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CAPÍTULO 1

REFORMA CURRICULAR E ENSINO

Kanavillil Rajagopalan1
(UNICAMP, UESB, UFT e CNPq)

OBSERVAÇÕES INICIAIS: SOBRE UM MODO DE RACIOCÍNIO FALACIOSO

Há uma maneira de contemplar a relação teoria/prática que, a meu ver, mais atrapalha do que
auxilia. No fundo, no fundo, não passa de uma falácia, um sofisma - ou, ao menos, nos conduz
em sua direção. Ela consiste na tentação de olhar para o par dos termos “teoria/prática” como
se ele apresentasse os termos numa ordem cronológica que jamais pode ser posta em dúvida.
Ou seja, primeiro vem a teoria; só em seguida pode haver a esperança de, quem sabe, se falar
em prática. Em consequência desse equívoco, supunha-se que, a menos que houvesse uma
teoria já formulada, não seria possível sequer identificar uma prática, muito menos colocá-la
em prática. Dito de outra forma, se se consegue apontar para uma determinada prática, é porque
existe uma teoria robusta que a explica a contento. Esse pensamento provoca estragos
imensuráveis até os dias de hoje em pares de termos como “linguística teórica/linguística
aplicada” (a despeito de todos os esforços no sentido de se desvencilhar daquela forma
tradicional de encarar a relação entre as duas orientações). O mesmo acontece quando o par de
termos que figura no título deste texto, a saber, currículo e ensino, é contemplado como se eles
designassem uma ordem cronológica - ou seja, quando se pensa que a presença de um currículo
bem elaborado poderia garantir um ensino satisfatório e bem-sucedido.
Num texto que escrevi já há algum tempo (Rajagopalan, 2003), caracterizei a crença na
procedência e a grande aceitação desse raciocínio como um verdadeiro escândalo que remonta
à Grécia antiga e que foi notadamente celebrado num argumento favorito de Sócrates, o Pai da
Filosofia Ocidental. Um enredo típico dos celebrados Diálogos socráticos consiste em o
personagem de Sócrates (tal qual recriado pelo seu ilustre discípulo Platão, o autor dos diálogos)
abordar um pobre caipira qualquer na Plaka ateniense e inquirir o que o fulano entendia por um
termo abstrato como, digamos, piedade. Rejeitando com veemência todos os protestos de seu

1
Sou grato ao CNPq pela concessão bolsa pesquisa nº 302981/2014-4.
interlocutor, alegando sua limitada formação escolar e seu pouco preparo intelectual para altas
e complexas questões filosóficas, o nosso filósofo-mor consegue, graças à sua insistência e ao
seu magnetismo pessoal, arrancar-lhe respostas que, na melhor das hipóteses, evidenciam
alguma familiaridade com o termo “piedoso” aplicado a um indivíduo - indivíduo esse que
todos na cidade conheciam pela fama de ser honrado e caridoso. Sócrates não se dá por satisfeito
e sumariamente rejeita, sem titubear, todas aquelas respostas, desqualificando-as como
totalmente inadequadas. Para o Pai da Filosofia e aclamado fundador do Racionalismo como
método filosófico, a única forma de demonstrar compreensão plena de um dado conceito é
quando se consegue formular uma definição rigorosa desse conceito, não meramente
fornecendo exemplos aleatórios. Mesmo nesses casos que ilustrariam, na ótica do Pai da
Filosofia, a inabilidade do pobre coitado em explicitar um determinado conceito, o mestre fazia
questão de insistir que, no fundo, no fundo, seu interlocutor conhecia o conceito, ainda que
fosse incapaz de explicitá-lo, e que a única tarefa do filósofo era conscientizá-lo sobre tal fato
(o princípio do famigerado método “maiêutico”).
Neste texto, meu objetivo não é, nem de longe, discutir métodos de raciocínio científico:
confessadamente, nem remotamente estou preparado de forma adequada para me atrever numa
aventura de tal magnitude. O que eu quero ressaltar nesta discussão sobre o caipira (leia-se
cidadão comum, leigo) e seu entendimento, ou não, de um termo abstrato é, em primeiro lugar,
a seguinte pergunta: entendimento para quem, cara pálida? Pode ser que a resposta do caipira
não esteja à altura do que o filósofo espera. Mas não se pode negar que o entendimento que o
caipira tem do termo é suficiente para que ele consiga levar adiante suas necessidades do dia-
a-dia, inclusive empregar o termo vez por outra com razoável acerto. Em verdade, nossas vidas
seriam uma tormenta insuportável se fosse necessário que conhecêssemos de antemão os
conceitos por trás de todos os vocábulos que utilizamos em nosso dia-a-dia - com todo o rigor
de 24 quilates que o filósofo exige. Ninguém é especialista em todos os assuntos, e isto se aplica
aos filósofos também. Um filósofo pode ter que recorrer ao vocábulo, digamos,
“acondroplasia”, tal qual ele ouviu de um médico, mencionar e repeti-lo a um amigo sem ter a
mínima noção - a não ser o que ele tenha conseguido ler na Wikipédia - do que realmente se
trata.
Na vida real e corriqueira, tal forma de abordar a relação entre teoria e prática nos
levaria, sem sombra de dúvida, a possíveis desdobramentos um tanto absurdos. Por exemplo,
de acordo com a lógica subjacente, quem quiser aprender a andar de bicicleta terá que fazer um
curso intensivo sobre forças gravitacionais, conservação do momento linear, fricção e por aí
vai. Ledo engano! Quem anda de bicicleta pode estar, num certo sentido, obedecendo todas as
leis da física mecânica, mas isso não quer dizer, de forma alguma, que ele/a esteja consciente
disso, ou, nem mesmo, que saiba que tais leis existem.
Entretanto, o equívoco que apontamos nos parágrafos anteriores persiste em se
manifestar o tempo todo. É, por exemplo, o caso em que alguém cujo objetivo sincero é
enaltecer as virtudes da matemática e promover interesse na disciplina tenta nos convencer de
que a ciência está presente em tudo o que fazemos - desde os primeiros passos que o neném dá
na vida, até coisas como cantarolar sua musiqueta favorita, admirar o céu cheio de estrelas,
medir sua pressão sanguínea etc. O fato de todas essas atividades poderem ser analisadas sob o
olhar dos princípios que os matemáticos vêm elaborando não é base para insistir na ideia de que
quem desconhece tais princípios será incapaz de desfrutar de qualquer uma daquelas “proezas”.
Antecipando o que pretendo discutir ao longo deste texto, desejo deixar claro que prefiro adotar
uma postura eminentemente pragmática em relação ao ensino. O que equivale dizer que o
ensino bem sucedido se dá na prática. Ou seja, não importa o conteúdo que está sendo repassado
aos discentes; o que vale é como o conteúdo é trabalhado na sala de aula. Sob esse enfoque, o
que importa mesmo é saber até que ponto a professor está atento à realidade em que se encontra
o aprendiz e até que ponto ele está sensível aos anseios, as aspirações e as angústias de quem
está no lado receptor do esforço pedagógico.

O CURRÍCULO SOB ENFOQUE

O que tudo o que foi discutido nos parágrafos anteriores tem a ver com a reforma
curricular? A resposta não poderia ser outra senão um sonoro “TUDO”. No campo do ensino,
a falácia apontada anteriormente levanta sua cabeça com frequência quando o assunto é
currículo. Muitas pessoas exageram o papel do currículo quando discorrem sobre o assunto,
deixando transparecer a impressão de acreditar piamente na posição de que basta elaborar um
bom currículo e pronto, o ensino vai transcorrer bem! Em geral, essas pessoas entendem o
currículo no sentido de um conjunto de diretrizes sobre os materiais a serem utilizados
(notadamente, os textos a serem efetivamente utilizados na sala de aula, com algumas instruções
quanto à sua utilização). As definições do vocábulo currículo que se encontram nos dicionários
comprovam isso: “Descrição do conjunto de conteúdos ou matérias de um curso escolar ou
universitário”, é o que aponta o Dicionário Aurélio como uma das acepções do termo 2. Já o
Grande Dicionário Houiass registra como uma das acepções da palavra currículo algo bem

2
Fonte: https://dicionariodoaurelio.com/curriculo. Acesso em 16.08.2018.
parecido: “programação total ou parcial de um curso ou de matéria a ser examinada”, e fornece
como exemplo do uso: “No primeiro dia, os professores apresentaram os currículos dos cursos
de matemática e física”3.
Nas palavras de Moreira (2000, p. 75):
Da restrita visão de currículo como lista de disciplinas e conteúdos, passa-se
a uma visão de currículo que abrange praticamente todo e qualquer fenômeno
educacional. Ou seja, o currículo torna-se tudo ou quase tudo.

Ou, como assinala Saviani (2016, p. 55): “Currículo é entendido comumente como a
relação das disciplinas que compõem um curso ou a relação dos assuntos que constituem uma
disciplina, no que ele coincide com o termo ‘programa’”.
Mas Saviani (2016, p. 55) logo se apressa em acrescentar:

Entretanto, no âmbito dos especialistas nessa matéria tem prevalecido a


tendência a se considerar o currículo como sendo o conjunto das atividades
(incluído o material físico e humano a elas destinado) que se cumprem com
vistas a determinado fim. Este pode ser considerado o conceito ampliado de
currículo, pois, no que toca à escola, abrange todos os elementos a ela
relacionados.

É evidente que a falácia a que me referi acima tem como alvo principal o sentido estrito
e não o mais amplo do termo “currículo”, tal qual educadores como Saviani preferem concebê-
lo. Por outro lado, é também fácil constatar que o que de fato aconteceu ao longo do debate
acalorado que se deu no Brasil antes da promulgação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) girou primordialmente em torno do conceito no sentido estrito do termo, por um
motivo simples: por ser uma questão de alta relevância e interesse popular, o debate não ficou
confinado aos quatro muros da academia, stricto sensu, mas extravasou - como, aliás, deveria
ter sido nessa e em qualquer outra questão de cunho POLÍTICO - para arraiais remotos e
longínquos, distantes do centro das tomadas de decisões.

A BNCC e suas pretensões

A BNCC, logo no início de sua proposta preliminar (2016, p. 15), reconhece o seguinte:
No Brasil, um país caracterizado pela autonomia dos entes federados,
acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais, os sistemas
e redes de ensino devem construir currículos, e as escolas precisam elaborar
propostas pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os

3
Fonte: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#1. Acesso em 16.08.2018.
interesses dos estudantes, assim como suas identidades linguísticas, étnicas e
culturais.

Uma vez que se reconhece a diversidade inerente a sua população, que se encontra
espalhada num país como o Brasil, de dimensões continentais, o que se propõe é assegurar um
conteúdo mínimo que seja igual em todo território nacional.

Nesse processo, a BNCC desempenha papel fundamental, pois explicita as


aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver e
expressa, portanto, a igualdade educacional sobre a qual as singularidades
devem ser consideradas e atendidas. Essa igualdade deve valer também para
as oportunidades de ingresso e permanência em uma escola de Educação
Básica, sem o que o direito de aprender não se concretiza.

À primeira vista, essas palavras soam irretocáveis e acima de qualquer contestação ou


polemização. No entanto, devemos perguntar qual é o pressuposto que sustenta toda essa
colocação. Há, aparentemente, uma clara suposição de que (a) há um conjunto das assim-
caracterizadas “aprendizagens essenciais” e (b) uma vez asseguradas essas “aprendizagens
essenciais”, será alcançada “a [tão almejada] igualdade educacional”.
Ora, a pergunta que surge instantaneamente é: “essenciais” para quem? Para o aprendiz
pretendente ou o administrador/educador que decide por conta própria o que o aprendiz ideal
deve ou não aprender? Antes que alguém levante uma objeção ante minha pergunta, dizendo
que o aprendiz não teria como decidir o que é bom e o que não é do seu interesse (pois não teria
idade nem experiência suficiente para tomar decisões de tal envergadura!), apresso-me a propor
o seguinte: é inteiramente legítimo perguntar qual é a base de tanta certeza por parte de quem
decide o que é bom e o que não é bom para as nossas crianças e adolescentes.
O problema fica ainda mais intricado quando se leva em conta o fato de que o universo
sobre o qual estamos pensando é altamente heterogêneo, como a própria proposta preliminar
reconhece quando se refere à “acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades
sociais”. Quando se propõe um mesmo remédio para um universo tão diverso, estamos de fato
imaginando um sujeito ideal como receptor do tratamento. Acontece que os sujeitos reais
espalhados pelo vasto território nacional têm, cada um a seu modo, necessidades e carências
que lhes são próprias. Não é verdade, como os defensores de currículo unificado imaginam, que
as necessidades e carências específicas dos aprendizes, bem como suas expectativas e
aspirações, possam ser atingidas da mesma maneira - possibilidade essa fadada a conduzir à
frustração inevitável e ao eventual desencanto.
A ideologia do currículo

O título desta seção foi inspirado no livro clássico de Michael Apple, renomado
educador e influente pensador que alertou seus colegas sobre os perigos inerentes à conexão
umbilical entre as estruturas de poder e a forma e conteúdo do currículo que as instituições de
ensino privilegiam. Em suas próprias palavras,

As escolas não somente controlam as pessoas: elas também controlam


significados. Como elas preservam e distribuem o que é percebido como
‘conhecimento legítimo’ – conhecimento que ‘todos nós devemos ter’, as
escolas conferem legitimação ao conhecimento de determinados grupos. Mas
isso não é tudo, porque a capacidade de um grupo de tornar seu conhecimento
‘o conhecimento para todos’ está relacionada ao poder que esse grupo detém
no âmbito político e econômico. Poder e cultura precisam ser vistos, portanto,
não como entes estáticos com nenhuma conexão entre si, mas como atributos
de relações existentes numa sociedade. Eles são entrelaçados dialeticamente,
de modo que o poder e controle econômicos são interconectados a poder e
controle cultural (APPLE, 1979, p. 63-64).

Essas palavras contundentes nos remetem, sem sombra de dúvida, ao pensador francês
(argelino de origem) Louis Althusser (1969/1998), que denunciou a atuação da escola em
promover os interesses do Estado. Diga-se de passagem que onde Apple inova é, a meu ver,
precisamente no sentido de vislumbrar uma possível rota de saída para o sujeito, que o permita
libertar-se das garras da estrutura que se esforça o tempo todo para aprisioná-lo. Esse sujeito
precisa se transformar em um agente, rompendo a estrutura esmagadora no processo.

A BNCC E SUA IDEOLOGIA SUBJACENTE

Como não podia ser de outra forma, a BNCC também abriga sua ideologia. Antes de
prosseguir, é preciso frisar que o emprego da palavra ideologia aqui não tem nenhuma
conotação de negatividade - apenas quero me referir a um conjunto de idéias que servem como
pressupostos e que não são expostas à discussão pública. Ou seja, é preciso inferir qual é a
ideologia subjacente à BNCC lendo o texto em suas entrelinhas. Assim, logo no início da
Proposta Preliminar (BRASIL, SEB/MEC, 2016), se lê:

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter


normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens
essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus
direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que
preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE).
O problema com declarações confiantes e, à primeira vista, insuspeitas, é que elas
abrigam pressupostos um tanto questionáveis. Por exemplo, ao falarem em “aprendizagens
essenciais”, os proponentes e defensores da BNCC parecem ter em mente um aluno ideal.
Quem é esse aluno ideal? Quais são as características desse aluno ideal que, por sua vez,
pressupõe um cidadão ideal? A mim causa arrepios a conotação descaradamente eugênica de
propostas desse tipo. Antes que alguém se apresse em acusar-me de alarmismo, deixe-me
explicar porque aludo à ideologia nociva de eugenia que encontrou solo fértil em nosso país
nas primeiras décadas do século passado. Embora, em sua preocupação original, a proposta de
eugenia se dirigisse a uma questão estritamente racial, preparando o terreno para o
“branqueamento” progressivo da população, as justificativas enfileiradas para sustentar tal tese
demonstram semelhança assustadora com a proposta de unificar o currículo que estamos
discutindo. Ambas tinham como principal justificativa a uniformização do conteúdo - da
composição étnico-racial de um povo, no primeiro caso, e da composição de material
pedagógico a ser ofertado ao povo, no segundo caso. Ambas alicerçadas no argumento de que,
além de ser “democrática” na distribuição das benesses do Estado, a medida também
contribuiria para a manutenção da Nação como unidade geopolítica com solidez segura.

UM MODO MAIS SENSATO DE PENSAR O CURRÍCULO

Abordagem centrada no aluno, não no conteúdo

É simplesmente inacreditável que aqueles que sustentam - e, ao que aparece,


conseguiram convencer outros - que o currículo comum é a solução para todos os males de
educação, ou ao menos o passo inicial rumo a uma solução derradeira, passem ao largo de
avanços no campo da educação pelas orientações, tais como o construtivismo, que veio a
suplantar o objetivismo, que imperou durante tanto tempo, e a abordagem centrada no aluno
(student-centred learning), que, após tanto tempo de fracassos estrondosos, ganhou força entre
os educadores no mundo afora. Weimer (2002) foi um dos primeiros estudiosos a nos alertar
sobre o perigo de concentrar todas as atenções no conteúdo, o que pode “levar ao ponto de
negligenciar que os objetivos centrais do curso estão sendo perseguidos”. A essa conclusão,
Wright (2011, p. 93) acrescenta que tal atitude também tem resultado em situações em que se
confunde “um bom curso com um curso rigoroso, em vez de um curso no qual os alunos
realmente aprendem” (ênfase acrescida). Como afirmam Hannafin e Hannafin (2010, p. 12-13):
De acordo com os construtivistas, o significado é derivado e interpretado
mediante crenças individuais, experiências e contextos sociais. Dessa forma,
o significado individual é construído mediante interações pessoais com o
mundo em vez de assimilações.

Já o trabalho pioneiro de Weimer (2002) sobre o ensino centrado no aprendiz


demonstrou com clareza como os princípios elencados no trabalho clássico de Brookfield
(1995) sobre o professor criticamente reflexivo podem resultar em ganhos consideráveis na sala
de aula e na vida dos discentes.

A importância de começar pela realidade do aluno, não pela meta a ser atingida

Sem entrar nos méritos do currículo mínimo, que está a caminho de ser, ao que tudo
indica, aprovado definitivamente e posto em prática (como isso efetivamente ocorrerá é ainda
uma questão aberta), podemos constatar nele outro fator, igualmente problemático, já de início.
Trata-se da ideia subjacente de que o que importa determinar de antemão é a meta que se quer
alcançar. Acredito que, em matéria de propostas educacionais, o mais importante ainda seja de
onde os alunos estão partindo rumo a tal meta. Ou seja, o lugar onde se encontra o aluno é algo
que não pode ser relegado a um segundo plano.
Pior ainda: na ânsia de focar na meta a ser atingida a qualquer custo (e, de preferência,
a menor CUSTO!), propõe-se promover métodos e técnicas que até colocam de lado o contato
direto entre o docente e discente - tão importante nas fases de educação básica e média. Em
artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em sua edição de 3 de julho de 2018, Cesar
Callegari (2018), sociólogo e membro do Conselho Nacional de Educação, escreve
acertadamente:

A nova lei [nº 13.415 do ‘novo ensino médio’, nascida de medida provisória
de Michel Temer] abre o ensino médio para oferta a distância. Pacotes EAD
poderão substituir professores, dispensar laboratórios e bibliotecas - e
desintegrar o território escolar de encontros, afetos e descobertas. Isso é muito
grave!

E o autor continua nos alertando sobre os perigos inerentes à proposta de levar a cabo o
esforço de ensino nos moldes “bancários”, devidamente atualizados para se adequarem aos
nossos tempos de “bitcoin”:

Não será em um contexto de isolamento que o jovem desenvolverá valores


como solidariedade, respeito à diversidade e trabalho colaborativo.
E acrescenta, um pouco à frente: “as novas tecnologias podem e devem ser utilizadas,
mas a favor da escola, e não para substituí-la”.

Nada substitui o toque e o trabalho humano em matéria de educação

O total desvario representado pela presente preocupação com o aperfeiçoamento de um


currículo comum para todo o território nacional, com foco exclusivo nas metas a serem
alcançadas, remete-nos a um caso em nossa história não tão remota de assegurar a integridade
da nação brasileira, com um esforço redobrado de garantir que todos os cidadãos saibam falar
o idioma nacional de forma uniforme e idêntica, sem “distorções” porventura causadas pelas
variações regionais (como se poder cantar o hino nacional de forma idêntica garantisse, eo ipso,
a integridade e a inviolabilidade da nação brasileira!).
Trata-se de um encontro de estudiosos realizado na cidade de São Paulo em 1937,
promovido pelo Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, sob o nome de “Primeiro
Congresso de Língua Nacional Cantada”. Os anais desse evento foram publicados no ano
seguinte. Logo nas palavras introdutórias desse livro, Mário de Andrade, um dos mais
entusiastas promotores do evento, declara, com peito estufado:

[...] si estais bem conscientes da insensatez maravilhosa da nossa decisão de


nos reunirmos neste Congresso da Língua Nacional Cantada. Enquanto a
política rosna lá fora, fundando imperialismos absurdos, nacionalismos
estufados e mil e uma facetas, por onde se odiarem os homens; através dos
espaços arejados os congressos se correspondem na insensatez aparente da
paz, do saber e da arte. [....] nos perfeitos momentos de humanidade vamos
em busca do Brasil e sua verdadeira significação histórica no mundo

A “insensatez maravilhosa” de organizar o evento é enaltecida pelo escritor, que, mais


à frente, destaca a importância de “militarizar as vogais” como medida necessária e desejável
em sua “busca do Brasil e sua verdadeira significação histórica no mundo”, contrastando-a da
maneira mais comum entre os conquistadores, que consististe na prática de “militarizarem suas
criancinhas” com vistas a resultados imediatistas.
Como aponta Serpa (2001, p. 72-73):

Estabeleciam com esta prática uma guerra nacionalista através da língua, onde
as vogais são transmutadas em peças de artilharia militarizada com o intuito
de reformular os falares heterogêneos. Guerra de língua em prol da
constituição da nacionalidade, propondo uma maneira unificada de falar e, por
conseguinte, trabalhando também, no sentido da criação da distinção social
através da língua.
Segundo o autor (2001, p. 74), afastando-se “do discurso usual de construção do mito
da nação heroica através das batalhas”, procurava-se a verdadeira significação do Brasil. Em
suas palavras,

A língua portuguesa falada e escrita passou a ser objeto de intervenção para


constituir-se como expressão simbólica da nacionalidade. Dilema enfrentado
pela intelectualidade brasileira que se digladiava em torno de discussões sobre
adotar-se a denominação de língua brasileira, língua nacional ou portuguesa.
Aconteceram muitas dissensões internas e diálogos impertinentes com a
intelectualidade portuguesa (Serpa, 2001, p.75).

De acordo com Herr (2007, p. 35),

A grande preocupação do Primeiro Congresso foi o estabelecimento de uma


língua-padrão, ‘animado pelo desejo de bem servir à causa da nacionalidade
brasileira nas artes da linguagem e do canto’ (NORMAS, 1938, p.6). O sonho
de Mário de Andrade de unificar o Brasil através da língua e das manifestações
culturais tomou forma na homologação destas Normas...

ALGUMAS REFLEXÕES CONCLUDENTES

A discussão acima, sobre a tentativa de assegurar a unidade da nação e a promoção de


espírito de patriotismo, leva-nos à questão levantada logo no início deste texto: a tendência de
supor que uma boa teoria deve pautar toda prática bem-sucedida, ou seja, sem uma boa teoria,
não poderia haver prática efetiva.
Em seu livro de grande repercussão intitulado Language Policy and Language
Planning, a autora Sue Wright alerta-nos sobre os perigos inerentes a propostas para assegurar
homogeneidade e sobre as pressões que são mobilizadas dentro de diferentes comunidades para
implantá-las a qualquer custo. Em suas palavras:

O argumento era o de que falar de um mesmo jeito era um ato de identidade,


bem como um ato de comunicação. Os responsáveis pelas políticas
linguísticas e planejadores de construção das nações perceberam isso e,
reconhecendo que a língua era como que uma poderosa cola na constituição
de grupos, sistemática e rigorosamente encorajaram a criação de uma
comunidade única de comunicação dentro do Estado (WRIGHT, 2004, p.
101).
Contudo, Wright logo se apressa em avisar que, em seu desejo de promover mudanças
impostas “de-cima-para-baixo”, eles transformaram suas políticas linguísticas em atos
inerentemente repressivos. E acrescenta:

Porém, não se deve esquecer de que eles tiveram, de forma geral, pleno êxito
porque havia um consenso e consentimento nas camadas inferiores. Ideologias
nacionalistas eram aceitas pelas grandes maiorias dentro das populações [...]
(WRIGHT, 2004, p. 101).

Por sua vez, Shohamy (2006) foi igualmente contundente ao afirmar que, hoje em dia,
as políticas linguísticas de grande impacto surgem a despeito do que desejam os que estão no
topo da pirâmide, e são desertadas pelos movimentos advindos da base. Numa resenha que fiz
do livro de Shoahamy na época, ponderei o seguinte:

[...] Shohamy entende que as duas pontas do polo, a saber, políticas


linguísticas e práticas linguísticas, estão constantemente envolvidas em um
cabo-de-guerra entre as forças de reprodução e resistência, resultando-se em
volatilidade e dinamicidade. Se em nível de política a linguagem está à mercê
de manipulações constantes, é igualmente válido dizer que práticas políticas
com frequência se realizam na contramão de orientações políticas vindas de
cima (RAJAGOPALAN, 2007, p. 252).

O mesmo acontece com os currículos concebidos e elaborados na prancheta de alguém


que só se concentra no fim do processo educacional-pedagógico, e não no estágio inicial em
que se encontram os discentes, imaginados beneficiários de todo o esforço e de todas as
condições em que se encontram os professores, os executores das políticas concebidas no topo
- para não falar das condições efetivas em que se encontram as escolas, o palco onde
supostamente precisam ser postas em prática as políticas engenhosamente elaboradas.

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