
estudar, porque, quando meu pai morreu, tive que sair
da escola, para ajudar minha mãezinha nas batalhas
do dia a dia, para acabar de criar meus irmãos, mas,
mesmo assim, sou muito feliz. Peço a Deus que abençoe
minha mãe e meus irmãos para sempre.

Hoje moro em Belo Horizonte, trabalho na Conservo e a


minha grande alegria é o meu filho, Natanael. Patrícia Isabel Oliveira Niles

Não queria mais falar sobre mim, mas, já que voltamos, Eu nasci em Timóteo, uma cidade pacata, tranquila.
vou falar um pouco sobre mim. Estou feliz de ter Fui criada no interior de Ipatinga com minha avó,
voltado a estudar, essa oportunidade, oferecida pelo minha mãe saía para trabalhar. Tive uma infância
programa “A escrita de si”, que não tive no passado, tranquila, boa infância. Lembro- me quando minha
quero agarrá-la de braços abertos. Hoje estou feliz: mãe me matriculou pela primeira vez em uma escola,
Deus tem me fortalecido, tem me dado saúde, paz, pois não fiz pré-escola. Minha primeira escola existe
amor. Rogo a Deus que coloque essa nova mulher na até hoje, chama-se Escola Estadual Trancredo Neves
minha vida. Obrigado. e fica em Ipatinga. Cheguei, observei, acanhei, tremia
tanto que comecei a suar de tanta vergonha. Escola
cheia de meninos e meninas que interagiam entre
si, e eu me sentia um E.T, que situação! Para minha
tranquilidade, a professora se aproximou de mim. Ufa!
Que paz ela me passava, professora Lourdes: “Boa

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tarde, seja bem vinda Patrícia!”, ela disse, “vou ser sua O que eu mais gostava era da professora de Português,
professora o ano todo, fica à vontade”. Fiquei nesta gostava muito das aulas, da dinâmica. A professora
escola de primeira a quarta série. Antigamente, você colocava música para quebrar o gelo.
só tinha uma professora e ela mora na cidade até hoje.
A matéria que eu mais gostava era Conhecimentos Comecei a trabalhar muito cedo em casa de família,
Gerais, e eu gostava muito da escola. Fui criada com sempre pensei que a pessoa, para se dar bem, tem que
pessoas analfabetas, que me incentivavam a estudar e trabalhar. Nunca me importava com a escola neste
a trabalhar. Minha vó insistia para eu ir para a escola, momento da vida, trabalhei como babá por vários anos,
para eu levantar cedo, essas coisas todas. Eu me como atendente e comerciante. Vim para o CEFET por
lembro que tomei duas bombas. meio de uma indicação. Conheci pessoas na minha
vida que sempre me ajudaram, apoiaram e, aqui
Depois minha mãe conseguiu um emprego aqui em BH, estou, aprendendo muito. No início eu fiquei um pouco
eu tinha 10 para 11 anos e, então, viemos embora para tímida, calada, na minha, mas, depois, eu fui tendo
BH. Aí, até adaptar, conhecer a cidade nova, foi difícil. mais liberdade para eu ficar à vontade de ser quem eu
Eu fiquei com vergonha de voltar para a escola em um sou. Minha rotina aqui é a mesma todo santo dia: é
lugar diferente. Fiquei constrangida e, somente depois, banheiro pra cima e pra baixo, são muitas cobranças,
fiz a EJA. Foi difícil essa mudança. Uma menina da o que me chateia. Você não tem liberdade de fazer as
roça, criada com pessoas com quem você convive todo coisas do jeito que você quer. Quando tenho que trocar
dia, foi muito difícil. Nossa! Eu era muito tímida. Hoje de horário sempre me preocupa.
eu acho que eu falo até demais, e a dificuldade que eu
tive foi devido à timidez. Depois casei, tive filho. Na EJA Desejo futuramente ser uma psicóloga, tentar descobrir,
a dificuldade que eu tinha era pegar ônibus por causa desvendar a mente do ser humano, apesar de achar
da passagem, mas me esforçava: saía do trabalho, que eu nunca vou descobrir o que se passa na cabeça
chegava em casa, ajeitava minhas coisas para depois de uma pessoa que pensa diferente. Quanto ao projeto
ir para a escola. Em 2007, fiz o fundamental na EJA. “A escrita de si”, o acho maravilhoso, eu admiro muito

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a equipe e acho que a gente não está correspondendo
tanto à dedicação que a equipe tem com a gente. O
projeto tem ajudado a despertar meu interesse pela
leitura, tem me ajudado a procurar ouvir mais e falar
menos. O projeto está me moldando, me ensinando
como ser mais tolerante no trabalho. Gostaria de deixar
uma mensagem: que haja outros projetos como esse.
Agradeço a todos por se interessarem em nos ensinar.
Desejo continuar estudando para, no futuro, fazer uma
faculdade de Psicologia, aí, sim, tudo terá valido a pena!
Paulo Santos Crisóstomo
Autobiografia oral transcrita

Eu nasci em Belo Horizonte, no bairro Santa Efigênia. A


infância no meu bairro era muito boa, não tenho nada
a reclamar. As ruas eram de terra, tinha os amigos, os
campinhos perto de casa para jogar futebol, os córregos
abertos e limpos pra gente nadar – a gente nadava no
famoso córrego do Cardoso –, era tudo muito bom,
muito saudável! Os rios não eram poluídos, não tinha
o tanto de concreto e construção como tem hoje.
Eu fui criado por duas famílias: minha mãe mesmo
e minha mãe de criação. Essa mãe de criação trouxe
minha mãe da Bahia para cá – minha mãe trabalhava
na casa deles. Ela era menina nova e veio como um

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membro da família, uma empregada da família. jogar bola. Minha mãe me procurava na rua, eu me
Chegando aqui ela ficou conhecendo meu pai, que era escondia.
militar. Ela se envolveu com ele e aí apareceu o Paulo.
Diz a lenda que ele era doido para casar com minha Minha infância era assistir Ultraman e jogar bola. Os
mãe, mas ela gostava muito de uma dança. Acabou vizinhos iam lá pra casa para assistir televisão e era
que não deram certo e ele foi embora de Belo Horizonte muito bom! Com 15 anos eu ganhei uma bicicleta, aí era
e constituiu outra família. Tive a curiosidade de saber só alegria! Tinha um colega meu que mexia com som, a
notícias dele e fui até o quartel onde ele trabalhou e gente fazia umas festinhas, ouvia discoteca, MPB. Aos
descobri que ele havia falecido e deixado 5 ou 6 filhos. poucos começaram a aparecer as namoradas, namorava
Essa família que trouxe minha mãe foi com quem uma hoje, outra amanhã. Minha adolescência foi boa.
criei vínculo, cresci com eles. Eram cinco filhos, dois Desde os 12 anos que eu já trabalhava. Tinha a hora do
deles foram meus padrinhos de batismo e crisma. Uma lazer, que eu dava meus perdidos, mas tinha também
família muito boa, até hoje sempre que possível a gente a hora de cumprir com as obrigações, que era limpar
se encontra. Minha irmã nasceu quando eu estava com a mercearia, pesar os produtos, fazer entregas num
uns sete anos, mas o pai dela não assumiu e minha carrinho. Meus irmãos de criação às vezes ficavam
mãe nos criou sozinha. na mercearia também, mas, como eles já eram mais
velhos e faziam faculdade, eu que ficava mais tempo.
Eu estudei em boas escolas, mas eu não levei a escola Eu ganhava um pouco de dinheiro com esse trabalho,
a frente não. Eu era meio bagunceiro, aprontador. Na mas não era um salário, era pra comprar bala, picolé,
época, era o único de cor na escola, que era de classe roupa, essas coisas. Esse trabalho foi muito bom pra
média alta. Quando tinha alguma excursão, era sempre mim, me ajudou a aprender a respeitar as pessoas
em alguma mansão na Pampulha, na casa de colegas. mais velhas, não tenho que reclamar dele não.
Fiquei dois anos fora da escola e acabei voltando. Mas
a professora entrava pela porta e eu saía pela janela. Quando tinha uns 16 anos, fui passar um ano em
Nessa época, só queria brincar, andar de bicicleta, Uberaba, na casa da minha irmã de criação. Na casa

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dela, como era muito grande, ajudava a limpar os vidros coisa com eles: aprendi a mexer em cozinha, manipular
e a cuidar dos jardins. Fiz amizade com um vizinho – tira gosto. Fiquei com eles uns dois anos.
que era reitor de uma faculdade –, e ele me chamou
para dirigir e levar a esposa dele ao supermercado, Em 1998, o Luís Claudio me chamou para trabalhar no
os filhos para escola, levá-lo ao aeroporto, cuidar do CEFET. Quando comecei a trabalhar havia uma rejeição
jardim, limpar os vidros da casa dele. E, com isso, eu em relação aos terceirizados. Eles falavam assim: vocês
ganhava umas mixarias. Mas a saudade me fez voltar. vão tomar banho aqui? Lugar de vocês tomarem banho
é junto com os terceirizados. A gente ficava meio triste,
Quando eu voltei, comecei a trabalhar com meu mas isso foi superado. Hoje, o relacionamento é bom,
padrinho e ele me ensinou muita coisa: revestimento mas ainda tem uma certa diferença: uns são estatutários
de parede, papel de parede, tinha contato com outros e outros não. Por exemplo, os que trabalham no CEFET
públicos – público diferenciado. Essa foi outra escola tiram folga, mas os que trabalham na Vale não podem.
que eu tive. Trabalhei com esse meu padrinho uns Tirando isso, não vejo nada que precisa melhorar.
oito anos. Nesse período eu arrumei uma namorada,
tive um filho e fui morar com ela. No início dos anos Não tenho nada que reclamar do CEFET nem da
1990 eu fui trabalhar na viação Presidente, aprender Conservo. Os equipamentos de segurança e materiais
mecânica. Mas eu fiquei pouco tempo, pois foi na época chegam certinho. Pensando nos pontos positivos
do governo Collor – a Zélia prendeu o dinheiro de todo trabalhar no CEFET é bom pela convivência com o
mundo – a empresa ficou sem dinheiro para movimentar. pessoal, com os alunos. A gente anda meio na sombra,
Depois fui trabalhar nos serviços gerais na Fundação mas faz parte, existe essa separação em todo lugar, não
Logosófica, onde fiquei uns oito anos, onde aprendi a ia ser diferente aqui. De negativo, só o salário mesmo,
pintar, mexer em rede elétrica e telefone. Em 1996, o se desse para ganhar mais, ajudaria bastante.
marido da minha irmã de criação abriu um barzinho
em BH e eu fui trabalhar com eles vendendo bebidas Meu retorno para a escola foi depois de velho. Com
e frutos do mar. Bons tempos também! Aprendi muita 40 anos, voltei a estudar na 4ª série e concluí, tirei

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o segundo grau. Um vizinho me chamou e falou que Juntando tudo, no total, são nove filhos e seis netos.
estava aberta a matrícula para a escola e que ele iria O que mais gosto de fazer, quando eu não estou
voltar a estudar, aí falei: eu vou com você, não estou trabalhando, é ficar em casa. Mas de vez em quando,
fazendo nada mesmo. Na época eu cuidava dos meus eu passeio com meus netos. Além disso, eu faço minha
três filhos, a mãe deles havia falecido. Eu trabalhava, comida, arrumo a casa e ainda ajudo meus filhos a
estudava e cuidava deles. Comecei na 4ª série e fui organizar a casa deles.
direto até concluir o 2º grau. Nesses anos finais eu
estudei pela EJA.

Pensando nos planos para o futuro: comprar outra


casa, outro barraco com garagem. Pois eu comprei uma
pequena área no bairro São Lucas e construí uma casa
de três andares que divido com meus filhos, mas meu
carro fica na rua. Acabar de tocar a vida, ver os netos
crescerem, aposentar. Mas ainda quero trabalhar mais
uns dez anos, se a saúde permitir! Está bom, não posso
reclamar.

Hoje estou solteiro, moro com dois filhos e tenho mais


três. Tive um filho com uma vizinha e acolhi mais
dois, que eram da minha falecida esposa. Uma antiga
namorada me apresentou recentemente a uma filha
que tem 24 anos. Nós até voltamos a namorar, mas
descobri que não tínhamos mais nada a ver e que era
só a nossa filha o que tínhamos em comum mesmo.

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castigados novamente. Mas tudo isso era muito bom,
porque existia uma espécie de concorrência para
ver quem era o melhor. Eu era um dos melhores em
Matemática, justamente a matéria que a professora
fazia a sabatina, por isso eu saía ileso. Nos domingos,
todos os moradores das fazendas vizinhas vinham
para fazer compras e aproveitavam para jogar futebol.
Diversões: comida, bebida e escola, isso era o que
precisávamos na época, pois a gente não preocupava
com outras coisas.
Reinaldo Gonçalves Santos
Com o passar do tempo, o pessoal começou a pensar
Nasci em 1969 em uma fazenda chamada Vista Alegre diferente e começou a sair em busca de oportunidades
no interior da Bahia. Sou o sexto de treze irmãos. Nessa na cidade. Com meu pai não podia ser diferente, ele
fazenda tinha mercearia, açougue, campo de futebol e tinha 13 filhos para criar. Quando chegamos na cidade
escola. Lembro que, na escola, a professora tinha uma fomos procurar fazer alguma coisa para sobrevivermos,
palmatória de jacarandá e fazia sabatina com os alunos, meu pai montou um açougue e meus dois irmãos mais
aqueles que erravam as perguntas tomavam “calo” nas velhos montaram uma loja de calçados. Eu trabalhei
mãos que, muitas vezes, chegavam a inchar de tanto com meu pai no açougue por alguns anos e, depois,
tomar “calo”, ou seja, apanhar. O mais engraçado fui trabalhar na loja de calçados com os meus irmãos.
disso era que os alunos que tomavam os “calos” nas Nem na loja nem no açougue eu tinha salário, apenas
mãos tinham que chegar em casa e esconder dos ganhava alguns trocados para gastar com lanche na
pais, porque, se eles soubessem que os filhos tinham escola. Nessa época eu tinha mais ou menos 15 ou 16
sido castigados na escola porque não tinham feito o anos e me lembro que eu e meu colega íamos para a
dever corretamente, quando chegavam em casa, eram escola. Quando acabavam as aulas nós passávamos

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em uma lanchonete e cada um comprava uma linguiça nada, então, quem tinha capital de giro aguentava
calabresa. Saíamos comendo essa calabresa quase na manter o comércio, e quem não tinha quebrava, como
cidade inteira, não porque faltava alguma coisa nas foi o meu caso.
nossas casas, mas porque a gente gostava, a linguiça
era muito gostosa, e ficávamos economizando para que Em 1995 resolvi vir para Belo Horizonte, nessa época,
ela não acabasse logo. Coisa de adolescentes da época. eu tinha um primo que trabalhava como jardineiro aqui
Já com vinte anos, não tinha como ficar nessa situação no CEFET. Liguei para ele arrumar um serviço aqui para
pra sempre, e queria fazer alguma coisa diferente para mim e ele arrumou. Quando cheguei, pensei que estava
conseguir ganhar meu próprio dinheiro. A primeira em outro mundo, tudo era muito estranho para mim,
alternativa foi voltar novamente para a roça que já quando olhava para a Avenida Amazonas, com aquele
não era a mesma coisa. Meus avós haviam morrido e tanto de carro subindo e descendo, me dava vontade de
a fazenda fora dividida entre os irmãos do meu pai. chorar. O serviço era de servente de limpeza e o salário
Como a parte do meu pai estava quase abandonada, era mais ou menos 93 reais. Eu tinha chegado em Belo
tive que começar do zero, fiz plantio de hortaliça, feijão, Horizonte com 500 reais e gastei esse dinheiro em 20
mandioca, e cuidava de um plantio de coco e cacau. dias, e, quando lembrava que para ganhar os 500 reais
tinha que trabalhar uns seis meses, aí sim eu chorava,
Com o tempo as coisas começaram a melhorar. Como com vontade de voltar, mas meu primo me incentivava
já disse, tinha treze irmãos e, como eles viram que eu a ficar. Na época tinha uma encarregada que estava
estava melhorando, alguns resolveram ir trabalhar na grávida e estava perto de sair de licença maternidade.
roça também. Aí, já viu né?! Tinha que dividir com eles Eu procurei a minha chefe que hoje é falecida e disse
tudo o que eu já tinha feito. Quando vi que a roça não para ela que eu tinha capacidade de cobrir a licença
era mais o meu lugar voltei para a cidade e comecei maternidade da encarregada da tarde. Ela concordou
a trabalhar como camelô. Até o Plano Real chegar... e me mandou procurar a chefe dela para pedir esta
Nesse período, quem era rico ficou rico, e quem era oportunidade. Conversei com ela e deu tudo certo:
pobre ficou mais pobre, porque quase ninguém vendia a encarregada saiu de licença e fiquei no lugar dela

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durante os quatro meses. Quando venceu a licença, a
encarregada não quis voltar a trabalhar, porque tinha
que cuidar da criança, aí eles me efetivaram e estou
aqui até hoje.

Ronaldo Oliveira Mendes


Autobiografia oral transcrita

Meu nome é Ronaldo, nasci na cidade de Contagem, no


bairro Santa Rita – Cidade Industrial. Morei um tempo
no bairro Amazonas e, 15 anos depois, mudei para o
bairro Cidade Industrial. Lá é um bairro muito bom
de morar! Eu não lembro muito bem se nessa época já
havia tantas fábricas como têm hoje, mas me recordo da
Fábrica de Biscoito Cardoso, onde meu pai comprava
biscoitos sortidos. A movimentação que tinha na região
era na rua Tiradentes, onde, até hoje, tem uma feira
todos os domingos, foi lá que eu me perdi uma vez. Eu
tinha de 10 para 11 anos, me perdi e depois de umas
duas horas eles conseguiram me achar.

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Na minha família, somos eu e mais dois irmãos. Eu e e ele falou que já havia me perdoado, mas, mesmo
meu irmão moramos no mesmo lote que a minha mãe, assim, eu fico sentido até hoje.
já a minha irmã mora em um apartamento em outra
região. Na infância morávamos todos juntos: minha Quando eu estava na sexta série, eu ainda morava
mãe, meu pai, eu e meus dois irmãos. Minha relação no bairro Amazonas e tinha que pegar ônibus para ir
com meus irmãos era muito boa, tirando as brigas de para a escola, mas eu gastava o dinheiro da passagem
irmãos que a gente tinha, e que acho que é normal, a jogando fliperama. A escola era muito boa, eu que era
convivência era tranquila. um pouco bagunceiro. Depois eu mudei para o bairro
Santa Rita e concluí a oitava série. Mas eu parei de
Quando morávamos no bairro Amazonas, às vezes meu estudar, pois eu já estava na idade de procurar serviço
pai e minha mãe discutiam, eu mesmo não entrava na e comecei a trabalhar como vigilante. Eu até tentei
discussão, mas meus irmãos mais velhos tentavam fazer a EJA, mas eu ficava cansado do trabalho, que
apaziguar. Quando eles começavam a brigar, eu corria era durante a noite, e acabei saindo da escola. Até hoje
para o quarto, ficava sentado num canto, só escutando. não consegui concluir meus estudos.
Certa vez meu pai chegou em casa e começou a
ficar com ciúmes da minha relação com minha mãe, Eu sempre fui mais caseiro que meus irmãos, eles
chegando a falar que a gente tinha um caso. Eu achei gostavam de bailes – dançar aquelas músicas de
que isso não era coisa de um pai falar para um filho, passinho. Minha mãe me incentivava a sair com eles,
mas eu acabei relevando, porque ele bebia. Fora isso, a mas eu gostava de ficar em casa. Até hoje sou assim,
gente brigou uma vez a ponto de eu chegar a perder o gosto de assistir filme, ficar tranquilo em casa. O que
controle e puxar uma faca para tentar matá-lo. Eu me mais marcou minha adolescência foi um acidente de
arrependo muito disso, mas, hoje, eu não tenho mais bicicleta aos 18 anos, em que bati a cabeça e apaguei
meu pai. Essa briga foi em 2013, na época minha tia parte da memória. Só lembrava da minha mãe me
estava organizando um amigo oculto e eu saí com ele. pedindo para ir ao açougue, ir a casa de alguém, essas
No momento de apresentar o presente, eu pedi perdão coisas. Desse dia em diante, eu só lembrava disso.

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Mas esse acidente me deixou mais esperto. Eu era apelido de Zoinho, e a sorte dele foi que os caras não
bem bagunceiro, coisa de menino: a gente mexia com chegaram atirando, senão ele teria morrido de graça,
o povo na rua e saía correndo e eles jogavam pedra foi um livramento. Depois disso, ele voltou a trabalhar
na gente; jogava bombinha na rua, mexia na caixa no Ceasa e faleceu aos 68 anos, por parada cardíaca –
de correio dos vizinhos... essas coisas. Eu e meu ele bebia muito.
irmão colocávamos travesseiros atrás da porta para
pensarem que estávamos dormindo e saíamos para a Minha mãe trabalhou durante 23 anos no CEFET, onde
rua à noite. Teve um dia que tacamos uma pedra na se aposentou. Ela sentiu muito a morte do meu pai,
vidraça do vizinho, corremos pra casa e, caladinhos, mas, quatro anos depois, ela conheceu outra pessoa.
fomos pra cama. Quando a vizinha chamou lá em casa, Só que eu não gosto muito dessa pessoa, pois ela bebe
minha mãe nos chamou e nós fingimos que estávamos mais que meu pai. Já tivemos uma desavença, que foi
acabando de acordar e ficou nessa. resolvida com uma conversa.

Meu pai trabalhou 15 anos como eletricista na Selt e Como eu era menor de idade, comecei trabalhando
depois foi para o Ceasa trabalhar de chapa até seus de servente de pedreiro aos 15 anos. Depois que eu
63 anos. Nessa época, a gente morava em barraca de completei 18 anos, fui procurar trabalho fichado. Com
lona, pois meus pais estavam construindo nossa casa. meu primeiro salário, comprei uma televisão colorida
Um dia chegaram cinco homens armados lá em casa para minha mãe. Eu aprendi a ser servente de pedreiro
procurando meu pai, falando que iam matá-lo. Fizemos na prática, olhando os pedreiros trabalharem. Um
um boletim de ocorrência, mas com isso meu pai ficou dia fui procurar emprego como servente e encontrei
um tempo com medo de ir trabalhar no Ceasa. Um dia, uma vaga de vigilante. Então, eu disse para o cara:
quando meu pai estava saindo de casa deu de cara curso a gente paga para fazer, experiência a gente tem
com esses caras, que chegavam numa Brasília. Eles quando tem oportunidade e, com isso, eles me deram
olharam para o meu pai e falaram: “não, o Zoinho que essa oportunidade. Trabalhei como vigilante em alguns
estamos procurando não é esse não”. Meu pai tinha lugares até chegar aqui no CEFET, primeiro na portaria

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e, depois, no setor de manutenção, trabalho aprendi para ajudá-la na limpeza e também fiz um curso de
com meu pai e com o Novão que trabalhava lá. Eu fiz manutenção de motores e elétricos (eles davam lanche
um curso de um ano e dois meses em montagem e e vale transporte). Foi assim que veio meu interesse
manutenção de micro. Iniciei no setor de manutenção, em trabalhar no CEFET. Eu até tive oportunidade de
fazendo o check list de manutenção dos carros. Como eu trabalhar em outros lugares, mas devido à formação
tinha esse curso técnico, fui transferido para trabalhar que eu não tinha, eu perdi as oportunidades. Aqui eu
com redes, mas principalmente com a parte elétrica. conheci minha futura esposa e eu gosto muito das
amizades que construí. Às vezes tem alguma discussão
Em relação ao salário, em comparação ao que eu de trabalho com os colegas, mas na hora mesmo a
recebia antes – quando o salário mínimo era 500 reais gente resolve.
–, agora eu estou bem melhor. A gente lutou para
receber periculosidade e insalubridade e agora a gente Aqui a gente tem uma certa estabilidade devido à
já recebe. O tempo que eu mais tenho de Carteira de experiência que a gente tem, mas, nessas mudanças
Trabalho assinada é aqui no CEFET, onde fiz 16 anos de setor, já teve época que a empresa licitada atrasava
de trabalho. Os demais empregos devem dar mais uns pagamentos e tickets de refeição. Esse é um ponto
cinco anos de trabalho fichado. Eu penso que, se eu positivo de trabalhar aqui, se a empresa não ganhar a
tivesse começado mais cedo a trabalhar com carteira, licitação a gente acredita que vai continuar trabalhando
ficava mais fácil para eu me aposentar. Mas, na época, aqui por conta da nossa experiência, então a gente vê que
não tinha esses projetos de menor aprendiz, então eu tem um valor para o CEFET, que a gente é reconhecido.
trabalhei de ajudante de pedreiro e serralheiro. O único ponto negativo foi não ter organizado as folgas
de Natal de 2019. E o que pode ainda ser melhorado é
Eu gosto muito de trabalhar no CEFET! Cada dia eu a qualidade do material de trabalho, além de um líder
aprendo mais, a maior parte das nossas vidas é aqui de equipe para coordenar as atividades.
que a gente passa, eu gosto muito daqui. Quando minha
mãe trabalhava aqui, eu vinha numas festas do CEFET

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Nesse projeto “A escrita de si” ficou acordado que
teríamos uma hora de trabalho voltado a aprender,
mas eu acho muito corrido. O ideal seria umas duas
horas de aula, pra gente aprender melhor. Eu, às vezes,
falto, pois eles me mandam para outras unidades do
CEFET, às vezes tenho até mesmo que viajar. Eu não
fiz o Enceja ainda, mas tenho vontade de fazer para
tentar formar pelo menos no Ensino Médio.

Os meus planos para o futuro são: continuar aqui


com meus amigos e, Deus abençoando, ter o contrato Vânia Antunes
renovado, ter mais surpresas, como uma futura esposa
e, quem sabe, casar mesmo, constituir família. Meu nome é Vânia Antunes Pereira e tenho 50 anos.
Nasci em Belo Horizonte, em casa, pois na época era
Quando eu não estou trabalhando, pego meus filhos muito difícil hospital. Contam também que não deu
e vamos pra praça, para o shopping, onde os meninos tempo, teve que ser parteira a fazer o meu parto.
podem brincar. Nosso negócio é passear nas pracinhas Minha mãe teve nove filhos, quatro filhos faleceram
e ver filme. A gente gosta de fazer sessão de filmes em quando ainda eram crianças, outro foi assassinado
família. Fui casado por 13 anos e tenho um filho de 13 recentemente e, agora, somos quatro: eu, minha irmã
anos, mas hoje eu tenho contato com minha ex-mulher e dois irmãos. Eu sou a caçula. Não conheci meu pai.
só para combinar de pegar meu filho de 15 em 15 dias. Minha mãe contava que ele faleceu quando estava
grávida de mim. Quando meu pai faleceu, meu irmão
mais velho foi quem cuidou de nós, ele trabalhava
muito para não nos faltar nada, mas, ainda assim,
passávamos muito aperto. Mas, graças a Deus, meu

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irmão arrumou um emprego melhor e minha mãe Tentei na Conservo três vezes: duas delas fui à meia
lavava roupa para fora, foi uma época difícil! noite e não consegui nada, até que, um dia, fui consegui
um emprego.
Minha primeira escola foi no jardim, era bom, pois
tinha muita brincadeira e era legal. Aos sete anos, fui Minha vinda para o CEFET foi para cobrir férias, e
para escola Aarão Reis, onde estudei até a quarta série, acabei ficando. Tive uma oportunidade de sair e ir para a
depois estudei em outras escolas, onde fiz até a oitava portaria, tenho muito que agradecer aos meus superiores
série incompleta. Na época era no Maurício Murgel. que confiaram e me deram essa oportunidade. Tenho
Aos dez anos, eu e minha irmã já trabalhávamos em uma parceira há 25 anos, demorou, mas nos casamos
casa de família para poder ajudar. Morei um tempo em 14 de setembro de 2019. Ela é aposentada. Eu não
com minha avó por não ter espaço em casa, que era acho que tenho uma vida ruim, me considero feliz. Este
muito pequena, mas, graças a Deus, tudo passa nesta ano a Juliana veio até mim falando que iria começar
vida. Quando eu estudava, fui trabalhar em uma um curso e perguntou se eu me interessaria. Falei:
empresa de bolsas, entrei como aprendiz, fazia de tudo, “Ah, não sei, tem tanto tempo que eu não sento em
passava cola, forrava, fui aprendendo, me aperfeiçoei uma mesa de sala de aula”, mas ela, mesmo assim, não
na profissão, que hoje é minha profissão, costureira de desistiu e me matriculou. E lá fui eu, sem saber o que
bolsas. Trabalhei anos nisso, até que a fábrica faliu e fazer. O tempo foi passando e me interessei mesmo.
eles nos pagaram com máquinas. Foi aí que comecei É ótimo aprender tudo o que tinha esquecido, até fiz
a trabalhar por conta própria, não foi fácil, trabalhei o Encceja, meu Deus! Achei que eu estava apostando
muito, dia e noite para pagar aluguel, comida, contas, muito, mas, no final, deu certo, passei e fiquei feliz,
já que nessa época eu já não morava mais com minha muito feliz, agora é continuar. Quem sabe assim chego
mãe. Parei porque tomei muito cano, na época fazia em algum lugar. Agradeço em primeiro lugar a Deus
bolsa para a feira hippie, uma pessoa fez um pedido por minha vida e ao CEFET e a todos que contribuíram
grande, mas não pagou. Corri atrás, mas não deu em para que tudo isso acontecessem em minha vida.
nada. Por isso, eu resolvi parar e procurar emprego. Agradeço à minha família por nunca me abandonar.

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Minha infância foi muito boa mesmo, com seus altos
e baixos. Parei de estudar com 13 anos e comecei a
trabalhar para ajudar minha mãe, sentia muita falta
dos estudos, dos professores e dos colegas. O tempo
foi passando, fiquei adulta, me casei e continuei
trabalhando. Quando entrei aqui no CEFET, fiquei
sabendo do projeto “A escrita de si”, a princípio
fiquei curiosa em saber, conhecer o curso. Quando
comecei, gostei muito, minha vontade de voltar a
estudar foi ficando mais forte, meus sonhos e objetivos
Vera Lúcia dos Reis de adolescência, que estavam adormecidos, se
reacenderam.
O meu nome é Vera Lúcia dos Reis, moro em Belo
Horizonte e tenho 41 anos. Fiz o Encceja, passei em quase todas as matérias,
fiquei por 6 pontos faltando em Matemática, a vilã da
Nasci no dia 21 de julho de 1978 e fui criada pela minha minha infância… Mas, a cada dia que passa, me sinto
mãe, Antônia Maria Gabriel. Estudei até a 5ª série na mais forte.
Escola Estadual Cândido Portinari.

Minha profissão atual é auxiliar de serviços gerais.


Sou casada, meu marido se chama Olavo, e tenho dois
filhos, Lucas e Ana Carolina, e uma netinha de sete
meses, chamada Ágatha.

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Às vezes chegava em casa e não tinha o que comer. Era
muito sofrido. Foi uma época muito difícil. Meus avós
bebiam muito, o trabalho na roça era muito pesado.
Estudei até a 4ª série na minha cidade. Na roça não
consegui estudar.

Quando não aguentei mais, vim trabalhar em Belo


Horizonte. Eu tinha 12 anos e me ofereceram para
trabalhar em casa de família. Chegando aqui me
assustei com o tamanho da cidade, até pensei que
Vera Lucia Lopes dos Santos não ia conseguir. Mas, quando a gente tem Deus na
nossa vida, mesmo com luta, a gente consegue vencer.
Autobiografia oral transcrita
Não foi fácil aqui em BH também. Passei por muitas
batalhas, muitas lutas. Na casa onde trabalhei, fazia
Meu nome é Vera Lúcia Lopes dos Santos. Nasci em 24
de tudo e olhava os três filhos da patroa. Só não fazia
de outubro de 1960, em Araçuaí, Minas Gerais. Sou a
a janta, porque o patrão não comia da minha comida.
filha mais velha de quatro filhos. Ivan e Tereza estão
Ele não gostava de preto. Eu tinha muito carinho pelas
vivos e os outros dois faleceram. Minha infância não foi
crianças, uma delas, o Daniel, ainda me visita. Sou a
muito boa. Até os nove anos foi boa, porque vivia com
mãe preta dele. Ele é dentista hoje. Mas, graças a Deus,
meu pai, minha mãe e meus irmãos. Quando completei
consegui vencer. Hoje tenho uma filha, tenho um neto
nove anos, tive uma grande decepção, foi quando perdi
e me sinto muito feliz dentro da minha família, que tem
minha mãe. Meu pai foi preso, porque matou minha
uma vida totalmente diferente da que eu vivi. Porque
mãe, e eu vi tudo. Daí, nos mudamos para a casa
antigamente eu passava fome e hoje eu consegui que
dos meus avós, em Piauí, perto de Araçuaí. As coisas
a minha filha crescesse sem passar necessidade e hoje
complicaram para o meu lado, sendo a irmã mais
ela está conseguindo cuidar do filho dela da mesma
velha, era uma luta muito grande, trabalhava na roça.

108 109
forma que eu cuidei dela. Graças a Deus! Eles foram
para o Chile nas férias.

Trabalho em uma escola que abriu as portas para quem


não sabe nem escrever o nome. Trabalho no CEFET
há muito tempo e me sinto muito bem aqui. Peço a
Deus para só sair daqui quando pegar minha carta de
aposentaria, meu sonho! Me sinto feliz trabalhando no
CEFET, prestando o meu serviço, fazendo aquilo que
gosto, que é fazendo a limpeza. Muita gente não vê
com bons olhos o serviço de limpeza, mas eu me vejo Wanderlei Pereira de Araujo
com bons olhos, vejo que sou capaz de fazer um bom
serviço. Meu nome é Wanderlei Pereira de Araujo. Nasci em
Agradeço essa oportunidade a todos os colaboradores Minas Gerais. Lembro que tive uma infância conturbada,
do projeto “A escrita de si”. Porque é muito triste não na adolescência estive muito doente. Como gosto de
saber escrever, marcar com o dedo, porque, na minha ler, eu lia muito a Bíblia. A leitura despertou minha
turma, tinha gente que não sabia nem escrever o nome. curiosidade de visitar a igreja Evangélica que minha
Então me sinto privilegiada, por trabalhar, conviver mãe frequentava. Eu fui um domingo à noite e depois
com o pessoal do CEFET, com essa turma maravilhosa deste dia até hoje eu não sinto mais nada. Sarei 80%.
que está nos ajudando, prestando o meu serviço.
Agradeço a todos. A primeira escola onde estudei chama-se Escola
Estadual Ana Gomes, fica no bairro Jardim Europa,
O que eu gosto de fazer é sair de manhã para trabalhar, na região de Venda Nova. Tinha uma professora lá, que
com a graça de Deus, voltar para minha casa, ir à igreja se chama Rosângela, uma gordinha e baixinha. Tinha
e ficar com a minha família. Não sou de ir para outros outra que se chamava Suely, usava óculos e era muito
lugares. Já fui. Agora não.

110 111
brava. Era professora de Matemática. Na escola eu os alunos estudarem. Também é bom para mim, pela
jogava bola com os colegas na quadra da escola. comunicação verbal, o otimismo amigável. Pode haver
alguns desentendimentos, desde que seja passageiro,
Depois fiquei um tempo sem estudar e retornei para porque, para mim, o que vale é a comunicação com
outra escola, a Escola Municipal Dora Landes, no respeito.
bairro Minascaixa, mas só fiquei lá pouco tempo. Em
2005, mudei para o bairro Milionários, no Barreiro. O que eu mais gosto é de ler. A comida que eu mais gosto
Depois minha mãe morreu, daí fui morar com meu pai é a de domingo. A pessoa que mais admiro é minha
no interior de Minas. Meses depois, voltei para Belo mãe. Meu programa de TV favorito é o jornalismo. Meu
Horizonte. Morei em vários bairros. Agora já tem quatro sonho é me sentir realizado. O esporte preferido é a
anos que estou no mesmo bairro. As matérias que eu natação. O meu maior medo é a morte. Uma de minhas
mais gostava eram Ciências e Geografia. Já era para eu qualidades é ser sincero. Um defeito é cutucar o nariz.
ter completado os estudos. Mas eu tive de parar para Minha religião é Evangélica.
conseguir trabalhar.
Bom, eu espero um futuro melhor. Quem não espera,
Desde que comecei a trabalhar, só fiquei desempregado né? No momento não vieram à minha mente meus
seis meses, graças a Deus! Desse tempo pra cá não anseios. Procuro viver uma vida normal, como ela é.
faltou emprego para mim. Procuro me esforçar bastante Tenho meus sonhos e espero que um dia eles se tornem
para manter o meu emprego. Procuro cumprir com reais.
minhas obrigações. Eu sei que é meio difícil, mas com
Deus e as bênçãos dele, eu consigo. Procuro ser amigo
de todos, tratar todos bem, porque são minha segunda
família.

Sobre o Cefet, parece ser um local muito bom para

112 113
motivos de estudo e de trabalho. Por isso, eu coloquei
em minha cabeça que, no lugar de estudar, eu iria
brincar, e comecei a matar aula sem parar.

Meu primeiro emprego foi em uma fazenda onde eu entrei


como agricultor. Lá a gente fazia de tudo, eu não tinha
noção nenhuma de dinheiro. Pegava e, no dia seguinte, já
não tinha mais nada, ficava tudo com o patrão, que tinha
um supermercado, e meu dinheiro ficava por lá. E 20%
com a minha avó, eu achava que, com esse dinheiro, eu
Wesley Gondinho dos Santos ajudaria na casa, achava que era muito. Com 16 anos de
idade, saí definitivamente da casa da minha querida avó,
Me chamo Wesley Gondinho dos Santos, nasci em 25 trabalhei lá na fazenda um ano e quatro meses, mais ou
de novembro de 1993, em um hospital localizado em menos, e vim para Belo Horizonte quando tinha 17 anos,
Eunápolis, Bahia. Lembro que minha mãe não tinha quase completando 18.
condições de ficar cuidando de mim, por isso ela me
deixava com minha avó para ir trabalhar e, assim, me Comecei a trabalhar em uma obra, tive uma relação

manter. Eu fiquei com a minha avó e me acostumei. com uma moça. Estava vivendo em uma cidade grande,

Ela fazia tudo o que podia, mas não era muita coisa mas, depois de alguns meses, ela não aguentou ficar

não. Lembro que ela não tinha condição de comprar longe dos parentes dela e teve vontade de ir embora.

material escolar para eu estudar, tentei até continuar, Ela foi, e eu fui também. Chegando lá fui morar com

mas tive que largar os estudos para trabalhar. Minha a minha mãe, fiquei lá uns dois meses, saí de lá e fui

avó queria que eu fizesse as duas coisas, mas, naquela morar em Porto Seguro, Bahia. Fiquei lá com o meu

condição, não dava. Eu tinha, na época, em torno de pai também uns três meses e arrumei uma namorada

14 anos e quase nunca eu soube o que era brincar, por que topou vir para Belo Horizonte comigo. Viemos e,
com sete meses de relação, ela foi embora por motivos

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pessoais. Eu fiquei aqui em BH e segui com a minha Já perto do nascimento do meu filho, vi que aquilo
vida. Nunca fui de sair, sempre gostei de ficar quieto, não seria a maneira certa de agir. Saí limpo, graças a
e mudei radicalmente. Fiz amizade no bairro onde eu Deus, minha esposa que sempre esteve ao meu lado
moro, ficava no trabalho para as festas e, nessa vida persistindo para eu sair. Comecei a levar uma vida
de balada, certo dia estava em uma casa de show e honesta e comecei a procurar trabalho. Como estava
estava doido para ir embora: “Ah quer saber? tô indo muito ruim, eu comecei a trabalhar no centro de Belo
embora já”. Na saída da balada, de repente, meu olhar Horizonte como ambulante, e fiquei levando assim, até
bateu com o de uma mulher linda que não consegui que a empresa atual em que estou me ligou. Aquilo foi
nem sequer disfarçar. Eu dei uma disfarçada e caí muito bom, pois eu estava em crise. Logo após veio o
pra dentro do banheiro, saí, fui lá fora tomar um ar, meu segundo filho e eu tive que colocar realmente os
pensando comigo: “Volto lá e vemos o que vai dar”, pés no chão. Hoje, estou focado com os meus objetivos,
e, aí, começou a paquera. Começamos a namorar, pensando em mim e na minha família. Futuramente
namoramos uns meses e logo percebi que era ela a penso em terminar meus estudos e, quem sabe, fazer
mulher da minha vida. Ela morava na casa dos seus uma faculdade. Penso em ajudar minha esposa a
pais e eu na minha casa. Passou um tempo e eu a finalizar os dela também.
chamei para vir morar comigo, e ela aceitou. Com
seis meses morando juntos, a gente soube que ela Hoje, com tudo o que aconteceu comigo, aprendi a ficar
estava esperando um anjinho, nosso primeiro filho. mais forte. De todos os meus irmãos (2 de pai e mãe e 3
Foi a melhor coisa que já me aconteceu, foi o melhor de mãe), sou eu que tenho melhor condição financeira.
presente que Deus e ela poderiam me dar. Fiquei doido Sei que não é nada comparado ao que quero, mas basta
com aquela notícia, queria fazer de tudo por eles, foi aí ter paciência, afinal o país ainda está em crise. Sei que
que eu me envolvi com o tráfico, achando que aquele minha hora vai chegar. Gosto muito do meu trabalho,
seria o melhor caminho. Disse para ela que eu estava tenho uma ativa relação com meus colegas e chefe.
naquela vida, ela levou um choque, mas permaneceu
firme do meu lado.

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Adriana de Paula Reis
AS VOZES DE QUEM FAZ O BRASIL

Cheguei ao CEFET para estudar inglês no início de 2019.


Morando próximo ao Campus I, passei inúmeras vezes
em frente ao prédio sem imaginar que ocuparia suas
salas. É que, para mim, só havia cursos técnicos, de
exatas, no CEFET. Foi uma surpresa saber que poderia
cursar línguas na escola, com a mesma acessibilidade
da UFMG, sem precisar cruzar a cidade. Surpresa
maior foi quando soube do curso de Letras/Linguagens
e dos vários projetos de extensão existentes. O “Escrita
de Si” conheci vendo um cartaz nos vastos corredores
da escola: A escrita como forma de visibilidade de
trabalhadores terceirizados. Guardei esse chamado em
um lugar especial, enquanto pensava: Acredito nisso!
Desde a infância já experimentara o poder das histórias
escritas em tornar visível outros mundos e em salvar
vidas, como a minha.

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Alguns meses depois entrei num túnel longo, que me percurso. Quanto maior a escuta, mais rica e afinada
tirou do aqui e me lançou no fundo do fundo de mim nossa orquestra interior. Minha presença foi bem aceita
mesma. Estava em outro tempo e nesse, pela primeira pelos alunos. Aos poucos eles foram me demandando
vez, desde os 15 anos, eu não iria para o trabalho. questões, propondo debates e escutas. Era bom estar
Experimentava agora o lugar das falências. Tendo no CEFET, com eles, com os professores, com colegas
estudado e trabalhado por anos a relação entre saúde carinhosos e competentes. Era bom ser chamada de
mental e trabalho, eu sabia que era urgente encontrar “professora”, além de psicóloga. Era bom ter uma
outros espaços de mim, inventar-me outra com os carteirinha que me identificava como aluna e me fazia
pedaços da que precisou quebrar. Minha voz precisava entrar no bandejão com comida boa, além de me abrir
sair. Uma certeza me guiava, a de que a reinvenção outras portas e janelas. Meu horizonte se expandia.
exige outros movimentos, lugares e conexões, não Era esse o remédio.
apenas com os dos consultórios médicos.
Com o projeto, em meio às regras de português e
No início de agosto, no meio ao meu labirinto, cheguei aos debates a partir das leituras, eu fui ouvindo as
outra vez ao CEFET. Dessa vez para uma disciplina narrativas daquelas pessoas. A escrita e a oralidade se
isolada no Doutorado de Estudos de Linguagem. misturam na nossa História. Todos somos narradores.
Conheci um dos professores do “Escrita de si” e, na Eu gostava de saber sobre essas histórias de vida e de
primeira aula, me ofereci como voluntária do projeto. trabalho – as dores, as lutas, as conquistas suadas e
Acho que o professor até se assustou com esse interesse os sonhos. Assim conheci os córregos da cidade de um,
imediato. Não sabíamos o que eu faria. Propus que a sala de aula na casa da professora, a dor da criança
eu frequentasse as aulas de quarta-feira. Já tinha que perde ao mesmo tempo o pai e a mãe, as fugas para
aprendido que os desenhos dos nossos trajetos e ter outras músicas, que não os gritos conhecidos, as
dos encontros que animam o caminho escapam aos longas distâncias percorridas, diariamente, para estar
planejamentos. Eles se fazem com o movimento e a no trabalho. A maioria desses trabalhadores acorda às
melodia que conseguimos escutar dos que estão no 4 horas da manhã. Muitos começaram a trabalhar na

120 121
infância. Grande parte só teve a família próxima como artigos de luxo. E eu, fascinada pelas narrativas que
apoio. Às vezes, nem mesmo isso. Era constante ouvir lia, não tinha uma que me ajudasse a entender a de
a batalha deles desde pequenos para ajudar a família e minha família e a do mundo que via. Daí meu empenho
observar a ausência de políticas públicas protetivas na em contribuir com este livro, de ouvir e registrar as
infância, nosso período mais frágil. Até as escolas eram histórias de trabalhadores, como meus avós, pais e tios.
longe e poucas. Perto, o trabalho, pesado e penoso, para O desejo de ver escritas as vozes de quem está e faz o
corpos ainda não amadurecidos. A dificuldade para Brasil, desde tempos imemoriais, e não tem sobrenome
estudar veio como consequência das muitas distâncias de “coronel”, de quem sempre teve sua vida abafada
e de tantos obstáculos. pela arrogância dos que apossaram dessas terras e da
narrativa deste país.
Em meio a tantas vozes, a gente uma hora aprende
que todos nós também escrevemos histórias, com e em Então, este livro é um pedaço da nossa narrativa,
nossos corpos. Nelas, há um chamado das gerações de dos que constroem essa nação. A História não se faz
nossos antepassados que ainda ecoa em nossa alma apenas com o registro dos poderosos, mas com a vida
e carne. Lembrei-me que ainda na adolescência, ao pulsando na labuta diária. Essas vozes clamam há
fazer um trabalho escolar sobre a história dos nomes séculos. Escutemos.
de praças e equipamentos públicos da minha cidade,
só encontrei a narrativa de “homens importantes” –
os coronéis do café e os políticos, sendo que estes se
misturavam àqueles. Havia livro com a história dessas
famílias, da vinda para o Brasil, do trabalho incessante
que justificaria a riqueza acumulada. Não vi a história
da minha família, nem de outras parecidas com a
minha. Meus pais não sabiam dizer, ao certo. Nenhum
registro e raríssimas fotos, estas era consideradas

122 123
Enfim, a leitura era um sonho para cada um deles
que, quando crianças, não tiveram essa oportunidade.
Todos me contaram as dificuldades das famílias e a
necessidade de trabalhar, na infância, até mesmo na
dureza da roça, para ajudar no sustento da família.
E vendo o entusiasmo, a vontade de aprender e o
esforço deles, achei que mereciam, sim, uma chance.
Beatriz Electo Maciel Quem enfrenta ônibus cheio para ir à escola estudar,

REFLEXÕES DE UMA depois de um estafante dia de trabalho, merece ter esse

PROFESSORA-ALFABETIZADORA esforço compartilhado por quem ainda se sente capaz


de ofertar ajuda, ainda que mínima.
Ter sido convidada para fazer parte, como alfabetizadora,
do projeto “A Escrita de Si como instrumento de É inaceitável e inacreditável que, em pleno século

visibilidade do Cefet-MG”, foi uma surpresa. Confesso XXI, haja pessoas analfabetas a prestar serviços em

que fiquei um pouco assustada. Há tanto tempo fora tão conceituada instituição de Ensino. De acrescentar

de sala de aula, será que eu daria conta? Foi a minha que muitos têm ainda de fazer “bicos” para aumentar

reação no primeiro momento. Mas não tem como a renda; e as mulheres têm também uma segunda

dizer não a um projeto tão interessante, tão bom, tão tarefa, a de lavar, cozinhar, cuidar da casa e da família.

cidadão como é o “A Escrita de Si”. Resolvi enfrentar o Alguém tem que fazer alguma coisa para mudar essa

desafio. E tão logo tive os primeiros contatos com meus realidade. Por isso, aceitei a tarefa de contribuir neste

alunos, não tive dúvida. Ao vê-los com tanta vontade ousado e maravilhoso Projeto. Assim, iniciei o meu

de aprender, enchi-me de ânimo. Cada um com o seu trabalho. As dificuldades eram e são muitas, a começar

objetivo. Uma aluna me falou que tinha vontade de pela diferença do nível de conhecimento deles. Alguns

aprender a ler para tirar a sua carteira de motorista; já sabem ler um pouco, outros ainda estão na fase

outro, que era para ter um melhor desempenho na bem inicial de conhecer as letras. E o mais desafiador

vida e a outra para ensinar o “para casa” a seus filhos. é o tempo, uma hora por semana, e todos juntos na

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mesma sala. Mas começamos e fizemos o que era
possível. Antes pouco do que nada, me dizia Juliana,
que sempre me encorajou e incentivou. Por sorte, conto
com o apoio de uma equipe que está sempre disponível,
quando dela solicito ajuda com material didático e
mesmo na atenção aos alunos.

Minha maior motivação vem mesmo desses alunos


trabalhadores que também me ensinam muito com
Bruna Fontes Ferraz
seus anseios e ricas experiências de vida. Sem contar “AMOR PALAVRA QUE LIBERTA”:
a afetividade, o carinho e a confiança que deles recebo. CONHECENDO A HISTÓRIA DE VIDA DOS
Ao iniciar o ano, recebi a feliz notícia de que o Projeto TERCEIRIZADOS DO CEFET-MG
tinha conseguido mais meia hora de aula semanal.
Assim, vamos, aos poucos, tendo conquistas que vão Por isso eu pergunto a você no mundo
melhorar o nosso trabalho. Propus separar os alunos Se é mais inteligente o livro ou a sabedoria
em dias diferentes, agrupando-os conforme o nível de Marisa Monte

conhecimento. Minha proposta foi aceita. Tenho certeza


de que vai facilitar e agilizar a aprendizagem deles, Sem pretender desvalorizar o saber advindo dos
que passarão a ter atenção individualizada. E, assim, livros, a compositora Marisa Monte, em sua canção
caminhamos, procurando deixar o melhor de mim e “Gentileza”, parece reafirmar a importância da
com muita vontade de acertar e ver resultados. Por fim, sabedoria do povo, aprendida nas ruas, ensinada
quero parabenizar a equipe do Projeto “A Escrita de pela vida, numa possibilidade de conciliação entre o
Si” e agradecer a oportunidade de fazer parte de tão erudito e o popular. Embora esse encontro seja já um
louvável e grandioso trabalho. movimento previsto nas artes de uma maneira geral,
se resolvermos perguntar quem é mais inteligente, o
Experimentava agora o lugar das falências. Tendo
livro ou a sabedoria, como fez Marisa Monte nos versos
estudado e trabalhado por anos a relação entre saúde

126 127
que abrem este texto, ainda encontraremos muitos pessoas, valorizou a sabedoria de cada uma delas,
que elegerão o saber advindo dos livros, ou seja, o permitindo o cruzamento entre o saber formal e o
saber escolarizado, como o mais importante. Resposta popular.
paradoxal se considerarmos que, no Brasil, mais de
50% da população de 25 anos ou mais de idade não Este livro é fruto desse encontro.
concluiu o Ensino Médio.
Esse contraste permeia o próprio espaço legitimado Quando fui convidada para ministrar aulas para os
para propagação do saber científico: a escola, onde terceirizados, não poderia prever que o pouco que eu
convergem os livros e a sabedoria, para continuarmos tinha a ensinar seria sobreposto ao tanto que aprendi:
usando as palavras da cantora. naqueles breves encontros, realizados às segundas-
feiras durante o segundo semestre de 2019, cada
Numa instituição de ensino centenária como o CEFET- história foi sendo narrada aos poucos, revelando dor
MG, que oferece formação acadêmica completa, desde e dificuldade, mas não sem superação, resiliência e
o técnico de nível médio até o doutoramento, o saber amor. Narrar a própria vida nem sempre foi fácil: fatos
popular, muitas vezes, fica a cargo de seus terceirizados, cuidadosamente arquivados na memória insistiam em
pessoas responsáveis pela manutenção de um local voltar e lembranças de eventos traumáticos ressurgiam,
agradável, que zelam pelo bem-estar coletivo, mesmo associadas a uma dificuldade em elaborar, oralmente
que, para muitos, sejam invisíveis. e por escrito, histórias que causavam tanta emoção.
Foi assim que entrou a literatura: por meio da palavra
Visando, portanto, dar maior visibilidade aos poética aquelas histórias encontraram sossego ao lado
terceirizados do CEFET-MG, o projeto “A escrita de si de tantas outras, como a de Carolina Maria de Jesus,
como instrumento de visibilidade para os terceirizados Conceição Evaristo, Chimamanda Ngozi Adichie,
do Cefet-MG”, idealizado e coordenado por Juliana Cristiane Sobral, entre tantas outras vozes que lhes
Azevedo Pacheco e por Nelson Nunes, além de ter mostravam que “amor” é uma palavra que liberta, para
evidenciado o trabalho e a história de vida dessas evocarmos outro verso da canção de Marisa Monte.
Muitos dos meus alunos do projeto “A escrita de si” não

128 129
puderam concluir seus estudos na idade apropriada.
Porém, os impasses impostos pela vida, a uns mais do
que a outros num país de contrastes como o Brasil,
não os impediram de continuar a acreditar no poder
transformador da educação.

Transformados, portanto, pelo saber dos livros, eles Cláudio Humberto Lessa
puderam, finalmente, tomar a palavra que lhes foi, POR UMA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA
durante muito tempo, negada, para clamar por um
espaço que lhes é de direito. Minha história no CEFET-MG, unidade Belo Horizonte,
inicia-se no ano de 2013, quando consegui uma vaga
para lecionar Língua Portuguesa como professor
substituto. No ano de 2014, passei no concurso
público e efetivei-me em abril de 2014. Após nove anos
de Ensino Técnico como professor de Informática na
FUNEC (Fundação de Ensino de Contagem) e 19 anos
de magistério na Prefeitura de Belo Horizonte, novas
perspectivas surgiram em minha trajetória de vida
profissional. Que alegria! Ingressar em uma Instituição
tão respeitada, tão reconhecida pelos seus méritos
técnico-científicos no País. Que alegria! Aqui poderia
ampliar minhas atividades como professor-pesquisador
em Análise do Discurso, poderia atuar na graduação
em Letras e no Programa de Pós-graduação (mestrado
e doutorado) em Estudos de Linguagem e, ainda,

130 131
continuaria atuando no Ensino Técnico e no PROEJA, por meio do grupo “Narrar-se CEFET-MG”. Histórias
modalidade que até pouco tempo ainda era ofertada de vida que se tornaram, em 2018, tema do projeto “A
pelo CEFET, mas que, infelizmente, hoje não existe escrita de si”, idealizado pela Juliana Azevedo Pacheco
mais. Modalidade que aprendi a amar ao longo destes e pelo Nelson Nunes dos Santos Júnior.
meus 31 anos de profissão; modalidade que tanto me
ensinou e me ensina a ser Professor e que, creio, exige Considerei, inicialmente, este projeto, uma chance
de mim ser um Educador e um Ser Humano melhor. para continuar alimentando minha paixão pela
EJA, uma oportunidade para exercitar um trabalho
Em 2004, ainda na Prefeitura de Belo Horizonte, voluntário, para poder aprofundar laços de amizade
comecei a aprender a ensinar na EJA (Educação de e de solidariedade entre colegas nesta Instituição
Jovens e Adultos). Foram tantas descobertas! Essa e, também, para participar de um programa com
modalidade, seus sujeitos, seus atores, exigiram de feição de educação popular e, assim, poder, de
mim pensar novas formas, mais significativas, de alguma forma, militar politicamente em prol de uma
ensinar-aprender a Língua Padrão, de relacionar com educação que seja inclusiva, libertadora, propiciadora
o discente, exigiu que eu me tornasse um professor de autoconhecimento, de autorreflexão, de realização
mais afetivo, mais respeitador dos diversos ritmos de do ser humano, de sua possível emancipação em um
aprendizagens, dos diversos níveis de alfabetização sistema marcado por diversas desigualdades sociais
e de letramento, das diversas orientações afetivo- geradas nos diversos espaços estruturais de poder:
sexuais, mais compreensivo quanto à diversidade espaço da cidadania, do mercado, da vida familiar, da
de afetos (positivos e negativos) que determinam as produção, da comunidade e do mundo.
subjetividades, quanto aos limites de cada aluno(a),
quanto à diversidade de histórias de vida... Histórias Para pensar sobre essas desigualdades, o projeto teve
de vida que viriam a se tornar uma paixão para mim, como tema central a desigualdade de etnia/raça, a
que se tornariam objeto de pesquisa em meus estudos partir da figura da escritora Carolina de Jesus. A
de pós-graduação na UFMG e aqui no CEFET-MG, partir de trechos de seu livro Quarto de despejo e de

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vídeos biográficos, iniciamos, então, nossos encontros de processo de pesquisa-ação-formação-existencial,
semanais com os trabalhadores terceirizados. Em trata-se de um método que visa levar o sujeito a se
cada encontro, priorizamos textos autobiográficos apropriar do poder de refletir sobre sua própria
em diversos suportes: livros, poemas, vídeos, dentre vida, sobre seu processo permanente de educação,
outros. Cada discussão, cada exercício proposto nos permitindo-o atribui sentido a suas vivências e, ainda,
motivavam a querer mais, mais tempo para refletir, refletir sobre questões de natureza ética, político-
para partilhar vivências, para celebrar o conhecimento social, dentre outras. Segundo Pineau (2006), trata-se
e instigar o prazer de poder falar de si, do outro: do de considerar o exercício do que Foucault chama de
outro CEFET-MG, do outro família, do outro colega “cuidado de si”, técnica da existência que pode permitir
de trabalho, do outro relações de trabalho, do outro ao sujeito insurgir-se contra o instituído, contra as
desigualdades sociais, enfatizando, sobretudo, o naturalizações e, assim, transformar-se, apropriar-se
preconceito racial. Ideologia gerada a partir de relações de si e realizar-se.
de poder entre grupos étnicos, baseada na distinção
Assim sendo, considero que todo o projeto “A
entre sinais diacríticos tais como cor, textura de cabelo,
escrita de si”, todos os nossos encontros, as nossas
traços biológicos, que estabeleceu uma hierarquia que
vivências, todas as nossas partilhas, a partir de textos
valorizou os traços biológicos, os padrões estéticos e
problematizadores, e, agora, a publicação destas
comportamentais brancos como superiores em relação
narrativas, possibilidades de expressão forte de
aos dos negros escravizados.
sujeitos, de (inter)subjetividades, de vozes, de pontos
A cada encontro, nossos colegas, trabalhadores de vista a partir de lugares de fala que, historicamente,
terceirizados, foram, então, partilhando suas reflexões, foram subjugados por poderes sócio-econômicos,
seus questionamentos, suas dúvidas, foram tecendo políticos, midiáticos, disciplinares, colonizadores,
os fios de suas memórias de vida estudantil e laboral totalitários, fascistas, patriarcalistas, que visavam e
que, agora, estão registradas neste livro. Buscamos visam manter as diversas desigualdades, a exploração/
exercitar, por meio da partilha e da escrita de si, o que escravização da força do trabalho humano, alijando os
alguns estudiosos do campo da educação têm chamado sujeitos da dignidade humana. O leitor pôde, então,

134 135
conhecer facetas identitárias de sujeitos trabalhadores
do CEFET-MG que, neste espaço, gozam da liberdade
de contar suas trajetórias de vida, seus sonhos, seus
anseios e esperanças por dias melhores, seus desejos e
suas lutas pelo conhecimento, pela formação humana,
tecnológica, pelo pão de cada dia, pelo “dom de ser
capaz e de ser feliz”. Agradeço a Deus, imensamente,
a todos os colegas trabalhadores terceirizados, a toda
a equipe do projeto “A escrita de si” e finalizo com este
pensamento de Ghandi:

Se eu pudesse deixar algum presente a você,


deixaria aceso o sentimento de amar a vida dos
seres humanos. A consciência de aprender tudo
o que foi ensinado pelo tempo afora. Lembraria
os erros que foram cometidos para que não
mais se repetissem. A capacidade de escolher
novos rumos. Deixaria para você, se pudesse, o
respeito àquilo que é indispensável. Além do pão,
o trabalho. Além do trabalho, a ação. E, quando
tudo mais faltasse, um segredo: o de buscar no
interior de si mesmo a resposta e a força para
encontrar a saída.

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