Você está na página 1de 97

UNIDADE 3

TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM
ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

A partir desta unidade você será capaz de:

• conhecer uma visão antropológica da educação;

• problematizar o modo de educar no cotidiano;

• descomplexificar a compreensão da educação.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles você encontrará dicas,
textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior
compreensão dos temas a serem abordados.

TÓPICO 1 – ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A


ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

TÓPICO 2 – DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

TÓPICO 3 – ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

125
126
UNIDADE 3
TÓPICO 1

ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A


ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

1 INTRODUÇÃO

FIGURA 30 - CRIANÇAS NA ESCOLA

FONTE: Disponível em: <http://rede.novaescolaclube.org.br/files/


alunos-na-escola-15263jpg>. Acessado em: 26 jul. 2016.

Caro acadêmico! Compreender o espaço escolar não é algo evidente. O


cotidiano da sala de aula é um desafio aos estudantes, professores e gestores da
área da educação, por isso trazer o olhar antropológico para observar, vivenciar
e ensinar na esfera escolar é uma estratégia importante nos dias de hoje. Assim
como, conhecer o contexto sócio-histórico da instituição e da comunidade escolar
e observar com criticidade os objetivos do ato de ensinar na sociedade em que
vivemos é fundamental para formação do licenciando.

Esse olhar antropológico é um enquadramento que não tem apenas uma
perspectiva, mas que tenta abarcar diferentes pontos de vista e relacioná-los a fim
de indicar respostas possíveis para tantas indagações sobre a sociedade. Ao mesmo
tempo, se deseja perceber as complexidades, as camadas, os nós dos fenômenos
sociais, e não somente ter uma resposta simples, fácil, pronta e reducionista. Temos
de refletir de modo mais profundo! Dessa forma, a antropologia deve ajudar não
só a pensarmos sobre o outro, mas pensarmos em nós mesmos nesse processo de
leitura do mundo e imaginação a partir dele.
127
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

No entanto, o modo de enxergar o mundo é um exercício constante de


reflexão. E por trás dessas reflexões estão também concepções teóricas sobre o que
é e como funciona esse mundo. Ou seja, em meio aos problemas sociais, como a
violência, drogas, mendicância, tentamos explicar, entender e compreender seus
acontecimentos durante a prática cotidiana de convivência com o outro, visto que
compartilhamos ideias, espaços e vivências sobre o motivo e por que as coisas
acontecem. E nesta busca explicativa, sair do lugar comum, do único ponto de
vista, ou seja, da resposta ingênua faz com que estejamos em uma atenção constante
sobre o que pensamos e fazemos para nós e para os outros, principalmente dentro
da sala de aula. Logo, o professor deve ser um “pesquisador-em-ação” (MOREIRA,
1995) na sala de aula, e não um mestre com um saber congelado que “despeja” o
conteúdo para os seus alunos.

2 EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA

Considerando as desigualdades sociais, históricas, econômicas e políticas


na nossa sociedade, estimular a crítica é fator essencial para que possamos perceber
a heterogeneidade que nos rodeia. Diferente do que diz o senso comum, ser crítico
não é ser negativo, falar mal sobre algo ou ser intrometido. A palavra "criticidade"
vem do grego e significa “discernir, interpretar, julgar, distinguir entre verdade
e erro", então quem ensina deve perceber as nuances dos fenômenos sociais e
fazer com que seus alunos e alunas compreendam as complexidades das questões
que envolvem a todos. Nesse sentido, um dos papéis fundamentais da escola é
possibilitar uma visão mais ampliada da realidade e permitir outras possibilidades
de pensamentos, questionamentos e percepções sobre o que acontece no nosso
mundo.

Como se diz, "sair de cima do muro" é se expor, defender, lutar e se
posicionar sobre o que ocorre na sociedade. Mas, para isso, precisamos estudar,
pesquisar, conhecer, debater, discutir, e o docente é uma das pessoas que mais
vai estimular essas ações e reações de seus estudantes. Mostrando que todos
somos responsáveis de alguma forma pelo que acontece no mundo social, e
podemos, sim, nos posicionar e modificar a realidade por um mundo mais justo
e igualitário. Se manter quieto e impassível também é uma posição que se toma,
e é preciso saber o que isso acarreta. Ou seja, a apatia dos indivíduos não garante
a desresponsabilização pelas mazelas do mundo, pelo contrário, a aparente
indiferença pode ser justamente responsabilizada pela conivência e insensibilidade
para com a desigualdade praticada.

Às vezes, tomamos uma versão da história como a correta, e não dos


damos conta de que existem outras versões para a mesma história. Cada um vai
defender aquela que lhe faz mais sentido, entretanto para isso temos de ir atrás a
fim de conhecer as outras versões e perceber quanto um olhar mais profundo dá
outras dimensões sobre o mesmo fato. Numa guerra, por que será que dividimos
um em "bonzinho" e outro em "mal"? Será que os dois lados não carregam um

128
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

teor de maldade e bondade? Mas então, quais critérios utilizaremos para pensar
de que lado estamos? O que sabemos sobre cada lado? Que informações vêm até
mim? Como as informações chegam? Será que existem outras maneiras de eu
conhecer essa realidade? Aqui, não queremos condenar ou vitimizar um dos lados,
entretanto, estar aberto para conhecer versões nos torna mais sensíveis para talvez
perceber que estamos errados. E que bom, pois errar é humano, e "sair de cima do
muro" pode ser muito compensador.

Logo, cabe nos conscientizarmos de que nosso etnocentrismo pode conter


uma dose de injustiça ao colocar uns acima de outros ou dizer quem é certo ou
errado, por isso, rever em que valores, ideais e noções estão pautadas nossas
concepções sobre o mundo pode ser um começo para utilizar a antropologia e
pensar as questões de educação. É no contato com o outro que praticamos nossa
alteridade e nos questionamos sobre como pensamos o outro, por isso exercitar
essa reflexão permite que nos coloquemos numa posição mais humilde e menos
soberba diante da sociedade moderno-contemporânea.

DICAS

Recomenda-se ver o vídeo da escritora Chimamanda Adichie sobre o perigo


da história única e reflexões que ela faz diante da sua história de vida e o
modo de conhecer o outro.
Disponível em: <https://youtu.be/ZUtLR1ZWtEY>.

As instituições formam uma rede simbólica, pautada num mundo de


significações, no qual a captação das categorias dispostas pelos homens pode ser
assimilável no sentido prático por outros homens, como evidencia Castoriadis
(1982). Logo, a escola é uma instituição social que favorece a socialização e torna
possível a instauração de uma nova significação operante no mundo social, pois
é no convívio diário com outros colegas, professores, funcionários, diretores que
os indivíduos incutem normas e regras sociais, aprendem os meios formais de
comunicação na sociedade, conhecem outras maneiras de aprender, acessam
diversos materiais e estabelecem vínculos sociais.

Sabemos que nem todas as pessoas tiveram a oportunidade de frequentar a


escola como um espaço formal de aprendizagem, por isso enfatizamos que o espaço
escolar não é o único local que permite ao indivíduo aprender. Muitas vezes ouve-
se dizer "Eu frequentei a escola da vida!", e nessa afirmação deve-se considerar a
dimensão experiencial como um processo de aprendizagem extremamente válido.

129
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Entretanto, hoje em dia, cada vez mais a aprendizagem formal tem sido exigência
para as vagas de empregos nas diferentes áreas, logo, as formações, graduações
e especializações ensinam não só o conteúdo, mas como se posicionar, como se
relacionar no ambiente de trabalho e como se socializar na área de conhecimento
desejado. Ou seja, a instituição escolar deixou de permear uma fase da vida do
indivíduo para permear a vida do indivíduo retomando a ideia de que a socialização
permitida nesse âmbito favorece aprendizagens distintas.

Ou seja, "saindo" da família para a escola, o indivíduo é levado a perceber


que ele não é mais o centro do mundo, como era tratado em sua família. Na escola,
nem sempre será o centro da atenção, nem sempre terá todas as suas vontades
atendidas e terá de obedecer a regras que talvez não sejam tão familiares. Ao
mesmo tempo que esse processo é cheio de altos e baixos, é importante considerar
o espaço escolar como locus importante no processo de aprendizagem de estar no
mundo. Lidar com emoções, conviver com outras pessoas e adaptar-se a situações
adversas também faz com que o indivíduo se flexibilize no seu modo de estar no
mundo. Conforme enfatiza Ciavatta (2001), a prática educativa deveria incentivar
o aluno a realizar uma prática mediadora no campo dos objetos problematizados
nas suas múltiplas relações de tempo e espaço, sob a ação dos sujeitos sociais, em
que se realiza numa perspectiva de análise e não numa relação de causalidade e
cronologia.

No âmbito da educação, podemos simplesmente reproduzir o que
aprendemos ou criar novas possibilidades e potencialidades ao ensinar, a fim
de chegarmos a uma educação mais democrática e inclusiva. Assim, o educador
será evidenciado nesse tópico como um facilitador, no qual a interação no espaço
escolar permite um ato emancipatório. Nesse ínterim, o docente ensina conteúdo
e conduta, ao mesmo tempo que também aprende a partir do que seus estudantes
trazem para a sala de aula, por isso dizemos que o ensino é um processo de ensino-
aprendizagem que se dá no âmbito da sala de aula.

A ideia de uma “pedagogia de gerenciamento” (GIROUX, 1997), quando o


professor apresenta um conhecimento pronto para ser deglutido e é um repetidor
de fórmulas, deve ser combatida. Nesse sentido, cabe ao docente rever a sua
metodologia a fim de criar estratégias para desenvolver um pensamento crítico
em seus alunos e alunas. Logo, é necessário o professor agir com mais “espírito
pedagógico” (MAKARENKO, 2006) do que baseado em seus sentimentos frustrados
por ser um homem (ou mulher) que não criou uma pedagogia maravilhosa e
que revolucionou práticas docentes, por isso a formação é uma etapa relevante
para que o estudante se depare com a realidade na sala de aula. Ali, neste espaço
determinado e num certo tempo, o docente vai experienciar e "se virar" para dar
aula, fazer a chamada, pedir a atenção dos estudantes e dividir com eles esse
momento de aprendizagem que será aprendido no cotidiano da escola. Não há
cartilhas para ensinar a ensinar, apenas diretrizes que podem ser seguidas ou não.

130
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

Cada aula é uma aula, cada turma é uma turma, cada escola é uma escola, e
apesar do processo educacional que desempenha, a vivência do docente é única. Por
isso, cabe continuar considerando a sala de aula como um espaço de construção de
ideias, valores e visões de mundo que o professor provoca para intermediar o que
deve ser conhecido e o que apreende a subjetividade do aluno (MIZUKAMI, 1986),
deixando de lado a aplicação de fórmulas pedagógicas que limitam a atuação do
aluno. Estimular essas potencialidades dos estudantes para ser mais pertinente
para uma educação mais democrática e inclusiva, como veremos adiante. Ainda
que o aluno não possa ter liberdade total em sala de aula, afinal de contas está
em uma instituição escolar, com regras e éticas, ele precisa de um “clima” na sala
de aula que possibilite liberdade para aprender, assim como descreve Mizukami
(1986), quando fala da abordagem humanista, e não de um ambiente em que o
professor os faça se sentirem oprimidos ou culpados por uma situação estrutural
do sistema econômico refletido na escola.

Assim deve-se ter consciência de que, como sugere Mészáros (2005), o


professor, apesar de se achar crítico do sistema, acaba por favorecer ainda mais
uma internalização dos valores da lógica capital, que dificulta a realização de uma
prática docente diferente, já que ele não é passivo desse processo, pelo contrário,
querendo ou não, realiza uma aceitação ativa da lógica vigente, e sua criticidade
é limitada por ela. Também por sua vida de trabalho intenso, este professor não
parece ter tempo e paciência para pensar e refletir sobre sua prática de ensino
e sobre as situações de aprendizagens da sala de aula, para, então, continuar a
lapidar a metodologia empregada, como sugere Moreira (1995).

FIGURA 31 - AULA EM RODA

FONTE: Disponível em: <http://novaescola.org.br/fundamental-2/ano-alunos-8o-ano-se-


tornaram-escritores-735246.shtml#ad-image-0>. Acessado em: 17 ago. 2016.

131
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

De modo que o método de o professor expor a sua aula não deixa claras
as contradições entre o “currículo oficial”, das normas e orientações da instrução
formal e o “currículo oculto”, dos valores e crenças não declarados que são
transmitidos aos estudantes junto com o conteúdo formal (GIROUX, 1997). Por
exemplos, podemos pensar no modo de sentar na sala de aula. O professor em
frente aos alunos demonstra poder, autoridade, sabedoria, mas em roda se coloca
em situação de igualdade com os estudantes para que todos possam se ver e
ser vistos. Quando o professor enfatiza alguns pensadores com mais ênfase do
que outros, vai inculcando nos estudantes, mesmo que não explicitamente, uma
simpatia com algumas ideologias em detrimento de outras, “introjetando” uma
espécie de “currículo oculto” em seus alunos. Entretanto, para se pensar uma
educação mais democrática, o professor tem de estar atento a que a teoria curricular
deveria contestar os discursos hegemônicos e não os legitimar (MOREIRA, 1995).

Por isso, Mészáros (2005) traz como proposta que o professor se afaste
dessa lógica do capital que influencia todos os âmbitos de nossas vidas, e também
a educação, que acaba por reproduzir às crianças valores perversos do capitalismo
que não as deixa mudar de ponto de vista sobre a construção social pautada
em normas brutas e cruéis. Nesse sentido, não se está negando o atual modelo
econômico, mas enfatiza-se que o professor paute a multiplicidade de processos
políticos possíveis, e não se baseie apenas no vigente para explicitar seus pontos
de vista. Levando-se em conta que currículo escolar de cada disciplina é que
direciona o que será ensinado em sala de aula, é necessário pensar no currículo
oferecido, pois, como demonstra Moreira (1995), currículo e o conhecimento são
indissociáveis, uma vez que os dois participam do processo pelo qual o indivíduo
adquire, assimila e constrói seu entendimento do mundo.

Dessa forma, o modo como olhamos o outro tem relação com o modo
como aprendemos o conhecimento, e esse é um aporte importante de reflexão. E
aqui, a antropologia que está amparada como conhecimento científico nos ajuda
a superar o etnocentrismo que pauta o mundo intersubjetivo, de modo que o
professor vai perceber sua visão etnocêntrica para tentar se afastar dela e superar
a sua própria cultura – tanto em termos políticos, econômicos e sociais – para
poder conhecer e compreender melhor a realidade de outro, podendo, com isso,
dividir com seus estudantes conteúdos mais plurais e diversos no âmbito da sala
de aula. Deste modo, a educação deve ser percebida como um projeto que pode ser
perverso, porque partindo da visão ocidental, ele é autocentrado, homogeneizador
e etnocêntrico. E ter consciência dessa questão faz com que o professor possa
relativizar seu posicionamento de uma maneira mais firme, e se abrir para uma
educação mais democrática, que seja inclusiva e dê conta das particularidades dos
estudantes, para que todos possam compartilhar as discussões e aprendizagens
em sala de aula de uma maneira profícua.

Pensando que é na sala de aula que o diálogo deve imperar, considera-


se que diálogo faz parte do processo de socialização e aprendizagem, e é através
dele que se dá a troca de conhecimento e transmissão de herança cultural. Por
isso, compreender o que aprendemos é um saber localizado, nos faz pensar em

132
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

situações pedagógicas que apresentem outros saberes. Assim, os estudantes


podem conhecer e se apropriar de outras lógicas de conhecimentos e estarem
mais permeáveis para compreender realidades que estejam mais distantes a eles,
desenvolvendo mecanismos democráticos, perante a diversidade social e cultural
existente no nosso mundo.

DICAS

Assista ao filme Pro dia nascer feliz, de João Jardim,


realizado em 2007, que mostra as diferentes escolas do
Brasil e, consequentemente, as situações vivenciadas
pelos estudantes, práticas pedagógicas dos funcionários
escolares e condições do ambiente escolar.

FONTE: Disponível em: <https://www.youtube.com/


watch?v=29zuO59qYE8>.

Nesse sentido, podemos nos apropriar da análise crítica de Gramsci (2005),


quando ele dizia que a escola atraía os filhos do proletariado para transmitir-lhes
a ideologia dominante e ocupar o mercado de trabalho, reproduzindo as relações
sociais desiguais e mantendo o sistema econômico vigente. Logo, teríamos que
rever o papel da escola, e consideramos que ali pode ser um local de construção
contra-hegemônica-operária e de mudança da sociedade existente, de modo a
formar "intelectuais orgânicos", compromissados com os ideais de transformação
da sociedade. Ou seja, a escola seria um ambiente de luta pela hegemonia.

Logo, entende-se que o que é visto, aprendido e trocado em sala de aula


ultrapassa os limites das escolas e rebate em outras esferas da sociedade. Por isso,
não só o que se desenvolve na sala de aula permite transformar a sociedade, bem
como podemos modificar o próprio espaço escolar. Ou seja, o conhecimento não
está pronto, a escola não está fadada a ser sempre a mesma coisa, a sociedade não é
naturalmente assim, de forma que tudo são construções sociais até mesmo enquanto
poder institucional. Se pensarmos na época quando nossos pais estudaram, eles
vão falar de uma outra escola e, com certeza, no futuro poderemos construir outra
escola também.

133
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

O que está se dizendo é que há uma relação próxima entre educação e


cultura, e é esse aporte que envolve ensinar e aprender em todas as dimensões da
vida social. Conforme diz Brandão (2009, p. 12),

a educação é – como tudo o mais que é humano e é criação de seres


humanos – uma dimensão, uma esfera interativa e interligada a
outras, um elo, uma trama (no bom sentido da palavra) na teia de
símbolos e saberes, de sentidos e significados, como também de
códigos, de instituições que configuram uma cultura, uma pluralidade
interconectada (não raro, entre acordos e conflitos) de culturas e entre
culturas, situadas em uma ou entre várias sociedades.

Ou seja, a antropologia e educação se aproximam na discussão sobre o
conhecimento e relacionar seus conceitos e conteúdos pode nos dar pistas para
repensar como a educação tem atuado ao longo dos anos, além de problematizar
as potencialidades e possibilidades em sala de aula, junto aos estudantes. Trocar
conhecimento e aprendizagens é um processo contínuo, que ultrapassa a instituição
escolar e nos provoca a pensar.

Podemos ir mais adiante e pensar como propõe Ingold (2014), a antropologia
como uma prática da educação na qual o modo de aprender também se relaciona
com a cultura na qual estamos e temos de ter uma postura para aprender a
aprender. Nesse sentido, essa aprendizagem supõe que estamos dispostos a
estudar as condições e as possibilidades de ser humano, mais do que se dedicar a
uma disciplina específica. Essa atenção com o que se deseja aprender se estabelece
num constante processo de educação enquanto uma postura que se aprende a ter
e desenvolver.

O processo educacional é permeado por uma rede complexa de atores,


instituições, disciplinas, conteúdos e práticas, e o sujeito vivenciando esse cotidiano
se apropria de aprendizagens para estabelecer a sua atenção para com o mundo.

DICAS

Acesse o link a seguir e veja o trabalho do fotógrafo inglês Julian Germain, que
fotografou as salas de aula de vários locais do mundo em busca de mostrar essas diferenças
dos contextos escolares. Vale a pena refletir!

LINK: Disponível em: <https://catracalivre.com.br/geral/educacao-3/indicacao/o-mundo-e-


uma-escola-conheca-diferentes-salas-de-aula-ao-redor-do-globo/>. Acessado em: 17 ago.
2016.

134
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

3 DESIGUALDADES NA EDUCAÇÃO: UM OLHAR DA


ANTROPOLOGIA

Alguns autores pesquisaram a respeito da desigualdade educacional.


Durkheim (1987; 1995) apresenta suas reflexões em relação à organização do ensino
público e sinaliza a importância da educação escolar, a partir de sua função coletiva
e civilizadora, na organização dos jovens para a vida social. Southwell (2008, p. 121)
relata, na modernidade, que “os sistemas de escolarização foram estabelecidos em
torno da ideia de que a sociedade era resultado da ação educacional”. Aspectos
que nos apresentam a extensão da importância dada à educação pública no século
XIX e as ideologias em suas probabilidades civilizatórias e também sua efetiva
ação no desenvolvimento de um trabalhador atento às novas formas de produção
econômica, segundo Tura (2014).

Forquin (1995) relata que as dificuldades ao prosseguimento dos estudos


estão relacionadas à origem social dos alunos e não ao talento individual. Estas
observações reforçam a discussão referente aos déficits culturais de certos grupos
sociais e o desajustamento de currículos escolares pautados nos códigos culturais de
uma elite social erudita. Pierre Bourdieu (1999) analisou “as desigualdades frente
à escola e à cultura”, onde sua referência era aquilo que se podia compreender
como uma expectativa, uma estimativa “objetiva” de sucesso e fracasso escolar
baseada nas diferentes origens sociais dos estudantes.

Bourdieu (1999, p. 41) critica a “escola libertadora”, que tem a função


de propiciar a mobilidade social numa sociedade democrática. Dados de
levantamentos estatísticos realizados indicavam que “um jovem da camada
superior tem oitenta vezes mais chances de entrar na universidade que o filho de
um assalariado agrícola e quarenta vezes mais que um filho de operário”. Para
Bourdieu, é necessário descrever os mecanismos que determinam essas diferenças
ou a eliminação contínua das crianças dos grupos mais desfavorecidos.

Deste modo, o autor trabalha com a noção de capital cultural, que nada mais
é que um conjunto de códigos de linguagem, valores, costumes, saberes e gostos
próprios de uma cultura letrada e erudita que é transmitida como herança cultural
aos filhos dos indivíduos posicionados nos grupos sociais mais favorecidos. A
instituição escolar determina seu currículo tendo por embasamento os códigos
dessa cultura letrada e erudita, que por sinal também é a matriz da produção do
conhecimento científico. Deste modo, a família de origem dos indivíduos marca
de forma substancial a trajetória escolar do aluno. “O capital cultural é um ter
que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante
da ‘pessoa’, um ‘habitus’” (BOURDIEU, 1999b, p.74-75). Já Tura (2014, p. 439)
afirma que “A instituição escolar, ao conferir àquele que possui o capital cultural
o reconhecimento de seu saber e de sua competência – o diploma –, sanciona as
diferenças relativas à incorporação dos benefícios econômicos, sociais e culturais”

135
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

(TURA, 2014, p. 439).

No Brasil, na década de 1970, a política de universalização da educação


básica foi aplicada, com objetivo de completa cobertura, que só foi finalizada no
século XX. Contudo, universalização não significou igualdade de oportunidades,
já que a massificação do ensino primário e secundário se deu em detrimento da
qualidade. Criando um sistema dual (desigual), no qual os pobres vão para escolas
primárias e secundárias públicas e os que possuem maior poder aquisitivo mandam
seus filhos para escolas primárias e secundárias particulares. As desigualdades
raciais e de gênero também se apresentam entre os dados educacionais.

TABELA 2 – DADOS EDUCACIONAIS

Taxa de frequência líquida a estabelecimento de ensino da população


residente de
6 a 24 anos de idade, por grupos de idade, nível de ensino e cor ou raça,
segundo as Grandes Regiões – 2013
Taxa de frequência líquida a estabelecimento de ensino da população

residente de 6 a 24 anos de idade, por grupos de idade e nível de ensino (%) (1)
Grandes Regiões
6 a 14 anos, 15 a 17 anos, 18 a 24 anos,

no Ensino Fundamental no Ensino Médio no Ensino Superior (2)

Branca

Brasil 92,7 63,6 23,5


Norte 91,6 53,8 19,2
Nordeste 91,5 52,9 19,7
Sudeste 93,1 69,5 24,4
Sul 93, 62,9 24,
Centro-Oeste 92,9 62,8 29,4

Preta ou parda

Brasil 92,4 49,5 10,8


Norte 91,5 42,8 10,5
Nordeste 91,6 44, 9,5
Sudeste 93,7 57,3 10,9
Sul 94,1 48,5 9,6
Centro-Oeste 92, 54, 17,3
       

FONTE: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2013.

(1) Exclusive as pessoas de cor ou raça amarela e indígena. (2)


Exclusive mestrado e doutorado.

136
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

QUADRO 2 - DADOS EDUCACIONAIS POR GÊNERO

Distribuição das pessoas de 25 anos ou mais de idade, por sexo, segundo os


grupos de anos de estudo – Brasil – 2014
Grupos de anos de Total Homens Mulheres
estudo
Sem instrução e menos 11,7 12,1 11,3
de 1 ano
1 a 3 anos 9,6 10,0 9,2
4 a 7 anos 22,3 23,2 21,5
8 a 10 anos 13,8 14,5 13,3
11 a 14 anos 30,1 29,2 30,9
15 anos ou mais 12,4 11,1 13,6
Não determinados 0,1 0,1 0,1
FONTE: IBGE (2014)

Estudos sobre a distribuição de renda mostram a educação como fator


fundamental para explicar diferenças nos salários. É inegável que há, em
geral, uma forte correlação entre o número de anos de estudo e o salário
percebido, mas talvez isso seja uma leitura incompleta da natureza da
estrutura distributiva (LUNA; KLEIN, p. 2009).

De 2007 para 2014, o nível de instrução obteve um crescimento, o grupo de


pessoas com pelo menos 11 anos de estudo, na população de 25 anos ou mais de
idade, passou de 33,6% para 42,5%. O nível de instrução feminino manteve-se mais
elevado que o masculino, segundo o IBGE. Em 2014, no contingente de 25 anos ou
mais de idade, a parcela com pelo menos 11 anos de estudo representava 40,3%,
para os homens, e 44,5%, para as mulheres, a partir dos dados apresentados pela
PNAD.

137
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

LEITURA COMPLEMENTAR
TABUS ACERCA DO MAGISTÉRIO

Theodor Adorno

O que irei expor constitui apenas a apresentação de um problema; nem é


uma teoria constituída, para o que não tenho legitimidade por não ser pedagogo,
tampouco o relato de resultados de investigações empíricas. Seria necessário
acrescentar pesquisas ao que apresento, sobretudo estudos de casos individuais,
principalmente em termos psicanalíticos. Minhas considerações prestam-se no
máximo a tornar visíveis algumas dimensões da aversão em relação à profissão
de professor, que representam um papel não muito explícito na conhecida crise
de renovação do magistério, mas que, talvez até por isto mesmo, são bastante
importantes. Ao fazê-lo, tocarei simultaneamente, ao menos por alto, numa série
de problemas que se relacionam com o próprio magistério e sua problemática, na
medida em que as duas coisas dificilmente podem ser separadas.

Permitam-me começar pela exposição da experiência inicial: justamente


entre os universitários formados mais talentosos que concluíram o exame oficial,
constatei uma forte repulsa frente aquilo a que são qualificados pelo exame oficial,
e em relação ao que se espera deles após este exame. Eles sentem seu futuro como
professores como uma imposição, a que se curvam apenas por falta de alternativas.
É importante ressaltar que tenho a oportunidade de acompanhar um contingente
não desprezível de tais formados, com motivos para supor que não se trata de uma
seleção negativa.

Muitos dos motivos de tal aversão são racionais e tão conhecidos que não
preciso me deter neles. O principal é a antipatia em relação ao que se encontra
regulamentado, ao que se encontra disposto por meio do desenvolvimento
definido por meu amigo Hellmut Becker como dirigido à escola administrada.
Existem também motivações materiais: a imagem do magistério como profissão de
fome aparentemente é mais duradoura do que corresponde à própria realidade na
Alemanha. A desproporção que registro por esta via parece-me, já me adiantando,
típica para todo o conjunto em questão, caracterizado pelas motivações subjetivas
da aversão contra o magistério, em especial as que são inconscientes. Tabus
significam, a meu ver, representações inconscientes ou pré-conscientes dos
eventuais candidatos ao magistério, mas também de outros, principalmente das
próprias crianças, que vinculam esta profissão como que a uma interdição psíquica
que a submete a dificuldades raramente esclarecidas. Portanto utilizo o conceito
de tabu de um modo relativamente rigoroso, no sentido da sedimentação coletiva
de representações que, de um modo semelhante àquelas referentes à economia,
já mencionadas, em grande parte perderam sua base real, mais duradouramente
até do que as econômicas, conservando-se, porém, com muita tenacidade como
preconceitos psicológicos e sociais, que por sua vez retroagem sobre a realidade
convertendo-se em forças reais. [...]

138
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

Nesta medida, conforme a percepção vigente, o professor, embora sendo


um acadêmico, não seria socialmente capaz; quase poderíamos dizer: trata-se
de alguém que não é considerado um "senhor", nos termos em que este termo
é usado no novo jargão alemão, aparentemente relacionado à alegada igualdade
de oportunidades educacionais. Numa complementariedade peculiar parece
encontrar-se o inabalado prestígio do professor universitário, apoiado inclusive
em estatísticas. De um lado, o professor universitário como a profissão de maior
prestígio; de outro, o silencioso ódio em relação ao magistério de primeiro e
segundo graus; uma ambivalência como esta remete a algo mais profundo. Na
mesma ordem de questões situa-se a proibição do título de "professor", negado
na Alemanha pelos docentes universitários aos docentes do segundo grau (hoje
chamados de Studienräte, algo como "conselheiro de estudos"). Em outros países,
como a França, não existe essa diferenciação rigorosa dividindo um sistema, o
que possibilita uma ascensão continua. Não tenho condições de avaliar se isto
influencia o próprio prestígio do magistério e os aspectos psicológicos a que me
refiro.

Os que são mais diretamente afetados pela questão deveriam acrescentar
a esses sintomas outros mais impositivos. Mas os mencionados até aqui deveriam
bastar para possibilitar algumas especulações. Afirmei que na Alemanha a pobreza
do professor é uma imagem do passado. Contudo, permanece inquestionavelmente
a discrepância entre a posição material do docente e a sua exigência de status
e poder, que deveriam lhe corresponder ao menos conforme prega a ideologia
vigente. Esta discrepância não deixa de afetar o espírito. Schopenhauer atentou
para essa situação no que se refere aos docentes universitários. Acreditava que o
comportamento subalterno que constatava neles há mais de cem anos relacionava-
se a seus péssimos salários. [...]

Conforme o sentido dessas imagens, o professor é um herdeiro do escriba,


do escrivão. Como já assinalei, o menosprezo de que é alvo tem raízes feudais e
precisa ser fundamentado a partir da Idade Média e do início do Renascimento;
por exemplo, na "Canção dos Nibelungos", onde se expressa o desprezo de Hagen,
que considera o capelão um débil, justamente aquele capelão que a seguir escaparia
com vida. Cavaleiros feudais cuja educação passou pelos livros constituíram
exceções; caso contrário, o nobre Hartmann von der Aue não teria se vangloriado
tanto de sua capacidade de leitura. Além disso, há que se acrescentar a influência
de antigas referências de professores como escravos. 1 O intelecto encontrava-se
separado da força física. É certo que sempre detinha uma determinada função
na condução da sociedade, mas tornava-se suspeito em qualquer lugar onde as
prerrogativas da força física sobreviveram à divisão do trabalho. Este passado
distante na história ressurge permanentemente. O menosprezo pelos professores
que certamente existe na Alemanha, e talvez inclusive nos países anglo-saxônicos,
ao menos na Inglaterra, poderia ser caracterizado como o ressentimento do
guerreiro que acaba se impondo ao conjunto da população pela via de um
mecanismo interminável de identificações. Todas as crianças revelam afinal uma
forte tendência a se identificar com "coisas de soldados", como se diz tão bem hoje
em dia; lembro apenas o prazer com que os meninos se fantasiam de cowboys, e a

139
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

satisfação com que correm "armados" por aí. Ao que tudo indica, eles reproduzem
de novo, ontogeneticamente, o processo filogenético, que gradualmente libertou
os homens da violência física. Todo o complexo da violência física, bastante
dotado de ambivalência e de forte conteúdo afetivo em um mundo em que ela é
exercida somente nas situações-limite por demais conhecidas, desempenha aqui
seu papel decisivo. Numa anedota famosa o condottiere Georg von Frundsberg
bate nos ombros de Lutero na Dieta de Worms dizendo: "Padrezinho, padrezinho,
agora segues um caminho perigoso". Uma atitude em que se misturam o respeito
pela independência do espírito e um desprezo. Ainda que tênue, por quem, não
portando armas, logo pode se tornar vítima de esbirros. Movidos por rancor, os
analfabetos consideram corno sendo inferiores todas as pessoas estudadas que se
apresentam dotadas de alguma autoridade, desde que não sejam providas de alta
posição social ou do exercício de poder, como acontece no caso do alto clero. O
professor é o herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte de suas
funções, o ódio ou a ambiguidade que caracterizava o ofício do monge é transferido
para o professor.

A ambivalência frente aos homens estudados é arcaica. É verdadeiramente


mítico o impressionante conto em que Kafka narra o assassinato do médico do
interior rural que atendia a um chamado noturno que se revelaria falso; a etnologia
sabe que o curandeiro ou o cacique tanto pode usufruir de honrarias quanto pode
ser sacrificado em determinadas situações. Pode-se perguntar por que o tabu
arcaico e a ambivalência arcaica foram transferidos justamente aos professores,
enquanto outras profissões intelectuais ficaram livres deles. Explicar por que algo
não ocorreu sempre implica grandes dificuldades do ponto de vista da teoria do
conhecimento. Limitar-me-ei a uma consideração baseada no senso comum. Os
juristas e os médicos não se subordinam àquele tabu e são igualmente profissões
intelectuais. Mas estas constituem o que se chama hoje de profissões livres.
Subordinam-se à disputa concorrencial; são providas de melhores oportunidades
materiais, mas não são contidas e garantidas por uma hierarquia de servidor
público, e por causa dessa liberdade gozam de maior prestígio. Aqui se anuncia
um conflito social possivelmente dotado de alcance maior. Uma ruptura no próprio
plano da burguesia, ao menos na pequena burguesia, entre os que são livres e
ganham mais, embora sua renda não seja garantida, e que gozam de um certo ar
de nobreza e ousadia, e, por outro lado, os funcionários permanentes e com pensão
assegurada, invejados por causa de sua segurança, mas desprezados enquanto
se assemelham a verdadeiros animais de carga em escritórios e repartições,
com horários fixos e vida regrada pelo relógio de ponto. Por sua vez, os juízes e
funcionários administrativos têm algum poder real delegado, enquanto a opinião
pública não leva a sério o poder dos professores, por ser um poder sobre sujeitos
civis não totalmente plenos, as crianças. O poder do professor é execrado porque
só parodia o poder verdadeiro, que é admirado. Expressões como "tirano de
escola" lembram que o tipo de professor que querem marcar é tão irracionalmente
despótico como só poderia sê-lo a caricatura do despotismo, na medida em que
não consegue exercer mais poder do que reter por uma tarde as suas vítimas,
algumas pobres crianças quaisquer.

140
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

O reverso dessa ambivalência é a adoração mágica dispensada aos


professores em alguns países, como outrora na China, e em alguns grupos, como
entre os judeus devotos. O aspecto mágico da relação com os professores parece
se fortalecer em todos os lugares onde o magistério é vinculado à autoridade
religiosa, enquanto a imagem negativa cresce com a dissolução dessa autoridade.
É digno de nota que os professores que gozam do maior prestígio na Alemanha,
ou seja, justamente os acadêmicos universitários, na prática muito raramente
desempenham funções disciplinares, e, ao menos de modo ideal e para a opinião
pública, são pesquisadores produtivos que não se fixam no plano pedagógico
aparentemente ilusório e secundário de acordo com a exposição anterior. O
problema da inverdade imanente da pedagogia estaria em que o objeto do
trabalho é adequado aos seus destinatários, não constituindo um trabalho objetivo
motivado objetivamente. Em vez disso, este seria pedagogizado. Só isto já bastaria
para dar às crianças inconscientemente a impressão de estarem sendo iludidas.
Os professores não reproduzem simplesmente de um modo receptivo algo já
estabelecido, mas a sua função de mediadores, um pouco socialmente suspeita
como todas as atividades da circulação, atrai para si uma parte da aversão geral.
Max Scheler disse certa feita que só atuou pedagogicamente porque nunca tratou
seus estudantes de maneira pedagógica. Se me permitem a observação pessoal, a
minha própria experiência confirma inteiramente este ponto de vista. Ao que tudo
indica, o êxito como docente acadêmico deve-se à ausência de qualquer estratégia
para influenciar, à recusa em convencer. [....]

Mencionei a função disciplinar. Se não me engano, com ela toco na questão


central, embora seja necessário repetir que não se trata de conclusões de pesquisa.
Por trás da imagem negativa do professor encontra-se o homem que castiga, figura
que também ocorre no Processo de Kafka. Mesmo após a proibição dos castigos
corporais, continuo considerando este contexto determinante no que se refere aos
tabus acerca do magistério. Esta imagem representa o professor como sendo aquele
que é fisicamente mais forte e castiga o mais fraco. Nesta função, que continua a
ser atribuída ao professor mesmo depois que oficialmente deixou de existir, e em
alguns outros lugares parece constituir-se em valor permanente e compromisso
autêntico, o docente infringe um antigo código de honra legado inconscientemente
e com certeza conservado por crianças burguesas. Pode-se dizer que este não é
um jogo honesto, limpo, não é um fair play. Esta unfairness (desonestidade) – e
qualquer docente o percebe, inclusive o universitário – também afeta a vantagem
do saber do professor frente ao saber de seus alunos, que ele utiliza sem ter direito
para tanto, uma vez que a vantagem é indissociável de sua função, ao mesmo
tempo em que sempre lhe confere uma autoridade de que dificilmente consegue
abrir mão. Esta unfairness existe na ontologia do professor, na medida em que
excepcionalmente posso usar o termo ontologia neste contexto. É só pensar como o
professor universitário pode dispor da cátedra em longas exposições sem qualquer
contestação, para se compartilhar este resultado. Quando a seguir o professor
oferece aos estudantes a oportunidade de perguntar, procurando aproximar a aula
expositiva de um seminário, ironicamente há muito pouca reciprocidade por parte
dos alunos. Estes hoje em dia parecem preferir aulas como preleções expositivas
dogmáticas. Mas de um certo modo não é somente a profissão do magistério que
impele o professor à unfairness: o fato de saber mais, ter a vantagem e não poder

141
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

negá-la. Ele também é impelido nessa direção pela sociedade, e isto me parece
mais profundo.

A sociedade permanece baseada na força física, conseguindo impor suas
determinações quando é necessário somente mediante a violência física, por mais
remota que seja esta possibilidade na pretensa vida normal. Da mesma maneira,
as disposições da chamada integração civilizatória que, conforme a concepção
geral, deveriam ser providenciadas pela educação, podem ser realizadas nas
condições vigentes ainda hoje apenas com o suporte do potencial da violência
física. Esta violência física é delegada pela sociedade e ao mesmo tempo é
negada nos delegados. Os executantes são bodes expiatórios para os mandantes.
O modelo originário negativo – refiro-me a um imaginário de representações
inconscientemente efetivas, e não a uma realidade, a não ser que esta seja referida
de modo apenas rudimentar – é constituído pelo carcereiro ou, melhor ainda, o
suboficial. Não sei até que ponto é procedente a afirmação de que nos séculos
XVII e XVIII soldados veteranos eram aproveitados como professores nas escolas
primárias. Mas certamente esta crença popular é bastante característica para a
imagem do professor. A expressão "quem malha o traseiro", acima referida, tem
conotação militar; inconscientemente os professores talvez sejam imaginados
como veteranos, como uma espécie de mutilados, como pessoas que no âmbito
da vida propriamente dita do processo real de reprodução da sociedade não têm
nenhuma função, contribuindo apenas de um modo pouco transparente e pela
via de uma graça especial à continuidade do conjunto e de sua própria vida. Mas,
em decorrência dessa imagem, quem se opõe ao castigo físico defende o interesse
do professor ao menos tanto quanto o interesse do aluno. Só é possível esperar
alguma mudança neste complexo a que me refiro quando até o último resquício de
punição tiver desaparecido da memória escolar, como parece ser o caso na maior
parte dos Estados Unidos. [...]

Por fim, coloca-se a questão inevitável do "que fazer?", para a qual neste
caso, como em geral, considero-me extremamente desautorizado. Muitas vezes
esta questão sabota o desenvolvimento consequente do conhecimento, necessário
para possibilitar qualquer transformação. Nas discussões acerca dos problemas
aqui aventados já se automatizou a atitude do "é um belo discurso, mas a situação
se coloca de modo diferente para quem trabalha em meio à questão". De qualquer
modo, posso enumerar alguns aspectos sem qualquer pretensão sistemática ou de
resultados maiores. [...]

Referi-me aos tabus acerca do magistério, e não à realidade da docência e


nem à constituição efetiva dos docentes; mas ambos os planos não são inteiramente
independentes entre si. De qualquer modo, podem ser observados sintomas que
justificam a esperança de que tudo isto se transforme quando a democracia tomar
a sério sua chance, desenvolvendo-se na Alemanha. Esta é uma dessas parcelas
limitadas da realidade para a qual a reflexão e a ação individual podem contribuir.
Não é por acaso que o livro que considero politicamente mais importante publicado
na Alemanha dos últimos vinte anos, seja o de um professor: Sobre a Alemanha, de
Richard Matthias Müller. Mas não se deve esquecer que a chave da transformação

142
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

decisiva reside na sociedade e em sua relação com a escola. Contudo, neste


plano, a escola não é apenas objeto. A minha geração vivenciou o retrocesso da
humanidade à barbárie, em seu sentido literal, indescritível e verdadeiro. Esta é
uma situação em que se revela o fracasso de todas aquelas configurações para as
quais vale a escola. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a
escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível
sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural,
então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A
desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência.
Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas
possibilidades. E para isto ela precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se
reproduz a barbárie. O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que,
no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da
humanidade, na medida em que se conscientiza disto. Com barbárie não me refiro
aos Beatles, embora o culto aos mesmos faça parte dela, mas sim ao extremismo:
o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura; não deve haver
dúvidas quanto a isto. Na situação mundial vigente, em que ao menos por hora
não se vislumbram outras possibilidades mais abrangentes, é preciso contrapor-
se à barbárie principalmente na escola. Por isto, apesar de todos os argumentos
em contrário no plano das teorias sociais, é tão importante do ponto de vista
da sociedade que a escola cumpra sua função, ajudando, que se conscientize do
pesado legado de representações que carrega consigo.

FONTE: Adaptado. Disponível em: <http://adorno.planetaclix.pt/tadorno12.htm>. Acesso em: 11


maio 2017.

LEITURA COMPLEMENTAR

Carta de Paulo Freire aos professores

PAULO FREIRE

Ensinar, aprender: leitura do mundo, leitura da palavra

Nenhum tema mais adequado para constituir-se em objeto desta primeira


carta a quem ousa ensinar do que a significação crítica desse ato, assim como a
significação igualmente crítica de aprender. É que não existe ensinar sem aprender e
com isto eu quero dizer mais do que diria se dissesse que o ato de ensinar exige a
existência de quem ensina e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e aprender se
vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de um lado, porque reconhece
um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque, observado a maneira como
a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender o ensinando-se, sem o
que não o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos.

O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através


da retificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do
143
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

ensinante ao ensinar se verifica à medida que o ensinante, humilde, aberto, se ache


permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em
que procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e
veredas, que ela os faz percorrer. Alguns desses caminhos e algumas dessas veredas,
que a curiosidade às vezes quase virgem dos alunos percorre, estão grávidos de
sugestões, de perguntas que não foram percebidas antes pelo ensinante. Mas
agora, ao ensinar, não como um burocrata da mente, mas reconstruindo os caminhos
de sua curiosidade – razão por que seu corpo consciente, sensível, emocionado,
se abre às  adivinhações  dos alunos, à sua ingenuidade e à sua criatividade – o
ensinante que assim atua tem, no seu ensinar, um momento rico de seu aprender.
O ensinante aprende primeiro a ensinar, mas aprende a ensinar ao ensinar algo
que é reaprendido por estar sendo ensinado. O fato, porém, de que ensinar ensina
o ensinante a ensinar um certo conteúdo não deve significar, de modo algum, que
o ensinante se aventure a ensinar sem competência para fazê-lo. Não o autoriza
a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e profissional do
ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de se capacitar, de se formar antes
mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que sua preparação,
sua capacitação, sua formação se tornem processos permanentes. Sua experiência
docente, se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma
formação permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de
sua prática.

Partamos da experiência de aprender, de conhecer, por parte de quem se


prepara para a tarefa docente, que envolve necessariamente estudar. Obviamente,
minha intenção não é escrever prescrições que devam ser rigorosamente seguidas,
o que significaria uma chocante contradição com tudo o que falei até agora. Pelo
contrário, o que me interessa aqui, de acordo com o espírito mesmo deste livro, é
desafiar seus leitores e leitoras em torno de certos pontos ou aspectos, insistindo
em que há sempre algo diferente a fazer na nossa cotidianidade educativa, quer
dela participemos como aprendizes, e, portanto, ensinantes, ou como ensinantes
e, por isso, aprendizes também. Não gostaria, assim, sequer, de dar a impressão
de estar deixando absolutamente clara a questão do  estudar, do  ler, do  observar,
do reconhecer as relações entre os objetos para conhecê-los. Estarei tentando clarear
alguns dos pontos que merecem nossa atenção na compreensão crítica desses
processos. Comecemos por estudar, que envolvendo o ensinar do ensinante, envolve
também, de um lado, a aprendizagem anterior e concomitante de quem ensina e a
aprendizagem do aprendiz que se prepara para ensinar amanhã ou refaz seu saber
para melhor ensinar hoje ou, de outro lado, aprendizagem de quem, criança ainda,
se acha nos começos de sua escolarização.

Enquanto preparação do sujeito para aprender, estudar é, em primeiro


lugar, um que-fazer crítico, criador, recriador, não importa que eu nele me engaje
através da leitura de um texto que trata ou discute um certo conteúdo que me foi
proposto pela escola ou se o realizo partindo de uma reflexão crítica sobre um certo
acontecimento social ou natural e que, como necessidade da própria reflexão, me
conduz à leitura de textos que minha curiosidade e minha experiência intelectual
144
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

me sugerem ou que me são sugeridos por outros. Assim, em nível de uma posição
crítica, a que não dicotomiza o saber do senso comum do outro saber, mais
sistemático, de maior exatidão, mas busca uma síntese dos contrários, o ato de
estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se esgote. De  ler o mundo,
de ler a palavra e assim ler a leitura do mundo anteriormente feita. Mas ler não é
puro entretenimento, tampouco um exercício de memorização mecânica de certos
trechos do texto.

Se, na verdade, estou estudando e estou lendo seriamente, não posso


ultrapassar uma página se não consegui, com relativa clareza, ganhar sua
significação. Minha saída não está em memorizar porções de períodos lendo
mecanicamente duas, três, quatro vezes pedaços do texto fechando os olhos
e tentando repeti-las como se sua fixação puramente maquinal me desse o
conhecimento de que preciso. Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente,
mas gratificante. Ninguém lê ou estuda autenticamente se não assume, diante
do texto ou do objeto da curiosidade, a forma crítica de ser ou de estar sendo
sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo de conhecer em
que se acha. Ler é procurar buscar criar a compreensão do lido; daí, entre outros
pontos fundamentais, a importância do ensino correto da leitura e da escrita. É que
ensinar a ler é engajar-se numa experiência criativa em torno da  compreensão. Da
compreensão e da comunicação.

E a experiência da compreensão será tão mais profunda quanto sejamos nela


capazes de associar, jamais dicotomizar, os conceitos emergentes da  experiência
escolar aos que resultam do mundo da cotidianidade. Um exercício crítico sempre
exigido pela leitura e necessariamente pela escuta é o de como nos darmos
facilmente à passagem da  experiência sensorial  que caracteriza a cotidianidade
à  generalização  que se opera na linguagem escolar e desta ao concreto tangível.
Uma das formas de realizarmos este exercício consiste na prática que me venho
referindo como "leitura da leitura anterior do mundo", entendendo-se aqui como
"leitura do mundo" a "leitura" que precede a leitura da palavra e que perseguindo
igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio da cotidianidade. A leitura
da palavra, fazendo-se também em busca da compreensão do texto e, portanto,
dos objetos nele referidos, nos remete agora à leitura anterior do mundo. O que
me parece fundamental deixar claro é que a leitura do mundo que é feita a partir
da experiência sensorial não basta. Mas, por outro lado, não pode ser desprezada
como inferior pela leitura feita a partir do mundo abstrato dos conceitos que vai da
generalização ao tangível.

Certa vez, uma alfabetizanda nordestina discutia, em seu círculo de


cultura, uma codificação (1) que representava um homem que, trabalhando o
barro, criava com as mãos, um jarro. Discutia-se, através da "leitura" de uma série
de codificações que, no fundo, são representações da realidade concreta, o que
é cultura. O conceito de cultura já havia sido apreendido pelo grupo através do
esforço da compreensão que caracteriza a leitura do mundo e/ou da palavra. Na sua

145
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

experiência anterior, cuja memória ela guardava no seu corpo, sua compreensão do


processo em que o homem, trabalhando o barro, criava o jarro, compreensão
gestada sensorialmente, lhe dizia que fazer o jarro era uma forma de trabalho
com que, concretamente, se sustentava. Assim como o jarro era apenas o objeto,
produto do trabalho que, vendido, viabilizava sua vida e a de sua família.

Agora, ultrapassando a experiência sensorial, indo mais além dela, dava


um passo fundamental: alcançava a capacidade de  generalizar  que caracteriza a
"experiência escolar". Criar o jarro como o trabalho transformador sobre o barro
não era apenas a forma de sobreviver, mas também de fazer cultura, de fazer arte.
Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do mundo e dos que-fazeres no
mundo, aquela alfabetizada nordestina disse segura e orgulhosa: "Faço cultura.
Faço isto". Noutra ocasião presenciei experiência semelhante do ponto de vista
da inteligência do comportamento das pessoas. Já me referi a este fato em outro
trabalho, mas não faz mal que o retome agora. Me achava na  Ilha de São Tomé,
na  África Ocidental, no  Golfo da Guiné.  Participava com educadores e educadoras
nacionais, do primeiro curso de formação para alfabetizadores.

Havia sido escolhido pela equipe nacional um pequeno povoado, Porto


Mont, região de pesca, para ser o centro das atividades de formação. Havia
sugerido aos nacionais que a formação dos educadores e educadoras se fizesse
não seguindo certos métodos tradicionais que separam prática de teoria. Nem
tampouco através de nenhuma forma de trabalho essencialmente dicotomizante de
teoria e prática e que ou menospreza a  teoria, negando-lhe qualquer importância,
enfatizando exclusivamente a prática, a única a valer, ou negando a prática fixando-
se só na  teoria. Pelo contrário, minha intenção era que, desde o começo do curso,
vivêssemos a relação contraditória entre prática e teoria, que será objeto de análise
de uma de minhas cartas.

Recusava, por isso mesmo, uma forma de trabalho em que fossem reservados
os primeiros momentos do curso para exposições ditas teóricas sobre matéria
fundamental de formação dos futuros educadores e educadoras. Momento para
discursos de algumas pessoas, as consideradas mais capazes para falar aos outros.
Minha convicção era outra. Pensava numa forma de trabalho em que, numa única
manhã, se falasse de alguns conceitos-chave – codificação, decodificação, por
exemplo — como se estivéssemos num tempo de apresentações, sem, contudo, nem
de longe imaginar que as apresentações de certos conceitos fossem já suficientes para
o domínio da compreensão em torno deles. A discussão crítica sobre a prática em
que se engajariam é o que o faria. Assim, a ideia básica, aceita e posta em prática,
é que os jovens que se preparariam para a tarefa de educadoras e educadores
populares deveriam coordenar a discussão em torno de codificações num círculo
de cultura com 25 participantes. Os participantes do círculo de cultura estavam
cientes de que se tratava de um trabalho de afirmação de educadores. Discutiu-se
com eles antes sua tarefa política de nos ajudar no esforço de formação, sabendo
que iam trabalhar com jovens em pleno processo de sua formação. Sabiam que
eles, assim como os jovens a serem formados, jamais tinham feito o que iam fazer.
A única diferença que os marcava é que os participantes liam apenas o mundo

146
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

enquanto os jovens a serem formados para a tarefa de educadores liam já a palavra


também. Jamais, contudo, haviam discutido uma codificação assim como jamais
haviam tido a mais mínima experiência alfabetizando alguém. Em cada tarde
do curso com duas horas de trabalho com os 25 participantes, quatro candidatos
assumiam a direção dos debates. Os responsáveis pelo curso assistiam em silêncio,
sem interferir, fazendo suas notas. No dia seguinte, no seminário de avaliação de
formação, de quatro horas, se discutiam os equívocos, os erros e os acertos dos
candidatos, na presença do grupo inteiro, desocultando-se com eles a teoria que se
achava na sua prática. Dificilmente se repetiam os erros e os equívocos que haviam
sido cometidos e analisados. A teoria emergia molhada da prática vivida.

Foi exatamente numa das tardes de formação que, durante a discussão de


uma codificação que retratava Porto Mont, com suas casinhas alinhadas à margem
da praia, em frente ao mar, com um pescador que deixava seu barco com um peixe
na mão, que dois dos participantes, como se houvessem combinado, se levantaram,
andaram até a janela da escola em que estávamos e olhando Porto Mont lá longe,
disseram, de frente novamente para a codificação que representava o povoado:
"É. Porto Mont é assim e não sabíamos". Até então, sua "leitura" do lugarejo, de
seu mundo particular, uma "leitura" feita demasiadamente próxima do "texto",
que era o contexto do povoado, não lhes havia permitido ver Porto Mont como ele
era. Havia uma certa "opacidade" que cobria e encobria Porto Mont. A experiência
que estavam fazendo de "tomar distância" do objeto, no caso, da  codificação  de
Porto Mont, lhes possibilitava uma nova leitura mais fiel ao "texto", quer dizer,
ao contexto de Porto Mont. A "tomada de distância" que a "leitura" da codificação
lhes possibilitou os aproximou mais de Porto Mont como "texto" sendo lido. Esta
nova leitura refez a leitura anterior, daí que hajam dito: "É. Porto Mont é assim e
não sabíamos". Imersos na realidade de seu pequeno mundo, não eram capazes de
vê-la. "Tomando distância" dela, emergiram e, assim, a viram como até então jamais
a tinham visto.

Estudar é desocultar, é ganhar a  compreensão  mais exata do objeto, é


perceber suas relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do
estudo, se arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria. Por isso também é
que ensinar não pode ser um puro processo, como tanto tenho dito, de transferência
de conhecimento do ensinante ao aprendiz. Transferência mecânica de que resulte
a memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo crítico corresponde um
ensino igualmente crítico que demanda necessariamente uma forma crítica de
compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do
contexto.

A forma crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura


do mundo está, de um lado, na não negação da linguagem simples, "desarmada",
ingênua, na sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na
cotidianidade, no mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que se
chama de "linguagem difícil", impossível, porque desenvolvendo-se em torno de
conceitos abstratos. Pelo contrário, a forma crítica de compreender e de realizar a

147
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

leitura do texto e a do contexto não exclui nenhuma das duas formas de linguagem
ou de sintaxe. Reconhece, todavia, que o escritor que usa a linguagem científica,
acadêmica, ao dever procurar tornar-se acessível, menos fechado, mais claro,
menos difícil, mais simples, não pode ser simplista. Ninguém que lê, que estuda,
tem o direito de abandonar a leitura de um texto como difícil porque não entendeu
o que significa, por exemplo, a palavra epistemologia.

Assim como um pedreiro não pode prescindir de um conjunto de


instrumentos de trabalho, sem os quais não levanta as paredes da casa que está
sendo construída, assim também o leitor estudioso precisa de instrumentos
fundamentais, sem os quais não pode ler ou escrever com eficácia. Dicionários
(2), entre eles o etimológico, o de regimes de verbos, o de regimes de substantivos
e adjetivos, o filosófico, o de sinônimos e de antônimos, enciclopédias. A leitura
comparativa de texto, de outro autor que trate o mesmo tema cuja linguagem
seja menos complexa. Usar esses instrumentos de trabalho não é, como às vezes
se pensa, uma perda de tempo. O tempo que eu uso quando leio ou escrevo ou
escrevo e leio, na consulta de dicionários e enciclopédias, na leitura de capítulos,
ou trechos de livros que podem me ajudar na análise mais crítica de um tema – é
tempo fundamental de meu trabalho, de meu ofício gostoso de ler ou de escrever.

Enquanto leitores, não temos o direito de esperar, muito menos de exigir,


que os escritores façam sua tarefa, a de escrever, e quase a nossa, a de compreender
o escrito, explicando a cada passo, no texto ou numa nota ao pé da página, o que
quiseram dizer com isto ou aquilo. Seu dever, como escritores, é escrever simples,
escrever  leve, é facilitar e não dificultar a compreensão do leitor, mas não dar a
ele as coisas feitas e prontas. A compreensão do que se está lendo, estudando,
não estala assim, de repente, como se fosse um milagre. A compreensão é
trabalhada, é forjada, por quem lê, por quem estuda que, sendo sujeito dela, se
deve instrumentar para melhor fazê-la. Por isso mesmo, ler, estudar, é um trabalho
paciente, desafiador, persistente.

Não é tarefa para gente demasiado apressada ou pouco humilde que, em


lugar de assumir suas deficiências, as transfere para o autor ou autora do livro,
considerado como impossível de ser estudado. É preciso deixar claro, também,
que há uma relação necessária entre o nível do conteúdo do livro e o nível da
atual formação do leitor. Estes níveis envolvem a experiência intelectual do autor
e do leitor. A compreensão do que se lê tem que ver com essa relação. Quando a
distância entre aqueles níveis é demasiado grande, quanto um não tem nada que
ver com o outro, todo esforço em busca da compreensão é inútil. Não está havendo,
neste caso, uma consonância entre o indispensável tratamento dos temas pelo autor
do livro e a capacidade de apreensão por parte do leitor da linguagem necessária
àquele tratamento. Por isso mesmo é que estudar é uma preparação para conhecer,
é um exercício paciente e impaciente de quem, não pretendendo tudo de uma vez,
luta para fazer a vez de conhecer.

A questão do uso necessário de instrumentos indispensáveis à nossa

148
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

leitura e ao nosso trabalho de escrever levanta o problema do poder aquisitivo


do estudante e das professoras e professores em face dos custos elevados para
obter dicionários básicos da língua, dicionários filosóficos etc. Poder consultar
todo esse material é um direito que têm alunos e professores a que corresponde
o dever das escolas de fazer-lhes possível a consulta, equipando ou criando suas
bibliotecas, com horários realistas de estudo. Reivindicar esse material é um
direito e um dever de professores e estudantes. Gostaria de voltar a algo a que fiz
referência anteriormente: a relação entre ler e escrever, entendidos como processos
que não se podem separar. Como processos que se devem organizar de tal modo
que ler e escrever sejam percebidos como necessários para algo, como sendo alguma
coisa de que a criança, como salientou Vygotsky (3), necessita e nós também.

Em primeiro lugar, a oralidade precede a grafia, mas a traz em si desde


o primeiro momento em que os seres humanos se tornaram socialmente capazes
de ir exprimindo-se através de símbolos que diziam algo de seus sonhos, de seus
medos, de sua experiência social, de suas esperanças, de suas práticas. Quando
aprendemos a ler, o fazemos sobre a escrita de alguém que antes aprendeu a ler e
a escrever. Ao aprender a ler, nos preparamos para imediatamente escrever a fala
que socialmente construímos. Nas culturas letradas, sem ler e sem escrever, não se
pode estudar, buscar conhecer, apreender a substantividade do objeto, reconhecer
criticamente a razão de ser do objeto.

Um dos equívocos que cometemos está em dicotomizar  ler  de  escrever,


desde o começo da experiência em que as crianças ensaiam seus primeiros passos
na prática da leitura e da escrita, tomando esses processos como algo desligado
do processo geral de conhecer. Essa dicotomia entre ler e escrever nos acompanha
sempre, como estudantes e professores. "Tenho uma dificuldade enorme de fazer
minha dissertação. Não sei escrever", é a afirmação comum que se ouve nos cursos de
pós-graduação de que tenho participado. No fundo, isso lamentavelmente revela
o quanto nos achamos longe de uma compreensão crítica do que é estudar e do
que é ensinar. É preciso que nosso corpo, que socialmente vai se tornando atuante,
consciente, falante, leitor e "escritor", se aproprie criticamente de sua forma de vir
sendo que faz parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se. Quer
dizer, é necessário que não apenas nos demos conta de como estamos sendo, mas
nos assumamos plenamente com estes "seres programados, mas para aprender",
de que nos fala François Jacob (4). É necessário, então, que aprendamos a aprender,
vale dizer, que entre outras coisas, demos à linguagem oral e escrita, a seu uso, a
importância que lhe vem sendo cientificamente reconhecida.

Aos que estudamos, aos que ensinamos e, por isso, estudamos também, se
nos impõe, ao lado da necessária leitura de textos, a redação de notas, de fichas de
leitura, a redação de pequenos textos sobre as leituras que fazemos. A leitura de
bons escritores, de bons romancistas, de bons poetas, dos cientistas, dos filósofos
que não temem trabalhar sua linguagem à procura da boniteza, da simplicidade
e da clareza (5). Se nossas escolas, desde a mais tenra idade de seus alunos, se
entregassem ao trabalho de estimular neles o gosto da leitura e o da escrita, gosto
que continuasse a ser estimulado durante todo o tempo de sua escolaridade,

149
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

haveria possivelmente um número bastante menor de pós-graduandos falando


de sua insegurança ou de sua incapacidade de escrever. Se estudar, para nós, não
fosse quase sempre um fardo, se ler não fosse uma obrigação amarga a cumprir, se,
pelo contrário, estudar e ler fossem fontes de alegria e de prazer, de que resulta
também o indispensável conhecimento com que nos movemos melhor no mundo,
teríamos índices melhor reveladores da qualidade de nossa educação.

Este é um esforço que deve começar na pré-escola, intensificar-se no


período da alfabetização e continuar sem jamais parar. A leitura de Piaget, de
Vygotsky, de Emilia Ferreiro, de Madalena F. Weffort, entre outros, assim como
a leitura de especialistas que tratam não propriamente da alfabetização, mas do
processo de leitura, como Marisa Lajolo e Ezequiel T. da Silva, é de indiscutível
importância. Pensando na relação de intimidade entre pensar, ler e escrever e
na necessidade que temos de viver intensamente essa relação, sugeriria a quem
pretenda rigorosamente experimentá-la que, pelo menos, três vezes por semana, se
entregasse à tarefa de escrever algo. Uma nota sobre uma leitura, um comentário
em torno de um acontecimento de que tomou conhecimento pela imprensa, pela
televisão, não importa. Uma carta para destinatário inexistente. É interessante
datar os pequenos textos e guardá-los e dois ou três meses depois submetê-los a
uma avaliação crítica.

Ninguém escreve se não escrever, assim como ninguém nada se não nadar.
Ao deixar claro que o uso da linguagem escrita, portanto o da leitura, está em relação
com o desenvolvimento das condições materiais da sociedade, estou sublimando
que minha posição não é idealista. Recusando qualquer interpretação mecanicista
da História, recuso igualmente a  idealista. A primeira reduz a consciência à pura
cópia das estruturas materiais da sociedade; a segunda submete tudo ao todo
poderosismo da consciência. Minha posição é outra. Entendo que estas relações
entre consciência e mundo são dialéticas (6). O que não é correto, porém, é esperar
que as transformações materiais se processem para que depois comecemos a
encarar corretamente o problema da leitura e da escrita. A leitura crítica dos textos
e do mundo tem que ver com a sua mudança em processo.

Notas

1  Sobre codificação, leitura do mundo-leitura da palavra-senso comum-


conhecimento exato, aprender, ensinar, veja-se: Freire, Paulo:  Educação como
prática da liberdade – Educação e mudança – Ação cultural para a liberdade – Pedagogia
do oprimido – Pedagogia da esperança, Paz e Terra; Freire & Sérgio Guimarães, Sobre
educação, Paz e Terra; Freire & Ira Schor, Medo e ousadia, o cotidiano do educador, Paz
e Terra; Freire & Donaldo Macedo,  Alfabetização, leitura do mundo e leitura da
palavra,  Paz e Terra; Freire, Paulo,  A importância do ato de ler,  Cortez. Freire &
Márcio Campos; Leitura do mundo – Leitura da palavra, Courrier de L'Unesco, fev.
1991.
2  Ver Freire, Paulo.  Pedagogia da esperança — um reencontro com a Pedagogia do

150
TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: TRABALHANDO A ANTROPOLOGIA NO ESPAÇO ESCOLAR

oprimido, Paz e Terra, 1992.


3  Vygotsky and education. Instructional implications and applications of
sociohistorical psychology. Luis C. Moll (ed.), Cambridge University Press, First
paperback edition, 1992.
4 François Jacob, Nous sommes programmés mais pour aprendre. Le Courrier de
L'Unesco, Paris, fev. 1991.
5 Ver Freire, Paulo, Pedagogia da esperança, Paz e Terra, 1992.
6 Id., ibid.

Esta carta foi retirada do livro  Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa
ensinar  (Editora Olho D'Água, 10. ed., p. 27-38), no qual Paulo Freire dialoga
sobre questões da construção de uma escola democrática e popular. Escreve
especialmente aos professores, convocando-os ao engajamento nesta mesma luta.
Este livro foi escrito durante dois meses do ano de 1993, pouco tempo depois de
sua experiência na condução da Secretaria de Educação de São Paulo.

FONTE: Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_


arttext&pid=S010340142001000200013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 11 maio 2017.

151
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico você viu que:

• Existem inúmeras relações entre antropologia e educação.

• No espaço da sala de aula se trabalha a alteridade e se relativiza o etnocentrismo.

• O processo de ensino-aprendizagem ultrapassa a sala de aula e também a relação


entre aluno e professor.

• A escola é um local de construção contra-hegemônica operária e de mudança da


sociedade existente.

152
AUTOATIVIDADE

1 Tratando da temática da educação e antropologia, analise a charge a seguir


e argumente se é possível que todos tenham acesso à educação da mesma
maneira. Quais seriam os desafios para uma educação democrática?
Comente com suas palavras.

FONTE: Disponível em: <https://www.corujinhaspedagogas.blogspot.com>. Acesso


em: 11 maio 2017.

2 Enfatiza-se que o docente deve ensinar os estudantes a terem criticidade


sobre as situações na sociedade, e assim, "não ficarem apáticos", "saírem de
cima do muro" e "se posicionarem" sobre o que ocorre no mundo. Logo,
explicite estratégias pedagógicas que você utilizaria para estimular a análise
crítica de seus estudantes.

153
154
UNIDADE 3
TÓPICO 2

DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

1 INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira, ao longo do seu processo histórico, político,


social e cultural, apesar de toda a violência do racismo e da desigualdade racial,
construiu ideologicamente um discurso da existência de uma “harmonia racial”
entre negros e brancos, afirmando não existir racismo ou discriminação racial no
Brasil, conforme nos relata Gomes (2005). Assim é construído e mantido o mito da
democracia racial no Brasil.

Escamotear o real, produzir o ilusório, negar a história e transformá-


la em ‘natureza’. Instrumento formal da ideologia, um mito é um
efeito social que pode entender-se como resultante da convergência de
determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas. Enquanto
produto econômico político-ideológico, o mito é um conjunto de
representações que expressa e oculta uma ordem de produção de bens
de dominação e doutrinação (SOUZA, 1983, p. 25).

O mito da democracia racial propõe que todas as raças e/ou etnias


existentes no Brasil estão em pé de igualdade sociorracial e que tiveram as mesmas
oportunidades desde o início da formação do Brasil. Desta forma, pensamos que as
desiguais posições hierárquicas existentes entre elas se devem a uma incapacidade
inerente aos grupos raciais que estão em desvantagem, como os negros e os
indígenas. Assim, o mito da democracia racial age como um campo produtivo
para a perpetuação de estereótipos sobre os negros e indígenas, negando o racismo
no Brasil, mas, simultaneamente, reforçando as discriminações e desigualdades
raciais.

155
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

FIGURA 32 - DEMOCRACIA RACIAL

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=democracia


+racial&espv=2&biw=1280&bih=894&site=webhp&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi
=2&ved=0ahUKEwit5d6XhPzPAhUHLyYKHY2iDEwQ_AUIBigB#imgrc=_>. Acesso em: 30 out. 2016.

2 TEMAS DA EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA

Caro acadêmico! Observaremos neste item algumas avaliações referentes


a discussões que são feitas nos conteúdos escolares que servem como forma de
desconstrução para os educandos e as educandas. As desigualdades de gênero,
educacional e de raça são temas que também podem ser trabalhados a partir da
perspectiva da antropologia.

156
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

2.1 DESIGUALDADE ECONÔMICA ENTRE GÊNEROS

Conforme visualizamos no item sobre desigualdade educacional, houve


um aumento significativo no número de mulheres no mercado de trabalho no
Brasil, porém ainda há um grande abismo entre mulheres e homens. No próximo
ponto estudaremos as diferenças entre gênero, sexo e sexualidade. Por hora iremos
refletir sobre as desigualdades produzidas em sociedade relacionadas a homens e
mulheres. Iremos apresentar alguns dados para conhecermos algumas realidades
deste assunto, por exemplo, a presença feminina no mercado de trabalho.

Os estudos de gênero concretizaram-se no Brasil no final dos anos 1970,


simultaneamente ao fortalecimento do movimento feminista no país.

Segundo Marília Carvalho (1998), o uso ainda hoje mais frequente


do conceito é o proposto pelo feminismo da diferença. Este rejeitou
pressupostos do feminismo da igualdade, que afirmava que as únicas
diferenças efetivamente existentes entre homens e mulheres são
biológicas-sexuais, e que as demais diferenças observáveis são culturais,
derivadas de relações de opressão e, portanto, devem ser eliminadas
para dar lugar a relações entre seres ‘iguais’ (FARAH, 2004, p. 48).

O conceito de gênero, segundo relata Farah (2004), ao destacar as relações


sociais entre os sexos, permite a inquietação de desigualdades entre homens
e mulheres, que envolvem em um de seus pontos centrais as desigualdades de
poder. Nas sociedades ocidentais, marcada também por outros ‘sistemas de
desigualdade’, constata-se que o padrão dominante nas identidades de gênero
de adultos envolve uma situação de subordinação e de dominação das mulheres,
tanto na esfera pública como na privada.

No final dos anos 1970, sucederam importantes mudanças nas relações


entre Estado e sociedade no Brasil, devido a dois fatores: a democratização e a
crise fiscal. Após o final da ditadura, os anos 80 foram marcados pela crise do
nacional desenvolvimentismo, de origens mais antigas, assim como por mudanças
nas políticas públicas, estabelecidas nas décadas anteriores. Diversos setores
dos movimentos sociais uniram-se na luta pela democratização do regime e de
reivindicações ligadas ao acesso a serviços públicos e à melhoria da qualidade
de vida, especialmente nos centros urbanos. As mulheres e a problemática de
gênero estiveram presentes nesta construção, segundo o texto “Gênero e políticas
públicas”, de Farah.

A constituição das mulheres como sujeitos políticos iniciou no meio de sua


mobilização em torno da democratização do regime e de questões que atingiam os
trabalhadores urbanos pobres em seu conjunto, tais como baixos salários, elevado
custo de vida e questões relativas à inexistência de infraestrutura urbana e ao
acesso precário a serviços coletivos, manifestação ‘perversa’ no espaço urbano

157
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

do modelo de desenvolvimento capitalista adotado no país, caracterizado pela


articulação entre ‘crescimento e pobreza’ (FARAH, 2004). O movimento feminista
contribuiu para a inclusão da questão de gênero na agenda pública, como uma das
desigualdades a serem superadas por um regime democrático.

Ao mesmo tempo que denunciavam desigualdades de classe, os


movimentos de mulheres – ou as mulheres nos movimentos – passaram
também a levantar temas específi cos à condição da mulher, como direito
a creche, saúde da mulher, sexualidade e contracepção e violência
contra a mulher. Nessa discriminação de temas ligados à problemática
da mulher, houve uma convergência com o movimento feminista. O
feminismo, diferentemente dos ‘movimentos sociais com participação
de mulheres’, tinha como objetivo central a transformação da situação
da mulher na sociedade, de forma a superar a desigualdade presente
nas relações entre homens e mulheres (FARAH, 2004, p. 51).

Retomando a respeito do mercado de trabalho, verifi ca-se, atualmente, o


crescimento da presença feminina no mercado de trabalho, recorte raça e sexo.
Vejamos o gráfi co a seguir.

TABELA 2 - DADOS ESTATÍSTICOS MERCADO DE TRABALHO

FONTE: Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/


uploads/2012/10/Tab1_Text1_RRDH.png>. Acesso em: 30 out. 2016.

Os censos de 2000/2010 indicam que tanto as mulheres quanto os negros e


pardos ganham muito menos do que a população masculina e branca. Em relação
aos níveis educacionais, no Brasil existe um “recorte” bastante evidente em termos
de raça/cor da pele e gênero, no Ensino Superior os números apresentados na

158
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

Tabela 8. Segundo Lais Abramo (2010), as desigualdades de gênero e raça são eixos
estruturantes da matriz da desigualdade social no Brasil que, por sua vez, está na
raiz da permanência e reprodução das situações de pobreza e exclusão social.

A discriminação por gênero e por raça no mercado de trabalho brasileiro


explica os diferenciais de rendimento médio, mesmo quando há o mesmo nível de
escolaridade (CACCIAMALI; HIRATA, 2005). As funções de chefia e supervisão
continuam sendo ocupadas predominantemente por homens, onde dificilmente
mulheres alcançam cargos de comando (COMIN, 2015). Contudo, convém destacar
que as mulheres estão por todos os extratos sociais, porém uma minoria de pessoas
com pele preta ou parda está presente nos estratos de maior renda, o que torna a
discriminação racial ainda mais grave (GARCIA, 2005).

2.2 AS RELAÇÕES ÉTNICAS RACIAIS NA EDUCAÇÃO

Ao longo das reformas na educação brasileira, muitos temas foram


inseridos, repensados, retirados, assim como também o perfil dos alunos se
modificou, à medida que as mudanças sociais, culturais, tecnológicas e políticas
foram acontecendo. Neste sentido, algumas discussões tornaram-se obrigatórias
dentro do espaço escolar, por exemplo, relações de gênero e étnico-raciais. Ora,
mas por que devemos debater estes assuntos nas escolas? E o que estes temas têm
a ver com o ensino da antropologia?

Como bem tratamos ao longo deste livro, a antropologia é o estudo do


homem, o estudo de sua cultura, das relações entre grupos, seus hábitos, suas
visões de mundo. Para tanto, a antropologia reflete outras formas de ver o mundo,
na educação ela auxilia no desenvolvimento da criticidade dos alunos, orienta os
educandos a visualizarem os conteúdos trabalhados de outras formas. Visto isso,
entende-se que as discussões a respeito da diversidade, gênero e relações étnico-
raciais estão cada vez mais dentro do espaço escolar, e neste sentido as aulas de
sociologia/antropologia auxiliam neste debate. Assim, veremos alguns pontos
a respeito destes temas para que possamos trabalhar futuramente com nossos
alunos.

159
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

FIGURA 33 – BAOBÁ – ÁRVORE DA VIDA

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=


baoba&tbm=isch&imgil=IjKle01ztD1_BM%253A%253BOBMrXEo0Wy4DVM%253Bhttp%2
5253A%25252F%25252Feducandoesemeando.blogspot.com%25252Fp%25252Fhistoria-do-bao
ba.html&source=iu&pf=m&fir=IjKle01ztD1_BM%253A%252COBMrXEo0Wy4DVM%252C_&usg=__
SfmFeyQ_zCjzJk_vKCsd8dn
iVaA%3D&biw=1366&bih=613&ved=0ahUKEwjhjfKZs_TPAhVLj5A
KHQ_iAD0QyjcIOw&ei=H38OWKGCF8uewgSPxIPoAw#imgrc=IjKle01ztD1_BM%3A>. Acesso em:
30 out. 2016.

Vamos iniciar, pensando a respeito das diferenças raciais em nossa


sociedade. Você já desenhou sua árvore genealógica, sabe quem são os pais de seus
avós? De onde vieram? Como vieram? Eram brancos, pretos, indígenas, asiáticos
ou de outras descendências?

160
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

FIGURA 34 - ÍNDIOS TIKUNA

FONTE: https://www.google.com.br/search?q=tikuna&hl=pt-BR&biw=1280&bih=845&s
ite=webhp&tbm=isch&source=lnms&sa=X&ved=0ahUKEwi36bWxvPnPAhUEoD4KHSxk
A3cQ_AUIBygC#imgrc=6QivnBk6p3_50M%3A. Acesso em: 30 out. 2016.

O Brasil possui uma extensa árvore genealógica, somos uma sociedade


diversa, miscigenada, com inúmeras etnias, culturas, hábitos. De acordo com
Censo de 2010, a população brasileira está contabilizada em 190.732.694 pessoas.
Neste Censo pode-se observar as diversas composições de cor ou raça, a partir da
autodeclaração de cada entrevistado.

UNI

O Censo 2010 detectou mudanças na composição da cor ou raça declarada no


Brasil. Dos 191 milhões de brasileiros em 2010, 91 milhões se classificaram como brancos, 15
milhões como pretos, 82 milhões como pardos, 2 milhões como amarelos e 817 mil como
indígenas. Registrou-se uma redução da proporção de brancos, que em 2000 era 53,7% e em
2010 passou para 47,7%, e um crescimento de pretos (de 6,2% para 7,6%) e pardos (de 38,5% para
43,1%). Assim, a população preta e parda passou a ser considerada maioria no Brasil (50,7%).

Fonte: Disponível em: <http://dssbr.org/site/2012/01/a-nova-composicao-racial-brasileira-


segundo-o-censo-2010/>. Acesso em: 5 set. 2016.

161
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Diante dos dados apresentados pelo último Censo, algumas dúvidas se


apresentam em nossas reflexões: afinal, quais as diferenças entre os conceitos raça
e etnia? Utiliza-se pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística o termo negro
para pessoas que se autodeclaram como pretas e pardas, unificam-se estas duas
categorias como uma, para discriminá-las diante de suas perspectivas:

Indicam que se justifica agregarmos pretos e pardos para formarmos,


tecnicamente, o grupo racial negro, visto que a situação destes dois
últimos grupos raciais é, de um lado, bem semelhante, e, de outro lado,
bem distante ou desigual quando comparada com a situação do grupo
racial branco. Assim sendo, ante a semelhança estatística entre pretos e
pardos em termos de obtenção de direitos legais e legítimos, pensamos
ser plausível agregarmos esses dois grupos raciais numa mesma
categoria, a de negros. [...] a diferença entre pretos e pardos no que diz
respeito à obtenção de vantagens sociais e outros importantes bens e
benefícios (ou mesmo em termos de exclusão dos seus direitos legais e
legítimos) é tão insignificante estatisticamente que podemos agregá-los
numa única categoria, a de negros, uma vez que o racismo no Brasil não
faz distinção significativa entre pretos e pardos, como se imagina no
senso comum (SANTOS, 2002, p. 13).

UNI

Baobás são símbolos da luta dos negros no Brasil

O baobá é muito mais do que simplesmente uma árvore de grande porte que pode atravessar
um milênio e carrega consigo a força da resistência africana, a história da devoção do povo
negro e o poder de transformar os preconceitos. Em Recife a árvore serviu de motivo para
introduzir a discussão sobre racismo no dia a dia dos alunos e ajudou a transformar a maneira
como uns enxergavam os outros. Dentre os estados do Brasil, Pernambuco é o que tem maior
quantidade de baobás, estima-se pelas pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) que são cerca de 150 árvores. O baobá é uma árvore que fascina povos de
todo o mundo, mas no Brasil ela tem uma forte relação com a religiosidade do povo, sobretudo
o de matriz africana.
Diz a lenda que antes de serem embarcados nos navios negreiros, os escravizados africanos,
sob chibatadas eram obrigados a dar dezenas de voltas em torno de um imenso baobá,
enquanto depositam suas crenças, suas origens, seu território, enfim sua essência, para em
seguida serem batizados com uma identidade cristã-ocidental e enviados para o cativeiro.
Por isso o baobá passou a ser chamado de árvore do esquecimento, pois os escravos teriam
deixado ali toda sua memória (sabedoria).

162
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

FIGURA 35 - RAÇA HUMANA?

FONTE: Disponível em: <https://www.goo


gle.com.br/search?q=ra%
C3%A7a+humana&source=lnms&tbm=isch&sa=X&
ved=0ahUKEwjB6PPgtPTPAhXMfZAKHWQUDxUQ_A
UICCgB&biw=1366&bih=613#imgrc=
rfad4Mg1gdd49M%3ª>. Acesso em: 30 out. 2016.

Conforme lemos neste livro, a “diferença” é algo importante para a


antropologia. Este é um dos pontos que mobiliza as relações sociais e as reflexões
sobre viver em sociedade. Neste item, refletiremos sobre as relações raciais. Afinal,
existem raças? Neste item, não conseguiremos trabalhar sobre todos os grupos
étnicos raciais do Brasil, serão desenvolvidas aqui algumas reflexões a respeito das
terminologias raça e etnia, utilizando o exemplo da população negra e indígena.

A ideologia do racismo foi fundada pelo pensador francês Joseph-Arthur


de Gobineau (1816-1882), em seu Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas
(1853-1855). Essa doutrina baseava-se em três pontos principais: a existência de
várias raças humanas, a compreensão das diferenças entre as raças como fatores
essenciais do processo histórico-social e a afirmação de uma raça superior. Tal
perspectiva serviu de ponto de partida para que o britânico Houston Stewart
Chamberlain (1825-1927) difundisse, na Alemanha, o mito da superioridade da
raça ariana, no início dos anos 1920.

Nos EUA este tema vem sendo discutido com bastante afinco, desde a
chegada dos primeiros escravizados. O presidente Abraham Lincoln, em 1862,
convocou um grupo de negros para discutir tal tema. Colocando que os negros
não seriam aceitos pelos americanos, devido às “suas diferenças”, e sugeriria
que os negros retornassem para a África, mobilizando o congresso para que se
arrecadassem fundos para o retorno deles ao país de origem. As colocações de
Lincoln demonstram que “a crença de que há qualquer coisa nas relações entre
pessoas de diferentes raças que as diferencia nas relações entre pessoas da mesma
raça” (BANTON, 1977, p. 12).

163
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

No entanto, compreendemos, atualmente, que a subordinação dos negros


americanos em 1862 não se originava de diferenças biológicas de negros e brancos,
mas sim de causas políticas, econômicas, sociais e culturais. Assim, as relações
raciais são relações entre membros de categorias sociais que acontece de serem
identificadas com rótulos rácicos. (BANTON, 1977, p. 12).

Entende-se que as relações raciais são compreendidas não como o resultado


de qualidades biológicas, mas como o modo de os indivíduos em diferentes
situações alinharem com aqueles que percebem como aliados, e em oposições a
outros.

A maneira como alinham depende de muitos fatores, e não


exclusivamente de oposições políticas, interesses econômicos, crenças
a respeito da natureza dos grupos sociais e outras circunstâncias
gerais. Depende também das escolhas humanas, da liderança e da
responsabilidade em situações críticas que marcam os princípios de
novos períodos na história política (BANTON, 1977, p. 18).

A origem da concepção de raça é compreendida a partir do surgimento


entre brancos e negros na Europa, América, África e Ásia nos séculos XV e XVI,
porém esta compreensão é bastante equivocada e subestima o significado das
mudanças sociais na Europa. A raça é um conceito desenvolvido na Europa para
auxiliar na interpretação de novas relações sociais. É um modo de categorizar as
pessoas e coisas, à medida que cada vez mais europeus percebem a existência de
um grande número de pessoas ultramarinas que pareciam diferentes deles. Assim
como também os europeus impuseram as suas categorias sociais aos povos que em
sua maioria as adotaram como suas.

Oliver C. Cox (apud BANTON, 1977) apresenta os anos 1493 e 1494 como
marcos de influência de portugueses e espanhóis no novo mundo, causando assim
o princípio das modernas relações raciais. Marvin Harris (1964, apud BANTON,
1977) explica que o preconceito racial surge da ideologia do interesse das nações
europeias na exploração do trabalho negro. Arnold Rose (1951, apud BANTON,
1977) acredita que o surgimento das relações raciais data de 1793: com a invenção
da máquina de separar o algodão bruto das suas sementes, se renovou o interesse
dos plantadores em conservar escravizados. Inúmeras são as teorias que tentam
explicar o surgimento das diferenças raciais e suas relações.

Na França e Inglaterra, a palavra “raça” muda de significado por volta de


1800. Anteriormente, o termo é utilizado primeiramente no sentido de “linhagem”;
as diferenças entre raças derivam de circunstâncias da sua história e, embora se
mantivessem através das gerações, não eram fixas (BANTON, 1977). De acordo com
Banton (1977), no século XIX o termo “raça veio a significar uma qualidade física
inerente. Os outros povos passam a ser vistos como biologicamente diferentes.
Embora a definição continuasse incerta, as pessoas começaram a pensar que a
humanidade estava dividida em raças. A palavra racismo surge na Inglaterra ao
fim da década de 1930, identificando um tipo de doutrina que afirma que a raça
determina a cultura.
164
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

O escritor negro J. J. Thomas Trindade (1889), na sua obra Froudacity (apud


BANTON, 1977, p. 74) questiona:

O que há na natureza das coisas que desapossa os africanos do direito


de participar, nos tempos futuros, nos altos destinos que, no passado,
foram atribuídos a tantas raças que não foram de modo algum
superiores a nós nas qualificações físicas, morais e intelectuais, que
marcam definitivamente uma raça para a proeminência entre outras
raças?

No Brasil, a discussão sobre as relações raciais é também bastante ampla,


porém ainda precisa avançar alguns pontos. O Brasil inicia seu comércio de
escravizados em meados do século XV. Em 1850, a Lei Eusébio de Queirós proíbe
o tráfico de escravizados. A escravidão após a abolição deixou cicatrizes profundas
na sociedade brasileira, a população negra, ao ser liberta, não obteve uma política
que se voltasse a recompensá-la pelos anos de servidão obrigatória. Não foram
desenvolvidos planos econômicos e sociais ao longo dos anos que se preocupassem
com a população negra, assim, a maioria se instalou nas “margens” das cidades,
formando as periferias, favelas, vilas ou comunidades.

[...] o histórico da escravidão ainda afeta negativamente a vida, a


trajetória e inserção social dos descendentes de africanos em nosso país.
Some-se a isso o fato de que, após a abolição, a sociedade, nos seus mais
diversos setores, bem como o Estado brasileiro não se posicionaram
política e ideologicamente de forma enfática contra o racismo. Pelo
contrário, optaram por construir práticas sociais e políticas públicas que
desconsideravam a discriminação contra os negros e a desigualdade
racial entre negros e brancos como resultante desses processos de
negação da cidadania aos negros brasileiros. Essa posição de “suposta
neutralidade” só contribuiu ainda mais para aumentar as desigualdades
e o racismo (GOMES, 2005, p. 46).

Algumas leis abolicionistas no Brasil

Lei do Ventre Livre

Aprovada em 1871, foi a primeira lei abolicionista da história do Brasil. De


acordo com esta lei, os filhos de escravizadas, nascidos após a promulgação da
lei, ganhariam a liberdade. Porém, o liberto deveria permanecer trabalhando na
propriedade do senhor até 21 anos de idade.
 
Foi uma lei paliativa e que recebeu muitas críticas negativas dos abolicionistas.
O principal argumento era de que estes “libertos” tinham que trabalhar para
seus “donos” durante a fase mais produtiva da vida, até os 21 anos. Logo, os
senhores iriam explorar ao máximo esta mão de obra até ela ganhar a liberdade.
 

165
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Lei dos Sexagenários


 
Promulgada pelo governo brasileiro em 1885, esta lei dava liberdade aos
escravizados com mais de 65 anos de idade.
 
Esta lei também recebeu muitas críticas, pois dificilmente um escravizado
chegava a esta idade com as péssimas condições de trabalho que tinha durante
a vida. Vale lembrar que a expectativa de vida de um escravizado neste período
era em torno de 40 anos de idade.
 
Esta lei acabava por beneficiar os proprietários de escravizados, pois se livravam
de trabalhadores pouco produtivos, cansados e doentes, economizando assim
em alimentação e moradia.
 
Lei Áurea

Promulgada em 1888 pela Princesa Isabel, esta lei aboliu definitivamente a


escravidão no Brasil.
 
Porém, a liberdade não garantiu aos ex-escravizados melhorias significativas
em suas vidas. Como o governo não se preocupou em integrá-los à sociedade,
muitos enfrentaram diversas dificuldades para conseguir emprego, moradia,
educação e outras condições fundamentais de vida. Vale lembrar que muitos
fazendeiros preferiram importar mão de obra europeia a contratar os ex-
escravizados como assalariados.

FONTE: Disponível em: <http://www.historiadobrasil.net/brasil_monarquia/leis_abolicionistas.


htm>. Acesso em: 30 out. 2016.

Podemos pensar que a discussão das relações raciais, no caso da população


negra, pode ser percebida como vitimização, afinal, as discriminações raciais quase
não são percebidas segundo a democracia racial.

Em várias áreas de estudo, percebe-se a ausência da contribuição da


população negra no país, ou o silenciamento da discussão racial. Muitas vezes, a
reflexão sobre desigualdade fica sobreposta às discussões de classe. Compreende-
se que as desigualdades no Brasil são originadas pelas condições sociais. Ligadas
às lutas de classe, ricos e pobres, ou trabalhadores e patrões, esquecendo de inserir
a este debate a questão racial, já que existe claramente uma hierarquização racial
no Brasil.

Não apresentar os debates relacionados ao quesito racial é invisibilizar


50% da população do Brasil. No recorte de raça, podemos trabalhar em diversos
aspectos, como preenchimentos do requisito raça/cor nos questionários de pesquisa

166
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

e inserção em políticas públicas (postos de saúde, escolas, pesquisas, segurança,


segurança alimentar, assistência social etc.). Pode-se trabalhar com as formas de
tratamento, ao ressignificar alguns termos, por exemplo, “escravizado”. Você deve
ter notado que ao longo do nosso texto utiliza-se o termo escravizado, mas qual é
a diferença entre escravo e escravizado? E qual é a importância de utilizar o termo
escravizado para a população negra e movimento negro?

O Dicionário Houaiss (2009, p. 803), da língua portuguesa, denomina


escravo “que ou aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade de
um senhor, a quem pertence como propriedade”. O mesmo dicionário (p. 803)
apresenta escravizar como “[...] submeter (alguém) à condição de escravo [...]. [...]
exercer dominação moral sobre; oprimir [...]. [...] tornar submisso, dependente”.
Conforme Taille e Santos (2012, p. 9), o termo “escravo”, privado de liberdade,
em estado de servidão, difere do “escravizado”, que entra em cena como quem
“sofreu escravização” e, portanto, foi forçado a essa situação.

Para o movimento negro, utilizar este termo denota uma nova forma de
conceituar os descendentes de escravizados como pessoas que foram colocadas
em tal situação. Compreende-se que os africanos escravizados não nasceram sob
esta condição, mas sim foram submetidos, transformados e tornados escravos
pelo sistema político-econômico e pela instituição sociojurídica implantada pelos
conquistadores (FONSECA, 2009, p. 30-31). Segundo Dagoberto Fonseca (2009),
o escravo nasce, cresce e morre irremediavelmente preso à sua natureza, não há
transformação social possível para ele, até seus descendentes serão tratados como
escravos, filhos de uma natureza intransponível. Esta compreensão e redução da
natureza do escravo mantém a escravidão no imaginário social das sociedades. Ao
afirmar que na África a escravidão já era um sistema instituído, parece demonstrar
que o europeu/colonizador não cometeu erros ao acionar este sistema também, já
que ele (colonizador) mantinha o africano em sua “natureza” de escravo.

Ao ressignificar e problematizar o conceito de escravo e operacionalizar o


termo escravizado, estabelece-se outra visão: a de que um sujeito livre, proprietário
de seu destino, dono de suas capacidades mentais e físicas, foi transformado e
submetido a uma condição social imposta pela escravidão, ou seja, a de “peça”, de
“ser animal de tração”, de “mercadoria”.

O conceito de escravizado se relaciona com o de empobrecido e de


marginalizado. Segundo Fonseca (2009), ao dizer que os indivíduos nascem,
crescem e morrem escravos, pobres e marginais, estamos desconsiderando a
existência de sistemas de espoliação, exploração, expropriação e marginalização,
correlacionando-se assim com áreas política, econômica, cultural, simbólica e

167
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

psicológica da sociedade. Deve-se prestar atenção nas categorias trabalhadas


para designar as pessoas a partir de suas condições, compreender que estados
de natureza não são fixos, e que as pessoas estão inseridas em contextos sócio-
históricos, econômicos e culturais que os “conduzem” a determinadas situações.

Não se trata de “libertar o pobre”, mas o empobrecido. Tratar o pobre


como categoria nativa é simplesmente remetê-lo ao estado de natureza.
Diante disso se mantém a lógica perversa de manter o escravo, o pobre
e o marginal em sua culpa pessoal e coletiva – imputa-lhe a impotência
de mudar sua história social. (FONSECA, 2009, p.14).

A palavra “raça”, no contexto da sociedade brasileira, nos remete ao


racismo, às memórias da escravidão e às imagens que construímos sobre “ser
negro” e “ser branco” em nosso país (GOMES, 2005). Raça ainda é o termo que
consegue dar a dimensão mais próxima da discriminação contra os negros, do que
é o racismo que afeta as pessoas negras no Brasil.

O Movimento Negro e alguns sociólogos, quando usam o termo raça,


não o fazem alicerçados na ideia de raças superiores e inferiores, como
originalmente era usada no século XIX. Pelo contrário, usam-no com
uma nova interpretação, que se baseia na dimensão social e política
do referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação racial e o
racismo existentes na sociedade brasileira se dão não apenas devido aos
aspectos culturais dos representantes de diversos grupos étnico-raciais,
mas também devido à relação que se faz na nossa sociedade entre esses
e os aspectos físicos observáveis na estética corporal dos pertencentes às
mesmas (GOMES, 2005, p. 45).

Os militantes e intelectuais que utilizam o termo raça não o adotam no


sentido biológico, pelo contrário, todos sabem e concordam com os atuais estudos
da genética de que não existem raças humanas. Eles trabalham o termo raça
atribuindo-lhe um significado político construído a partir da análise do tipo de
racismo que existe no contexto brasileiro e considerando as dimensões históricas e
culturais que este nos remete.

168
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

FIGURA 36 – SOMOS TODOS MASU

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/s


earch?q=democracia+racial&espv=2&biw=1280&bih=845&
site=webhp&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi=2&ved=0a
hUKEwit5d6XhPzPAhUHLyYKHY2iDEwQ_AUIBigB&dpr=1#
imgdii=Xr2hzreDlqPfUM%3A%3BXr2hz
reDlqPfUM%3A%3B-O7bxG_cC4hGfM%3A&imgrc=Xr2hzre
DlqPfUM%3a>. Acesso em: 30 out. 2016.

O sociólogo Antônio Sérgio Guimarães (1999) trabalha com o conceito de


raça social:

‘Raça’ é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural.


Trata-se, ao contrário, de um conceito que se denota tão-somente uma
forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente
a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de
natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças limita-
se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a
empulhação que o conceito de ‘raça’ permite, ou seja, fazer passar por
realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e
nefastos, tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao
comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem
que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite
(GUIMARÃES, 1999, p. 9, (grifo nosso).

A raça no Brasil se dá através da simbologia de correlação, a sociedade

169
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

brasileira denota demarcadamente diferenças entre brancos, índios, negros,


ciganos etc. Assim, diferencia e confronta estas diferenças em hierarquias raciais,
sociais, culturais e econômicas. Mesmo o negro se identificando como não negro,
não é poupado pelo racismo, pois a sociedade brasileira impõe a racialização em
suas concepções cotidianas.

Não podemos negar que, na construção das sociedades, na forma


como negros e brancos são vistos e tratados no Brasil, a raça tem
uma operacionalidade na cultura e na vida social. Se ela não
tivesse esse peso, as particularidades e características físicas não
seriam usadas por nós, para identificar quem é negro e quem é
branco no Brasil. E mais, não seriam usadas para discriminar e
negar direitos e oportunidades aos negros em nosso país. É essa
mesma leitura sobre raça, de uma maneira positiva e política,
que os defensores das políticas de ações afirmativas no Brasil
têm trabalhado (GOMES, 2005, p. 48).

Alguns intelectuais utilizam o termo etnia compreendendo que o uso


do termo raça ficaria preso ao determinismo biológico, ao conceito de que a
humanidade se divide em raças superiores e inferiores, que já foi abolida pela
biologia e pela genética. A Alemanha nazista utilizou o conceito de raças humanas
para fortalecer sua tentativa de dominação política e cultural e mortificou vários
grupos sociais e étnicos que viviam na Alemanha e nos países aliados ao ditador
Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Segundo Nina Lino Gomes (2005), etnia é outro termo ou conceito usado
para se referir ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros
grupos em nossa sociedade.

Um grupo possuidor de algum grau de coerência e solidariedade


composto por pessoas conscientes, pelo menos em forma latente,
de terem origens e interesses comuns. Um grupo étnico não é mero
agrupamento de pessoas ou de um setor da população, mas uma
agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas
por experiências compartilhadas (CASHMORE, 2000, p. 196).

OU

[...] um grupo social cuja identidade se define pela comunidade


de língua, cultura, tradições, monumentos históricos e territórios
(BOBBIO,1992, p. 449).

As diferenças, mais do que dados da natureza são construções sociais,


culturais e políticas, de acordo com Gomes (2005). A diversidade humana, ou seja, as
nossas semelhanças e dessemelhanças, são ensinadas a partir das particularidades:
diferentes formas de corpo, diferentes cores da pele, tipos de cabelo, formatos dos
olhos, diferentes formas linguísticas etc. No entanto, estamos mergulhados em

170
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

relações de poder e de dominação política e cultural, nem sempre percebemos


que aprendemos a ver as diferenças e as semelhanças de forma hierarquizada:
perfeições e imperfeições, beleza e feiura, inferioridade e superioridade (GOMES,
2005).

FIGURA 37 - NOVA GERAÇÃO DE INDÍGENAS

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/


search?q=indios&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiq2Yz7r_
TPAhVBf5AKHYqwCL4Q_AUICCgB&biw=1366&bih=662#imgdii=Gd_e1S4jziImCM%3A%3BGd_
e1S4jziImCM%3A%3BetA7_hap_teoUM%3A&imgrc=Gd_e1S4jziImCM%3ª. Acesso em: 30 out.
2016.

Outro grupo étnico racial que apresenta grandes lutas na sociedade


brasileira é o indígena. No Brasil, a população indígena é de 896.9 mil, foram
identificadas 305 etnias com 274 línguas reconhecidas. A etnia Tikuna é o maior
grupo, localiza-se na fronteira do Brasil com o Peru, e no trapézio amazônico,
na Colômbia. Na região norte, 502.783 vivem em zona rural e 315.180 habitam
zonas urbanas. Na década de 1980, o movimento social indígena mobilizou-se em
todo o país em prol da mudança na legislação brasileira a respeito dos direitos
indígenas. A Constituição de 1988 garante os direitos à educação para a população
indígena, assim como a manutenção dos direitos culturais, valorização da cultura
e demarcação das terras indígenas. A Lei de Diretrizes e Bases, de 1996, reconhece
os saberes indígenas referindo-se à pluralidade cultural e garantindo aos povos
indígenas o acesso a informações e manutenção de sua cultura.

171
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Gobbi (2006) relata que os livros didáticos, em sua maioria, ainda são
reproduzidos com pressupostos evolucionistas e valores etnocêntricos. Os povos
indígenas são mencionados como pertencentes ao passado, caracterizados como
primitivos e têm seus conhecimentos desconsiderados. As referências às culturas
não europeias são sempre em relação ou em comparação às culturas europeias,
dando a essas últimas uma valoração positiva, em detrimento das outras. O tom
evolucionista permeia a abordagem dos livros didáticos, onde a temática da
“evolução”, da história em “etapas” é bastante recorrente (TASSINARI; GOBI,
2008).

As leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 estabelecem as diretrizes e bases


da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”.
Inúmeros trabalhos relatam que existem práticas discriminatórias dentro das
escolas e do sistema de ensino como um todo que influenciam uma autoimagem
negativa do aluno negro, o que resulta na internalização de perfis racistas que está
por toda sociedade e colabora com o baixo rendimento escolar deste aluno.

Por meio da discussão de textos literários ou jornalísticos, da exibição


de filmes e documentários ou da avaliação de situações do cotidiano,
podemos encaminhar, em sala de aula, uma reflexão sobre ações mais
efetivas da escola e da comunidade circundante, a favor da integração
racial e do respeito à diversidade (SANTOS, 2008, p. 54).

Ao estudar a história afro-brasileira e indígena, os estudantes abrem espaço


no currículo escolar para inclusão da temática das relações raciais e racismo no
espaço escolar.

DICAS

RAÍZES NEGRAS, de Alex Haley

O livro vai contar a história de Alex Haley, que decidiu estudar


a vida de seus antepassados. Em especial, o primeiro negro
de sua família a vir da África e que havia, desde pequeno,
ouvido histórias de tal homem. Esse negro era Kunta Kinte,
que foi sequestrado da África e vindo para os Estados Unidos
ser escravo e cuidar das plantações dos brancos. Kunta sofre
muito quando deixa a África e passa por momentos difíceis
até sua chegada à América. O navio em que é transportado
tem situações higiênicas precárias e vários morrem por
causa de tal sujeira, outros morrem por doenças, e outros
por serem espancados. As mulheres negras traficadas sofrem
muito também, sendo estupradas várias vezes.
FONTE: Disponível em: <http://escritaliteraria1.blogspot.com.
br/2015/05/resenha-negras-raizes-por-alex-haley_20.html>.
Acesso em: 30 out. 2016.

172
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

3 GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA SEGUNDO A


ANTROPOLOGIA

FIGURA 38 - GÊNERO E SEXUALIDADE

FONTE: Disponível em: <http://www.superpride.com.br/2016/01/identidades-genero-


e-diversidade-sexual.html>. Acesso em: 17 ago. 2016.

Caro acadêmico! Agora vamos tocar em um assunto muito relevante nos


dias atuais. O que é falar sobre estudos de gênero? Como se relaciona gênero e
sexualidade? Em que medida é natural ou social cada uma dessas categorias?
Como posso tratar essa temática em sala de aula? Enfim, são perguntas que os
professores colocam e que nem sempre sabem ou se sentem à vontade para debater
em sala de aula. Entretanto, é um tema pelo qual nossos alunos se interessam e
cada vez mais nos pedem para falar.

Vamos lá, então! Para compreender esse debate, temos de separar os


conceitos de três termos que se relacionam e definem em cada âmbito dessa
questão, que são: sexo, gênero e sexualidade. Muitas vezes confundimos sexo e
gênero, ou achamos que o gênero determina a sexualidade da pessoa. Por isso é
relevante separar e pensar que a pessoa pode acionar cada conceito de uma forma
diferente de outras pessoas.

Primeiro, quando nos preocupamos com o "sexo", estamos focados nas


características físicas do ser humano, ou seja, nos órgãos genitais e formas do
corpo. Nesse sentido há componentes biológicos através dos quais nascemos que
definem o fato de termos pênis ou vagina, entretanto, sabemos que há casos de
pessoas que nascem com a genitália ambígua e que não necessariamente vão se
identificar com o sexo escolhido pelos seus pais durante o processo de criação, por
173
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

isso há um movimento de pessoas que nasceram com a genitália ambígua e pedem


para essa decisão ser mais tardia, para que a própria pessoa possa escolher, e não os
pais e profissionais de saúde. Além disso, com o avanço da ciência e da tecnologia,
para quem não se reconhece ou não gosta do sexo com que nasceu, pode-se realizar
uma cirurgia de readequação genital e tomar hormônios, interferindo na questão
física e biológica também.

Nesse sentido, a ideia de que o sexo é natural vai ganhando cada vez mais
camadas que nos fazem repensar e estudar mais a questão. De alguma maneira
nascemos com certo sexo, mas isso não significa que ao longo dos anos vamos
nos identificar com ele, por isso temos de ter cuidado para respeitar as escolhas
das pessoas que se reconhecem com o sexo que nasceram ou não. Pois quem não
se reconhece sofre com isso, e a possibilidade da cirurgia de readequação genital
pode dar uma qualidade de vida melhor para essa pessoa.

Vamos entender do que se fala quando pensamos "gênero". A ideia de


gênero remete à função de classificar em masculino ou feminino a pessoa, e em
cada sociedade os atributos que definem essa classificação podem variar. Por
exemplo, cabelo curto para definir homens e comprido para definir mulheres,
gestos mais brutos para se reconhecer a masculinidade e gestos mais delicados
para definir feminilidade, homens usam calças e mulheres usam saia etc. O que
queremos dizer é que gênero é socialmente construído, não é natural, de modo que
em cada cultura em que se está certos atributos definem com qual gênero a pessoa
se identifica. Deste modo, não é o sexo que a pessoa tem que define o gênero com o
qual ela se identifica. Ou mesmo, a pessoa pode se identificar um pouco com cada
gênero, ou mesmo não se identificar nem com o masculino, nem com o feminino,
como são as pessoas "não binárias" que não se enquadram nesse binarismo.

Aqui já podemos complexificar nossa discussão, pois estamos vendo que


não necessariamente ter um sexo específico é definidor do gênero com que a pessoa
se identifica, por esta razão devemos estar atentos a isso. É possível que uma pessoa
tenha um pênis, mas se identifique com o gênero feminino, por exemplo. Inclusive,
com a ajuda da ciência e da medicina é possível que pessoas que nasceram com
vagina possam realizar um tratamento hormonal e ter barba, construindo essa
caracterização da masculinidade, de acordo com sua cultura.

DICAS

Indicamos o filme "Meu eu secreto", sobre crianças que nasceram com um sexo,
mas se reconhecem com outro gênero.

FONTE: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YU5NS4dHPUA>.

174
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

Vamos falar sobre "sexualidade". Ter um sexo específico e ter um gênero


definido não significa que há correspondência direta em relação à sexualidade
da pessoa. Assim, sexualidade está vinculada à orientação do desejo sexual e
afetivo por outra pessoa. Quem gosta de pessoas do sexo oposto chamamos de
heterossexual (ou heteroafetivo), e chamamos quem gosta de pessoas do mesmo
sexo de homossexual (ou homoafetivo). O termo homoafetivo foi criado para
diminuir a conotação pejorativa que se dava aos relacionamentos homossexuais,
e tornou-se uma expressão jurídica para tratar do direito relacionado à união de
casais do mesmo sexo. Ainda há quem goste de pessoas do mesmo sexo e do sexo
oposto, essas pessoas são chamadas de bissexuais (ou biafetivas). E existem aqueles
que são assexuais (não se sentem atraídos por nenhum dos sexos) e os pansexuais
(atração emocional independente do gênero).

Nesse sentido, a identidade de gênero se refere ao aspecto cultural da


diferença entre homens e mulheres, e não às diferenças físicas. A identidade, por
sua vez, diz respeito ao processo de construção das diferenças e identificações
que cada ser humano desenvolve em suas relações sociais. Deve-se considerar o
conjunto de características que orienta nossa relação com o masculino e o feminino
e revela a diferença cultural entre os sexos em uma dada sociedade.

Assim, podemos relacionar as três categorias de acordo como cada pessoa


se reconhece, se entende e se sente atraída. Por exemplo, pode ter alguém que
nasceu com uma vagina, se reconhece como o gênero masculino e se relaciona com
mulheres. Ou pode ter alguém que tem pênis, se reconhece como o gênero feminino
e se relaciona com mulheres, enfim, as possibilidades de combinação variam e cabe
a cada pessoa fazer as escolhas com quem ela se sinta mais confortável e feliz.

Entretanto, sabe-se que há desigualdade e discriminação de gênero


que produz injustiças sociais e formas de violência que persistem na sociedade
brasileira. Também são classificados como questões de gênero os problemas
relativos ao preconceito contra homossexuais (homofobia) e transgêneros (quando
a identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquela atribuída ao gênero
designado desde o nascimento).

Considerar uma pessoa diferente por ela ter um gênero ou outro, ou ela
se relacionar com quem quer que seja, é discriminação. Ainda hoje as mulheres
ganham menos que os homens e essa é uma luta de todos nós, pois se o trabalho é
o mesmo, nada mais justo que a pessoa, independente do sexo ou gênero, ganhar
a mesma coisa que o seu sexo ou gênero oposto. As questões sexuais ainda são
consideradas tabu em nossa sociedade, por isso a intransigência em aceitar/
reconhecer que outras pessoas difiram do padrão heteronormativo deve ser
combatida. Ninguém deve ser vítima de violência por querer se identificar com
um gênero ou se relacionar com uma pessoa ou outra.

As lutas feministas e LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,


Transexuais e Transgêneros) explicitam essas discriminações e realizam
mobilizações para sensibilizar pela e para igualdade de gênero. Nesse sentido,

175
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

punir criminalmente quem discrimina é uma medida para combater que novas
injustiças possam ocorrer, bem como trabalhar essas questões em sala de aula
pode permitir educar para a diversidade.

DICAS

Recomenda-se a leitura do livro "Educando para a diversidade",


que foi organizado por Eliane Pasini, onde há textos diversos
sobre questão de gênero e o processo educativo.

Fonte: Disponível em: <http://www.academia.edu/2393413/


Educando_para_a_diversidade>.

De acordo com Louro (2011), muitas estudiosas feministas demonstram a


especificidade da distinção entre gênero e sexualidade e também sua forte relação.

Entre essas estudiosas, o conceito de gênero surgiu pela necessidade


de acentuar o caráter eminentemente social das diferenças percebidas
entre os sexos. Apontava para a impossibilidade de se ancorar no sexo
(tomado de modo estreito como características físicas ou biológicas dos
corpos) as diferenças e desigualdades que as mulheres experimentavam
em relação aos homens. O conceito levava a afirmar que tornar-se
feminina supõe uma construção, uma fabricação ou um aprendizado
que acontece no âmbito da cultura, com especificidades de cada
cultura. Portanto, as marcas da feminilidade são sempre diferentes de
uma cultura para outra; essas marcas se transformam, são provisórias.
Inscrevê-las num corpo supõe, também, lidar com as marcas distintivas
do seu outro, a masculinidade. Percebe-se, então, que ao falar de gênero
estamos nos referindo a feminilidades e a masculinidades (sempre no
plural). A potencialidade do conceito talvez resida exatamente nesta
noção, a de que se trata de uma construção cultural contínua, sempre
inconclusa e relacional. (LOURO, 2011, p. 63-64).

A professora Guacira Louro (2011) explica que gênero e sexualidade são


construídos culturalmente. Ou seja, aprendemos a ser do gênero feminino ou
masculino, aprendemos a ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, nossos
comportamentos são pautados pelo que Louro (2011) coloca como pedagogias
culturais, ou pedagogias de gênero e sexualidade, onde nossos comportamentos,
desejos, gestos são condicionados pelo determinado gênero e sexualidade. Os
176
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

significados atribuídos aos gêneros e às sexualidades são permeados ou assinalados


por relações de poder e implicam hierarquias, subordinações, distinções. Estas
relações de poder demarcam “lugares”, que são “não normais”, ou vistos como
“normais”, apresentando assim uma relação de “diferença”. Na sociedade
brasileira, observa-se a construção de uma posição que se torna referência do que
pode ser “normal”. Deste modo, o que é dito “correto” provém do homem branco,
heterossexual, de classe média urbana e cristão, este é o perfil do que tomamos
como identidade de referência.

De acordo com Louro (2011), os educadores necessitariam retomar os


processos históricos, políticos, econômicos, culturais que possibilitaram que
fosse determinado que um “padrão identitário” fosse legitimado e tido como
critério normalizador, deixando o que não se encaixa, como “diferente” ou
“desviante”, para que assim possamos analisar como a escola está lidando
com estas questões. Compreendendo que a educação opera em uma lógica
disciplinadora e normalizadora. Neste sentido, a educação trabalha na perspectiva
da heteronormatividade, ou seja, trabalha no entendimento de que todos são,
ou deveriam ser heterossexuais, assumindo que esta seria a forma “natural” de
sexualidade.

Se a heterossexualidade fosse natural, por que se gastaria tanto esforço


para vigiar e garantir que meninas e meninos – muito especialmente
os meninos – se tornem heterossexuais? Afinal, se ela é mesmo algo
natural, deveríamos supor que não se precisasse cuidar tanto de sua
“aquisição”. Mas sabemos que essa é uma questão que preocupa pais,
mães, educadoras e educadores. Um ponto de tensão e, algumas vezes,
de atrito entre a escola e a família (LOURO, 2011, p. 67).

FIGURA 39 - ESCOLA EXCLUSIVAMENTE FEMININA EM PORTUGAL

FONTE: Disponível em: <https://ensaiosdegenero.files.wordpress.com/2014/01/


gc3aanero-e-educac3a7c3a3o-histc3b3ria-de-desigualdades-1.jpg>. Acesso em: 12
maio 2017.

177
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Segundo o sociólogo francês Bernard Charlot (2009), a escola, inicialmente,


era um espaço exclusivamente masculino, onde as meninas não podiam participar,
ou o faziam em locais distintos. Os liceus femininos foram criados em 1880, com
forte resistência, havia o receio de que as meninas poderiam ser mais subversivas ao
estudarem. De acordo com os dados do censo escolar do INEP (Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), as mulheres são maioria nos
índices de escolaridades, principalmente no Ensino Médio. Veja as composições de
sexo e raça/cor por grau de escolaridade no ano de 2016 no Brasil. Na sociedade
britânica, desde a década de noventa a comunidade escolar vem discutindo o baixo
desempenho escolar dos meninos. As meninas estão superando o desempenho em
todas as áreas e todos os níveis escolares do sistema educacional britânico, de acordo
com o sociólogo Anthony Giddens (2005). O mesmo ainda relata que o problema do
“fracasso dos meninos” é um tema que inquieta os educadores britânicos, a queda
no desempenho pode estar associada a diversas questões sociais, como a violência,
o desemprego, as drogas e a monoparentalidade. De que forma a antropologia
pode auxiliar na reflexão sobre estes temas? No próximo tópico trabalharemos a
temática da educação inclusiva a partir do olhar da antropologia, para que você
possa refletir sobre estas desigualdades de gênero, raça/cor, econômica e cultural.

DICAS

1) MINHA VIDA EM COR DE ROSA (1996) – Ludovic é uma garota transsexual que
está começando a assumir sua verdadeira identidade perante o mundo. Seu desejo é se casar
com o filho de sua vizinha, mas os novos rumos que Ludovic dá para sua vida surpreendem
sua própria família e os vizinhos, que não conseguem aceitar, de fato, a felicidade, os desejos
e a real identidade de Ludovic.
FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-12213/>.

2) ELVIS & MADONNA (2010) – Simone Spoladore (Lavoura Arcaica) é Elvis, fotógrafa de
coração e entregadora de pizza por necessidade. Logo em sua primeira entrega ela conhece
Madona (Ígor Cotrim), um travesti que enfrenta problemas com o amante João Tripé (Sérgio
Bezerra). É o início de uma amizade que, pouco a pouco, se transforma em amor.
FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-202462/>.

178
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

LEITURA COMPLEMENTAR
Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas

Guacira Lopes Louro *1

Há mais de cinquenta anos, Simone de Beauvoir sacudiu a poeira dos meios


intelectuais com a frase Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. A expressão
causou impacto e ganhou o mundo. Mulheres das mais diferentes posições,
militantes e estudiosas passaram a repeti-la para indicar que seu modo de ser e de
estar no mundo não resultava de um ato único, inaugural, mas que, em vez disso,
constituía-se numa construção. Fazer-se mulher dependia das marcas, dos gestos,
dos comportamentos, das preferências e dos desgostos que lhes eram ensinados
e reiterados, cotidianamente, conforme normas e valores de uma dada cultura.
Muita coisa mudou desde o final dos anos 1940 (quando Beauvoir publicou o seu
Segundo sexo) e o fazer-se mulher transformou-se, pluralizou-se, de um modo
tal que talvez nem mesmo a filósofa ousasse imaginar. Mas a frase ficou. De
certa forma, pode ser tomada como uma espécie de gatilho provocador de um
conjunto de reflexões e teorizações, exuberante e fértil, polêmico e disputado, não
só no campo do feminismo e dos estudos de gênero, como também no campo dos
estudos da sexualidade. A frase foi alargada, é claro, passando a ser compreendida
também no masculino. Sim, decididamente, fazer de alguém um homem requer,
de igual modo, investimentos continuados. Nada há de puramente natural
e dado em tudo isso: ser homem e ser mulher constituem-se em processos que
acontecem no âmbito da cultura. Ainda que teóricas e intelectuais disputem
quanto aos modos de compreender e atribuir sentido a esses processos, elas e
eles costumam concordar que não é o momento do nascimento e da nomeação
de um corpo como macho ou como fêmea que faz deste um sujeito masculino
ou feminino. A construção do gênero e da sexualidade dá-se ao longo de toda
a vida, continuamente, infindavelmente. Quem tem a primazia nesse processo?
Que instâncias e espaços sociais têm o poder de decidir e inscrever em nossos
corpos as marcas e as normas que devem ser seguidas? Qualquer resposta cabal e
definitiva a tais questões será ingênua e inadequada. A construção dos gêneros e
das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se
nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por
um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso,
sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas
mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo.
Por muito tempo, suas orientações e ensinamentos pareceram absolutos, quase
soberanos. Mas como esquecer, especialmente na contemporaneidade, a sedução
e o impacto da mídia, das novelas e da publicidade, das revistas e da internet,
dos sites de relacionamento e dos blogs? Como esquecer o cinema e a televisão, os
shopping centers ou a música popular? Como esquecer as pesquisas de opinião e
as de consumo? E, ainda, como escapar das câmeras e monitores de vídeo e das
1Professora Titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Brasil. Colaboradora
convidada da mesma universidade, no Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha de Pesquisa Educação,
Sexualidade e Relações de Gênero, Fundadora do GEERGE (Grupo de Estudos de Educação e Relações de
Gênero). <guacira.louro@gmail.com>.

179
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

inúmeras máquinas que nos vigiam e nos atendem nos bancos, nos supermercados
e nos postos de gasolina? Vivemos mergulhados em seus conselhos e ordens,
somos controlados por seus mecanismos, sofremos suas censuras. As proposições
e os contornos delineados por essas múltiplas instâncias nem sempre são coerentes
ou igualmente autorizados, mas estão, inegavelmente, espalhados por toda a parte
e acabam por constituir-se como potentes pedagogias culturais. Especialistas das
mais diversas áreas dizem-nos o que vestir, como andar, o que comer (como e
quando e quanto comer), o que fazer para conquistar (e para manter) um parceiro
ou parceira amoroso/a, como se apresentar para conseguir um emprego (ou para
ir a uma festa), como ficar de bem com a vida, como se mostrar sensual, como
aparentar sucesso, como... ser.

Dieta S.O.S. Barriga chapada. Montamos um cardápio para você desfilar


no verão com abdômen sequinho. Confira e comece já. 1. Mude o visual
e ganhe atitude. Como conquistar a gata dos seus sonhos. Ensinamos
passo a passo as técnicas de aproximação e de conquista. Sabia que você
pode substituir a flacidez por músculos? Discipline-se, adquira novos
hábitos. Na festa mais descolada da temporada, aprenda com aqueles
que já sabem tudo o que vai rolar na nova estação.

Conselhos e palavras de ordem interpelam-nos constantemente, ensinam-


nos sobre saúde, comportamento, religião, amor, dizem-nos o que preferir e o que
recusar, ajudam-nos a produzir nossos corpos e estilos, nossos modos de ser e de
viver. Algumas orientações provêm de campos consagrados e tradicionalmente
reconhecidos por sua autoridade, como o da medicina ou da ciência, da família,
da justiça ou da religião. Outras parecem surgir dos novos espaços ou ali ecoar.
Não há uniformidade em suas diretrizes. Ainda que normas culturais de há muito
assentadas sejam reiteradas por várias instâncias, é indispensável observar que,
hoje, multiplicaram-se os modos de compreender, de dar sentido e de viver os
gêneros e a sexualidade. Transformações são inerentes à história e à cultura,
mas, nos últimos tempos, elas parecem ter se tornado mais visíveis ou ter se
acelerado. Proliferaram vozes e verdades. Novos saberes, novas técnicas, novos
comportamentos, novas formas de relacionamento e novos estilos de vida foram
postos em ação e tornaram evidente uma diversidade cultural que não parecia
existir. Cada vez mais perturbadoras, essas transformações passaram a intervir
em setores que haviam sido, por muito tempo, considerados imutáveis, trans-
históricos e universais. Em poucos anos, tornaram-se possíveis novas tecnologias
reprodutivas, a transgressão de categorias e de fronteiras sexuais e de gênero, além
de instigantes articulações corpo-máquina. Desestabilizaram-se antigas e sólidas
certezas, subverteram-se as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de
morrer. Informações e pessoas até então inatingíveis tornaram-se acessíveis por
um simples toque de computador. Relações afetivas e amorosas passaram a ser
vividas virtualmente; relações que desprezam dimensões de espaço, de tempo,
de gênero, de sexualidade, de classe ou de raça; relações nas quais o anonimato e
a troca de identidade são parte do jogo. Impossível desprezar os efeitos de todas
essas transformações: elas constituem novas formas de existência para todos,
mesmo para aqueles que, num primeiro momento, não as experimentam de modo
direto.

180
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

Como parte de tudo isso, vem se afirmando uma nova política cultural,
a política de identidades. Muito especialmente a partir dos anos 1960, jovens,
estudantes, negros, mulheres, as chamadas minorias sexuais e étnicas passaram a
falar mais alto, denunciando sua inconformidade e seu desencanto, questionando
teorias e conceitos, derrubando fórmulas, criando novas linguagens e construindo
novas práticas sociais. Uma série de lutas ou uma luta plural, protagonizada por
grupos sociais tradicionalmente subordinados, passava a privilegiar a cultura
como palco do embate.

Seu propósito consistia, pelo menos inicialmente, em tornar visíveis outros


modos de viver, os seus próprios modos: suas estéticas, suas éticas, suas histórias,
suas experiências e suas questões. Desencadeava-se uma luta que, mesmo com
distintas caras e expressões, poderia ser sintetizada como a luta pelo direito de
falar por si e de falar de si. Esses diferentes grupos, historicamente colocados
em segundo plano pelos grupos dominantes, estavam e estão empenhados,
fundamentalmente, em se autorrepresentar. A cultura, diz Stuart Hall, é agora
um dos elementos mais dinâmicos e mais imprevisíveis da mudança histórica do
novo milênio. Daí porque não deve nos surpreender que as lutas pelo poder sejam,
crescentemente, simbólicas e discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma
forma física e compulsiva, e que as próprias políticas assumam progressivamente
a feição de uma ‘política cultural’ (HALL, 1997, p. 20). Esse tipo de luta requer
armas peculiares. Supõe estratégias mais sutis e engenhosas. Talvez por isso a
alguns escape a força dos embates culturais.

Mas os movimentos sociais organizados (dentre eles o movimento feminista


e os das minorias sexuais) compreenderam, desde logo, que o acesso e o controle
dos espaços culturais, como a mídia, o cinema, a televisão, os jornais, os currículos
das escolas e universidades, eram fundamentais. A voz que ali se fizera ouvir, até
então, havia sido a do homem branco heterossexual. Ao longo da história, essa
voz falara de um modo quase incontestável. Construíra representações sociais que
tiveram importantes efeitos de verdade sobre todos os demais. Passamos, assim,
a tomar como verdade que as mulheres se constituíam no segundo sexo ou que
gays, lésbicas, bissexuais eram sujeitos de sexualidades desviantes. Por tudo isso,
colocava-se, como uma meta urgente para os grupos submetidos, apropriar-se
dessas instâncias culturais e aí inscrever sua própria representação e sua história,
pôr em evidência as questões de seu interesse. A luta no terreno cultural mostrava-
se (e se mostra), fundamentalmente, como uma luta em torno da atribuição de
significados produzidos em meio a relações de poder. Esse embate, como
qualquer outro embate cultural, é complexo exatamente porque está em contínua
transformação. No terreno dos gêneros e da sexualidade, o grande desafio, hoje,
parece não ser apenas aceitar que as posições se tenham multiplicado, então, que
é impossível lidar com elas a partir de esquemas binários (masculino/feminino,
heterossexual/homossexual).

O desafio maior talvez seja admitir que as fronteiras sexuais e de gênero


vêm sendo constantemente atravessadas e, o que é ainda mais complicado admitir,
que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira. A

181
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

posição de ambiguidade entre as identidades de gênero e/ou sexuais é o lugar


que alguns escolheram para viver (LOURO, 2004). A visibilidade que todos
esses novos grupos adquiriram pode ser, eventualmente, interpretada como um
atestado de sua progressiva aceitação. Contudo, nem mesmo a exuberância das
paradas da diversidade sexual, das feiras mix, dos festivais de filmes alternativos
permite ignorar a longa história de marginalização e de repressão que esses
grupos enfrentaram e ainda enfrentam. Não podemos tomar de modo ingênuo
essa visibilidade. Se, por um lado, alguns setores sociais passam a demonstrar
uma crescente aceitação da pluralidade sexual e, até mesmo, passam a consumir
alguns de seus produtos culturais, por outro lado, setores tradicionais renovam
(e recrudescem) seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos
valores tradicionais da família até manifestações de extrema agressão e violência
física. Hoje, tal como antes, a sexualidade permanece como alvo privilegiado da
vigilância e do controle das sociedades.

Ampliam-se e diversificam-se suas formas de regulação, multiplicam-


se as instâncias e as instituições que se autorizam a ditar-lhe normas. Foucault
certamente diria que proliferam cada vez mais os discursos sobre o sexo e que
as sociedades continuam produzindo, avidamente, um saber sobre o prazer, ao
mesmo tempo que experimentam o prazer de saber (FOUCAULT, 1988). A sutileza
do embate cultural requer um olhar igualmente sutil. Há que perceber os modos
como se constrói e se reconstrói a posição da normalidade e a posição da diferença,
porque, afinal, é disso que se trata. Em outras palavras, é preciso saber quem é
reconhecido como sujeito normal, adequado, sadio, e quem se diferencia desse
sujeito. As noções de norma e de diferença tornaram-se particularmente relevantes
na contemporaneidade. É preciso refletir sobre seus possíveis significados. A
norma, ensina-nos Foucault, está inscrita entre as artes de julgar, ela é um princípio
de comparação. Sabemos que tem relação com o poder, mas sua relação não se dá
pelo uso da força, e sim por meio de uma espécie de lógica que se poderia quase
dizer que é invisível, insidiosa (EWALD, 1993). A norma não emana de um único
lugar, não é enunciada por um soberano, mas, em vez disso, está em toda parte.

Expressa-se por meio de recomendações repetidas e observadas


cotidianamente, que servem de referência a todos. Daí porque a norma se
faz penetrante, daí porque ela é capaz de se naturalizar. Quanto à diferença, é
possível dizer que ela seja um atributo que só faz sentido ou só pode se constituir
em uma relação. A diferença não preexiste nos corpos dos indivíduos para ser
simplesmente reconhecida; em vez disso, ela é atribuída a um sujeito (ou a um
corpo, uma prática, ou seja lá o que for) quando relacionamos esse sujeito (ou esse
corpo ou essa prática) a um outro que é tomado como referência. Portanto, se a
posição do homem branco heterossexual de classe média urbana foi construída,
historicamente, como a posição de sujeito ou a identidade referência, segue-se que
serão diferentes todas as identidades que não correspondam a esta ou que desta
se afastem. A posição normal é, de algum modo, onipresente, sempre presumida,
e isso a torna, paradoxalmente, invisível. Não é preciso mencioná-la. Marcadas
serão as identidades que dela diferirem. Continuamente, as marcas da diferença
são inscritas e reinscritas pelas políticas e pelos saberes legitimados, reiteradas por

182
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

variadas práticas sociais e pedagogias culturais. Se, hoje, as classificações binárias


dos gêneros e da sexualidade não mais dão conta das possibilidades de práticas
e de identidades, isso não significa que os sujeitos transitem livremente entre
esses territórios, isso não significa que eles e elas sejam igualmente considerados.
Portanto, antes de simplesmente assumir noções dadas de normalidade e de
diferença, parece produtivo refletir sobre os processos de inscrição dessas marcas.

Não se trata de negar a materialidade dos corpos, mas sim de assumir que
é no interior da cultura e de uma cultura específica que características materiais
adquirem significados. Como isso tudo aconteceu e acontece? Através de que
mecanismos? Se em tudo isso estão implicadas hierarquias e relações de poder, por
onde passam tais relações? Como se manifestam? Não, a diferença não é natural,
mas sim naturalizada. A diferença é produzida através de processos discursivos e
culturais.

A diferença é ensinada. Aprendemos a viver o gênero e a sexualidade na


cultura, através dos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis e
também, contemporaneamente, através dos discursos dos movimentos sociais e dos
múltiplos dispositivos tecnológicos. As muitas formas de experimentar prazeres
e desejos, de dar e de receber afeto, de amar e de ser amada/o são ensaiadas e
ensinadas na cultura, são diferentes de uma cultura para outra, de uma época ou
de uma geração para outra. E hoje, mais do que nunca, essas formas são múltiplas.
As possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades ampliaram-se. As certezas
acabaram. Tudo isso pode ser fascinante, rico e também desestabilizador. Mas não
há como escapar a esse desafio. O único modo de lidar com a contemporaneidade
é, precisamente, não se recusar a vivê-la.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

EWALD, François. Foucault: a norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo. Educação &
Realidade. v. 22, n. 2, jul./dez. 1997. La Gandhi Argentina. Editorial, ano 2, n. 3, nov. 1998.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.

FONTE: LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-


Posições [online]. 2008, vol.19, n.2, pp.17-23. ISSN 1980-6248.

183
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

LEITURA COMPLEMENTAR

KABENGELE MUNANGA: A DIFÍCIL TAREFA DE DEFINIR QUEM É


NEGRO NO BRASIL

Para o antropólogo Kabengele Munanga, professor-


titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, não é fácil definir quem é negro no
Brasil. Em entrevista concedida a Estudos Avançados,
no último dia 13 de fevereiro, ele classifica a
questão como “problemática”, sobretudo quando
se discutem políticas de ação afirmativa, como cotas
para negros em universidades públicas. “Com os
estudos da genética, por meio da biologia molecular,
mostrando que muitos brasileiros aparentemente
brancos trazem marcadores genéticos africanos,
cada um pode se dizer um afrodescendente.
Trata-se de uma decisão política”, afirma.

Kabengele Munanga é atualmente vice-diretor do Centro de Estudos Africanos


e do Museu de Arte Contemporânea da USP. Nasceu em 19 de novembro de
1942 no antigo Zaire, onde recebeu sua educação primária e secundária. Sua
educação superior ocorreu em seu país natal, de 1964 a 1969. Foi o primeiro
antropólogo formado na então Université Officielle du Congo, em Ciências
Sociais (Antropologia Social e Cultural). No mesmo ano em que se graduou,
recebeu uma bolsa do governo belga, como pesquisador no Museu Real da
África Central, em Tervuren, e como aluno do programa de pós-graduação
na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Essa bolsa foi interrompida
em 1971, por questões políticas, antes da conclusão de seu doutorado.

Em julho de 1975, veio ao Brasil com uma bolsa da USP, a fim de continuar seus
estudos. Defendeu sua tese em 1977. No mesmo ano, voltou a seu país, mas não
conseguiu permanecer lá por muito tempo. Regressou ao Brasil em 1979, para
trabalhar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 1980, iniciou a
segunda fase de sua carreira na USP. Em 2002, o governo brasileiro concedeu a
Kabengele Munanga o diploma de sua admissão na Ordem do Mérito Cultural, na
classe de Comendador.

Participaram da entrevista com Kabengele Munanga o editor de Estudos


Avançados, professor Alfredo Bosi, e o editor assistente, jornalista Dario Luis Borelli.

ESTUDOS AVANÇADOS – Quem é negro no Brasil? É um problema de identidade


ou de denominação?

Kabengele Munanga – Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num
país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma
definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de

184
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade


do negro é um processo doloroso. Os conceitos de negro e de branco têm um
fundamento etnossemântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico.
Politicamente, os que atuam nos movimentos negros organizados qualificam como
negra qualquer pessoa que tenha essa aparência. É uma qualificação política que
se aproxima da definição norte-americana. Nos EUA não existe pardo, mulato ou
mestiço e qualquer descendente de negro pode simplesmente se apresentar como
negro. Portanto, por mais que tenha uma aparência de branco, a pessoa pode se
declarar como negro. No contexto atual, no Brasil a questão é problemática, porque,
quando se colocam em foco políticas de ações afirmativas – cotas, por exemplo
–, o conceito de negro torna-se complexo. Entra em jogo também o conceito de
afrodescendente, forjado pelos próprios negros na busca da unidade com os
mestiços. Com os estudos da genética, por meio da biologia molecular, mostrando
que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem marcadores genéticos
africanos, cada um pode se dizer um afrodescendente. Trata-se de uma decisão
política. Se um garoto, aparentemente branco, declara-se como negro e reivindicar
seus direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como contestar. O único
jeito é submeter essa pessoa a um teste de DNA. Porém, isso não é aconselhável,
porque, seguindo por tal caminho, todos os brasileiros deverão fazer testes. E o
mesmo sucederia com afrodescendentes que têm marcadores genéticos europeus,
porque muitos de nossos mestiços são eurodescendentes.

ESTUDOS AVANÇADOS – Em face da concessão de cotas para negros, ou para


outros segmentos da população que não tiveram a mesma condição de cursar
escolas da classe média ou alta, qual é a sua posição?

Kabengele Munanga – Por ocasião dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares,
em 1995, começamos a discutir essa questão na USP, numa comissão criada pela
reitoria. Os movimentos negros, principalmente o Núcleo da Consciência Negra,
pleitearam o estabelecimento de cotas em nossa universidade. Contudo, afirmei
que não poderíamos discutir o sistema de cotas sem antes fazer uma pesquisa
preliminar em países que já têm experiência de cotas, como os EUA, o Canadá, a
Austrália ou a Índia. Naquela ocasião, apresentei essa proposta, mas ela não foi
levada adiante. No entanto, na base de um levantamento do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), um órgão do governo federal, conclui-se que realmente
há uma grande defasagem na escolaridade dos negros nas universidades brasileiras.
Infelizmente, porém, começamos a enfrentar a questão pelas cotas, a partir da
decisão do governador Anthony Garotinho, do Rio de Janeiro, que provocou uma
confusão muito grande, quando estabeleceu cotas nas universidades estaduais. No
entanto, mesmo num país com tantas desigualdades, as políticas universalistas não
resolvem o problema do negro. Para isso precisamos formular políticas específicas
contra as desigualdades, mas o caminho não deve ser necessariamente por meio
de cotas. Essa discussão, todavia, é importante, porque antes nem se tocava no
assunto. Escutei outro dia algo muito positivo quando alguém dizia que deveria
haver cotas para pobres. Ora, antes ninguém apresentou esse ponto de vista. O
que mais me surpreende é que jamais o movimento negro se disse contrário a
cotas para brancos pobres. A questão ainda está mal discutida, sendo formulada
num tom passional, tanto pelos negros como pelos intelectuais. A questão não
185
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

é a existência ou não das cotas. O fundamental é aumentar o contingente negro


no ensino superior de boa qualidade, descobrindo os caminhos para que isso
aconteça. Para mim, as cotas são uma medida transitória, para acelerar o processo.
No entanto, julgo que não somente os negros, mas também os brancos pobres
têm o direito às cotas. Se as cotas forem adotadas, devem ser cruzados critérios
econômicos com critérios étnicos. Porque meus filhos não precisam de cotas, assim
como outros negros da classe média.

ESTUDOS AVANÇADOS – O sr. iniciou suas declarações dando uma opinião


contra as cotas, mas agora aponta para o problema da urgência. As cotas aparecem
como uma medida de urgência?

Kabengele Munanga – Sim. Ao menos que o país diga que tem hoje uma outra
proposta emergencial melhor, que não abra mão de uma política universalista com
vistas ao aperfeiçoamento do nível do ensino básico. É bom lembrar que a escola
pública já apresentou melhor qualidade, mas o negro e o pobre não entravam nela.

ESTUDOS AVANÇADOS  – O sr. acha que a médio prazo a alternativa seria


uma transformação mais profunda do ensino básico e secundário? Um número
considerável de alunos negros faz o segundo grau em escolas públicas. Não
falo deles como negros, mas sim como pobres. Será que as cotas não resolvem
o problema porque o enfrentam no fim da linha, em vez de atacá-lo no começo?

Kabengele Munanga  – Sim. Porém, vivo aqui há 28 anos e desde que cheguei
escuto esse discurso. Mas nunca vi luta política e social alguma para a melhoria
da escola pública. Só há o discurso. Mas o que fazer com a vítima? Esperar que
isso aconteça por milagre, ou pressionar a sociedade através de uma proposta:
como pelo menos cuidar da escola pública? A dúvida que tenho é a seguinte: num
país onde a privatização do ensino é cada vez maior e no qual o lobby das escolas
particulares é tão forte, só posso antever uma melhoria a longo prazo. Lembro-me
de que o primeiro processo contra as propostas de cotas no Rio de Janeiro veio do
sindicato das escolas privadas. Devido a essa tendência para a privatização das
escolas públicas, não acredito numa rápida melhoria delas. A desigualdade social
que existe há 400 anos não pode ser resolvida por meio de políticas universalistas.
É preciso, portanto, traçar políticas específicas para se encontrar uma solução. A
discriminação racial A palavra “social” incomoda-me muito. Quando dizem que a
questão do negro é uma questão social, o que quer dizer “social”? As relações de
gênero são uma questão social; a discriminação contra o portador de deficiência
é uma questão social; a discriminação contra o negro é uma questão social. Ora,
o social tem nome e endereço. Não podemos diluir, retirar o nome, a religião
e o sexo e aplicar uma solução química. O problema social tem de ser atacado
especificamente. A discriminação racial precisa ser urgentemente enfrentada. Nós,
negros, também temos problemas de alienação de nossa personalidade. Muitas
vezes trabalhamos o problema na ponta do iceberg que é visível. Mas a base
desse iceberg deixa de ser trabalhada. Estou aqui, como disse, há 28 anos. Vou a
restaurantes utilizados pela classe média e a centros de alimentação nos shoppings.
Encontro famílias brancas comendo (homem, mulher e filhos), mas dificilmente
estão ali famílias negras. Há uma classe média negra, mas que se autodiscrimina e
186
TÓPICO 2 | DISCUSSÕES DE CONTEÚDOS

que é também discriminada. Desafio vocês a me dizerem que encontraram quatro


famílias negras em cinco restaurantes de classe média em São Paulo. Vejamos o meu
caso: em meu segundo casamento (que é inter-racial) percebia aquelas “olhadas” –
mulher branca, filhos negros do primeiro casamento e filhos mestiços do segundo.
Ninguém me expulsava desses lugares, mas eu via as “olhadas”...

ESTUDOS AVANÇADOS – A USP está completando setenta anos e gostaria que o


sr. falasse sobre as principais linhas de pesquisa sobre gênero e raça na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Kabengele Munanga  – Até onde eu saiba, não há uma linha de pesquisa sobre
gênero e raça. Há um núcleo de estudo da mulher, dirigido pela professora Eva
Blay. De vez em quando ela convida alguma jovem pesquisadora negra. Talvez
exista uma explicação histórica para isso, porque normalmente quem estuda
esse tema são as mulheres. Mas, não temos professoras negras de sociologia
ou de antropologia na Universidade de São Paulo. Entrei nela em 1980, como
professor, e nunca mais houve um outro professor negro no Departamento.
Lembro-me do dia em que Florestan Fernandes recebeu o título de professor
emérito e eu estava na fila para cumprimentá-lo. Eu não sabia que ele me
conhecia. Por isso assustei-me quando ele me disse que estava muito contente
com a minha presença naquela solenidade. Pois fora informado de que ali
estava um negro que nem era brasileiro. Um antropólogo em dois mundos.

ESTUDOS AVANÇADOS – O sr. poderia descrever um pouco sua trajetória até


chegar no Brasil?

Kabengele Munanga  – Nasci no antigo Zaire, que hoje se chama República


Democrática do Congo, numa aldeia no centro do país. Estudei num colégio interno
de jesuítas e fiz graduação em Antropologia. Aliás, fui o primeiro antropólogo
formado naquela universidade e o único aluno que teve aulas com professores
franceses, belgas e americanos convidados, pois não havia ainda professores
africanos na Universidade quando eu entrei. Lá, nós acabávamos a graduação com
um tipo de dissertação que se chamava Mémoire. O sistema belga dava o direito
de se entrar diretamente no doutorado. Em razão disso, comecei o doutorado
em Louvain, na Bélgica, em 1969. Dois anos depois, voltei para pesquisas de
campo. Mas houve complicações políticas. Cortaram a bolsa e não pude fazer
mais nada. Por coincidência, encontrei no Congo, em 1973, o professor Fernando
Mourão, que ali estava realizando palestras sobre as contribuições africanas para
a cultura brasileira. Conversamos e ele me disse que a USP possuía um projeto
de cooperação com as universidades africanas e que nela eu poderia completar o
doutorado. Cheguei aqui em 1975 e me inscrevi no doutorado, sob a orientação do
professor João Batista Borges Pereira. Como eu estava bastante adiantado, em dois
anos defendi minha tese. Trabalhei sobre o processo de mudanças socioeconômicas
numa comunidade no sul do Congo. Voltei correndo à militância para colocar meus
conhecimentos à disposição de meu país. Mas quando cheguei lá, tive de fugir
para o Brasil. Quando houve a independência do meu país, o antigo Zaire (em
30 de junho de 1960), eu estava com 18 anos. A Faculdade foi criada pela Bélgica,
seis anos  antes da independência, em consequência de pressões internacionais.
187
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Fui alfabetizado na minha língua materna, mas no fim do primeiro grau começou
o ensino em francês. O resto do curso foi em francês. Isso porque, com mais de
duzentas línguas, não era possível escolher uma para ser a língua nacional. Todos
os alfabetizados falam francês.

ESTUDOS AVANÇADOS – Alguma dessas línguas africanas é hegemônica?

Kabengele Munanga  – O suahili, que é uma língua falada em muitos países


africanos, em parte do Zaire, Tanzânia, Burundi, Quênia e Uganda.

ESTUDOS AVANÇADOS – Suahili tem alguma coisa a ver com o árabe?

Kabengele Munanga – Cerca de vinte por cento do vocabulário, porque desde a


Antiguidade os árabes tiveram muita influência no continente, a partir do Oceano
Índico, além de terem sido responsáveis pelo tráfico oriental e transaariano (entre
os anos de 600-1600). Mas a estrutura da língua é totalmente bantu (africana).

FONTE: Disponível em: <http://umnegro.blogspot.com.br/2008/05/kabengele-munanga-difcil-


tarefa-de.html>. Acesso em: 5 set. 2016.

188
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico você viu:

• Joseph-Arthur de Gobineau (1816-1882), em seu Ensaio sobre a Desigualdade das


Raças Humanas, baseia sua doutrina em três pontos principais: a existência de
várias raças humanas, a compreensão das diferenças entre as raças como fatores
essenciais do processo histórico-social e a afirmação de uma raça superior.

• A raça é um conceito desenvolvido na Europa para auxiliar na interpretação de


novas relações sociais. É um modo de categorizar as pessoas e coisas, à medida
que cada vez mais europeus percebem a existência de um grande número de
pessoas ultramarinas que pareciam diferentes deles.

• Segundo Dagoberto Fonseca (2008), o escravo nasce, cresce e morre


irremediavelmente preso à sua natureza, não há transformação social possível
para ele, até seus descendentes serão tratados como escravos, filhos de uma
natureza intransponível.

• Conforme Taille e Santos (2012), o termo “escravo”, privado de liberdade, em


estado de servidão, difere do “escravizado”, que entra em cena como quem
“sofreu escravização” e, portanto, foi forçado a essa situação.

• A Constituição de 1988 garante o direito à educação para a população indígena,


assim como a manutenção dos direitos culturais, valorização da cultura e
demarcação das terras indígenas.

• A Lei de Diretrizes e Bases, de 1996, reconhece os saberes indígenas, referindo-se


à pluralidade cultural e garantindo aos povos indígenas o acesso a informações
e manutenção de sua cultura.

• O mito da democracia racial propõe que todas as raças e/ou etnias existentes
no Brasil estão em pé de igualdade sociorracial e que tiveram as mesmas
oportunidades desde o início da formação do Brasil.

• Southwell (2008, p. 121) relata que, na modernidade, “os sistemas de escolarização


foram estabelecidos em torno da ideia de que a sociedade era resultado da ação
educacional”.

• Para Bourdieu, capital cultural é um conjunto de códigos de linguagem, valores,


costumes, saberes e gostos próprios de uma cultura letrada e erudita que é
transmitida como herança cultural aos filhos dos indivíduos posicionados nos
grupos sociais mais favorecidos.

189
• A ideia de que o sexo é natural vai ganhando cada vez mais camadas que nos
fazem repensar e estudar mais a questão. De alguma maneira nascemos com
certo sexo, mas isso não significa que ao longo dos anos vamos nos identificar
com ele.

• A ideia de gênero remete à função de classificar em masculino ou feminino a


pessoa, e em cada sociedade os atributos que definem essa classificação podem
variar.

• Gênero é socialmente construído, não é natural, de modo que em cada cultura


em que se está certos atributos definem com qual gênero a pessoa se identifica.

• Sexualidade está vinculada à orientação do desejo sexual e afetivo a outra


pessoa. Quem gosta de pessoas do sexo oposto chamamos de heterossexual
(ou heteroafetivo), e chamamos quem gosta de pessoas do mesmo sexo de
homossexual (ou homoafetivo).

• Quem gosta de pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto, essas pessoas são
chamadas de bissexuais (ou biafetivas). E existem aqueles que são assexuais (não
se sentem atraídos por nenhum dos sexos) e os pansexuais (atração emocional
independente do gênero).

• Louro (2011) define como pedagogias culturais, ou pedagogias de gênero e


sexualidade, onde nossos comportamentos, desejos, gestos são condicionados
pelo determinado gênero e sexualidade.

• Os liceus femininos foram criados em 1880, com forte resistência, pois havia o
receio de que as meninas pudessem ser mais subversivas ao estudarem.

190
AUTOATIVIDADE

1- De acordo com as informações do IBGE, apresentadas a seguir, disserte sobre


as desigualdades de gênero, observadas em sua cidade.
SIS 2015: desigualdades de gênero e racial diminuem em uma década, mas
ainda são marcantes no Brasil

Em dez anos, a situação das mulheres na sociedade brasileira melhorou,


entretanto, as desigualdades em relação aos homens permanecem significativas.
Apesar de a jornada semanal dedicada aos afazeres domésticos pelas mulheres
ter reduzido de 22,3 horas para 21,2 horas semanais, elas acumulam 5,0 horas
semanais a mais na jornada total de trabalho em relação aos homens. Essa
situação ocorre porque a jornada no mercado de trabalho das mulheres se
manteve em 35,5 horas semanais, enquanto essa jornada para os homens passou
de 44,0 para 41,6 horas semanais, sendo que eles mantiveram 10 horas semanais
dedicadas aos afazeres domésticos (menos da metade da feminina). Ainda
assim, pôde-se observar um aumento no percentual de homens ocupados que
realizaram afazeres domésticos e de cuidados, passando de 46,1% em 2004 para
51,3% de 2014 4. Esse percentual para mulheres ocupadas em 2014, era de 90,7%,
quadro semelhante ao de 2004 (91,3%). Embora tenha havido uma redução
de 10,9% na desocupação feminina entre 2004 e 2014, as mulheres continuam
sendo o segundo grupo populacional com a maior taxa de desocupação (8,7%),
abaixo apenas dos jovens (16,6%). As mulheres jovens que encontram maior
dificuldade de inserção no mercado de trabalho, sendo que uma em cada cinco
jovens está desocupada (20,8%).

É o que mostra a Síntese de Indicadores Sociais (SIS): uma análise das


condições de vida da população brasileira 2015, que sistematiza um conjunto
de informações sobre a realidade social do país, analisando os temas aspectos
demográficos, grupos sociodemográficos (crianças e adolescentes, jovens,
idosos e famílias), educação, trabalho, distribuição de renda e domicílios.

Em relação ao rendimento, o estudo revela que houve diminuição da


desigualdade de gênero na década. Em 2004, as mulheres ocupadas recebiam,
em média, 70,0% do rendimento dos homens. Em 2014, essa relação passou
para 74,0%. A maior diferença foi evidenciada entre mulheres em trabalhos
informais, que recebiam em média 50% do rendimento daquelas em trabalhos
formais. Entre os homens na mesma condição, a relação era de quase 60,0%.

Mesmo com a população preta ou parda ultrapassando a metade do total de


residentes no Brasil desde 2008 (50,6%), as desigualdades raciais também foram
evidenciadas pela SIS. No que tange à educação, por exemplo, a proporção dos
estudantes de 18 a 24 anos pretos ou pardos que cursavam o ensino superior
em 2014 era de 45,5%, contra 16,7% em 2004. Entre os brancos, essa relação
passou de 47,2% para 71,4%. Ou seja, o percentual de pretos e pardos no ensino

191
superior em 2014 ainda era menor do que o de brancos no ensino superior
dez anos antes. Já entre os jovens de 15 a 29 anos que não trabalhavam nem
estudavam, 62,9% eram pretos ou pardos.
FONTE: Disponível em: <http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias.html?view=noticia&id=1
&idnoticia=3050&busca=1&t=sis-2015-desigualdades-genero-racial-diminuem-uma-decada-
ainda-sao-marcantes-brasil>. Acesso em: out. 2016.

A partir da perspectiva da construção das relações de gênero e sexualidade,


explique através de exemplos quem seriam os “outros”, “os diferentes” que
não estão representados dentro do perfil do que é considerado “normal” na
sociedade brasileira, conforme referências da professora Guacira Louro.

192
UNIDADE 3
TÓPICO 3

ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÃO


INCLUSIVA E REFLEXIVA

1 INTRODUÇÃO

De que forma os educadores e as educadoras conseguem pensar a


diferença? Neste tópico observaremos alguns autores que buscam refletir sobre
a possibilidade de um olhar mais inclusivo a partir da educação. A escola como
sabemos é a segunda instituição, depois da família, em que aprendemos a nos
socializar. E neste espaço vivemos a desconstrução e reconstrução de nossas
personalidade e formações. As crianças aprendem com o outro a se relacionar
e com isso, observam-se e colocam isso para o mundo. Através da prática do
“estranhamento” a antropologia auxilia na descolonização dos olhares dos alunos
e alunas.

FIGURA 40 - ENSINAR PARA A DIVERSIDADE

FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=


%C3%A9+mais+facil+ensinar+do+que+educar&source=lnms&tb
m=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjmy--AoILUAhXB7CYKHVWKBtUQ_
AUICygC&biw=1366&bih=662#imgrc=JAX6hNqZRdVAzM>. Acesso em: 14
maio 2017.

193
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Na relação entre antropologia e educação, a questão é: a aventura de


se colocar no lugar do outro, de ver como o outro vê, de compreender um
conhecimento que não é o nosso (GUSMÃO,1997). Os não antropólogos procuram
"um olhar antropológico" pelo qual se guiarão nos enigmas da pesquisa de campo.
Já a antropologia e os antropólogos se veem em grandes dificuldades, ao serem
convocados a abordar esta realidade que é a educação, seja por não conhecerem,
ou ainda, por deslegitimarem um pouco do passado da antropologia.

Antropologia e educação parecem constituir, hoje, um campo


de confrontação, em que a compartimentação do saber atribui
à antropologia a condição de ciência e à educação, a condição
de prática. Dentro dessa divergência primordial, os profissionais
de ambos os lados se acusam e se defendem com base em
pré-noções, práticas reducionistas e muito desconhecimento
(GUSMÃO, 1997, p. 5).

Galli (1993) nos apresenta, no final do seculo XIX, que a antropologia


tentava compreender uma presumível cultura da infância e da adolescência.
Transformaram-se em temas das pesquisas e debates os processos interculturais
infantis e os sistemas educativos informais, inseridos em uma concepção alargada
de educação. Antropólogos participavam de revisão curricular e continuam
a participar. Entre os anos 1920 e 1950, muitos antropólogos envolvidos nesses
temas travaram discussões com as abordagens de Freud e Piaget. Nos anos 30
e 40, os antropólogos tiveram uma atuação no programa de reforma curricular
promovida nos EUA. Estes antropólogos eram discípulos de Boas, Margareth Mead
e Ruth Benedict. Nomes conhecidos da antropologia, mas nunca pronunciados na
Faculdade de Educação.

Os discípulos de Boas alertavam para o fato de que o modelo pedagógico


ocidental poderia conduzir a uma pedagogia da violência. Atualmente, ao
visualizarmos as dificuldades das escolas, em particular, das escolas públicas de
periferia, emergem questões como o fato de a escola como valor não fazer eco
entre os estudantes, a indisciplina violenta, a evasão escolar e sua face mais cruel,
a exclusão social (GUSMÃO,1997).

Qual a natureza dos riscos de hoje, que Boas trabalhava? Para ele,
a realidade de seu tempo apontava um risco para os povos do futuro e para o
futuro da própria civilização. A razão era que a nossa sociedade e a escola que
lhe é própria não desenvolvia – e não desenvolve – mecanismos democráticos,
perante as diversidades social e cultural, como relata Gusmão (1997) em seu artigo
Antropologia e a educação: origens de um diálogo.

O grande desafio do professor de Ciências Sociais, segundo Ianni (2011):


é o de se defrontar com o reconhecimento de que o aluno já dispõe, o que não
deixa de ser uma vantagem e, ao mesmo tempo, uma limitação. O professor de
sociologia/antropologia deve trabalhar com o senso comum e, ao mesmo tempo,
desenvolver uma visão crítica desse senso comum.

194
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

Depara-se com uma visão que parece “científica”, oficial,


sacramentada, mas na verdade é uma visão equívoca dos fatos
sociais. E isto ocorre na Sociologia, História ou Geografia e
outras Ciências Sociais. O trabalho do professor vai implicar
sempre e necessariamente uma crítica, submetendo a ela todo
o conhecimento prévio de que o aluno dispõe; inclusive as
interpretações consideradas sacramentais (IANNI 2011, p. 3).

Deve-se trabalhar fatos, dados e relações, sem pôr em questão as fontes


primárias do aluno, pai, mãe, meios de comunicação e outras instituições. O
professor necessita trabalhar a partir do conteúdo da matéria e não colocar em
questão essas autoridades, pois isso seria uma luta desigual, e também porque
não é aí que está a dificuldade. A questão está em revelar e desenvolver dados,
informações ou noções que os estudantes trazem para o espaço escolar e acrescentar
novas informações e interpretações, desenvolvendo uma compreensão nova,
original, científica e viva de fatos, por exemplo: o índio, Tiradentes, o escravizado,
o sindicato, a escola, a Igreja etc.

O professor não deve levar ao aluno uma interpretação fechada, mas sim
os relatos, os dados pertinentes para o conhecimento de uma situação de forma
tão flexível quanto possível (IANNI, 2011). Uma das atividades do professor seria
auxiliar o estudante a pensar livremente, criticar aquilo que está sendo apresentado.
Em qualquer disciplina, Política, Economia, Sociologia e nas outras Ciências
Sociais. Os professores, uns conscientemente e outros não tão conscientemente,
possuem uma posição política, mesmo aqueles que se dizem neutros. Ser neutro
é uma posição política também. Por isso é que o espírito crítico necessita estar
presente também na crítica do educador.

Conforme Giroux (1997), é preciso desenvolver em todos os níveis da


escolarização uma pedagogia radical preocupada com a alfabetização crítica e
cidadania ativa, porém o que verificamos no contexto atual da educação mundial
é que está se “construindo uma pedagogia conservadora que enfatiza a técnica e
a passividade” (GIROUX, p. 32). A grande questão é que se debate sobre como
as escolas poderiam ter mais eficácia na satisfação das demandas industriais
e contribuição para a produtividade econômica. O autor de Professores como
intelectuais (1997) se coloca na problemática de pensar como podemos tornar a
escolarização significativa de forma a torná-la crítica, e como podemos torná-la
crítica de forma a torná-la emancipadora (p. 34). Uma educação emancipadora
pode ser parte de um projeto de educação inclusiva, onde se insere e respeita todos
os alunos que acessam a escola, em suas mais variadas perspectivas.

Atualmente, devido ao crescente movimento mundial de educação para


todos, o Brasil tem feito importantes avanços no campo das políticas educacionais
voltadas para a garantia do acesso e da permanência na escola. A Política Nacional
da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, elaborada pelo MEC
em 2008, define princípios e ações que devem ser implementados para garantir a

195
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

escolarização regular e o Atendimento Educacional Especializado para todos os


alunos.

O sociólogo Pierre Bourdieu (1999) analisa a educação escolarizada como


lugar de manutenção e de legitimação de privilégios. Para Bourdieu (1999), os
estudantes não são seres ideais que competem na escola em situação de igualdade;
são sujeitos socialmente constituídos com uma bagagem social e cultural, que têm
valor diferenciado, marcando significativamente a sua trajetória na instituição
escolar. A neutralidade da escola e do conhecimento escolar é questionada por
Bourdieu, mostrando como os gostos, as posturas, os valores da classe social
economicamente favorecida são dissimuladamente apresentados como cultura
universal. Neste sentido, o tratamento uniforme dado pela escola fortalece as
desigualdades e as injustiças sociais, uma vez que acaba favorecendo um tipo
específico de indivíduo cuja cultura familiar já é próxima desse fazer educativo:
“[...] todas as normas [...], tendem sempre a favorecer o sucesso (pelo menos no
interior da instituição) de um tipo modal de homem [...]” (BOURDIEU, 1999, p.
267).

A escola não consegue considerar as diferenças, ao trabalhar com um


modelo de educando, o tipo modal evidencia as desigualdades já existentes. A
escola brasileira tem sido muito mais um espaço de exclusão social do que de
inserção de oportunidades. O perfil sociocultural dos indivíduos que chegam
até a escola mudou consideravelmente a partir das décadas de 60 e 70 do século
XX, com a “democratização da escola pública”. Onde o alunado deixou de ser
exclusivamente das classes médias urbanas e passou a ser também de filhos de
pais iletrados, principalmente advindos das cidades interioranas. Surgindo o
fenômeno do fracasso escolar quando uma boa parte dos alunos passou a ser
sistematicamente “expulsa” das salas de aula. Ocorre que a escola exerce uma
violência simbólica: impondo um tipo de saber como único; legitimado como saber
único e irrefutável. Reforçando a discriminação a determinados grupos sociais.
Bernard Charlot (2009) expressa que a escola reproduz as desigualdades sociais à
medida que a população de baixa renda acessa as instituições de ensino. Charlot
(2009) coloca que é preciso conhecer a lógica da realidade do aluno e do professor/
escola para mudar a realidade da educação.

Falar para o professor de construtivismo é completamente fora da


realidade. Sabemos que, em muitas escolas, a dificuldade principal é
com o professor que não vai dar aula. Na Amazônia, por exemplo, há
todo o problema da chuva, alunos que andam duas horas até a escola
e não têm professor. Não estou criticando ninguém, sei que é difícil,
mais difícil aqui do que na França, mas essa é a realidade. Se quisermos
mudar a escola brasileira, teremos que trabalhar a realidade. Ela tem
que ser tomada como ponto de partida (CHARLOT, 2009, p. 150).

No âmbito de observar e construir uma pedagogia embasada na realidade


do aluno, voltamos nossa atenção para a discussão para a qualificação das crianças
e adolescentes com necessidades especiais. A escola inclusiva foi oficialmente
assumida por vários países, através da Declaração de Salamanca (1994). A

196
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

legislação brasileira se posiciona pelo atendimento aos alunos com necessidades


educacionais especiais preferencialmente em classes comuns da escola, em todos os
níveis, etapas e modalidades de educação e ensino (BRASIL, 1999). Em meados de
1960, a institucionalização das pessoas com deficiência começou a ser criticamente
examinada, analisando dados que revelavam sua ineficiência para favorecer a
preparação ou a recuperação delas para a vida em sociedade. Ocorrendo então
um confronto entre dois eixos conceituais em relação à educação da criança com
deficiência: a integração e a inclusão. Tanto a integração como a inclusão propõem
a inserção educacional da criança com deficiência, porém a inclusão o faz de forma
mais radical, completa e sistemática. Segundo Sampaio (2009), a concepção político-
pedagógica desloca a centralidade do processo para a escolarização de todos os
alunos nos mesmos espaços educativos. Para implementação do modelo inclusivo
na educação, faz-se necessária uma intensa reorganização escolar, que requer a
redução do número de alunos por turma, uma nova infraestrutura e a construção
de novas dinâmicas educativas. A complexidade envolvida neste processo reforça
a importância da formação dos professores, para propiciar as mudanças exigidas
pela educação inclusiva.

Alguns dos principais instrumentos nacionais que orientam a educação


para aplicação da prática pedagógica da educação inclusiva são:

- Constituição Federal, Título VIII, artigos 208 e 227.


- Lei nº 7.853/89 – Dispõe sobre o apoio às pessoas com deficiência, sua
integração social, assegurando o pleno exercício de seus direitos individuais e
sociais.
- Lei nº 10.098/00 – Estabelece normas gerais e critérios básicos para
promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com
mobilidade reduzida e dá outras providências.
- Lei nº 10.172/01 – Aprova o Plano Nacional de Educação e estabelece
os objetivos e metas para a educação de pessoas com necessidades educacionais
especiais.
- Decreto nº 5.296/04 – Regulamenta a Lei nº 10.048/00, que dá prioridade
de atendimento às pessoas com deficiência, e a Lei nº 10.098/00, que estabelece
normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas
portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências.
- Lei nº 9.394/96 – Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
- Decreto nº 3.289/99 – Regulamenta a Lei nº 7.853/89, que dispõe sobre a
Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida
as normas de proteção e dá outras providências.
- Portaria MEC nº 1.679/99 – Dispõe sobre os requisitos de acessibilidade
a pessoas portadoras de deficiência para instruir processos de autorização e de
reconhecimento de cursos e de credenciamento de instituições.
- Portaria nº 3.284/03 MEC/GM revoga a Portaria MEC nº 1.679/99, que
dispõe sobre os requisitos de acessibilidade a pessoas com deficiências para instruir
processos de autorização e de reconhecimento de cursos e de credenciamento de
instituições de Ensino Superior no país.

197
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

O professor deve partir da certeza de que as crianças sempre sabem


alguma coisa, de que todo educando pode aprender, mas no tempo e do jeito que
lhe são próprios, segundo Bordas e Zoboli (2009). Os autores ainda expressam
que é fundamental que o professor alimente uma elevada expectativa pelo aluno.
O sucesso da aprendizagem está em explorar talentos, atualizar possibilidades,
desenvolver predisposições naturais de cada aluno. As dificuldades, deficiências
e limitações são reconhecidas, mas não devem conduzir/restringir o processo de
ensino, como frequentemente acontece. O professor deve passar de um ensino
transmissivo para uma pedagogia ativa, dialógica, interativa, que se contrapõe a
toda e qualquer visão unidirecional, de transferência unitária, individualizada e
hierárquica do saber.

Um dos pontos cruciais do ensinar a turma toda são a consideração da


identidade sociocultural dos alunos e a valorização da capacidade de
entendimento que cada um deles tem do mundo e de si mesmos. Nesse
sentido, ensinar a turma toda reafirma a necessidade de se promover
situações de aprendizagem que formem um “tecido colorido” de
conhecimento, cujos fios expressam diferentes possibilidades de
interpretação e de entendimento de um grupo de pessoas que atua
cooperativamente. Sem estabelecer uma referência, sem buscar o
consenso, mas investindo nas diferenças e na riqueza de um ambiente
que confronta significados, desejos, experiências, o professor deve
garantir a liberdade e a diversidade das opiniões dos alunos. Nesse
sentido, ele deverá propiciar oportunidades para o aluno aprender
a partir do que sabe e chegar até onde é capaz de progredir. Afinal,
aprendemos quando resolvemos nossas dúvidas, superamos nossas
incertezas e satisfazemos nossa curiosidade (BORDAS; ZOBOLI, 2009,
p. 83).

As diferenças entre grupos, étnicos, religiosos, de gênero etc. não devem


se fundir em uma única identidade, mas ensejar um modo de interação entre eles,
que destaque as características de cada um harmonicamente. O professor deve
estar atento à singularidade das diversidades que compõem a turma, promovendo
o diálogo e interação entre elas, contrapondo-as, complementando-as. Para
melhorar e transformar a qualidade do ensino e para se conseguir trabalhar com
as diferenças nas salas de aula é preciso que enfrentemos os desafios da inclusão
escolar. Como a autora Bell Hooks relata em seu livro Ensinando a Transgredir – a
educação como prática da liberdade, o professor deve valorizar a presença de cada
aluno, também deve reconhecer constantemente que todos contribuem, e que estas
contribuições são recursos que serão utilizados de modo construtivo, promovendo
a capacidade de qualquer turma de criar uma comunidade aberta de aprendizado.
Para Bell Hooks, antes do processo de começar é preciso desconstruir um pouco a
noção tradicional de que o professor é o único responsável pela dinâmica da sala
de aula.

198
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

DICAS

O aluno Maruge lutou pela liberdade de seu país, foi preso e torturado. Em 2003,
após ouvir um comunicado do governo sobre um programa de "Educação para todos",
decidiu se matricular em uma escola primária. Na ocasião, Maruge tinha 84 anos. O filme "O
Aluno" é baseado na história real de Kimani Maruge Ng'ang'a, que, com o sonho de aprender
a ler e escrever, lutou para entrar e permanecer na escola acostumada a receber crianças
de aproximadamente seis anos. A história do idoso sendo alfabetizado ao lado de crianças
ganhou repercussão nacional e provocou a revolta de moradores da região.

FONTE: Disponível em: <http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/o-aluno-filme-conta-a-


historia-de-queniano-que-se-matriculou-em-e>. Acesso em: 15 maio 2017.

LEITURA COMPLEMENTAR

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: REFLETINDO SOBRE 


AS DIFERENTES PRESENÇAS NA ESCOLA

Nilma Lino Gomes


 
Professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação/
UFMG

1- O IMPACTO DO DIFERENTE 

No momento em que escrevo esse artigo, contabilizo quantas vezes


fui abordada desde a semana passada por amigos, familiares e curiosos sobre

199
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

uma matéria da revista Veja a respeito dos negros de classe média. Algumas
pessoas ficaram satisfeitas pela visibilidade dada à população negra, outras pela
construção de uma imagem positiva do negro e houve até aquelas que afirmaram
que a matéria veio confirmar o fato de que, no Brasil, não existe racismo. 
Diante de tão diferentes e veementes afirmações, comecei a refletir a respeito das
representações sobre o negro subjacentes às diversas interpretações partilhadas por
essas pessoas tão ciosas em relação às diferenças e, mais precisamente, à diferença
racial. Sem querer entrar no mérito de cada julgamento, achei muito interessante
as diferentes reações e interpretações das pessoas sobre a matéria.

Tal fato demonstra o quanto a questão racial na sociedade brasileira ainda


consegue incomodar um grande número de pessoas, levando-as a opinarem sobre
as diferenças. Demonstra também o quanto o tema das diferentes presenças na
sociedade brasileira e, dentre estas, a do segmento negro, ainda consegue mexer
com a nossa tão propalada identidade nacional. Será que isso prova que o Brasil
é um país em que as diferenças são respeitadas e aceitas? Será que o fato de
apregoarmos que a constituição do povo brasileiro é marcada pela miscigenação,
pela pluralidade e pela diversidade cultural faz do nosso país uma nação inclusiva?
Penso que se realmente fôssemos uma sociedade inclusiva, a mídia não precisaria
enfatizar como algo inédito a suposta ascensão de um determinado segmento
étnico-racial à classe média. Ao destacar a possibilidade de melhoria de vida de
uma pequena fração dentro da população negra, não podemos deixar de considerar
os fatores que relegaram esse grupo (e outros) a ocupar, historicamente, os lugares
mais baixos na escala social.

E ainda, não podemos esquecer de que uma grande massa da população


negra continua fazendo parte do injusto processo de exclusão social. 

Em suma, a discussão em torno da reportagem da revista Veja pode ser um


exemplo de como a sociedade brasileira se relaciona com as diferenças sociais e étnicas.
Estas representam um dos aspectos da diversidade cultural presente em nosso país. 
Porém, a diversidade cultural é muito mais complexa e multifacetada do que
pensamos. Significa muito mais do que a apologia ao aspecto pluriétnico e
pluricultural da nossa sociedade. Pela sua própria heterogeneidade, a diversidade
cultural exige de nós um posicionamento crítico e político e um olhar mais ampliado
que consiga abarcar os múltiplos recortes dentro de uma realidade culturalmente
diversa. 

O reconhecimento dos diversos recortes dentro da ampla temática da


diversidade cultural (negros, índios, mulheres, portadores de necessidades
especiais, homossexuais, entre outros) coloca-nos frente a frente com a luta desses
e outros grupos em prol do respeito à diferença. Coloca-nos, também, diante do
desafio de implementar políticas públicas em que a história e a diferença de cada
grupo social e cultural sejam respeitadas dentro das suas especificidades sem
perder o rumo do diálogo, da troca de experiências e da garantia dos direitos
sociais.

200
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

A luta pelo direito e pelo reconhecimento das diferenças


não pode se dar de forma separada e isolada e nem resultar em
práticas culturais, políticas e pedagógicas solitárias e excludentes. 
Ao considerarmos as especificidades que compõem a diversidade cultural e os
caminhos que precisam ser trilhados para a construção do diálogo e para a garantia
da cidadania a todos, independentemente das diferenças, não podemos esquecer
de uma instituição muito importante em nossa sociedade: a escola. 

A escola cumpre a sua função social e política não somente na escolha


da metodologia eficaz para a transmissão dos conhecimentos historicamente
acumulados ou no preparo das novas gerações para serem inseridas no mercado
de trabalho e/ou serem aprovadas no vestibular. Quando a escola conseguir
superar essa visão, ela compreenderá que a racionalidade científica é importante
para os processos formativos e informativos, porém, ela não modifica por si só o
imaginário e as representações coletivas negativas que se construíram sobre os
ditos "diferentes" em nossa sociedade.

Nesse sentido, a educação escolar, embora não possa resolver sozinha


todas essas questões, ocupa um lugar de destaque (MUNANGA, 1999).

Se concordamos e até mesmo nos orgulhamos do aspecto pluricultural


da sociedade brasileira, o nosso projeto de democracia não pode se eximir da
responsabilidade de criar, de fato, condições em que a diversidade do nosso povo
seja respeitada. A escola é um espaço sociocultural em que as diferentes presenças
se encontram. Mas será que essas diferenças são tratadas de maneira adequada?
Será que a garantia da educação escolar como um direito social possibilita a
inclusão de todos os tipos de diferenças dentro desse espaço? Por isso, a reflexão
sobre as diferentes presenças na escola e na sociedade brasileira deve fazer parte
da formação e da prática de todos/as os/as educadores/as.

2 - MAS O QUE É A DIVERSIDADE? 

Ao consultarmos o dicionário à procura da definição da palavra


DIVERSIDADE, vamos encontrar diferença, dessemelhança. Isso pode nos levar
a pensar que a diversidade diz respeito somente aos sinais que podem ser vistos a
olho nu. Porém, se ampliarmos a nossa visão sobre as diferenças e dermos a elas
um trato cultural e político, poderemos entendê-las de duas formas:

1) as diferenças podem ser empiricamente observáveis.


2) as diferenças também são construídas ao longo do processo histórico, nas
relações sociais e nas relações de poder. Muitas vezes, os grupos humanos
tornam o outro diferente para fazê-lo inimigo, para dominá-lo.

Por isso, falar sobre a diversidade cultural não diz respeito apenas ao
reconhecimento do outro. Significa pensar a relação entre o eu e o outro.

201
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Aí está o encantamento da discussão sobre a diversidade. Ao considerarmos


o outro, o diferente, não deixamos de focar a atenção sobre o nosso grupo, a
nossa história, o nosso povo. Ou seja, falamos o tempo inteiro em semelhanças e
diferenças.

Isso nos leva a pensar que ao considerarmos alguém ou alguma coisa


diferente, estamos sempre partindo de uma comparação. E não é qualquer
comparação. Geralmente, comparamos esse outro com algum tipo de padrão ou
de norma vigente no nosso grupo cultural ou que esteja próximo da nossa visão de
mundo.

Esse padrão pode ser de comportamento, de inteligência, de esperteza, de


beleza, de cultura, de linguagem, de classe social, de raça, de gênero, de idade...
Nesse sentido, a discussão a respeito da diversidade cultural não pode ficar restrita
à análise de um determinado comportamento ou de uma resposta individual. Ela
precisa incluir e abranger uma discussão política. Por quê? Por que ela diz respeito
às relações estabelecidas entre os grupos humanos e por isso mesmo não está fora
das relações de poder. Ela diz respeito aos padrões e aos valores que regulam essas
relações.

3 - DE ONDE VEM A DISCUSSÃO SOBRE A DIVERSIDADE? 

Essa é uma pergunta que tenho escutado de forma recorrente durante as


palestras e cursos que venho ministrando aos/às educadores/as. Algumas vezes,
os professores/as me dizem: – Pois é, Nilma... Agora que a diversidade cultural
chegou à escola, não sabemos o que vamos fazer com ela.

Essa afirmação já demonstra, por si só, o quanto o campo da educação ainda


precisa avançar e compreender melhor o que significa a diversidade cultural. É
verdade que a partir dos anos 90 a questão das diferenças vem ocupando um outro
lugar no discurso pedagógico. Cada vez mais, a escola é impelida a ressignificar
sua prática pedagógica de acordo com as profundas mudanças ocorridas nos
últimos anos.

A educação escolar está sendo chamada a superar uma visão psicologizante


estreita que ainda faz parte da cultura da escola e que acaba delineando perfis
idealizados de aluno/a e professor/a e a incorporar os avanços da própria psicologia
e de outras ciências. Temos entendido que o estabelecimento de padrões culturais,
cognitivos e sociais acaba contribuindo muito mais com a produção da exclusão do
que com a garantia de uma educação escolar democrática e de qualidade. 

Isso não quer dizer que é só a partir desse movimento no campo da educação
que a escola passou a conviver com a diversidade cultural. Esse é um dos perigos
de se pensar a diversidade cultural como um tema transversal (que hoje está na
moda). Muito mais do que um tema, a diversidade cultural é um componente do
humano.

202
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

Ela é constituinte da nossa formação humana. Somos sujeitos sociais,


históricos, culturais e, por isso mesmo, diferentes.
No caso da escola, a pergunta não deveria ser o que faremos com a
diversidade, mas, sim, o que temos feito com as diferentes presenças existentes
na escola e na sociedade. Qual é o trato pedagógico que a escola tem dado às
diferenças?

Um outro equívoco é pensar que a luta pelo reconhecimento da diferença é


algo próprio desse final de século. É fato que a globalização, as políticas neoliberais,
o ressurgimento dos nacionalismos recoloca a questão da diversidade. Contudo, é
importante ponderar que a luta pelo direito às diferenças sempre esteve presente
na história da humanidade e sempre esteve relacionada com a luta dos grupos e
movimentos que colocaram e continuam colocando em xeque um determinado
tipo de poder, um determinado padrão de homem, de política, de religião, de arte,
de cultura. Também sempre esteve próxima às diferentes respostas do poder em
relação às demandas dos ditos diferentes.

Respostas que, muitas vezes, resultaram em formas violentas e excludentes


de se tratar o outro: colonização, inquisição, cruzadas, escravidão, nazismo etc.

Assim, a diversidade está colocada para a educação como um dado social ao


longo de nossa história. Entendê-la é dialogar com outros tempos e com múltiplos
espaços em que nos humanizamos: a família, o trabalho, a escola, o lazer, os círculos
de amizade, a história de vida de cada um.

Refletir sobre a escola e a diversidade cultural significa reconhecer as


diferenças, respeitá-las, aceitá-las e colocá-las na pauta das nossas reivindicações,
no cerne do processo educativo. E o reconhecimento das diferenças não é algo
fácil e romântico. Nem sempre o diferente nos encanta. Muitas vezes ele nos
assusta, nos desafia, nos faz olhar para a nossa própria história, nos leva a passar
em revista as nossas ações, opções políticas e individuais e os nossos valores.
Reconhecer as diferenças implica romper com preconceitos, em superar as velhas
opiniões formadas sem reflexão, sem o menor contato com a realidade do outro.
Infelizmente, muitas vezes, encontramos entre os/as educadores/as opiniões do
tipo "não vi e não gostei". Será que essa postura cabe ao/à educador/a?

Essas afirmações não significam que estou defendendo uma total


desorganização e que não existe nada que nos assemelha.

Os homens e as mulheres, sem exceção, possuem aproximações e


distanciamentos. Aproximam-se no que se refere ao uso da linguagem, à adoção
de técnicas, à produção artística e criativa, à construção de crenças, à necessidade
de estabelecer uma organização social e política, à elaboração de regras e sanções.
Todavia, essas aproximações ou semelhanças se dão das maneiras mais diversas,
pois não são as mesmas para todo grupo social. A existência de semelhanças,
de valores universais e de pontos comuns que aproximam os diferentes grupos
humanos não pode conduzir a uma interpretação da experiência humana como

203
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

algo invariável. O acontecer humano se faz múltiplo, mutável, imprevisível,


fragmentado.
Essa é uma discussão sobre a diversidade
cultural que precisa estar presente na escola. 
Uma visão e uma prática pedagógica que enxergue o outro nas suas semelhanças
e diferenças não condiz com práticas discriminatórias e nem com a crença em um
padrão único de comportamento, de ritmo, de aprendizagem e de experiência. A
ideia de padronização dá margem ao entendimento das diferenças como desvio,
patologia, anormalidade, deficiência, defasagem, desigualdade. O trato desigual
das diferenças produz práticas intolerantes, arrogantes e autoritárias. E essa
postura está longe do tipo de educação que os profissionais de educação vêm
defendendo ao longo dos anos.

A escola possui a vantagem de ser uma das instituições sociais em que é


possível o encontro das diferentes presenças. Ela é também um espaço sociocultural
marcado por símbolos, rituais, crenças, culturas e valores diversos.

Essas possibilidades do espaço educativo escolar precisam ser vistas na sua


riqueza, no seu fascínio. Sendo assim, a questão da diversidade cultural na escola
deveria ser vista no que de mais fascinante ela proporciona às relações humanas.

Nós, profissionais da educação, somos profissionais da cultura e não de


um padrão único de aluno, de currículo, de conteúdo, de práticas pedagógicas,
de atividades escolares. Somos diferentes em raça/etnia, nacionalidade, sexo,
idade, gênero, crenças, classe. Tudo isso está presente na relação professor/
aluno/a e entre os próprios educadores/as. Nesse sentido, a reflexão sobre
a diversidade cultural nos conduz a um repensar do papel do professor/a. 
A originalidade de cada cultura reside na maneira particular como os grupos
sociais resolvem os seus problemas ao mesmo tempo em que se aproximam de
valores que são comuns a todos os homens e a todas as mulheres. Porém, o fato
de possuirmos valores comuns não nos torna idênticos, pois continuamos a ter
uma maneira própria de agrupar e excluir diferentes elementos culturais. Cada
construção cultural e social possui uma dinâmica própria, escolhas diferentes e
múltiplos caminhos a serem trilhados.

Descobrir os motivos dessas escolhas, entendê-los, analisá-los à luz de uma


reflexão colada aos processos históricos e sociais da humanidade deveria ser uma
das tarefas da escola e do educador/a.

O trato pedagógico da diversidade é algo complexo. Ele exige de nós o


reconhecimento da diferença e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de padrões de
respeito, de ética e a garantia dos direitos sociais. Avançar na construção de práticas
educativas que contemplem o uno e o múltiplo significa romper com a ideia de
homogeneidade e de uniformização que ainda impera no campo educacional.
Representa entender a educação para além do seu aspecto institucional e
compreendê-la dentro do processo de desenvolvimento humano. Isso nos coloca
diante dos diversos espaços sociais em que o educativo acontece e nos convida a

204
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

extrapolar os muros da escola e a ressignificar a prática educativa, a relação com o


conhecimento, o currículo e a comunidade escolar.
Coloca-nos também diante do desafio da mudança de valores, de lógicas
e de representações sobre o outro, principalmente, aqueles que fazem parte dos
grupos historicamente excluídos da sociedade. 

Educar para a diversidade é fazer das diferenças um trunfo, explorá-


las na sua riqueza, possibilitar a troca, proceder como grupo, entender que
o acontecer humano é feito de avanços e limites. E que a busca do novo, do
diverso que impulsiona a nossa vida deve nos orientar para a adoção de práticas
pedagógicas, sociais e políticas em que as diferenças sejam entendidas como parte
de nossa vivência e não como algo exótico e nem como desvio ou desvantagem. 
Entretanto, a consciência da diversidade cultural não é acompanhada somente de
uma visão positiva sobre as particularidades culturais.

Por mais que ela se torne um fato cada vez mais presente da nossa vida
cotidiana devido à maior proximidade com os modos de ser, de ver e de existir
distintos, a consciência da diversidade nos coloca diante de impasses políticos,
morais e teóricos de difícil equacionamento. Por isso, assumir a diversidade
cultural significa muito mais do que um elogio às diferenças. Representa não
somente fazer uma reflexão mais densa sobre as particularidades dos grupos
sociais, mas, também, implementar políticas públicas, alterar relações de poder,
redefinir escolhas e questionar a nossa visão de democracia. Será que estamos
dispostos a aceitar esse desafio?
FONTE: Disponível em: <http://www.mulheresnegras.org/nilma.html>. Acesso em: 15 maio 2017.

LEITURA COMPLEMENTAR

LEIS 10.639/03 E 11.645/08: (RE)CONSTRUINDO A HISTÓRIA


AFROBRASILEIRA E INDÍGENA

Jaciara Maria de Medeiros Pessôa 1

O Brasil, da Colônia à República, sempre viveu historicamente, em seu


aspecto legal, uma postura permissiva diante da discriminação e do racismo que
ainda hoje cerca a população afrodescendente e indígena. O reconhecimento
dessa discriminação fez com que o Ministério da Educação, comprometido com
a pauta de políticas afirmativas do governo federal, implementasse um conjunto
de medidas com o objetivo de corrigir injustiças e promover a inclusão social e a
cidadania para todos no sistema educacional brasileiro, através de uma nova visão
da formação da sociedade nacional. É notório que ao longo de sua história nosso
país estabeleceu um modelo social excludente, com reflexos na área da educação e
cultura, impedindo que milhões de brasileiros tivessem o pleno conhecimento da
sua história.

1 Graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade Católica de


Pernambuco. <pessoa_1967@hotmail.com>.
205
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

O governo federal, reconhecendo a pluralidade sociocultural de nosso país,


aprovou a Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003, bem como a Lei 11.645, de 20 de
janeiro de 2008, ambas complementando a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional. A promulgação dessas
duas leis gerou no meio acadêmico um engajamento na luta pela 'falação' contra
uma “Verdade” que nos foi contada de forma muito torta.

1. OBRIGATORIEDADE OU RECONHECIMENTO?

Diante do atual contexto da obrigatoriedade do ensino da história e cultura


afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino
Médio, públicos e privados, obrigatoriedade essa sancionada pelo Presidente da
República nas leis anteriormente citadas, seria relevante que as instituições de
Ensino Superior passassem a incluir na sua grade curricular, não mais como eletivas
(caso de algumas instituições de ensino no nosso país) e sim como disciplinas
obrigatórias, o estudo da história e cultura desses povos, haja vista a necessidade
de uniformizar o preparo dos professores para o enfrentamento em sala de aula de
tais temas. Vejamos agora as leis ora citadas à luz de sua interpretação.

Nos parágrafos 1º e 2º do Art 26-A da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003,


consta a inclusão, dentro do conteúdo programático a ser oferecido nas escolas, do
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, no âmbito de todo
o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e
História Brasileira.

A referida lei complementar institui, ainda, em seu Art. 79-B, o dia 20 de


novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra". Já no parágrafo 1º do Art
26-A da Lei nº 11.645, de 08 de março de 2008, encontramos a seguinte redação:

O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos


aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da
população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos
povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o
negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil.

O texto em destaque, além de estender a inclusão do ensino aos povos


indígenas, amplia a participação do negro e do índio, corrigindo a redação anterior
desse mesmo artigo. Agora a cultura desses dois grupos étnicos não só resgata
a contribuição na formação da sociedade nacional, mas, reconhecidamente,
caracteriza a formação da população brasileira, dando uma nova coloração à
identidade nacional. Esse amparo legal tornou-se, dentro da concepção de uma
forma de ensino inclusiva, um instrumento de combate ao preconceito racial e à
influência etnocentrista e eurocentrista.

206
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

Contudo, a realidade vivida pelos professores não contribui para essa luta,
já que parte deles não apresenta conhecimento necessário da história e cultura
afro-brasileiras e indígena, nem experiência suficiente com questões étnico-raciais
para ministrar aulas. Além disso, o ensino público, tanto quanto o particular, tem
se mostrado omisso ante o dever de respeitar a diversidade racial, ora em razão
de uma má interpretação de como ensinar esse tema em sala de aula, ora pela falta
de conteúdo disponível nos livros didáticos ou, ainda, pela falta de interesse dos
diretores de escola em autorizar atividades extraclasse.

1.1. UMA HISTORICIDADE NEGADA

O conhecimento da história negra e indígena, no caso dos livros didáticos,


tem se restringido a informações já um tanto conhecidas. Neles os negros eram
vistos à época colonial como indisciplinados, inferiores, excelentes para o trabalho
braçal e objetos da exploração sexual dos seus senhores. Além disso, os temas
explorados em sala de aula continuam os mesmos (tráfico negreiro, Zumbi dos
Palmares, leis da abolição e cultura negra e indígena como mero folclore). Os
índios, por sua vez, eram vistos como sujeitos a doenças, frágeis e preguiçosos,
muitas vezes infantis no trato com a sua cultura, pensamento esse perpetuado no
Brasil por séculos. Essa preguiça ou indolência foi citada em muitas obras no meio
acadêmico.

Como exemplo, sem desmerecer sua importância, o livro Capítulos de


História Colonial, de Capistrano de Abreu (um dos marcos na historiografia
brasileira). Nela, deve-se reconhecer que, não obstante a grandiosidade da obra,
a figura do índio era bastante influenciada pela visão eurocêntrica predominante
até meados do século XX.

Indolente o indígena era, sem dúvida, mas também era capaz de grandes
esforços, podia dar muito de si [...] A mesma ausência de cooperação,
a mesma incapacidade de ação incorporada e inteligente, limitada,
apenas pela divisão do trabalho e suas consequências, parece terem os
indígenas legado a seus sucessores. 2

Também no tocante à infantilidade indígena, Gilberto Freyre, em Casa


Grande e Senzala, descreve-os como “Bandos de crianças grandes; uma cultura
verde e incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos nem o desenvolvimento
das grandes semicivilizações americanas3”. Mais adiante, dentro da mesma obra,
somos contemplados com a seguinte observação:

Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade


brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas
2 ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Fundação Biblioteca
Nacional. <Disponível em: <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_
eletronicos/capitulos_de_historia_colonia.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2010.
3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 13ª edição. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1963. p. 150.

207
UNIDADE 3 | TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava.
Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava
índia.

Aqui temos uma excelente definição a respeito da exploração sexual por


parte dos senhores de engenho citada anteriormente. Não era a negra ou a índia
fruto dessa depravação e sim a sua condição de escrava que lhes impunha tal
situação. Ainda dentro do conhecimento da história negra e indígena, observamos
uma repetição temática muito grande por parte de autores do passado e de nossa
contemporaneidade sobre o período colonial, monárquico e republicano. Mas o
que dizer da raiz africana e indígena anterior à formação da sociedade brasileira,
tão plural em sua história e tão pouco divulgada em nosso país?

A cultura desses povos muitas vezes é confundida com o folclore. Quantas


vezes a figura do “indiozinho” e do Saci-pererê nos remete a lembranças da nossa
infância, quando tais personagens se faziam presentes nas máscaras e fantasias
que confeccionávamos na escola no Dia do Folclore, enquanto nossos educadores
de história nem sequer abordavam o assunto, preferindo entregar o tema à tutela
do professor de Educação Artística. Não nos iludamos de que isso são ecos do
passado. Ainda hoje, na grande maioria das escolas, findo esse dia, a cultura afro-
indígena cai no seu esquecimento secular.

Não se pode negar, entretanto, que atualmente começa a se firmar uma


abordagem de valorização dos ritmos musicais e da religiosidade de tais culturas.
Palavras como maracatu, caboclinhos, coco, candomblé, umbanda ou jurema
são sempre veiculados pela mídia, entretanto, o conhecimento da história desses
povos, seus líderes, modos de produção, comércio e guerras territoriais é renegado
a segundo plano, pois diante da grandiosidade da redação das leis já abordadas,
o que vemos na maioria dos livros didáticos é uma apresentação esporádica da
figura do negro e do índio já inserida dentro do Brasil colônia, esquecendo-se
sua ancestralidade, quando não citando-a em poucas linhas. Devemos valorizar
a lembrança de que, muito antes da chegada dos negros escravizados no Brasil,
existiam no continente africano grandes reinos, como o do Congo, e civilizações
clássicas como a egípcia.

Os antigos impérios de Gana, Mali e Songhai, todos na África ocidental,


assim como outros povos negros, desenvolveram culturas ricas e poderosas, com
reis e cortes africanas, sem esquecer os faraós egípcios, que deveriam ser inseridos
dentro da história da África tanto quanto o são no período da antiguidade clássica.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O atual Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio, em seu


livro de história, traz uma mensagem dirigida aos diretores, professores e alunos
do Ensino Médio da rede pública: “Todos os materiais devem ser utilizados até
2011 com as devidas reposições e complementações anuais.”6 Entretanto, nota-
se que o livro a ser usado, ressalta-se até 2011, aborda o tema em estudo a partir

208
TÓPICO 3 | ANTROPOLOGIA: POR UMA EDUCAÇÂO INCLUSIVA

do período colonial, com raras citações aos reinos africanos e, mesmo quando
presentes, interligadas ao tema da escravidão, pondo de lado o estudo da história
da África e dos africanos, como preconiza a Lei nº 11.645, de 10 março de 2008.

É preciso que nossos dirigentes e educadores entendam que tal lei nos faz
reconhecer que negros e índios não surgiram sob a face da Terra a partir de 22 de
abril de 1500 e que suas histórias antes de tal data se desenvolveram, à parte, na
história dos portugueses no Brasil. Também o ensino da religião e cultura afro-
indígenas poderia ser abordado de maneira um pouco mais contundente, sem se
limitar ao já tão explorado universo do sincretismo religioso e da musicalidade dos
ritmos. Diante do exposto, torna-se necessário:

1 – O preparo, por parte das entidades de Ensino Superior, de professores aptos


ao enfrentamento do tema em sala de aula, através de seminários, colóquios,
palestras com a participação das lideranças de movimentos negros e indígenas.
2 – A implementação, por parte das entidades de Ensino Superior, da obrigatoriedade
de disciplinas que abordem o tema em estudo.
3 – A produção de material didático de qualidade por parte do Ministério da
Educação e órgãos responsáveis, baseado na historiografia dos povos de
África, com enfoque na história do Continente Africano e na cultura dos povos
indígenas, baseado na interpretação da Lei nº 11.645, de 10 março de 2008.
4 – O ensino da religião e cultura afro-indígenas abordado de maneira contundente,
sem se limitar ao já tão explorado universo do sincretismo religioso e da riqueza
dos ritmos, adequando-se ao grau de maturidade do aluno.
5 – A promoção de ações pautadas no resgate da ancestralidade dos negros e índios
como participantes dessa imensa paleta de cores que é o Brasil. Por último,
deve-se admitir que a simples elaboração e promulgação de uma lei não cria
as condições necessárias ao seu cumprimento sem que haja o engajamento dos
setores que possibilitaram sua concretização.

FONTE: Disponível em: <http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wp-content/


uploads/2013/11/4Col-p.414.pdf>. Acesso em: 15 out. 2016.

209
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você estudou que:

• Entre os anos 1920 e 1950, muitos antropólogos envolvidos com temas voltados
para a educação travaram discussões com as abordagens de Freud e Piaget.

• Os discípulos de Boas alertavam para o fato de que o modelo pedagógico


ocidental poderia conduzir a uma pedagogia da violência.

• Segundo Ianni (2011), o desafio do professor é o de se defrontar com o


reconhecimento de que o aluno já dispõe, o que não deixa de ser uma vantagem
e, ao mesmo tempo, uma limitação.

• O professor não deve levar ao aluno uma interpretação fechada, mas sim os
relatos, os dados pertinentes para o conhecimento de uma situação de forma tão
flexível quanto possível.

• Ser neutro é uma posição política também. Por isso é que o espírito crítico
necessita estar presente também na crítica do educador.

210
AUTOATIVIDADE
1) Será que, na escola, estamos atentos à questão racial, a partir da primeira
leitura do texto da professora Nilma Lino Gomes? Será que incorporamos essa
realidade de maneira séria e responsável quando discutimos, nos processos de
formação de professores, sobre a importância da diversidade cultural?

2) Como é que se supera a visão do senso comum e se atinge uma visão, um


tanto quanto possível, científica do conhecimento no espaço escolar?

211
212
REFERÊNCIAS
ABRAMO, L. Introdução. In: OIT. Igualdade de gênero e raça no trabalho: avanços
e desafios. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2010.

AMID, Vered. Biographical dictionary of social and cultural anthropology.


London: Routledge, 2002.

BANTON, Michael. A ideia de raça. Trad. Antônio Marques Bessa, Livraria


Martins Fontes, São Paulo, 1977.

BARNARD, Alan. History and theory in anthropology. Cambridge University


Press: 2003.

BARNARD, Alan; SPENCER, Jonathan. Encyclopedia of cultural and social


anthropology. London: Routledge, 2002.

BARTH, Fredrik. One discipline, four ways: British, german, french and American
anthropology. Chicago: The University of Chicago Press, 2005.

BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Tradução: Alberto Candeias. Lisboa: Livros


do Brasil, 2000.

BOAS, Franz. The Limitation of Comparative Method of Anthropology. Science,


N. S., vol. 4. 1986

BOAS, Franz. Antropología cultural. (Org.). Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.

BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade de


Brasília, 1992.

BONTE, Pierre; IZARD, Michael. Dictionnaire de ethnologie/anthropologie.


Paris: PUF, 2010.

BORDAS, Mag; and ZOBOLI, F. Reflexões sobre a produção social do conhecimento


e as culturas inclusive: o papel da avaliação. In: DÍAZ, F., et al., (Orgs.). Educação
inclusiva, deficiência e contexto social: questões contemporâneas [on-line].
Salvador: EDUFBA, 2009, p. 79-87.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,


1999.

BRANDÃO, C. R. Participar-pesquisar. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.).


Repensando à pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 7-14.

213
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Algumas palavras sobre a cultura e a educação.
(Org.). ROCHA, Gilmar; TOSTA, Sandra Pereira. Antropologia & Educação.
(Coleção Temas & Educação, 10). Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CACCIAMALI, M. C.; HIRATA, G. I. A influência da raça e do gênero nas


oportunidades de obtenção de renda – uma análise da discriminação em mercados
de trabalho distintos: Bahia e São Paulo. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 35, n.
4, p. 767-95, 2005.

CALDERÓN, Alor A. Antropologia social. México: Oasis,1971. Apêndice.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir,


escrever. Revista de Antropologia (USP), vol. 39, n. 1, São Paulo, 1996.

CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro,
2000.

CASSAL, Milena Pereira. No areal das mulheres: um “benefício” em família”


– Percepções, vivências e práticas das famílias beneficiárias do Programa Bolsa
Família no quilombo do Areal. 2010.80F. Trabalho de conclusão em Ciências
Sociais. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

CASSAL, Milena Pereira. Brincando de sair pra rua!: entre arreganhos,


implicâncias e cuidados no “pátio” do quilombo, na “piscina” do laguinho.
2014. 140F. Trabalho de conclusão de Mestrado do Programa de pós-graduação
em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, 2014.

CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e


Terra,

CASTRO, Celso. (Org.) Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

CASTRO, Celso. (Org.). BOAS, Franz. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

CHARLOT, Bernard. A escola e o trabalho dos alunos. Sísifo – Revista de Ciências


da Educação, v. 10, p. 89-96, 2009.

CHARLOT, Bernard. Convergence internationale et diversification interne des


modèles scolaires. Revue Internationale d'Éducation Sèvres, v. 52, p. 129-137,
2009.

CIAVATTA, Maria. O conhecimento histórico e o problema teórico-metodológicos


das mediações. In: Civilização Brasileira, 2005.

CLIFFORD, James. Introducción: verdades parciales. In: CLIFFORD, James;


MARCUS, George E. (Eds.). Retoricas de la antropologia. Madrid, Ediciones
214
Júcar, 1991, p. 25-60.

CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: GONÇALVES,


José Reginaldo S. (Org.). A experiência etnográfica: antropologia e
literatura no século XX. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1998, p. 17-62.

COMIN, A. A. Desenvolvimento econômico e desigualdades no Brasil: 1960-2010.


In: ARRETCHE, M. (Org.). Trajetórias das desigualdades: como Brasil mudou nos
últimos 50 anos. São Paulo: Editora Unesp; CEM, 2015.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC,1999.

DAMATTA, R. O ofício de etnólogo ou como ter anthropological blues. Boletim do


Museu Nacional - Nova Série. Rio de Janeiro. n. 27, maio 1978.

DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo


Horizonte: UFMG, 1996. 

DEFLEM, Mathieu. Ritual, anti-structure, and religion: a discussion of Victor


Turner's Processual Symbolic Analysis. Journal for the Scientific Study of
Religion, 30(1):1-25, 1992.

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva. 1976.

DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus. Paris, Gallimard, 1966.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Lisboa, Editorial


Presença.1989

DURKHEIM, Émile. Les Formes Elementaires de la Vie Religieuse. Paris, PUF,


1979.

DURKHEIM, Émile.   Educação e sociologia. 10. ed. Trad. Lourenço Filho. São
Paulo, Melhoramentos. 1987, 1995.

FARAH, Marta Ferreira Santos. Incorporação da questão de gênero pelas políticas


públicas. Estudos Feministas – 47-74-2004.

FONSECA, Claudia. Classe e a recusa etnográfica. In: Etnografias da participação


(Org.). Claudia Fonseca, Jurema Brites). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.

FONSECA, D. J. Políticas públicas e ações afirmativas. São Paulo: Summus – Selo


Negro, 2009. v. 1. 141p.

FORQUIN, J. C. Sociologia da educação: dez anos de pesquisa. Petrópolis: Vozes,


1995.

215
FREEMAN, Derek. Margaret Mead and Samoa. The making and unmaking of an
anthropological myth. New York: Penguin Books: 1985.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 13. ed. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1963.

FRIGOTTO, Gaudêncio e CIAVATTA, Maria (Orgs.). Teoria e educação no


labirinto do capital. Petrópolis: Vozes, 2001.

GAILLARD, Gerald. The Routledge dictionary of anthropologistis. London and


New York: Routledge, 2004.

GARCIA, V. G. Questões de raça e gênero na desigualdade social brasileira


recente. 2005. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Econômico) – Instituto
de Economia, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2005.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo à pedagogia crítica


da aprendizagem. Porto Alegre: Editora Artmed, 1997.

GOBBI, Izabel. Infância e Diversidade Cultural: uma experiência de intercâmbio


entre crianças Guarani e crianças não-índias. In: 25ª Reunião Brasileira de
Antropologia, Goiânia, 2006.

GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2001.

GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto; o processo de construção


da identidade racial de professoras negras. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995. 

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações
raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação antirracista: caminhos abertos
pela lei Federal nº 10.639/03. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

GONÇALVES E SILVA. Petronilha Beatriz. Prática do racismo e formação dos


professores. In:
GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. Volume 1: 1926-1930. Tradução de Luiz
Sérgio

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São


Paulo: Editora 34, 1999.

216
GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Antropologia e educação: origens de um
diálogo. In: Cadernos Cedes, Antropologia e educação, Campinas, n. 43, 1997, p.
8-25. 

HARRIS, Marvin.  El desarollo de la teoria antropologica. Madrid: Siglo XXI, 1983.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São


Paulo: Martins Fontes, 2013.

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de S. Dicionário Houaiss da língua


portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

IANNI, Octávio. O Ensino das Ciências Sociais no 1º e 2º graus. Cad. CEDES [online].


2011, vol. 31, n. 85, pp. 327-339. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
32622011000300002>. Acesso em: 24 maio 2017. 

INGOLD, Tim. A evolução da sociedade. In: FABIAN, A. C. (Org.). Evolução:


sociedade, ciência e universo. Bauru: EDUSC. p. 107-131. 2003.

INGOLD, Tim. That's enough about ethnography! Hau: Journal of Ethnographic


Theory 4 (1): 383–395, 2014.

KROEBER, Alfred. O superorgânico. In: Donald Pierson (Org.). Estudos de


organização social, São Paulo, Livraria Martins Editora. 1950 "Anthropology".
Scientific American, vol. 83.1949.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000.

LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 11. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar,


1996.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 18. ed. Rio de


Janeiro: Zahar, 2005.

LENCLUD, Gérard. “La perspective fonctionnaliste”. In: DESCOLA, Philippe.


(Org.). Les idées de l’anthropologie. Paris, Armand Collier, 1988.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. Sociologia e


antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974. (p. 1-36).

LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. MAUSS, Marcel.


Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.

LIMA, Elvira Souza. Estudos acelerados – alternativa temporária ou política


educacional competente? In: Encontro nacional sobre estudos de aceleração no
ensino fundamental. Brasília.
217
Anais... Brasília, SE/FEDF, 1997, p. 79-90.

LOCKE, John- Ensaio acerca do entendimento humano. Coleção "Os Pensadores",


Pensadores São Paulo, Abril Cultural.1978.

LOURO, G. L. Educação e docência: diversidade, gênero e sexualidade. Formação


Docente, v. 4, p. 1-6, 2011.

LOURO, Guacira Lopes.  Gênero e sexualidade:  pedagogias contemporâneas. Pró-


posições [on-line]. 2008, vol. 19, n. 2, p.17-23.

MAKARENKO, Anton. Vida e obra: a pedagogia na revolução. São Paulo: Paz e


Terra, 2006.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo, Abril


Cultural, 1984.

MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura. Rio de Janeiro: Zahar,


1975.

MALlNOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. 2. ed. São Paulo: Abril


Cultural, 1978.

MARCONI, Maria de Andrade e PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia:


uma introdução. 7 Ed. 3 reimpressão. Editora Atlas. São Paulo. 2010.

MARTINS, J. B. Observação participante: uma abordagem metodológica para a


psicologia escolar. Seminário: Ci. Sociais/Humanas, Londrina, v. 17, n. 3, p. 266-
273, set. 1996.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre o dom: forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974.

MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva. 2006.

MENESES, Jonatas Silva. Antropologia I. São Cristóvão: Universidade Federal de


Sergipe, CESAD, 2009.

MENESES, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões‖. In:


Revista Symposium, v. 3, Número Especial. Recife: Unicamp, 1999.

MERCIER, Paul- História da antropologia. Rio de Janeiro, Eldorado.1974

MÉSZÁROS, Istvan. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoletti. Abordagem humanista. In: Ensino: as


abordagens do processo. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda.,1986.

218
MOREIRA, Antônio Flávio. O currículo como política cultural e a formação
docentes. In: TADEU DA SILVA, Tomaz, MOREIRA, Antônio Flávio (Orgs.).
Territórios contestados. Petrópolis: Vozes, 1995.

MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília:


Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental, 1999.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o pensamento antropológico. Edições


Tempo Brasileiro/CNPq, Rio de Janeiro, 2001, p. 1988.

ORTNER, Sherry B. Theory in Anthropology since the Sixties. Comparative


Studies in Society and History, Vol. 26, n. 1. (jan., 1984), p. 126-166.

PASSADOR, L. H. O campo da antropologia: constituição de uma ciência do homem.


In: GUERRIERO, S. (Org.). Antropos e psique – o outro e sua subjetividade. 1. ed.
São Paulo: Olho d'Água, 2001, v. 1, p. 29-49.

PATTERSON, Thomas. Anthropology in the Liberal Age. A social history of


anthropology in the United States. New York: Berg, 2001.

PEIRANO, Mariza. A antropologia como ciência social no Brasil. Etnográfica


(Lisboa), Lisboa, v. 4, p. 219-232, 2000.

PEIRANO, Mariza. Desterrados e exilados: antropologia no Brasil e na Índia.


In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de; RUBEN, Guilhermo Raul (Org.). Estilos de
antropologia. Campinas: Editora da Unicamp, 1995. p.13-30.

RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald. Estrutura e função na sociedade


primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973.

RAMOS, Arthur. Os grandes problemas da antropologia brasileira. 2015.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. 7. Reimp. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda.
2010.

ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo? Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994.

ROY WAGNER. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Salzano, F. M. Brazil, in History of physical anthropology. An Encyclopedia,


volume 1. Editado por F. Spencer, pp. 207-213. New York: Garland, 1997.

SANTOS, Adriano Rodrigues dos; TAILLE, Elizabeth Harkot-de-la. Sobre


escravos e escravizados: percursos discursivos da conquista da liberdade. In: III
Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade. Dilemas e desafios na
contemporaneidade. Campinas, SP. 2012.

SANTOS, J. A.; CAMISOLÃO, R. C.; LOPES, V. N. (Org.). Tramando falas e


219
olhares, compartilhando saberes: contribuições para uma educação antirracista
no cotidiano escolar. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura? São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção
Primeiros Passos; 110).

SANTOS, Rafael José dos. Antropologia para quem não vai ser antropólogo.
Porto Alegre: Tomo Editorial, 2005.

SANTOS, Sales Augusto dos. Ação afirmativa ou a utopia possível: o perfil dos
professores e dos pós-graduandos e a opinião destes sobre ações afirmativas
para os negros ingressarem nos cursos de graduação da UnB. Relatório Final de
Pesquisa. Brasília: ANPEd/ 2° Concurso Negro e Educação, mimeo, 2002

SHANKMAN, Paul. The thick and the thin: on the theoretical program of Clifford
Geertz. Current Anthropology, Vol. 25, n. 3 (jun., 1984), p. 261-280.

SILVA, Tomaz Tadeu. Currículo, conhecimento e democracia: as lições e as dúvidas


de duas décadas. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 73, p. 59-66, 1990.

SOARES, Rosemary Dore. Gramsci, o estado e a escola. Ijuí: Unijuí, 2000, 488p.

SOUTHWELL, M. Em torno da construção de hegemonia educativa: contribuições


do pensamento de Ernesto Laclau ao problema da transmissão da cultura. In:
MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. P. Pós-estruturalismo e teoria do discurso:
em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008, p.115-132.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

STOCKING Jr. George. Os pressupostos básicos da antropologia de Franz Boas.


STOCKING Jr. In: George. Franz Boas. A formação da antropologia americana.
Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2004.

TASSINARI, A. M. I.;  GOBBI, I.  Políticas Públicas e Educação para Indígenas e


sobre Indígenas. Educação (UFSM), v. 34, p. 95-112, 2009.

TURA, Maria de Lourdes Rangel. O olhar da sociologia sobre a educação: a


questão das desigualdades educacionais – atos de pesquisa em educação – PPGE/
ME (2014).

TURNER, Stephen e RISJORD, Mark. Philosophy of anthropology and sociology.


Amsterdam: Elsevier, 2007.

TURNER, Victor. A floresta dos símbolos. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005.

TYLOR, Edward. Primitive culture. Londres, John Mursay & Co. [1958, Nova
York, Harper Torchbooks.] 1871

220
VELHO, G. Observando o familiar. In: VELHO, G. Individualismo e cultura: notas
para uma antropologia da sociedade contemporânea. 2. ed., Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1987, p. 121-132.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac Naify, 2010.

221

Você também pode gostar