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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Escola de comunicação
Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena

Maria Isabel Schmidt Palmeiro

Ateliê performativo:

Fazimento, ocultamento e deslocamento

Rio de Janeiro

Janeiro de 2018

1
Maria Isabel Schmidt Palmeiro

Ateliê Performativo: Fazimento, Ocultamento e Deslocamento

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes da Cena, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito para obtenção do título de mestre. Linha
de pesquisa: Experimentações da Cena - Formação Artística.

Orientadora: Professora Dra. Lívia Flores Lopes

Rio de Janeiro
Janeiro de 2018

2
3
4
Para Otávio.

5
Agradecimentos

A conclusão desta dissertação é motivo de grande felicidade, por isto devo agradecer a
algumas pessoas.
Minha orientadora, Livia Flores, pelo olhar sempre crítico e surpreendente tanto sobre
o texto, quanto sobre os objetos produzidos ao longo do mestrado.
Aos membros da banca de qualificação: professora Eleonora Fabião e professor Luiz
Camillo Osorio, que certamente encontrarão suas contribuições na versão final da dissertação.
A professora Helena Martins, que aceitou o convite para participar desta etapa final.
Diariamente, a Otavio e Ines pelo apoio, incentivo e participação.
Minha mãe, Isabel e minhas irmãs Pia e Tetê.
A professoras professores e funcionárias do PPGAC, “Império de mulheres”
fantásticas. Obrigada a Marlene pelas inúmeras assistências sempre bem-dispostas.
A contribuição e comentários de Masao Kamita, Dinah Cesare, Gabriel Fampa, Maria
Noujaim, Tamar Bajgelman e José Alberto Salgado.
A estes últimos, agradeço pelo lar e o lá lá lá.
À parceria e amizade de Maria Acselrad e Marcos Régis.
Aos cactos: Elilson, Gunnar, Luisa e Miro, pelo espaço irrestrito para o diálogo, as
diferenças e as complementaridades.
Ao apoio que recebo e admiração que nutro pelas amigas e amigos: Adriano, Ana
Diaz, Agustina, Ciça, Clemence, Hadi Tabatabai e Daneo.
À CAPES, pela bolsa de mestrado, auxilio tão necessário e simbólico do estado neste
momento político, de governo ilegítimo, à educação, pesquisa e arte.
A todos estes e a outras e outros injustamente não destacados aqui, obrigada pelo
suporte.

6
Resumo

“Ateliê performativo” é uma dissertação que se descobre performance. No sentido que, os


trabalhos de arte que se deram no seu percurso, produzem o direcionamento e a transformação
da dissertação e desta que a escreve. A dissertação, ao pensar o ateliê como cena,
aborda práticas de arte contemporâneas – minha própria e de outras e outros artistas – que
lidam com temas como o trabalho, o cotidiano e processo.
Por se tratar especialmente de um ateliê de pintura, as convenções da pintura e de seu
fazimento dão contorno à dissertação, assim como o pensamento sobre etapas anteriores à
exposição pública dos trabalhos de arte. O ateliê como cena é o lugar onde o fazimento se dá a
ver – algo análogo, porém especifico, ao que ocorre quando o fazimento acontece fora do
ateliê. A pintura passa a ter outras possibilidades formais, de fruição e de existência.
O conceito de “programa performativo” é central para esta dissertação - uma dissertação que
olha para si não como processo, mas como indício de transformação, experimentação e rigor.
Assim, reconhecendo o caráter instrumental dos performativos – e tendo em mente os atos de
fala de Austin – ela produz um espaço de trabalho, não físico, ao que se convenciona como
ateliê de artista.

Palavras-chave: artes visuais; performance; ateliê; trabalho; pintura

Abstract:

"Performative studio" is a dissertation that discovers itself as performance. In the sense that,
the works of art that were given in its course, produce the direction and the transformation of
the dissertation and of the one that writes it. The dissertation, while considering the studio as a
scene, approaches contemporary art practices - my own and others and other artists - that deal
with themes such as work, daily life and process.
Because it is especially a painting studio, the conventions of painting and the doing of a
painting, give demarcation to the dissertation, as well as the thinking about stages prior to the
public exhibition of works of art. The studio as a scene is the place where the work takes
place - something analogous, but specific, to what happens when the work takes place outside
the studio. Painting has other formal possibilities of fruition and existence.
The concept of "performative program" is central to this dissertation - a dissertation that looks
to itself not as a process, but as an indication of transformation, experimentation and rigor.
Thus, recognizing the instrumental character of the performatives - and keeping in mind
Austin's speech acts - it produces a non-physical work space, which is conventionally used as
an artist's studio.

7
key-words: visual arts; performance; studio; labour; painting

Sumário

Introdução ................................................................................................................. 9

1 Ato I: “Fazimento”..................................................................................... 20

1.1 Ponto…………………………………………………………………….... 20
1.2 A deixa da padeira………………………………………………………... 28
1.3 Recusa ao trabalho………………………………………………………... 29
1.4 Porta/chassi……………………………………………………………….. 32
1.5 Ateliê/cena………………………………………………………………... 37
1.6 Trabalho de mulher……………………………………………………...... 39
1.7 Ossos do ofício…………………………………………………………..... 43
1.8 Modos de produção……………………………………………………….. 46

2 Ato II: “Ocultamento”.............................................................................. 47

2.1 Ateliê Edward Krasinsky por Babette Mangolte………………………….. 47


2.2 Ateliê Giorgio Morandi por Tacita Dean………………………………….. 49
2.3 O enterro da pintura……………………………………………………….. 51
2.4 Visibilidade e acontecimento (I) .................................................................. 53
2.5 Cutpiece........................................................................................................ 54
2.6 Ateliê/arquivo............................................................................................... 58
2.7 Visibilidade e acontecimento (II) ................................................................ 60

3 Ato III: “Deslocamento”............................................................................ 61

3.1 Suporte e espaço público.............................................................................. 61


3.2 A obra está................................................................................................... 63
3.3 Ato de pintar................................................................................................. 66
3.4 Sem suporte.................................................................................................. 66
3.5 Dobra............................................................................................................ 75
3.6 Fôlego........................................................................................................... 81

4 Bibliografia........................................................................................................ 84
5 Anexo: Caderno de Imagens........................................................................... 88

8
Introdução

Img 01 Primeiro ateliê, Alabama Street, São Francisco, CA, 2012

Depois de ter me graduado em Arquitetura e Urbanismo em 2008, e de ter trabalhado


em escritórios de arquitetura até 2011 por dois anos, tive em 2012 a oportunidade de morar
fora do Brasil. Foi quando decidi dedicar-me integralmente ao ofício da pintura – ao qual, até
então, dedicava meus fins de semana. Dedicar-me integralmente (a um ofício) era entendido
por mim como ter um ateliê e frequentá-lo regularmente.

No ateliê, eu fui pintora, frequentando-o regularmente e pintando1. A essa altura eu


tinha pouca convivência com artistas, não havia frequentado nenhum ateliê. Minha referência
de ateliê e de trabalho de artista era sobretudo baseada em fotografias de ateliês de artistas,
homens e mulheres renomadas. Sim, Jackson Pollock, Robert Rauschenberg; mas também,
Louise Bourgeois e George O´Keeffe. Se não me engano, vi essas fotos pela primeira vez
numa revista Vogue, para alguma sessão de perfil de artista.

Eu acreditava que o que diferenciava minha rotina nesse novo lugar de trabalho – sem
tratar das particularidades do ofício de pintar em relação ao de projetar – era sobretudo não
trabalhar por demanda de um cliente ou de um chefe e não ser assalariada. Esses aspectos
faziam do meu ofício de pintora um trabalho que não se caracterizava (ao menos para mim
naquele momento) como trabalho. Assim, para ser reconhecida socialmente como
trabalhadora, eu me esforçava para manter uma rotina de trabalho semelhante à qual eu estava
habituada.

Uma certa ética protestante do trabalho sempre me foi cara 2, contudo ainda não
reconhecia sua origem, tampouco associava esta ao “espirito do capitalismo”. Max Weber,
com o intuito de desvendar as “origens desse sóbrio capitalismo burguês, com sua
organização racional do trabalho” (WEBER, 2001, p.9) constroi essa associação, sob a
premissa de que “as forças mágicas e religiosas, e os ideais éticos de dever deles decorrentes

1
Em meados de 2012 comecei a trabalhar como assistente do artista Hadi Tabatabai. Seu modo de trabalho no
ateliê foi uma minha referência para mim a partir de então.
2
Em algum momento da minha adolescência, fixado ao mural do meu quarto estava o verso de Os Lusíadas, de
Luís de Camões: “Porque essas honras vãs, esse ouro puro, verdadeiro valor não dão à gente: Milhoré merecê-los
sem os ter, Que possuí-los sem os merecer. ” (CAMÕES, canto IX , 93)
9
sempre estiveram no passado entre os mais importantes elementos formativos da conduta. ”
(WEBER, 2001, p.11)

Um elemento que então fortalecia esta conduta ética em relação ao trabalho era a
necessidade de um espaço físico próprio do trabalho. Uma mesa em casa, uma baia no
escritório e finalmente um ateliê. Necessidade que ressoa a reinvindicação de Virginia Woolf
no livro “Um teto todo seu” (1929). Reinvindicação de lugar. Não apenas literal e físico, mas
também representativo para as escritoras mulheres. A conduta ética em relação ao trabalho
não considerava então questões de gênero do mesmo modo que nos dias de hoje, do mesmo
modo que a reinvindicação de Woolf limitava-se a um estreito perfil de mulheres.

Na carta-texto chamada "Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do


Terceiro Mundo", Gloria Azaldua situa o feminismo branco de Virginia Woolf bem distante
das reinvindicações da mulher mestiça de Terceiro Mundo, e nos oferece outra perspectiva
sobre o lugar e as condições de trabalho da mulher que escreve:

“Esqueça o quarto só para si – escreva na cozinha, tranque-se no banheiro.


Escreva no ônibus ou na fila da previdência social, no trabalho ou durante as
refeições, entre dormir e acordar. Eu escrevo sentada no vaso. Não se demore
na máquina de escrever, exceto se você for saudável ou tiver um patrocinador
– você pode mesmo nem possuir uma máquina de escrever. Enquanto lava o
chão, ou as roupas, escute as palavras ecoando em seu corpo. ”
(AZALDÚA,2000, p.233)

É curioso pensar que a irmã de Virginia Woolf, Vanessa Bell, pintava. É dela a
imagem da capa da primeira edição do livro de Woolf. Nas pinturas de Bell, mulheres e
meninas brancas em situação de ócio em seus lares burgueses, situação com a qual Azaldúa
nunca se identificaria. Logo, qual é a especificidade do trabalho da mulher? E da mulher que
pinta?

O valor do trabalho, assim como qualquer valor definido por uma sociedade, não é
absoluto. Valor estético, por exemplo: o modo como uma pintura é avaliada pode diferir em
termos de qualidade e critério. A começar por meu vizinho de ateliê - um russo com formação
de oito anos na escola de artes de São Petersburgo e que fazia habilidosas pinturas figurativas.
Volta e meia Stanislav me perguntava (inicialmente consternado, depois por pura hostilidade):
- O que você está fazendo?

10
Para ele, o valor da pintura estava na técnica e na maestria, nada que minhas pinturas
demandassem ou refletissem.

Aos poucos, eu adquiria consciência do que eu fazia no ateliê. Eu estava alerta ao meu
corpo no ateliê e às atividades ali desempenhadas - aos improvisos e às tarefas pré-
concebidas. Como por exemplo: pintar uma papoula.

Essa consciência se expandiu quando, aferrada em manter a rotina e o local de


trabalho, ao retornar ao Rio de Janeiro grávida, prontamente aluguei um novo ateliê (desta vez
exclusivo, de modo que nenhum Stanislav me questionaria sobre o que eu estivesse a fazer).
Senti que precisava então, compreender e esmiuçar de onde vinha essa busca por qualificar a
minha pintura, a minha rotina - e logo meu modo de vida - pela afirmação do trabalho. Como
essa necessidade pessoal de afirmar uma certa rotina de trabalho, influi na qualidade e na
linguagem da pintura que eu produzo?

Naquele momento, minha compreensão de trabalho refletia um modelo empregatício


convencional: hora para entrar, hora para almoçar, hora para voltar, e hora para ir embora.
Oito horas de trabalho com uma hora de intervalo para o almoço. Salário no fim do mês (sem
carteira assinada). Mas porque visar este modelo de trabalho? Má consciência? Culpa do
prazer que me produzia estar, e não necessariamente estar produzindo, no ateliê? Afinal o que
se produz no ateliê além de objetos de arte?

Em texto sobre a obra de Hélio Oiticica, Peter Pelbart comenta a crítica de Friedrich
Nietzsche aos valores. Crítica que ambiciona a “transvaloração dos valores”, ou seja, algo que
atravessa e perturba a ontologia dos valores e, deste modo, transforma o modo como agimos.
Pelbart diz:

“Se o primeiro passo na apreciação dos fenômenos, sejam eles morais,


estéticos ou filosóficos, é remetê-los aos valores que os regem, o segundo
passo consiste em remontar às avaliações, ao gesto de avaliação que deu
nascimento a tal valor ou qual valor. [...] Mas o terceiro passo é ainda mais
crucial. [...] que tipo de vida ou modo de existência precisou criar tal ou qual
valor que o expressa e o reitera. ” (PELBART,2016, p.234)

Em relação ao valor que eu atribuía ao trabalho, era necessário vasculhá-lo, buscar a


raiz da minha concepção de trabalho, sensibilizá-la para que surgissem outros modos e outro
entendimento do trabalho. Ao fazer isso, o trabalho talvez não precisasse mais assumir apenas

11
as feições de uma ética do trabalho moderna e capitalista, motivada pela produtividade.
(ARENDT,1958, p.105).

O “ateliê performativo” surge daí, como modo e meio de me defrontar com valores,
hierarquias, desejos e recalques que afetavam e afetam minha produção de artista. Produção
esta que visava deslocar o valor da obra, e consequentemente a crítica da obra, para o valor do
trabalho. Em síntese, não importa a qualidade obra, importa o trabalho. Argumento
conflituoso para uma pintora autodidata, pouco virtuosa e que produz pinturas rápidas e sem
maestria.

Assim, com a inauguração do ateliê performativo, me vi empenhada em consolidar


uma prática artística que visasse o fazer, o que me conduziu a experimentação de práticas
voltadas para o processo, palavra que mais adiante será abolida da caracterização do ateliê
performativo. Esta motivação se amparou na definição do conceito “programa performativo”,
formulado por Eleonora Fabião:

“Programa é o motor de experimentação porque a prática do programa cria


corpo e relações entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa
circulações afetivas impensáveis antes da formulação e execução do
programa. Programa é motor de experimentação psicofísica e política. [...].
Muito objetivamente, programa é o enunciado da performance: um conjunto
de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente
polidas a ser realizado pelo artista, pelo público ou por ambos sem aviso
prévio. ” (FABIÃO, 2013, p.4)

No meu projeto de ingresso ao mestrado eu havia escrito: “Fazer de meu próprio ateliê
um ateliê performativo durante o período de vigência do mestrado”. Um enunciado simples,
como propõe Fabião, “claro e conciso [...] sem adjetivos e com verbos no infinitivo”.
(FABIÃO, 2013, p.4)

Contudo, o enunciado não especifica o termo ateliê performativo, o que dá margem


para muita especulação. Margem é um princípio importante para atuação no ateliê
performativo. O termo “ateliê performativo” é um exercício de imaginação e figuração3 de
um objeto teórico e de uma prática artística. É o contexto indissociável do programa. A
realização do programa, neste caso, supõe também que o contexto é afetado e transformado.

3 Estou pensando aqui no verso de Dante: “Ah, como armar no ar essa figura (...) que só de pensa-la me
desfigura” (Dante apud Martins), que me foi apresentado pela professora Helena Martins.
12
De resto, se sou eu quem defino o programa, ele terá seus pilares sobre a base que é a
minha subjetividade, que tem também um corpo, que cria valores. Metáforas do universo
solido da arquitetura transpostas aqui com menos firmeza (firmitas). Nas palavras de Pelbart,
um ser “que cria o valor [...], está enraizado num corpo, tem interesses e desejos, resulta de
certa configuração pulsional, constitui um tipo de vida” (PELBART, 2016, p.234).

O conceito de programa de Fabião é estratégico também nesse sentido – pois essa


subjetividade existe no corpo. Por isso, acredito, conforme a proposta de Fabião para o
enunciado do programa, que a forma é tão importante para que experimentação seja “mais
fluida” (FABIÃO, 2013, p.4), ao mesmo tempo em que é endereçada. É a tal margem.

Considero, finalmente, interessante observar que são dois os lugares que escolho para
a realização do programa e para efetivação do que Fabião descreve como “o ato de pertencer”.
Em suas palavras: “[...] este pertencer performativo é um ato tríplice: de mapeamento, de
negociação e reinvenção através do corpo-em-experiência” (FABIÃO, 2013, p.5). Um lugar é
o ateliê, e o outro é o mestrado.

O encontro com a teoria é também catalizador da experimentação; a teoria cria


contextos. Entendo que este pertencer é também uma ética. Ética que busca recortes espaciais
maiores que o do ateliê. Mas o ateliê, em termos de dinâmica social, também pertence a um
contexto maior. Em síntese, eu não só faço no ateliê, como eu também faço no mestrado.

Alguns trabalhos feitos na decorrência do ateliê performativo tem a sua melhor forma
de existência, isto é, sua visibilidade, no texto desta dissertação. Acontecem no texto quando
aqui escritos, performados, editados, somados e multiplicados, a fim de obter uma massa sem
contorno rígido de motivações (intenções e volições), o ocultamento e o deslocamento da
agência e do agente do fazimento. O que não acontece com os trabalhos isolados dessa massa.

São esses meus dois contextos, recorro então à teoria do performativo de John L.
Austin para falar em contexto: “Em termos gerais, é sempre necessário que as circunstâncias
em que as palavras são pronunciadas sejam, de alguma maneira ou maneiras, apropriadas. ”
(AUSTIN, 1962, p.8, tradução minha)4. O mestrado se torna uma plataforma externa ao ateliê,
que permite um outro ato de pertencimento, no sentido que Fabião coloca, alternativo ao
ateliê. Estabelece-se um outro par de diálogo. O par ateliê-mestrado contraponto ao par ateliê-

4
“Speaking generally, it is always necessary that the circumstances in which the words are uttered should be in
some way, or ways appropriate.” (AUSTIN, 1962, p.8).
13
galeria. Trata-se da escolha de outro lugar para situar o trabalho de arte, e, consequentemente,
de outro modo de produzir arte. Esse diálogo permite que as ações que se dão no ateliê
tenham uma existência que não depende do espaço expositivo tradicional, ou seja: galerias,
feiras e museus, e que se coloque sob outra perspectiva os produtos do ateliê.

Em relação a contexto e pertencimento, outro dado importante a se destacar é que


grande parte dos trabalhos desta dissertação responde ou se apropria de imposições temáticas
e condições estabelecidas por editais culturais.

Do par ateliê-galeria constitui-se tradicionalmente o ateliê de artista. Na descrição do


ateliê feita por Daniel Buren no ensaio “The function of the studio” (A função do ateliê), o
ateliê é uma peça chave no funcionamento do sistema de arte tradicional. É também um
elemento central para o condicionamento das obras nele produzidas para sua adequação à
arquitetura e à estética dos espaços de museus e galerias, nas palavras de Buren: “O museu e a
galeria, por um lado, e o ateliê por outro, estão conectados para formar as bases de um mesmo
edifício e um mesmo sistema” (BUREN, 1971, p. 51, tradução minha) 5.

A fim de descrever o funcionamento do ateliê em relação ao sistema de arte


tradicional, Buren definiu o estado das obras que no ateliê aguardam ser exibidas como no
“purgatório”, obras que esperam pela ocasião de ascender ao estado de “graça”, alcançado
quando de sua incorporação a uma coleção institucional ou privada. Tudo isso, afirma Buren,
“para que possam existir” (BUREN, 1971, p. 53, tradução minha) 6. Ou seja, a obra passa a
existir no momento em que ela é exposta ao público.

O que Buren também sugere é que nessa cadeia produtiva a passagem da obra do
espaço do ateliê para o espaço expositivo resulta sempre na perda de algo essencial à obra. E
essa perda, na visão de Buren, é algo que a/o artista não deveria jamais tolerar. Logo, a/o
artista que produz dentro da ética inerente a esse ateliê corrobora com o sistema de arte
tradicional. Nesse sentido, o a ateliê produz e reproduz o sistema de arte tradicional.

É segundo esse modo operativo que o enunciado “fazer de meu próprio ateliê um
ateliê performativo durante o período de vigência do mestrado” atravessa minha prática no
ateliê – para a partir de ações performativas pôr em questão o trabalho de arte e o metiê das
artes visuais. O mestrado enquanto programa performativo se engaja em especificidades

5
“The museum and gallery on the one hand and the studio on the other are linked to form the foundation of the
same edifice and the same system” (BUREN, 1971, p. 51).
6
“In order to exist” (BUREN, 1971, p. 53).
14
contextuais: sociais, políticas, e históricas do campo das artes e do trabalho, bem como na
fisicalidade do ateliê. A transformação e a transvaloração que a ação performativa endereça e
produz se explicitam na direção teórica e no reposicionamento (físico e conceitual) de minha
própria prática ao longo destes dois anos e desta dissertação.

Sobre o ateliê no contexto da performance e das artes visuais, Regina Mélim escreveu:

“Um breve comentário para que possamos colocar uma lente sobre esse lugar
escolhido como espaço de experimentação, ou, ainda de realização de práticas
artísticas, comumente referido como ateliê. Redesenhado há algumas décadas,
seja pela expansão de suas paredes, seja pelo recolhimento da produção para o
âmbito doméstico, o ateliê tem sido, com muita frequência, gerador de uma
zona de indeterminação. Se, com esse último, assinala Lisette Lagnado,
desfizeram-se os limites fixos entre o público e o privado, uma vez que na
permanência de domicilio surgiu um híbrido de lar com labor, lugar em que o
artista vive e trabalha. (...) não resta dúvida de que, quando expandiu suas
margens, seus contornos se tornaram tanto ou mais opacos. Quando o ateliê
passa a ser “qualquer lugar”, “todo lugar” ou “onde eu estiver”, seu conceito
passa a estruturar não somente como um lugar físico, mas sobretudo, como
uma espécie de parênteses no tempo, passando a existir, então, onde o artista
está. ” (MELIM, 2008, p.50)

Para Melim, o ateliê é também um conceito que a/o artista pode carregar consigo
como um caramujo e que, portanto, lhe confere autonomia para desempenhar suas ações,
atribuindo a estas uma existência destacada, um “parêntese”. O ateliê opera neste caso como
uma suspensão dos modos funcionamento dos espaços e do tempo.

Faço aqui um pequeno parêntese no curso desta introdução, para inserir uma discussão
atual sobre o estatuto do ateliê, o conceito de “post studio art”. Partindo da crítica que faz
Buren, e do pressuposto que o ateliê é um elemento fundamental na construção de uma
subjetividade moderna do artista – o argumento presente na teoria de Amelia Jones e André
Lepecki – que segue um modelo subjetivo majoritariamente masculino e recluso. Como
afirma Caitlin Jones afirma no texto “The function of the studio (when the studio is a laptop)”
de 2010:

“O ensaio de Buren é um exemplo conciso da concepção pós-moderna da


prática "pós-estúdio". [...] O legado da arte "pós-estúdio" é ampliado por
artistas que trabalham com formas digitais e ambientes online. Geralmente,
esses tipos de práticas são menos uma negação aberta do elemento

15
"ossificante" do estúdio e mais um reflexo de como o digital mudou a
produção cultural em geral.” (JONES, 2010, p.1, tradução minha) 7

Reverberando Azaldua: "O que acontece quando o estúdio em questão é simplesmente


um laptop na cozinha do artista ou em um café?" (JONES, 2010, p.1, tradução minha) 8. Essa
discussão, em torno do topos do ateliê, está localizada no terceiro ato desta dissertação, no ato
de deslocamento.

Img 02 – Ateliê de Daniel Buren, sem data.

Logo, a noção de contexto como algo que confere eficácia a uma ação encontra no
ateliê um aliado em função do estatuto do ateliê na narrativa das artes visuais, e da suspensão
provocada no ato de nomear um lugar (tempo e espaço) de ateliê.

Porém, mais que ilustrar mais uma operação de deslocamento na história da arte
(deslocamento que confere estatuto de arte às ações que se dão no ateliê), quero ressaltar o
aspecto performativo que direciona minha prática artística, a pintura, para a relação da pintura
com a performance – o descolamento das artes visuais para as artes da cena (um deslocamento
pensado a partir das convenções do suporte da pintura).

Pois o ateliê em questão é o ateliê de pintura 9. Na história da pintura observamos o


deslocamento do valor da pintura para a gestualidade: nos desenhos contínuos de Pablo
Picasso, no dripping de Jackson Pollock10, no derramar de Lynda Benglis e Marcia X, no
corpo suporte para a pintura de Yayoi Kusama, no corpo que aplica a tinta na anthropometrie
de Yves Klein, para citar apenas alguns exemplos recorrentes. É inerente à relação entre
performance e pintura a relação entre gesto e resultado (índice ou objeto). A partir do
entendimento de autoria e subjetividade que se tem na tradição moderna do artista/agente,

7
“Buren´s essay is a concise example of the postmodern conception of “post studio” practice. […] The legacy of
“post-studio” art is amplified for artists working with digital forms and online environments. Generally, these
types of practices are less an overt negation of the “ossifying” element of the studio and more a reflection of how
the digital has changed cultural production at large” (JONES, 2010, p.1).
8
“What happens when the studio in question is simply a laptop in the artist´s kitchen or the local coffee shop?”
(JONES, 2010, p.1).
9
O ateliê de pintura, assim como o de escultura, como de Piet Mondrian e Constantin Brancusi, ocupam um
lugar bastante central, e atualmente convencional e apaziguado, no imagético das artes visuais.
10
O registro em vídeo do artista Jackson Pollock pintando ao ar livre faz um par dissonante com as fotos
também disparadas por Hans Namuth no ateliê (as fotos e o vídeo são de 1951). As locações diferentes mostram
que o ateliê não era central para a performatividade da pintura de Pollock, e sim a gestualidade. Segundo Jones:
“Estas imagens, mobilizadas em relação ao sujeito artístico ao longo das décadas seguintes, sinalizam mudança
na concepção e encenação deste sujeito na sua relação tanto com o trabalho como com o espectador” (JONES,
1998, p.53, tradução minha).
16
Amelia Jones alega, a linhagem descrita anteriormente é uma leitura produzida a partir de
uma performatividade específica que a autora chama de “Pollockian Performative” e que está
centrada no autor definido como a “fonte de significado intencional” (JONES, 1998, p.57) da
ação, e de um entendimento particular de corpo que existe apenas em relação, e sobretudo
baseada numa concepção de subjetividade moderna masculina:

“Enquanto performatividade e sujeito artístico (a função do autor), então


Pollock é multiplicidade. Dentro dos códigos estabelecidos em relação a
"performance" de si, por Greenberg, Rosenberg, Namuth e outros
contemporâneos, Pollock é uma figura ricamente contraditória, tanto do
modernista masculino e exagerado (desencarnado na criação) quanto uma
objetificação, excessivamente exposta e plenamente incorporada dos desejos
interpretativos da arte - como argumentou Kaprow, ele abre os circuitos do
envolvimento do público de tal forma que "o artista, o espectador e o mundo
exterior estão muito envolvidos de forma intercambiável aqui". [...] O corpo
velado do Pollock de Greenberg, se torna a “origem” " das práticas de arte da
performance desenvolvidas no final da década de 1950 e 1960”(JONES, 1998,
p.83, tradução minha) 11

Essa concepção, segundo Jones, que foi construída a partir da leitura do crítico Harold
Rosenberg e reforçada por Clement Greenberg. Para Jones, a “action painting”, termo de
Rosenberg, pode no final das contas ser vista na chave do indiciário; ainda o objeto icônico
que representa a ação (temporalmente anterior) que o executa. Jones quer propor uma ação
que não deixa traços: "Então podemos imaginar uma indexicalidade tão pura que não seria
mais indexicalidade: onde o corpo em ação simplesmente "é" o que apresenta" (JONES, 1998,
p.84, tradução minha). 12 A desvalorização da pintura enquanto objeto seria nesse sentido um
caminho para reforçar a performatividade na pintura? O segundo ato da dissertação, o ato de
ocultamento, trata dessa questão.
Faz-se necessário definir o uso da palavra performatividade. Entendo por
“performativa” a noção que – nas palavras de Féral - “valoriza a ação em si, mais que seu
valor de representação, no sentido mimético do termo” (FÉRAL, 2008, p.201), do mesmo que
Jones diz “o corpo em ação simplesmente é”. Ação como movimento e acontecimento.

11
“As a performative and discursively defined artistic subject (or author function) then, Pollock is multiple.
Within the codes established in relation to his self “performance” by Greenberg, Rosenberg, Namuth, and other
contemporaries, Pollock is richly contradictory figure, both quintessential, even exaggerated male modernist
(disembodied in creation) and commodified, excessively displayed and fully embodied site of art interpretive
desires – as Kaprow argued, he opens the circuits of audience involvement such that such that “ [t]he artist, the
spectator and the outer world are much too interchangeably involved here.”[…]The veiled body of the
Greenbergian Pollock becomes the “origin” of the performance art practices developed in the late 1950s and
1960s” (JONES, 1998, p.83)
12
“Then we can imagine an indexicality so pure it would no longer be indexicality: where the body in action
simply ‘is’ what it presents.” (JONES, 1998, p.84).
17
No programa performativo de Fabião – que objetiva a ação performativa nos termos
acima descritos- a questão do corpo é central 13. A ação performativa é um trabalho a partir do
corpo, da ferramenta corpo: “Programas tonificam o artista do corpo e o corpo do artista”
(FABIÃO, 2013, p.8).

Tradicionalmente, contudo, o corpo na pintura não me parece interessado na “criação


de corpo”, senão na criação de pintura. Talvez por isso eu tenha me detido nos gestos dos
artistas mencionados, gestos que tenho memorizados e posso ilustrativamente reproduzir. A
reprodução desses gestos pode ser ilustrativa (representação), como também pode ser
performativa se pensada como trabalho/experiência/exercício de corpo. Uma ou outra
condição dependerá do contexto e de como se dá a ver a ação.

Então não só o programa ateliê performativo cria um corpo de trabalhos (body-of-


work) compreendido por ações e objetos, como também um “corpo-em-experiência”. Este
imbrica, necessariamente, relações entre vida e arte, ética e trabalho.

“Cabe ao criador interessado em continuar investigando possibilidades de arte,


de pensamento, de materialidade de mundo através do seu trabalho (como fez
Duchamp), seguir desfamiliarizando o familiar e gerando espaço para que
outras formas de vida, de instituição, de produção e recepção possam ser
articuladas, propostas, vividas.” (FABIÃO, 2013, p.8)

Valores constituem e são constituídos por modos de vida. Modos de vida ou existência
relacionados a um corpo, “um corpo faz corpo: isso não é uma tautologia. É a atribuição ao
sujeito de seu atributo essencial” (NANCY, 2013, p.43). É neste circuito entre atributo e
atribuição que a performatividade afirma então seu potencial de transformação.

A partir dos pressupostos supracitados, a dissertação é composta de três capítulos-atos,


fazimento, ocultamento e deslocamento, decorrentes e também prescritivos do programa
performativo e dos trabalhos feitos entre março de 2016 e dezembro de 2017.

Ou seja, os três eixos teóricos que estreitam as relações de pertencimento entre ateliê e
mestrado. O primeiro é fazimento, onde trato com maior ênfase na questão do trabalho e

13
O texto “Como criar para si um corpo-sem-órgãos”, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, é uma
referência fundamental para a autora, conceito construído a partir de Antoin Artaud, conceito que
sugere um conjunto de práticas a fim de constituir um corpo "feito de tal maneira que ele só pode ser
ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. [...]O CsO faz passar
intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso. ”
(DELEUZE &GUATTARI, 1996, p.11)

18
produtividade. No segundo, lido com processos de ocultamento do objeto indiciário. O lugar
do fazer versus o lugar de expor. O terceiro, deslocamento, é um capitulo onde retomo a
questão da pintura, e encontro grande afinidade com os processos de deslocamento da pintura
de seu suporte convencional. Nas possibilidades deslocamento espacial, semântico e de
suporte, surgem outras possibilidades para o fazimento da pintura.

Esta dissertação não é um memorial, mas também, não deixa de ser um. Se fiz uma
narrativa em tom confessional, é porque a meu ver a dissertação pensada enquanto programa
performativo provou ser extremamente eficaz em produzir transformações em concepções e
hábitos sedimentados e arraigados. A força dessa transformação – pessoal e do meu trabalho
de arte - que se deu tanto pela teoria quanto pela prática, me parece muito alinhada com as
motivações da performance e do programa de Fabião.

Se inicialmente meus referenciais eram em grande maioria artistas homens


consagrados americanos, pois a pintura abstrata americana foi minha primeira escola, aos
poucos esses referenciais, Robert Rauschenberg, Morris Louis, Bruce Nauman, John
Baldessari, para citar alguns, se tornaram menos absolutos e lapidares.

Artistas mulheres e brasileiras passaram a se destacar desvelando outras formas de


pensar os processos do trabalho de arte, são estas: Tacita Dean, Babette Mangolte, Leticia
Parente, Sonia Andrade, Lynda Benglis, Geta Bratescu, entre outras. O mesmo acontece com
o referencial teórico e com os modelos críticos utilizados. Por conta dessa expansão e
reflexão, o pronome feminino é usado com frequência como pronome comum de dois
gêneros.

A substantivação - a constituição de substantivos a partir de verbos – dos verbos fazer,


ocultar e deslocar dá se pelo fato de que enquanto substantivos são atributos do
funcionamento do ateliê no período do mestrado. É também porque, como mover e
movimento, o sufixo “ento” sugere certa continuidade – mais do que um instante, constância
– a possibilidade de pensar a ação como um modo continuado, num processo de repetição e
variação. Uma continuidade circular, não linear. Circularidade que eu percebo no movimento
desta dissertação, e que eu espero que seja percebida também por quem a lê.

19
Ato I

Fazimento

“Apenas do ponto de vista capitalista ser produtivo é uma


virtude moral, até mesmo um imperativo moral.”

(Silvia Federici, Revolución em punto cero)

1.1 Ponto

Img 03 Arquivo para serigrafia do Ponto, 2016.

Na parede do ateliê da rua Conde de Irajá, destacada com caneta iluminadora rosa, está
a seguinte frase: “Minha conclusão foi a de que eu era um artista e eu estava no ateliê, então
qualquer coisa que eu estivesse fazendo no ateliê deveria ser arte. ” 14 (NAUMAN 1978, apud
KRAYNAK 2005, p.194)

A frase do artista americano Bruce Nauman deve ser entendida no contexto da arte
norte-americana de então – isto é, tanto do desgaste do expressionismo abstrato e do modelo
crítico, e do éthos15 que o acompanha, quanto da emergência das artes ditas processuais e da
arte conceitual.

O silogismo me serviu de amparo e provocação nos dias em que não sabia o que fazer
no ateliê ou nos que me sentia improdutiva; também me fez questionar quais as atividades eu
supunha estarem compreendidas pelo meu ofício de pintora. De todas as ações que se davam
no ateliê, porque apenas algumas eram consideradas produtivas e, consequentemente,
justificavam meu dia de trabalho?

O então jovem pintor americano Frank Stella, em uma palestra na escola de arte Pratt
Institute em Nova York, palestra conhecida como “The Pratt lecture”, disse que a questão da
pintura não é apenas o que fazer, mas principalmente como fazer: "Há dois problemas na
pintura. Um é descobrir o que é a pintura e o outro é descobrir como fazer uma pintura. O
primeiro é aprender alguma coisa e o segundo é fazer algo” (STELLA, 1960). 16 Como fazer a
pintura?

14
“My conclusion was that I was an artist and I was at the studio, then whatever it was I was doing in the studio
must be art.” (NAUMAN 1978, apud KRAYNAK 2005, p.194)
15
“The world of abstract expressionism was very “Macho”” (WARHOL, 1980, p.45)
16
“There are two problems in painting. One is to find out what painting is and the other is to find out how to
make a painting. The first is learning something and the second is making something.”
20
A produtividade, enquanto valor, tem suas fundações e projeções no modo como
encaramos as instâncias da vida e do trabalho. O sujeito produtor, ou seja, agente
transformador da natureza por excelência é o homo faber. “Ao definir o trabalho como ‘o
metabolismo do homem com a natureza’ [...] o trabalho se incorpora a seu sujeito”. (MARX
apud ARENDT, 1958, p.121). De acordo com esta afirmação, que vai ao encontro da
definição de homo faber, a demanda por produtividade está introjetada no sujeito na
sociedade capitalista. A produtividade é um modelo de existência, o fazimento é outro,
diverso.

No caso do silogismo de Nauman, o que está em jogo, do ponto de vista do trabalho é


tanto o status da ação feita no ateliê (que, logo, “deveria produzir arte”), quanto a ideia de
produtividade enquanto produção de algo, seja ação ou objeto de arte.

Há duas afirmações na frase de Nauman: “eu era um artista” e “eu estava no ateliê”.
Nauman problematiza o estatuto das suas ações no ateliê, valendo-se do discurso do trabalho.
Quando digo as ações tenho em mente as desempenhadas e registradas nos vídeos que o
artista fez entre os anos 1967 e 1969, como “Boucing Two Balls between the Floor and the
Ceiling with Changing Rhythms” (1967-68) e “Rhythmic Stamping in the Studio [Stamping
in the Studio]” (1968).

Com as ações praticadas em seu ateliê e registradas em videotape – ressalto, na


privacidade do ateliê – quer provocar as convenções do trabalho de arte. No contexto da arte
conceitual, a objetualidade da produção artística já está a essa altura posta em questão. Mas,
como a análise da frase de Nauman confirma, o valor conferido à produtividade material do
trabalho não está. Nauman se filma em seu ateliê, produz vídeos além das atividades
desempenhadas no ateliê. Com seu silogismo, Nauman empurra sua prática contra o paredão
da ética do trabalho, com uma força não despida desta ética e não menos pragmática. A crítica
a uma certa compreensão do que é arte (e também o que é experiência estética) se alia ao
discurso moral do valor do trabalho (labor). 17

Img 04 Bruce Nauman, “Stamping in the Studio”, 1968.

17
Esta intuição se confirma no trabalho mais recente (2008) de Nauman (“Days/Giorni”), uma instalação sonora
acompanhada da imagem dos dias da semana escritos em inglês e organizados em distintos modos de
acumulação e agrupamento (six a time, five a time...). “While Days seems to evoke the passage of time itself –
time passing, twisting and turning unraveling inside and over us – Giorni hints at the passage of a life, our
inexorable life sinking in time. Days may have its origins in the experience of the empty artist´s studio where
time never stops passing, and its passing takes the form of an endless interrogation of the nature of work and
art.” (BASUALDO, 2009, p.161)
21
O ateliê de Nauman não é apenas o lugar de ensaio, processo e criação; é também e
principalmente o lugar anunciado para o fazimento. É o contexto que confere eficácia à ação –
qualquer ação - que ali se executa. Emprego aqui os termos “contexto” e “eficácia” conforme
definidos pelo filósofo J. L. Austin no livro “How to do things with words” (que na tradução
de Danilo Marcondes, para o português, ganhou o título “Quando dizer é fazer”).

O que Austin enfatiza é que nem sempre dizer se limita a “descrever” o mundo, mas,
também, muitas vezes, agir no mundo, transformando-o. O silogismo de Nauman produz uma
inversão da fórmula “quando dizer é fazer”: Quando fazer é dizer. 18

É dizer: “I´m making art”19, porque estou no contexto do ateliê, lugar do trabalho
do/da artista, logo, produzindo trabalho de arte.

Cabe distinguir aqui a diferença entre o que estava fazendo, por exemplo, o artista
conceitual John Baldessari naquela mesma época. Este, através de uma série de vídeos,
proclamava frases como “I am making art”, “I Will not make boring art”, e musicalizava
citações do também artista conceitual Sol Lewitt. A eficácia da fala de Baldessari dependia de
seu status de artista, ainda que o fizesse com ironia. Nauman, por sua vez, não está apenas se
autoproclamando artista, mas atribuindo ao lugar onde o artista trabalha a prerrogativa da
produção de arte.

A mudança produzida pela afirmação de Nauman é, portanto, radical; está vinculada


ao surgimento de uma nova estética – ou melhor, daquilo que Lucy Lippard define como arte
conceitual e que tem uma materialidade (ou uma imaterialidade para usar as palavras da
própria) bastante específica: “aquela em que a ideia tem primazia sobre a forma material, que
é secundária, leviana, efêmera, barata, pouco pretenciosa, ou está desmaterializada”
(LIPARD, 1995, p.25, tradução minha).

Na lida também com a questão da produtividade, o artista Tehching Hsieh lança luz
sobre o tempo dedicado ao pensar no ateliê, e sobre o impasse da produtividade e da
materialidade nas artes: “Eu estava andando de um lado para o outro, pensando no ateliê
[doing my thinking]. (...) Gastei muito tempo nesta situação de isolamento, como se eu

18
Posteriormente, encontrei no texto de Jean Luc-Nancy, “Fazer a poesia”, a mesma formulação “quando dizer é
fazer e quando fazer é dizer” (NANCY, 2013, p.414), em torno da reflexão sobre poesia não enquanto gênero,
mas como acesso ao sentido.
19
Frase pronunciada pelo artista americano John Baldessari, no referido vídeo “I am Making Art”, de 1971.
22
estivesse cumprindo pena [doing time]. ” 20 (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.455,
tradução e grifos meus)

Entre os anos 1978 e 1986, Hsieh, natural de Taiwan, vivendo ilegalmente em Nova
York, executou cinco performances com a duração de um ano, intituladas “One Year
Performances”. A duração, destaco, não é apenas o termo que se refere ao intervalo de tempo
compreendido entre a data de início e termino da performance; é também o seu significado de
conservação, permanência, persistência e resistência. As “Performances de um ano” de Hsieh,
tratam de duração.

Estas se dão (conforme circunstanciado pelo artista em staments documentados e


legalmente formalizados num ato de inauguração das performances) nos seguintes espaços e
estados de privação e ação:

Na primeira21 (1978-1979) o artista afirma que ficará enclausurado em uma gaiola


dentro de seu ateliê (auxiliado por um colega que lhe garante o cumprimento de suas
atividades fisiológicas básicas). Na segunda 22 (1980-1981) o artista institui a obrigação de
marcar uma folha de ponto de hora em hora, no relógio que está em seu ateliê. Na terceira23
(1981-1982) Hsieh deveria ficar ao ar livre, nunca dentro de nenhum lugar ou coisa (senão um
saco de dormir). Na quarta 24 (1983-1984) ficará atado por uma corda à artista Linda Montano.
E finalmente, na quinta 25 (1985-1986), ele não fará, não verá, não falará, não irá a galerias ou
museus de ARTE. Todos enunciados para durar/conservar/permanecer/persistir/resistir um
ano.

20
“I was walking back and forth doing my thinking in the studio. (...) I had spent a lot of time in this situation of
isolation, as if I was doing time” (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.455).
21
“Eu, Sam Hsieh, pretendo fazer uma performance de um ano, começando em 30 de setembro de 1978.Devo
me fechar em meu estúdio, em confinamento solitário dentro de uma cela com medida de 3,5 x 2,7 x 2,4 m.NÃO
devo conversar, ler, escrever, escutar rádio ou assistir televisão, até que eu me solte em 29 de setembro de
1979.Deverei me alimentar todos os dias.Meu amigo, Cheng Wei Kuong, irá facilitar essa performance
encarregando-se da minha comida, roupas e resíduos.” (HSIEH apud REZENDE, 2016)
22
“Eu, Sam Hsieh, pretendo realizar uma performance de um ano. Devo apertar um relógio de bater ponto, em
meu estúdio, de hora em hora por um ano.Devo deixar imediatamente a sala do meu relógio de ponto a cada vez
em que eu apertar o relógio de ponto.” (HSIEH apud REZENDE, 2016)
23
“Eu, Tehching Hsieh, pretendo realizar uma performance de um ano.Deverei ficar AO AR LIVRE por um ano,
nunca dentro de lugar algum.Não deverei entrar em nenhuma construção, metrô, trem, carro, avião, navio,
caverna, barraca.Terei um saco de dormir.” (HSIEH apud REZENDE, 2016)
24
“Nós, Linda Montano e Tehching Hsieh, pretendemos fazer uma performance de um ano. Ficaremos juntos
por um ano e nunca ficaremos sozinhos. Ficaremos no mesmo cômodo ao mesmo tempo, quando estivermos
dentro de algum lugar. Seremos amarrados juntos pela cintura por uma corda de 2,4 m. Nunca nos tocaremos
durante um ano.” (HSIEH apud REZENDE, 2016)
25
No artigo de onde retirei as traduções, o autor Diogo Rezende opta por utilizar uma imagem de um fac-símile
do quinto statement.
23
O que fazer? Como fazer? E onde fazer? Nas cinco performances, o artista parece ser
interpelado por essas questões. E o modo como responde o deixa plenamente implicado por
estas questões, um extraordinário exemplo de quando “fazer é dizer”.

O que sucede as cinco performances é o “13 yearsplan”. O “plano dos 13 anos” faz
ressoar as questões que lidam com o fazer ARTE, com o seguinte enunciado: “Eu me mantive
vivo. Eu sobrevivi o 31 de dezembro de 1999”. 26 A mensagem é escrita ao modo de uma carta
de resgate ou ameaça anônima, com letras recortadas de outros meios gráficos.

O “plano dos treze anos” era fazer arte sem nunca a tornar pública. Um plano para
revelar o fazimento pelo ocultamento. A meu ver, uma condição que libertasse (ao menos
dissociasse) o fazimento, do mundo da volição capitalista, a recusa a arte pela vida. No dia 31
de dezembro Hsieh afirmou que nunca mais faria arte. (HSIEH, 2017...
https://www.theguardian.com/artanddesign/2017/oct/24/tehching-hsieh-extreme-performance-
artist-i-give-you-clues-to-the acesso em...)

Img 05 Tehching Hsieh,”13 year plan”. 1986-1999

No livro “Marcel Duchamp and the Refusal of Work”, Maurizio Lazzarato localiza
bem a discussão em torno da produtividade na arte, a economia do trabalho e a subjetividade
do homo faber.

"O movimento dos trabalhadores existiu apenas porque a greve é


simultaneamente uma renúncia, um não-movimento, uma ociosidade radical,
uma inoperância ou inatividade, e uma suspensão de produção que interrompe
os papéis, funções e hierarquias da divisão do trabalho fabril" (LAZZARATO,
2014, p.7, tradução minha). 27

Para Lazzarato, filósofo e sociólogo italiano, o captalismo tem três esteios: a troca, a
propriedade e o trabalho. Afirma também que a recusa do trabalho e a ação preguiçosa, ambas
defendidas por Duchamp, são críticas tanto socioeconômicas quanto filosóficas, e como estas
permitiriam a superação do modelo do homo faber, para "além do produtor vanglorioso e a

26
“I kept myself alive. I passed the december 31, 1999.”
27
“The worker´s movement existed only because the strike is simultaneously a renunciation, a non-movement, a
radical désouvrement, an unworking or inaction, and a suspension of production which interrupt the roles,
functions, and hierarchies of the factory´s division of labor.” (LAZZARATO, 2014, p.7).
24
promessa prometeana de domínio sobre a natureza que o modelo supõe”
(LAZZARATO,2014, p.8, tradução minha) 28.

Se relaciono, então, Marcel Duchamp (o artista francês que fez o “Urinol” (1917),
“Escultura de viagem” (1918) e “Porta” (1927), três obras com procedimentos que serão
comentados nesta dissertação) com Bruce Nauman e Tehching Hsieh, é para evidenciar
diferentes estratégias de performatividade, ou seja, estratégias que se efetivam no ato. Pois se
são Nauman e Hsieh descendentes de atos paradigmáticas de Duchamp em relação à história
da arte, em ambos casos isso ocorre pela via da anunciação do objeto ou ato artístico, crítica
institucional e no caso especifico de Hsieh, pela via crítica ao fazer e ao trabalho feita por
Duchamp.

Amélia Jones se refere a Duchamp como um “pai alternativo” – em termos de


performatividade – à Pollock, por transgredir o que Judith Butler chamou de “imperativo
heterossexual” impregnado na questão do autor – genial e normativo- e do pragmatismo, no
contexto dos Estados Unidos Segundo Jones, Andy Warhol seria um descendente direto dos
procedimentos da performatividade duchampiana, por assim dizer:

“Como Duchamp, Warhol não apenas performou sua própria carreira como
um componente crucial de seu trabalho (aumentando assim a dimensão
performativa da identidade do artista), ele também mobilizou seu corpo / self
dentro de imagens exageradas que minam ou parodiam o tropo do artista como
trabalhador ou dandy” (JONES, 1998, p.69, tradução minha) 29

Img 06 Maria Palmeiro, “OCIOSO”, 2016

A serigrafia da folha de ponto foi pensada como uma grade com oito colunas e oito
linhas, um plano cartesiano onde x é tempo e y ação. Diariamente, carimbar ano, dia da
semana, dia do mês e mês; anotar o horário de entrada e saída do ateliê; anotar as atividades
executadas, informando horário de início e de fim de cada uma delas.

As informações coletadas seriam reconfiguradas em um gráfico. Cada ação seria


representada por uma cor. A totalidade da grade preenchida representaria uma jornada de
trabalho completa de oito horas. Cada campo cromático seria proporcional ao tempo dedicado

28 “They thus missed the chance to move beyond the model of homo faber, beyond the vainglorious producer
and the promethean promise of mastery over nature that the model implies.”
29 “Like Duchamp, Warhol not only performed his own career as a crucial component of his work (thus
enhancing the performative dimension of the artist´s identity), he also he mobilized his body/self within
exaggerated images that undermine or parody the trope of the artist as worker or dandy.”
25
a atividade na jornada de trabalho de cada dia. Uma grade de tempo e ação, traduzida em cor
e espaço.

O ponto seria um pretexto para uma composição pictórica abstrata.

Também imaginava que as folhas de ponto, se comercializadas, deveriam ter o mesmo


valor monetário, independentemente da quantidade de horas de trabalho representadas. A
pintura com a tradução gráfica de uma jornada completa valeria o mesmo que a pintura de um
dia ocioso.

A folha de ponto foi concebida antes do início do mestrado, logo, também do início do
ateliê performativo. Ela evidencia que a primeira especulação inicial em torno do ateliê
performativo é de que este se caracterizaria pelo empenho de tarefas sistemáticas e metódicas
contabilizadas. “O quê” e “o quanto”, critérios convencionais e questionáveis de
produtividade e, eventualmente, indetermináveis. Entre alguns casos determináveis: arquivar,
arrumar, limpar, varrer, carimbar, cortar, desenhar, marcar, dançar, pintar e costurar.

Um gráfico de des-empenho. Empenho que significa Houaiss “forte disposição e


interesse” (HOUAISS, 2001, p.130). Mas para onde se transfere isso de que se desfaz, que sai
do corpo empenhado para um outro suporte do empenho? Ora, se empenho é disposição e
interesse, de que outros modos podem ser os empenhos desempenhados (de um corpo) ao
longo de um dia? Como?

Havia então, nesta especulação inicial, um enorme vínculo entre o que eu elaborava
como a performatividade do ateliê e o ethos do homo faber. No livro “A corrosão do caráter”,
Richard Sennett analisa os elos entre caráter e trabalho:

“A velha ética do trabalho revelou conceitos de caráter que ainda contam.


Baseava-se no uso autodisciplinado do nosso tempo, pondo-se a ênfase mais
na prática voluntária, auto-imposta, que na simples submissão passiva a
horários.” (SENNETT, 2012, p.112).

Noto na concepção da folha de ponto que havia um adiamento em relação à satisfação


do trabalho deslocada para o fim do processo, pela antecipação do produto, pelo
cumprimento, e não pelo fazimento. Um procedimento que afirma o valor da disciplina, como
diz Sennett,: “o presente é tratado como instrumento para um destino final” (SENNETT,
2012, p. 119). Ironicamente, o ponto trouxe a questão do ócio, no carimbo OCIOSO (para os
dias em que não entrava no ateliê). Este juízo, que inicialmente naturalizei, produziu uma
profunda virada na construção da ética e da performatividade do ateliê, no momento em que
26
passo a questionar o termo ocioso e o que demarcava a entrada e o início da atividade do
ateliê.

Ainda no primeiro trimestre do mestrado, o preenchimento do ponto foi desativado.


Trabalhar com tarefas pré-definidas raramente ocorria, além de que a cronometragem das
ações e a caracterização destas resultarem imprecisas. As composições abstratas não foram
pintadas até o término do mestrado.

Entrar no ateliê, sair do ateliê. Varrer contabiliza? E arrumar e limpar o ateliê? Dançar,
ouvir música; desenhar cantando é diferente de desenhar em silencio? São desta natureza as
dúvidas. São esses atos artísticos? Se eu afirmo o silogismo de Nauman, sim. E sem dúvida,
os vídeos de Nauman são ARTE.

Quero me volta agora para as artistas que se filmaram e se fotografaram em seus


ateliês. E também as que se filmaram em casa fazendo arte. Lazzarato associa a “ação
preguiçosa” a uma certa estratégia política feminista:

“A ‘ação preguiçosa’ cria [possibilidades] para realizar uma reconversão da


subjetividade, inventar novas técnicas de existência e novas formas de viver.
Os movimentos feministas, recusando-se a exercer as funções – e o trabalho
de – "mulheres", seguiram em geral esta estratégia" (LAZZARATO, 2014,
p.7).

Outros grupos, operam de maneira diametralmente oposta, como veremos mais adiante
com a leitura de Silvia Federici, professora em departamento de ciências sociais em
universidade americana e italiana como Lazzarato,. 30

Vale destacar que Lazzarato está falando da crítica filosófica ao trabalho, e de um


outro critério de produtividade: a produção de subjetividade. Nesses termos, uma ação
preguiçosa pode configurar um programa performativo, assim como um ativismo.

30
“‘Lazy action’ creates in order to carry out a reconversion of subjectivity, to invent new techniques of
existence and new ways of living time. Feminist movements, by refusing to exercise the functions – and work of
– ‘women’, have in general followed this strategy” (LAZZARATO,2014, p.7)
27
1.2. A deixa da padeira

Ateliê da rua conde de Irajá (2014-2016)

Img 07 “A deixa: a padeira no ateliê performativo”, 2015

Na entrevista para o ingresso no mestrado, fui interpelada pela seguinte questão:


“Então qual é a diferença entre o que você faz e o que a padeira faz? ” Ao que respondi,
“nenhuma, a diferença é que eu faço no ateliê e a padeira faz na padaria”.

A pergunta capciosa me permitiu chegar ao ponto: entre fazimentos não haveria


diferença, mas o lugar onde se dá a ação poderia conferir diferentes interpretações acerca dos
valores, do significado, da necessidade, da produtividade e do trabalho. A pergunta também
demonstra, que por mais batidas e tediosas que sejam (pois de fato a pergunta, ou melhor, a
“deixa”, é feita com certo fastio) as questões que circundam o fazer da arte e seus produtos as
convenções são operativas 31, podem ser considerados materiais (como emprega Lucy
Lippard) de trabalho, do mesmo modo que tinta, pincel e tela.

Em “A deixa”, convido uma padeira profissional para preparar massa de pão no meu
ateliê. Não é a afirmação de um lugar privilegiado da arte, senão um trabalho que procura
evidenciar o uso da convenção – gosto de pensar nela como os “lugares comuns”, de Paolo
Virno: “Emergem à superfície como caixas de ferramentas de utilidade imediata.”
(VIRNO,2013,p.21) - em processos de deslocamento e atribuição de valor. Com esse trabalho,
procuro o lugar cultural e imaginário do ateliê de artista, “o lugar não só em termos físicos e
espaciais, mas como uma estrutura cultural definida pelas instituições de arte” (KWON, 2008,
p. 168). O que quer dizer, neste caso, o lugar (o contexto) que convencionalmente produz
eficácia para uma ação performativa.

Em “A deixa”, não sou eu (artista) quem faz o pão, quem faz a ação no ateliê. Sequer
apareço nas imagens; não sou eu quem tem a câmera na mão. Sabe-se apenas pelo título do
trabalho, e por alguns resquícios de tinta nas paredes e na mesa, que a feitura do pão acontece
em um ateliê, que se supõe ser o meu. A massa crua do pão permanece no ateliê, sem vocação
definida, ser pão. A padeira deixa o ateliê com seus instrumentos e uma pintura feita por mim.

31
Uso o adjetivo operativo [operative] segundo J.L. Austin, “an instrument which serves to effect the
transaction.” (AUSTIN, 1962, p.7)

28
Se eu mesma tivesse feito a massa do pão, talvez a questão toda se concentraria na
atividade feita por mim (a artista) no ateliê e não no deslocamento da ação (da padaria para o
ateliê) e da agente. O convite a uma profissional de outra área para executar o trabalho me
permite explorar também as convenções da performance.

Há mais que uma encenação paródica ou farsesca da frase de Nauman. Há uma


valorização dos ofícios e das suas especificidades – tempo, instrumentos, materiais, gestos,
técnicas e treino. Da massa faço um molde. Do molde um pão de cimento. Este permanece –
por ora.

1.3. Recusa ao trabalho

No texto “Work avoidancce: The everyday life of Marcel Duchamp´s ready-made”,


Helen Molesworth indica, já no título, que o que está em questão na obra de Duchamp é o
estatuto dos objetos. O título não diz “o dia-a-dia de Marcel Duchamp”, mas o dia-a-dia dos
ready-mades, objetos que preexistem devido a uma finalidade, anunciados como arte. No
artigo, a partir da análise da situação dos ready-mades, em registros fotográficos do ateliê e da
casa do artista, a autora apresenta uma particular concepção de trabalho de Duchamp, que
explora a relação entre os ready-mades e os afazeres domésticos como uma paródia da
produtividade e utilidade do trabalho.

“Compartilhando o atributo cotidiano, os ready-mades são relacionados aos


processos de manutenção. (...) Objetos cuja finalidade é auxiliar na auto-
apresentação, objetos que permitem o funcionamento de residências e
escritórios. (...) Mas essa não era a situação desses objetos no estúdio de
Duchamp: o porta-chapéu pendia do teto; O porta-casacos foi pregado no
chão; a capa da máquina de escrever não protegia nada além de ar; e o urinol
separado, invertido, para sempre inutilizado” (MOLESWORTH,1998, p.51,
tradução minha). 32

Os ready-mades, para Molesworth, são um anátema, isto é, um expurgo da lógica e da


eficiência dos objetos; refletem uma postura crítica e o modo provocador de Duchamp. Ao
usar o termo anátema, a autora reforça o caráter dogmático que, a seu ver Duchamp, atribuía a
ética do trabalho. Duchamp condena o trabalho pelo apresso ao ócio e a brincadeira.

32
“Sharing the attribute quotidian, the readymades are also bound together by the processes of maintenance. (…)
But this was not the situation of these objects in Duchamp´s studio: the hat rack was suspended from the ceiling;
the coat rack was nailed to the floor; the typewriter cover protected nothing but air; and the urinal stood alone,
inverted, forever unused” (MOLESWORTH,1998, p.51).
29
Resgatando as imagens do ateliê de Duchamp em Nova York, datadas entre 1917 e
1918, a autora oferece uma visão crítica do Duchamp anterior ao mictório. Digo anterior não
apenas cronologicamente (a fonte de Duchamp foi enviada para o salão dos artistas
independentes em Nova York também em 1917), mas principalmente anterior em relação a
etapas até a exposição pública do objeto de arte, como concepção, produção (quando é
possível dissociar essas duas etapas). Crítica que, me parece, e faz ainda mais profunda e
ampla, como recusa ao estatuto reificado do trabalho.

Segundo a autora, as fotografias do estúdio foram incluídas na retrospectiva de


Duchamp: Boîte-en-valise de 1941. As fotografias reveladas em tom sépia, para sugerir que
“no momento inicial da “invenção” dos ready-mades seu ateliê era o principal local de
recepção [destes]” (MOLESWORTH, 1998, p.51, tradução minha). Ainda que essa falsa
representação histórica em sépia retome a discussão sobre a “validação institucional”
(BUCHLOH, 1990, apud MOLESWORTH, 1998, p.52), as fotos do ateliê permitem que
outros significados se atribuam aos ready-mades, significados que para a autora ficaram
subjugados: “Vemos cômodos ambíguos repletos de objetos curiosos. Ambíguos porque esses
cômodos não são apenas o ateliê de Duchamp, são também sua casa” (MOLESWORTH,
1998, p.52, tradução minha)33. É a partir dessa ambiguidade ateliê/casa que a autora constrói
sua leitura dos readymades como uma crítica do cotidiano, deslocando o valor dos objetos
(deslocados) para os acontecimentos do cotidiano, embebendo os objetos de vida e não de
signo. Essa mirada sobre os readymades faz com que estes evoquem a existência dos mesmos
na esfera íntima e cotidiana – existência compartilhada com os humanos, animais, vegetais e
minerais.

Fernanda Gomes, artista brasileira, afirmou em entrevista não haver distinção entre
seu ateliê e sua casa: “É tudo ateliê. [...] Boa parte das coisas que estão no MAM vai voltar,
uma mesa vai voltar a ser a mesa da cozinha, a cadeira vai voltar a ser cadeira” (GOMES,
2012, p.198). Na frase, Gomes sugere uma “transfiguração” que se dá no deslocamento de
seus objetos do seu ateliê-casa para o museu. Entretanto, se o deslocamento para o museu
sugere essa transfiguração, a materialidade de seus objetos parece tão impregnada do
cotidiano, que eu chego a duvidar se de fato ocorre e se é necessária essa transformação no
status da cadeira. Ou seja, se ainda é necessário, enquanto operação artística, transfigurar

33
“We see ambiguous rooms filled with curious objects. Ambiguous because these rooms are not only
Duchamp´s studio, they are also his home” (MOLESWORTH, 1998, p.52).
30
objetos ordinários em objetos de arte. A transfiguração de Gomes se dá, contudo, quando os
objetos “vão voltar”, e não que eles irão para o museu.
Por outro lado, pensando especificamente no trabalho para o espaço do MAM, a
composição ortogonal dos objetos sobre o chão preto do Museu define uma espacialidade. É
uma grade, portanto. A exposição me rende leituras pictóricas em que o foco no objeto
isolado é diminuído, torna-se parte de um todo (todo que abrange objetos e espaço) e, por
conseguinte, perde seu caráter utilitário e ordinário. O estatuto da cadeira no museu é alterado
então, mais por um ato compositivo, do que por um ato de deslocamento e transfiguração. O
ato de transfiguração reside na residência da artista com os objetos, assim como no Duchamp
anterior ao mictório.
A artista é atualmente representada por uma das maiores galerias comercias de arte do
Brasil (Luisa Strina), o que demonstra uma adequação paradoxal dos readymades, ou dos
objetos-resíduos, de Fernanda Gomes ao mercado de arte. Poderíamos atribuir essa adequação
a um certo discurso “sustentável”. O caráter de insubordinação e provocação dos readymades,
enquanto recusa ao trabalho e a objetividade, parece aliar-se no caso da artista a um
pensamento ecológico, mas também poético em relação ao objeto em desuso e descartado.
“Fernanda encontra seus materiais na região do descarte, desuso e abandono, já tendo
cumprido sua vida útil e perdido aquele vínculo que os unia no conjunto do dia a dia da vida
comum: o vínculo da esfera da intimidade construída. ” (VENANCIO FILHO,2015, p.19).
Pensando deste modo os objetos de Gomes são mais ressuscitados que transfigurados. Gosto
mais de pensar que o estatuto deles é ambíguo.
Sob a mirada do cotidiano, a obra de Duchamp adquire um estado transitório, assim
como a de Fernanda Gomes. Como se a qualquer momento os objetos pudessem ser
desencantados. Des – transfigurados, oscilando, de modo como não poderia admitir Danto:
“Se for uma obra de arte, não haverá maneira neutra de olhá-la; melhor dito, olhá-la de
maneira neutra é não vê-la como obra de arte” (DANTO, 2005, p.183).
Nauman, como Duchamp, é autor de gestos paradigmáticos na forma de enunciados
(nos termos de Austin, atos de fala excepcionalmente eficazes). Isso porque, até onde percebo,
o que Nauman faz é alterar os termos do gesto inaugural de Duchamp. Nauman não levou
suas ações, coreografias e vídeos para que adquirissem a chancela do museu (ou do salão, ou
da galeria); ele mesmo, ao reescrever o silogismo implícito na ação de Duchamp (nos meus
termos: se tudo o que o museu expõe é arte, então tudo que eu logre expor no museu será
arte), definiu que tudo o que ele fizer no ateliê é arte. Ou seja, conferiu não a si próprio, mas a
31
seu ateliê a prerrogativa de outorgar a seu trabalho o status de arte. Repito, com o estofo da
ética do trabalho.

Ainda que ambos possam ser vistos com certo humor, em uma entrevista de 1972
Nauman diz: “Se eu tomasse as coisas que eu não sabia fazer, mas levasse-as a sério, logo elas
seriam levadas a sério, o que funciona se você toma [pick] a coisa certa.” (NAUMAN,
2005[1972], p.166, tradução minha).34 Mesmo com todo humor que posso encontrar nos
vídeos de Nauman no ateliê, há um lado muito sisudo em relação ao trabalho, diferentemente
de Duchamp. A ética de trabalho dos artistas diverge radicalmente, com o que se pode afirmar
que se na relação com o cotidiano Nauman produz uma redução da distância entre obra e
processo, no caso de Duchamp a equação seria entre obra e vida (que podemos entender como
a qualidade e “maneira neutra” dita por Danto, de presença de um objeto de arte ou ação). No
caso de Hsieh, seria uma redução entre processo e vida. Como e onde se dá o limite entre
essas instâncias? Hsieh as localiza no ponto: lugar e ação.

Img08 Marcel Duchamp, Door (1927) / Tehching Hsieh, One-Year Performance 1980-1981

1.4. Porta/Chassi

Ateliê rua Maria Angélica (2016-2017)

A porta do ateliê é um chassi, mede 1.65 m de largura por 2.20 m de altura. Um chassi
que funciona como uma porta, ou uma porta que funciona como um chassi de pintura. O
chassi é fixado a um pilar por duas dobradiças que facultam a este o movimento de uma porta
quando acionado por alguém.

Objetivamente, a porta não isola o espaço do ateliê, não é preciso abrir a porta para
adentrar o espaço do ateliê. Contudo eu reproduzo o gesto de abrir a porta para entrar no
ateliê, e registrar no ponto o horário de início.

Além de abrir a porta-chassi, eu aumento a superfície do piso do ateliê estendendo um


plástico branco sobre o piso antes exterior ao espaço do ateliê.

34
“If I took things that I didn´t know how to do, but I was serious enough about them, then they would be taken
seriously, which sort of works if you pick the right thing” (NAUMAN, 2005[1972], p.166).
32
Com o computador sempre aberto. A webcam, cria um limite virtual para o limite
físico do ateliê, um recorte, uma boca de cena. A um só tempo a webcam (on-line) pode ser
uma expansão do ateliê, registrando-o, conectando-o, exibindo-o. Como se refere Caitlin
Jones a exemplos de transmissões on-line via webcam “performando para sua webcam, e por
extensão, para o mundo” (JONES,2010, s/n, tradução minha). 35

Esses gestos, não previstos, tornam-se constitutivos da enunciação da entrada no ateliê


e do momento de início ao trabalho. Tornam-se ritualísticos: bater o ponto, a separação entre
ateliê e a casa; como o ponto para Hsieh, no caso a fronteira entre o ateliê e a rua, entre o que
é o tempo do trabalho e o que é tempo da vida. Fronteira que Hsieh reforça:

“Minha arte certamente tem um atributo de vida. Mas eu não desfaço


realmente a distinção arte e vida. O intervalo entre cada One Year
Performance é tempo de vida. Mas as obras] em si são tempo de arte, não
tempos vividos. Isso é importante. Cada obra é claramente uma obra de arte,
mas arte com um atributo de vida: Que é o seu ritmo. O tempo da performance
é tempo de arte, e minha vida deve acompanhar a arte” (HSIEH apud
HEATHFIELD, 2012, p.463, tradução minha) 36

Ritmo: a conjunção do tempo da arte e o tempo da vida produzindo ritmo. O ritmo, por
exemplo, imposto pela porta que Duchamp instala em sua casa/ateliê. O ritmo dos passos de
Nauman.

O ateliê que então indicaria que a atividade que se dá aí é trabalho de arte, quando
inserido no ambiente doméstico, coloca os tempos da arte, vida e trabalho (Molesworth traz
no texto as categorias de Henri Lefebvre: trabalho, lazer e vida privada) em ritmo peculiar.
Esse ritmo se torna constitutivo da linguagem do objeto ou da ação artística, e isso me
interessa.

Img 09 Maria Palmeiro, “Porta/Chassi”, 2016

O tempo do trabalho monitorado e evidenciado através da convencional folha de ponto


é um dos modos mais triviais de verificação e documentação da efetivação do trabalho. Não
seria certo afirmar que o trabalho ganha visibilidade, mas sim que adquire um índice que
enfatiza outros atributos do trabalho.

35
“performing for their webcam, and by extension, the world” (JONES,2010, s/n).
36
“My art certainly has a life quality. But I don’t really blur art and life. The gap between each One Year
Performance is life time. But the pieces themselves are art time, not lived time. This is important. Each piece is
very clearly a piece of art, bit this art has a life quality. That is its rhythm. The time of the performance is art
time, and my life has to follow art” (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.463).
33
Há algo de similar no status social, entre o trabalho invisibilizado ,tenho em mente o
trabalho doméstico e a “ação preguiçosa” de Lazzarato. O caráter improdutivo atribuído,
vergonhosamente, ao trabalho doméstico e a improdutividade auto-atribuída da ação
preguiçosa. Nessa semelhança vejo a possibilidade de um pensamento crítico e político para o
trabalho feito em casa e pela mulher. Vale ressaltar que o trabalho doméstico não tem folha de
ponto.

A folha de ponto apresentada como produto do ateliê acarretaria não em uma


transfiguração, mas numa substituição da imagem da obra feita no ateliê, por um índice de
produtividade. Isto que reforça o valor da produtividade, da ética do trabalho. Ou seja, com
essa operação desloco o valor dos objetos produzidos no ateliê por um gráfico de ação e
tempo trabalhado. Ao optar por mostrar exclusivamente as folhas de ponto, como produto do
ateliê, coloco os objetos produzidos no ateliê em regime de invisibilidade (ocultamento).

A representação do trabalho pela folha de ponto era, inicialmente, também um


pretexto para manter ativa minha pesquisa pictórica de cor e composição, esta que parece
correr paralelemente às incursões teóricas do ateliê. Um pretexto figurativo ou estrutural, um
suporte para o ato de pintar.

A grade integrada à pintura e a relação entre parte e todo que ela estabelece quando
traçada a grafite sob e sobre a pintura, surge por primeira vez no trabalho “a obra está” (2014)
e logo no trabalho corte (cutpiece), feito em meu próprio ateliê em 2015. Por esse motivo
ambos trabalhos integraram esta dissertação.

No “Ponto”, o grafite é substituído por uma rigorosa serigrafia.

Uma grade como a de “Do it yourself: FreedomTerritory” de Antônio Dias. A obra de


1968 tem sido exposta com frequência nos últimos anos (esta informação pode ser encontrada
no site da coleção Daros, da qual a obra faz parte). É a grade como exercício, lugar,
enunciado, regra para a liberdade. Esse pensamento me parece dado a certo corpo, apto para
este e promotor deste. “A forma de um corpo, essa forma que ele é, responde a um desejo, a
uma espera, a uma necessidade ou a uma inclinação: forma do fruto que quero comer, da mão
que espero segurar. ” (Nancy, 2013, p.49). Uma circularidade produzida, no fazimento de um
corpo, por um corpo

Img 10 Antonio Dias “Do it your self: Freedom territory”, 1968

34
Contudo, o ponto não chega a se efetivar como idealizado. Não me sinto motivada
pelo pretexto pictórico. A composição dos gráficos não me instiga quando chega o momento
de fazê-la, não executo as pinturas. Fico avessa ao trabalho metódico e sistemático, pelo
menos deste modo, em que a composição pictórica estaria demasiadamente justificada. Tanto
me desapego da tarefa em si, do preenchimento das folhas, quanto me desapego de uma
performatividade da produtividade se sobrepondo à composição pictórica. A percepção da
produção de um “ritmo” que se dá no contato entre vida e arte, produtividade e ócio, desfaz o
nível categórico os coeficientes do trabalho.

Nesta dissertação trato de mostrar sem atalhos o que liga o trabalho “Ponto” (primeiro
ato do trabalho) ao “Ritmos” (último ato de trabalho). Ritmos é o resultado do ponto depois
de dois anos de mestrado, era necessário encontrar um modo para pintar e ser metódica que
não exigisse automatismos, e que se voltasse também para a corporeidade.

Img 11 Maria Palmeiro, “Quadriláteros” / Maria Palmeiro, “DIY”, 2017

Seguindo, então, pelo caminho mais longo, seria interessante olhar sob essa
perspectiva um exemplo que se mostra avesso à produtividade, e que pudesse ser posto ao
lado de Marcel Duchamp.

As fotografias do trabalho “artist at work” (1978) do artista croata Miladen Stilinóvic,


mostram, como diz o título, o artista trabalhando. Nas fotos, vemos o artista deitado sob
cobertas em um colchão de solteiro. Na sequência, o artista aparece de bruços, com os olhos
abertos e os braços apoiados sobre a cabeça. Dormindo-trabalhando, descansando-
trabalhando, pensando-trabalhando, trabalhando-trabalhando. Além das fotografias, o artista
também trabalhou-dormindo, ou dormindo-trabalhou no espaço expositivo da galeria.

Prazer, ócio, lazer – esses termos têm em comum uma relação estreita e nervosa com o
trabalho e com a economia do tempo. Como escreve Hannah Arendt:

“A esperança que inspirava Marx e os melhores homens dos vários


movimentos de operários – a de que o tempo livre finalmente emanciparia os
homens da necessidade e tornaria produtivo o animal laborans – (...) cem anos
depois reconhecemos a falácia desse raciocínio: o tempo excedente do animal
laborans jamais é empregado em algo que não seja o consumo” (ARENDT,
1958, p.87).

Arendt é uma pensadora que define em “A condição humana”, ainda numa tradição
clássica e antropocêntrica, obra, trabalho e ação, os pilares do que denomina “Vita Ativa”.
35
Animal Laborans é então a condição de escravo, sujeito à necessidade, sendo o humano visto
apenas como força de labor, “apenas uma das espécies animais que povoam a terra”
(ARENDT, 1958, p.104), em oposição ao homo faber, para quem “a redenção da vida,
sustentada pelo trabalho, é a mundanidade sustentada pela fabricação” (ARENDT, 1958,
p.292). Caberia incluir entre estes modelos que designam o humano (não entrarei no
raciocínio do homo sapiens) o homo ludens, modelo no qual se a noção de jogo, é
fundamental, segundo Johan Huizinga.

Para Molesworth, Duchamp prioriza o brincar ao trabalhar, não apenas em detrimento,


mas para aniquilar o trabalho. Seus readymades “oferecem uma possibilidade de examinar no
dia-a-dia o nó enredado do trabalho e do lazer” (MOLESWORTH, 1998, p.57) 37 como crítica
a um modo de trabalho que aliena o ser do uso de seu tempo de vida.

A artista é na maioria dos casos alguém que tem autonomia na gestão de seu tempo de
trabalho. Como afirmei na introdução, na maioria das vezes a artista ou o artista é alguém que
não trabalha por demanda e não é assalariada. Porque não pensar, a partir de Duchamp, em
lugar de querer a tutela de trabalhador ou trabalhadora, pensar em arte como oposição ao
trabalho? Um modo combativo em relação ao que se convenciona como trabalho. Também
nessa negociação podemos pensar em ritmo, tempo e principalmente equilíbrio (relembrando
a oposição à firmeza).

Muitos trabalhos de Stilinóvic tratam dessa questão: pinturas em tecido e papel com
frases como: “Work Cannot no Exist”, “Work is Done”, “Work is a Disease – Karl Marx”, e
“Work is a Word”; em ações como “On work” 38 e na leitura do texto “Praise of Lazyness” (no
qual o artista compara os artistas ocidentais (capitalistas) e orientais (socialistas), alegando
que por desconhecerem as virtudes da preguiça os artistas ocidentais tornam-se meros
“produtores de algo...” e promotores do sistema de arte 39.

A evocação das virtudes da preguiça por Stilinóv não deixa de ser um elogio aos
valores socialistas. “Socialismo traz libertação ao inconsciente”40, diz ele (STILINÓVIC,
1998, s/n). Trata-se de uma educação do tempo e dos valores, que mostra como são

37
“Offer possibilities for examining the tangled knot of work and leisure in everyday life” (MOLESWORTH,
1998, p.57).
38
“Trabalho não pode não existir”, “Trabalho feito”, “Trabalho é doença –Karl Marx” , “Trabalho é uma
palavra” e “No Trabalho”, tradução livre.
39
Stilinóvic cita Duchamp em seu texto: “Duchamp never really discussed laziness, but rather indifference and
non-work.” (STILINÓVIC,1998, s/n)
40
“Socialism brings liberation in the unconscious”
36
indissociáveis a sensação de insatisfação e satisfação da economia do trabalho. Relaciona
preguiça e modo de vida tal como Lazzarato.

A mudança do meu ateliê para dentro de casa alterou uma rotina que exigia tirar o
pijama, sair de casa, tomar um transporte coletivo, chegar em outro lugar. Outro lugar sem
cama, louça e roupa sujas, sem fogão, sem brinquedos, sem criança, um lugar dissociado do
trabalho de casa.

O lugar do trabalho de arte é então, entre 2016 e 2017, o mesmo lugar do trabalho de
casa. O ateliê tem apenas duas paredes, uma que o separa do banheiro e outra que o separa da
cozinha. As duas paredes, mais uma estante, conformam um espaço com a forma de um
colchete, o qual, com a porta-chassi, ganha uma quarta face quando esta está fechada.
Graficamente algo como: “[ I” ou “[ _”. Ambos lugares (casa e ateliê) são contaminados pelas
atividades que se dão no espaço do mesmo apartamento. Aos poucos o limite se torna cada
mês mais difuso, passo a usar as paredes da casa para dispor obras em composições
provisórias, e logo a cesta de roupa limpa no ateliê, está no meio do ateliê. A vassoura
desconhece inteiramente este limite, também a poeira e a luz. E eu varro, dobro até anoitecer.

A definição de que “cada atividade humana assinala sua localização adequada ao


mundo” (ARENDT,1958, p.90) parece então uma definição inadequada ou ultrapassada. No
cotidiano daquele espaço, tudo parece muito inadequado e ao mesmo tempo absolutamente
adequado.

Volto a sentir a sensação de um lugar comum do trabalho doméstico e da ação


preguiçosa, agora eu sinto a força política dessas duas frentes.

1.5. Ateliê/Cena

Ateliê rua Maria Angélica (2016-2017)

Entrego as minhas e meus colegas de mestrado uma ficha com o pedido: “Por favor
escreva no verso desta ficha uma ação a ser empreendida por mim no ateliê performativo.
Identificar-se é opcional. Obrigada. ”41

41
Com o retorno das fichas eu produziria a “composição 1”, denominação de Eleonora Fabião para trabalho
prático que deveria ser desenvolvido individualmente para sua disciplina e exposto no curso da mesma.
37
As respostas continham, além das ações, interpretações particulares do termo ateliê
performativo. As ações recebidas poderiam ser classificadas: (1) na tradição da tarefa ou da
instrução; (2) como desejo de materialização, o ateliê sendo o lugar de fabricação que a
permite; e (3) proposições especulativas e auto-reflexivas sobre meu estado no ateliê:

1- “Fazer uma cadeia de objetos encontrados no ateliê ocupando o máximo de espaço


possível. ”

2- “ Doar uma parte de si. ”

3- “Prove algum alimento que você nunca tenha comido antes, concentre-se no gosto,
textura, cheiro e sons das mordidas. Absorva esta experiência e deixe que ela
transpareça. Ana Kemper”

4- “Escolher uma tela em branco. Colocá-la sobre a cabeça. Deslocar-se pelo espaço
do atelier equilibrando a tela por tempo indeterminado por você ou até a tela cair.
Desenhar ou não o percurso nesta tela. ”

5- “Traçar (pintar) uma linha numa tela branca durante 01 hora. ”

6- “Durante o período de uma hora narrar, com um gravador de voz ligado, todas as
ações desempenhadas no ateliê performativo durante o período.A narrativa deverá
ser atenta às gestualidades ínfimas ou grandiosas. Escutar o corpo que se move e
fala, enquanto se move e trabalha. ”

7- “Sonhar”

8- “Conte um segredo”

9- “Gostaria de conhecer você. Proporcione-me um encontro onde eu seja capaz de te


ver. Me refiro a uma porção de sua intimidade que lhe é especial. Rodolfo Viana”

10- “Liberar um áudio em que Ana Halprin pede que você observe uma rocha. Você
escuta, observa a pedra e tenta incorporar as qualidades da pedra, o seu corpo
virado em pedra. Beijos, Nat”

O ateliê performativo vira objeto de interpretações, concepções e reações dos


proponentes. Através das ações sugeridas nas fichas, eu pude acessar o entendimento de
outros sobre o ateliê, performance, pintura, corpo, produtividade, ação e trabalho. Ao mesmo
tempo, ao abrir o ateliê às suas sugestões, este foi exposto, com o sentido que a palavra
38
exposição perdeu. Se expõe ao risco. Eu reajo às ações sugeridas, sou suscetível, mas não sou
passiva a elas. Sinto-me mais motivada por uma ficha que por outra. Cumpro as tarefas como
a uma obrigação, às vezes com displicência; outras com prazer.

Posso fazer algumas observações em torno do cumprimento e registro das ações. A


porta-chassi coberta com um tecido branco tornou-se um pano de fundo, literalmente, para a
ação. Criou uma nova frontalidade para o ateliê, quase teatral. Frontalidade que escolhi no
lugar do plano de fundo até então criado pelo webcam, aquele com a foto de Yvonne Rainer
de costas. O chassi coberto com um tecido branco remete a uma tela vazia, ao mesmo tempo
que remete a uma cortina de fundo de palco de teatro. Vejo na ação empreendida no ateliê
contra esse fundo branco uma analogia da questão pictórica de figura e fundo. Penso também
nas pinturas onde figuram pessoas trabalhando. Penso na questão da representação no registro
das ações.

Ricardo Basbaum, ao analisar performances de Marcia X, utiliza os termos “pintura


expandida” e “ pintura tridimensional” para se referir às locações de suas performances que
remeteriam ao pictórico por conta da pulsação cromática e da criação de espaço. Essa “pintura
para além da tela”, segundo Basbaum, não apenas “envolve a mobilização de uma superfície
de cor criando uma área de atuação” e “a apropriação de objetos banais”, mas também “ a
figura do artista em performance. ” (BASBAUM, 2003, p. 52). Basbaum identifica nos
trabalhos de Márcia X, especificamente nas peças “Baby Beef” e “Soap Opera”, referências à
“questão-pintura”: Planaridade, figura e fundo, fatura, figuração e abstração.

Img 12 Marcia X, “Soap Opera”, 1988

1.6. Trabalho de mulher

Parece-me necessário, como artista mulher, pôr o ateliê – o lugar do trabalho – numa
perspectiva do trabalho da mulher e das práticas de artistas mulheres que se voltaram para a
questão do trabalho.

Em seu texto de 1967, “A desmaterialização da arte”, Lucy Lippard, junto com John
Chandler, escrevem que a matéria como pensada até então nas artes (a mídia) é “negada e
convertida em conceito” e “transformada em energia e tempo em movimento”. Entra em cena

39
a arte conceitual, o que os autores definem como “arte como ideia e arte como ação. ”
(CHANDLER & LIPPARD,1967, p.106, tradução minha).

Lippard, em análise retrospectiva (em texto de 1995) do período do surgimento da arte


conceitual, fala especificamente da “transformação do atelier em estúdio” (LIPPARD, 1995,
p.28, tradução minha). Isso me faz pensar que quando diz “atelier”, Lippard tem em mente os
ateliês de artes e ofícios que trabalham sobre um material específico. Segundo Lippard, as
artistas estariam perdendo o interesse pelo “desenvolvimento físico” (LIPPARD, 1967, p.106)
das obras. O que altera radicalmente os processos de produção e modos de trabalho das
artistas.

No texto de 1995, Lippard observa que na exposição “c. 7.500” de 1973, inaugurada
no California Institute of the Arts, sob sua curadoria e que incluiu apenas artistas mulheres,
surgiram outros materiais:

“Com a apresentação pública de jovens mulheres expoentes da arte conceitual,


também surgiram novos temas e novas abordagens: a questão do relato, a
divisão dos papéis, a aparência e os disfarces, o corpo e a beleza; a ênfase no
fragmentado, nas inter-relações, na autobiografia, na produtividade, na vida
cotidiana e, obviamente, no feminismo” (LIPPARD,1995, p. 30, tradução
minha).

No que se refere ao trabalho, não se trata mais de identificar-se com a classe


operária42, ou de um discurso funcional e ultrapassado de “que toda ocupação deveria
demonstrar sua utilidade para a sociedade geral, [...] dada a moderna glorificação do trabalho.
” (ARENDT, 1958, p.113).

Ao observar as práticas das artistas mulheres que participam da exposição curada por
Lippard, pode-se dizer que não tinham má consciência de classe, mas que estavam na luta por
reconhecimento e igualdade. Não pretendo aqui dar conta deste tema, apenas marcar uma
virada no meu referencial de trabalho e o início da minha identificação ou adesão ao
feminismo.

Roberta Barros, no livro “Elogio ao toque”, vai se deter sobre a aderência ou


afastamento intencional das artistas mulheres aos discursos e à arte feminista.

42
Artistas que levantaram essa questão podem ser vistos como artistas politizados, e como movimentos anti-
stablishment capitalista – Lippard dá o exemplo de Artists Placement Group; por outro lado também é presente,
ainda que não como uma demanda e fique numa capa abaixo da verve combativa, a questão do dinheiro, da
remuneração pelo trabalho de arte ainda é um tabu.
40
“Seria esperado que a arte produzida por um grupo de mulheres
propositalmente articulado e unido conscientemente sob o propósito de dar
corpo a essa experiência feminina fosse realmente identificável
estilisticamente como arte feminista, ou ao menos, arte feminina. ” (BARROS,
2016, p.17) 43

Barros procura identificar essas coincidências tanto nas demandas e discursos, quanto
no aspecto formal dos trabalhos de arte. Observa, contudo, que muitas artistas recusaram
associação com o feminismo – muitas vezes para não se verem excluídas de um circuito mais
destacado – ao que Barros diz ser um “esforço conciliador”:

“O fato de uma artista rejeitar a associação com o feminismo não deve


significar ausência de influência das demandas políticas feministas ou dos
debates da teoria feminista em sua obra” (BARROS, 2016, p.24).

São duas estratégias políticas diferentes, para usar os termos de Lazzarato, ocupar e
reivindicar do lugar (culturalmente convencionado) da mulher, ou reivindicar a partir da
recusa a deste lugar. Alguns cenários na luta trabalhista das mulheres seguem inalterados: a
falta de reconhecimento do trabalho doméstico, as desigualdades nos salários e na ocupação
de postos hierárquicos em relação aos homens.

Silvia Federici faz uma associação parecida com a que Marx faz entre metabolismo e
trabalho. É curioso observar que no caso do trabalho da mulher sua obrigação com este é uma
questão associada à de caráter (no lugar de metabolismo).

“A diferença do trabalho doméstico reside no fato de que este não apenas é


imposto as mulheres, senão que foi transformado em um atributo natural de
nossa psique e personalidade feminina, uma necessidade interna, uma
aspiração, proveniente supostamente das profundidades do nosso caráter de
mulher” (FEDERICI, 2013, p.37, tradução minha).

Daí vê-se bem sob que pressões operam mulheres e homens. O esforço do corpo
físico, e a luta da psique. Pergunto-me se o contorno efêmero e imaterial para as práticas de
artistas mulheres pode fazer parte da estratégia sitiada que ocupa o lugar da mulher, de
desigualdade ou falta total de remuneração.

43
No âmbito nacional, Roberta Barros vê particularidades nos temários das artistas brasileiras, devido à
associação do feminismo a partidos políticos e a setores progressistas da Igreja católica.

41
Sobre artistas que trabalharam nessa estratégia endógena, a artista baiana Leticia
Parente, considerada uma das pioneiras da vídeoarte brasileira, o faz, assim como Martha
Roesler, com humor; um humor indignado e corrosivo. Em “Tarefa I” de 1982, por exemplo,
Leticia Parente abre com uma tábua de passar, no que parece ser uma estreita área de serviço,
no quadro entra uma mulher com roupa clara, sapatos formais claros e pele clara, ela deita de
bruços sobre a tábua estreita também. Entra uma segunda mulher - de vestido escuro, e pele
escura - que executa a tarefa de passar a roupa clara, da mulher clara, deitada sobre a tábua de
passar. Mulheres sem cabeça e anônimas. O título do trabalho enfatiza a ação pré-
determinada que deve ser cumprida.

Em outro trabalho de Parente, a série de fotografias “Armário de mim” é feita com


fotos de um único armário dentro de casa. Dentro do armário coisas de casa: categorização e
non-sense. Ordem e desordem. Organização, metabolismo, caráter, a mulher se expressa, que
se filma, que age no espaço da casa.

Qualquer fotografia da série “Armário de mim” completa um tríptico perfeito nesta


construção argumentativa, junto às portas de Duchamp e de Hsieh. O terceiro elemento:
feminino, efêmero e íntimo. Gosto especialmente do tom irônico desse trabalho, de diversão
contra o enfado. Parente junta tudo, faz um armário de readymades, que depois voltaram a ser
apenas cadeiras, sapatos, camisas...

Img 13 Leticia Parente “Armário de mim”, 1975

Pareceu-me irresistível e muito adequado trazer para esta discussão em torno dos
limites da vida privada e do trabalho e o lugar da mulher, um relato (uma provocação) do
próprio filho da artista, o também artista André Parente: “Escrever sobre a Letícia me coloca
muitas dificuldades. Não sou apenas filho da Letícia, sou também filho de seu trabalho.”
(PARENTE, 2014, p.1).

“Em seu Armário de Mim, Letícia nos mostra uma série de imagens de um
mesmo guarda-roupa, em que desfilam os objetos (roupas brancas, roupas
pretas, temperos, papéis amassados, condimentos, cadeiras, objetos de culto) e
as pessoas (em um deles, todos os cinco filhos são colocados dentro do
armário) da casa, compondo ao mesmo tempo uma estranha taxionomia e um
retrato miniaturizado da casa e da artista. ” (PARENTE, 2014, p.4)

Note-se que meu ateliê da rua Maria Angélica (ateliê e casa) era compartilhado por marido e
filha. Além de porta, a porta-chassi foi brinquedo e foi varal. Invisibilidade é uma palavra

42
central no debate sobre as condições de trabalho da mulher, e para trabalhadoras das artes não
é muito diferente. Apropriar-se desse lugar de invisibilidade do trabalho feminino é apropriar-
se das condições materiais da vida da mulher em muitos casos. Silvia Federici, em
“Devolvamos o feminismo ao lugar que lhe corresponde”, texto de 1984, diz que o
movimento das mulheres “deve confrontar as condições matérias da vida das mulheres”
(FEDERICI,2013 p.92), neste momento a autora está optando pela luta pelo trabalho
doméstico assalariado também como um modo de reconhecer a luta das mulheres como uma
luta de classe.

O ateliê então, sob a ótica do trabalho das artistas mulheres, passou a ocupar outros
lugares de modo aguerrido, “Contra-atacando desde a cozinha” (FEDERICI, 2013, p.51) a
artista Sonia Andrade videoartista contemporânea de Leticia Parente ataca com feijão, num
dos melhores gestos pictóricos em “Sem título (feijão) ” de 1975. Lança contra a lente da
câmera, contra a moldura do vídeo, contra a tela da TV, contra tudo que a confina.

Em todos os exemplos, identifica-se uma busca pelo lugar de dobra da arte; de


reinvenção e novos lugares, perspectivas, modos de ação e vida, outra imaginação para o
trabalho e para o cotidiano. E, se possível, outras pinturas.

Img 14 Sonia Andrade, “Sem título (feijão)”, 1975

1.7. Ossos do ofício


“José Arcadio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o
gelo, e a manteve posta por vários minutos, enquanto o
coração crescia de medo e de júbilo ao contato do
mistério.”

Gabriel García Marques, Cem anos de solidão

Sobre o chão, na esquina da rua Santa Clara com a rua Nossa Senhora de Copacabana,
estendo uma lona de algodão crua. Na lona há vestígios de bordas aparadas de pintura. Sobre
a lona me ajoelho e distribuo os demais objetos que trouxe para o trabalho: um estojo de
metal, umas fichas de papel com campos em branco que deverão ser preenchidos, lápis,
caneta, uma colher, e um pacote de porcelana fria branca (biscuit).

Estender um pano sobre o chão pode ser visto como um gesto inaugural de ocupação.
O vendedor de meias, que estava à minha esquerda, não estava interessado em concorrência
no ponto dele. Eu argumentei, disse que não era concorrência, pois eu não ia vender nada. Foi

43
suficiente para tranquilizá-lo, mas não para garantir alguma empatia por mim ou pelo meu
fazimento, uma qualquer coisa não rentável.

Diferentemente, a senhora que trabalhava anunciando “compra de ouro” mostrou-se


muito simpática, e reforçou ao colega de esquina: “ela não vai vender nada”. Sugeri que ela
fizesse um osso comigo, mas ela não quis.

Colega de esquina, pois ocupávamos uma esquina. Desconheço o acordo e a economia


que torna essa ocupação possível. Ocupo porque acredito que posso fazê-lo, porque acredito
que o espaço público deve ser ativado e ocupado. Porque não estou vendendo nada...

Minha abordagem foi mudando no tempo em que estive naquela esquina. Fiquei mais
à vontade sobre o espaço da lona. Este funcionava como uma demarcação que me dava
segurança.

Numa ficha exposta sobre a lona, eu escrevi: “Colabore com um molde e em troca
uma escultura”.

Esta frase evidencia, além do convite a uma troca, uma afirmação de transformação.
Sobretudo uma crença nessa possibilidade de converter a porcelana fria em algo que se
reconhece como escultura. Uma escultura moldada pelo toque de duas pessoas. Ou melhor
duas esculturas, uma para cada pessoa.

“me ajuda no meu trabalho?”


“quer uma escultura?”
“vamos fazer um molde?”
“quer me ajudar?”
“vamos fazer uma coisa juntos?”
“quer fazer um molde comigo?”
“co-labore”

Sobre esse valor adquirido, não é a simples conversão da porcelana em escultura, feita
por uma artista em seu ateliê, numa ação escultórica e formalista. O que a transfigura é o
encontro dos três corpos. Uma matéria que reage, eu e o outro ou outra de quem a volição me
é desconhecida. Encontro que ocorre no espaço público, e que produz dois ossos gêmeos.

44
Busco aqui construir um argumento que coloque em questão a intenção, as coisas e a s causas,
a partir do trabalho “Ossos do ofício”.

Em “A transfiguração do lugar comum”, Arthur Danto introduz uma discussão da


filosofia da ação: “A diferença entre uma ação básica e um mero movimento corporal é
comparável em muitos aspectos às diferenças entre uma obra de arte e uma simples coisa”
(DANTO,2005, p.38)

Para os seguidores de Wittgenstein, isso não é o mesmo que dizer que a ação é
intencional, porque não existe essa existência mental e interior com volição; existe a regra, o
contexto.

“Isso deu origem a uma proposição segundo a qual uma ação é um movimento
corporal mais x, o que, por analogia estrutural, originou a proposição de que
uma obra de arte é um objeto corpóreo mais y. Em ambos os casos, o
problema é resolver x e y de algum modo filosoficamente aceitável. Uma
primeira solução Wittgensteiniana foi a de afirmar que uma ação é um
movimento corporal que segue uma regra” (DANTO, 2005, p.38).

Mas quem ou o que cria a regra? O que é a regra? Sou eu, a colaboradora ou é
porcelana fria? As colaboradoras ou as partes do corpo oferecidas?

Na analogia de Danto, a obra de arte está para ação como o movimento corporal está
para a mera coisa. Ou seja, uma questão de volição. Para o filosofo, o ato de declarar ou o
contexto são algumas das possibilidades para a transfiguração da mera coisa em obra de arte.

A lógica de Wittgenstein, me parece que, vai ao encontro do conceito de


“acontecimento” para Gilles Deleuze, de que não há um agente, x age y tanto quanto y age x.
Essa imbricação me interessa, quando eu ajo e quando eu sou agida, quem declara? Quem faz
a regra? Existe imprevisto?

Busco um possível X com Y. Uma negociação entre o que seriam volições e intenções
dos atos de X (fazer, ocultar e deslocar), no caso eu, e o outro Y (pessoa ou coisa).

No espaço público, a transfiguração depende da declaração que quero fazer: se isto é


uma escultura ou se isto é um arquivo. Em última instância, para Danto, eu estaria dizendo
isto é arte, ainda que em regimes estéticos diferentes. Novamente um âmbito de hesitação e
negociação, x com y. O trabalho transita entre regimes. O trabalho transita entre “obra de
arte” e “coisa simples”, entre escultura e arquivo.

45
Onde quero colocar a ênfase quando escolho chamar os ossos de escultura e não de
arquivo? E no que isso afeta o acontecimento? Fica claro que, pela filosofia de Wittgesntein,
não afetaria em nada. Isso faz do trabalho um acontecimento, mais aberto e permissivo aos
afetos, adesões e volições de quem faz e é feito.

Voltando à calçada de Copacabana, a pessoa que aceitasse meu convite deveria me


oferecer uma superfície, um molde, um minuto do seu tempo, uma parte do seu corpo. Cada
encontro gerava duas esculturas, uma ficava comigo. Nem todos querem sua escultura.

Fiz ombro, testa, perna, bochecha, mão; e fizeram pé, orelha, umbigo. Tudo registrado
por escrito e numerado. Para cada dupla de ossos, eu anotava o nome da parte do meu corpo,
o nome da outra parte e de quem a oferecia.

Dos encontros, lembro me bem do dedo-à-dedo com Jonatan, que vendia balas
Mentos. Ele ficou fascinado pelo convite, pela simplicidade e pela possibilidade (especulo
eu), foi como se estivesse vendo gelo pela primeira vez.

As esculturas brancas assemelham-se a ossos. Entende-se por “ossos do ofício” os


percalços do desempenho de um trabalho, dificuldades constitutivas deste. Imagino que venha
do ato de comer carne, roer o osso. Osso é sobra. Osso também é o que permanece por um
tempo mais longo que a carne.

Img 15 Maria Palmeiro, “Ossos do oficio”, 2016

1.8. Modos de produção

Em “A gramática da multidão”, Paolo Virno está interessado em repensar o estatuto da


ação política, do trabalho e da obra. Segundo Virno, a distinção entre trabalho e a ação
política como pensada por Hannah Arendt não é mais tão evidente:

“O trabalho é troca orgânica com a natureza, produção de novos objetos,


processo repetitivo e previsível (...) Diferentemente do Trabalho, a Ação
política intervém nas relações sociais (...) não preenche de objetos ulteriores o
contexto onde opera, mas modifica esse contexto mesmo. Diferentemente do
Intelecto (obra), a Ação política é pública, entregue à exterioridade. (...)
Sustento que no trabalho contemporâneo descobre-se a “exposição à vista dos
demais”, a relação com presença dos outros, o início de processos inéditos, a
familiaridade constitutiva com a contingência, o imprevisto e o possível.
Sustento que o trabalho pós-fordista, o trabalho produtivo de mais-valia, o
trabalho subordinado, introduz na cena dotes e requisitos que, segundo uma
tradição secular, pertenciam à ação política” (VIRNO, 2013, p.33).

46
Em “ossos” age-se sobre uma matéria prima para produzir algo. Porém, algo que está
entre vestígio e objeto.

Virno questiona critérios como produtividade, visibilidade, remuneração, e repetição


para evidenciar como a distinção entre ação e trabalho minguou, para “articular e aprofundar a
noção de multidão” (...) “sob a condição de entender por “modo de produção” não somente
uma configuração econômica particular, mas também um conjunto composto por formas de
vida, uma constelação social, antropológica, ética (“ética”, atenção, não “moral”: o tema são
os hábitos, os usos e os costumes, não o deve-ser).” (VIRNO, 2013, p.30). Essa ideia de modo
de produção de subjetividade me parece muito propícia para a discussão do trabalho de arte,
flexibilizando as categorias de Arendt.

Em relação ao fato de que “eu não vou vender nada”, talvez ele não seja tão
verdadeiro. “Ossos” é um trabalho possível tendo como suporte o programa de pós-graduação
em artes da cena. Em última instância, é o meu lugar de trabalho, é a instituição com a qual
tenho um compromisso, prazos, deveres, e também um “salário” (Capes).

47
Ato II

Ocultamento

2.1. O ateliê de Edward Krasinski por Babette Mangolte

Para iniciar este segundo ato, que trata da invisibilidade e privacidade do ateliê, parto
de registros feitos por artistas no ateliê de outros artistas. Trago dois casos, o primeiro é o
registro de Babette Mangolte no ateliê de Edward Krasinski, e o feito por Tacita Dean no
ateliê de Giorgio Morandi. Ambos pintores, ambas videoartistas.

No espaço, que permanece intacto, vê-se uma fita adesiva azul cerúleo, com dezenove
milímetros de espessura, traçando um horizonte nivelado a um metro e trinta centímetros do
chão. “Eu não sei se isto é arte”, comentário feito pelo artista em destaque na página da
fundação, “mas é certamente fita autoadesiva azul com dezenove milímetros; comprimento
desconhecido” 44. A fita também nivela hierarquicamente e equaliza o espaço e os conteúdos
do estúdio: paredes, quadros, cortinas, fotos e mobiliário. Simultaneamente, é um gesto
compositivo que se beneficia dos cantos e arestas para produzir desenhos tridimensionais.

O ateliê do artista é administrado e mantido por uma fundação e uma galeria, desde
seu falecimento em 2014. O ateliê é aberto para visitas públicas.

No ateliê, que também era o local de moradia de Krasinski, o visitante se depara com o
espaço cotidiano do artista, cômodos domésticos, uma condição que situa a obra no seu
aspecto diário, trivial e mundano.

Img16 Babette Mangolte, “Edward Krasinski Studio”, 2012

O vídeo de Mangolte no ateliê de Krasinski é um loop de imagens com duração de


meia hora. As relações que eu traço com este vídeo, além da cena do ateliê e do interesse pelo
trabalho do artista (pintor) polonês, são permeadas também o fato que a autora filmou e
fotografou as dançarinas e coreógrafas: Yvonne Rainer, Trisha Brown, Robert Morris e Steve
Paxton. O que faz com que eu tenha uma suspeita de um olhar que olhou muito para dança
lançado sobre esse espaço. Algo do “cinema de corpo”, que segundo André Parente, “introduz

44
“I don’t know whether this is art” é o comentário feito pelo artista, destacado na página da fundação “but it’s
certainly scotch blue, with 19 mm, length unknown” (KRASINSKI, INSTYTUT AWANDARD). Disponível
em: http://www.instytutawangardy.org/en/studio, acessado em janeiro de 18.
48
a duração nos corpos, fazendo-os sair o presente linear composto de uma sucessão de
instantes presentes[...]. As atitudes e posturas do corpo estão sempre se passando pela
teatralização do cotidiano nos corpos, suas esperas, seus cansaços e relaxamentos. ”
(PARENTE, 2000, p.106)
As imagens feitas por Mangolte não têm estrutura única, ou enquadramento fixo, não
há a mesma coerência formal e continuidade da linha azul sobre o espaço de trabalho e vida
(se é que se mantêm estas categorias) do pintor. O que não quer dizer que as suas fotografias
não tenham composição, porem certamente são menos rigorosas que as de Krasinski. Em uma
foto há uma paisagem externa, há fotos de detalhes e objetos. Fotos onde pode-se imaginar o
corpo da artista fotografando naquele espaço. Em planos mais abertos, bem como nos mais
fechados, a movimentação desse corpo só pode ser precisada numa sequência de fotos.
A captura da artista parece querer jogar luz nos acontecimentos dados naquele espaço,
como se lançasse o gerúndio sobre aquele ateliê congelado desde 2004, retratando-o como se
houvesse em cada enquadramento da câmera a permanência imaterial do acontecimento, o
espectro e o corpo fantasmagórico de Krasinski. É um retrato do trabalho e da vida de um
artista, ou melhor de dois artistas.
Mangolte afirma que o vídeo “evoca um dia do artista (the artist)” 45, e poderíamos
acrescentar que fora um dia dela e um dia de Krasinski, sobrepostos em espaço, ainda que não
em tempo. Mas, vistas lado a lado, as fotos selecionadas do ateliê do artista para ilustrar a
dissertação, uma de Mangolte e a outra anônima e institucional, não conservam nenhuma
diferença.
A abertura do ateliê para visitação evoca o tema do cotidiano e produz
questionamentos em torno do lugar de produção e exposição da arte, o lugar onde ela existe
para o público e onde/quando ela existe sem público. Vemos desaparecer a linha entre tempo
de vida e tempo de trabalho.

2.2. O ateliê de Giorgio Morandi por Tacita Dean

A artista britânica Tacita Dean fez uma série de retratos de artistas feitos em filme
16mm. Entre os retratados estão Merce Cunningham em “STILLNESS…” (2008); Claes
Oldenburg em “C.O. in Manhattan Mouse Museum” (2011); Cy Twombly em “Edwin

45
“evokes a day of the artist”.(MANGOLTE,2013) Disponível em: http://babettemangolte.org, acessado em
janeiro de 18.
49
Parker” (2011) e David Hockney em “Portraits” (2016). O de Morandi, dentre estes, é o único
póstumo.

São filmes que um dão visibilidade a algo antes privado da visão do público. Tacita
Dean se refere ao que busca capturar no filme como uma “essência” do retratado.
O relato de Dean transmite o anseio da artista impelida a agir: “Em certo ponto, de pé
no pequeno estúdio de Giorgio Morandi, [...] eu sabia que tinha de tomar uma decisão”
(DEAN, 2009, s/n, tradução minha). 46 A decisão de como agir, e de como agir com sua
câmera sobre aqueles objetos e também sobre aquele espaço.
Em dois filmes reconhecemos os objetos das pinturas de Morandi. Centralizados no
plano de Dean e mostrados de modo randômico em “Day for night” (2009) e em “Still Life”
(2009) – um loop com imagens das marcações que fazia Morandi para posicionar os objetos.
Calculadas e traçadas sobre um plano – plano que a frontalidade da pintura não mostra.

“O espaço entre os objetos era rigorosamente e matematicamente elaborados.


Esquadros, réguas e uma corda com amarras estão pendurados na parede do
ateliê. A superfície da mesa e o forro de papel estão cobertos de complexas
marcações e medidas, na maioria das vezes rubricada ou marcada com uma
letra quando, se assume, uma decisão foi tomada” (DEAN, 2009, s/n, tradução
minha). 47

No caso de Dean, qual foi o cálculo para tomar uma decisão de como agir com a
câmera?
Os planos filmados em “Still Life” são também indícios de ações, pistas de
movimentos do artista, uma grade de existência, de variações e repetições cuja finalidade era
a composição dos objetos e as luzes que incidem no ambiente do ateliê. Este plano exposto,
antes privado do espectador, o retrato de Giorgio Morandi por Tacita Dean destaca essa faceta
métrica do pintor e também Dean resgata com seu próprio corpo uma movimentação do
espaço do ateliê.

46
“At a certain point, standing in the tiny studio of Giorgio Morandi, (…) I knew I had to make a decision.”
(DEAN, 2009). Em http://www.fondazionenicolatrussardi.com/exhibitions/still_life/Day_for_Night.html
acessado em janeiro de 18.
47
“The space between his objects was rigorously and mathematically worked out. Set squares, rulers and a
knotted string hang on the studio wall. The table surface and the lining paper are covered with intricate markings
and measurements, often initialed or marked with a letter when, you assume, a decision was finalized” (DEAN,
2009) Disponível em http://www.fondazionenicolatrussardi.com/exhibitions/still_life/Day_for_Night.html
acessado em janeiro de 18.

50
Se “Still life” é o tabuleiro, “faça você mesmo: território de liberdade”, é em “Day for
Night” que estão os peões.

Img 17 Tacita Dean, “STILL LIFE”, 2009

São então muitos retratos e naturezas mortas, Dean vai inclusive chamar atenção para
o fato de que, entre os objetos retratados por Morandi, havia flores artificiais – deixando aí
uma incógnita sobre o que seria então essência, e sobre o quanto confiamos nas imagens. Seus
planos em “Day for night”, com objetos centralizados, podem parecer neutros e evocam a
extensão de um dia no ateliê pela variação da luz. Já na sequência de “Still life”, o plano
horizontal aparece levemente perspectivado, como para não produzir o plano da pintura
quando projetado.

Assim como Mangolte sobre Krasinski, uma artista agindo sobre a obra de outro
artista, um d’aprés que requalifica e atualiza a obra. Mangolte e Dean, com estes filmes,
fazem também retratos de si mesmas enquanto artistas nas instâncias do público e do privado.
Quiçá as ações de Mangolte e Dean sejam deslocar para o domínio comum os fazimentos
(making of) do ateliê, um registro simultâneo do passado e do presente.

O direcionamento da atenção para a vida e para o cotidiano, a ativação dos espaços do


ateliê, evocando um repertório de ações, reforça o caráter de performance destes filmes. Os
filmes mencionados guardam de semelhança também o fato de que o único agente em cena
está por trás da câmera (sujeitos ocultos).

2.3. O enterro da pintura

Img 18 Maria Palmeiro, “O enterro da pintura”, 2016

Como realocar o valor para o fazimento do ateliê em detrimento do objeto? Esta foi
uma das primeiras questões que me vieram, dado que sou pintora que faz pinturas. Uma das
possibilidades foi explorar o aspecto privado e invisibilidade, do trabalho no ateliê. A este
status que denominei “regime de invisibilidade”, no qual eu não poderia mostrar as pinturas e
objetos feitos no ateliê. No lugar deles, assumindo a visualidade do trabalho exposto – ou de
outros lugares de aparição, como o portfólio – surgiriam registros, índices do tempo e da ação

51
que produziram certo objeto, por exemplo. Questionando se é a exposição pública das ações e
dos objetos de arte que os confere existência.

“O significado mais elementar dos dois domínios (público e privado) indica


que há coisas que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas
em público para que possam adquirir alguma forma de existência” (ARENDT,
1958, p.90).

É um paradoxo: “Faço arte para mim. Para mim a audiência é secundária. Entretanto,
sem ela, minhas performances não existiriam”, afirma Tehching Hsieh em entrevista a Adrian
Heathfield (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.460, tradução minha). 48 Paradoxos não são
limites, senão reflexões que ativam e dão direcionamento ao trabalho.

Surgem outros aspectos da obra no espaçamento que se produz entre ação (fazer) e a
visualidade (mostrar). Podemos pensar que neste processo de ganhar visibilidade vão se
produzindo transfigurações, isto é, deslocamentos do sentido – tanto da ação quanto do
objeto. Um distanciamento entre o objeto e sua origem.

Em “O enterro da pintura” enterrei uma pintura, feita por mim para a ocasião, na ilha
do fundão, onde está o maior campus da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Não
se vê a pintura; tampouco sou vista ao enterrá-la. No quadro (do filme), se vê o prédio da
Reitoria, que abriga tanto Faculdade de Arquitetura e Urbanismo quanto a Escola de Belas
Artes. O enquadramento é estável, e o quadro é dividido no meio: na parte superior, a solidez
do edifício; e na parte inferior, o pasto de capim autogerido oscila com pouco vento. No
contra-campo da imagem, estou enterrando uma pintura, dobrada e ensacada. O áudio é a
parte mais eloquente do trabalho.

Tento reforçar a ação, a experiência do fazer, como descreve Dewey: “A experiência


estética – em seu sentido – é assim vista como inerentemente conectada com a experiência de
fazer” (DEWEY, 1934, p.49, tradução minha). 49 Assim, não bastaria substituir a imagem da
pintura por minha imagem enterrando a pintura. Era necessário repetir o processo de
ocultamento. Este processo pode então se repetir continuamente, de modo que o trabalho
deixe de ter um referente. Um processo de raspagem, depuragem, substituição e associação. É
um trabalho encadeado no outro, sem processo.

48
“I do art for myself. For me the audience is secondary. However, without them, my performances couldn´t
exist.” (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.460).
49
“The esthetic experience – in its sense – is thus seen to be inherently connected with the experience of
making” (DEWEY, 1934, p.49).
52
Visibilidade, contudo, não confere veracidade. Qual a credibilidade de uma ação que
não pode ser vista? Que não tem nem ao menos um coagente?

Cadê a pintura? Alguém enterrou. Cadê o enterro? Ninguém filmou.

Apresento o vídeo na aula/seminário “Desilha”, com Livia Flores e Ronald Duarte,


levo também um paninho de musseline azul escura cortado, é uma espécie de negativo da
pintura enterrada. Insisto que o paninho não é obra, é sobra. Um colega pega o pano. Com as
pontas dos dedos das duas mãos, segura com as duas pontas do trabalho, eleva-o à altura dos
olhos, aproxima-o do seu rosto e sopra.

2.4.Visibilidade e acontecimento (I)

A visualidade é um aspecto constitutivo das artes.50 “Quando um artista trabalha, mas


não mostra em público (...) ele se isola.” 51 (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.466,
tradução minha). Esse isolamento do qual fala Hsieh, da vida pública, tende a ser muito mal
visto no caso do ateliê: “Além dos limites seguros do ateliê e diretamente na complexidade
imprevisível da esfera pública”. 52 (THOMPSON,2012, s/n, tradução minha). Não vejo o
isolamento sendo posto como um problema quando se fala do trabalho intelectual. Este não é
considerado acrítico ou não-político. O crítico e ensaísta de dança André Lepecki escreve
sobre a relação dos vídeos Nauman no ateliê com o solipsismo, na construção de uma
subjetividade masculina, que tem como qualidades a “força da lei” e a reclusão. Seria o
oposto da reclusão, o pensamento colaborativo, um olhar para o que está fora de si, um traço
de uma subjetividade feminina? Uma boa resposta, provisória, para essa questão são os vídeos
de Mangolte e Dean; capturas de ambientes de reclusão de artistas homens, onde sem dúvida
vemos a força da lei.

Como fazer o trabalho (quando fazimento e exposição não ocorrem simultaneamente)


acontecer? Como tratar o deslocamento do trabalho/obra do espaço privado do ateliê, onde foi
feito, para o espaço público? O que dizer do lugar do ateliê em relação aos demais lugares da
arte? Que “economia de sites” (KWON, 2008, p. 169) é esta?

50
Já confrontado por alguns artistas e críticos de arte como “Anti-vision”, de Rosalind Krauss.
51
“When an artist does work but doesn´t show them in public (...) he cuts himself of communication” (HSIEH
apud HEATHFIELD, 2012, p.466).
52
"Beyond the safe confines of the studio and right into the complexity of the unpredictable public sphere”
(THOMPSON, 2012, s/n).
53
“The function of the studio”, texto escrito pelo artista francês Daniel Buren, é uma
convocação para que os ateliês de artistas não funcionem em conformidade com o sistema de
arte tradicional. Buren narra uma visita ao ateliê de Constantin Brancusi e afirma que as obras
deste nunca seriam melhor expostas do que no espaço do ateliê.

O que Buren não concebe, no entanto, é justamente uma obra feita no ateliê que não
seja imantada, ou seja, uma obra cujo “senso de realidade/verdade” (BUREN, 1971, p.56) 53
não difere em essência das coisas cotidianas. Para Buren, de fato, a passagem do ateliê ao
museu é sempre vivida na chave da perda. Como ele próprio afirma:

“A perda do objeto: a ideia de que o contexto da obra corrompe o interesse


que a obra provoca, como se alguma energia essencial à sua existência se
perdesse ao passar pela porta do estúdio, ocupava todos os meus
pensamentos” (BUREN, 1971, p. 56, tradução minha). 54
Pode-se dizer que as obras estão expostas no ateliê de Brancusi? Com que frequência o
ateliê é visitado? Atualmente open studios e studio visits são práticas instituídas e difundidas.
Situações em que se expõe a obra na aura do ateliê, assim como a exibição do contexto e do
processo. Presença e interação específica, pode ser percebida como certo voyeurismo ou
incurso na privacidade da artista ou do artista. Já abri meu ateliê três vezes ao público; a
primeira em um open studio, onde dispus uma série de pinturas chamada “depht and gravity”,
ao modo de uma exposição em galeria (hoje vendo as imagens o trabalho parece uma citação
à Krasinski, pois uma fita cinza colada nas paredes reforça a questão do horizonte na pintura),
onde não fiquei presente. A segunda foi em “cutpiece [corte]” (2015), sobre a qual falarei em
sequência. E a terceira foi um ato de enunciação, onde fiz do espaço expositivo meu ateliê por
uma semana (“ateliê/arquivo”, 2016), também tratado nesta dissertação.

2.5. “Cut piece”

Ateliê da rua Conde de Irajá

“Corte” é uma homenagem à celebre “Cut Piece”, de Yoko Ono.

Realizada originalmente em 1964, a ação de Ono conferia aos participantes (já não
apenas espectadores) a prerrogativa de cortar com uma tesoura um pedaço de sua roupa. A

53
“Sense of reality/truth”
54
“The loss of the object, the idea that the context of the work corrupts the interest that the work provokes, as if
some energy essential to its existence escapes as it passes through the studio door, occupied all my thoughts”
(BUREN, 1971, p. 56).
54
extensão da performance é definida pela artista, que deixava a cena no momento que lhe
parecesse oportuno.

“Corte” seguia um procedimento similar. Contudo, em vez de minha roupa, torno


vulnerável a integridade das telas expostas. Estas devem ficar à mercê da ação da(o)
comprador(a), que ao cortá-las se transforma em coautor(a) da peça. Na ocasião me pareceu
interessante que os participantes fossem motivados pelo interesse pessoal, isto é, pela posse
dos cortes após os mesmos.

As regras foram apropriadas de um edital para uma feira expositiva em São Paulo
chamada “Camelódromo”. As regras do edital definiam um espaço expositivo de 1 m² (um
metro x um metro) e o preço máximo por produto de R$ 500. No entanto, optei por fazer o
trabalho no meu ateliê. No convite que enviei a amigos e conhecidos, no formato de evento no
Facebook, dizia:

“Cinco telas pintadas sobrepostas. Cada tela é composta por uma trama
ortogonal. A trama define 25 campos pictóricos por tela. Os cortes devem
acompanhar esta trama.
O comprador só pode cortar os campos visíveis. Os campos têm um valor
unitário, mas também compositivo. A motivação do comprador é assim
simultaneamente compositiva e comercial. O comprador pode adquirir um ou
mais campos, adjacentes ou não. A cada novo corte surge uma nova
configuração, uma vez que as incisões revelam a tela inferior/posterior. E isso
até o fim do evento (19h).
Dimensão e valores: Cada 20cm x 20cm = R$ 20, cada tela de 100 cm x
100cm = 25 x (20cm x 20cm) = R$ 500
Os cortes poderão ser acompanhados em tempo real pela página do evento.
Assim, xs interessadxs podem participar presencialmente ou não”. 55

Eu buscava então outros espaços e situações para fazer e para expor meu trabalho; e no
meu ateliê eu tinha autonomia total para fazê-lo. Mas, pela primeira vez expor era o mesmo
que fazer o trabalho com a presença ativa de outras pessoas. No período pré-estabelecido que
durou a performance (entre 13h e 19h), a pintura foi cortada, manuseada, editada, alterada,
despencou e se multiplicou através dos recortes dos participantes. O tempo de expectação da
pintura se estendeu. Então eu tinha agora uma pintura que suportava temporalidades, tinha
grade e tinha coautoria.

55
https://www.facebook.com/events/1596292183954968/.Este ano fiz Embalo, também uma venda on-line com
uma dinâmica lúdica, com características similares de colaborador, coagente da pintura, coautor:
https://www.facebook.com/events/143177626338922/

55
Dos cortes, já não posso alegar plena autoria. Além de cortá-los muitos participantes
recombinaram cortes não adjacentes, ou cortaram em formatos pouco ortodoxos, em “T” e
“L”. A participação e a ludicidade são atributos que retornarão em trabalhos mais recentes,
mas que, até então, eram inéditos na minha prática.

Img 19 Corte [Cut piece] , Maria Palmeiro, 2015


Quero destacar que o sistema de relações e processos criados pelo trabalho “Corte”
são também pretexto para pensar e fazer a pintura. As camadas expostas pelas incisões em
“Corte” tornam literal a questão do ocultamento (no caso por sobreposição) além da “questão-
pintura” (BASBAUM, 2003, p.)

Não é só ideia, não é só ação, também é pictórico.

2.6 Ateliê/arquivo

Ateliê na Casa França-Brasil

Outra ocasião de tornar público é o ateliê performativo. Chega minha vez de expor em
um encontro organizado pelo coletivo EUM 56. Meu turno ocorreria durante o período de
ocupação da Casa França Brasil por coletivos de arte independentes. Oferecem-me sete dias
para a ocupação (junto com mais dois artistas) do espaço delimitado para o coletivo EUM: um
trecho de parede e uma pequena área sobre um apoio horizontal alto, e o segmento retangular
do chão, conformado pelos planos perpendiculares da parede e do apoio horizontal sem
delimitações visíveis.

Uso a ocasião para novamente explorar o termo ateliê performativo. Levo os arquivos
do ateliê para o declamado, novo e provisório, ateliê. Os arquivos são grandes envelopes de
papel branco, carimbados, identificados e datados: “ATELIÊ PERFORMATIVO _ Maria
Palmeiro_Abril 2016”, contendo todos os objetos, pinturas e desenhos, produzidos no ateliê
nos passados 3 meses de ateliê performativo.Coloco-os no chão, lá os arquivos estão, nem
apreciados, nem depreciados. Digo para uma pequena audiência no meu ateliê por sete dias:

“O que é o ateliê performativo? Além de ser uma performance de dois anos,


os dois anos do mestrado, o ateliê performativo é um instrumento, teórico e
prático, para pensar o trabalho feito no ateliê, o meu trabalho, de modo
insubordinado ao espaço expositivo. ”

56
O coletivo de Vila Isabel EUM (“és uma maluca”) organiza encontros onde um grupo de artistas –
selecionados sem curadoria, seguindo uma lista aberta para inscrições – debatem seus trabalhos.
56
“Tenho aqui os arquivos de março, abril e maio. Durante esse primeiro
trimestre do ateliê, trabalhei num regime de invisibilidade. Isso significa que,
o que eu faço no ateliê eu não mostro; não sai do ateliê. Eu mantive durante
esses meses um diário e uma ficha de ponto onde eu anoto o horário de
entrada e saída do ateliê, e as atividades aí praticadas”.

“Com isso, eu reforço o primeiro atributo do ateliê performativo que é


enfatizar o fazer em detrimento do produto. Lembrando: o ateliê performativo
é um dispositivo teórico e prático. Nos próximos sete dias farei do espaço da
ocupa maluca meu ateliê” (PALMEIRO, Maria, 2017. Transcrição de áudio,
não publicado).

Na sequência, abro os envelopes, e peço ajuda para dispor os trabalhos, que são mais
documentos e menos obras. As pessoas presentes manuseiam os objetos e juntos fixamos os
objetos em um grande painel branco, criado pelo projeto expográfico 57. Surgem então
camadas, sobreposições, composições e inversões dos trabalhos.

O que segue é um novo arquivamento, os trabalhos são condensados em um só


arquivo (arquivo de junho), no qual vou alternando os trabalhos por folhas de papel manteiga
azul, como um doce mil folhas. Então, finalmente envolvo-o em um envelope de papel de
seda azul. O arquivo de junho parece mais um travesseiro e menos um envelope. No ateliê
deixo-o sobre o apoio alto.

A expectativa, após a anunciação da ocupação do ateliê, era de uma situação “big


brother”, que eu trabalhasse no ateliê, do mesmo modo que eu trabalhava no meu ateliê em
casa. Mas como isso é possível? Meu objetivo foi trabalhar com as novas matérias, os meios
oferecidos por aquela situação (edital-espacial-acontecimento).

Aplico a folha de ponto; quarto dia: OCIOSO.

Uso o ateliê para guardar o tecido, obra-sobra, da performance “Dobra #10”, que
aconteceu simultaneamente ao ateliê no campus da UFRJ na Ilha do Fundão. Dobro e
armazeno. Brinco com a expansão da superfície. O tecido como o suporte da cor. Espalho e
contraio no espaço o campo cromático. Acho que ninguém me observa, mas estou em um
espaço público.

Disponho, em um gesto compositivo, o “arquivo” tecido amarelo com o arquivo azul


bebê. Gosto, então produzo múltiplos: multiplicações dos travesseiros-arquivo, desta vez
preenchidos com ar.

57
Autoria de Juliana Sicuro e Vitor Gracez (OCO Arquitetura).
57
Lanço (drip) os travesseiros sobre a superfície amarela. Deixo os múltiplos de papel de
seda azul bebê carimbados (com tinta vermelha), identificados e datados: “ATELIÊ
PERFORMATIVO Maria Palmeiro Junho 2016”. A indicação é que no último dia, caso não
houvesse interesse, deveriam ir para o lixo. Meio lixo, meio precioso, meu trabalho de arte.

Nota-se assim como no enterro da pintura, um encadeamento de ações, repetição e


variação. Descompromissadas de sentido original, deslocadas, associativas, que vão
incorporando gestos e formas a um repertório pessoal.

Na terceira parte desta dissertação irei justamente falar sobre deslocamento, a partir
dos trabalhos “Dobra” e “A obra está”. Este terceiro ato também sugere o deslocamento do
ateliê para um espaço de exposição, a galeria, a rua, a internet. Ainda construo uma relação
entre deslocamento e suporte.

Contudo, neste ato gostaria ainda de focar nos processos de ocultamento e


transfiguração da obra.

Img 20 Ateliê-Arquivo , Casa França-Brasil, 2016


Img 21 Instantanêo do video “Dripping” https://vimeo.com/182103177

2.7. Visibilidade e acontecimento (II)

Retornando então à questão da função do ateliê, a solução encontrada por Buren foi a
extinção do ateliê. “Todo meu trabalho advém da sua [ateliê] extinção” (BUREN, 1971, p. 58,
tradução minha). 58

Acontece que museus e galerias também são considerados lugares não satisfatórios
que, segundo Amelia Jones, oferecem hoje uma “experiência” apenas limitada e precária
daquilo que a autora consagra como arte:

“O efeito institucional da galeria muitas vezes parece colocar a obra-prima sob


prisão domiciliar, controlando todos os comentários conflitantes e pouco
profissionais sobre ele. ” 59 (JONES, 1993, p. 146, tradução minha)
Como bem observa Buren, o mesmo espaço que confere à obra o status de arte
também neutraliza a obra, uma vez que a retira de seu lugar de origem. Essa neutralização se
daria com a cooperação das artistas e dos artistas, os quais, nem sempre de modo produtivo,

58
“All my work proceeds from its extinction” (BUREN, 1971, p. 58).
59
“The institutional effect of the gallery often seems to put the masterpiece under house arrest, controlling all
conflicting and unprofessional commentary about it” (JONES, 1993, p. 146).
58
se fazem valer da neutralidade do cubo branco. Buren aponta duas hipóteses para a
colaboração das artistas: ou aceitam que as obras de arte são todas iguais e se adaptam sem
problema ao espaço expositivo; ou então, agem como se todas as obras fossem absolutamente
diferentes, portanto exigindo um espaço expositivo neutro. Em todo caso, destaca Buren,
“este é o destino final, onde estão todas perdidas” (BUREN, 1971, p. 54, tradução minha). 60

Jones é ainda mais específica. A instituição museu é a que dá valor - a que integra e
cataloga a obra de arte, e faz desta um episódio da história da arte. Kwon reforça o argumento
dizendo que “as instituições moldam o significado da arte para modular seu valor econômico
e cultural” (KWON, 2008, p. 169). E ainda por cima, o espaço institucional não dá conta,
como diz Jones, da “experiência”.

Mas que ideia de experiência têm Jones e Buren? Ora, do mesmo modo que Buren
alega que a obra perde potência ao deixar o ateliê, seria possível concluir que no ateliê
poderíamos experimentar a obra em toda sua plenitude? Seria esta uma experiência
supostamente “autêntica”, “pura”? Segundo o ensaio de Buren, parece que sim.

No caso de Buren, o fazimento foi deslocado para fora do ambiente do ateliê


(terceirizado em gráficas, serralherias e outros ateliês de ofício). No caso da performance, em
grande parte, o fazer se dá fora do ateliê, e simultaneamente, com a expectação.

Neste momento, talvez o melhor caminho a seguir seja refletir sobre o quê, afinal,
entende-se por experiência. E, mais ainda, sobre as brechas entre a experiência do fazimento
do artista bem como do fazimento da expectação (do fruir, da percepção). Para John Dewey
filosofo americano que pensou as engrenagens entre arte, experiência e educação, a
experiência “singular” é da ordem do contínuo porem possui uma qualidade consecutiva e de
unidade, não basta ser“ uma sensação daquilo a que se refere e de para onde vai”
(DEWEY,2010,p.114), precisa de um “desfecho ou uma consumação da consciência” . Para
Dewey tanto a atividade intelectual quanto a atividade prática podem ser experiências
estéticas. Se dimensionássemos então a “consumação da consciência” a pequenos acessos eu
poderia encontrar em Dewey um par.

Este, me parece, é o limite da reflexão de Buren – o fato de ele não relacionar o que
ele chama de “realidade/verdade” (BUREN,1971, p.56) da obra com o cotidiano do artista,
uma vida menor. O que se perde para Buren não é muito distinto daquilo que Jones chama de

60
“This is where they all arrive in the end, where they are lost” (BUREN, 1971, p. 54).
59
experiência. Um e outro parecem creem numa certa autenticidade da obra, algo intrínseco a
ela no que se refere à sua experimentação. A extinção do ateliê em Buren é, de certo modo,
possível pela delegação da feitura do trabalho, a delegação da atividade prática, o que pode
constituir, segundo Dewey dependendo do nosso engajamento, uma experiência do fazer. Que
regime de produção é esse? Que engajamento é este? E como fica isso então, em relação ao
“corpo-em-experiência” da performance?

Isto me faz pensar na hierarquia entre fazimento e a ideia (pensamento) na arte


conceitual. Os trabalhos invisibilizados têm experiência e matéria. Não se dão
necessariamente em espaços confinados, tornam-se invisíveis por serem desvalorizados ou
incômodos.

60
Ato III

Deslocamento

3.1. Suporte e espaço público

Pondo em questão os contornos de ação política dados por Arendt, por considerá-los
modos produzidos pela elite, Judith Butler nos alerta, no texto “Bodies in Alliance and the
Politics of the Street”, que o espaço público não é pressuposto, não pode ser considerado
como fato, e que garantir que um espaço seja público é parte da ação política dos corpos na
rua. O texto de Butler faz um apreço das ocupações como ato político, tendo como principal
exemplo os atos na Praça Tahir, no Cairo (Egito), que se tornaria simbólico do processo
histórico que ficou conhecido como “Primavera Árabe”, iniciado em 2011.

O que Butler faz de modo animador é ampliar o escopo do que é entendido como
“suporte” para a ação política. O espaço público deixa de ser entendido como o principal
suporte da ação política, o lugar dado da visibilidade. Com isto, Butler expande não apenas os
locais onde se faz política, mas expõe uma trama de suportes que permitem, suportam,
manifestações políticas.

Digo animador também pelo modo como a autora estabelece a relação entre agente
agido como indissociáveis: x age y, y age x. Nas palavras de Butler, “esse ambiente material
faz parte da ação e eles mesmos agem quando se tornam um suporte para a ação” (BUTLER,
2011, p.1, tradução minha).61

Ou seja, toda ação humana precisa de suporte, e lutamos também pelo suporte. O
suporte também é constitutivo da ação. O que está em questão é o que se entende por suporte,
não mais suporte para ação, mas parte desta. Qual é a sua materialidade? Ou quais os modos
deste?

Em diálogo com Arendt, que diz no livro “O que é política”, “a política surge no entre-
os-homens, portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma
substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação”
(ARENDT,1998, p.35-36) 62 e que tratou o espaço público como categoria universal estável,

61
“Those material environment are part of the action and they themselves act when they become support for
action.” (BUTLER, 2011, p.1).
62
Citação soprada por Eleonora Fabião na banca de conclusão.
61
Butler sugere a criação de um espaço outro (utópico, distópico, heterotópico) – que Butler
trabalha em dois domínios: o “pré-político” e o “extra-político”. Através do pensamento de
Butler, é possível se reescrever, e introduzir um novo repertório de ação política. E esta pode
promover encontros e subjetivações.

“Estar fora das estruturas políticas estabelecidas e legítimas ainda está


saturado nas relações de poder, e essa saturação é o ponto de partida para uma
teoria do político que inclui formas dominantes e subjugadas, modos de
inclusão e legitimação, bem como modos de deslegitimação e apagamento”
(BUTLER, 2011, p.4, tradução minha). 63

Para Butler, essa reescritura está sendo feita a partir da “Aliança”, dos corpos em
aliança, no que ela chama de “ação em acordo e aliança”64. Conforme afirma a autora, “As
reivindicações políticas são feitas pelos corpos à medida que aparecem e agem”. 65

“A ação em aliança acontece precisamente entre aqueles que participam, e este


não é um espaço ideal ou vazio - é o espaço do suporte em si - de materiais
duráveis e conviventes e de interdependência entre os seres vivos” (BUTLER,
2011, p.1, tradução minha). 66

“Intra-espaço”, “entre aqueles que participam”: essas frases ressoam na minha cabeça.
A concepção de um espaço que se constitui entre me fascina, tenho vontade de preencher com
cor, peso e movimento.

Aproprio-me dessa noção de espaço da ação política e a transponho para o espaço da


ação pictórica. Do quadro para o espaço, esse espaço já não é mais o vazio da tela ou o espaço
abstrato cartesiano: o espaço é a própria ação, que é também suporte.

Img 22 – Marcel Duchamp, “Escultura de viagem”, 1918

Se, nos atos anteriores, a performatividade do ateliê lida com as questões do fazer e do
expor, abordagens mais conceituais e metodológicas a respeito da produção no ateliê, neste
ato irei tratar da performatividade da pintura pelo mais gestoual, na tradição dos happenings,
da liveart e da performance.

63
“To be outside established and legitimate political structures is still to be saturated in power relations, and this
saturation is the point of departure for a theory of the political that includes dominant and subjugated forms,
modes of inclusion and legitimation as well as modes of delegitimation and effacement.” (BUTLER, 2011,p.4)
“Political claims are made by bodies as they appear and act.”
64
“Concerted and allied action" (BUTLER, 2011, p.3).
65
“Political claims are made by bodies as they appear and act”, (BUTLER, 2011, p.3).
66
“Action in alliance happens precisely between those who participate, and this is not an ideal or empty space –
it is the space of support itself – of durable and liveable material enviroments and of interdependency among
living beings.” (BUTLER,2011, p.1)
62
Contudo, tentarei reconhecer uma prática de pintura, com ajuda dos instrumentos
conceituais como a instrução e a coreografia, aplicados ao pensamento da “action painting”.
Levarei em conta o tempo e espaço do ateliê, bem como o tempo-espaço da performance.

3.2. A obra está

Img 23 Maria Palmeiro, A obra está, 2014

“A obra está” foi pensada a partir do edital da galeria CASAMATA, no Rio de


Janeiro. Solicitava-se que o projeto para a exposição fosse específico para aquele espaço. O
edital continha, como a maioria dos editais, uma planta baixa da galeria, o que, portanto,
concentraria a especificidade daquele espaço. Ainda que não se mencionasse o termo “site-
specific”, a ideia de um projeto destinado àquele espaço específico remetia ao que Miwon
Kwon se refere como acepção inicial de site-specificity:

“Orientada para a arquitetura ou para a paisagem, a arte site-specific


inicialmente tomou o “site” como localidade real, realidade tangível, com
identidade composta por singular combinação de elementos físicos
constitutivos: comprimento, profundidade, altura, textura e formato das
paredes, e salas; escala e proporção de praças...) ” (KWON,2008, p.167)

Penso em Hélio Oiticica e seu pensamento de pintura no espaço, quando escreve em


um diário: “a meu ver a quebra do retângulo do quadro ou de qualquer forma... longe de ser
algo superficial, quebra da forma geométrica em si, é uma transformação estrutural; a obra
passa a se fazer no espaço” (OITICICA, 1986, p.); e na artista Jessica Stockholder, que
relacionou pintura e site-specific no modo mais convencional (não é um juízo de valor) de
ambos os termos, ou seja, no modo como convencionalmente se lida com o tema da transição,
expansão, contaminação, do suporte da pintura para o espaço.

Trata-se de algo similar ao que sugerem as fotos do ateliê de Mondrian em Nova York.
As fotografias do ateliê de Mondrian aludem a uma instância de investigação, de processo e
de pesquisa em andamento – uma existência relativizada, não plena, do trabalho na
privacidade do ateliê. Existência que se dá pela difusão desses registros do ateliê – que
literalmente expandem a pintura de Mondrian.

Mas o que acontece se incluímos a dimensão do tempo na relação entre pintura e site-
specific? Exposições de pintura são geralmente um arranjo posterior, no espaço expositivo,
de pinturas previamente feitas no ateliê. Este deslocamento torna evidente a adequação da

63
obra às condições físicas da galeria, e a compatibilidade entre os espaços do ateliê e da
galeria.

Como disse Buren, o ateliê é “a moldura, o envelope, o limite” (BUREN, 1971, p. 1,


tradução minha).67 No âmbito do edital da galeria “CASAMATA”, cedo à sobreposição das
plantas dos dois espaços (ateliê 68 e galeria) a determinação da dimensão das telas e a
composição no espaço da galeria.

A proposta enviada para a galeria foi:


“O trabalho começa com o levantamento prévio do espaço expositivo. Com
uma tela contínua forrarei a parede da galeria para criar uma faixa continua
com a extensão total do perímetro do espaço, e marcarei, com grafite, sobre
esta as arestas da CASAMATA”.
“Essa mesma tela, depois do levantamento, vai para o meu ateliê. Lá eu repito
o mesmo processo de forração, para depois trabalhar sobre a folha. Assim,
surgem novas arestas e novas condições para a pintura. O espaço pictórico
passa ser definido diretamente pela disposição da folha no meu ateliê e pelo
levantamento do perímetro da galeria. O trabalho permanece sobre a parede e
é desenvolvido no meu ateliê até o dia da montagem da exposição, quando ele
voltará a estar no espaço da galeria.
“O que acontece, e que me interessa, com essa operação:
“-Subverte-se a sequência ateliê-galeria da vida da obra.
“-Não é uma obra de “site-specific” porque é parte da obra haver estado no
ateliê.
“-Não há arranjo posterior das pinturas no espaço da galeria.
“-Não há hierarquia no espaço expositivo.
“-O grafite e a tinta são para mim entidades muito distintas, quase
antagônicas.
“-A linha de grafite é uma representação de limite com a qual a pintura se
deparará.
“-Não há distinção entre o que está em processo e o que é exposto.
“O nome do trabalho, ‘a obra está’, se refere ao estado vacilante da pintura e
ao lugar físico que ela ocupa na galeria ou no ateliê. ” (PALMEIRO, Maria,
2014)

O campo de cada pintura foi definido pela sobreposição das arestas dos dois espaços e
pelas temporalidades decorrentes dessas duas situações e ações. Não há parte (no caso
unidade) dissociada do todo e vice-versa. A etapa e o local em que cada ação ocorreu são
fatores constitutivos do trabalho; estão lá em grafite, corte e tinta. Mas, o que dizer sobre o
enunciado do projeto acima em termos de ação? Junto com as “questões da pintura”, a tarefa,
a instrução, e por que não, a coreografia do movimento.

67
“the frame, envelope, limit” (BUREN, 1971, p. 1).
68
Neste momento tenho pela primeira vez um ateliê exclusivo instalado em um apartamento conjugado.
64
No texto, “Masculinidade, solipsismo, e coreografia”, Lepecki, em diálogo com Janet
Kraynak sobre enunciado e a coreografia, usa como exemplo os vídeos de Nauman. Diz
Lepecki: “Tal enunciado-instrução é sempre manifesto no título de cada peça. Cada filme de
Nauman ‘performa’ ou ‘faz’ o que seu título anuncia. O título ganha autoridade autoral,
definindo um espaço muito restrito para o comportamento e o ser.” (LEPECKI, 2017, p.61).
Essa análise chama minha atenção para o caráter de instrução que o projeto de “A obra
está” tem, assim como de todo projeto. O projeto não apenas condicionava formalmente a
pintura, mas também prescrevia um amplo escopo de ações, abrangendo os movimentos
como: alisar minhas mãos sobre a parede no ato de forrar, agachar os joelhos ou esticar os
braços para marcar as linhas verticais, mover os dedos da mão ligeira e rapidamente no ato
desenrolar a tela, com as palmas fazendo anteparos para que desenrole somente o suficiente
enquanto me equilibro acocorada, e até mesmo solicitar ajuda para fixá-la à parede.

Img 24 Maria Palmeiro, A obra está, 2014 (ateliê)

Os movimentos que não constavam como instruções, movimentos derivados do meu


enunciado, o projeto. Mas se manifesta no procedimento de “A obra está” uma intenção
performativa, aquilo que J.L. Austin chamou de “performativos perlocucionários“, que
produzem efeito e persuasão.
Em “O ateliê”, filme que Geta Brătescu fez em seu ateliê, a artista romena se filma
empenhando instruções. Instruções feitas em desenhos:

"O texto que acompanha, e se sobrepõe, a estes desenhos, por sua vez, faz
referência às ações de seu corpo, que se manifestam tanto no espaço do
estúdio como no filme. O roteiro [score] destaca o papel de Brătescu como
autora, intérprete, atriz e espectadora em seu trabalho à medida que se move
entre auto-retrato, auto-instrução e encenação [enactment] . Existe [roteiro-
desenho] nas relações entre textual e visual, entre o tempo de atuação ao vivo
no estúdio e o tempo de atuação no filme, com o corpo de Brătescu, tanto o
sujeito negociador, como o objeto que interpreta e afirma [enacts] as
linguagens da partitura” (FOLKERTS, 2016, p.7, tradução minha). 69
Hendrik Folkerts chama a atenção para as temporalidades que coexistem no trabalho
de Bratescu e com isso para uma ambiguidade constitutiva do próprio. O tempo dos desenhos
e da escrita, o tempo da ação frente à câmera, o tempo do vídeo. O mesmo acontece em “A

69
“The text that accompanies and is superimposed on these drawings, in turn, references the actions of her body
that manifest in the space of the studio as well as on film. The score highlights Brătescu’s role as author,
interpreter, actor, and spectator in her work as it moves between self-portraiture, auto-instruction, and enactment.
It exists in the relationships between the textual and visual, between the time of live performance in the studio
and the time of performance on film, with Brătescu’s body both the transactional subject and the object that
interprets and enacts the languages of the score” (FOLKERTS, 2016, 7).
65
obra está”: diferentes estágios, que remetem ao deslocamento da tela galeria-ateliê-galeria, e
as condições que este deslocamento impõe tanto a mim quanto à pintura.
Ou seja; mais uma vez : não é só ideia, nem é só ação, também é pictórico.
Img 25 GetaBrătescu, “O Ateliê”, 1978

Assim como ocorre com a fita azul de Krasinski, em “a obra está” a pintura adquire
tridimensionalidade nos cantos e dentes do ateliê – apenas para, e logo em seguida, se
planificar novamente nas paredes da galeria, configurando outra tridimensionalidade.

3.3. Ato de pintar

Além, então, do caráter de instrução de uma vertente da performatividade da pintura, e


a instigante variação do suporte do enunciado perlocucionário. Há de minha parte certo
esforço em ver como a ação pictórica pode ser concebida de forma análoga à ação dos corpos
em aliança.

Outro modo de perceber a ação pictórica, levando a pintura para o campo da ação, mas
da ação que não é a “performatividade pollockiana” (cunhada e problematizada por Amelia
Jones). Isso se dá pelo fato da pintura ocupar ainda um lugar supostamente apaziguado e à
parte, produzida na apatia do ateliê. Não para dizer que a pintura ela é política; mas para
pensa-la como modo de produção, ação e performatividade.

Assim que eu gostaria de deter na questão das convenções e categorias das expressões
das artes para localizar redefinições para o ato de pintar. Transpondo de forma análoga essa
discussão sobre ação para o ato de pintar, podemos nos perguntar: é possível que esse ato
ocorra fora da tela?

3.4. Sem suporte

“My painting does not come from the easel ... I need the resistance of a hard surface”
(POLLOCK, apud JONES,1998, p.73)
I
Encaramos telas, baldes de tinta branca e utensílios.
Proponho uma ação, uma oficina-performance. Pois esta se daria nos moldes de uma
oficina, visando a participação como um modo de observação e experimentação dos corpos (o
meu próprio e o das participantes) para as relações entre movimento, espaço, pintura e
performance.
66
Proponho que pintemos telas sem suporte de um chassi, sem apoiar no chão e
tampouco nas paredes. Usaremos tinta branca sobre telas brancas, e uma diversidade de
utensílios para aplicação da tinta.

Após um momento inicial, onde as participantes encontram e experimentam seu modo


de agir com a tinta sobre a tela – momento no qual eu imagino que o que esteja operando
sobre a gestualidade seja a meta – a antecipação da visualidade resultará do contato entre
pincel, espátula, esponja, mão, ou qualquer outro utensílio de deslocamento da tinta no balde
e as telas.

Em dado instante, as atenções passam a concentrar-se na imbricação entre gesto e


meios (medium). Não mais a antecipação, e perseguição de uma visualidade ou um resultado
do ato de pintar.

II

A participante A apoia a tela sobre a palma da mão. Transfere a tinta branca do balde
com a outra mão e passa tinta sobre o trecho apoiado. Côncavo da mão, tênar, hipotênar,
punho, falanges e polpas.
Outro participante prende a tela com o queixo e com a broxa passa a tinta branca sobre
suas clavículas, externo, torso, abdômen, umbigo, púbis, flanco.
Pintam no contra corpo. Prensam a tela.
Outros não abandonam a intenção da representação figurativa ou abstrata. M. faz
ondulações, pequenos círculos sobre os trechos de tela que consegue alisar sobre o terço
inferior, médio e superior da perna. Sobre a dorsal do pé faz uma onda.
Outros dançam e os gestos visam pinceladas breves e carregadas de tinta.
Outros dançam, os gestos não visam a pintura senão a manipulação dos materiais.
Tinta é meio, corpo é meio, tela é meio e utensílios são meio.
Eu me pergunto: quem cria o corpo? (Quem é o agente do gesto?)
O fim da pintura faz o gesto? O fim do gesto faz a pintura? E o que é isso que se faz
quando já não há distinção entre gesto e pintura? É o índice da intenção compositiva que
some?
O gesto deixa de definir forma, para ser forma.
Após pintadas as telas, que, à primeira vista, têm a mesma aparência, estas são
dispostas à preferência dos participantes. Observamos e tentamos falar a mesma língua delas.

67
São todos coisas e causas.
“Todos os corpos são causas” para os Estoicos, diz Deleuze na segunda série de
paradoxos “dos efeitos da superfície” – balde de tinta, participantes, telas, pincéis, broxas,
gravetos, bisnagas, etc. Todos causas, não mais sujeito e objeto. “Todos os corpos são causas,
causas uns com relação aos outros, uns para os outros” (DELEUZE, 2009, p. 4). Essa
afirmação que equipara e desconstrói as categorias de sujeito e objeto desorganiza toda lógica
da ação pré-concebida, e faz aflorar a nossa percepção para o ato na sua expressividade (no
sentido usado por Deleuze) não racionalizada.

Some a intenção, entra a contingência. Sai o gesto que quer definir a forma, fica o
gesto que é a própria forma.

“Esta dualidade nova entre os corpos ou estados de coisas e os efeitos ou


acontecimentos conduz a uma subversão da filosofia. Por exemplo, em
Aristóteles, todas as categorias se dizem em função do Ser; e a diferença se
passa no ser entre a substância como sentido primeiro e as outras categorias
que lhe são relacionadas como acidentes. Para os Estóicos, ao contrário, os
estados de coisas, quantidades e qualidades, não são menos seres (ou corpos)
que a substância; eles fazem parte da substância; e, sob este título, se opõem a
um extra-ser que constitui o incorporal como entidade não existente. (...) o
ideal, o incorporal não pode ser mais do que um “efeito”.” (DELEUZE, 2009,
p.8)

Contudo, este acontecimento que se dá na interação entre coisas e causas é


categorizado como pintura no momento que a tinta vai ao encontro (e este encontro pode ser
suceder de infinitas maneiras) de outra superfície, no caso a tela. Neste contato, que se
convenciona a pintura, as causas e coisas retomam seus postos de tinta e suporte, e ato é o ato
de pintar, e aí, entenda-se, a expressão de quem pinta. Logo, me pergunto como que eu posso
suspender então a convenção, para que se instaure entre as causas e coisas um estado
horizontal de interação. Concluo então: pintura é a presença da tinta.

Img 26 Pancake, Marcia X., 2001

O que ocorre entre coisas e causas em relação durante a oficina – com finalidades não
distinguidas – pode ser visto na chave dos acontecimentos incorporais (DELEUZE, 2009, p.6)
que se dão na superfície das causas e coisas quando estes se afetam. Essa interpretação me
instiga a questionar o estatuto da matéria, no caso o leite condensado e o granulado de Marcia
X., na retórica da produção do objeto de arte. A própria definição de incorporais desconstrói o
referencial do corpo com substância e com atributos fixos; os atributos são pensados como
fatos que se exprimem.
68
“Desfaz as noções habituais de linguagem e ontologia, possibilitando uma
nova maneira de pensar, ou problematizar o que significa pensar, o que é o
pensamento ou seja pensar o acontecimento entre a possibilidade e a
impossibilidade do próprio pensamento.” (FIGUEIREDO, 2012, p. 129)

Vale ressaltar que incorporal não supõe abstrato ou imaterial. Meu interesse pelo
termo é de não reificar a matéria, não impor a esta uma moralidade ou uma verdade, o termo
também reforça um encontro entre temporalidade (acontecimento) e materialidade.

III

O que se dá, e que vejo quando olho para os participantes e como estamos organizados
no espaço, é uma criação de um espaço ativado, uma superfície contínua de gestos contíguos,
que contém as causas e coisas. Espaço este que é desativado à medida que cada participante
produz uma separação de sua tela, um descolamento de toda energia que estava concentrada.
P. parece padecer especialmente neste processo e desfaz-se de sua tela em ritmo ultra
desacelerado.

E a forma? Isso que chamei acima de “energia concentrada” e de espaço ativado. O


espaço da ação entre agentes que sugerem Arendt e Butler? Ainda assim. É possível dizer que
se dá são acontecimentos incorporais, se há a noção de agente? No cerne do encontro das
categorias do movimento com as artes visuais; o quanto se antecipa, o que está definido a
priori; a capacidade de previsão é sempre um contraponto ao acaso e a causalidade sem fim.
Portanto: desacelerar, suspender a agência numa ação em acordo e aliança. O suporte de
Butler como médium. Pôr em ritmo a agência ao encontro dessa indistinção entre corpos,
coisas e causas. É deste modo que o ato pode ser considerado interdisciplinar – não
categórico/não convencional.

Não só esta é uma discussão entre o gesto e o fim, como sobre a distinção entre
trabalho e ação. O termo de Deleuze (“acontecimentos imateriais”), por isso, pode ser uma
ferramenta conceitual interessante por justamente dissolver causa e consequência, além de
promover uma expansão no que se entende por forma. É também sobre a distinção entre o
fazer e o agir:

“Na ética Nicomaquéia, Aristóteles distingue o trabalho, ou poiesis, da ação


política, ou práxis, utilizando para isso a noção de virtuosismo: há trabalho
quando se produz um objeto, uma obra separada do ato; há práxis quando o
ato tem em si mesmo seu próprio fim. ” (VIRNO, 2013, p. 35)

69
Essa forma, ou acontecimento, está posta no limite do encontro entre disciplinas; entre
dois campos convencionados, a pintura e algo outro que lida com corpo e movimento (a
dança, por exemplo) ou com o espaço quando o pictórico se dá em três dimensões; assim
construindo relações também com a arquitetura ou a escultura. Essa forma é sempre o entre.

Em “Ensaio para um pequeno tratado de alquimia teatral”, Jean Louis Barrault


compara o teatro com as outras expressões de arte. Para ele, o que caracteriza e define a
pintura é o pincel na tela, a música é o arco nas cordas, a literatura é a pena no papel, e o que
define o teatro é o ser humano no espaço.

Vilem Flusser vai observar a riqueza da força metafórica das convenções e no


território das transdisciplinaridades, “um jogo metafórico voltado para a liberdade”
(BERNARDO, 2008, p.69):

“Para saltar de um médium a outro (de um “universo” a outro), devo


compará-los (...). Essa comparação poderia ser chamada de um meta-medium
(você a consideraria como ‘interdisciplinar’). Esse meta-medium é também
um médium, por exemplo, físico-química. E então, se você quer ser coerente,
você teria de saltar desse meta-medium para o interior de outro médium – por
exemplo do meta-medium “pintura-fotográfica” para o interior do médium
“música”. Ora, para fazê-lo, você precisa de um meta-meta médium – uma
escada-de-mão completamente feita de metáforas, ou, uma tarefa
terrivelmente fascinante – equivalente a uma corda dançando ou a fogos de
artifício.” (FLUSSER apud BERNARDO , 2008, p.69)

“Um híbrido”, “um diálogo”, escreve André Lepecki sobre o trabalho “It´s a
Draw/Live Feed”, de Trisha Brown, uma “dança-desenho simultânea” (LEPECKI, 2006,
p.65-69). No texto, o “diálogo” entre dança e artes visuais é analisado, em certo ponto, de
modo a evidenciar o referencial e contexto histórico que esse encontro evoca.

No caso da relação entre pintura e performance, o que me parece um tanto pernicioso é


que a convenção se instaurou na relação entre os campos, com a figura do “Papa Pollock”
(LEPECKI, 2006, p.65) e a “actionpainting”.

Para fim de especulação e exemplificação em torno deste tema, sugiro outro gesto
performativo (sempre que uso essa palavra tenho em mente uma crença não apenas as
possibilidades de declarações no fazimento da obra, como também o que a obra faz),
alternativo para a relação entre ação e pintura com as pinturas brancas de Robert
Rauschenberg (“White paintings”, 1951).

27 Robert Rauschenberg, White paintings, 1951

70
Pintura branca é um exemplo, para mim, de objeto que faz. É um dispositivo que
confere à pintura o que Donald Judd chamou de “single”, senso de unicidade:

“As partes são poucas e tão subordinadas à unidade que não são partes em um
sentido ordinário. Uma pintura é quase uma entidade, uma coisa, e não a
indefinível soma de um grupo de entidades referenciais” (JUDD, 1965, p. 98)

Judd diz que os trabalhos que adquirem senso de unicidade (“single”) possuem um
modo específico de tridimensionalidade, não mais pintura nem tanto escultura. São objetos
específicos.

Na esteira do que Judd identifica como especificidade do objeto tridimensional, em


conjunto com as construções lógicas de Ludwig Wittgenstein sobre cor (“Deve haver uma
conexão entre a tridimensionalidade, luz e sombra” (WITTGENSTEIN, 1977, p. III-154,
36e), atribuirei ao uso da tinta branca a techné de constituir outra tridimensionalidade (que
não é a de Judd) e, consequentemente, um corpo-objeto “agido” (DIDI-HUBERMAN,1998
p.79). A ação (pintar) e o produto (pintura branca) cingem-se. Diferentemente, portanto, dos
exemplos da “actionpainting” (termo traduzido como “gestualismo” ou pintura gestual),
causa e consequência, encontro no qual a pintura não é outra coisa senão produto – ou índice
– do ato de pintar de um corpo performativo específico, que associa de modo evidente
movimento a expressividade da pintura e do agente.

Didi-Huberman está escrevendo sobre uma criança pequena deixada só rodeada de


objetos, “uma boneca, um cubo, um carretel ou simplesmente o lençol de sua cama”, na
manipulação destes objetos, “objeto agido[...] ritmicamente agido”:

“Abre na criança algo como uma cisão rítmica repentina. Torna-se por isso
mesmo o necessário instrumento de sua capacidade de existir, entre a ausência
e a presa, entre o impulso e a surpresa. ” (DIDI-HUBERMAN,1998 p.79)

Não se trata de pensar uma nova categoria, como a instalação, por exemplo, ou o “site
especific”. Mas de pensar à deriva para o campo performance, uma categoria que abarca esses
“frutos estranhos”, diria Florência Garramuño, uma vez que, dentro de suas próprias
convenções, que não podem ser pensadas fora da história da arte, trabalhariam de modo
irruptivo e afirmativo, utilizando-se da força da convenção como enunciado.

Img 28 Niki de Saint Palle & Robert Rauchenberg, “Painting made by dacing, 1961”

Meu ponto é que operar com as convenções, nos limites destas, nubla a antecipação da
visualidade do trabalho, o que permite que não haja representação categórica, e que nesta
71
ausência de controle, do acontecimento, se depure um gesto. O gesto nas belas palavras de
Agambem: “medialidade pura e sem fim que se comunica aos homens” (AGAMBEM, 2008,
p.13)

Mas o que convenciona a pintura? Concluo que a pintura são as “questões da pintura”.

IV

Proponho às participantes da oficina que agora pintemos sem tela.

Lynda Benglis, em fevereiro 1970, derramou cera e látex pigmentado no chão da


galeria, para e exposição “Fling, Dribble, and Drip” (“Arremesso, escorrido e gotejamento”).
A revista Time, na época, chama a artista de escultora, mas publica sua foto ao lado da foto do
Papa Pollock. A artista se refere aos seus trabalhos como pintura.

Aqui os campos da escultura e da pintura pelejam pela intencionalidade, por um modo


de pensar, fazer e ver a arte.

"Eu acho que comecei a fazer o derramamento porque eu não podia derramar cera no
chão e fazê-la funcionar, e eu não estava interessada em telas esticadas. Mas eu estava
zombando de toda a questão figura e fundo” (BENGLIS,1983) – diz Benglis em áudio da
época. De fato, a gestualidade de Benglis parece uma zombaria de Pollock em detrimento do
pintor Louis Morris, que também fez derramentos, por sua vez sobre tela, ou mesmo as
pinturas de Helen Frankenthaler, mas que não seria um contraponto interessante para Benglis
dada a suavidade de ambos atos pictóricos, uma anti- virilidade. A meu ver, Benglis, com toda
admiração, também queria destituir o Papa Pollock. E para isso precisou repetir o ataque do
“macho” à tela no chão. Na análise de trabalhos mais recentes de La Ribot e Trisha Brown,
Andre Lepecki estende, todavia, para o chão e a tela na horizontal, a imagética do gesto,
ressaltando o aspecto de conquista territorial do ato de Pollock.

Sem tela eu tiro minha camisa. A camisa é azul turquesa, de musseline, não oferece
nenhuma resistência ao meu contato quando vestida em um só braço e eu traço linhas
verticais, que não sucedem como linhas verticais, com o pincel.

P. passa a tinta na parte externa do balde.

Concluo que a pintura está na superfície aplicada.

72
Lynda Benglis, em 1971, derramou poliuretano pigmentado sobre o suporte de
plásticos estruturados com tela de galinheiro. Ela pintou a superfície do plástico armado (isto
é, estruturado contra a ação da gravidade); e depois ela retirou o suporte.

Do mesmo período é o grupo de pintores franceses denominado


“Suportes/Superfícies”. O eixo central da proposta do grupo – que tem vida curta, de 1970 a
1972 – apóia-se na recusa à idéia de quadro, pensado como tela sobre a qual uma imagem é
projetada. “O quadro desaparece como lugar de mis-en-scène", afirma o crítico Jean Clair,

“‘para renascer em sua fisicalidade de suporte e superfície’. O rompimento com certa


concepção de quadro vem acompanhado da decomposição da imagem e do trabalho
com a cor, ela mesma definidora de espaços. A nova pintura – que rechaça qualquer
tipo de ilusionismo – é definida simplesmente como uma superfície colorida posta
sobre um suporte: a tela estirada e fixada sobre um chassi. A pintura de Paul Cézanne
– apoiada na análise estrutural da natureza e na pesquisa metódica – assim como as
irradiações de cores que as telas de Henri Matisse projetam, são tidas como as duas
grandes referências do grupo, que surge ano de 1970, em uma grande exposição
conjunta no Museu de Arte Moderna de Paris. (...) Trata-se de rever a ideia de quadro
– grande emblema da arte ocidental – pelo desnudamento de sua materialidade”
(CLAIR apud ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL: SUPPORT SURFACE)

Em entrevista, Benglis diz que a performatividade do trabalho estava em fazer as


pinturas “em locação”. Vale ressaltar que Benglis saiu do chão, e que neste segundo trabalho
a relação com a parede é evidente, reivindicando, portanto, sua definição de pintura.

O objeto-resto pintura, este que foi desvinculado de cada participante quando postos
para apreciação, está em um lugar conflituoso entre meio e produto, ou, melhor dizendo, já
que abandonamos a distinção sujeito/objeto no início do texto, conflito entre meio e meio;
meio para atingir algo (medium) e o meio de expressar algo (mitten). Por “expressar” tenho
em mente o pensamento de Deleuze acerca do “efeito de superfície”:

“Efeitos no sentido causal, mas também efeitos sonoros, ópticos ou de linguagem – e


menos ainda, ou muito mais, uma vez que eles não tem mais nada de corporal e são
agora toda ideia... o que se furtava à Ideia subiu à superfície, limite incorporal e
representa agora toda a idealidade possível, destituída esta de sua eficácia causal e
espiritual.” (DELEUZE, 2003, p.8)

A concepção de acontecimentos incorporais vai ao encontro à de gesto de Giorgio


Agamben: “o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a moral e
apresenta meios que, como tais, se subtraem ao âmbito da medialidade, sem por isso
tornarem-se fins” (AGAMBEM, 2008, p.13).

73
Mas antes de assumir a ordem dos acontecimentos incorporais, que resolveria
enquanto definição a qualquer categoria, gostaria de passar por mais duas discussões: sobre
tempo e matéria.

O encontro entre campos faz com que as medialidades sejam ainda mais obtusas, pois
mesmo como linguagem é uma linguagem que transita entre dois campos. Dois regimes
temporais distintos. Toda discussão sobre os meios incide na experimentação do tempo, pois
meio é processo e a oficina-performance não é processo, a interação não se dá numa lógica de
ação e reação, agente e matéria. Os acontecimentos incorporais são os da forma cingida, sem
hierarquia das causas e coisas e em relação, portanto, no “presente que se espalha”
(DELEUZE, 2009, p.153), dando ênfase ao acontecimento. “É por ela [noção de
acontecimento] que se desfaz as noções habituais de linguagem. ” (DELEUZE, 2009, p.153)

Contemporâneo de Lynda Benglis, o artista Robert Morris é autor do ensaio


“antiforma” publicado da revista Art Forum em 1968. Neste ensaio, Morris contrapõe sua
prática, naquele momento, à prática da escultura minimalista, acusando esta de “não ter
nenhuma relação inerente com a fisicalidade”, o que obviamente não é um valor em si. Logo,
para tratar do “processo do fazer em si”, Morris aclama a matéria, neste caso o meio
(medium), e reivindica seu processo de lida com as propriedades da matéria e a gravidade,
numa negociação contra a auto-expressão – a ação sobre a matéria deveria ser “simpathetic” e
não impositiva. Para Morris, este processo resolveria a questão, inicialmente colocada neste
texto, da antecipação: “O foco na matéria e na gravidade como meios resulta em formas que
não foram projetadas com antecedência. ”

“Suas formas "óticas" resultam da lida com as propriedades de fluidez e as


condições de um terreno mais ou menos absorvente. As formas e a ordem do
trabalho não são anteriores aos meios” (MORRIS, 1970, s/n).

Morris só continua sendo o sujeito, que age simpateticamente, da ação; e a matéria é


meio para produzir escultura. Na performance-oficina, e no limite entre os campos, não há
agente e agido fixo, e o que se produz quanto forma é da ordem do incorpóreo, ou seja, a
materialidade não é reificada. Entre causas não há moral simpatética ou impositiva, há
relação, há produção de gesto, nem dança, nem pintura.

VI

Finalmente, sem tinta.

74
Os participantes se juntam, retiram todos suas camisas. Forma-se com essas uma
superfície, as participantes seguram as bordas da superfície, de pé, concentrados e parados.
Não mais dispersos ou movimentando-se.

Concluo que o suporte da pintura é a convenção.

3.5. “Dobra”

Img 29 Maria Palmeiro, Dobra 13#, 2017

Após instituído o regime de invisibilidade como desafio ao funcionamento do Ateliê


Performativo, como toda regra, há – e deve haver – exceção e subversão: há dobra. Por dobra
eu entendo submeter uma superfície ao manuseio, ao modo que, definido um eixo, a
superfície vira-se sobre si mesma. Neste simples gesto, a superfície deixa de ter apenas uma
face que se mostra, podendo ter várias. Entendo que na dobra há um gesto de
tridimensionalização. Entendo a dobra como possibilidade e repetição. Vejo em “Dobra” a
possibilidade de ação produzir “evento”, e não apenas objeto de arte.

“Dobra” é uma série de trabalhos que tiveram como ponto de partida um pedaço de
tecido musseline azul marinho dobrado e costurado no interior com uma linha branca circular.
O trabalho foi motivado pela pesquisa da minha orientadora, Livia Flores, em associações
livres em torno do tema Desilha. Inicialmente relacionei o tema de Desilha à condição do
ateliê. Porém, em minha opinião, a ideia do ateliê ilhado, enquanto lugar que não está
subjugado a nenhuma ordem ou poder, ou que atua com autonomia, é ilusória. Essa ideia me
parece falsa. No que se refere ao artista que trabalha no ateliê, a nomenclatura parece mais
apropriada quando este se isola no sentido político.

Da linha branca que costurava a musseline dobrada em partes iguais (“Dobra #1”),
seguiu-se uma musseline de bordas costuradas e depois cortadas (“Dobra #2”). O trabalho tem
semelhança com uma série de trabalhos de pintura anteriores chamados “pedrinhas”, nos
quais eu me detinha em pintar vazios entre supostas pedras (cheios de vazio) que ocupavam
os cantos das telas.

Os restos foram usados para a pintura que foi enterrada, sem antes ser vista por
qualquer outra pessoa. Nesse gesto abri duas frentes: invisibilidade e a continuidade (na
dissertação foram reformuladas em ocultamento, fazimento e deslocamento). Escolho como

75
método de trabalho a continuidade para fugir da exclusividade do temário das aulas, a unidade
dos trabalhos apresentados e o estatuto da obra de arte.

Os trabalhos que seguiram (atualmente dobra tem 15 variações) foram sempre


variações de versões anteriores. A dobra que seguiu a primeira foi uma variação desta, e a
terceira uma variação da segunda, e assim segue.

O que eu pretendia com a continuidade era tornar os restos parte constitutiva das
obras. Que esse caráter contínuo me deixasse mais à vontade com o estatuto dos objetos que
eu deveria levar semanalmente para as aulas. Especialmente eu estava interessada em fazer
dos objetos menos obras e menos processo, restos de ações/eventos/acontecimentos. Dobra é
um modo de trabalho em que a obra deixa de ter uma origem. Neste contíguo de variação, a
obra perde qualquer ideia de sentido ou intenção original, para se tornar um suporte de
acumulações semânticas, interesses e experimentação.

Ainda que sutilmente, esse modo de apropriação me deixava condicionada a operar


sobre aqueles materiais (físicos ou não) trazidos e deixados pelo trabalho anterior, pelos meus
colegas e professores. Mais uma vez, acúmulos; significados e sentidos, portanto ocultados,
nesse processo de apropriação, associação e acúmulo. Com isso eu sentia que a
intencionalidade estava deslocada, e que se instalava outro modo de trabalho, de produção, de
experiência cotidiana do ateliê e consequentemente estética.

Na sequência, “Dobra #3”, é uma tela crua com pedaços de plásticos encontrados na
praia colados sobre ela. Destaco que parte das ações envolvidas na produção do trabalho se
deu fora do ateliê, caminhando na areia à procura desses restos plásticos, preciosos lixos,
trabalhados pela maré e pelo tempo.

Nesta altura os trabalhos não tinham título. O trabalho pode ser levado para o galpão
da EBA dobrado, como uma toalha de mesa, então estendido sobre a mesa para ser exposto
em sua totalidade, quando o tampo da mesa que vira plano, parede e lugar de aparição.

“Dobra #4” é uma pintura, sem chassi, que mimetiza os pedaços de plástico. Campos
cromáticos são pintados respeitando uma grade, logo são retirados os pedações inscritos e
irregulares dentro da grade. O trabalho ganha volume com a estrutura dos recortes. Os cortes
multiplicam não só a quantidade de pinturas como os planos da pintura. Reproduzo pinturas a
partir da combinação dos recortes (“Dobra #5”).

76
“Dobra #6” é uma repetição do gesto de Dobra #1. Dobro o número de mãos,
dobramos a quatro mãos. Agora com uma musseline preta convido meu amigo, colega e
performer Elilson. Cada um segurando duas pontas, repetimos a dobra em zigue-zague. A
coreografia da Dobra. Feita a dobra, cada um corta duas pontas, o gesto doméstico de dobrar o
lençol que surgiu do encontro entre o trabalho doméstico e o de ateliê se dando no mesmo
espaço. Finalmente há desejo por parte dxs colegxs de tocar no objeto. Abrimos o tecido, e
este passou de mão e mão, pelos buracos passaram braços e cabeças, e a musseline como se
lançasse uma sombra sobre os corpos, dando a estes outros contornos superfícies e dobras.

A repetição como procedimento de continuidade e volta. Dobra. A Repetição opera na


temporalidade do fazer como um retorno. Um adiamento, um retrocesso, gero um ponto de
retorno e, portanto, uma circularidade na cadeia dos fazeres.

A número sete (#7) é uma colagem com os restos de dobra #6, os pedaços de
musseline relativamente simétricos são colados sobre diferentes grids que sugerem diferentes
escalas, como se aqueles restos representassem instancias reais, ilhas, e não estivessem em
verdadeira grandeza. Em “Dobra #7”, surge essa mancha cromática central, amorfa,
ocasional, porém situada sobre uma grade de grafite sobre papel.

Na número oito (#8) uma camiseta masculina social é cortada e costurada de modo
que o torso cria uma mancha central e tridimensional no tecido branco. É uma vagina?
Também. Na “Dobra 10#”, o trabalho se dá no espaço público, grande e com a necessidade de
muitas mãos para fazer a dobra.

Dezoito (18) metros lineares de visco-sport amarelo,ou seja, 5,650 kg de visco-sport


amarelo, e 28.8 m² de visco-sport amarelo, antes da Dobra.

Vinte-e-oito (28) mãos, quatorze (14) pessoas dobrando 4,8 m x 6,0 m de visco-sport
amarelo para depois cortá-lo.

É o primeiro momento em que passo a encarar a dobra como coreografia, coletiva ou


individual, onde se dobra uma superfície de tecido para depois cortá-la. Seguindo o modelo de
outros trabalhos apresentados anteriormente durante o curso, desta vez numa ação coletiva e
em outra escala. Fazer e agir para ser o durante e o depois da Dobra. Dobrar é um repertório
gestual apreendido, automatizado, escrito e inscrito no cotidiano doméstico.

77
A intensidade do amarelo destacou a cor nesta Dobra, e evocou Hélio Oiticica e seu
pensamento de cor–ação, assim como a “potencialização do corpo” (OSORIO, 2016, p.180), e
o diálogo com a pintura. “Entre os anos 1958 e 1964 sua [de Oiticica] poética sintetizou toda
a experiência moderna da cor e a deslocou através da apropriação de novos materiais”
(OSORIO, 2016, p.181). Como se a pintura fosse então definida pela experimentação da cor
no espaço pelo corpo. Pintura é pulsação cromática. “Tudo o que era antes fundo, ou também
suporte para o ato e a estrutura da pintura, transforma-se em elemento vivo. ” (OITICICA,
2016, p. 50). Um “divisor” para juntar corpos. Osorio destaca a diferença no corpo de Oiticica
e Pape:

“Diferentemente do corpo dionisíaco de Oiticica, que se integra a um fluxo de


energia que não se deixa coreografar por ser pura pulsão, o corpo aparece em
Pape de forma mais contida, austera, como força disponibilizadora de
movimento, como agente vital que se deixa direcionar.” (OSORIO, 2016,
p.151).

Img 30 Ligia Pape, Divisor, 1968

O tecido entrou no meu trabalho para substituir a tinta quando o ateliê foi transferido
para dentro de casa. Além da cor, o tecido se misturou com os têxteis da casa, lençóis, toalhas
de mesa, panos de chão e panos de prato.

Img 31 Maria Palmeiro, Dobra 10#, 2016

Lembro de quando pintava em papel de algodão, da dificuldade de cuidá-lo para que


não sujasse. Adoro a ideia de que posso colocar uma pintura na maquina de lavar, estendê-la
no varal, e, se for o caso, passá-la. Pintora e dona de casa.

A “Dobra #11” é feita em parceria com a dançarina e antropóloga Maria Acselrad,


para enfatizar o encontro entre os campos da pintura e da dança. “Dobra #11” também se
insere no contexto de um edital, no caso, um seminário indisciplinas que oferecia três modos
de “suporte” de exposição de trabalho. Optei pelo suporte “Mesa”, uma mesa de oito metros
por um metro e sessenta centímetros.

As dimensões do suporte determinaram a dimensão da pintura. Estendida sobre a mesa


era o único modo de vê-la em sua totalidade. A dobra é coreografada pelo jogo de palavras
que estavam costuradas na pintura (fazer / campo / junto / ver / saber / contra / regra / dançar).
Somos duas mulheres dobrando panos. Uma do ofício da dança, outra da pintura. Há algo nos
panos que dobramos, mostramos e escondemos palavras, formas e cores.

78
A dobra cotidiana dos têxteis da casa, cama, mesa, banho, vestuário dos indivíduos
que coabitam a casa. A disciplina do trabalho doméstico, a disciplina do trabalho de arte. A
dobra e justaposição destes dois universos.

Img 32 Leticia Parente, “Tarefa I”, 1982

A insubordinação ao suporte da pintura, a frontalidade da pintura, a bi-


dimensionalidade da pintura. Dobrando as disciplinas: pintura, escultura, dança e
performance.

O pano/tela é pintado e costurado. Tecidos e paleta que guardam semelhanças com


lençóis. Surgem novas composições, linhas orgânicas, encontros de cores antes distantes. Essa
coreografia de dobras produz composições e é produzida também nessa interação, que
também tem intenção compositiva, e cria um suporte para o corpo agir.

Como diz Sofia Karam sobre os corpos dos personagens dos filmes de Claire Denis,
“Dança que explode do (no) corpo no meio da noite, no cotidiano, no meio do dia, no meio da
pista, quando os tímidos e inseguros têm vez. ” (KARAM, 2014, p.62)

Após o momento da dobra, já dobrada, o pano-tela é prensado em uma caixa de


acrílico, e assim permanece exposto.

Em “Dobra #12”, também com a colaboração de Maria Acselrad, dobramos no chão 4


panos de 3,5 m x 1,4 m. A paleta doméstica e singela fica ainda mais evidente.

Estender os panos sobre o chão. Agora os panos-telas se justapõem, são mais leves e
são lançados para o ar por Maria Acselrad, com sua “descoreografia”, e enquanto meus
movimentos são mais metódicos e objetivos, mais tensos também, Acselrad está mais à
vontade, desfruta cada movimento. Fazemos dobraduras, emulamos a gestualidade de
Pollock. Idealizamos uma estrutura (coreografia ou não) em 12 partes para “Dobra #12”, e
buscamos denominações para cada gesto: Arejar / Jogar / Girar / Deslocar / Lançar/ Observar/
Deixar/ Puxar/ Dobrar/ Aproximar/Esticar/ Deitar/Alongar/ Ocultar/ Rodar/ Empilhar
/Ensacar / Sugar.

Novamente, então, sobre instrução e coreografia, se Dobra (evento) é dança, a Dobra


(objeto) é a coreografia.

79
No texto “Rests in pieces: On scores, notation and the trace in Dance”, Myriam Van
Imschoot analisa o que seriam os arquivos da dança, como são operados, as relações com a
partitura de música e a interpretação de arquivo. Van Imschoot diz:

“Porque as artes visuais assumem a forma de um objeto tangível com


permanência e durabilidade, foi considerada mais ‘avançada’ do que a música
e, para isso, toda a arte cujo meio é instável (som, gesto, etc.) e que deve
contar com ‘Interpretação’ (ou ‘desempenho’, o termo em inglês) para existir”
(VAN IMSCHOOT, 2005, p. 2, tradução minha). 70

O argumento de Van Imschoot é de que nem deve a performance (no caso a dança)
estar “condenada” a desaparecer se não produzir seus próprios arquivos. A autora parte do
termo trabalhado por Jacques Derrida no livro “Mal de arquivo: Uma impressão freudiana”,
relacionado então tanto a origem quanto a comando “commencement and commandment”, e
parte do exemplo da música que teria logrado tornar-se “palpável” através da partitura. Pela
analogia de Rebecca Schneider entre o osso e a carne, sendo o osso o equivalente ao arquivo e
a carne como uma “matéria não passiva”, como memória e permanência através da
transmissão e repetição, Imschoot levanta a hipótese do corpo como arquivo móvel (mobile
body-archives). “Não são apenas recipientes domiciliados, mas ecologias metabólicas que
compõem os traços vivos da experiência” (IMSCHOOT, 2005, p. 7). “As instruções não são
sistemas a cultivar como tal, mas uma ‘geratriz’ para que as interações mais complexas
aconteçam e sejam observadas” (IMSCHOOT, 2005, p.15, tradução minha).71

Voltando a “Dobras”, segundo a leitura de Van Imschoot, essas denominação e


estrutura em 12 partes seria uma “partitura” (the score) da dança, junto com os objetos
manipulados. Imschoot dá então o exemplo do coreógrafo Vincent Dunoyer:

“No entanto, é preciso ter cuidado para não reduzir esse estoque vivo (...) Isso
negaria precisamente o fato de que esse corpo nunca é uma carne ‘pura’, mas
já está se estendendo em um círculo elaborado de tecnologias de todos os
tipos. Os restos do seu histórico de performances eram físicos, de fato, mas
uma fisicalidade que sempre foi mediada e remediada, já que foi permeada
pela existência de outros objetos, relações, agências – humanas e não-
humanas” (IMSCHOOT, 2005, p.10).

70
“Because visual arts takes the form of a tangible object with permanence and durability, it was thought to be
more ‘advanced’ than music, and for that matter all art whose medium is unstable (sound, gesture, etc) and
which must rely on ‘interpretation’ (or ‘performance’, the English term) to exist” (VAN IMSCHOOT, 2005, p.
2).
71
“They are not merely domiciled containers, but metabolic ecologies that compose the living traces of
experience” (IMSCHOOT, ANO, p. 7). “Scores are not systems to cultivate as such, but a ‘generatrix’ for more
complex interactions to happen and to observe” (IMSHOOT, 2005, p. 15).
80
De modo similar, o trabalho doméstico, de dobrar roupa limpa, classificá-la e guardá-
la, é coreografia e os têxteis (lençóis, roupas, toalhas) são uma partitura.

“Dobra #13” foi uma convocação no dia do trabalho72, motivada pelo texto “Bodies in
Alliance and the politics of the street”. Judith Butler diz neste texto que o “verdadeiro” espaço
que surge entre as pessoas, assim que esse espaço abstrato se materializou para mim nos
tecidos das Dobras.

O entendimento de cor como estrutura espaço temporal de Oiticica tem muita


semelhança com a essa motivação das Dobras, além da convenção da pintura como ponto de
partida. Oiticica afirmou certa vez:

“A cor não está mais submetida ao retângulo, nem a qualquer representação


sobre este retângulo, ela tende a se ‘corporificar’, tornar-se temporal, cria sua
própria estrutura, que a obra passa então a ser o ‘corpo da cor’ (OITICICA,
1986, p.21)

Logo, se como pintora estou interessada na dança e no estatuto dos objetos produzidos
por e para as “Dobras”, a cor no espaço é para mim o que reforça a intenção pictórica. É
também um modo de pensar outros gestos, movimentos corporais, que “produzam” pintura.

Em “Dobra #13”, pedi que as participantes trouxessem seus lençóis. Lençóis têm
categorias comerciais: “solteiro”, “casal”, “infantil”, “king size” e “queensize”. E me pareceu
interessante explorar o lençol como objeto de identificação, e de contaminação do espaço
público com esses objetos da esfera privada e doméstica. No dia do trabalho, fui motivada
pela reflexão em torno do trabalho doméstico feminino e sua invisibilidade.

Ao longo das variações, as dobras suportaram o deslocamento para fora do ateliê da


ação, a cor, tornou-se ação coletiva ou parcerias e reagiram às questões do trabalho feminino,
do cotidiano doméstico e dos campos disciplinares da arte. A dobra acumulou.

A dobra também produz efeito, afetos e ação. Agimos sobre a dobra, mas ela também
age em nós.

3.6. Fôlego

Talvez esse amálgama, esse acúmulo de sentidos, referências e derivações tenha uma
boa imagem em “Fôlego”, trabalho que, não por acaso, esteve exposto no centro cultural
Hélio Oiticica, entre outubro e novembro de 2017. “Fôlego” é uma pintura /É feita de retalhos

72
Contudo, em função à mobilização contra as reformas trabalhistas, foi adiada para o dia 07/05.
81
/ Texturas / transparências e pelúcias / estampados e lisos / naturais e sintéticos, uma pintura
sem chassi, uma pintura que só se ergue quando preenchida pelo folego dos participantes da
pintura. Um tecido esgrouvinhado sobre o chão / uma superfície mole/ maleável e
vulnerável/Invertebrada, sem estrutura, é suporte de si/ E que cresce numa ação acordada e
em aliança.

“Já não quero mais o suporte do quadro, um campo a priori onde se desenvolva o ‘ato
de pintar’, mas que a própria estrutura desse ato se dê no espaço e no tempo” (OITICICA,
1986, p.51)

Img 33 Hélio Oiticica. Parangolés 60 – 70

Img 34 Maria Palmeiro, “Fôlego”, 2017

Ainda que a concepção metódica que eu tinha inicialmente do ateliê performativo não
tenha se efetivado, e que as práticas do ateliê performativo tenham mostrado certa
incontinência à um método e rotina disciplinada de fazer, há algo que na conclusão da
dissertação, na necessidade de efetivá-la, se manifesta: um equilíbrio, uma economia do
cotidiano que mescla arte, vida e obra. Um ritmo de manutenção, de constância, uma
“permanentemente em manutenção” (JONES, 2010, s/n).

Ou seja, não-processo.

Groys faz uma análise da produção artística contemporânea a partir dos anos 1960 que
se aproxima das práticas de “ateliês laptop” que Caitlin Jones apresenta. É o que ele chama de
“estética das redes sociais”:

“Sem as reduções efetuadas por esses artistas [conceituais dos anos


60], o surgimento da estética dessas redes sociais seria impossível, e elas não
poderiam ser abertos a um público democrático e massivo no mesmo nível”
(GROYS, 2010, p. 10, tradução minha). 73

Essa nova relação entre expectação e trabalho de arte que se dá através do que Groys
define como “weakgesture” (GROYS, 2010, p.10), ou “gesto débil”, descrito também como
gesto diário, não transcendente, reduzido de significados e mensagens.

Também posso entender o “gesto débil”, no modo como Jones caracteriza um dos
exemplos que traz em seu texto: “um espaço de equalização onde profissional e amador, luxo

73
“Without the artistic reductions effectuated by these artists, the emergence of the aesthetics of these social
networks would be impossible, and they could not be opened to a mass democratic public to the same degree”
(GROYS, 2010, p. 10).
82
e banalidade alta e baixa coexistem em harmonia lúdica”. (JONES, 2010, s/n, tradução
74
minha). Ou outro que “cria um trabalho que torna visíveis os caminhos intermináveis e
rotas tortuosas de influência e apropriação” (JONES, 2010, s/n, tradução minha). 75

No “gesto débil” eu reconheço o feminino, o estado vacilante da obra, e o estado


vacilante das categorias ontológicas, eu reconheço no diário. Coincidindo com o período de
finalização desta dissertação, fiz uma conta no Instagram. Entre escrita no computador,
internet, webcam, brinquedos e cozinha, uma vida, um corpo, um trabalho, uma linguagem se
produz.

Uma “vida menor”, “não o morto nem o eterno ou o divino, apenas o vivo, o
pequenino, calado, indiferente e solitário vivo” (DRUMMOND, 1962, p.224).

Última mudança de ateliê: saindo do largo do são Francisco, Rua Luis de Camões 12,
ateliê onde fiz minha qualificação. Num acontecimento o pão de cimento parte-se em dois.

E não é assim que se diz partilhar?

Break the bread?

“Isso eu procuro”, diria Drummond.76

74
“an equalizing space where professional and DIY, luxury and banality high and low coexist in gleeful
harmony” (JONES, 2010, s/n).
75
“creates a work tha makes visible the endless paths and circuitous routes of influence and appropriation”
(JONES, 2010, s/n).
76
“Vida menor” (ANDRADE, 1962, p.224).
83
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WARHOL, Andy & HACKETT, Pat. POPism, Penguin Modern Classics, 2007.

87
ANEXO I
Caderno de imagens

88
Img 01 Primeiro ateliê: Alabama Street (São Francisco, CA), 2012
Open Studio Art Explosion: Depth and Gravity , 2012

89
Img 02 Ateliê de Daniel Buren (sem data)
Daniel Buren, “Within and Beyond the frame”, 1973

90
Img 03 Serigrafia do “Ponto”, 2015

Img 04 Bruce Nauman, “Stamping in the Studio”,1968


videotape, preto e branco com som, 60min

91
Img 05 Tehching Hsieh, “13 year plan”, 1986-1999

Img 06 “Ponto”, Maria Palmeiro, 2016 carimbo e serigrafia sobre papel

92
Img 07 “A deixa: a padeira no ateliê performativo”, Maria Palmeiro, 2015

93
Img 08 Marcel Duchamp, “Door”, 1927
Tehching Hsieh. “One-Year Performance” , 1980-1981

Img 09 “Porta/Chassi”, Maria Palmeiro, 2016


Instantâneo de vídeo (web-cam) 53’
94
Img 10 Antonio Dias “Do it yourself: Freedom Territory”, 1968

Img 11 “Quadriláteros”, óleo e serigrafia sobre papel, 2017


“DIY”, instantâneos webcam, 2017
95
Img 12 Marcia X, “Soap Opera” Performance-instalação

Img 13 Leticia Parente, “Armário de mim”, 1975

96
Img 14 Sonia Andrade, sem título(feijão), 1975

Img 15 “Ossos do ofício”, porcelana fria, 2016


97
Img 16 Babette Mangolte “Edward Krasinski Studio”, video loop, 2012

Img 17 Tacita Dean, “Still life”, 2009


16mm film, black and white, loop 5’30’’

98
Img 18 “O enterro da pintura”, 2016
Instantâneo de vídeo 7’33’’

Img 19 “Corte [Cut Piece]”, 2015, ateliê Rua Conde de Irajá


Coautora/colaboradora. Link: https://vimeo.com/164790467
99
Img 20 “Ateliê/ Arquivo”, Casa França-Brasil , 2016
Foto: PVAlcântara. Foto: Maria Palmeiro
100
Img 21 “ Ateliê/ Arquivo”, Casa França-Brasi, 2016
Foto: Otavio Leonidio
Instantanêo do video “Dripping” https://vimeo.com/182103177
101
Img 22 Marcel Duchamp, “Escultura para viagem”, 1918
Registros do ateliê Rua Luis de Camões, 2017

102
Img 23 “A obra está”, Maria Palmeiro, 2014
Galeria Casamata, RJ foto: Lua Perê.
103
Img 24 “A obra está”, no ateliê Rua Conde de Irajá, 2014.

104
Img 25 Geta Brătescu, “O Ateliê”, 1978

Img 26 Marcia X, “Pancake”, 2001 foto: Wilton Montenegro


105
Img 27 Robert Rauschenberg, “White paintings”, 1951

Img 28 Niki de Saint Palle / Robert Rauschenberg, Painting made by dancing, 1961

Img 29 Dobra #13, com lençóis, Aterro do Flamengo, 2017 foto: Pia Palmeiro

106
Img 30 Ligia Pape, “Divisor”, 1968

Img 31 Dobra #10 , Campo de provas EBA-UFRJ

107
Fotos: Wilton Montenegro

Img 31 Dobra #10 , Campo de provas EBA-UFRJ


Fotos: Wilton Montenegro
108
Img 32 Leticia Parente, “Tarefa I”, 1982

Img 33 Helio Oiticica, “Parangolé”, 1960-70

Img 34 “Fôlego”, 2017 Centro Municipal Hélio Oiticica

109
Img 34 “Fôlego”, Maria Palmeiro, 2017 Centro Municipal Hélio Oiticica

110

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