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Kanavillil Rajagopalan1
(UNICAMP, UESB, UFT e CNPq)
Há uma maneira de contemplar a relação teoria/prática que, a meu ver, mais atrapalha do que
auxilia. No fundo, no fundo, não passa de uma falácia, um sofisma - ou, ao menos, nos conduz
em sua direção. Ela consiste na tentação de olhar para o par dos termos “teoria/prática” como
se ele apresentasse os termos numa ordem cronológica que jamais pode ser posta em dúvida.
Ou seja, primeiro vem a teoria; só em seguida pode haver a esperança de, quem sabe, se falar
em prática. Em consequência desse equívoco, supunha-se que, a menos que houvesse uma
teoria já formulada, não seria possível sequer identificar uma prática, muito menos colocá-la
em prática. Dito de outra forma, se se consegue apontar para uma determinada prática, é porque
existe uma teoria robusta que a explica a contento. Esse pensamento provoca estragos
imensuráveis até os dias de hoje em pares de termos como “linguística teórica/linguística
aplicada” (a despeito de todos os esforços no sentido de se desvencilhar daquela forma
tradicional de encarar a relação entre as duas orientações). O mesmo acontece quando o par de
termos que figura no título deste texto, a saber, currículo e ensino, é contemplado como se eles
designassem uma ordem cronológica - ou seja, quando se pensa que a presença de um currículo
bem elaborado poderia garantir um ensino satisfatório e bem-sucedido.
Num texto que escrevi já há algum tempo (Rajagopalan, 2003), caracterizei a crença na
procedência e a grande aceitação desse raciocínio como um verdadeiro escândalo que remonta
à Grécia antiga e que foi notadamente celebrado num argumento favorito de Sócrates, o Pai da
Filosofia Ocidental. Um enredo típico dos celebrados Diálogos socráticos consiste em o
personagem de Sócrates (tal qual recriado pelo seu ilustre discípulo Platão, o autor dos diálogos)
abordar um pobre caipira qualquer na Plaka ateniense e inquirir o que o fulano entendia por um
termo abstrato como, digamos, piedade. Rejeitando com veemência todos os protestos de seu
1
Sou grato ao CNPq pela concessão bolsa pesquisa nº 302981/2014-4.
interlocutor, alegando sua limitada formação escolar e seu pouco preparo intelectual para altas
e complexas questões filosóficas, o nosso filósofo-mor consegue, graças à sua insistência e ao
seu magnetismo pessoal, arrancar-lhe respostas que, na melhor das hipóteses, evidenciam
alguma familiaridade com o termo “piedoso” aplicado a um indivíduo - indivíduo esse que
todos na cidade conheciam pela fama de ser honrado e caridoso. Sócrates não se dá por satisfeito
e sumariamente rejeita, sem titubear, todas aquelas respostas, desqualificando-as como
totalmente inadequadas. Para o Pai da Filosofia e aclamado fundador do Racionalismo como
método filosófico, a única forma de demonstrar compreensão plena de um dado conceito é
quando se consegue formular uma definição rigorosa desse conceito, não meramente
fornecendo exemplos aleatórios. Mesmo nesses casos que ilustrariam, na ótica do Pai da
Filosofia, a inabilidade do pobre coitado em explicitar um determinado conceito, o mestre fazia
questão de insistir que, no fundo, no fundo, seu interlocutor conhecia o conceito, ainda que
fosse incapaz de explicitá-lo, e que a única tarefa do filósofo era conscientizá-lo sobre tal fato
(o princípio do famigerado método “maiêutico”).
Neste texto, meu objetivo não é, nem de longe, discutir métodos de raciocínio científico:
confessadamente, nem remotamente estou preparado de forma adequada para me atrever numa
aventura de tal magnitude. O que eu quero ressaltar nesta discussão sobre o caipira (leia-se
cidadão comum, leigo) e seu entendimento, ou não, de um termo abstrato é, em primeiro lugar,
a seguinte pergunta: entendimento para quem, cara pálida? Pode ser que a resposta do caipira
não esteja à altura do que o filósofo espera. Mas não se pode negar que o entendimento que o
caipira tem do termo é suficiente para que ele consiga levar adiante suas necessidades do dia-
a-dia, inclusive empregar o termo vez por outra com razoável acerto. Em verdade, nossas vidas
seriam uma tormenta insuportável se fosse necessário que conhecêssemos de antemão os
conceitos por trás de todos os vocábulos que utilizamos em nosso dia-a-dia - com todo o rigor
de 24 quilates que o filósofo exige. Ninguém é especialista em todos os assuntos, e isto se aplica
aos filósofos também. Um filósofo pode ter que recorrer ao vocábulo, digamos,
“acondroplasia”, tal qual ele ouviu de um médico, mencionar e repeti-lo a um amigo sem ter a
mínima noção - a não ser o que ele tenha conseguido ler na Wikipédia - do que realmente se
trata.
Na vida real e corriqueira, tal forma de abordar a relação entre teoria e prática nos
levaria, sem sombra de dúvida, a possíveis desdobramentos um tanto absurdos. Por exemplo,
de acordo com a lógica subjacente, quem quiser aprender a andar de bicicleta terá que fazer um
curso intensivo sobre forças gravitacionais, conservação do momento linear, fricção e por aí
vai. Ledo engano! Quem anda de bicicleta pode estar, num certo sentido, obedecendo todas as
leis da física mecânica, mas isso não quer dizer, de forma alguma, que ele/a esteja consciente
disso, ou, nem mesmo, que saiba que tais leis existem.
Entretanto, o equívoco que apontamos nos parágrafos anteriores persiste em se
manifestar o tempo todo. É, por exemplo, o caso em que alguém cujo objetivo sincero é
enaltecer as virtudes da matemática e promover interesse na disciplina tenta nos convencer de
que a ciência está presente em tudo o que fazemos - desde os primeiros passos que o neném dá
na vida, até coisas como cantarolar sua musiqueta favorita, admirar o céu cheio de estrelas,
medir sua pressão sanguínea etc. O fato de todas essas atividades poderem ser analisadas sob o
olhar dos princípios que os matemáticos vêm elaborando não é base para insistir na ideia de que
quem desconhece tais princípios será incapaz de desfrutar de qualquer uma daquelas “proezas”.
Antecipando o que pretendo discutir ao longo deste texto, desejo deixar claro que prefiro adotar
uma postura eminentemente pragmática em relação ao ensino. O que equivale dizer que o
ensino bem sucedido se dá na prática. Ou seja, não importa o conteúdo que está sendo repassado
aos discentes; o que vale é como o conteúdo é trabalhado na sala de aula. Sob esse enfoque, o
que importa mesmo é saber até que ponto a professor está atento à realidade em que se encontra
o aprendiz e até que ponto ele está sensível aos anseios, as aspirações e as angústias de quem
está no lado receptor do esforço pedagógico.
O que tudo o que foi discutido nos parágrafos anteriores tem a ver com a reforma
curricular? A resposta não poderia ser outra senão um sonoro “TUDO”. No campo do ensino,
a falácia apontada anteriormente levanta sua cabeça com frequência quando o assunto é
currículo. Muitas pessoas exageram o papel do currículo quando discorrem sobre o assunto,
deixando transparecer a impressão de acreditar piamente na posição de que basta elaborar um
bom currículo e pronto, o ensino vai transcorrer bem! Em geral, essas pessoas entendem o
currículo no sentido de um conjunto de diretrizes sobre os materiais a serem utilizados
(notadamente, os textos a serem efetivamente utilizados na sala de aula, com algumas instruções
quanto à sua utilização). As definições do vocábulo currículo que se encontram nos dicionários
comprovam isso: “Descrição do conjunto de conteúdos ou matérias de um curso escolar ou
universitário”, é o que aponta o Dicionário Aurélio como uma das acepções do termo 2. Já o
Grande Dicionário Houiass registra como uma das acepções da palavra currículo algo bem
2
Fonte: https://dicionariodoaurelio.com/curriculo. Acesso em 16.08.2018.
parecido: “programação total ou parcial de um curso ou de matéria a ser examinada”, e fornece
como exemplo do uso: “No primeiro dia, os professores apresentaram os currículos dos cursos
de matemática e física”3.
Nas palavras de Moreira (2000, p. 75):
Da restrita visão de currículo como lista de disciplinas e conteúdos, passa-se
a uma visão de currículo que abrange praticamente todo e qualquer fenômeno
educacional. Ou seja, o currículo torna-se tudo ou quase tudo.
Ou, como assinala Saviani (2016, p. 55): “Currículo é entendido comumente como a
relação das disciplinas que compõem um curso ou a relação dos assuntos que constituem uma
disciplina, no que ele coincide com o termo ‘programa’”.
Mas Saviani (2016, p. 55) logo se apressa em acrescentar:
É evidente que a falácia a que me referi acima tem como alvo principal o sentido estrito
e não o mais amplo do termo “currículo”, tal qual educadores como Saviani preferem concebê-
lo. Por outro lado, é também fácil constatar que o que de fato aconteceu ao longo do debate
acalorado que se deu no Brasil antes da promulgação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) girou primordialmente em torno do conceito no sentido estrito do termo, por um
motivo simples: por ser uma questão de alta relevância e interesse popular, o debate não ficou
confinado aos quatro muros da academia, stricto sensu, mas extravasou - como, aliás, deveria
ter sido nessa e em qualquer outra questão de cunho POLÍTICO - para arraiais remotos e
longínquos, distantes do centro das tomadas de decisões.
A BNCC, logo no início de sua proposta preliminar (2016, p. 15), reconhece o seguinte:
No Brasil, um país caracterizado pela autonomia dos entes federados,
acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais, os sistemas
e redes de ensino devem construir currículos, e as escolas precisam elaborar
propostas pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os
3
Fonte: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#1. Acesso em 16.08.2018.
interesses dos estudantes, assim como suas identidades linguísticas, étnicas e
culturais.
Uma vez que se reconhece a diversidade inerente a sua população, que se encontra
espalhada num país como o Brasil, de dimensões continentais, o que se propõe é assegurar um
conteúdo mínimo que seja igual em todo território nacional.
O título desta seção foi inspirado no livro clássico de Michael Apple, renomado
educador e influente pensador que alertou seus colegas sobre os perigos inerentes à conexão
umbilical entre as estruturas de poder e a forma e conteúdo do currículo que as instituições de
ensino privilegiam. Em suas próprias palavras,
Essas palavras contundentes nos remetem, sem sombra de dúvida, ao pensador francês
(argelino de origem) Louis Althusser (1969/1998), que denunciou a atuação da escola em
promover os interesses do Estado. Diga-se de passagem que onde Apple inova é, a meu ver,
precisamente no sentido de vislumbrar uma possível rota de saída para o sujeito, que o permita
libertar-se das garras da estrutura que se esforça o tempo todo para aprisioná-lo. Esse sujeito
precisa se transformar em um agente, rompendo a estrutura esmagadora no processo.
Como não podia ser de outra forma, a BNCC também abriga sua ideologia. Antes de
prosseguir, é preciso frisar que o emprego da palavra ideologia aqui não tem nenhuma
conotação de negatividade - apenas quero me referir a um conjunto de idéias que servem como
pressupostos e que não são expostas à discussão pública. Ou seja, é preciso inferir qual é a
ideologia subjacente à BNCC lendo o texto em suas entrelinhas. Assim, logo no início da
Proposta Preliminar (BRASIL, SEB/MEC, 2016), se lê:
A importância de começar pela realidade do aluno, não pela meta a ser atingida
Sem entrar nos méritos do currículo mínimo, que está a caminho de ser, ao que tudo
indica, aprovado definitivamente e posto em prática (como isso efetivamente ocorrerá é ainda
uma questão aberta), podemos constatar nele outro fator, igualmente problemático, já de início.
Trata-se da ideia subjacente de que o que importa determinar de antemão é a meta que se quer
alcançar. Acredito que, em matéria de propostas educacionais, o mais importante ainda seja de
onde os alunos estão partindo rumo a tal meta. Ou seja, o lugar onde se encontra o aluno é algo
que não pode ser relegado a um segundo plano.
Pior ainda: na ânsia de focar na meta a ser atingida a qualquer custo (e, de preferência,
a menor CUSTO!), propõe-se promover métodos e técnicas que até colocam de lado o contato
direto entre o docente e discente - tão importante nas fases de educação básica e média. Em
artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em sua edição de 3 de julho de 2018, Cesar
Callegari (2018), sociólogo e membro do Conselho Nacional de Educação, escreve
acertadamente:
A nova lei [nº 13.415 do ‘novo ensino médio’, nascida de medida provisória
de Michel Temer] abre o ensino médio para oferta a distância. Pacotes EAD
poderão substituir professores, dispensar laboratórios e bibliotecas - e
desintegrar o território escolar de encontros, afetos e descobertas. Isso é muito
grave!
E o autor continua nos alertando sobre os perigos inerentes à proposta de levar a cabo o
esforço de ensino nos moldes “bancários”, devidamente atualizados para se adequarem aos
nossos tempos de “bitcoin”:
Estabeleciam com esta prática uma guerra nacionalista através da língua, onde
as vogais são transmutadas em peças de artilharia militarizada com o intuito
de reformular os falares heterogêneos. Guerra de língua em prol da
constituição da nacionalidade, propondo uma maneira unificada de falar e, por
conseguinte, trabalhando também, no sentido da criação da distinção social
através da língua.
Segundo o autor (2001, p. 74), afastando-se “do discurso usual de construção do mito
da nação heroica através das batalhas”, procurava-se a verdadeira significação do Brasil. Em
suas palavras,
Porém, não se deve esquecer de que eles tiveram, de forma geral, pleno êxito
porque havia um consenso e consentimento nas camadas inferiores. Ideologias
nacionalistas eram aceitas pelas grandes maiorias dentro das populações [...]
(WRIGHT, 2004, p. 101).
Por sua vez, Shohamy (2006) foi igualmente contundente ao afirmar que, hoje em dia,
as políticas linguísticas de grande impacto surgem a despeito do que desejam os que estão no
topo da pirâmide, e são desertadas pelos movimentos advindos da base. Numa resenha que fiz
do livro de Shoahamy na época, ponderei o seguinte:
REFERÊNCIAS
BRASIL, SEB/MEC. (2016). Base nacional comum curricular. Proposta Preliminar. Segunda
Versão. Brasília, DF, SEB/MEC.
HERR, M. Mudanças nas normas para a boa pronúncia da língua portuguesa no canto e no
teatro no Brasil: 1938, 1956 e 2005. Per Musi, no.15, p. 35-40, 2007.
RAJAGOPALAN, K. Resenha de Elana Shohamy, 2006, Language policy: hidden agendas and
new approaches. International Journal of Applied Linguistics, vol. 17, no. 2. p. 250-254, 2007.
SHOHAMY, E. Language policy: hidden agendas and new approaches. London: Routledge,
2006.
WEIMER, M. Learner-centered teaching: five key changes to practice. San Francisco, CA:
Jossey-Bass, 2002.