Gestos Articulatórios X Afasia de Bloca: Monografia

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MONOGRAFIA

CEFAC – CURITIBA – 1999

BETINA S. MORESCHI ANTONIO

GESTOS ARTICULATÓRIOS X AFASIA DE BLOCA

INTRODUÇÃO

A afasia considerada uma “patologia de linguagem”, descreve-se aqui no âmbito

da motricidade oral, vindo estreitar as relações entre os distúrbios de linguagem e as

alterações da motricidade oral.

A espécie humana sofreu uma importante mudança no momento em que sua

musculatura foi posta sob controle operante. A partir daí a comunicação que antes

apresentava-se somente através de gritos de alerta, grunhidos e outras respostas inatas,

passou a traduzir-se como comportamento vocal operante ampliando a esfera de ação do

ambiente social.

Denomina-se gesto articulatório toda a movimentação de órgãos

fonoarticulatórios (OFA), que tenha por objetivo seja produzir um som modulado com ou

sem significado lingüístico.

A articulação dos sons foi dando origem a palavras com significados, e essas

palavras originando discursos. Intuitivamente, a fala humana pode ser decomposta em

gestos elementares (ou articulatórios), como os movimentos dos lábios , os movimentos

de língua, ou os movimentos do véu do palato para marcar a transição entre sons nasais e

não nasais. A cada um desses gestos articulatórios correspondem fenômenos acústicos

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diferentes, perceptíveis subjetivamente por um ouvinte, ou avaliados objetivamente

através de sua decomposição em partes com o auxílio de aparelhos.

Várias patologias podem alterar esse “processo fonológico”, estando entre elas a

afasia.

A afasia é uma desordem adquirida da comunicação, que tem por sintoma

preliminar uma inabilidade em expressar-se, entretanto, em alguns casos, a leitura e a

escrita e/ou a compreensão do discurso podem estar alterados.

Este estudo irá centrar-se em aspectos da atividade nervosa superior relevantes

para a produção da fala. A fim de apresentar e analisar um quadro de “Afasia de Broca”,

fez-se um acompanhamento longitudinal de um caso, esperando-se poder no final deste

trabalho ter esclarecido os seguintes aspectos:

1- Como ocorre a incapacidade de expressão na “Afasia de Broca”, apesar da

integridade dos órgãos e gestos articulatórios.

2- Qual o nível de comprometimento e quais as características apresentadas pela

linguagem ainda remanescente, na afasia avaliada.

3- Como acontece a reconstrução da sintaxe, nesta afasia, na interação com o outro.

A “Afasia de Broca”, pode ser também encontrada na literatura descrita como

agramatismo, por ser este o sintoma mais comum desta síndrome. As características

distintivas de agramatismo são tipicamente fala trabalhada (possivelmente devido ao

dano no controle motor adjacente à área de Broca que controla a mandíbula, língua,

lábios etc.) e uma falta de uso de gramática em produção de fala e compreensão, porém

nem todos os pacientes agramáticos para a fala apresentam compreensão agramática.

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DISCUSSÃO TEÓRICA

A interdisciplinaridade, vem mais uma vez desempenhar seu papel no sucesso do

trabalho científico. Os empréstimos teóricos da Lingüística, da Neurologia e da

Neurolingüística para a execução deste estudo, sem os quais não seria possível, traduzem

a importância da troca de conhecimentos teóricos entre áreas de ciências afins.

Para iniciar esta discussão teórica, faz-se necessária uma descrição das diferentes

classificações de apraxia , uma vez que um dos objetivos deste estudo está em

interrelacionar a apraxia motora oral (de OFA), com o nosso caso de afasia de Broca, isto

é, o gesto articulatório e sua relação com o sistema nervoso central

1- As apraxias e a apraxia motora de órgãos fonoarticulatórios

Ajuriaguerra e Hecaen (1964), Ajuriaguerra e Tissot (1969), Hecaen (1972) e

Barraquer-Bordas (1973), consideram a apraxia um transtorno da atividade gestual que

ocorre em um sujeito cujos sistemas responsáveis pela execução do ato motor estão

relativamente íntegros e sem déficit intelectual significativo.

Rodrigues (1992), analisa a definição clássica, concluindo que desta forma as

alças motoras segmentar e cortico-espino-cortical, e os circuitos auxiliares dos quais

participam os núcleos da base e cerebelo estão relativamente íntegros, como também que

o paciente tem plena consciência do ato a ser realizado, sem problemas gnósicos

(perceptuais), de atenção ou rebaixamento de inteligência significativos, ou seja, a

integridade dos sistemas motores e da atividade intelectual não deve ser pensada de

maneira absoluta.

A- Classificação das apraxias

As apraxias dividem-se classicamente em três tipos, citados por Ajuriaguerra e

Hecaen (1964).

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Apraxia ideatória, onde as seqüências motoras individuais estão preservadas,

enquanto o sistema do ato como um todo está prejudicado. Por exemplo, a situação que

refere o paciente C., com uma xícara e um prato de sopa em sua frente, quando vai por

leite na xícara põe no prato de sopa. Este, no entanto, é um ato que pode ser realizado

corretamente, de maneira espontânea , em um contexto mais natural.

Apraxia ideomotora,onde a dificuldade aparece na execução de gestos com valor

simbólico (como dar tchau, fazer o sinal da cruz, etc.).No entanto, não tem relação com

paralisia de membros, uma vez que pode imitar perfeitamente estes atos, o que o paciente

não consegue fazer é levar a idéia para o movimento, daí o nome apraxia ideomotora.

Apraxia melocinética, onde a dificuldade na atividade gestual decorre somente de

falta de habilidade na realização de movimentos finos. A velocidade e precisão da

movimentação do membro envolvido independe da complexidade do gesto realizado.

Esta apraxia é descrita como unilateral e contralateral ao hemisfério lesionado.

Rodrigues (1992), resume a apraxia ideatória correspondendo a dificuldades na

organização do plano geral do ato motor, a apraxia ideomotora decorrendo de distúrbios

na evocação de imagens motoras e a apraxia melocinética resultando da desconexão ou

inativação dos centros efetores.

Existem também, formas particulares , como apraxia para vestir-se, apraxia para

marcha e apraxia bucofacial.

Luria (1981), propôs uma classificação das apraxias relacionada com o papel dos

diferentes lobos do córtex cerebral. Apraxia motora, decorrente de lesões nas áreas

secundárias dos lobos frontal e parietal, esta seria subdividida em apraxia motora

eferente ( área 6 de Brodmann ), traduziria a dificuldade da passagem suave de um

elemento motor para outro, resultando num quadro denominado afasia motora eferente,

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equivalente a afasia de Broca. A outra subdivisão; seria a apraxia motora aferente,

decorrente de lesão na área secundária parietal, (área 5 e partes das áreas 7 e 40 de

Brodmann ), onde o paciente apresenta dificuldade na execução de movimentos

diferentes e perda da fineza e precisão, manifestada quer em membros superiores, quer

nos movimentos articulatórios.

O segundo tipo descrito por Luria (1981), denominado apraxia frontal,

decorrente de lesões nas áreas terciárias do lobo frontal, áreas pré-frontais, que

resultariam em dificuldades na programação do ato motor com relativa integridade de

seqüências motoras individuais.

Finalmente o terceiro tipo descrito pelo mesmo autor, designado como apraxia

construtiva, decorrente de lesões nas áreas de terciárias do córtex parieto-temporo-

occipital, que resultariam em dificuldades na integração das informações somestésicas,

vestibulares e visuais, prejudicando a realização de gestos ou construções no espaço

orientadas em relação a um sistema de coordenadas, por exemplo, montagem de cubos e

quebra-cabeças.

B- A questão das apraxias em OFA

Rodrigues (1992), descreve as apraxias de OFA como aquelas que prejudicam a

atividade da mímica facial, por exemplo, a imitação de gestos de lábios e língua, podendo

resultar em dificuldades articulatórias.

Jackson, descreveu a apraxia bucofacial ao analisar um de seus pacientes que não

conseguia lateralizar a língua, quando solicitado; no entanto não apresentava problema

algum em retirar migalhas de pão dos cantos da boca em condições usuais. Hecaen (1972

e 1981), classifica esta apraxia juntamente com as apraxias ideomotoras pela existência

de uma dissociação entre movimentos “voluntários” e outros realizados de forma

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“automática”. Ajuriaguerra e Tissot (1969), entretanto, afirmam que “a apraxia

bucofacial é mais intimamente ligada com a apraxia melocinética (motora) do que com a

ideomotora”. Estes autores mostram dois grupos diferentes de pacientes com apraxia

bucofacial: o primeiro grupo, constituído por pacientes que apresentam a dissociação

entre movimentos voluntários e automáticos, caracterizando uma forma de apraxia

ideomotora em OFA. O segundo, constituído por indivíduos que apresentam dificuldades

em toda a movimentação de OFA, caracterizando uma forma de apraxia motora de OFA.

A apraxia motora de OFA exclui, por um lado, as disartrias e, por outro,

deficiências intelectuais que interfiram no pensamento verbal, implicando formas mais

complexas de prejuízo da fala (afasias) ou déficits de inteligência propriamente ditos.

Luria (1981), relaciona as apraxias motoras de OFA, com as duas formas clínicas

de afasias motoras. A primeira, afasia motora eferente, equivalente à afasia de Broca

( relacionada com o estudo de caso em questão neste estudo), conseqüência de lesões na

área secundária frontal, área 6 de Brodmann (Fig. 1.4), em regiões vizinhas àquelas em

que estão situadas as colunas motoras dos OFA em MI, correspondentes à área de Broca.

Nessa situação, os distúrbios articulatórios ocorrem decorrentes das dificuldades na

passagem de um articulema para outro, acarretando perda na fluência da fala. A segunda,

chamada afasia motora aferente, decorrente de lesões na área secundária parietal, em

regiões vizinhas àquelas onde se dá a projeção somestésica primária das colunas

sensitivas dos OFA em SI, aparecem as dificuldades para realizar articulemas

semelhantes, acarretando confusão entre sons próximos. A característica fisiopatológica

fundamental destas duas formas clínicas de afasia seria a apraxia motora de OFA.

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C- “Perda de Função” X “ Redução de Eficiência”

Considerando o prejuízo fonêmico dentro do campo das afasias pode-se dizer que

há dois pontos de vista básicos. Um deles, considera que tais prejuízos decorrem de

lesões em sítios anatômicos determinados, ou seja, perda de funções adquiridas,

resultando em dificuldades de discriminação acústica dos segmentos fonéticos ou perda

da habilidade para seqüenciá-los. O outro ponto de vista, considera que tais prejuízos

decorrem, não da perda de uma dada função, mas de uma redução de eficiência de todo o

sistema.

Darley et al., a partir do ponto de vista de perda de função, propôs a existência de

uma entidade clínica, “a apraxia de fala”, que definiu como uma “desordem articulatória

resultante de prejuízo, devido a lesão cerebral, da capacidade de programar a posição da

musculatura da fala para a produção volitiva de fonemas e de seqüencializar os

movimentos musculares para a produção de palavras”. E complementa: “estes erros

complexos e variáveis não têm sua origem em prejuízo perceptual (afasia)” e “ocorrem na

ausência de fraqueza, lentidão ou incoordenação da musculatura da fala, que poderiam

significar prejuízo dos níveis inferiores do sistema motor da fala (disartria)”.(Johns e

Darley, 1970).

Martin (1974), refletindo o ponto de vista da redução de eficiência, impõe

objeções ao conceito de apraxia de fala, e argumenta que tal entidade clínica decorre de

distúrbios em processos lingüísticos, independentes de fatores periféricos.

As evidências que comprovam essa posição são de dois tipos: a regularidade dos

erros observados e o peso do fator semântico nesses mesmos erros.

Com respeito à regularidade, Johns e Darley (1970), afirmam que as

substituições consonantais observadas ocorriam ao acaso e não eram relacionadas com o

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alvo fonético. Entretanto, alguns estudos mostram o contrário. Trost e Canter (1974) e

Klich et al. (1979), avaliando a produção articulatória de pacientes com diagnóstico de

apraxia de fala, observaram que os erros eram sistemáticos, e as substituições geralmente

diferiam de um traço distintivo do fonema alvo. Observações feitas em pacientes afásicos

por Lécours e Lhermitte (1973), Blumstein (1973) e Martin e Rigrodsky (1974),

coincidem com os dados acima.

Para tais autores, isso significa que, apesar das diferenças propostas entre o

conceito de apraxia de fala e o das afasias, parece haver padrões fonológicos de

desintegração fonética que se manifestam de maneira semelhante, independentemente dos

sítios anatômicos lesados, refletindo uma redução de eficiência de todo o sistema.

Já o peso do fator semântico, Dunlop e Marquardt (1977), encontraram em

pacientes com diagnóstico de apraxia para fala uma correlação positiva entre o número de

erros articulatórios cometidos e o grau de abstração das palavras em questão, o que para

eles refere a existência de deficiências lingüísticas envolvidas. Martin e Rigrodsky

(1974), ao avaliarem a fala de pacientes afásicos, concluíram que o componente

semântico das palavras é importante na produção fonêmica, o que indica não haver uma

distinção entre os atos motores de fala e outros processos lingüísticos.

Rodrigues (1992), conclui que , desde o seu surgimento, o conceito de anartria,

modernizado como apraxia de fala, preocupou diversos autores, que, ao criar a vasta

sinonímia citada, mostram sua concordância, ou pelo menos sua preocupação com a

possibilidade de distúrbios no ato motor da fala ocorrerem como fenômenos distintos de

prejuízos nos processos lingüísticos, genericamente denominados afasias. Contrapõe

perda de função e redução de eficiência resumindo: em relação à perda de função, centra

idéia de que os distúrbios na produção fonêmica podem depender apenas de perturbações

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em fatores periféricos e processos não lingüísticos, como nos casos de apraxia de fala.

Em relação à redução de eficiência, está a idéia de que tais distúrbios refletem sempre

perturbações em fatores centrais e processos lingüísticos.

A segunda parte dessa discussão teórica, irá centrar-se nos processos lingüísticos

que estão alterados na síndrome estudada aqui, afasia de Broca, e como a linguagem do

paciente portador dessa síndrome se apresenta.

A comunicação representa a capacidade de transmissão de informação. Os seres

humanos transmitem informações de natureza diversa e através de diferentes sistemas.

Lecours e Cols (1979),definem a linguagem de uma forma suficientemente ampla

e adequada, da qual utilizar-se-á este estudo, considerando a interdisciplinaridade deste.

“ A linguagem é o resultado de uma atividade nervosa complexa, que permite a

comunicação interindividual de estados psíquicos, através da materialização de signos

multimodais que simbolizam estes estados, de acordo com uma convenção inerente a uma

comunidade Lingüística”.

2- “Linguagem X Afasia de Broca”

A- Uma rápida revisão histórica

Conforme conceitua Coudry (1988), “a afasia se caracteriza por alterações dos

processos lingüísticos de significação de origem articulatória no sistema nervoso central,

em zonas responsáveis pela linguagem, podendo ou não se associarem a alterações de

outros processos cognitivos”.

Essas alterações, são caracterizadas por redução e disfunção, que se manifestam

tanto no aspecto expressivo quanto receptivo da linguagem oral e escrita, embora em

diferentes graus em cada uma dessas modalidades, complementa Chapey (1996).

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A afasia sobre a qual iremos nos aprofundar e relacionar ao nosso paciente (aqui

identificado como C) é a Afasia de Broca, considerada de ordem motora ou de expressão.

É importante salientar que na literatura pode ser também encontrada como agramatismo,

por ser este o sintoma predominante desta afasia.

Gregolin-Guindaste (1996), resume o agramatismo como uma afasia específica,

que apresenta alterações nos aspectos gramaticais da linguagem, havendo limitação de

recursos sintáticos, os quais são responsáveis por outras alterações lingüísticas

decorrentes.

Coudry (1988), faz então sua reflexão teórica, considerando uma prática que se

dá com o sujeito e visa avaliação dos efeitos patológicos e a reconstituição da linguagem

desse sujeito, e rejeita concepções teóricas que, por razões metodológicas excluam, sejam

os aspectos históricos e sociais da linguagem, seja a atividade do sujeito na situação

efetiva da fala. É necessário, portanto, superar dicotomias como língua e fala, sistema e

uso, competência e performance, para integrar, em uma concepção abrangente de

linguagem, o seu funcionamento na dimensão contextual e social, em que os homens por

ela, atuam sobre os outros, na dimensão subjetiva em que eles se constituem como

sujeitos, na dimensão cognitiva em que, por ela, os homens atuam sobre o mundo

estruturando a realidade.

Este estudo, portanto, abandona o trabalho com a linguagem enquanto concebida

como código acabado (como em Saussure e Yakobson) e abarca uma linguagem sob a

concepção interacionista (como postulam Coudry e Franchi).

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B- A caracterização do agramatismo

Gregolin Guindaste e Coudry (1996), caracterizam o agramatismo

genericamente por um conjunto de fenômenos lingüísticos patológicos, de natureza

sintática e causado por lesão cerebral na área de Broca.

O sujeito acometido de agramatismo continua tendo conhecimento do mundo, tem

memória, faz inferências, tem consciência dos próprios problemas de linguagem e

compreende as sentenças. O que pode ocorrer é que uma apraxia oral grave ou moderada,

associada ao quadro afásico dificulta, a produção verbal. Além disso, é preciso considerar

o fato de que a apraxia oral é responsável pela desorganização da atividade simbólica,

relacionada à produção verbal.

Ao caracterizar-se o agramatismo, torna-se necessário explicitar o que o paciente

é capaz e o que ele não é capaz de compreender e/ou produzir.

A pesquisa iniciada por Coudry (1996), e os experimentos realizados conforme

relatado em Gregolin Guindaste (1996), permitem selecionar os seguintes fatos a

respeito do agramatismo

1. o agramatismo existe;

2. o agramatismo não constitui demência;

3. há características comuns nas diferentes línguas;

4. a diversidade dentro da categoria deve-se a graus de severidade diferentes;

5. o problema é sintático, não lexical, nem semântico, nem pragmático;

6. as relações temáticas estão preservadas;

7. a estrutura sintática básica da sentença (SVO) está preservada;

8. ocorrem problemas com flexões, concordância e preposições;

9. o conhecimento de mundo está preservado;

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10. a produção está mais afetada que a compreensão;

11. a linguagem é econômica;

12. inexistem subordinações;

13. a complexidade sintática ( em relação à hierarquia de categorias funcionais) é

a razão do bloqueio tanto para a produção como para compreensão.

ANÁLISE DE DADOS

Um Estudo de Caso

Com o objetivo de analisar e apresentar como ocorre a reconstrução da sintaxe,

na linguagem de um indivíduo acometido por afasia de Broca (agramatismo),através da

interação com o outro; fez-se um acompanhamento longitudinal do caso, iniciado em

setembro de 1998.

Trata-se do paciente C., um sujeito do sexo masculino, juiz de direito, trilingüe

(inglês, português e grego), atualmente com 63 anos de idade, portador de lesão cerebral

adquirida, causa AVC (acidente vascular cerebral), ocorrido em fevereiro de 1998.

C., tem boa compreensão dos fatos do mundo e lê, porém com dificuldade.

Os dados para este estudo de caso, foram obtidos em situações discursivas

envolvendo várias atividades enunciativas e diferentes configurações textuais (diálogos,

narrativas, etc. )

Para o levantamento dos dados, foi utilizado gravador, vídeo e filmadora. Entre as

fitas gravadas, foram selecionadas algumas passagens de C., para iniciar-se a elucidação

sobre o caso.

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Esta análise, primeiramente tratará dos dados levantados quanto a integridade de

OFA e sua relação com o gesto articulatório.

A avaliação feita em setembro de1998, das praxias motoras traduziu algumas

alterações. A maior queixa de C., era que não conseguia fazer a barba sem cortar-se, o

que ficou explicado após a avaliação, onde constatou-se a assimetria facial e

hipotonicidade muscular do lado direito do rosto.

Foi solicitado ao paciente C., a execução de movimentos práxicos de OFA (

elevar e abaixar a língua, levar a língua até as comissuras labiais, protruir e retrair os

lábios, elevar as sobrancelhas, piscar os olhos separadamente, encher as bochechas de ar

e estourá-las sem a ajuda das mãos, entre outros). O resultado obtido foi: o paciente é

capaz de executar todos os movimentos solicitados, porém com muita dificuldade,

demonstrando claramente já haver uma atrofia muscular como seqüela em OFA , assim

como uma assimetria destes mesmos órgãos.

Iniciou-se portanto um trabalho terapêutico de mobilidade e tonicidade de OFA,

onde o paciente deveria executar todos os dias, os seguintes exercícios:

1- Fazer cara de bravo, contar até 5 e relaxar (10 vezes).

2- Elevar as sobrancelhas, fazendo cara de assustado, contar até 5 e relaxar (10

vezes).

3- Franzir o nariz, fazendo cara de cheiro ruim, contar até 5 e relaxar (10 vezes)

4- Protruir os lábios, contar até 5 e relaxar (10vezes)

5- Retrair os lábios, contar até 5 e relaxar (10 vezes)

6- Estalar a língua, bem lento e ir aumentando a velocidade.

A mobilidade e tonicidade de OFA também foram trabalhadas com alguns

facilitadores ( guia de língua, espelho, vela para sopro), a fim de se conseguir o gesto

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articulatório voluntário sem a necessidade de apoio contextua. Esta ginástica articulatória

visava a automatização das posições dos distintos órgãos fonatórios.

A execução dos exercícios era observada durante as sessões de terapia e as

orientações eram feitas, assim como massagens orofaciais executadas pela terapeuta, para

contração e encurtamento de masseter e estímulo da sensibilidade.

A fala de C., apresentava-se lenta e trabalhada, mostrando maior dificuldade para

emissão dos fonemas linguodentais.

O trabalho fonêmico iniciou-se com a percepção das consoantes e seus traços

característicos: ponto, modo e tempo de articulação, sonoridade e nasalidade.

No final de quatro semanas, C., já começou a demonstrar sinais de melhora

quanto a motricidade oral, referiu que não cortava-se mais ao fazer a barba. Esta melhora

era nitidamente visível e, com uma nova avaliação da tonicidade e das praxias orais,

comprovou-se a melhora significativa de C., em relação à estes dados.

Concomitantemente, obteve-se uma melhora da inteligibilidade, velocidade e

rítmo da fala de C.

Apesar dos resultados positivos citados acima, estes são aspectos ainda

trabalhados no caso do referido paciente . Cabe aqui ressaltar, o importante vínculo

estabelecido entre terapeuta e paciente, fator este determinante no sucesso deste trabalho.

Para análise do discurso de C., serão utilizadas algumas passagens do paciente

que foram degravadas das fitas gravadas, durante as sessões de terapia.

Utilizaremos o episódio descrito abaixo como amostra dos dados no início do

acompanhamento.

(10/1998)

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C., tenta ler orações escritas no quadro, como por exemplo: “Faço omeletes com

ovos”.

C.: Fazer um omelete com ovos.

INV.: Fa (prompiting para faço).

C.: Fazer um omelete com ônibus.

INV.: Com?

C.: Ovo...ovo!

C.: Faço ôni... omelete com ovo.

INV.: Muito bem. Agora sim. Mais uma vez.

C.: Faço omelete com ovos!

INV.: Isso aí!

Os dados acima mostram o momento em que o paciente busca a reorganização da

categoria verbal desestruturada na flexão.

Investigador, escreve uma frase no quadro:

“ Faz cinco anos que não fumo um cigarro”. (exatamente o tempo que o paciente

está sem fumar).

C.: Faz um ano eu não tenho mais cigarro com...

INV.: Cigarro... tá... agora o senhor percebeu que alguma coisa está errada, não é?

C.: Faz cinco anos eu não tenho um...

INV.: Um cigarro!

C.: Faz cinco anos eu...

INV.: não... não...

C.: Não fumo mais cigarro.

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Notamos no dado acima que o paciente não fala QUE, conforme aponta Gregolin-

Guindaste (1996), a dificuldade com QU deve-se à falta de categorias funcionais

nessa síndrome.

Num outro episódio em que foi dado ao paciente um livro cujo título era Um

padre e um rapaz viajavam pelo mundo, foi pedido ao paciente que lesse o título na

capa.

C.: Um menino... e um rapaz dentro...

INV.: Um padre e um rapaz viajavam pelo mundo.

C.: E um rapaz... Um padre e um rapaz viajaram de trê...

INV.: De trem não! Eu não sei de quê eles foram.

Eles viajavam pelo ...

C.: Mundo.

INV.: Agora inteira.

C.: Um padre e um rapaz estava....num trem.

Nota-se no episódio acima que o paciente mantém a categoria semântica, (rapaz /

menino), procurando organizar a oração. Percebe-se que o paciente repete a estrutura e

chega a montá-la, mas depois de várias tentativas.

Cabe salientar alguns aspectos lingüísticos do discurso de C., que se fazem

importantes para nossa análise:

1- C., demonstra ter preservado aspectos mecanicistas da linguagem, relata e

questiona este fato quando canta o hino nacional ou faz uma oração. Como nos exemplos

abaixo:

(01/1999)

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(A) C.: “Ouviram do Ipiranga margens plácidas... heróico brado

deslumbrante... e o sol da liberdade em raios fú....nicos, brilhou no céu da pátria

neste instante. Se o senhor desta igualdade, conseguimos conquistar com braços

fortes. Em teu seio, oh liberdade, desafia o nosso peito a própria morte......”

(B) C.: “Pai nosso que estais no céu, de...nificado seja vosso nome, vem a nós o

vosso reino, seja feita a nossa vontade, assim na terra como no céu... o ...pão

nosso de cada dia dos dai hoje. Perdoai as nossas ofensas, assim como nós

perdoamos os ofendidos. *Seja feita... não nos deixai cair em tentação, mas

livrai-nos ... o ...amém.

*Observa-se o momento em que C., retoma o mecânico para terminar a oração.

2- C., apresenta uma preferência pela escrita, demonstrada quando o paciente

precisa expressar-se oralmente e tem dificuldade em estruturar a fala, então C., utiliza um

bloquinho que leva no bolso e escreve ou tenta escrever a palavra que não está

conseguindo dizer.

3- Outro dado interessante e que vem a questionar se C., é um paciente com afasia

de Broca pura, ou se possui outro tipo de afasia envolvido. C., apresenta anomia em

algumas situações, como no exemplo abaixo:

Com uma série de figuras sobre a mesa, o investigador solicita que C. emita o

nome das figuras, o paciente porém precisa sempre do ”prompiting”, para a emissão das

palavras.

(02/1999)

C.: (olha para a figura, não consegue falar o nome, já pega o bloquinho do bolso

e tenta escrever – “ moo / para mão” )

INV.: Assim não, quero que o senhor diga a palavra. Mã... (prompiting para mão)

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C.: Mão

INV.: Muito bem, agora a outra, a ... (prompiting para avião)

C.: Avião

INV.: Isso mesmo, a outra, ba... (prompiting para banheira)

C.: Banheira.

INV.: É isso aí, o senhor está craque!

4 – Finalmente o último dado relevante a ser citado aqui é a melhora de C., no

resgate da sentença.

O paciente mostra ter domínio da estrutura da sentença, com sujeito, verbo de

ligação e predicativo.

(03/1999)

C., deveria formar frases a partir de uma palavra, por exemplo:

INV.: padre

C.: O padre e... não é... O padre e... O padre e um batismo.

INV.: Isso mesmo!

C.: Um padre e um batismo.

INV.: Isso! Agora rapazes.

C.: Aqueles rapazes são jovens.

INV.: Isso!

Conforme ressalta Coudry (1988), no acompanhamento do sujeito afásico; por

um lado, importa interpretar seus “erros” e “faltas” como uma ruptura do componente

interacional e social onde as “formas” se constituem; por outro lado, importar em mais

reconstituir no sujeito afásico uma face interpessoal pela qual ele possa voltar a jogar o

jogo da linguagem, em que encontrará, senão o sistema da língua, os recursos alternativos

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que lhe permitam desempenhar seus múltiplos papéis. No caso C., são problemas

sintáticos à primeira vista que parece impedirem o pleno funcionamento da linguagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início deste trabalho esperou-se trabalha r com a reconstituição da linguagem

oral, do sujeito vítima de AVC., através de métodos convencionais de terapia , utilizando

testes padronizados, para a reabilitação da afasia de Broca.

Surgiu, portanto a primeira grande questão: Como poderia existir a incapacidade

de expressão nos pacientes acometidos pela síndrome citada acima, apesar da integridade

dos órgãos fonoarticulatórios do mesmo? Esta questão levou ao estudo das apraxias

motoras e principalmente das apraxias de OFA. O que mostrou ser a incapacidade de

expressão, provocada pela afasia de Broca, decorrente de uma apraxia motora de OFA,

onde estão excluídas as disartrias e as deficiências intelectuais que poderiam interferir no

pensamento verbal, caracterizando-se por uma incapacidade de expressão devido a lesão

na área secundária frontal , em regiões vizinhas aquelas em que estão situadas as colunas

motoras dos OFA em MI, acarretando, perda da fluência da fala.

Posteriormente a esta questão, surgiu uma nova indagação e consequentemente

uma nova área de pesquisa: O que acontece com a linguagem de um indivíduo afásico e

como esta linguagem se reconstrói, na interação com o outro.

Para poder responder esta questão, realizou-se um estudo de um caso; de um

senhor vítima de AVC.

Iniciou-se a pesquisa trabalhando o caso, através da leitura e da escrita. Percebeu-

se, porém, a ineficiência do trabalho, o que levou a desenvolver-se um trabalho de

reconstrução de linguagem contextualizada, isto é, com base na oralidade do discurso.

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Depois de mais ou menos cinco meses com o paciente C., percebeu-se uma

melhora na fala do paciente, porém, eram (e ainda são) observados os recursos

lingüísticos que o paciente, utilizava na tentativa de reconstrução da linguagem.

Observou-se, principalmente que C., recorria a fatores fonológicos, sintáticos e

semânticos na esperança desta reconstrução .

Portanto para concluir coloca-se a citação de Coudry (1994), onde fala:

“interessa-me privilegiar o sujeito, conferindo-lhe um lugar prioritário em relação à afasia

de que é portador. Não que me desinteresse pela teoria da afasia. Mas não se pode

escamotear o sujeito, fonte de origem dos dados, com quem vou construir o modo de

avaliá-lo e acompanhá-lo, em sua especificidade.”

E mais...“a reconstituição da linguagem nasceu, portanto, do encontro dos sujeitos

afásicos nos processos lingüísticos utilizados para produzir a significação em episódios

de interação pessoal e dialógica.”.

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