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Lutas de Classes e as Cidades: pequeno relato sobre Florianópolis.

André Ruas de Aguiar


Servidor Público na UFSC; Economista, Mestre em Urbanismo, Arquitetura e História da Cidade;
Doutorando em Geografia

O tema que o Instituto Cidades e Território (ICT) nos convida a debater, além de urgente e
instigante, é relevante para o futuro da Grande Florianópolis. Fazer o balanço crítico e histórico dos
avanços e recuos do processo participativo na formulação de políticas públicas, centradas no tema
mais geral Direito à Cidade, é um desafio.
Além de caracterizar os múltiplos atores envolvidos, procura-se debater os movimentos e as
tendências dessa luta. Fazer a crítica, para além do óbvio, é tão importante quanto fazer a
autocrítica com a perspicácia e a sabedoria necessárias, pois o debate diz respeito ao desenrolar da
luta de classes em nosso território.
Ao apresentar o período entre a constituinte de 1988 e os dias de hoje como uma referência
de análise, o ICT faz outra provocação. Afinal, são dois extremos da luta política rescente do
Brasil: a redemocratização e a ameaça à democracia.
Mas, não temos como debater esse período da história do Brasil sem considerarmos outros
momentos tão importantes que o precederam desde a abolição da escravatura em 1888: a
Proclamação da República, em 1889; a Greve Geral de 1917; a Revolução de 1930; a Intentona
Comunista, em 1935; o Estado Novo, em 1937; a Campanha pela Legalidade, em 1961; o Golpe
Militar de 1964; as greves de 1978, no ABC Paulista; as campanha pelas eleições diretas, em 1984
e o fim da ditadura militar, em 1985. Da mesma forma, não se pode descontextualizar fatos
ocorridos em outra parte do mundo e que formaram a história do século XX.
Essas referências históricas servem para trazer à baila o tema da Luta de Classes, mas antes
de entrarmos propriamente nesse assunto é interessante fazer um rápido retrospecto anterior a 1888.
O Brasil foi o último país do mundo a abolir formalmente a escravidão e o legado desse
atraso é latente nas entranhas que moldaram a nossa formação social até os dias de hoje. A abolição
foi consequência de um fenômeno social que estava em desenvolvimento e que gradativamente
abarcou todo o mundo: o modo de produção capitalista que acirrou as contradições no Brasil e no
resto do mundo.
Um novo modo de produção, uma nova divisão social trabalho, com novas relações sociais
de produção, com contradições intrínsecas a sua constituição, que na mesma medida em que trouxe
ganhos de produtividade e inovações, intensificou os conflitos.
Segundo Marx (1983, p. 282), “[...] a divisão do trabalho no todo de uma sociedade, seja ou
não mediada pelo intercâmbio de mercadorias, existe nas mais diferentes formações sócio-
históricas [...]”. Compreendendo essas palavras como a divisão do trabalho e a divisão social do
trabalho, presente em todas as formações sociais e em todos os modos de produção, é no
capitalismo que esses fenômenos se desenvolvem a um grau elevado de exploração entre classes,
com a dominância do Capital.
Santos (2012) lembra de Marx ao argumentar que na mesma proporção de desenvolvimento
da divisão do trabalho, há a divisão territorial do trabalho. Quando ocorre uma crescente
especialização da força de trabalho, esta torna-se cada vez mais interdependente.
Consequentemente, há uma preocupação das forças proprietárias que essa interdependência gere
uma força política que coloque em risco suas posições. Para evitar tal perigo, aloca-se a força de
trabalho perto das indústrias, relativamente assistida de serviços públicos, contudo, distantes dos
centros das cidades, dificultando sua organização política.
O autor também lembra que as divisões social e territorial do trabalho dependem das decisões
políticas e do peso que os atores políticos dão à disputa. Ele enfatiza que é o presente e o futuro
das cidades que estão em jogo e que a dinâmica de reorganização do espaço urbano está
diretamente ligada a essa contenda.

Como a divisão social do trabalho e a divisão territorial do trabalho dependem, em


proporções semelhantes do papel que, na economia, cabe aos atores do jogo
político, segundo diferentes níveis, e da forma como, respondendo a essas
determinações o espaço urbano é, a cada momento, reorganizado". (SANTOS,
2012, p.121).

A reflexão nos remete ao início do texto onde é elencado alguns momentos da história do
Brasil após abolição da escravatura. Aquelas referências foram apresentadas para que se percebesse
que a história do Brasil está longe de ser pacífica e linear, como querem alguns, e que resultaram
em fatos históricos de grande importância na construção do país.
Houve e ainda há uma série de contendas, envolvendo amplos setores da sociedade. Algumas
mais abertas e com polos mais demarcados; outras menos explícitas, mas nem por isso menos
intensas.
Há conflitos entre correntes e divisões internas nos segmentos da mesma classe que são
aproveitados por setores e segmentos opostos. Mas, há também concessões, consensos e acordos.
Para dar mais tempero a esse caldo, há a importante presença do capital internacional em boa parte
do enredo. Ou seja, há a intensa lutas de classes no Brasil.
Por haver compreensão desses meandros que, em condições aparentemente desfavoráveis,
se concretizou importantes conquistas para maioria da população ao longo da história.
Especialmente nesse período de desenvolvimento do capitalismo, mesmo que tardio, no Brasil.
Algumas conquistas ainda vigoram, quase que incólumes, ao longo de várias décadas, apesar
de sofrer intenso ataque. É o caso da laicidade do Estado brasileiro, conquistada na constituinte de
1946, através de proposta do deputado comunista Jorge Amado. Outras, foram modificadas ao
longo das décadas, apesar de serem consideradas fundamentais para a melhor reprodução da força
de trabalho. Contudo, a disputa e a situação política nacional e internacional transitaram de forma
tão célere que, o que se tem hoje está longe de prover a segurança necessária, como é caso da
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Por fim, há aquelas que, no nascedouro, tiveram algumas de suas principais características
modificadas durante o processo de debate na Câmara Federal, situação normal dentro de uma
democracia. No entanto, mesmo aprovadas pelos deputados e incorporadas à Constituição Federal,
sua implementação necessitou de novos arranjos políticos, com o executivo federal, para serem
efetivadas nacionalmente. Mesmo demonstrando sua eficácia são sabotadas, como é o caso do SUS
e da Política Urbana.
Em um cenário como esse, duas questões merecem ser abordadas: as lutas de classes e a
correlação de forças. E por que agora? Primeiramente, pela provocação do ICT, apresentada
sucintamente no início do texto. Segundo, porque ambas as categorias têm nas cidades seu
principal palco de desenvolvimento. Não em qualquer cidade, mas naquelas que compõem as
regiões metropolitanas.
Em relação ao tema Lutas de Classes, é importante frisar a incompatibilidade desse com uma
visão binária e limitada que entende que somente há luta de classe quando se trata das contradições
entre patrão e empregado. Há Lutas de Classes, no plural, como escrito no Manifesto Comunista.
Nas palavras de Losurdo (2015, p. 29), “o plural não quer denotar repetição do idêntico, o
contínuo recorre à mesma forma da mesma luta de classes; não, o plural remete à multiplicidade
das configurações que a luta de classes pode assumir”.
Enfatizo essa percepção como forma de chamar a atenção para a essência da categoria que é a
busca por emancipação política, econômica e social de uma gam ampla de sujeitos e reivindicações
que diversifica o conteúdo da luta de classes.
Outro aspecto de importante compreensão é que as fissuras e contradições presentes no
âmbito das classes opressoras também fazem parte da luta de classes. Enxergá-los como
homogêneos tem como consequência a incapacidade de vislumbrar possibilidades de rupturas. A
questão é perceber que o processo político e as lutas emancipatórias são repletos de contradições e
não as detectar tende a desacelerar a aproximação do objetivo desejado.

Os sujeitos são diferentes, e igualmente diferentes são os conteúdos das lutas de


classes; todavia podemos identificar o denominador mínimo comum: no plano
econômico-político, ele é constituído pelo objetivo da modificação da divisão do
trabalho (no plano internacional, no âmbito das fábricas, ou no da família); no
plano político-moral, pelo objetivo da superação dos processos de desumanização
e retificação que caracterizam a sociedade capitalista (LOSURDO, 2015; p. 29).

O tema (co)relação de forças muitas vezes é menosprezado. Na maioria das organizações


políticas, sempre paira a certeza de que todos os integrantes, ou pelo menos os mais experientes,
sabem fazer a análise que vai permitir que os objetivos sejam alcançados. Pode até ser verdade,
mas é sempre interessante debater esse tema, pois há método para isso.
Aqui vou explorar um pouco de Gramsci, mas como ele mesmo se remete a Marx, não tem
como não lembrar de suas célebres palavras ao longo dos próximos parágrafos. Gramsci (2016, p.
36), ao debater este tema, inicia afirmando que o problema das relações de forças “é o problema
das relações entre estrutura e superestrutura” (GRAMSCI, 2016; p.36)
Marx (1982, p. 25) compreende que é no processo de produção material da vida da pessoa
que são formadas as relações de produção, em que “a totalidade dessas relações de produção forma
a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica
e política, e a qual correspondem formas sociais determinadas de consciência”.
Essa passagem é fundamental para se compreender a dinâmica de leitura da correlação de
forças e possui relação direta com o objeto de análise do ICT, pois compreender o porquê das
perdas das conquistas depois de 2016. Requer, contudo, que se faça antes de um debate sobre as
forças e como elas estão posicionadas no tabuleiro vislumbrando as eleições, uma análise
pormenorizada da realidade concreta, identificando e distinguindo os fenômenos orgânicos dos
fenômenos conjunturais. Analisando, dialeticamente, como esses fenômenos refletem e como a
superestrutura político-jurídica intercambiam-se. Enfim, uma leitura aguda sobre a realidade
política, econômica, social e militar do resto do mundo é fundamental para que se tenha uma
melhor percepção da realidade nacional e suas tendências. (GRAMSCI, 2016).

Regiões Metropolitanas (RM): palco privilegiado das lutas de classes.

Se formos pensar inicialmente do ponto de vista do quantitativo populacional, as 25


principais RMs abrigam 44% da população brasileira, segundo dados do IBGE. É também onde
estão instaladas a maioria das empresas e, em decorrência das intensidades das contradições
intrínsecas a relação entre o capital e o trabalho, estão explícitas as diversas formas das lutas de
classes.

A reflexão sobre o espaço urbano, na atualidade, evidencia as transformações no


processo produtivo, que ocorrem em escala mundial, no qual o espaço ganha
importância como ativo econômico. Nesse contexto de transformações, o espaço
da metrópole é, sobretudo, um espaço de conflitos, de disputas entre diferentes
sujeitos sociais (PADUA, 2017, p. 81).

Compreender o espaço como ativo econômico traz à baila a principal característica desse
espaço: a segregação. Poucos são os que podem usufrui-lo. Ele serve para a troca e não para o
uso; é uma mercadoria fetichizada. Para que o espaço cumpra esse papel, é fundamental a aliança
entre os principais grupos empresariais locais com o grande capital e o Estado que serve de
mediador dos conflitos e facilitador para que esse ativo remunere adequadamente aqueles que
investiram.
Outra questão essencial em qualquer debate sobre o espaço no Brasil, seja o urbano ou o
rural, é a terra. Inclusive um dos alvos privilegiados da atual investida reacionária às conquistas
da Constituição Federal de 1988 é a função social da propriedade. O tema foi regulamentado
somente em 2001, quando houve a conquista do Estatuto da Cidade.
Contudo, até hoje, é base de conflitos, dúvidas, seja em terras públicas ou em processo de
desapropriação, tanto na cidade quanto no campo. Há grande dificuldade em fazer valer esse
instrumento legal, ainda mais quando o conluio do bloco hegemônico se posiciona
contrariamente.
Maricato (2011) faz uma avaliação de sua experiência no finado Ministério das Cidades e,
em certas passagens, compara-a com a experiência na prefeitura de São Paulo, na década de 1980,
quando Erundina era prefeita. Contudo, o que mais chama a atenção na narrativa presente no livro
é a intensidade, profundidade e capilaridade das Lutas de Classes, tanto nos aspectos orgânicos,
de longa duração, quantos nas dinâmicas conjunturais que demandaram políticas, para além das
técnicas.
A autora encerra o livro chamando a atenção para a questão da terra, como sendo o nó a ser
desatado. O capítulo aborda que o tema está presente no campo e na cidade pela ótica da
economia, da demografia, do direito, da geografia e da antropologia. Fundamentalmente, pela
política, pois é um foco gerador de conflitos.: “no Brasil [...] a questão da terra continua a se
situar no centro do conflito social, mas de forma renovada. Ela alimenta a profunda desigualdade
[...] e a tradicional relação entre propriedade, poder político e poder econômico” (MARICATO,
2011, p. 186).
Florianópolis e região não fogem à regra das disputas pela terra. A capital é o polo entorno
do qual todas as demais cidades da RM orbitam, o que acontece aqui repercute pelas demais
cidades. Essa situação não é recente, ao contrário. Apesar de hoje existir uma maior autonomia, o
grau de interdependência entre as cidades é importante e sua manutenção interessa a camada de
mais alta renda.
Essa parcela da alta renda tem interesse no controle da dinâmica de crescimento de
Florianópolis e das demais cidades da RM, vislumbrando à exploração da terra. Por meio do
capital imobiliário gerencia o espaço urbano, intervindo diretamente, ou por meio de emissários,
no ordenamento jurídico e na alocação de recursos públicos.
O histórico dos Planos Diretores (PD) de Florianópolis tem duas demarcações
fundamentais: a economia e a demografia. Ambas determinadas pela característica morfológica
da cidade e pelos objetivos do bloco hegemônico. Contudo, a dinâmica de implementação desses
objetivos é determinada pela correlação de forças.
A percepção do viés da correlação de forças, se positivo ou negativos do ponto de vista
progressista, depende da observância da dinâmica estrutural e de reflexos na superestrutura
política e jurídica, local e nacional. Observar o processo de debate entorno do PD, desde 2006,
pelo menos, até a situação atual e a movimentação dos diversos atores que compõem os espaços
políticos nessa contenda, elucida as razões pelas quais hoje o capital imobiliário tem mais
facilidades de implantar seu projeto na cidade.

Floripa 2030

Vamos pegar apenas como referência umas das propostas mais bem elaborada pela camada
de mais alta renda para Florianópolis: o Floripa 2030. A chamada agenda de desenvolvimento
sustentável para Florianópolis e região teve seu processo de formulação iniciado em 2007 e
concluído em 2008. Todo o processo envolveu inúmeros atores dos mais diversos segmentos da
cidade e foi conduzido por uma consultoria argentina, a Fundação Centros e Estudos e
Planificação do Ambiente (CEPA), contratada pela ONG Floripa Amanhã com apoios
governamentais.
O Floripa 2030 é pautado por duas premissas: a primeira origina-se em estudo elaborado em
2007, por Paulo Campanário, técnico do Instituto do Patrimônio Urbano de Florianópolis (IPUF),
que apontava um crescimento populacional para a cidade, até o ano de 2050, superior à sua
capacidade de carga, sendo 876 mil residentes e 455 mil flutuantes. A partir desses números, a
equipe do Floripa 2030 estimou para o ano de 2030 uma população na ordem de 1.303.118
milhões.
Esses números são próximos aos encontrados no estudo elaborado por Jorge Squera que
apontou um quantum de 1.310.030 milhões de habitantes no mesmo ano de referência da Agenda,
caso fosse mantido o PD vigente no ano de 2006. Ou seja, há consistência, pode ser considerado
uma ameaça, portanto, era preciso dar respostas apropriadas.
A segunda premissa foi a necessidade de adequar a matriz de desenvolvimento econômico
da cidade à nova dinâmica mundial, observando sua crescente financeirização. Para tal, era
necessário pensar integradamente o turismo, a tecnologia e a cultura e alçá-los a outro patamar,
repaginando-os, mas sem ferir os interesses do bloco hegemônico.
Essas medidas para que dessem certo precisariam ser plasmadas no espaço urbano através
do ordenamento jurídico pertinente. Pensando nisso, foi apresentada no Floripa 2030 a proposta
da cidade multicultural e polinuclear, em uma perspectiva de otimizar o uso do solo, valorizá-lo e,
simultaneamente, segregá-lo.
Olhando rapidamente, o Floripa 2030 é uma proposta interessante. Procurou responder a
necessidade de atualização da Lei 2193/85, que versava sobre os Balneários e a Lei Complementar
01/97, que versava sobre o distrito sede. Versa até sobre a questão ambiental, ao abordar o
subprograma da UNESCO, Reserva da Biosfera Urbana. Contudo, a questão aqui é compreender o
que se encontra por trás das aparências, os elementos subjacentes ao discurso: “uma cidade com
qualidade de vida, aprazível e eficiente, pra poucos” (AGUIAR, 2015, p. 68).
O “para poucos” reverbera na população que não conseguirá morar na cidade por causa do
preço da terra, sendo direcionada para a região conurbada, em um primeiro momento e, mais
adiante, para toda a RM. Essa situação expressa-se no cenário síntese da Agenda justamente por
compor a coluna vertebral da proposta.

Crescimento moderado, direcionando o restante do aumento populacional


esperado para o continente com base em medidas de promoção, estímulo e
acompanhado por investimento em infraestrutura e habitação social;
Fortalecimento do esquema polinuclear como a melhor opção para proporcionar
este crescimento, descongestionando o distrito central de uma carga excessiva e
evitando a dispersão suburbana; Turismo com valor agregado, crescendo antes em
qualidade que em quantidade; Melhoramento dos transportes públicos de massa
(FLORIPA AMANHÃ, 2008, p. 28).

Se o tema dessa conversa fosse apenas as respostas à dinâmica populacional, por meio do
ordenamento urbano sugerido através da Agenda, poderia aqui ser apresentada uma série de
contrapontos. Contudo, como o lócus são as lutas de classes, nos ateremos aos aspectos que
desnudam os momentos de contradições, tensionamentos e acordos que faz do Floripa 2030 um
tema de relevância ainda hoje, passados 14 anos de sua elaboração, mesmo com atualizações.
Vamos relembrar uma história cara à cidade: o ocorrido em 2010, no debate do PD da
capital. Salvo engano, três anos antes, houve um rico debate na sociedade sobre o que entendia-se
necessário para a cidade e que deveria estar na Lei. Os debates foram provocados pela Prefeitura e
pelo Conselho Gestor do Plano Diretor. O resultado desses encontros deveria ser sistematizado,
retornado à sociedade para aprovação e, daí, ser extraído uma minuta de lei a ser apresentada e
aprovada na Câmara Municipal.
Todavia, em 2009, a Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) contratou a CEPA para
analisar, sistematizar o resultado dos debates comunitários ocorridos no período anterior e produzir
uma proposta de anteprojeto de lei do PD para que fosse apresentado à sociedade em 2010. No
mesmo movimento, desmontou a parca estrutura que dava suporte ao Conselho Gestor do Plano
Diretor.
Em março de 2010, ao iniciar a apresentação da nova proposta, usando como justificativa a
incompetência técnica da comunidade que participou dos debates nos quatro anos anteriores, o
então presidente do IPUF apresentou a proposta elaborada pela CEPA. Óbvio que a audiência não
terminou, devido aos protestos das lideranças comunitárias e representantes de entidades e
instituições. E, não por coincidência, o Anteprojeto, grosso modo, nada mais era do que uma
adaptação do Floripa 2030.
Com o passar do tempo e de inúmeras controvérsias, chegou ao ponto de o Ministério
Público Federal interferir na questão. A proposta de PD que estava em debate, em 2013, foi
substituída por outra, como consequência da mudança de comando à frente da PMF, uma outra
facção do bloco hegemônico. A princípio, o discurso que permitiu tal alternância no Paço
Municipal se apresentou como sendo contrário ao que se assistiu até dezembro de 2012.
Eis que, ao longo de 2013, como prometido em campanha, o novo mandatário da cidade
retomou o debate do PD. Recompôs a equipe do IPUF com técnicos reconhecidos pelo histórico de
trabalhos sobre Florianópolis e por suas trajetórias acadêmicas, engavetando a CEPA.
Realizou-se, em abril de 2013, um evento na UFSC, chamando todos os interessados para
conhecerem os “novos” paradigmas que guiaram o novo processo de construção do PD. Em maio,
o núcleo gestor do plano, que conduziu os debates desde 2006, retomou as atividades após
suspensão de suas prerrogativas em 2010. Mesmo que de forma atabalhoada, em julho, foi
realizada a conferência das cidades.
Encerrado este ciclo de aparente abertura e oxigenação, aquilo que timidamente ressurgia
foi abortado. Em agosto, o núcleo gestor do PD novamente foi desmontado e, em 18 de outubro de
2013, através da mensagem 073/2013, a PMF apresentou à Câmara Municipal de Vereadores o
Projeto de Lei Complementar que “Institui o Plano Diretor de Urbanismo de Florianópolis, que
dispõe sobre a política de desenvolvimento urbano, o plano de uso e ocupação, os instrumentos
urbanísticos e o sistema de gestão”. O projeto foi encaminhado para processamento no dia 21 de
outubro de 2013, gerando o Projeto de Lei complementar 1.292/2013 no dia 23 de outubro do
mesmo ano.
Depois de muita pressão, uma audiência pública para debater esse novo momento foi
convocada. Em 06 de novembro de 2013, na ALESC, com o auditório Antonieta de Barros lotado,
se pode viver a dimensão da controvérsia, visualizar os rostos de todos os interesses envolvidos e
constatar que, mais uma vez, a PMF perdera a oportunidade de dialogar com toda a cidade.
Por mais que alguns tenham comparecido e pedido a fala para externarem seus interesses
individuais ou dos grupos a que pertenciam, uníssona foi a crítica em relação as opções feitas pela
PMF: a falta de transparência, a carência de elementos técnicos e o tempo disponibilizado para que
se pudesse realmente elaborar um plano que representasse toda a cidade. Falas que foram do
SINDUSCON à UFECO, demonstrando os interesses e as nuances da luta de classes, num jogo
desigual.
Dando sequência a celeridade das coisas, as mais de 600 emendas apresentadas pelos
vereadores foram à votação no dia 27 de novembro de 2013, data em que foi realizada a primeira
votação do Plano em si, deixando para 30 dias depois, em 27 de dezembro de 2013, a segunda
votação que ratificou o feito anterior. Por fim, a publicação do novo Plano Diretor no Diário oficial
aconteceu no dia 17 de janeiro de 2014.
Os eventos que se sucederam, ao longo do processo de aprovação do Plano Diretor em
2013, contribuíram para perceber-se as seguintes questões:
1) Mesmo com o afastamento dos estruturadores da equipe que formulou diretamente o
Floripa 2030, que estava à frente da gestão da PMF até outubro de 2012 e sua substituição
por outra, que foi eleita com base em um discurso de contestação das práticas perpetradas
até então, a essência da proposta de 2010, que tinha o Floripa 2030 como base, se manteve e
está materializada no plano aprovado em 2013.
2) Paradoxalmente, as fissuras no bloco de poder que hegemoniza a política na cidade
geraram contradição que atrasaram a efetivação dos intentos da fração que a época
gerenciava a cidade e paralisou seus projetos mais ousados relacionados a produção do
espaço na cidade, barreiras que nem mesmo a verdadeira oposição que atua no frágil, porém
combatente movimento social, conseguiu infligir.

O plano diretor vigente é o de 2013 e, dando continuidade ao autoritarismo de outros


tempos, só que agora mais à vontade, dada a combinação do cenário político nacional e a situação
confortável de uma reeleição em primeiro turno na cidade. O atual prefeito desconsiderou a
necessidade de um debate mais amplo com a sociedade e baixou um decreto atribuindo ao
executivo autoridade para reformular o ordenamento, sem necessariamente seguir o preconizado
pelo estatuto da cidade. A atitude indica que há uma maior unidade no bloco hegemônico local,
uma fragilidade no bloco opositor e um cenário favorável, no curto prazo, a que essas práticas
sejam mais frequentes.

Conclusão

A provocação do ICT de analisar criticamente o processo histórico da constituinte até a


atualidade, à luz da luta de classes, permitiu que refletíssemos sobre a categoria em si e sua
atualidade. Convidou-nos a rapidamente revisitar o materialismo histórico quanto método de
análise ao evocarmos Gramsci e sua percepção das relações de forças.
A importância dessa conversa é percebida quando a enxergamos historicamente, ao refletir
sobre demarcações ao longo da história do Brasil como parte encadeada de um complexo de
disputas nacionais relacionadas à evolução do capitalismo global desde a abolição da escravatura.
Certamente, esse entendimento se torna mais palatável quando colocamos situações mais
próximas de nossa realidade. Ao elencarmos a questão da terra como o nó que, dialeticamente,
atrasa ao mesmo tempo que impulsiona as lutas e conquistas no campo e na cidade, procurou-se
trazer mais para o cotidiano a compreensão da multiplicidade das lutas de classes. A relação de
exploração do capital sobre o trabalho se dá de múltiplas formas, logo as lutas de classes devem ser
travadas na mesma proporção.
O caso retratado sobre o Floripa 2030 aponta as disputas entre diversos atores pelo
predomínio de suas concepções de cidade. Curiosamente, observou-se as repetitivas cisões do
bloco hegemônico; a sua busca, ao longo dos anos, por um grau mais elevado de harmonia, até
alcançá-la recentemente; e a proposta contida na agenda, mais vez repaginada, mas sua essência
segregadora mantida.
Do ponto de vista do movimento social, cabe fazer uma análise concreta da realidade. É
preciso aglutinar forças, de preferência as mais amplas possíveis, com setores médio e tentar
explorar as contradições do bloco hegemônico. É bom lembrar que a maioria dos trabalhadores de
Florianópolis não mora aqui, ou seja, foi segregado. Aqueles que moram na cidade estão em
situação elevada de vulnerabilidade, portanto, sujeitos às mais diversas pressões. Além disso, boa
parte foi capturada pelo discurso ideológico difundido historicamente pelo bloco hegemônico.
Sobre isso, Sugai (2015, p. 28) nos chama a atenção: “querer conhecer criticamente esse
processo exige, antes de tudo, que se conheça a realidade urbana, ou seja, a cidade real. O que
significa, também, enfrentar os paradigmas estabelecidos, as ideologias e as concepções apoiadas
nas aparências dos fatos”. Temos que travar as batalhas das lutas de classes que dificultam a ação e
efetividade do campo progressista.

Referências

AGUIAR. A. Analisando o Floripa 2030: modelo hegemônico de cidade. (Dissertação de


Mestrado). PGAU-UFSC, 2015.

CAMPANÁRIO, Paulo. Florianópolis: dinâmica demográfica e projeção da população por sexo,


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PADUA, F.P. Lutas urbanas, cotidiano e emancipação, In Justiça espacial e o direito à cidade.
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SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade: o caso de São Paulo. 2ª. edição. Edusp:
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SUGAI, Maria Inês. Segregação Silenciosa: investimentos públicos e distribuição sócio-espacial na


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