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306-327, abril-junho/2019
PEDRO FANDIÑO *
CELIA LESSA KERSTENETZKY **,***
ABSTRACT: This essay reviews the Brazilian Constitutional paradox, the combination of
expansion of social rights cum regressive taxation, by tracing it back to the Constitution-
making process. This process shows the regressive feature of the Brazilian tax system, which
originates in the so-called 1988 Citizen Constitution, not to derive from the absence of a
thorough, technically consistent, proposal of progressive taxation. This reinforces the co-
gency of the political hypothesis: “social expenditure, no problem, provided the taxation is
not progressive”.
KEYWORDS: Brazilian 1988 Constitution; constitutional paradox; progressive taxation.
JEL Classification: P16; H29.
A Constituição Federal de 1988 (CF 1988) tem sido apontada como marco
normativo para o desenvolvimento das políticas sociais no Brasil recente. Esse
marco teria indicado caminhos para a consolidação de um estado do bem-estar
social cujos princípios se aproximam de ideais universalistas. Tem sido menos
notada, contudo, uma crítica inflexão: a partir de 1988, o sistema tributário brasi-
leiro passou a assumir caráter crescentemente regressivo (Gobetti & Orair, 2016;
Kerstenetzky, 2017). A Constituição teria impelido o Estado a assumir funções
abrangentes na garantia de direitos sociais e novos patamares de gastos, sem expli-
citamente ampará-los em arrecadação progressiva. Mais do que isso: criou meca-
nismos e formas de arrecadação que gradativamente viriam a comprometer a equi-
dade do sistema tributário, como evidenciaremos neste artigo.
Enquanto se aventa a hipótese de que a perda de progressividade pós-CF 1988
estaria a refletir uma mudança de convenção fiscal no mundo pós-anos 1980
(Gobetti & Orair, 2016), desse modo destacando a incidência de fatores exógenos,
neste trabalho exploramos a hipótese alternativa de um acordo subjacente à Cons-
tituição (sugerida em Kerstenetzky, 2017), hipótese por assim dizer endógena, se-
gundo a qual teriam sido amplamente acolhidas medidas favoráveis à expansão
dos gastos sociais desde que seu financiamento não incidisse progressivamente
sobre os mais ricos.
Tal hipótese é investigada de modo preliminar e indireto por meio da narração
de eventos e circunstâncias que envolveram questões de justiça fiscal, durante e
após o processo constituinte. Dois momentos são destacados: 1) o momento ante-
rior à promulgação da Constituição, quando foram apresentadas à Assembleia
Nacional Constituinte (ANC) propostas consistentes para a construção de um sis-
tema tributário progressivo; e 2) os anos seguintes à promulgação da Carta, período
em que foram regulamentadas decisões e introduzidas modificações que tornariam
o sistema tributário cada vez menos progressivo.
Para a análise do primeiro momento, nos deteremos na proposta de reforma
tributária, apresentada à ANC, por uma comissão de especialistas constituída com
o intuito de subsidiar as discussões da Comissão do Sistema Tributário, Orçamen-
to e Finanças. A proposta é analisada em detalhe no que respeita à tributação
progressiva. Ademais, reconstituímos sua tramitação na ANC, desde a apresentação
na referida Comissão até a fase final, na Comissão de Sistematização e posterior
votação em plenário, quando se encerram os trabalhos constituintes. No segundo
momento, documentamos as modificações sofridas pela tributação sobre a renda
e o patrimônio, a partir da promulgação da Constituição, que redundariam em
ulterior perda de progressividade no sistema tributário brasileiro.
Não se trata apenas de descrever os dois momentos, mas de propor uma inter-
pretação na linha de continuidade, antes que de ruptura. A perda de prestígio da
progressividade ao longo do processo constituinte resultou de um embate político
e este segue sendo relevante para entender a regressividade que caracteriza o siste-
ma tributário brasileiro até os dias de hoje. Um sistema peculiar, com baixo grau
1 Nesse período, o coeficiente de Gini declinou de 0,61 para 0,52 (Brito, Foguel & Kerstenetzky, 2017).
Novos trabalhos que utilizam, além de pesquisas domiciliares, dados de declarações tributárias,
retratando com maior precisão as rendas detidas pelo percentil superior, constatam que a desigualdade
permaneceu estável. Mesmo esses estudos, contudo, admitem significativa queda da desigualdade dos
rendimentos do trabalho no período (Medeiros & Souza, 2016; Medeiros, Souza & Castro, 2015A;
2015B, Morgan, 2017).
2Lukic (2017) afirma ser o ITR outra exceção. Contudo, ao examinarmos a forma da CF 1988 não
pudemos confirmar essa informação.
3 Segundo a qual a política redistributiva deveria ser exercida via gasto e não tributação, que distorceria
incentivos econômicos. Na verdade, tendências internacionais foram mobilizadas pelos dois lados do
debate, o pró-progressividade e o seu antípoda. A hipótese “exógena” poderia ser entendida de modo
complementar à hipótese política que sustentamos na medida em que se acredite que a formação dessa
convenção tributária internacional a partir da década de 1980 seja proveniente de interesses domésticos
nacionais. Alguns dos pesquisadores que defendiam maior progressividade no sistema tributário
brasileiro durante o processo da Constituinte parecem ter posteriormente aderido a essa convenção,
privilegiando a redução da desigualdade por meio do gasto, em detrimento da tributação. Agradecemos
a um parecerista anônimo por destacar essa perspectiva.
4Os trabalhos da Assembleia Constituinte foram organizados a partir de oito comissões temáticas e
uma Comissão de Sistematização. O debate que nos concerne envolvia a Comissão do Sistema Tributário,
Orçamento e Finanças, composta pelas subcomissões de Tributos, Participação e Distribuição das
Receitas; de Orçamento e Fiscalização Financeira; e do Sistema Financeiro (Lima et al., 2013).
5 As propostas da CRETAD foram reunidas nos documentos “Estudos para a Reforma Tributária”,
organizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Também ficaram conhecidas como
“propostas do IPEA” ou “Projeto IPEA”. Os estudos foram divididos em cinco tomos. O primeiro apresenta
as propostas (Rezende et al., 1987), e os demais as aprofundam em seguimentos: tributação de renda e
patrimônio (Giffoni & Villela, 1987); tributação de mercadorias e serviços (Varsano, 1987); contribuições
sociais (Rezende & Azeredo, 1987); e federalismo fiscal (Afonso & Lobo, 1987).
6 No período, grande parte dos rendimentos de capital sujeitos ao IR era tributada exclusivamente na
fonte, no lugar da tributação progressiva da declaração. Além disso, uma parcela significativa desses
rendimentos estava isenta de tributação (Rezende et al., 1987).
7 Em1984, os impostos sobre a propriedade representavam 0,4% do PIB no Brasil, mas 3% nos EUA,
4,7% no Reino Unido, 2,6% no Japão, 2% na França, e 1,8% na OCDE (Giffoni & Villela, 1987).
8A Constituição previa percentuais exatos do IR e do IPI que deveriam ser transferidos da União para
estados e municípios, por exemplo. Também há percentuais específicos para a descentralização da receita
de alguns impostos, como o ITR e o IPVA.
9 Justificando-se, Serra declarou na ocasião o seguinte: “Os tributaristas que nos assessoraram são
testemunhas do nosso empenho em procurar a saída pelo lado constitucional, mas viraríamos objeto
de curiosidade mundial se fixássemos na Constituição alíquotas de impostos muito detalhadas,
sistemáticas de cobrança, de abrangência etc.” (Finanças, 1988, p.137).
10 Art. 153, § 2, inc. I (Brasil, 2016).
13 Rezende e Afonso (1987) estimaram a queda da participação da arrecadação do governo federal para
36% (contra 45% na Constituição anterior), enquanto as participações de estados e municípios
passariam de 37% e 18% para 41% e 23%, respectivamente. Se atendidas as propostas da CRETAD,
a participação da União teria passado de 45% para 41%. Antes da Constituição de 1988, eram
transferidos cerca de 30% do IR e do IPI para estados e municípios (Rezende & Afonso, 1987). A
Constituição determinou que a transferência passasse a ser de 47% desses impostos.
14 Lei 7.713.
15 Até então, havia dez alíquotas, entre 5% e 50%, oriundas do Decreto-lei nº 2.356, de 1987. Com as
mudanças, as duas únicas alíquotas passaram a ser de 10% e 25% (Queiroz, 2004). Para a discussão
jurídica acerca da ideia de que a expressiva diminuição das alíquotas fere o princípio da progressividade,
ver Queiroz (2004).
16 Leis 8.134 e 8.981, respectivamente.
17 Lei9.249. A isenção fiscal dos dividendos é procedimento inusitado no cenário internacional. Entre
os 34 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Estônia é
o único a isentar os dividendos, como faz o Brasil. Como resultado, a parcela dos lucros arrecadada
pelo Estado sob a forma de tributos é muito mais alta nos outros países, 43,1% em média na OECD,
do que no Brasil, 34% (Gobetti & Orair, 2016).
18 Esses dados estão citados em Gobetti e Orair (2016); acessamos as fontes graças às indicações
fornecidas pelos autores.
19 Resoluçãonº 9, de 1992. No contexto internacional, essa alíquota pode ser considerada extremamente
baixa. EUA e Reino Unido, dois países de tradição de welfare state liberal, têm alíquotas de 40%
gravando heranças (Alvaredo et al., 2017).
20 Contudo, já nos anos seguintes à promulgação da carta constitucional, como parte da reação
conservadora à agenda reformista, parcelas das contribuições sociais foram se desvinculando da
seguridade social, “seja pelo não-cumprimento dos dispositivos constitucionais, seja pela retenção dos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
recursos no Tesouro Nacional [...]. O resultado é que a União passa a ser financiada pela seguridade e
não o contrário, como estabelece a Constituição” (Azeredo, 1990 apud Fagnani, 1997, p.223).
21 Enquanto a participação do IR, pessoas física e jurídica, na carga tributária passou de 15,5%, em
1990, para 17,3%, em 2014, o peso das contribuições sociais, excluídas as contribuições previdenciárias,
atingiu 27,1% em 2014, a partir de um patamar de 17,9% em 1990 (SRF, 1997; CETAD, 2017).
22 Parauma análise dos casos, refira-se a Lukic (2017); para a baixa seletividade do ICMS, refira-se a
Godoi (2017), que faz discussão detalhada desse aspecto.
23 A carga tributária brasileira foi de 33,4% do PIB em 2014. Impostos sobre renda e propriedade
corresponderam a 8,1%, e sobre bens e serviços, a 15,7% do PIB. A carga tributária de países da OCDE
é, em média, de 34% do PIB, sendo 13,1% oriundos de renda e propriedade, e 10,5%, de bens e serviços
(Gobetti & Orair, 2016).
24Rezende (2009) constata que, em relação à década de 1980, houve um grande aumento inicial da
arrecadação do ICMS, de 5,42% do PIB, em 1985, para 7,59%, em 1990, mas logo a participação foi
diminuindo, em decorrência do emprego de benefícios fiscais, permanecendo em cerca de 7% do PIB.
O resultado da Constituição, portanto, foi de recolocar o ICMS nos patamares de arrecadação das
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