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Contágio em Marte

O ano de 2020 foi emblemático para o campo ambiental. Presenciamos uma pandemia, resultado de um desequilíbrio ecológico
interespécie explicito ao mesmo tempo em que assistimos as áreas verdes queimarem como nunca antes visto no Brasil e no exterior.
Esses fenômenos não são aleatórios. Fazem parte de uma política que se estende a longa data sem fazer alarde: o colapso ambiental
de nosso planeta não acontecerá do dia para a noite, mas em pequenas doses exponenciais. Parte de uma ausência de
comprometimento a metas internacionais simples, que por si só são ineficientes e ainda se somam a um diálogo dissimulado ao
estabelecer estratégias pragmáticas pra realiza-las. Nos últimos debates eleitorais o campo ambiental sequer fora citado, sendo o
foco dado a questões sociais das quais não podemos desqualificar. Enquanto há miséria, fome e injustiça social esse debate ficará
sempre em segundo plano, como é de se esperar. No entanto, fome e miséria são um desdobramento de uma biopolítica ostensiva de
alienação de capacidades básicas de sobrevivência. As outras espécies quando nascem, já são ensinadas por seus pais como e onde
encontrar tudo o que precisam.

Elas podem não estar seguras de predadores, mas não há escassez ou debilidade
técnica para se sustentar, salvo raras exceções. Esse contexto só é possível com a
interferência da espécie humana degradando ambientes e biomas inteiros. Esses
conhecimentos do saber-fazer, competem a esfera política do micro, do menor, do
comportamento e das escolhas pessoais, ao mesmo tempo necessitam de
sociabilização, quando a experiência é passada de pessoa para pessoa em círculos
sociais próximos. Porém, muita ênfase tem sido dada as escolhas que cada um pode
fazer para diminuir seu impacto ambiental, acompanhadas de um cuidado de si
psicocorporal. Tais esforços permeiam cada escolha que tomamos como únicas e
sem fórmulas morais - válidos enquanto uma conquista ética, porém ainda não o
suficiente.

Nascemos, nos concebemos e somos impregnados por uma sociedade industrial. É


inviável o bem-estar de todos fora dela num horizonte próximo, tanto pela dimensão
populacional, quanto por nossos afetos e desejos. Poucos são aqueles dispostos a
abandonarem suas ferramentas de trabalho. A indústria em si não é abominável, mas
sim os seus meios e o custo destrutivo que nos causa enquanto sociedade. Porém,
Esse é o nosso planeta no dia de hoje. Fonte: EPIC/NASA
não há sinais ou possibilidades reais de que uma mudança seja alcançável.

​Nessa perspectiva, a escolha de viver sem ela, ao menos em algumas atividades, exige
condição e tempo em troca principalmente de um prazer estoico de virtudes e sempre
serão poucos que se dispõe a isso. Por outro lado, a obsessão nesse sentido é um fardo
que pode desencadear moralismos restritivos maiores que as nossas pulsões podem
suportar. Tal movimento de pensamento tende a fazer o mesmo ao refletir sobre nosso
planeta. A quantidade de galáxias, estrelas e planetas no universo, nos fazem questionar
a importância do nosso. Sendo mais inciso, para quem a existência dele importa? A
quem faz diferença sua existência? Enquanto existem discursos que afirmam que antes
de um colapso ambiental completo a terra enquanto organismo terá seus meios de se
livrar do ser humano, vislumbramos com o aquecimento global que a probabilidade é
pequena, visto que compromete as condições de existência de nossa atmosfera
planetária, elemento básico para não nos tornarmos um planeta como Marte, nosso
destino imediato.

Presenciamos nesse momento uma corrida espacial entre chegarmos como espécie em
marte e as condições planetárias de Marte chegarem à terra. Nosso primeiro desafio
está em ultrapassar o lixo espacial que em grandes quantidades orbita o planeta, os
recentes apuros que a estação internacional espacial tem passado são um exemplo
disso. Sem muitas perspectivas de reverter o quadro descrito até agora, questiono se
Essa é nossa melhor imagem de marte até hoje. Fonte: NASA
você estaria disposto a essa jornada. Todos os indícios são de que em poucos anos, essa
possibilidade será viável.
De certo modo, o campo magnético da terra e a gravidade que se impõe a nós, apesar de conservarem este raro e gentil planeta, que nos proporciona sensações
prazerosas infindáveis, sempre nos condicionou a sermos uma espécie uniplanetária. As condições não são ideais, mas gostemos ou não, tornar-se uma espécie
multiplanetária é o que temos a frente. Tal mudança é tão significativa quanto o foi o domínio da navegação oceânica. Por um lado, conhecemos a barbárie que
acompanhou esse movimento, por outro, também sabemos como a cultura e arte foram completamente modificadas e deram vida a mundo moderno que não
demorou a se tornar globalizado. Desta vez, além de estarmos prestes a testemunhar uma mudança radical semelhante, também estamos a dispor o corpo humano
fora de suas condições biofísicas originais, o que nos impele a uma situação sem precedentes. A ocupação de marte em algumas gerações pode mudar nossa
fisionomia, nossos sentidos e nossa subjetividade.

Antes que tal acontecimento quase imediato nos encontre de surpresa, esse questionamento já é por si surpreendente, provocador de possíveis às criações
estéticas, conceituais e relacionais. Não é apenas a ida para Marte que é instigadora, mas principalmente, o que levaremos do ponto em que estamos, bem como, se
procuramos em Marte um refúgio de um planeta do qual desistimos ou uma extensão de nossa experiência enquanto espécie.

Essa é uma imagem da superfície de marte feita pela sonda-rover Curiosity. Fonte: NASA

Eticamente, a ciência sempre fora dúbia aos interesses da sociedade. Suas descobertas nunca serão perfeitas, pois sempre haverá coisas a se descobrir, além de
estarem sempre a prova e sujeitas à dúvida. Justamente por isso, acaba sendo o melhor que temos a contar por hora. Antes de desmerecermos seus esforços num
momento em que o delírio e a insensatez a questiona pelos motivos errados, o que temos feito para acompanhá-la? Os percursos da ciência não dependem da arte
tanto quanto a arte dela? Após milênios de esforços em se aproximar de marte simbolicamente, arquetipicamente com a justa tarefa de poetiza-lo, o quão poético
em sua crueza e nudez não é a orbita dessa esfera avermelhada ao redor do sol nos acompanhando de perto ou as fotografias tiradas por sondas, com o rover
Curiosity? Curiosity, Voyager, Pioneer; qual dentre tantos ímpetos nos leva como artistas e pensadores a criar? Não me cabe fazer juízos de valor a respeito ou
construir sentidos únicos ao que nos aguarda, por conta disso iniciamos essa troca. É esse contágio que agora nos leva a Marte. O que nos cabe enquanto artistas?
Com tantas coisas engasgadas a serem partilhadas, escrevo com curiosidade e franqueza,

Mathias Reis, Campinas, 07/11/2020

CON TECNOLOGÍA DE

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