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Texto para Discussão - RedeSist

Desenvolvimento, Inovação e Território

TD DIT - Nº 01/2020
A Covid-19 e seus impactos tous azimuts.
Mas não é uma guerra, é uma pandemia brutal.

Jair do Amaral Filho

Rio de Janeiro
setembro de 2020

www.redesist.ie.ufrj.br
A Covid-19 e seus impactos tous azimuts.
Mas não é uma guerra, é uma pandemia brutal 1

Jair do Amaral Filho


Doutor em Economia e Professor Titular do DTE-FEAAC e Professor Permanente
Pesquisador do CAEN da Universidade Federal do Ceará – UFC

jairdoamaralfilho.ecn.br

amarelojair@gmail.com

Fortaleza, 19/09/2020

1Este ensaio teve sua primeira versão em 20/05/2020, e a segunda em 16/08/2020. Esta terceira versão pôde
contar com contribuições vindas por meio de feedbacks de algumas pessoas que tiveram a gentileza de ler a
primeira versão e emitir observações que me fizeram melhorar a percepção do fenômeno em discussão. Por
essas contribuições, agradeço a Maria Cristina P. de Melo (UFC); Helena Maria Martins Lastres (RedeSist); Fred
Katz (UFPE); Yves-A. Fauré (Université de Bordeaux, Fr) Hamilton de Moura Ferreira Júnior (UFBA); Antônio
Márcio Buainain (Unicamp); Octaviano Canuto (World Bank). Os créditos pelas fotografias devem-se a
@amaralfilho.
Sumário
1 - Impactos tous azimuts............................................................................................ 3

2 - Seria uma guerra ? .................................................................................................. 8

3 -Guerra é guerra, pandemia é pandemia ............................................................. 13

4 - Apesar de tudo, um aspecto comum ................................................................. 20

5 - Descivilização e o mundo pré-pandemia .......................................................... 24

6 - Na esperança de um “novo normal do bem”. Um “novo” Estado? ............. 37

2
1 - Impactos tous azimuts
Inacreditável !!! Uma clássica metáfora oferecida pela teoria matemática do Caos
praticamente se realizou em nível planetário em pleno primeiro quarto do século XXI, qual
seja, o “efeito borboleta”, segundo o qual, em um sistema integrado apresentando pontos
críticos sensíveis, bastaria uma borboleta bater suas asas na China para provocar abalos e
quedas de prédios situados em Nova York.2 Dado o elevado grau de integração das relações
dentro do sistema global, cujos países e economias apresentam dependência sensível em
relação à economia chinesa, pode-se dizer que a família dos coronavírus (...Sars; Mers e Sars-
Cov-2) chamou para si a missão de executar tal metáfora, ao lançar sua versão 2019.

Após o primeiro caso de contágio ter sido notificado num certo território chinês (Wuhan), no
final do segundo semestre do ano passado, em poucos meses o novo coronavírus se espalhou
pelo mundo (Ásia, Europa, Américas, Oceania, África) causando impactos contundentes tous
azimuts (....desenfreadamente, em todos os sentidos), ou seja, sobre a saúde individual e
coletiva, a economia, sobre a política e os valores estabelecidos. Em 30/01/2020 a
Organização Mundial da Saúde – OMS declarou estado de emergência de saúde pública, e
em 11/03/2020 a mesma organização decretou estado de “pandemia” provocada pela Covid-
19.

Desde então, o vírus demonstrou elevada capacidade de propagação, em vista da velocidade


na transmissão, e um grau brutal de violência e letalidade expressado em seu modus operandi
ao infectar e se desenvolver nas pessoas - daí o grande número de mortes registrado no
mundo, e no Brasil em particular - como também provocou alarmantes impactos dirigidos
à infraestrutura e ao capital humano empregados nos sistemas nacionais de atenção à saúde,

2 O uso dessa metáfora neste ensaio não é gratuito, pois, o que ocorreu no fenômeno em foco se adequa
razoavelmente à definição acidentalmente alcançada pelo meteorologista-matemático Edward Lorenz em suas
pesquisas com modelos de previsão das condições meteorológicas. Ao rodar seus modelos de sistemas
complexos dinâmicos percebeu que a introdução de pequenas mudanças em suas variáveis provocava impactos
grandiosos sobre os padrões comportamentais dos sistemas, caracterizados como desordens ou resultados
caóticos. Tais reações dependiam das condições iniciais estabelecidas, do grau de interdependência verificado
entre as variáveis do sistema e do grau de dependência e sensibilidade dessas variáveis em relação às condições
iniciais. Tal desencadeamento foi chamado de “efeito borboleta”. Ver, por exemplo, GLEICK, James, Chaos, The
Viking Press, NY, 1987.
3
levados ao estresse, e, na sequência, sobre sistemas econômicos e sociais, impondo
desorganização e retração econômicas e desemprego em massa.

Tudo isso aconteceu de maneira quase simultânea, em todos os países, dando a impressão
de existirem cérebros e mãos invisíveis desenhando, planejando, coordenando e executando
ações a favor do novo coronavírus. Bem entendido, de maneira quase simultânea, pois, no
momento (16/08/2020) em que o mundo alcançava vinte e dois milhões de pessoas
infectadas e oitocentos mil mortos pelo novo coronavírus, tendo EUA e Brasil na liderança
desses números, a cidade de Wuhan, capital da província chinesa de Hubei e epicentro
original mundial da Covid-19, assistiu à realização de uma grande festa de música eletrônica
(Wuhan pool party) no Maya Water Park, com a presença de milhares de jovens dispensando o
uso de máscaras. Este fato ocorreu depois de a cidade de Wuhan ter passado setenta e seis
dias em quarentena rigorosa, entre janeiro e abril de 2020.

Para se ter uma ideia da dimensão mundial da pandemia, a Worldometer – Covid 19


Coronavirus Pandemic (www.worldometers.info) tem acompanhado desde o início do
fenômeno a situação diária dos países afetados, hoje em número de 215, informando sobre
pessoas infectadas e óbitos, além de outros indicadores. Nesta data (19/09/2020), o referido
site contabilizava, para todo o mundo, totais de 30.975.784 de pessoas infectadas, 960.863 de

4
pessoas mortas pela Covid-19, e 22.576.830 recuperadas. Dentro desse quadro, os três países
mais afetados pela doença são os EUA, com 6.967.403 casos de infecção e 203.824 mortos, a
Índia com 5.398.230 de pessoas infectadas e 86.774 mortas, e o Brasil com 4.528.347 infectadas
e 136.565 mortas.3

Independente das fronteiras, a Covid-19 aproveitou-se da globalização e desafiou


autoridades e economias nacionais de países ricos e pobres, e seus sistemas de saúde e de
inovação científica e tecnológica, e, ainda, causou uma paralisia econômica global, sistêmica
e confusa até então inédita na história.4 Ao se propagar, causando impactos mitigatórios
sobre a circulação e interação de pessoas e agentes econômicos, a produção das empresas
bem como o funcionamento dos sistemas de transportes coletivos nacionais e internacionais,
o novo coronavírus desestruturou os dois pilares essenciais do mercado (oferta e demanda)
em escala global, desconstruiu seus fundamentos, desorganizou cadeias de valor e de
fornecimento e abalou contratos vigentes. Como efeitos, eliminou momentaneamente
milhões de empregos, pulverizou rendimentos e aniquilou o consumo das famílias.

Colocando luz sobre os impactos nos epicentros econômicos do Ocidente, as quedas dos
Produtos Internos Brutos na Zona do Euro e na União Europeia alcançaram -11,8% e -11,4%,
respectivamente, no segundo trimestre (abril-junho) em relação ao primeiro trimestre do
corrente ano (Eurostat/https://ec.europa.eu/eurostat). A economia americana, por seu
lado, apresentou taxa de crescimento negativa de -9,5% no segundo trimestre do ano (em
relação ao primeiro trimestre) e taxa negativa de -31,7%, entre julho de 2019 e julho de 2020
(Bureau of Economic Analysis/US.Department of Commerce).

Quanto ao Brasil, o desempenho do seu produto interno, no segundo trimestre de 2020, foi
negativo de -9,7%, ante o primeiro trimestre do mesmo ano (cf. o Indicador Atividade

3Oportuno observar que esses dados são provisórios e evolutivos e, quanto à sua precisão, é necessário não
esquecer das diferentes metodologias utilizadas pelos setores sanitários dos países além do aspecto das
subnotificações dos casos em todo o mundo (números de pessoas infectadas e de óbitos).
4De modo algum estão sendo minimizadas outras pandemias ocorridas no mundo em vários momentos da
história humana. Aqui, podem ser citadas a Peste Negra (1333-1351), que deixou mais de 100 milhões de mortos;
Gripe Espanhola (1918-1919); Gripe Asiática (1957-1958); Gripe de Hong Kong (1968-1969); Sars (2002-2003);
H1N1 (2009-2010); Ebola (2014-2016); HIV (1981-presente). Todas elas tiveram impactos importantes sobre
vidas humanas e sistemas econômicos. No entanto, nesta pandemia da Covid-19, tendo em vista o mundo
apresentar elevado grau de urbanização, ou aglomeração humana, forte integração econômica além da
sofisticação e integração dos sistemas de comunicações, os impactos têm sido impressionantes.
5
Econômica-IAE da FGV-RJ). Em contrapartida, o desemprego neste último país atingiu taxa
de 14,3% na última semana de agosto (cf. IBGE). Esses impactos reclamaram, e continuam a
reclamar, dos Estados e governos nacionais respostas em grande escala aportando programas
de emergência e estímulos em direção dos setores da saúde e da economia.

Oportuno observar que os chamados choques “exógenos” provocados pela pandemia


aconteceram em momento no qual essas economias registravam acúmulo de baixas taxas de
crescimento econômico e apresentavam curto espaço fiscal e poucas ferramentas monetárias
de estímulos disponíveis aos Bancos Centrais, o que provoca uma combinação desastrosa
para as estratégias de relance do crescimento após a pandemia. Economias europeias,
americana e, também, japonesa têm demonstrado cansaço das suas máquinas de crescimento,
situação que tem produzido um quadro de “estagnação secular” devido à persistência das
baixas taxas de crescimento por um longo período.5

Economistas e historiadores econômicos têm associado esse problema à instalação de


obstáculos estruturais ligados ao envelhecimento da população (obstáculo demográfico) e
falhas no sistema educacional com repercussões negativas na formação de capital humano.6
Um obstáculo adicional pode ser reconhecido nas desigualdades de renda (e sociais) que
interferem na composição e na dinâmica da demanda efetiva, como também na poupança.

No âmbito das economias desenvolvidas, um aspecto específico e estrutural que já


preocupava antes do aparecimento da Covid-19 era o lento crescimento da produtividade do
trabalho, cujas taxas ainda não tinham conseguido recuperar o nível do período pré-crise de
2008-2009, apesar do avanço geral do progresso tecnológico. A título de ilustração, segundo
dados da Organisation for Economic Cooperation and Development – OECD,7 o conjunto
das economias pertencentes a essa organização, e/ou as economias específicas da Área do
Euro como também da Comunidade Econômica Europeia apresentaram no período entre

5Conceito originalmente associado a Alvin Hansen e, posteriormente, a Larry Summers. Para um contato com
o tema recomenda-se ler BOCKHOUSE, Roger E. & BOIANOVSKY, Mauro, Secular Stagnation: the history of a
Macroecomic Heresy, Blanqui Lecture (Meetings of the European
Society for the History of Economic Thought, Rome), 14 May 2015
6Para uma análise estrutural de longo prazo, para o caso americano, ver, por exemplo, GORDON, Robert J.,
The rise and fall of american growth, Princeton University Press, 2017.
7ORGANISATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT-OECD, OECD Compendium of
Productivity Indicators, 2019, OECD, 2019.
6
2014-2018 taxas percentuais de crescimento da produtividade do trabalho (por hora
trabalhada) inferiores às do período compreendido entre 2000-2005, momento que precedeu
a grande crise financeira-econômica de 2008-2009. Tal situação também se apresentou para
economias desenvolvidas vistas individualmente como Canadá, França, Alemanha, Itália,
Japão, Reino Unido e Estados Unidos, sendo a Itália o caso mais preocupante. Com esse
quadro, muito provavelmente, as sociedades e os governos dessas economias terão que ir
muito além da utilização pura e simples do arsenal keynesiano convencional de estímulos ao
crescimento econômico (via consumo das famílias e gastos do governo), o que significa dizer
que deverão criar novas e inovadoras plataformas de geração e distribuição de riqueza, a fim
de mexer profundamente com as estruturas produtivas para garantir um crescimento
duradouro.

Importante ressaltar que, apesar desse quadro sombrio aparecer para as economias da
Europa, EUA e Japão, durante o segundo trimestre do corrente ano, o quadro é diferente e
mais animador para as economias da China e outras duas sob sua influência, isto é, Hong
Kong e Taiwan, que apresentaram taxas de crescimento de +11,5%, -0,1% e +1,4%,
respectivamente (cf. Austin Ranting), no período abril – junho de 2020.. Isso indica existirem
heterogeneidade e dessincronização dos impactos econômicos causados pela Covid-19 no
conjunto das economias nacionais, em função da diferença temporal da propagação da
pandemia, mas também por causa do diferencial que se manifestou entre as capacidades dos
governos na condução da gestão da crise sanitária. Todos esses indícios permitem supor que
estas últimas economias poderão superar a crise econômica atual com mais “facilidade”, mas,
dado que são economias exportadoras, terão que “esperar” a retomada das economias que
apresentam hoje problemas mais sérios de crescimento.

7
2 - Seria uma guerra ?
Diante dessa força súbita e impactante do vírus, chefes de governos, estrategistas,
economistas, e até médicos mundo afora tenderam a comparar esse fenômeno pandêmico
àqueles marcados por grandes guerras mundiais e regionais, mesmo que estas tivessem sido
protagonizadas por exércitos de inimigos visíveis, orientados por estratégias geopolíticas
precisas e planejadas voltadas para conquistas territoriais.8 No entanto, a pandemia que o
mundo inteiro (ainda) tem vivido foi provocada por um vírus biológico invisível ao olho nu,
desprovido de razão e intenção planejada, sem armas convencionais nem ambições
geopolíticas.

Tal comparação, calcada em uma retórica bélica,9 dá grande margem para ser interpretada
como um embuste, por duas razões:

(i) primeira, uma guerra convencional de grandes proporções deixa um rastro


assombroso de destruição sobre o estoque de capital físico (infraestrutura e
estruturas produtivas e de serviços). Em contraposição, os “ataques” desferidos
pelo novo coronavírus tem mantido intactos os estoques de capital físico das
economias nacionais. Ao mesmo tempo, não tem poupado seres humanos cuja
destruição, embora relativamente seletiva, tem sido alarmante diante do
progresso e dos recursos científicos e tecnológicos alcançados e acumulados pelo
homem moderno;10

8O presidente da França Emmanuel Macron, dirigindo-se à população francesa, no dia 16/03/2020, disse “nous
sommes en guerre” (nós estamos em guerra), falando sobre a pandemia da Covid-19. Por sua vez, Donald
Trump, presidente dos EUA, no mês de março último invocou o “Defense Production Act of 1950”, do período
da Guerra da Coréia, para pressionar a empresa General Motors a acelerar a produção de respiradores. O
presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em 20/05/2020, utilizou sua rede social para passar orientação ao
Ministério da Saúde no sentido de incluir a cloroquina nos protocolos de tratamentos leves contra a Covid-19.
O texto da sua mensagem dizia “Ainda não existe comprovação científica, mas (está) sendo monitorada e usada
no Brasil e no mundo, contudo, estamos em guerra: pior do que ser derrotado é a vergonha de não ter lutado”.
9Esse tipo de retórica, ou de “metáfora militar”, emergiu e circulou em várias partes do mundo, principalmente
no início da pandemia, como já foi mencionado anteriormente.
10Pesquisas têm mostrado que as principais vítimas fatais do novo coronavírus têm sido pessoas com idade
acima de 60 anos e/ou pessoas portadoras de duas ou mais doenças simultaneamente (comorbidade),
normalmente hipertensão e diabetes, podendo ser combinadas com obesidade; e com frequência vivendo em
condições socioeconômicas precárias. Entretanto, pessoas jovens não têm sido poupadas, embora em pequeno
percentual. Mais detalhe sobre essas incidências, para o caso brasileiro, ver SOUZA, Willian Marciel de & BUSS,
Lewis Fletcher et al., “Epidemiological and clinical characteristics of the Covid-19 epidemic in Brazil”, Nature
Human Behaviour, (www.nature.com/nathumbehav), august/2020.
8
(ii) segunda razão, de acordo com registros históricos, uma grande guerra
convencional, ao seu término, é seguida de intensas discussões e negociações com
o objetivo de eleger os responsáveis pelos pagamentos das reparações, ou seja,
identificar os agressores originais e entregar a eles a conta a ser paga.

É comum que, em decorrência de ações e consequências danosas, imputações e penalidades


sejam aplicadas aos responsáveis por esses atos. Trata-se de uma lei moral universal. Assim
foi no Congresso de Viena, entre 1814 e 1815 (após as guerras napoleônicas), no Tratado de
Versailles em Paris e na Comissão de Reparações, entre 1919 e 1921 (depois da primeira
guerra mundial) e nos acordos de Bretton Woods, em 1944, e na Conferência de Yalta (ou
Criméia) em 1945 (em decorrência da segunda guerra mundial).

Na pandemia da Covid-19, na qual quase todos os países praticamente foram implicados e


obrigados a reagir com isolamentos sociais, socorros e estímulos fiscal-financeiros
gigantescos aos sistemas locais de saúde, como também às empresas e trabalhadores,
pergunta-se: neste caso, a quem reclamar pela responsabilidade do pagamento das
reparações, isto é, os altos custos gerados pelas medidas tomadas para mitigar os danos
sanitários, humanitários e econômicos correntes e ainda reerguer mais na frente as atividades
econômicas e os empregos ?

....o novo coronavírus não possui livre arbítrio....

Neste caso, deve-se reclamar ao novo coronavírus e sua família? Evidentemente que não, e
nem faz sentido, já que o vírus não é moralmente responsável pelos seus atos, isto é, não
possui livre-arbítrio. Muito embora, se algum processo ou tribunal fosse montado com o
objetivo de investigá-lo e julgá-lo isso não seria algo inédito na história humana, já que
julgamentos de animais foram relativamente comuns no período da Idade Média na Europa,

9
especialmente França,11 atendendo à visão cósmica de que animais deveriam permanecer em
suas posições naturais e não invadir espaços alheios, causando danos.

A bem da verdade, o sistema moral dessa época, aliás, influenciado pela igreja católica, não
se aplicava, em forma de penalidade, aos microrganismos patógenos, os quais, sendo
invisíveis, eram encarados como sendo portadores de punições coletivas enviados por forças
divinas. Na falta, ainda, do microscópio, descoberto somente no século XVII, dizia-se que
algo estava “no ar”.

Mas, a depender das investigações científicas em curso, já em nível da Organização Mundial


da Saúde – OMS, poderia se chegar à conclusão de que o vírus teve origem artificial e não
natural. Assim, em função dos resultados dessas pesquisas, poderia se eleger um culpado ou
responsável pelo pagamento das reparações.

Não por acaso, o presidente Donald Trump, e seu Secretário de Estado Mike Pompeo, se
apegaram à tese do “vírus artificial” e, mais do que isso, afirmaram, sem aliás apresentar

11Nessa época costumava-se julgar e, na maioria das vezes, condenar à morte (quase sempre pela forca) animais
que causavam danos aos seres humanos ou aos bens pertencentes às pessoas. Ver KADRI, Sadakat, The Trial, a
history from Socrates to O. J. Simpson, HarperCollins, 2005.
10
provas, que o novo coronavírus havia sido produzido dentro de algum centro de pesquisa
chinês. Como se sabe, na contramão dessa tese há uma quantidade grande de cientistas
afirmando que o novo coronavírus teve origem natural (animal). Como afirmou a
pesquisadora Ilaria Capua, da Universidade da Flórida, “o vírus é natural; a pandemia é
humana”, para dizer que apesar de o vírus ter sua origem no mundo animal, a pandemia é
causada pelo ser humano deste século, tendo em vista seu modo de vida (morando em
grandes aglomerações e tendo grande mobilidade por meio de viagens aéreas, etc.).12

No que concerne a Organização Mundial da Saúde – OMS, sua convicção é de que o novo
coronavírus teve origem animal, restando a dúvida sobre o animal que permitiu a
intermediação da transmissão, do morcego para o homem.

Em resposta à posição da Casa Branca (US), Maria Van Kerkhove, chefe do Departamento de
Doenças Emergentes da OMS, disse em entrevista coletiva em 04/05/2020 o seguinte: “(o
vírus..) “circula de forma ancestral entre morcegos. Isto é algo que sabemos, com base na
sequência genética desse vírus. O que precisamos saber é qual animal atuou como
intermediário, ou seja, qual (animal) foi infectado pelos morcegos, e que transmitiu para o
homem".13

Enfim, se o vírus partiu de uma determinada cadeia de interação estabelecida entre animais
silvestres (que fazem parte de hábitos alimentares humanos) ou de certo “animal cobaia” que
tenha se livrado de algum laboratório de testes de origem chinesa, ou mesmo se o vírus tenha
escapado de alguma plataforma de pesquisa, mesmo que involuntariamente, isso
dificilmente será esclarecido. Isto dito, o problema que permanece sem solução é de natureza
metafísica, ou seja, é o mal estar mundial gerado pela (falta de) responsabilidade pela
tragédia vivida pela humanidade, em função da Covid-19 e de todos seus efeitos colaterais.

Isso implica em dizer que sentimentos coletivos de desamparo, de medo (“do poder superior
do destino”), fobia, impotência e de frustração se desenvolveram nas pessoas diante dos

12 Ver sua entrevista para a Revista Fapesp, em maio de 2020.


13Aliás, no mês de agosto deste ano uma equipe de cientistas da OMS se deslocou até a China com o objetivo
de interagir com colegas chineses na tentativa de buscar uma resposta para a dúvida lançada por em torno
desse ponto.
11
eventos. Se, de um lado, essas circunstâncias abriram espaço para teorias da conspiração, de
outro, elas provocaram aumento das responsabilidades aos cientistas e órgãos de imprensa
preocupados com informações corretas e de qualidade.

Nesse contexto, autoridades governamentais e outras nem tão governamentais continuaram


a insistir, especialmente no momento crítico da pandemia, em usar como pretexto narrativo
a evidência simbólica da “guerra”, para justificar ou legitimar a execução de ações
mitigatórias de emergência para absorver os impactos humanitários e econômicos causados
pela pandemia e promover o isolamento social (quarentena, lockdow), além de planos de
recuperação “pós-guerra”, do tipo Plano Marshall, acompanhados de engenhosos
“orçamentos de guerra”.

Não há dúvida de que ações contundentes envolvendo enormes custos aos governos,
sociedades e economias foram e continuam sendo necessárias para enfrentar os desafios da
pandemia, todavia, abordagens beligerantes alimentaram oposições ao isolamento social,
quando confrontado aos interesses sensíveis ou direitos civis estabelecidos, mas também
quando métodos de combate à pandemia foram e estão sendo militarizados, além de encobrir
medidas oficiais de cunho autoritário, e falta de transparência sobre as ações e as
informações.

12
3 -Guerra é guerra, pandemia é pandemia
Em decorrência das dúvidas e controvérsias em torno dessa questão, reivindica-se aqui um
conceito próprio ao fenômeno instalado desde o início de 2020, e que seja capaz de definir e
compreender a pandemia causada pela Covid-19 em toda sua extensão e profundidade;
tendo em vista seus impactos globais, violentos e brutais sobre as sociedades, pessoas e suas
economias.

Seguramente, a natureza, a dinâmica e os impactos dessa pandemia são diferentes daqueles


apresentados e causados por guerras convencionais.14

Por ora, pode-se dizer que a diferença fundamental entre ambas está no fato de que no
cenário de uma guerra convencional as pessoas podem estar dispostas a entregar suas vidas
em defesa do país, por uma razão patriótica.

Ao contrário disso, no cenário de pandemia, como o atual, os Estados, por meio dos governos,
devem usar sua soberania para defender as vidas das pessoas, nos sentidos individual e
coletivo.

Sendo um pouco mais claro, nesta pandemia, caracterizada como síndrome respiratória
aguda grave, e podendo atingir mortalmente uma parte da população, na falta de vacina o
Estado deve procurar “garantir” aos indivíduos oportunidades de acesso ao oxigênio, o mais
conhecido bem comum ou público do planeta.

Para cumprir esse papel o poder público deve estimular o isolamento e o distanciamento
sociais, ou/e disponibilizar leitos hospitalares e Unidades de Tratamento Intensivo-UTIs
equipados com respiradores mecânicos ou artificiais e profissionais especialistas
intensivistas.

De acordo com registros na imprensa internacional, após identificação de infecção pelo novo
coronavírus e transmissão humana local, em Wuhan, entre final de dezembro de 2019 e 20

14Neste ponto, é oportuno recuperar a mensagem passada pelo presidente da Alemanha, o social-democrata
Frank-Walker Steinmeier, à população do seu país no dia de celebração da Páscoa deste ano (2020), ocasião em
que afirmou que essa pandemia “não é uma guerra”, pois, “Nações não estão se erguendo contra nações, nem
soldados contra soldados". Nesse sentido, evocou a solidariedade e a partilha do saber da pesquisa médica, e a
disponibilização de vacinas e terapias aos habitantes dos países mais pobres (segundo a emissora internacional
Deutsche Welle, 11/04/2020).
13
de janeiro de 2020, o governo chinês passou a tomar medidas duras com o objetivo de
estancar as transmissões da doença. O mercado úmido local, possível foco inicial do vírus,
foi fechado, quarentena rigorosa foi decretada, aeroporto foi fechado e restrições foram
impostas aos serviços de taxis e a qualquer circulação na área metropolitana. Além disso, o
tratamento aos pacientes foi centralizado e procedimentos de testagem, rastreamento e
isolamento foram adotados para os grupos de pessoas afetadas e suspeitas.15

Em linhas gerais, a estratégia de gestão da crise sanitária é orientada no sentido de combater


o curso natural de contaminação e propagação das infecções pelo vírus, curso esse que
produz um ciclo semelhante à da curva estatística de distribuição normal, apresentada
abaixo. Assim, a linha que se encontra no meio da figura representa o pico da média de casos,
e as faixas que se encontram dos lados esquerdo e direito da média representam os desvios
padrões, nos momentos de ascensão e descenso da curva; ou subida e descida dos casos.

O desvio padrão é uma medida de dispersão em relação à média.16 Há duas razões para as
autoridades sanitárias combater a realização da configuração desse desenho, primeiro, para
evitar ao máximo a propagação da doença entre as pessoas, ou seja, dificultar a propagação
natural da doença e não deixar que ela atinja seu ponto máximo, e segundo, impedir que uma
grande quantidade de pessoas contaminadas procure ao mesmo tempo o sistema de saúde,
o que pode provocar estresse e colapso deste. Por essas razões é que falaram tanto sobre a
necessidade de achatar essa curva, ou seja, torná-la mais suave.17

Assim, a partir da experiência relativamente exitosa de Wuhan produziu-se certo padrão de


gestão da crise sanitária que foi, de alguma maneira, replicado em outros países atingidos
posteriormente pela Covid-19.

15Fora da China pouco se sabe, em detalhes, a respeito do que aconteceu sobre a experiência do lockdown
aplicado pelo governo chinês em Wuhan. Sobre esse tema, recomenda-se ver o filme-documentário organizado
pelo artista ativista chinês Ai Weiwei, atualmente exilado em Portugal. O filme, chamado “Coronation”, mostra
de forma crítica o modus operandi das autoridades chinesas na gestão da crise sanitária em Wuhan. O trabalho
de filmagem contou com a colaboração de ativistas jovens chineses locais. Oportuno lembrar que, em 2003,
diante da epidemia da SARS, a China já havia passado por experiência semelhante, quando 8.000 pessoas foram
infectadas e 800 morreram. Nesse momento, escolas, fábricas e comércio também foram fechados.
16 Ver, por exemplo, WHEELAN, Charles, Estatística, o que é, para que serve, como funciona, Zahar, 2016.
17 Ver, a propósito, PUEYO, Tomas, Coronavirus: The Hammer and the Dance, what the next 18 monhs can look like,
if leaders buy us time, Blog, 2020.
14
Entretanto, ao contrário da China, que tem um regime político não democrático, o desafio
que se colocou aos governos de outros países, funcionando em regimes democráticos, como
na Europa e nas Américas, foi o de colocar em prática uma estratégia sanitária coletiva e
ampla que exigia das pessoas abrir mão dos interesses individuais em benefício do interesse
coletivo ou, como foi colocado por alguns analistas, abrir mão da liberdade em troca de saúde
e de vida.18

Para reforçar ainda mais as diferenças, entre guerras e pandemias, há que se observar, de um
lado, a movimentação, durante a pandemia, no tocante à (re)alocação de recursos e de fatores
produtivos e, de outro, as reações de cientistas, centros de pesquisa e empresas
farmacêuticas. Nas guerras todos esses fatores, humanos e materiais, são mobilizados para
fins belicosos, no entanto, ao longo dos “poucos” meses da pandemia da Covid-19, apesar da
profunda recessão econômica e de movimentos negacionistas, assistiu-se a uma notável
reação adaptativa da parte de organizações científicas acadêmicas e corporativas, e,
consequentemente, uma gigantesca resposta com resultados positivos em defesa da saúde e
da vida.

Nunca se viu, em tão curto espaço de tempo, tantas ações dos cientistas no que concerne, por
exemplo, ao domínio do conhecimento sobre o vírus em questão (o novo coronavírus),
possíveis medicamentos e vacinas, assim como novos materiais e equipamentos médico-
hospitalares etc. Na verdade, esse alto desempenho da ciência médica, respondendo aos
desafios colocados pela Covid-19, só veio a confirmar as grandes transformações científicas

18 Praticamente todos os países atingidos pela Covid19 trataram, por meio dos governos e autoridades
sanitárias, de implementar esse tipo de estratégia de “achatamento da curva”, utilizando a quarentena ou o
isolamento social. Entretanto, o que é interessante observar é que cada país produziu sua própria curva, com
seu desenho singular. Ver AMARAL FILHO, Jair do, Achatando as curvas da pandemia e dos PIBs,
www.jairdoamaralfilho.ecn.br , 2020.
15
e tecnológicas experimentadas por esse campo das ciências nas últimas décadas, puxadas
pelo grande avanço da biotecnologia, nanotecnologia, pela informática (e tecnologia 3D) e
inteligência artificial. O aspecto complementar e positivo têm sido os trabalhos realizados em
forma de redes de cooperação entre cientistas e centros de pesquisa.

.....a corrida pela vacina...

Para ficar apenas no exemplo das vacinas, segundo o site Vaccine Tracker (open-source
https://THEVACCINETRACKER.COM), existem hoje, no mundo, 168 projetos de pesquisas
registrados voltados para vacinas contra a Covid-19 em andamento, no estágio pré-clínico,
no qual se utilizam testes em ratos (isto é, estágio dois). Além desses, há 12 projetos que se
encontram na fase 01 do estágio de testes em humanos (ou, estágio três), 13 projetos na fase
02 do estágio três, e 08 projetos mais avançados, ou seja, que se encontram na fase três dos
testes em humanos (estágio três).

Dentre estes projetos mais avançados estão: (i) Beijing Institute of Biological
Products/Sinopharm - China; (ii) Wuhan Institute of Biological Products/Sinopharm -
China; (iii) Sinovac - China (associado ao Instituto Butantan, em São Paulo); (iv) University
of Oxford/AstraZeneca – Reino Unido (associado ao Instituto brasileiro Oswaldo Cruz –
Fiocruz); (v) Moderna/NIAID - EUA; (vi) BioNTech/Fosun Pharma/Pfizer - EUA; (vii)
CanSino - China e (viii) Gamaleya Research Institute – Rússia (associado ao Instituto de
Tecnologia do Paraná-Tecpar).

Mesmo que esses projetos não ofereçam resultados imediatos nem milagrosos contra a
Covid-19 eles injetam grande dose de esperança nas pessoas, e reforçam a confiança na
ciência.

16
Nesta fase das pesquisas pela vacina, a questão chave é evitar as manipulações políticas
populistas que possam ocorrer no sentido de abreviar o tempo científico necessário para a
realização dos testes de eficácia das vacinas.

Outra questão importante está relacionada à disponibilidade futura de vacinas em


quantidade suficiente para todos os países e pessoas. Estima-se que, até o momento, um
grupo de países ricos já se antecipou na compra de lotes gigantes de vacinas dos laboratórios
que se encontram na liderança das pesquisas, a exemplo dos EUA, Reino Unido, União
Européia, Hong Kong, Macau, Japão, Suiça e Israel (segundo a organização OXFAN).

No conjunto desses projetos três aspectos chamam atenção: primeiro, o elevado número de
projetos e de pesquisadores engajados nos trabalhos de pesquisas e testes; segundo, a
diversificação dos países envolvidos e, terceiro, a presença marcante da China dentre os
projetos líderes na corrida das vacinas. De acordo com o Site Vaccine Tracker, dentre os oito
projetos mais avançados, ou que alcançaram a fase 03 e o estágio 03, quatro são chineses, dois
americanos, um britânico e outro russo.

A liderança da China não é surpreendente quando se olha o esforço de catch up empregado


por este país, entre 1991 e 2016, no tocante à corrida tecnológica mundial. Segundo dados da
OECD, em 1991 a China (governo e empresas) gastava em Pesquisa e Desenvolvimento –
P&D US$ 13,4 bi (8º lugar mundial), enquanto EUA despendiam US$ 237 bi (1º lugar
mundial).

17
Em 2016, a China alcançou um total de gastos em P&D de US$ 410 bi (2º lugar mundial), e
EUA US$ 464 bi (1º lugar). Em termos de gastos com P&D, proporcionalmente ao PIB, a China
saiu da posição de 26º lugar mundial, em 1991 (0,725% do PIB), para 13º lugar em 2016 (2,11%
do PIB). Enquanto isso, os EUA saíram do 2º lugar mundial (2,4% do PIB) em 1991 para 10º
lugar (2,74% do PIB) em 2016.19 Por meio desse esforço a China posicionou três das suas
grandes universidades entre as cinquenta melhores do mundo em 201920, além de alcançar
lideranças em vários campos da tecnologia comercial.

Pelas razões estratégicas expostas, qualquer governo central deveria ter chamado para si a
responsabilidade de coordenar e integrar as ações ligadas à gestão da pandemia, em âmbito
nacional, respeitando evidentemente autonomias relativas reservadas aos poderes e
governos subnacionais.

No Brasil, como se sabe, funcionando sob o regime federativo, desde 1889-1990, assistiu-se a
um grande embate entre governo federal e governos estaduais por causa da hierarquia das
autonomias e da divisão das competências, aliás, claramente definidas pela Constituição de
1988. Tal situação foi encenada tendo, de um lado, o governo federal contrário ao isolamento
social e, de outro, os governos estaduais e municipais favoráveis a esse tipo de isolamento,
em linha com as recomendações passadas pela OMS e cientistas da área da saúde.

Em resumo, e acima de tudo, as pessoas não podem ser deixadas à sua própria sorte
esperando por um “escape” aleatório em meio à pandemia, no sentido dado por Angus
Deaton (2013).21 Os valores morais e éticos que acompanham esses dois cenários, guerras e
pandemias, são essencialmente diferentes, razão pela qual estratégias de enfrentamento para
ambos os fenômenos são igualmente distintos.

Em se tratando de uma pandemia causada por um vírus ainda desconhecido, em sua


totalidade, e para o qual não há solução antiviral eficaz, até o presente momento, a
abordagem dominante e continuada deve ser aquela que valorize a ciência, a pesquisa e o

19Ver CHINA POWER, unpacking the complexity of China´s rise, Is China a Global Leader in Research and
Developement, 2020.
20 Tsinghua University – Beijing (17º lugar mundial); Peking University – Beijing (30º lugar mundial) e Fudan
University - Shangai (50º lugar mundial).
21
DEATON, Angus, The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins, Princeton University Press, 2013.
18
conhecimento, o isolamento (ou distanciamento) social, os profissionais da área da saúde e
as informações de qualidade, meios pelos quais o medo e a ansiedade dos indivíduos sejam
mitigados, os sofrimentos reduzidos e vidas possam ser salvas.

Além disso, ao contrário do que ocorre em cenário de guerra, é fundamental se estabelecerem


relações de cooperações internacionais multilaterais a fim de potencializar soluções coletivas
e que possam culminar rapidamente no desenvolvimento de medicamentos e vacinas que
permitam às pessoas, independentemente de suas nacionalidades e níveis de renda, acesso
público e amplo ao produto farmacêutico; portanto, livre das barreiras de proteção de
patentes.

A escala gritante da tragédia humanitária provocada pela Covid-19 legitima exigir que
vacinas a serem descobertas devam ser transformadas em “bens comuns”, senão gratuitas
mas que sejam disponibilizadas a preço de custo aos governos e autoridades sanitárias
nacionais.22 Mas, para que isso aconteça é preciso que governos nacionais estejam
diretamente engajados em projetos estratégicos globais.

22
A propósito do conceito de “bem comum”, sugere-se ver TIROLE, Jean, Économie du Bien Commun, PUF, 2016.
19
4 - Apesar de tudo, um aspecto comum
A despeito das diferenças entre guerras convencionais e pandemias, o fato é que há um
aspecto comum que se manifesta em ambas as situações, qual seja, dado o caráter de
calamidade pública e emergencial em escala elevada frequentemente presente, Estados ou
governos são obrigados a realizar gastos em um nível muito acima das suas receitas
correntes. Tal ação gera obrigatoriamente déficits fiscais incomuns que se transformam,
nesses casos, em dívidas igualmente incomuns e que geram, na sequência, grandes desafios
para a gestão fiscal-financeira do setor público do país no tocante à redução da elevada
relação entre dívida pública interna e produto interno bruto.

O maior desses desafios está no fato de que, no decorrer dos acontecimentos emergenciais,
enquanto a dívida pública interna aumenta o produto real da economia tende a cair,
agravado pela espiral deficitária recessiva na área fiscal, criando em seguida embaraços e
impasses depressivos de toda ordem. Como se pode ver, os problemas econômicos, fiscais e
financeiros gerados por esses fenômenos, guerras e pandemias, são extremamente
complexos, no entanto, os governos não têm escolha senão enfrentar tais problemas sem
privilegiar as restrições orçamentárias; principalmente durante o período de ocorrência da
calamidade.

....o tamanho da conta...

Sobre esse tipo de solução, pode-se dizer que não há grandes divergências entre correntes do
pensamento econômico, grosso modo, envolvendo ortodoxos e heterodoxos, pois, os critérios
ditados pela soberania nacional, ou princípios humanitários, fundamentos morais e éticos, e
mesmo decisões de bom senso transcendem os “caprichos” dos paradigmas que orientam os
pensamentos econômicos.23 Entretanto, muito certamente, controvérsias aparecerão no
momento da necessidade de resolução do problema orçamentário, agudizado pela elevação

Em entrevista recente ao Jornal Folha de São Paulo (25/03/2020), o economista Kenneth Rogoff defendeu que
23

durante a pandemia da Covid-19 os governos devem gastar como na guerra. A propósito desse tema, olhando
para o papel do Estado em circunstâncias de guerras e pandemias, recomenda-se ler o artigo de Marcelo
Roubicek, “Por que a pandemia evoca uma economia de guerra”, publicado no NEXO Jornal (31/03/2020).
20
da dívida pública interna e seu serviço. Neste caso, não mais por causa de divergências entre
escolas e correntes de pensamento econômico, mas por conta da estrutura e da distribuição
dos poderes econômicos e políticos estabelecidos na sociedade, e, muitas vezes, não abaladas
pela pandemia, e que resistirão às escolhas dos critérios fiscais de distribuição da
responsabilidade em relação ao pagamento da conta, perante a sociedade.

A título de ilustração, no Brasil, as contas correntes consolidadas do setor público em 2019


apresentou resultado primário negativo equivalente a 0,85% do PIB, desse modo um estreito
espaço fiscal. No entanto, já para o ano de 2020, mesmo em condições de fortes restrições
orçamentárias ditadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, PEC 241/55 do teto dos
gastos públicos e outros mecanismos, esse indicador deverá saltar para 12,0% (ao final do
ano), conforme estimativa da Secretaria da Fazenda do governo federal. Como se sabe, tal
deslocamento ocorrerá por causa do Estado de Emergência e dos impactos produzidos pela
Covid-19 sobre as contas públicas federais, traduzidos em termos de aumento nas despesas
e queda nas receitas. Por conta disso, a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) deverá
aumentar para 98,2% do Produto Interno Bruto - PIB do país, em 2020, contra 75,8% em 2019,
segundo a Secretaria do Tesouro Nacional.24

Independentemente do país em questão, pode-se supor que, nos momentos de retomada


“gradativa” da normalidade das atividades econômicas e retirada dos estímulos fiscais, após
a fase crítica da pandemia, tal situação poderá gerar grande instabilidade financeira nos
sistemas econômicos a ponto de causar crises profundas, motivadas por fortes movimentos
de insolvências de empresas e desemprego no setor privado. Sobre essa situação, marcada
por redução drástica do espaço fiscal, quando se adiciona a desconfiança do mercado em
relação à (in)sustentabilidade da dívida pública interna, para o futuro próximo, ou no médio
e longo prazo, o quadro pode se tornar explosivo.25

É certo que os tamanhos das dívidas, em relação aos produtos, variam entre os países, mas
não é difícil imaginar que, estando todos os países embarcados no mesmo problema, as

24BRASIL, Tesouro Nacional, Relatório de Projeções da Dívida Pública n.02, Ministério da Economia, Governo
Federal, Brasília, 2020.
25Sobre a questão dos dilemas enfrentados pelos países e governos em relação à dívida interna recomenda-se
ver ROGOFF, Kenneth e REINHART, Carmen M., Oito séculos de Delírios Financeiros, desta vez é diferente, Ed.
Campus, 2009.
21
economias nacionais em breve enfrentarão desafios semelhantes e simultâneos.26 Além disso,
e voltando à questão da responsabilidade, deve-se ficar estabelecido que, no cenário desta
pandemia, por não se tratar de uma guerra convencional, a grande questão é que, não tendo
a quem reclamar pelas reparações (ou seja, um inimigo externo), os custos sanitários,
econômicos e fiscal-financeiros recairão sobre os ombros daqueles que compõem as
estruturas econômicas e sociais dos países em questão, ou seja, aquelas pessoas que
participam da formação e da distribuição da renda nacional. De acordo com Daron
Acemoglu & James Robinson (2008)27, na ausência de mudanças estruturais no sistema
institucional de um país as instituições políticas e econômicas, ou os direitos jurídicos e de
fato, estabelecidos no pretérito e vigentes no presente, seguem ditando a dinâmica da
economia política. Situação que gera tensões políticas internas aos países.

Avançando nesse ponto, as soluções fiscal-financeiras para os momentos de ocorrência da


pandemia como também de pós-pandemia ganham complexidade e preocupação, por duas
razões: primeira, um programa que seja minimamente razoável para absorver os problemas
sanitários e econômicos reclama a fixação de premissas e critérios que promovam
simultaneamente, e, na medida do possível, a defesa de vidas, a eficiência econômica e a
justiça social reparadora. Importante lembrar que a defesa de vidas em meio à pandemia,
através do necessário isolamento social, implica em custos econômicos e financeiros os quais
terão que ser absorvidos, em algum momento após a fase crítica da pandemia, de acordo com
consensos e contratos sócio-políticos estabelecidos entre sociedades e governos.28 Segunda

26
Os cenários pós-pandemia desenhados por economistas e analistas de vários países têm apontado para consequências
em várias direções, mas todas elas apresentando tonalidades sombrias. Para que esses cenários não se realizem, ou sejam
suavizados, serão necessárias ações gigantescas dos Tesouros e Bancos Centrais dos países, em escala planetária. Apesar
da sua importância, esse tema não será tratado nesta reflexão.
Acemoglu, Daron. & Robinson, James., The Role of Institutions in Growth and Development, Working Paper n.10,
27

World Bank, Commission on Growth and Development, Washington, DC, 2008.


28Por isso, o caminho para a redução dos custos totais impostos pelos acontecimentos está no modelo de gestão
da pandemia, o qual, no sentido ideal, deve procurar equacionar o grande desafio de reduzir o tempo de
isolamento social ao mesmo tempo que salvar o máximo de vidas e produzir o mínimo de custos econômicos,
financeiros e sociais. Nesse sentido, a questão central é encontrar um modelo de gestão que se aproxime desse
tipo ideal. O problema é que não há uma receita de bolo para se obter esse modelo, dado que as reações das
autoridades governamentais, bem como das sociedades, dependem de múltiplas variáveis sanitárias, sociais,
políticas, culturais, institucionais, econômicas e fiscal-financeiras dos países. No tocante à questão da relação
entre isolamento social e impactos econômicos, tomando como referência a histórica pandemia da gripe
espanhola de 1918, recomenda-se ler o artigo de CORREIA, Sergio; LUCK, Stephan and VERNER, Emil,
Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu, MIT, March
26, 2020
22
razão, o consenso sócio-político conjuntural que avalizou decisões emergenciais contra os
impactos da pandemia poderá já não mais existir no momento em que esse fenômeno passar,
o que deverá impor sérios entraves estruturais que dificultarão o desenho e a construção de
uma nova pactuação fiscal-financeira nacional que seja capaz de resolver o problema
orçamentário criado pela pandemia.

Tomando emprestado algum exemplo deixado pela história, em seu livro “How to Pay for the
War”(1940), dirigindo-se ao Tesouro Britânico, John M. Keynes29 sugeria que, diante do
grande desafio colocado pela segunda grande guerra mundial à Inglaterra, o Estado britânico
teria que se endividar e, para isso, necessitaria construir um orçamento ou esforço de guerra.
Entretanto, para atingir suas finalidades, indica o autor, a estrutura do orçamento deveria
conter três premissas balizadoras, quais sejam, políticas econômicas eficientes, justiça social
e mecanismos que pudessem barrar movimentos de agentes, por assim dizer, oportunistas
(free rider). Tudo indica que tais premissas ainda guardam, nos dias de hoje, pertinência no
tocante ao objetivo de se conseguir políticas públicas de qualidade, mesmo, ou
principalmente, em ambiente de grande comoção.

29
KEYNES, John Maynard, How to Pay for the War, Machillan And Co., London, 1940.
23
5 - Descivilização e o mundo pré-pandemia
A despeito da pertinência das premissas mencionadas no parágrafo anterior, em torno da
conduta das políticas públicas, as iniciativas emergenciais e de socorro financeiro
implementadas atualmente por quase todos os países, inclusive o Brasil, podem e poderão,
voluntária ou involuntariamente, negligenciá-las; erro, aliás, que poderia ser imputado às
“falhas” inerentes ao jogo da economia política. Ou, certamente, mais da política que da
economia. Aliás, durante a pandemia no Brasil exemplos de oportunismos políticos e de rent-
seeking (busca de renda) ligados ao combate da Covid-19 não têm faltado, sejam eles dirigidos
às licitações para compras de equipamentos, respiradores e insumos hospitalares como
também para a construção de hospitais de campanha.

Neste aspecto a face mais inclemente do oportunismo ocorreu nos recebimentos indevidos
do Auxílio Emergencial pagos pelo governo federal. Segundo relatórios, ainda inconclusos,
do Tribunal de Contas da União-TCU milhões de pessoas receberam sem ter direito o referido
auxílio, sendo uma parte dessas pessoas pertencente a faixas de renda acima do limite
permitido.

Sendo assim, para que tal negligência seja mitigada, um princípio moral e ético, ou mesmo
racional, deveria fazer parte de qualquer plano de intervenção estatal, não importando o país,
especialmente no momento pós-pandemia, qual seja, reconhecer que o mundo no momento
pré-pandemia apresentava um quadro no qual as duas peças chave do planeta, o homem e a
natureza, emitiam sinais de cansaço.30 Ambos se viam, e ainda se vêm, dominados pelos
poderes do mercado financeiro, da financiarização e das grandes corporações,

30Os últimos relatórios especiais do The Intergovernmental Panel on Climate Change- IPCC
(https://www.ipcc.ch), sobre o aquecimento a 1,5º, sobre os solos e os alimentos e sobre os oceanos e superfícies
geladas, são alarmantes. Ver Dossier Spécial CLIMA, le consensus scientifique après les trois rapports du Giec
(IPCC), La Recherchee, novembro, 2019. Sobre esta questão, recomenda-se consultar também o artigo de
STEFFEN, Will; BRODGATE, Wendy; DEUTSCH, Lisa; GAFFNEY, Owen e LUDWIG, Conelia, “The trajectory
of the Anthropocente: the Great Acceleration”, in The Review Anthropocene, 1-18, 2015. Neste trabalho os autores
mostram e analisam a relação entre ações do homem, vistas por meio dos modelos de urbanização, produção e
consumo, dominantes no período pós segunda guerra mundial, e a aceleração da degradação do meio
ambiente. Por outro lado, dados e informações antecipados e divulgados pelo Jornal Valor Econômico
(15/09/2020), pertencentes ao Global Biodiversity Outlook 5, da Convention on Biological Diversity, ONU, 2020,
dão conta da perda preocupante da biodiversidade no planeta.
24
principalmente tecnológicas (Google; Apple; Facebook; Amazon – G.A.F.A.´s; etc.)31, que
enfraquecem as soberanias políticas nacionais, e pelos padrões de produção e de consumo
predadores que primam pelo comportamento autônomo, individualista e maximizador, que
tem impactado na mudança climática planetária. Tudo isso leva à ideia, ou à quase convicção,
de que a pandemia da Covid-19 faz parte desse “ecossistema” complexo e problemático de
difícil regulação e, mais que isso, de rara possibilidade de responsabilização.

Tal situação permite admitir que o homem moderno (ou pós-moderno?) fracassou na sua
“ética do futuro”, detalhada por Hans Jonas.32 Ou seria apenas um problema de déficit de
regulação? Indo por este caminho, Dani Rodrik (2020) chama atenção para o fato de que as
regras de comércio internacional, expressadas pela Organização Mundial do Comércio –
OMC, e outros acordos, não dão conta da realidade global de hoje. Para ele, o arcabouço
institucional global está mais para a era dos carros, aço e têxteis do que propriamente dos
dados, softwares e inteligência artificial. Sendo assim, não dão conta dos novos problemas
geopolíticos, das privacidades individuais e dos poderes exercidos pelas grandes
companhias tecnológicas, que acumularam enormes poderes globais.33

Como consequência desse fracasso, em décadas recentes o mundo vem experimentando um


perigoso processo de “descivilização”, isto é, em síntese observam-se comportamentos e
manifestações políticos, públicos e amplos de negacionismo relativo ao conhecimento, à
informação de qualidade (substituída pelas fake news) e à ciência, negacionismo à empatia, à
globalização, ao multilateralismo, e desprezo pela democracia (conceito, aliás, tomado
emprestado de Norbert Elias), o que fez abrir espaços propícios ao populismo nacionalista e
aos grupos políticos e governos autoritários. Aliás, tal processo não foi interrompido pela
pandemia.

No mês de agosto de 2020 as empresas Apple e Amazon atingiram valores de mercado de US$ 2 trilhões e
31

US$ 1,73 trilhão, respectivamente; valores que superam, individualmente, PIBs de muitos países.
32 JONAS, Hans, O princípio responsabilidade, ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, Editora PUC, 2006.
33RODRIK, Dani, “The coming global technological fracture”, Project Syndicate, The World´s Opinion Page,
08/09/2020.
25
.... direção niilista ? .....

Movimentos negacionistas e populistas vêm avançando de forma oportunista aproveitando-


se dos tropeços e erros cometidos pelo mundo moderno (ou pós-moderno), pelo capitalismo
e governos ditos democráticos, em suas “promessas sociais” há muito canalizadas pela ideia
de progresso “para todos”.

Sobre esta problemática, oportuno lembrar que Celso Furtado, no final da década de setenta
do século XX (1978)34, já havia alertado para os desvios praticados pela “civilização
industrial”, a qual, segundo o autor, vinha permitindo que sua cultura imaterial (valores
morais e éticos, conhecimentos científicos, sensibilidades artísticas, etc.) se submetesse
passivamente à cultura material, esta ditada pela acumulação do capital, padrões
tecnológicos voltados para a produção, lucros, e padrões de consumo predatórios.

Pode-se dizer que, ao enfraquecer valores morais e éticos sagrados, o capitalismo caminhava
para uma direção niilista.

34 FURTADO, Celso, Criatividade e dependência, na civilização industrial, Ed. Paz e Terra, Segunda, São Paulo, 1978.
26
Um pouco mais atrás na história, em 1930, momento em que as sociedades capitalistas e
democráticas ocidentais viviam dilemas econômicos, morais e éticos, John M. Keynes, um
representante incontestável do pensamento econômico moderno, realizou uma reflexão
importante em tom otimista sobre o futuro da economia ou do capitalismo. Essa reflexão foi
publicada no The Nation and Athenaeum, sob o título “Perspectivas econômicas para nossos
netos”,35 na qual o autor fez uma previsão para os próximos cem anos, ou seja, 2030. Nessa
“carta” Keynes projetou um futuro no qual as sociedades, muito provavelmente, teriam
resolvido seu problema econômico fundamental, isto é, o da sobrevivência e, dessa maneira,
estariam vivendo em condição de abundância material. Nessa situação, as pessoas teriam
que se preocupar em alocar o tempo não mais, e principalmente, para a produção de mais
riqueza e sim para o lazer e as coisas boas da vida, ou se dedicar aos “fins” muito mais que
aos “meios”; ou, “preferir(em) o bom ao útil”. No entanto, segundo o autor, durante muito
tempo pessoas ainda continuariam mentindo para elas mesmas, e para os outros,
pretendendo que o justo é injusto e que o injusto é justo, porque o injusto é útil e que o justo
não é. Seria como se as pessoas, mesmo tendo resolvido o problema econômico fundamental,
continuariam dependentes do padrão moral ou ético do passado.

Nos dias atuais, não há razão para se colocar por terra a ideia de progresso, tão cara à era
moderna. Sobre isso, Steven Pinker (2018)36, entre outros autores, de forma apropriada,
chama atenção para as conquistas reais e incontestáveis do projeto de desenvolvimento da
modernidade, tais como o avanço do progresso científico e tecnológico, o elevado padrão
médio de vida material das pessoas, o aumento da esperança de vida, etc.. A questão é que,
em tempos presentes, quase cem anos após a publicação da “Carta aos nossos netos” de
Keynes, observa-se que o mundo, além de experimentar um processo de regressão política e
ideológica, ainda está longe de ter resolvido o problema econômico fundamental de
sobrevivência, para boa parte da população, apesar da evidente abundância econômica,
disponível para uma parcela menor dessa população.

35KEYNES, John Maynard, Lettre à nos petits-enfants, Éditions Les Liens Qui Libérent, 1930 (2017). Com prefácio
d´André Orléan.
36PINKER, Steven, O novo iluminismo, em defesa da razão, da ciência e do humanismo, Companhia das Letras,
2018.
27
Basta citar o caso do Brasil, onde a fome, em ascensão, tem afetado 85 milhões de pessoas, no
período 2017-2018, entre situações de insegurança alimentar leve, moderada e grave (POF -
IBGE, 2020). Nesses termos, as sociedades contemporâneas têm sido atingidas por um severo
processo de concentração de renda e aumento das desigualdades sociais como também da
pobreza, sem que isso tenha causado grandes indignações de ampla parcela da opinião
pública, e do mundo político. De acordo com John K. Galbraith (2011), durante muito tempo,
até, pelo menos, o século XX foram trabalhadas teses morais e econômicas que dificultaram
a formação de consensos amplos contrários ao fenômeno da pobreza das pessoas.37

Nos países e economias da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico-


OCDE, mesmo nas unidades mais ricas, após terem avançado na redução da desigualdade
de renda por várias décadas (desde 1950), assistem a um processo de reconcentração após o
início dos anos noventa.

Em geral, nesses países, pessoas que se encontravam no topo dos 10% mais ricos,
especialmente na faixa de 1%, avançaram e têm avançado em suas participações nas rendas
nacionais, em detrimento dos 40% mais pobres, processo impulsionado pela elevação
acentuada da participação das rendas provenientes do capital, e queda da participação dos

37GALBRAITH, John Kenneth, L´art d´ignorer les pauvres, Éditions Les Liens qui Libèrent (Monde
Diplomatique), 2011.
28
rendimentos originados do salário.38 No mesmo contexto, a aceleração do progresso
tecnológico e o aumento do “prêmio salarial” para aqueles trabalhadores detentores de
elevados níveis de escolaridade e de habilidades tecnológicas se encarregaram de criar
grandes desigualdades entre os próprios assalariados. Mesmo assim, o “prêmio salarial” não
é igual para todos, quando se levam em conta sexo e raça.39

Tal tendência tem sido acelerada durante o período da pandemia, tendo em vista a expansão
do processo de adoção de novas tecnologias digitais por parte dos consumidores individuais,
das empresas em geral e das organizações de ensino e atenção à saúde, que tiveram que se
adaptar às exigências impostas pelo isolamento social e às regras sanitárias. Durante a
pandemia, segundo o World Economic Forum (2020), dez importantes tendências de
mudanças tecnológicas se impuseram, principalmente em países como EUA, China e Coréia
do Sul, mas que foram seguidas por outros países, inclusive o Brasil, são elas:

(i) compras online de toda espécie pelos consumidores,


(ii) pagamentos digitais sem contatos físicos,
(iii) trabalho remoto em casa,
(iv) ensino e aprendizagem à distância,
(v) telemedicina,
(vi) entretenimento online,
(vii) cadeias de fornecimento 4.0,
(viii) impressão 3D,
(ix) adoção de robots e drones e
(x) 5G e Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC).40

38
Esse processo tem sido estudado e vastamente documentado por inúmeros pesquisadores, dentre eles, por exemplo:
ATKINSON, Anthony, Desigualdade, o que pode ser feito, Ed. LEYA, 2016; MILANOVIC, Branko, Global Inequality,
a new approch for the age of globalization, Harvard University Press, 2016; PIKETTY, Thomas, Le Capital au XXI
Siècle, Ed. Seuil, 2013; PIKETTY, Thomas, Capital et Idéologie, Ed. Seuil, 2019.
39Desde a segunda metade dos anos noventa a hiper expansão do “prêmio salarial” nos EUA não só causou
aumento da desigualdade entre os assalariados, mas atingiu também o principal centro urbano do Vale do
Silício, ou seja, São Francisco. Desde então os preços das terras urbanas e dos aluguéis dos imóveis desta cidade
não pararam de crescer, o que provocou a “expulsão” de boa parte dos antigos moradores da cidade, que se
deslocaram para as periferias ou pequenas cidades da região. Ver McCLELLAND, Cary, Silicon City, San
Francisco in the long shadow of the Valley, W.W. Norton & Company, 2018.
40 Ver World Economic Forum, 10 technology trends to watch in the Covid-19 pandemic, 2020.
29
Com essa configuração, mais que um acelerador, o evento da Covid-19 está jogando o papel
de consolidador ou sintetizador de um processo com profunda mudança tecnológica, com
alto potencial de “destruição criadora”, iniciado desde, pelo menos, a primeira geração de
microchip desenvolvida por Robert N. Noyce (foto abaixo) e lançada pela empresa americana
Intel, em 1971 (que desencadeou o “impacto da Lei de Moore”), passando pelo lançamento
do Iphone da Apple em 2007 e outros artefatos na sequência.41

Face ao aumento da demanda por soluções digitais as empresas ofertantes, grandes e


pequenas, especialmente as G.A.F.A.´s, tiveram forte impulso.42 Com isso, os níveis de
emprego e salário associados à tecnologia digital não foram afetados negativamente pela
Covid-19, pelo contrário, mas o mesmo não ocorreu com os trabalhadores desqualificados.
Estes foram empurrados para o desemprego ou para o emprego precário, submetidos às
ajudas governamentais e aos baixos salários. Tal padrão tendencial tem se apresentado nos

41Ver FRIEDMAN, Thomas L., Obrigado pelo atraso, um guia otimista para sobreviver em um mundo cada vez mais
veloz, Ed. Objetiva, 2016.
42Nesse novo cenário as empresas gigantes detentoras das cloud-computing platforms, ou seja, a Amazon,
Microsoft, Google e a Facebook, viram suas vendas explodirem, desde o início da pandemia. A Amazon, por
exemplo, na primeira quinzena de março deste ano revelou estar recrutando 100.000 trabalhadores para seus
armazéns. Por sua vez, a Facebook e YouTube viram os tráficos em suas redes dispararem. Segundo
WAKABAYASHI, Daisuke; NICAS, Jack; LOHR, Steve e ISSAC, Mike, “Big Tech could emerge from
coronavirus crisis stronger than ever”, The New York Times, 23, março, 2020.
30
países desenvolvidos como também nos países em desenvolvimento e, muito
provavelmente, fará parte do cenário econômico após pandemia.

A América Latina, por sua vez, historicamente marcada por fortes disparidades de renda e
pobreza, inflexionou essa trajetória a partir dos anos 2000, promovendo melhorias
importantes tanto na desigualdade de renda (Índice de Gini) como na taxa de pobreza.

Tal tendência, no entanto, foi interrompida quando se iniciou a segunda década desse
milênio (ver ATKINSON, 2016), devido à desaceleração do crescimento econômico e à
recessão, verificadas na região a partir desse período.

No Brasil, segundo IBGE (PNAD continua), o Índice de Gini do rendimento domiciliar per
capita, após uma série de anos apresentando queda, sofreu uma inflexão para cima
(reconcentração de renda) a partir de 2015 e só se estabilizou entre 2018 (0,545) e 2019 (0,543);
estabilização esta que deverá ser quebrada pelo advento da pandemia, levando a uma piora
do quadro das desigualdades de renda e sociais no país, segundo algumas previsões.

Ainda sobre o Brasil, é oportuno agora olhar para as faixas de concentração de renda entre
as pessoas. Neste país, em 2015, 50% das pessoas detinham 13,9% da renda nacional,
enquanto 40% se apropriavam de 30,6% e 10%, mais ricos, ficavam com 55,6%. Nesse mesmo
ano, 1% dos brasileiros ficava com 28,3% do total da renda do país.

Em contraponto, no ano de 2001, 50% das pessoas ficavam com 12,6%, os 40% com 33,1%, e
o restante 10% com 26,2%. Já a faixa do 1% se apropriava de 26,2% (WORLD INEQUALITY
DATABASE).

Como se pode notar, no curso do período considerado (2001-2015) houve concentração de


renda nas camadas dos 10% e 40% mais abastados da população. Em termos comparativos,
utilizando a mesma fonte citada anteriormente, para o ano de 2016, e considerando os 10%
mais ricos no mundo, a situação era a seguinte: na Europa, 10% dos mais ricos ficavam com
37% da renda do continente; na China com 41% da renda do país; na Rússia, 46%; nos EUA,
47%; na África Subsahariana, 54%; Brasil, 55%; Índia, 55% e no Oriente Médio, 61%.

A propósito do “prêmio salarial” no Brasil, estudo recente realizado no âmbito do Instituto


de Ensino e Pesquisa – INSPER, com base em dados da PNAD contínua (1916-1818), mostrou
diferenças gritantes de salários quando são considerados sexo, raça e origem do diploma
31
(entre instituição pública e privada) para pessoas com o mesmo nível de escolaridade.
Tomando como exemplo apenas o diploma de ensino superior tem-se o seguinte quadro, a
saber:

(i) homens brancos em relação às mulheres brancas a diferença salarial quando o


diploma vem de uma instituição pública é de 66,51%, e quando o diploma vem
de escola privada é de 60,52%;
(ii) a diferença entre homens brancos/homens negros-pardos é de 66,12%, quando
o diploma é de origem pública e de 48,03% quando privada;
(iii) diferença salarial entre homens brancos/mulheres negras-pardas é de 159,00%
quando o ensino é público e 128,31% quando privado;
(iv) mulheres brancas/homens negros-pardos, -0,23% quando o diploma é de
origem pública e -7,78% quando é de origem privada e, finalmente,
(v) a diferença entre mulheres brancas/mulheres negras-pardas é de 55,55%
quando o diploma foi de instituição pública e 42,23% quando privada.43

43 Ver RIBEIRO, Beatriz Caroline; KOMATSU, Bruno Kawaoka e MENEZES-FILHO, Naercio, Diferenciais
salariais por raça e gênero para formados em escolas públicas ou privadas, Policy Paper n.45, Centro de Gestão e
Políticas Públicas, Instituto de Ensino e Pesquisa – INSPER, julho de 2020.
32
Esses dados mostram os limites da mobilidade social no Brasil, mesmo quando o “indivíduo”
consegue obter um diploma de nível superior, tornando o problema da concentração de
renda mais complexo.

Uma rápida olhada sobre esses dados é o suficiente para permitir imaginar o quanto será
danoso para as pessoas negras e pardas, sobretudo do sexo feminino, estudando em
instituições públicas, ao final da pandemia; ou seja, após terem enfrentado os desafios
colocados pelo isolamento social e pelas dificuldades de acesso à internet para receber ensino
à distância.

Tal exercício de imaginação deve ser feito percorrendo todos os ciclos de ensino,
fundamental, médio e superior.

As tendências mostradas em parágrafos anteriores apontam para uma convergência das


desigualdades latino-americanas com as desigualdades identificadas nos países
desenvolvidos, dentre os quais os EUA chamam atenção.44

Isolando a Ásia, especialmente a China, e alguns países europeus que apresentam elevado
grau de igualdade social combinado com sistemas nacionais de saúde robustos, há um
quadro de vulnerabilidades sociais inapropriado para o enfrentamento de fenômenos de
calamidade pública a exemplo da pandemia atual. Dessa maneira, devem-se encarar, para o
futuro, “fenômenos de calamidade pública” não somente aqueles provocados por alguma
pandemia virótica senão por outros tipos de causas, podendo ser climática, econômica e
social.

Sobre as fragilidades institucionais e sociais identificadas acima soma-se o elevado descaso


observado nos campos das pesquisas científicas e dos sistemas públicos nacionais de atenção
à saúde (redução dos gastos com pesquisas em saúde pública; mercantilização da saúde;
redução do número de leitos hospitalares nas redes públicas; desatenção aos estoques

Os fundamentos da desigualdade de renda e social nos Estados Unidos são abordados com profundidade em
44

STIGLITZ, Joseph E., The Great Divide, unequal societies and what we can do about them, W.W. Norton & Company,
New York, 2015.
33
estratégicos de equipamentos e materiais de proteção individual-EPIs hospitalares; escassez
de pessoal especializado; sub financiamento do sistema de atenção à saúde pública; etc.).45

.... Sistema Único de Saúde – SUS....

Como se sabe, o Brasil conta com o maior sistema público de saúde, universal e gratuito, no
mundo (Sistema Único de Saúde-SUS), dispondo de programas como Estratégia Saúde da
Família (atenção básica), Programa Nacional de Imunização (representando 98% do mercado
de vacinas no país), Programa de transplante de órgãos (cerca de 90% dos transplantes são
financiados pelo SUS), programas de atenção a pessoas portadoras de HIV e doenças
crônicas, etc..

Segundo a Pesquisa Nacional da Saúde-PNS, do IBGE, 74% dos brasileiros abordados pela
pesquisa em 2019 dependiam da saúde pública, e 71,5% recorriam ao atendimento do SUS.

Entretanto, segundo especialistas, tal sistema tem apresentado problemas que vão do sub
financiamento (indicado, por exemplo, pelas baixas taxas de remuneração pagas aos serviços
prestados pelo sistema complementar), passando pela falta de modelos administrativos
eficazes até atingir a questão do acesso (longas e demoradas filas de espera, especialmente
nas grandes cidades).46 Neste aspecto, de acordo com a PNS-IBGE, em 2019, um em cada

45Em artigo publicado no Jornal The Conversation, em 20/05/2018, o pesquisador francês Frédéric Pierru
(Université de Lille), “La crise sans fin du système de Santé”, faz uma radiografia das fragilidades do sistema
de saúde da França.
46 A propósito do financiamento, o principal indicador utilizado, entre os países, para analisar o grau de
financiamento do sistema de saúde é a relação entre Gastos em Cuidados à Saúde e Produto Interno Bruto-PIB
do país. Por esse indicador o Brasil alcançava 9,24% contra a média de 8,0% dos países da OCDE, em 2017.
Olhando para esse percentual, o Brasil apresenta um nível compatível com os parâmetros mundiais, no entanto,
há muita dificuldade em se determinar o percentual exato de participação do Estado no financiamento do
sistema de saúde pública, tendo em vista a participação do financiamento público nos sistemas complementar
e privado, além dos subsídios concedidos pelo Estado brasileiro ao setor privado. Ver a propósito SILVEIRA,
Fernando Gaiger; NORONHA, Gustavo Souto et al., Os Fluxos Financeiros no Financiamento e no Gasto em Saúde
no Brasil, Texto para Discussão n.43, Saúde Amanhã, Fundação Oswaldo Cruz, 2020.
34
quatro brasileiros não conseguia ser atendido nos serviços de saúde na primeira tentativa,
seja público ou privado.

Assim, ao mesmo tempo em que o SUS ofereceu, e tem oferecido, uma importante frente de
defesa da saúde pública em meio à pandemia atual, tais deficiências facilitam, de certa
maneira, o trabalho do novo coronavírus, sob situação de emergência e atendimento em
massa.

Na outra ponta, ao deslocarem pesquisa e produção de medicamentos, insumos e


equipamentos hospitalares para regiões ou países distantes das bases sanitárias, a fim de
reduzirem custos, governos e empresas de muitos países se deram conta que haviam caído
na armadilha da dependência industrial-tecnológica, no momento da pandemia.

No Brasil não foi diferente. Neste ponto, estratégias calcadas na pulverização ou


segmentação das cadeias de valores dos segmentos médico-hospitalares mostraram-se
desastrosas em momentos críticos de pandemia.

Como pode ser observado, a Covid-19 pegou o mundo, ou parte dele, despreparado. Mesmo
grandes potências tecnológicas e produtivas mundiais como EUA, Canadá e França sentiram
fortemente a dependência em relação à China na produção de ingredientes essenciais,
antibióticos, vitaminas, EPIs (máscaras, luvas cirúrgicas etc.), respiradores, testes e muitos
outros.

Tal dependência não se restringiu apenas à China, dado que a Malásia, por exemplo, no início
da pandemia, respondia por 65% da produção mundial de luvas médico-hospitalares.47

Apesar dessa dependência, e a despeito de alguns países como Estados Unidos e Japão terem
anunciado algumas medidas para incentivar a volta de certas funções industriais para seus
territórios, a curto prazo a solução para essa dependência não será evidente, em função dos
custos relativos de produção favorecerem os países asiáticos.

47Nesse último país a produção de luvas está concentrada em, basicamente, quatro empresas, a Top Glove
(maior produtora mundial), Hartalega Holdings, Kossan Rubber Industries e Supermax.
35
Neste caso, favorecem também as grandes empresas privadas ocidentais, redes hospitalares,
planos de saúde, etc., sem falar na contribuição oferecida pela relocalização da produção
industrial, para a Ásia, no rebaixamento do custo de vida em países ocidentais.

Oportuno dizer que esse problema da dependência no fornecimento de medicamentos,


especialmente dos EUA, em relação à China já foi detectado e alertado por pesquisadores
americanos antes mesmo da emergência da pandemia da Covid-19.48

48Uma radiografia desse problema foi feita por GIBSON, Rosemary & SINGH, Janardan P., China Rx, Ed.
Prometheus Book, 2018.
36
6 - Na esperança de um “novo normal do bem”. Um “novo”
Estado?
Dito isso, a despeito da legitimidade e dos acertos conceituais e, quiçá práticos, que têm
acompanhado, e que ainda poderão acompanhar os desenhos de políticas e ações macro
setoriais pró-emprego, pró-liquidez e pró-sobrevivência de empresas,49os planos nacionais
de recuperação econômica deverão incorporar objetivos e metas que potencializem setores
que sejam realmente merecedores por receber recursos públicos subsidiados, e que indiquem
contribuir para a geração de empregos de qualidade e a baixa emissão de gás carbono. Esses
planos deverão, ao mesmo tempo, evitar que os recursos canalizados pelos Bancos Centrais
para o setor privado, via bancos, alimentem movimentos especulativos e a formação de
“bolhas” nos mercados de ativos (ações, imóveis, moeda estrangeira etc.).

Neste sentido, não é surpreendente o forte desempenho dos mercados de ações e, de certa
forma, dos mercados imobiliários, verificado durante o período de pandemia.

Tal situação pode ser facilmente criada, tendo em vista a combinação entre taxas de juros
baixas e elevado fluxo de liquidez sustentada pelas autoridades monetárias, no entanto, pode
gerar condições perfeitas para o aparecimento de crises futuras, desta vez de caráter
endógeno ao sistema econômico.

Como é sabido, no Brasil, a exemplo de outros países, o Tesouro Nacional juntamente com o
Banco Central, e o Congresso Nacional, vêm se mobilizando desde o início da pandemia para
alocar e canalizar recursos, não só para a área da saúde como também para os campos
econômicos e sociais (transferência de novos recursos para a área da saúde; redução de juros
básicos; liberação de meios de pagamento; auxílio emergencial aos trabalhadores informais
e desempregados; programa visando garantia parcial de empregos; facilitação de créditos às
empresas; socorro aos estados e municípios, por meio do “orçamento de guerra”; etc.).

Entretanto, a sociedade brasileira terá que discutir imediata e democraticamente “o que”


poderá ser feito, e “como” deverá ser feito, para reanimar a economia nacional e os empregos

49
É necessário e importante que monitoramentos e avaliações independentes sejam realizados para atestar a eficácia e o
retorno dessas políticas ao longo das suas aplicações. Além disso, importante que instâncias como ministério público e
tribunais de contas fiquem atentos em relação aos procedimentos.
37
após o momento crítico da pandemia. Esta é uma questão muito complexa para ser deixada,
exclusivamente, nas mãos da equipe econômica do governo federal. Entretanto, tal discussão
terá de enfrentar a dura pergunta: quem irá pagar e como será paga a conta deixada pela
expansão dos gastos públicos?

.... ética do futuro...

Do ponto de vista social, ações governamentais de recuperação em nível mundial devem


levar em conta o cenário deteriorado que marcava o mundo pré-pandemia, sob o risco de
contribuírem para a projeção de uma realidade de desigualdades sociais ainda pior,
comparada àquela do final de 2019.

Olhando para o futuro imediato, pós-pandemia, e levando em conta a preservação do estoque


de capital físico mundial, aliás, ainda com elevada ociosidade, gastos e investimentos
públicos diretos, e parcerias público-privadas-PPP, deveriam se pautar naquilo que Hans

38
Jonas50 conceituou como uma (nova) “ética do futuro”, na qual a responsabilidade “com o
outro”, no momento presente, e com os outros, no momento futuro, se referindo “às gerações
futuras”, deveriam orientar as agendas das pessoas, das comunidades e sociedades e dos
governos.

Por essa estratégia o autor defende que sociedades civis e governos devem, de um lado, levar
em conta e cuidar das pessoas vulneráveis e, de outro, se movimentar de maneira que as
consequências futuras de seus atos presentes, permitam construir um mundo habitável para
as gerações vindouras.

Assim, ações e políticas públicas devem procurar atingir positivamente pessoas vulneráveis
e seus respectivos territórios e o meio ambiente (isto é, moradias, ruas, bairros, comunidades,
cidades, regiões, natureza etc.). Tais ações, além do seu valor moral associado ao
enfraquecimento (ou regulação) da “vontade de poder” de um contra o “outro”, e contra a
natureza e o meio ambiente, seriam também benéficas para a geração de emprego e renda e
a elevação da qualidade de vida das pessoas.

Se isso parece lógico aos países mais desenvolvidos, para a América Latina e o Brasil essa
direção é uma necessidade imperativa e imediata, englobando ações voltadas para a
erradicação da extrema pobreza e pobreza, que deverão exigir programas específicos de
renda mínima, dentre outros mais estruturantes.

Entretanto, isso não quer dizer, evidentemente, que, no caso brasileiro, não haja espaço para
realizações de investimentos em capital físico, especialmente quando se consideram as falhas
explícitas situadas em nível da infraestrutura e da logística, e desde que o imbróglio da
elevada dívida atual do Estado seja equacionado a curto e médio prazo, o que parece pouco
provável sem a realização de reformas estruturais e fiscais profundas e socialmente justas.

Durante a pandemia ficou demonstrado que o país não possui um sistema de logística
robusto e economicamente acessível, principalmente quando se fala em conexões via internet
(5G), que fosse capaz de atender às necessidades da demanda por serviços online,
especialmente da parte do sistema educacional, ou ensino à distância.

50 JONAS, Hans (2006), op. cit..


39
Como se sabe, no decorrer de um longo período as falhas na infraestrutura no Brasil têm se
acumulado em decorrência da modesta taxa média de investimento público nessa área,
somada à baixa qualidade dos arcabouços institucionais e jurídicos, ou marcos regulatórios,
que têm inibido a participação do setor privado no segmento da infraestrutura.

Aliás, de acordo com pesquisa realizada recentemente no âmbito do Instituto de Pesquisa


Econômica Aplicada – IPEA, o Brasil apresentou, entre 2016 e 2019, resultado negativo dos
investimentos líquidos na formação de capital físico (isto é, diferença entre investimento
bruto e depreciação) realizados tanto pelo setor privado como público.51

A deficiência na infraestrutura e logística tem contribuído para a baixa competitividade do


Brasil no cenário mundial, e também para o baixo crescimento do produto nacional.

Neste aspecto, investimentos em infraestrutura física, visando notórios pontos de


estrangulamentos, poderiam satisfazer e conectar três necessidades que se encontram
insatisfeitas no Brasil, quais sejam,

(i) aumento da competitividade sistêmica do parque produtivo,


(ii) fortalecimento do capital humano combinado com distribuição de renda e
(iii) sustentabilidade ambiental.

Assim, as forças sócio-políticas brasileiras poderiam transformar o momento pós-pandemia


em uma grande janela de oportunidades para se construir um novo modelo de
desenvolvimento para o país. Isto significa dizer que sistema nacional de inovação, energias
limpas e renováveis, segurança hídrica, modernização das redes de telecomunicações (com
promoção da universalidade do acesso à internet), novos sistemas modais de transportes e
baixa emissão de carbono deveriam fazer parte das agendas e iniciativas pós-pandemia.52
Assim, programas de investimento, a exemplo do falado “Pro-Brasil”, do governo federal,
não deveriam repetir “o mais do mesmo”.

51Ver SOUZA JÚNIOR, José Ronaldo de Castro e CORNELIO, Felipe Moraes, Estoque de Capital Fixo no Brasil,
Texto de Discussão n.2580, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2020.
Esta proposta se alinha, por exemplo, à visão de Mariana Mazzucato em relação ao papel do Estado e aos
5252

programas de estímulos na fase pós-pandemia. Ver sua entrevista a Margarita Rodriguez, na BBC News Mundo
(agosto/2020).
40
Voltando ao foco principal, no momento pós-pandemia as políticas públicas deveriam
privilegiar pessoas e famílias vulneráveis que, já pelo fato de serem atingidas pela forte
desigualdade de renda no país são também afetadas pela desigualdade na distribuição da
saúde.

Não se trata aqui do acesso ao sistema de saúde pública, senão do estado precário de saúde
das pessoas em decorrência da insuficiência orçamentária familiar (e consequentemente
subnutrição; obesidade em função da má alimentação; doenças crônicas sem
acompanhamento adequado, etc.), como bem demonstram Amartya Sen e Bernardo
Kliksberg (2007).53

Para ilustrar esse problema, pesquisa realizada pelo IBGE (2020), por meio da Pesquisa de
Orçamentos Familiares – POF, para o período 2017-2018, constatou que 36,7% dos domicílios
brasileiros indicaram passar por algum nível de insegurança alimentar, representando 14%
pontos percentuais acima do período 2013-2014.

Em resumo, a fome atinge 85 milhões de brasileiros, sendo 56 milhões com insegurança


alimentar leve, 18,6 milhões com insegurança moderada e 10,3 milhões com insegurança
alimentar grave, ou seja, quando a indisponibilidade de alimentos atinge também as crianças.

Tal problema é agravado pelo déficit e precariedade da infraestrutura social que circunda as
habitações das famílias pobres.

Segundo revelações feitas por mapeamentos geosociais dos impactos da Covid-19, os


segmentos sociais vulneráveis, fortemente atingidos por essa doença, são carentes de
habitações dignas e de infraestruturas sanitárias mínimas (acesso a água encanada e
esgotamento sanitário).54

Tais carências têm aparecido de forma escancarada no Brasil e países da América Latina neste
momento de calamidade pública pandêmica, como também, quando se trata do aspecto

53SEN, Amartya e KLIKSBERG, Bernardo, As pessoas em primeiro lugar, a ética do desenvolvimento e os problemas
do mundo globalizado, Companhia das Letras, 2007.
54 Informações mais precisas nesse campo, para o Brasil, podem ser visualizadas no artigo de autoria de SOUZA.
William Marciel de, BUSS, Lewis Fletcher et al., “Epidemiological and clinical characterístics of the Covid-19
epidemic in Brazil”, op. cit..
41
pobreza, em países como Estados Unidos e alguns outros europeus, mesmo nestes com
sistemas de proteção social estruturados.

Neste momento, até países desenvolvidos exibiram seus lados sociais obscuros. Como coloca
J. K. Galbraith (2011, op. cit.), “Cada catástrofe ‘natural’ revela, se assim fosse necessário, a
extrema fragilidade das classes populares, para as quais a vida como a sobrevivência se
encontram desvalorizadas (...)” (tradução própria).

A título de ilustração, no Brasil, o número de pessoas sem acesso à água, em 2018, era de
33.129.000, ou 16,4% da população do país (Trata Brasil/Painel Saneamento Brasileiro (SNIS,
2018).

O número de pessoas sem coleta de esgoto, nesse mesmo ano, era de 94.734.344, ou 46,9% da
população nacional (Trata Brasil/Painel Saneamento Brasileiro (SNIS, 2018). Ainda no Brasil,
no mesmo ano de 2018, o número total de pessoas internadas por doenças de veiculação
hídrica foi de 233.880, e o número de óbitos totais impactados por essa mesma causa foi de
2.180 (Trata Brasil/Painel Saneamento Brasil (DATASUS, 2018).

Em levantamento recente, realizado em 2019, a Pesquisa Nacional da Saúde-PNS, do IBGE,


constatou que apenas 66% dos domicílios pesquisados tinham banheiro e esgotamento
sanitário por rede geral de esgoto ou fossa séptica ligada à rede geral.

Diante deste quadro degradante da infraestrutura social, deve ser comemorada a aprovação
do Projeto Lei 3.261/2019, neste ano pelo Congresso Nacional, do Novo Marco Regulatório
para o Saneamento Básico no Brasil.

Ademais, investimentos em infraestrutura física deveriam ser conectados com as chamadas


políticas promotoras das “capacidades substantivas”, estas formadas por saúde (quadro
epidemiológico) e educação (nível de escolaridade), aliás, há muito já eleitas como
responsáveis em permitir aos indivíduos, quando acompanhadas de qualidade, acessar às
boas oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho.55

55
Ver SEN, Amartya, Desenvolvimento como liberdade, Companhia das Letras, 2000, bem como os relatórios sobre
desenvolvimento humano publicados pelo Banco Mundial no início dos anos 1990, quando tem início a adoção do Índice
de Desenvolvimento Humano – IDH.
42
Aqui, no tocante à educação no Brasil, a boa notícia é a aprovação neste ano, pelo Congresso
Nacional, da PEC 15/15 - 26/2020 do Novo Fundeb (Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) que,
além de aumentar a participação financeira do governo federal também corrige as
desigualdades na distribuição dos recursos entre os municípios, provocadas pelos critérios
do regime ainda em vigor. Assim, municípios mais pobres passarão a ser contemplados de
forma mais justa.

No que concerne, especificamente, ao Brasil, importante dizer que, ao investir em


infraestrutura social básica, em linha com investimentos em saúde e educação de qualidade,
o país aumentará a relação entre capital humano e capital físico (este não destruído pela
pandemia) o que poderá proporcionar aumento da produtividade total dos fatores
empregados na economia, e ainda dar suporte ao crescimento econômico sustentado ou
duradouro.

Mais do que isso, esse novo arranjo poderia também abrir novas perspectivas em termos de
melhorias estruturais na distribuição da renda nacional e aumentar o bem estar social o que,
na sequência, contribuiria para a redução das pressões sobre os sistemas de atenção à saúde.

.... a encruzilhada...

Atualmente, muito se tem falado e discutido sobre as possibilidades do surgimento de um


“novo mundo”, de um “novo homem” e de um “novo Estado” após os traumas e legados
deixados pela Covid-19, entretanto, fazer esse tipo de previsão nesta fase dos acontecimentos
parece ser demasiadamente pré-maturo, mesmo porque há muitos elementos se
manifestando e mostrando que qualquer cenário para o futuro próximo é incerto.

O que está ficando claro, no entanto, é que as sociedades, sobretudo as mais desiguais, estão
diante de uma encruzilhada na qual opções e decisões, uma vez tomadas neste momento,
poderão futuramente colocá-las de mãos dadas com um homem menos arrogante diante da

43
complexidade da natureza, respeitoso em relação à ciência e promotor do progresso humano
e da solidariedade e a cooperação.56 Ou, ao contrário, posicioná-las na rota da aceleração das
assimetrias, desigualdades e desestruturação da coesão social manifestadas já no momento
pré-pandemia, tudo isso sob a benção dos movimentos anti-iluministas e negacionistas e do
populismo nacionalista.57

Mas é preciso lembrar que, em contraposição à aceleração e o aprofundamento das


desigualdades e das mazelas sociais produzidas pela Covid-19, unidas ao negacionismo à
empatia, em todo mundo, assistiu-se, apesar de tudo, a uma grande quantidade de
manifestações de solidariedade social espontânea (no sentido dado por Durkeheim)58 nos
seios das sociedades, assim como da solidariedade coorporativa (empresas e fundações), esta
induzida pelos constrangimentos social e moral em função das circunstâncias sanitárias e
socioeconômicas.

No Brasil, por exemplo, houve mobilizações em torno da arrecadação e distribuição de


alimentos, cestas básicas, produtos de higiene pessoal, máscaras de proteção etc. Chefes de
cozinha, proprietários de restaurantes, donos de padarias etc. se lançaram na preparação e
doações de refeições às famílias carentes. Empresas, por meio de suas associações e
federações, e Organizações Não Governamentais – ONGs coletaram mantimentos e
levantaram fundos a fim de ajudar famílias vulneráveis e hospitais, neste caso para a compra
de respiradores artificiais e equipamentos de proteção individual.

A Associação Brasileira de Captadores de Recursos-ABCR, por meio do Monitor das Doações


Covid-19 (https://www.monitordasdoacoes.org.br/pt; acesso em 06/09/2020), informa que
R$ 6.152.358.179,00 foram levantados no país em forma de doações e canalizados ao combate
da pandemia, e suas consequências.

No que diz respeito, especialmente, ao Estado é difícil esperar deste ente superestrutural
soluções heroicas partindo da sua tecnocracia, das suas organizações e funções, no momento

56Sobre essas questões relacionadas aos possíveis caminhos a serem tomados após a pandemia é interessante
ler o artigo de ROY, Arundhati, “The pandemic is a portal”, Financial Times,April/03/2020.
57Sobre o tema “anti-iluminismo” oportuno ver o artigo de ZEEV, Sternhell, “Anti-lumières de tous les pays....”,
Le Monde Diplomatique, Decembre/2010.
58Ver DURKHEIM, Émile, Da divisão do Trabalho Social; Regras do Método Sociológico; O Suicídio; As Formas
Elementares da Vida Religiosa, Coleção Os Pensadores, Editor Victor Civita, 1978.
44
pós-pandemia, em vista do enorme peso da dívida pública interna e do consequente esforço
fiscal, e de pagamento da mesma; especialmente para países em desenvolvimento como o
Brasil. Sob os pontos de vista técnico e operacional, isto quer dizer que após a pandemia os
aparelhos de Estado estarão exauridos e enfraquecidos.

De qualquer forma, se há um “novo Estado” a ser construído nas sociedades ocidentais no


momento pós-pandemia, especialmente na brasileira, isso dependerá primeira e
essencialmente de mudanças profundas no sistema moral e ético (do tipo ganha – perde) que
se mostrou dominante até às vésperas da pandemia da Covid-19, e mesmo durante a vigência
desta.

Se algo mudar nesse nível, será possível surgir um “novo Estado”, acima de tudo modesto e
não voluntarista e que estará apto a assumir o papel de provedor e guardião por excelência
dos bens e serviços comuns. Nessa linha, deverá passar a cuidar (bem) melhor das pessoas,
especialmente das pessoas vulneráveis, e procurar também proporcionar uma convivência
mais decente e harmônica entre sociedade e seu meio natural, aproveitando-se de um (novo)
modelo de desenvolvimento com baixa emissão de carbono. Com isso, todos os participantes
das sociedades, inclusive as pertencentes ao futuro, ganhariam, especialmente no Brasil.

45

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