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ComCiência no.

109 Campinas 2009

ARTIGO

Orientações fonoaudiológicas

Lucia Figueiredo Mourão


e Elenir Fedosse

O fonoaudiólogo é o profissional da saúde dedicado aos diferentes aspectos da comunicação humana, a


saber: a linguagem verbal (fala e escrita) e os outros modos de comunicação/significação (gestos, língua de
sinais, comunicação alternativa/complementar). Além de se dedicar à comunicação, esse profissional atua na
melhoria das condições da alimentação (sucção, mastigação e deglutição) e da respiração.

Por isso, o fonoaudiólogo é um profissional capacitado para atuar na promoção da saúde. Promover saúde,
nessa área, inclui a prevenção, a avaliação e o tratamento (recuperação e proteção) da audição, da voz, da
linguagem oral (fala) e da escrita, das estruturas e das funções da boca e da face (funções miofuncionais)
relacionadas à alimentação – sucção, mastigação e deglutição.

O fonoaudiólogo atua em diversos lugares (hospitais, ambulatórios de especialidades/clínicas), com todas as


faixas etárias e com diferentes tipos de problemas de saúde.

As doenças neurológicas crônicas, tais como, os acidentes vasculares cerebrais – derrames (AVC
hemorrágicos) ou falta de sangue (AVC isquêmico) no cérebro – podem acarretar dificuldades relacionadas à
linguagem oral “fala”, linguagem escrita e/ou outras formas de comunicação/significação, voz/fala, e,
também, relacionadas à alimentação (sucção, mastigação, deglutição).

As dificuldades de linguagem decorrentes de lesões cerebrais são denominadas de afasias; há, também, as
chamadas apraxias (dificuldades de programação dos gestos e da fala). As alterações na produção e na
articulação da fala são identificadas como disartrias ou disartrofonias, e as dificuldades de alimentação
(principalmente de deglutição) são denominada de disfagias. Tais alterações serão abordadas a seguir,
destacando-se suas características (do ponto de vista da natureza da alteração) e as formas como elas podem
ser auxiliadas/melhoradas.

As afasias

São alterações da linguagem oral e/ou da escrita que decorrem de lesão cerebral

É importante lembrar que as dificuldades de uma pessoa afásica também ocorrem com pessoas não afásicas,
mas a grande diferença é que quando há afasia as dificuldades para falar, ler e escrever, e até usar gestos,
podem afetar de diversas maneiras a vida prática das pessoas.

Para facilitar a compreensão, usamos algumas situações que, às vezes, acontecem com pessoas que não
tenham sofrido um AVC (por isso não são entendidas como alterações – sinais de patologia). No caso da
pessoa com afasia, tais situações são mais comuns e mais intensas, fatos que dificultam a sua interação com
outras pessoas e também afetam os afazeres do dia a dia. Veja a seguir alguns exemplos:

- as palavras fogem; ficamos com a sensação de que ela está na ponta da língua, mas não conseguimos
pronunciá-las;

- a pronúncia das palavras não fica clara; podemos tropeçar nas palavras, repetir e/ou prolongar sílabas,
inverter a ordem delas, assim como podemos prolongar os sons. Isso resulta em uma fala diferente (como se
fosse uma fala com sotaque) e, tal fala, em muitos casos, é tida como motivo de “chacota”. A fala de uma
pessoa com afasia pode ser repleta de trocas de sons e de sílabas, o que dificulta a compreensão pelo
interlocutor. É importante dizer que o afásico, muitas vezes, percebe as suas dificuldades de fala e por isso
tende a se calar;

- a escrita e a leitura podem não ser tarefas fáceis (elaborar e entender a escrita são atividades complexas de
linguagem para qualquer pessoa). A pessoa com afasia pode conseguir ler silenciosamente, mas pode não
conseguir ler em voz alta; pode ler palavras isoladas, mas não textos;

- estamos conversando e perdemos o fio da meada; ficamos dando voltas sobre o mesmo assunto até
voltarmos ao que estava sendo dito. Quando há afasia, às vezes, a pessoa não percebe que a conversa desviou
e não consegue voltar ao assunto original;

- não entendemos parcial ou completamente o que estão nos dizendo, por diferentes motivos. No caso de
uma pessoa com afasia, as frases ditas pelos seus parceiros podem não ser interpretadas/reconhecidas como
palavras da língua até então falada por ele (é como se ele, depois do AVC, passasse a escutar uma língua
estrangeira).

Podemos citar também outras dificuldades que aparecem com maior frequência e não eram vivenciadas antes
do AVC:

- perda da iniciativa e da motivação, perda de interesse por atividades de trabalho e de lazer,

- dificuldades com tarefas, que antes eram executadas com facilidade,

- desorientação no tempo e no espaço;

- dificuldades para tomar decisões;

- dificuldade para lembrar nome de pessoas, lugares ou situações cotidianas vivenciadas.

É importante destacar o papel privilegiado que a linguagem tem em nossa sociedade, bem como a sua
importância na constituição da identidade do ser humano. Podemos imaginar o estigma que deve apresentar,
para um indivíduo, a perda que a afasia acarreta no exercício da linguagem, limitando-o em todas as relações
interpessoais e na sua autonomia. Nesse sentido, apresentamos, a seguir, algumas considerações que podem
auxiliar os interlocutores da pessoa com afasia – o(s) cuidador(es).

O primeiro aspecto a ser considerado é o de manter respeito e solidariedade nas interações com a pessoa
afásica. Devemos estimular a continuidade das atividades cotidianas, sempre que isso for possível;
necessitamos ter paciência e interesse em relação às novas formas que ele se apresenta para falar e se
comunicar. Convém usar novas estratégias que facilitem a compreensão do que lhe é dito, ou mesmo para
que entendamos melhor o que ele está dizendo. Portanto, com relação à comunicação, os cuidadores
(acompanhantes, enfermeiros, familiares e amigos) poderão ajudar o sujeito com afasia respeitando-o e
incentivando-o a usar formas alternativas de significação/comunicação – escolhidas por ele ou sugeridas
pelos seus interlocutores. Assim, será incentivada a fala, a escrita ou o gesto, mesmo que de forma diferente
da então usada pelo sujeito e/ou à esperada.

A fim de propiciar inter-relações mais positivas (efetivas), apresentam-se aqui algumas orientações que
favorecem sua relação intra-pessoal (dele com ele mesmo) e sua relação social (dele com os seus
interlocutores). Tais orientações pretendem favorecer a manutenção do sujeito afásico como pessoa com
potencial para continuar se comunicando:

- falar sempre de frente para a pessoa com afasia;

- respeitar suas opiniões e formas de expressão;

- respeitar seus limites para compreender o que é falado;

- evitar isolá-lo da conversa por achar que o assunto não poderá ser compreendido;

- procurar manter os hábitos sociais anteriores, na tentativa de impedir o isolamento e a diminuição da


autoconfiança da pessoa com afasia;
- estimular sua independência física;

- procurar ajudá-lo em suas dificuldades para iniciar a fala. O prompting (a primeira ou as primeiras sílabas
das palavras), muitas vezes, ajuda o sujeito afásico a falar;

- buscar a terapia fonoaudiológica o mais breve possível.

Disartrias ou disartrofonias

As disartrias ou disartrofonias, tecnicamente, representam o grupo de alterações da fala e da voz decorrentes


de alterações neurológicas. Nesse grupo, o sujeito compreende o que lhe é dito, consegue programar a fala
adequadamente, porém sua produção sai com dificuldade. Podemos observar essa dificuldade de diferentes
formas:

- fala “enrolada”, caracterizada pela falta de clareza na produção dos sons da fala, deixando-os distorcidos ou
ausentes;

- a velocidade da fala pode ser lenta demais ou rápida demais, resultando na dificuldade de compreensão e no
desinteresse, do interlocutor do sujeito disártico, pelo que é dito;

- a voz pode ser rouca, tensa, trêmula ou com muito escape de ar; pode, também, ser muito anasalada;

- o volume da voz pode ser forte demais ou fraco demais e com variações excessivas;

- a fala se apresenta sem modulação, monótona, o que interfere negativamente na expressão dos sentidos
pretendidos pelo sujeito com disartria. Por exemplo, pode acontecer de o sujeito ter dificuldade para
expressar emoções por meio da voz, assim como para fazer uma pergunta ou uma afirmação. Portanto, a fala
pode se apresentar incompreensível ou parcialmente compreensível.

As características acima descritas podem aparecer de forma isolada ou associada à afasia (por exemplo), o
que, muitas vezes, compromete a funcionalidade da comunicação, bem como da inserção social do sujeito.

As características da produção da fala estão vinculadas ao comprometimento neurológico subjacente,


podendo ser de caráter progressivo, agudo ou crônico. Por acreditarmos que a melhora da produção da voz e
fala só é possível se os sujeitos disártricos estiverem inseridos nos diferentes meios sociais, fazendo uso da
voz/fala, reforçamos o importante papel da manutenção das atividades sociais. O sujeito que estiver inserido
na sociedade terá mais situações comunicativas, que irão “dinamizar” o mecanismo da fala e voz.

Procurando favorecer o dinamismo acima, apresentamos algumas orientações:

- falar sempre de frente para a pessoa com disartria;

- definir o assunto a ser falado para facilitar a compreensão da opinião do sujeito;

- procurar fazer questionamentos que propiciem respostas únicas (o que facilita a compreensão do que o
sujeito disártrico diz);

- associar a produção oral às outras formas de expressão: gestos, desenhos, escrita expressões faciais, entre
outras; nunca usar apenas a mímica;

- manter ambiente calmo, sem muito barulho; por exemplo, desligar a televisão no momento da conversa.

- não completar frases ou palavras do sujeito disártrico, dar tempo para que ele responda ou pergunte;

- buscar a terapia fonoaudiológica.

Disfagias

Disfagia é o termo usado para designar alterações no processo da deglutição. As disfagias podem ter origem
mecânica, neurológica, psicogênica e, também, podem aparecer no envelhecimento. As dificuldades de
deglutição podem acarretar comprometimentos respiratórios/pulmonares, nutricionais, além de interferirem
negativamente no prazer e na socialização que a alimentação proporciona.

A deglutição pode estar comprometida, desde a introdução do alimento na boca, até a sua chegada ao
estômago.

O maior risco da disfagia é a presença de aspirações, que representam a entrada de alimento na via da
respiração. O sinal clínico observado é a presença de tosse, pigarro ou engasgos no momento da deglutição,
porém, algumas pessoas podem manifestar aspirações na ausência da tosse. As aspirações de alimentos
podem levar a obstrução da laringe, o que provoca sufocamento, bem como o desenvolvimento de
pneumonia aspirativa. Nesses casos, é necessária realização de exames instrumentais da deglutição, como,
por exemplo: a videoendoscopia da deglutição e/ou a videofluoroscopia.

Apresentamos a seguir outras características de alterações da deglutição:

- perda do alimento para fora da boca;

- dificuldade para iniciar a deglutição;

- dificuldade para mastigar;

- presença de restos de alimento na boca;

- demora para engolir;

- necessidade de auxiliar a alimentação com líquido;

- necessidade de introduzir o alimento na parte mais posterior da boca;

- engasgos para deglutir líquido e alimentos secos;

- necessidade de controlar o volume dos alimentos;

- sensação de alimento parado na garganta;

- tosse e pigarro constantes;

- febre alta.

Em virtude do risco de pneumonia, nos casos de dificuldade da deglutição, reforça-se a avaliação clínica e
instrumental detalhada para melhor definição das orientações. Porém, em linhas gerais, serão apresentadas
algumas orientações que podem facilitar a deglutição em alguns casos:

- comer em ambiente tranquilo, reduzindo-se ao máximo outros estímulos durante as refeições;

- garantir mais tempo para as refeições;

- fracionar a alimentação, oferecendo refeições menores e com maior frequência (7 ou 8 vezes/dia);

- auxiliar a introdução do alimento à boca, facilitando a captura de todo o alimento e o fechamento dos
lábios, quando a pessoa com disfagia não puder fazer sozinho;

- não oferecer nova colherada antes da outra ser completamente engolida;

- alimentos muito secos ou líquidos podem ter mais chance de provocar engasgos;

- evitar alimentos com pedaços, quando apresentar alteração da sensibilidade intra-oral e dificuldade para
mastigar;

- higienizar sempre a boca para melhorar o paladar e evitar infecções pela saliva contaminada;
- quando apresentar alterações de paladar, e de sensibilidade intraoral, oferecer alimentos contrastantes: frios
e quentes, mais temperados;

- limpar o interior da boca após a refeição, pois, restos de alimentos podem ser aspirados quando a pessoa se
deitar;

- nunca dar alimentos ou medicação com a pessoa deitada, nem mesmo um gole de água – umidecer a boca
com gaze embebida em água, nos casos de boca seca e dificuldade para deglutir líquido;

- buscar a terapia fonoaudiológica o mais breve possível.

Neste texto (de divulgação), procuramos apresentar para um público mais amplo as dificuldades mais
comuns decorrentes de acidentes vasculares cerebrais – as afasias, as disartrofonias e as disfagias
(obviamente que existem outras) –, no entanto, consideramos que as informações e orientações aqui
sugeridas possam ser usadas pelos cuidadores em geral.

Ressaltamos que, apesar das dificuldades – dos sujeitos acometidos por uma lesão cerebral – e, também, dos
cuidadores no dia a dia (rotina estressante com muitos afazeres etc.), temos sempre que nos lembrar da
pessoa que está por trás de um corpo modificado pela lesão cerebral. Cuidar, nessas condições, exige dos
cuidadores responsabilidades que, muitas vezes, precisam ser partilhadas com outros, uma vez que as
dificuldades aqui tratadas podem ser caracterizadas como crônicas (persistentes), fato que não dispensa
cuidados especializados – acompanhamento cardiológico, neurológico, fonoaudiológico, entre outros.

Lucia Mourão, fonoaudióloga do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel O. S.
Porto” (Cepre), da Unicamp. E-mail: lumourao@fcm.unicmap.br. Elenir Fedosse, fonoaudióloga. E-mail:
efedosse@gmail.com

Literatura recomendada

- Morato, Edwiges Maria et al (Org.). Sobre as afasias e os afásicos – subsídios teóricos e práticos
elaborados pelo centro de convivência de afásicos. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
www.unicamp.br/iel/labonecca

- Dias, Erneta Lopes Ferreira; Wanderley, Jamiro da Silva; Mendes, Roberto Teixeira (Org.). Orientações
para cuidadores informais na assistência domiciliar. Campinas: Editora Unicamp, 2005.

- Botega, Marilda Baggio Serrano; Fedosse, Elenir; Flosi, Luciana Claudia Leite. Fonoaudiologia e
cuidadores: contribuições para o dia a dia do cuidado em saúde. No prelo.

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