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Ateliê performativo:
Rio de Janeiro
Janeiro de 2018
1
Maria Isabel Schmidt Palmeiro
Rio de Janeiro
Janeiro de 2018
2
3
4
Para Otávio.
5
Agradecimentos
A conclusão desta dissertação é motivo de grande felicidade, por isto devo agradecer a
algumas pessoas.
Minha orientadora, Livia Flores, pelo olhar sempre crítico e surpreendente tanto sobre
o texto, quanto sobre os objetos produzidos ao longo do mestrado.
Aos membros da banca de qualificação: professora Eleonora Fabião e professor Luiz
Camillo Osorio, que certamente encontrarão suas contribuições na versão final da dissertação.
A professora Helena Martins, que aceitou o convite para participar desta etapa final.
Diariamente, a Otavio e Ines pelo apoio, incentivo e participação.
Minha mãe, Isabel e minhas irmãs Pia e Tetê.
A professoras professores e funcionárias do PPGAC, “Império de mulheres”
fantásticas. Obrigada a Marlene pelas inúmeras assistências sempre bem-dispostas.
A contribuição e comentários de Masao Kamita, Dinah Cesare, Gabriel Fampa, Maria
Noujaim, Tamar Bajgelman e José Alberto Salgado.
A estes últimos, agradeço pelo lar e o lá lá lá.
À parceria e amizade de Maria Acselrad e Marcos Régis.
Aos cactos: Elilson, Gunnar, Luisa e Miro, pelo espaço irrestrito para o diálogo, as
diferenças e as complementaridades.
Ao apoio que recebo e admiração que nutro pelas amigas e amigos: Adriano, Ana
Diaz, Agustina, Ciça, Clemence, Hadi Tabatabai e Daneo.
À CAPES, pela bolsa de mestrado, auxilio tão necessário e simbólico do estado neste
momento político, de governo ilegítimo, à educação, pesquisa e arte.
A todos estes e a outras e outros injustamente não destacados aqui, obrigada pelo
suporte.
6
Resumo
Abstract:
"Performative studio" is a dissertation that discovers itself as performance. In the sense that,
the works of art that were given in its course, produce the direction and the transformation of
the dissertation and of the one that writes it. The dissertation, while considering the studio as a
scene, approaches contemporary art practices - my own and others and other artists - that deal
with themes such as work, daily life and process.
Because it is especially a painting studio, the conventions of painting and the doing of a
painting, give demarcation to the dissertation, as well as the thinking about stages prior to the
public exhibition of works of art. The studio as a scene is the place where the work takes
place - something analogous, but specific, to what happens when the work takes place outside
the studio. Painting has other formal possibilities of fruition and existence.
The concept of "performative program" is central to this dissertation - a dissertation that looks
to itself not as a process, but as an indication of transformation, experimentation and rigor.
Thus, recognizing the instrumental character of the performatives - and keeping in mind
Austin's speech acts - it produces a non-physical work space, which is conventionally used as
an artist's studio.
7
key-words: visual arts; performance; studio; labour; painting
Sumário
Introdução ................................................................................................................. 9
1 Ato I: “Fazimento”..................................................................................... 20
1.1 Ponto…………………………………………………………………….... 20
1.2 A deixa da padeira………………………………………………………... 28
1.3 Recusa ao trabalho………………………………………………………... 29
1.4 Porta/chassi……………………………………………………………….. 32
1.5 Ateliê/cena………………………………………………………………... 37
1.6 Trabalho de mulher……………………………………………………...... 39
1.7 Ossos do ofício…………………………………………………………..... 43
1.8 Modos de produção……………………………………………………….. 46
4 Bibliografia........................................................................................................ 84
5 Anexo: Caderno de Imagens........................................................................... 88
8
Introdução
Eu acreditava que o que diferenciava minha rotina nesse novo lugar de trabalho – sem
tratar das particularidades do ofício de pintar em relação ao de projetar – era sobretudo não
trabalhar por demanda de um cliente ou de um chefe e não ser assalariada. Esses aspectos
faziam do meu ofício de pintora um trabalho que não se caracterizava (ao menos para mim
naquele momento) como trabalho. Assim, para ser reconhecida socialmente como
trabalhadora, eu me esforçava para manter uma rotina de trabalho semelhante à qual eu estava
habituada.
Uma certa ética protestante do trabalho sempre me foi cara 2, contudo ainda não
reconhecia sua origem, tampouco associava esta ao “espirito do capitalismo”. Max Weber,
com o intuito de desvendar as “origens desse sóbrio capitalismo burguês, com sua
organização racional do trabalho” (WEBER, 2001, p.9) constroi essa associação, sob a
premissa de que “as forças mágicas e religiosas, e os ideais éticos de dever deles decorrentes
1
Em meados de 2012 comecei a trabalhar como assistente do artista Hadi Tabatabai. Seu modo de trabalho no
ateliê foi uma minha referência para mim a partir de então.
2
Em algum momento da minha adolescência, fixado ao mural do meu quarto estava o verso de Os Lusíadas, de
Luís de Camões: “Porque essas honras vãs, esse ouro puro, verdadeiro valor não dão à gente: Milhoré merecê-los
sem os ter, Que possuí-los sem os merecer. ” (CAMÕES, canto IX , 93)
9
sempre estiveram no passado entre os mais importantes elementos formativos da conduta. ”
(WEBER, 2001, p.11)
Um elemento que então fortalecia esta conduta ética em relação ao trabalho era a
necessidade de um espaço físico próprio do trabalho. Uma mesa em casa, uma baia no
escritório e finalmente um ateliê. Necessidade que ressoa a reinvindicação de Virginia Woolf
no livro “Um teto todo seu” (1929). Reinvindicação de lugar. Não apenas literal e físico, mas
também representativo para as escritoras mulheres. A conduta ética em relação ao trabalho
não considerava então questões de gênero do mesmo modo que nos dias de hoje, do mesmo
modo que a reinvindicação de Woolf limitava-se a um estreito perfil de mulheres.
É curioso pensar que a irmã de Virginia Woolf, Vanessa Bell, pintava. É dela a
imagem da capa da primeira edição do livro de Woolf. Nas pinturas de Bell, mulheres e
meninas brancas em situação de ócio em seus lares burgueses, situação com a qual Azaldúa
nunca se identificaria. Logo, qual é a especificidade do trabalho da mulher? E da mulher que
pinta?
O valor do trabalho, assim como qualquer valor definido por uma sociedade, não é
absoluto. Valor estético, por exemplo: o modo como uma pintura é avaliada pode diferir em
termos de qualidade e critério. A começar por meu vizinho de ateliê - um russo com formação
de oito anos na escola de artes de São Petersburgo e que fazia habilidosas pinturas figurativas.
Volta e meia Stanislav me perguntava (inicialmente consternado, depois por pura hostilidade):
- O que você está fazendo?
10
Para ele, o valor da pintura estava na técnica e na maestria, nada que minhas pinturas
demandassem ou refletissem.
Aos poucos, eu adquiria consciência do que eu fazia no ateliê. Eu estava alerta ao meu
corpo no ateliê e às atividades ali desempenhadas - aos improvisos e às tarefas pré-
concebidas. Como por exemplo: pintar uma papoula.
Em texto sobre a obra de Hélio Oiticica, Peter Pelbart comenta a crítica de Friedrich
Nietzsche aos valores. Crítica que ambiciona a “transvaloração dos valores”, ou seja, algo que
atravessa e perturba a ontologia dos valores e, deste modo, transforma o modo como agimos.
Pelbart diz:
11
as feições de uma ética do trabalho moderna e capitalista, motivada pela produtividade.
(ARENDT,1958, p.105).
O “ateliê performativo” surge daí, como modo e meio de me defrontar com valores,
hierarquias, desejos e recalques que afetavam e afetam minha produção de artista. Produção
esta que visava deslocar o valor da obra, e consequentemente a crítica da obra, para o valor do
trabalho. Em síntese, não importa a qualidade obra, importa o trabalho. Argumento
conflituoso para uma pintora autodidata, pouco virtuosa e que produz pinturas rápidas e sem
maestria.
No meu projeto de ingresso ao mestrado eu havia escrito: “Fazer de meu próprio ateliê
um ateliê performativo durante o período de vigência do mestrado”. Um enunciado simples,
como propõe Fabião, “claro e conciso [...] sem adjetivos e com verbos no infinitivo”.
(FABIÃO, 2013, p.4)
3 Estou pensando aqui no verso de Dante: “Ah, como armar no ar essa figura (...) que só de pensa-la me
desfigura” (Dante apud Martins), que me foi apresentado pela professora Helena Martins.
12
De resto, se sou eu quem defino o programa, ele terá seus pilares sobre a base que é a
minha subjetividade, que tem também um corpo, que cria valores. Metáforas do universo
solido da arquitetura transpostas aqui com menos firmeza (firmitas). Nas palavras de Pelbart,
um ser “que cria o valor [...], está enraizado num corpo, tem interesses e desejos, resulta de
certa configuração pulsional, constitui um tipo de vida” (PELBART, 2016, p.234).
Considero, finalmente, interessante observar que são dois os lugares que escolho para
a realização do programa e para efetivação do que Fabião descreve como “o ato de pertencer”.
Em suas palavras: “[...] este pertencer performativo é um ato tríplice: de mapeamento, de
negociação e reinvenção através do corpo-em-experiência” (FABIÃO, 2013, p.5). Um lugar é
o ateliê, e o outro é o mestrado.
Alguns trabalhos feitos na decorrência do ateliê performativo tem a sua melhor forma
de existência, isto é, sua visibilidade, no texto desta dissertação. Acontecem no texto quando
aqui escritos, performados, editados, somados e multiplicados, a fim de obter uma massa sem
contorno rígido de motivações (intenções e volições), o ocultamento e o deslocamento da
agência e do agente do fazimento. O que não acontece com os trabalhos isolados dessa massa.
São esses meus dois contextos, recorro então à teoria do performativo de John L.
Austin para falar em contexto: “Em termos gerais, é sempre necessário que as circunstâncias
em que as palavras são pronunciadas sejam, de alguma maneira ou maneiras, apropriadas. ”
(AUSTIN, 1962, p.8, tradução minha)4. O mestrado se torna uma plataforma externa ao ateliê,
que permite um outro ato de pertencimento, no sentido que Fabião coloca, alternativo ao
ateliê. Estabelece-se um outro par de diálogo. O par ateliê-mestrado contraponto ao par ateliê-
4
“Speaking generally, it is always necessary that the circumstances in which the words are uttered should be in
some way, or ways appropriate.” (AUSTIN, 1962, p.8).
13
galeria. Trata-se da escolha de outro lugar para situar o trabalho de arte, e, consequentemente,
de outro modo de produzir arte. Esse diálogo permite que as ações que se dão no ateliê
tenham uma existência que não depende do espaço expositivo tradicional, ou seja: galerias,
feiras e museus, e que se coloque sob outra perspectiva os produtos do ateliê.
O que Buren também sugere é que nessa cadeia produtiva a passagem da obra do
espaço do ateliê para o espaço expositivo resulta sempre na perda de algo essencial à obra. E
essa perda, na visão de Buren, é algo que a/o artista não deveria jamais tolerar. Logo, a/o
artista que produz dentro da ética inerente a esse ateliê corrobora com o sistema de arte
tradicional. Nesse sentido, o a ateliê produz e reproduz o sistema de arte tradicional.
É segundo esse modo operativo que o enunciado “fazer de meu próprio ateliê um
ateliê performativo durante o período de vigência do mestrado” atravessa minha prática no
ateliê – para a partir de ações performativas pôr em questão o trabalho de arte e o metiê das
artes visuais. O mestrado enquanto programa performativo se engaja em especificidades
5
“The museum and gallery on the one hand and the studio on the other are linked to form the foundation of the
same edifice and the same system” (BUREN, 1971, p. 51).
6
“In order to exist” (BUREN, 1971, p. 53).
14
contextuais: sociais, políticas, e históricas do campo das artes e do trabalho, bem como na
fisicalidade do ateliê. A transformação e a transvaloração que a ação performativa endereça e
produz se explicitam na direção teórica e no reposicionamento (físico e conceitual) de minha
própria prática ao longo destes dois anos e desta dissertação.
Sobre o ateliê no contexto da performance e das artes visuais, Regina Mélim escreveu:
“Um breve comentário para que possamos colocar uma lente sobre esse lugar
escolhido como espaço de experimentação, ou, ainda de realização de práticas
artísticas, comumente referido como ateliê. Redesenhado há algumas décadas,
seja pela expansão de suas paredes, seja pelo recolhimento da produção para o
âmbito doméstico, o ateliê tem sido, com muita frequência, gerador de uma
zona de indeterminação. Se, com esse último, assinala Lisette Lagnado,
desfizeram-se os limites fixos entre o público e o privado, uma vez que na
permanência de domicilio surgiu um híbrido de lar com labor, lugar em que o
artista vive e trabalha. (...) não resta dúvida de que, quando expandiu suas
margens, seus contornos se tornaram tanto ou mais opacos. Quando o ateliê
passa a ser “qualquer lugar”, “todo lugar” ou “onde eu estiver”, seu conceito
passa a estruturar não somente como um lugar físico, mas sobretudo, como
uma espécie de parênteses no tempo, passando a existir, então, onde o artista
está. ” (MELIM, 2008, p.50)
Para Melim, o ateliê é também um conceito que a/o artista pode carregar consigo
como um caramujo e que, portanto, lhe confere autonomia para desempenhar suas ações,
atribuindo a estas uma existência destacada, um “parêntese”. O ateliê opera neste caso como
uma suspensão dos modos funcionamento dos espaços e do tempo.
Faço aqui um pequeno parêntese no curso desta introdução, para inserir uma discussão
atual sobre o estatuto do ateliê, o conceito de “post studio art”. Partindo da crítica que faz
Buren, e do pressuposto que o ateliê é um elemento fundamental na construção de uma
subjetividade moderna do artista – o argumento presente na teoria de Amelia Jones e André
Lepecki – que segue um modelo subjetivo majoritariamente masculino e recluso. Como
afirma Caitlin Jones afirma no texto “The function of the studio (when the studio is a laptop)”
de 2010:
15
"ossificante" do estúdio e mais um reflexo de como o digital mudou a
produção cultural em geral.” (JONES, 2010, p.1, tradução minha) 7
Logo, a noção de contexto como algo que confere eficácia a uma ação encontra no
ateliê um aliado em função do estatuto do ateliê na narrativa das artes visuais, e da suspensão
provocada no ato de nomear um lugar (tempo e espaço) de ateliê.
Porém, mais que ilustrar mais uma operação de deslocamento na história da arte
(deslocamento que confere estatuto de arte às ações que se dão no ateliê), quero ressaltar o
aspecto performativo que direciona minha prática artística, a pintura, para a relação da pintura
com a performance – o descolamento das artes visuais para as artes da cena (um deslocamento
pensado a partir das convenções do suporte da pintura).
7
“Buren´s essay is a concise example of the postmodern conception of “post studio” practice. […] The legacy of
“post-studio” art is amplified for artists working with digital forms and online environments. Generally, these
types of practices are less an overt negation of the “ossifying” element of the studio and more a reflection of how
the digital has changed cultural production at large” (JONES, 2010, p.1).
8
“What happens when the studio in question is simply a laptop in the artist´s kitchen or the local coffee shop?”
(JONES, 2010, p.1).
9
O ateliê de pintura, assim como o de escultura, como de Piet Mondrian e Constantin Brancusi, ocupam um
lugar bastante central, e atualmente convencional e apaziguado, no imagético das artes visuais.
10
O registro em vídeo do artista Jackson Pollock pintando ao ar livre faz um par dissonante com as fotos
também disparadas por Hans Namuth no ateliê (as fotos e o vídeo são de 1951). As locações diferentes mostram
que o ateliê não era central para a performatividade da pintura de Pollock, e sim a gestualidade. Segundo Jones:
“Estas imagens, mobilizadas em relação ao sujeito artístico ao longo das décadas seguintes, sinalizam mudança
na concepção e encenação deste sujeito na sua relação tanto com o trabalho como com o espectador” (JONES,
1998, p.53, tradução minha).
16
Amelia Jones alega, a linhagem descrita anteriormente é uma leitura produzida a partir de
uma performatividade específica que a autora chama de “Pollockian Performative” e que está
centrada no autor definido como a “fonte de significado intencional” (JONES, 1998, p.57) da
ação, e de um entendimento particular de corpo que existe apenas em relação, e sobretudo
baseada numa concepção de subjetividade moderna masculina:
Essa concepção, segundo Jones, que foi construída a partir da leitura do crítico Harold
Rosenberg e reforçada por Clement Greenberg. Para Jones, a “action painting”, termo de
Rosenberg, pode no final das contas ser vista na chave do indiciário; ainda o objeto icônico
que representa a ação (temporalmente anterior) que o executa. Jones quer propor uma ação
que não deixa traços: "Então podemos imaginar uma indexicalidade tão pura que não seria
mais indexicalidade: onde o corpo em ação simplesmente "é" o que apresenta" (JONES, 1998,
p.84, tradução minha). 12 A desvalorização da pintura enquanto objeto seria nesse sentido um
caminho para reforçar a performatividade na pintura? O segundo ato da dissertação, o ato de
ocultamento, trata dessa questão.
Faz-se necessário definir o uso da palavra performatividade. Entendo por
“performativa” a noção que – nas palavras de Féral - “valoriza a ação em si, mais que seu
valor de representação, no sentido mimético do termo” (FÉRAL, 2008, p.201), do mesmo que
Jones diz “o corpo em ação simplesmente é”. Ação como movimento e acontecimento.
11
“As a performative and discursively defined artistic subject (or author function) then, Pollock is multiple.
Within the codes established in relation to his self “performance” by Greenberg, Rosenberg, Namuth, and other
contemporaries, Pollock is richly contradictory figure, both quintessential, even exaggerated male modernist
(disembodied in creation) and commodified, excessively displayed and fully embodied site of art interpretive
desires – as Kaprow argued, he opens the circuits of audience involvement such that such that “ [t]he artist, the
spectator and the outer world are much too interchangeably involved here.”[…]The veiled body of the
Greenbergian Pollock becomes the “origin” of the performance art practices developed in the late 1950s and
1960s” (JONES, 1998, p.83)
12
“Then we can imagine an indexicality so pure it would no longer be indexicality: where the body in action
simply ‘is’ what it presents.” (JONES, 1998, p.84).
17
No programa performativo de Fabião – que objetiva a ação performativa nos termos
acima descritos- a questão do corpo é central 13. A ação performativa é um trabalho a partir do
corpo, da ferramenta corpo: “Programas tonificam o artista do corpo e o corpo do artista”
(FABIÃO, 2013, p.8).
Valores constituem e são constituídos por modos de vida. Modos de vida ou existência
relacionados a um corpo, “um corpo faz corpo: isso não é uma tautologia. É a atribuição ao
sujeito de seu atributo essencial” (NANCY, 2013, p.43). É neste circuito entre atributo e
atribuição que a performatividade afirma então seu potencial de transformação.
Ou seja, os três eixos teóricos que estreitam as relações de pertencimento entre ateliê e
mestrado. O primeiro é fazimento, onde trato com maior ênfase na questão do trabalho e
13
O texto “Como criar para si um corpo-sem-órgãos”, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, é uma
referência fundamental para a autora, conceito construído a partir de Antoin Artaud, conceito que
sugere um conjunto de práticas a fim de constituir um corpo "feito de tal maneira que ele só pode ser
ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. [...]O CsO faz passar
intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso. ”
(DELEUZE &GUATTARI, 1996, p.11)
18
produtividade. No segundo, lido com processos de ocultamento do objeto indiciário. O lugar
do fazer versus o lugar de expor. O terceiro, deslocamento, é um capitulo onde retomo a
questão da pintura, e encontro grande afinidade com os processos de deslocamento da pintura
de seu suporte convencional. Nas possibilidades deslocamento espacial, semântico e de
suporte, surgem outras possibilidades para o fazimento da pintura.
Esta dissertação não é um memorial, mas também, não deixa de ser um. Se fiz uma
narrativa em tom confessional, é porque a meu ver a dissertação pensada enquanto programa
performativo provou ser extremamente eficaz em produzir transformações em concepções e
hábitos sedimentados e arraigados. A força dessa transformação – pessoal e do meu trabalho
de arte - que se deu tanto pela teoria quanto pela prática, me parece muito alinhada com as
motivações da performance e do programa de Fabião.
19
Ato I
Fazimento
1.1 Ponto
Na parede do ateliê da rua Conde de Irajá, destacada com caneta iluminadora rosa, está
a seguinte frase: “Minha conclusão foi a de que eu era um artista e eu estava no ateliê, então
qualquer coisa que eu estivesse fazendo no ateliê deveria ser arte. ” 14 (NAUMAN 1978, apud
KRAYNAK 2005, p.194)
A frase do artista americano Bruce Nauman deve ser entendida no contexto da arte
norte-americana de então – isto é, tanto do desgaste do expressionismo abstrato e do modelo
crítico, e do éthos15 que o acompanha, quanto da emergência das artes ditas processuais e da
arte conceitual.
O silogismo me serviu de amparo e provocação nos dias em que não sabia o que fazer
no ateliê ou nos que me sentia improdutiva; também me fez questionar quais as atividades eu
supunha estarem compreendidas pelo meu ofício de pintora. De todas as ações que se davam
no ateliê, porque apenas algumas eram consideradas produtivas e, consequentemente,
justificavam meu dia de trabalho?
O então jovem pintor americano Frank Stella, em uma palestra na escola de arte Pratt
Institute em Nova York, palestra conhecida como “The Pratt lecture”, disse que a questão da
pintura não é apenas o que fazer, mas principalmente como fazer: "Há dois problemas na
pintura. Um é descobrir o que é a pintura e o outro é descobrir como fazer uma pintura. O
primeiro é aprender alguma coisa e o segundo é fazer algo” (STELLA, 1960). 16 Como fazer a
pintura?
14
“My conclusion was that I was an artist and I was at the studio, then whatever it was I was doing in the studio
must be art.” (NAUMAN 1978, apud KRAYNAK 2005, p.194)
15
“The world of abstract expressionism was very “Macho”” (WARHOL, 1980, p.45)
16
“There are two problems in painting. One is to find out what painting is and the other is to find out how to
make a painting. The first is learning something and the second is making something.”
20
A produtividade, enquanto valor, tem suas fundações e projeções no modo como
encaramos as instâncias da vida e do trabalho. O sujeito produtor, ou seja, agente
transformador da natureza por excelência é o homo faber. “Ao definir o trabalho como ‘o
metabolismo do homem com a natureza’ [...] o trabalho se incorpora a seu sujeito”. (MARX
apud ARENDT, 1958, p.121). De acordo com esta afirmação, que vai ao encontro da
definição de homo faber, a demanda por produtividade está introjetada no sujeito na
sociedade capitalista. A produtividade é um modelo de existência, o fazimento é outro,
diverso.
Há duas afirmações na frase de Nauman: “eu era um artista” e “eu estava no ateliê”.
Nauman problematiza o estatuto das suas ações no ateliê, valendo-se do discurso do trabalho.
Quando digo as ações tenho em mente as desempenhadas e registradas nos vídeos que o
artista fez entre os anos 1967 e 1969, como “Boucing Two Balls between the Floor and the
Ceiling with Changing Rhythms” (1967-68) e “Rhythmic Stamping in the Studio [Stamping
in the Studio]” (1968).
17
Esta intuição se confirma no trabalho mais recente (2008) de Nauman (“Days/Giorni”), uma instalação sonora
acompanhada da imagem dos dias da semana escritos em inglês e organizados em distintos modos de
acumulação e agrupamento (six a time, five a time...). “While Days seems to evoke the passage of time itself –
time passing, twisting and turning unraveling inside and over us – Giorni hints at the passage of a life, our
inexorable life sinking in time. Days may have its origins in the experience of the empty artist´s studio where
time never stops passing, and its passing takes the form of an endless interrogation of the nature of work and
art.” (BASUALDO, 2009, p.161)
21
O ateliê de Nauman não é apenas o lugar de ensaio, processo e criação; é também e
principalmente o lugar anunciado para o fazimento. É o contexto que confere eficácia à ação –
qualquer ação - que ali se executa. Emprego aqui os termos “contexto” e “eficácia” conforme
definidos pelo filósofo J. L. Austin no livro “How to do things with words” (que na tradução
de Danilo Marcondes, para o português, ganhou o título “Quando dizer é fazer”).
O que Austin enfatiza é que nem sempre dizer se limita a “descrever” o mundo, mas,
também, muitas vezes, agir no mundo, transformando-o. O silogismo de Nauman produz uma
inversão da fórmula “quando dizer é fazer”: Quando fazer é dizer. 18
É dizer: “I´m making art”19, porque estou no contexto do ateliê, lugar do trabalho
do/da artista, logo, produzindo trabalho de arte.
Cabe distinguir aqui a diferença entre o que estava fazendo, por exemplo, o artista
conceitual John Baldessari naquela mesma época. Este, através de uma série de vídeos,
proclamava frases como “I am making art”, “I Will not make boring art”, e musicalizava
citações do também artista conceitual Sol Lewitt. A eficácia da fala de Baldessari dependia de
seu status de artista, ainda que o fizesse com ironia. Nauman, por sua vez, não está apenas se
autoproclamando artista, mas atribuindo ao lugar onde o artista trabalha a prerrogativa da
produção de arte.
Na lida também com a questão da produtividade, o artista Tehching Hsieh lança luz
sobre o tempo dedicado ao pensar no ateliê, e sobre o impasse da produtividade e da
materialidade nas artes: “Eu estava andando de um lado para o outro, pensando no ateliê
[doing my thinking]. (...) Gastei muito tempo nesta situação de isolamento, como se eu
18
Posteriormente, encontrei no texto de Jean Luc-Nancy, “Fazer a poesia”, a mesma formulação “quando dizer é
fazer e quando fazer é dizer” (NANCY, 2013, p.414), em torno da reflexão sobre poesia não enquanto gênero,
mas como acesso ao sentido.
19
Frase pronunciada pelo artista americano John Baldessari, no referido vídeo “I am Making Art”, de 1971.
22
estivesse cumprindo pena [doing time]. ” 20 (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.455,
tradução e grifos meus)
Entre os anos 1978 e 1986, Hsieh, natural de Taiwan, vivendo ilegalmente em Nova
York, executou cinco performances com a duração de um ano, intituladas “One Year
Performances”. A duração, destaco, não é apenas o termo que se refere ao intervalo de tempo
compreendido entre a data de início e termino da performance; é também o seu significado de
conservação, permanência, persistência e resistência. As “Performances de um ano” de Hsieh,
tratam de duração.
20
“I was walking back and forth doing my thinking in the studio. (...) I had spent a lot of time in this situation of
isolation, as if I was doing time” (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.455).
21
“Eu, Sam Hsieh, pretendo fazer uma performance de um ano, começando em 30 de setembro de 1978.Devo
me fechar em meu estúdio, em confinamento solitário dentro de uma cela com medida de 3,5 x 2,7 x 2,4 m.NÃO
devo conversar, ler, escrever, escutar rádio ou assistir televisão, até que eu me solte em 29 de setembro de
1979.Deverei me alimentar todos os dias.Meu amigo, Cheng Wei Kuong, irá facilitar essa performance
encarregando-se da minha comida, roupas e resíduos.” (HSIEH apud REZENDE, 2016)
22
“Eu, Sam Hsieh, pretendo realizar uma performance de um ano. Devo apertar um relógio de bater ponto, em
meu estúdio, de hora em hora por um ano.Devo deixar imediatamente a sala do meu relógio de ponto a cada vez
em que eu apertar o relógio de ponto.” (HSIEH apud REZENDE, 2016)
23
“Eu, Tehching Hsieh, pretendo realizar uma performance de um ano.Deverei ficar AO AR LIVRE por um ano,
nunca dentro de lugar algum.Não deverei entrar em nenhuma construção, metrô, trem, carro, avião, navio,
caverna, barraca.Terei um saco de dormir.” (HSIEH apud REZENDE, 2016)
24
“Nós, Linda Montano e Tehching Hsieh, pretendemos fazer uma performance de um ano. Ficaremos juntos
por um ano e nunca ficaremos sozinhos. Ficaremos no mesmo cômodo ao mesmo tempo, quando estivermos
dentro de algum lugar. Seremos amarrados juntos pela cintura por uma corda de 2,4 m. Nunca nos tocaremos
durante um ano.” (HSIEH apud REZENDE, 2016)
25
No artigo de onde retirei as traduções, o autor Diogo Rezende opta por utilizar uma imagem de um fac-símile
do quinto statement.
23
O que fazer? Como fazer? E onde fazer? Nas cinco performances, o artista parece ser
interpelado por essas questões. E o modo como responde o deixa plenamente implicado por
estas questões, um extraordinário exemplo de quando “fazer é dizer”.
O que sucede as cinco performances é o “13 yearsplan”. O “plano dos 13 anos” faz
ressoar as questões que lidam com o fazer ARTE, com o seguinte enunciado: “Eu me mantive
vivo. Eu sobrevivi o 31 de dezembro de 1999”. 26 A mensagem é escrita ao modo de uma carta
de resgate ou ameaça anônima, com letras recortadas de outros meios gráficos.
O “plano dos treze anos” era fazer arte sem nunca a tornar pública. Um plano para
revelar o fazimento pelo ocultamento. A meu ver, uma condição que libertasse (ao menos
dissociasse) o fazimento, do mundo da volição capitalista, a recusa a arte pela vida. No dia 31
de dezembro Hsieh afirmou que nunca mais faria arte. (HSIEH, 2017...
https://www.theguardian.com/artanddesign/2017/oct/24/tehching-hsieh-extreme-performance-
artist-i-give-you-clues-to-the acesso em...)
No livro “Marcel Duchamp and the Refusal of Work”, Maurizio Lazzarato localiza
bem a discussão em torno da produtividade na arte, a economia do trabalho e a subjetividade
do homo faber.
Para Lazzarato, filósofo e sociólogo italiano, o captalismo tem três esteios: a troca, a
propriedade e o trabalho. Afirma também que a recusa do trabalho e a ação preguiçosa, ambas
defendidas por Duchamp, são críticas tanto socioeconômicas quanto filosóficas, e como estas
permitiriam a superação do modelo do homo faber, para "além do produtor vanglorioso e a
26
“I kept myself alive. I passed the december 31, 1999.”
27
“The worker´s movement existed only because the strike is simultaneously a renunciation, a non-movement, a
radical désouvrement, an unworking or inaction, and a suspension of production which interrupt the roles,
functions, and hierarchies of the factory´s division of labor.” (LAZZARATO, 2014, p.7).
24
promessa prometeana de domínio sobre a natureza que o modelo supõe”
(LAZZARATO,2014, p.8, tradução minha) 28.
Se relaciono, então, Marcel Duchamp (o artista francês que fez o “Urinol” (1917),
“Escultura de viagem” (1918) e “Porta” (1927), três obras com procedimentos que serão
comentados nesta dissertação) com Bruce Nauman e Tehching Hsieh, é para evidenciar
diferentes estratégias de performatividade, ou seja, estratégias que se efetivam no ato. Pois se
são Nauman e Hsieh descendentes de atos paradigmáticas de Duchamp em relação à história
da arte, em ambos casos isso ocorre pela via da anunciação do objeto ou ato artístico, crítica
institucional e no caso especifico de Hsieh, pela via crítica ao fazer e ao trabalho feita por
Duchamp.
“Como Duchamp, Warhol não apenas performou sua própria carreira como
um componente crucial de seu trabalho (aumentando assim a dimensão
performativa da identidade do artista), ele também mobilizou seu corpo / self
dentro de imagens exageradas que minam ou parodiam o tropo do artista como
trabalhador ou dandy” (JONES, 1998, p.69, tradução minha) 29
A serigrafia da folha de ponto foi pensada como uma grade com oito colunas e oito
linhas, um plano cartesiano onde x é tempo e y ação. Diariamente, carimbar ano, dia da
semana, dia do mês e mês; anotar o horário de entrada e saída do ateliê; anotar as atividades
executadas, informando horário de início e de fim de cada uma delas.
28 “They thus missed the chance to move beyond the model of homo faber, beyond the vainglorious producer
and the promethean promise of mastery over nature that the model implies.”
29 “Like Duchamp, Warhol not only performed his own career as a crucial component of his work (thus
enhancing the performative dimension of the artist´s identity), he also he mobilized his body/self within
exaggerated images that undermine or parody the trope of the artist as worker or dandy.”
25
a atividade na jornada de trabalho de cada dia. Uma grade de tempo e ação, traduzida em cor
e espaço.
A folha de ponto foi concebida antes do início do mestrado, logo, também do início do
ateliê performativo. Ela evidencia que a primeira especulação inicial em torno do ateliê
performativo é de que este se caracterizaria pelo empenho de tarefas sistemáticas e metódicas
contabilizadas. “O quê” e “o quanto”, critérios convencionais e questionáveis de
produtividade e, eventualmente, indetermináveis. Entre alguns casos determináveis: arquivar,
arrumar, limpar, varrer, carimbar, cortar, desenhar, marcar, dançar, pintar e costurar.
Havia então, nesta especulação inicial, um enorme vínculo entre o que eu elaborava
como a performatividade do ateliê e o ethos do homo faber. No livro “A corrosão do caráter”,
Richard Sennett analisa os elos entre caráter e trabalho:
Entrar no ateliê, sair do ateliê. Varrer contabiliza? E arrumar e limpar o ateliê? Dançar,
ouvir música; desenhar cantando é diferente de desenhar em silencio? São desta natureza as
dúvidas. São esses atos artísticos? Se eu afirmo o silogismo de Nauman, sim. E sem dúvida,
os vídeos de Nauman são ARTE.
Outros grupos, operam de maneira diametralmente oposta, como veremos mais adiante
com a leitura de Silvia Federici, professora em departamento de ciências sociais em
universidade americana e italiana como Lazzarato,. 30
30
“‘Lazy action’ creates in order to carry out a reconversion of subjectivity, to invent new techniques of
existence and new ways of living time. Feminist movements, by refusing to exercise the functions – and work of
– ‘women’, have in general followed this strategy” (LAZZARATO,2014, p.7)
27
1.2. A deixa da padeira
Em “A deixa”, convido uma padeira profissional para preparar massa de pão no meu
ateliê. Não é a afirmação de um lugar privilegiado da arte, senão um trabalho que procura
evidenciar o uso da convenção – gosto de pensar nela como os “lugares comuns”, de Paolo
Virno: “Emergem à superfície como caixas de ferramentas de utilidade imediata.”
(VIRNO,2013,p.21) - em processos de deslocamento e atribuição de valor. Com esse trabalho,
procuro o lugar cultural e imaginário do ateliê de artista, “o lugar não só em termos físicos e
espaciais, mas como uma estrutura cultural definida pelas instituições de arte” (KWON, 2008,
p. 168). O que quer dizer, neste caso, o lugar (o contexto) que convencionalmente produz
eficácia para uma ação performativa.
Em “A deixa”, não sou eu (artista) quem faz o pão, quem faz a ação no ateliê. Sequer
apareço nas imagens; não sou eu quem tem a câmera na mão. Sabe-se apenas pelo título do
trabalho, e por alguns resquícios de tinta nas paredes e na mesa, que a feitura do pão acontece
em um ateliê, que se supõe ser o meu. A massa crua do pão permanece no ateliê, sem vocação
definida, ser pão. A padeira deixa o ateliê com seus instrumentos e uma pintura feita por mim.
31
Uso o adjetivo operativo [operative] segundo J.L. Austin, “an instrument which serves to effect the
transaction.” (AUSTIN, 1962, p.7)
28
Se eu mesma tivesse feito a massa do pão, talvez a questão toda se concentraria na
atividade feita por mim (a artista) no ateliê e não no deslocamento da ação (da padaria para o
ateliê) e da agente. O convite a uma profissional de outra área para executar o trabalho me
permite explorar também as convenções da performance.
32
“Sharing the attribute quotidian, the readymades are also bound together by the processes of maintenance. (…)
But this was not the situation of these objects in Duchamp´s studio: the hat rack was suspended from the ceiling;
the coat rack was nailed to the floor; the typewriter cover protected nothing but air; and the urinal stood alone,
inverted, forever unused” (MOLESWORTH,1998, p.51).
29
Resgatando as imagens do ateliê de Duchamp em Nova York, datadas entre 1917 e
1918, a autora oferece uma visão crítica do Duchamp anterior ao mictório. Digo anterior não
apenas cronologicamente (a fonte de Duchamp foi enviada para o salão dos artistas
independentes em Nova York também em 1917), mas principalmente anterior em relação a
etapas até a exposição pública do objeto de arte, como concepção, produção (quando é
possível dissociar essas duas etapas). Crítica que, me parece, e faz ainda mais profunda e
ampla, como recusa ao estatuto reificado do trabalho.
Fernanda Gomes, artista brasileira, afirmou em entrevista não haver distinção entre
seu ateliê e sua casa: “É tudo ateliê. [...] Boa parte das coisas que estão no MAM vai voltar,
uma mesa vai voltar a ser a mesa da cozinha, a cadeira vai voltar a ser cadeira” (GOMES,
2012, p.198). Na frase, Gomes sugere uma “transfiguração” que se dá no deslocamento de
seus objetos do seu ateliê-casa para o museu. Entretanto, se o deslocamento para o museu
sugere essa transfiguração, a materialidade de seus objetos parece tão impregnada do
cotidiano, que eu chego a duvidar se de fato ocorre e se é necessária essa transformação no
status da cadeira. Ou seja, se ainda é necessário, enquanto operação artística, transfigurar
33
“We see ambiguous rooms filled with curious objects. Ambiguous because these rooms are not only
Duchamp´s studio, they are also his home” (MOLESWORTH, 1998, p.52).
30
objetos ordinários em objetos de arte. A transfiguração de Gomes se dá, contudo, quando os
objetos “vão voltar”, e não que eles irão para o museu.
Por outro lado, pensando especificamente no trabalho para o espaço do MAM, a
composição ortogonal dos objetos sobre o chão preto do Museu define uma espacialidade. É
uma grade, portanto. A exposição me rende leituras pictóricas em que o foco no objeto
isolado é diminuído, torna-se parte de um todo (todo que abrange objetos e espaço) e, por
conseguinte, perde seu caráter utilitário e ordinário. O estatuto da cadeira no museu é alterado
então, mais por um ato compositivo, do que por um ato de deslocamento e transfiguração. O
ato de transfiguração reside na residência da artista com os objetos, assim como no Duchamp
anterior ao mictório.
A artista é atualmente representada por uma das maiores galerias comercias de arte do
Brasil (Luisa Strina), o que demonstra uma adequação paradoxal dos readymades, ou dos
objetos-resíduos, de Fernanda Gomes ao mercado de arte. Poderíamos atribuir essa adequação
a um certo discurso “sustentável”. O caráter de insubordinação e provocação dos readymades,
enquanto recusa ao trabalho e a objetividade, parece aliar-se no caso da artista a um
pensamento ecológico, mas também poético em relação ao objeto em desuso e descartado.
“Fernanda encontra seus materiais na região do descarte, desuso e abandono, já tendo
cumprido sua vida útil e perdido aquele vínculo que os unia no conjunto do dia a dia da vida
comum: o vínculo da esfera da intimidade construída. ” (VENANCIO FILHO,2015, p.19).
Pensando deste modo os objetos de Gomes são mais ressuscitados que transfigurados. Gosto
mais de pensar que o estatuto deles é ambíguo.
Sob a mirada do cotidiano, a obra de Duchamp adquire um estado transitório, assim
como a de Fernanda Gomes. Como se a qualquer momento os objetos pudessem ser
desencantados. Des – transfigurados, oscilando, de modo como não poderia admitir Danto:
“Se for uma obra de arte, não haverá maneira neutra de olhá-la; melhor dito, olhá-la de
maneira neutra é não vê-la como obra de arte” (DANTO, 2005, p.183).
Nauman, como Duchamp, é autor de gestos paradigmáticos na forma de enunciados
(nos termos de Austin, atos de fala excepcionalmente eficazes). Isso porque, até onde percebo,
o que Nauman faz é alterar os termos do gesto inaugural de Duchamp. Nauman não levou
suas ações, coreografias e vídeos para que adquirissem a chancela do museu (ou do salão, ou
da galeria); ele mesmo, ao reescrever o silogismo implícito na ação de Duchamp (nos meus
termos: se tudo o que o museu expõe é arte, então tudo que eu logre expor no museu será
arte), definiu que tudo o que ele fizer no ateliê é arte. Ou seja, conferiu não a si próprio, mas a
31
seu ateliê a prerrogativa de outorgar a seu trabalho o status de arte. Repito, com o estofo da
ética do trabalho.
Ainda que ambos possam ser vistos com certo humor, em uma entrevista de 1972
Nauman diz: “Se eu tomasse as coisas que eu não sabia fazer, mas levasse-as a sério, logo elas
seriam levadas a sério, o que funciona se você toma [pick] a coisa certa.” (NAUMAN,
2005[1972], p.166, tradução minha).34 Mesmo com todo humor que posso encontrar nos
vídeos de Nauman no ateliê, há um lado muito sisudo em relação ao trabalho, diferentemente
de Duchamp. A ética de trabalho dos artistas diverge radicalmente, com o que se pode afirmar
que se na relação com o cotidiano Nauman produz uma redução da distância entre obra e
processo, no caso de Duchamp a equação seria entre obra e vida (que podemos entender como
a qualidade e “maneira neutra” dita por Danto, de presença de um objeto de arte ou ação). No
caso de Hsieh, seria uma redução entre processo e vida. Como e onde se dá o limite entre
essas instâncias? Hsieh as localiza no ponto: lugar e ação.
Img08 Marcel Duchamp, Door (1927) / Tehching Hsieh, One-Year Performance 1980-1981
1.4. Porta/Chassi
A porta do ateliê é um chassi, mede 1.65 m de largura por 2.20 m de altura. Um chassi
que funciona como uma porta, ou uma porta que funciona como um chassi de pintura. O
chassi é fixado a um pilar por duas dobradiças que facultam a este o movimento de uma porta
quando acionado por alguém.
Objetivamente, a porta não isola o espaço do ateliê, não é preciso abrir a porta para
adentrar o espaço do ateliê. Contudo eu reproduzo o gesto de abrir a porta para entrar no
ateliê, e registrar no ponto o horário de início.
34
“If I took things that I didn´t know how to do, but I was serious enough about them, then they would be taken
seriously, which sort of works if you pick the right thing” (NAUMAN, 2005[1972], p.166).
32
Com o computador sempre aberto. A webcam, cria um limite virtual para o limite
físico do ateliê, um recorte, uma boca de cena. A um só tempo a webcam (on-line) pode ser
uma expansão do ateliê, registrando-o, conectando-o, exibindo-o. Como se refere Caitlin
Jones a exemplos de transmissões on-line via webcam “performando para sua webcam, e por
extensão, para o mundo” (JONES,2010, s/n, tradução minha). 35
Ritmo: a conjunção do tempo da arte e o tempo da vida produzindo ritmo. O ritmo, por
exemplo, imposto pela porta que Duchamp instala em sua casa/ateliê. O ritmo dos passos de
Nauman.
O ateliê que então indicaria que a atividade que se dá aí é trabalho de arte, quando
inserido no ambiente doméstico, coloca os tempos da arte, vida e trabalho (Molesworth traz
no texto as categorias de Henri Lefebvre: trabalho, lazer e vida privada) em ritmo peculiar.
Esse ritmo se torna constitutivo da linguagem do objeto ou da ação artística, e isso me
interessa.
35
“performing for their webcam, and by extension, the world” (JONES,2010, s/n).
36
“My art certainly has a life quality. But I don’t really blur art and life. The gap between each One Year
Performance is life time. But the pieces themselves are art time, not lived time. This is important. Each piece is
very clearly a piece of art, bit this art has a life quality. That is its rhythm. The time of the performance is art
time, and my life has to follow art” (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.463).
33
Há algo de similar no status social, entre o trabalho invisibilizado ,tenho em mente o
trabalho doméstico e a “ação preguiçosa” de Lazzarato. O caráter improdutivo atribuído,
vergonhosamente, ao trabalho doméstico e a improdutividade auto-atribuída da ação
preguiçosa. Nessa semelhança vejo a possibilidade de um pensamento crítico e político para o
trabalho feito em casa e pela mulher. Vale ressaltar que o trabalho doméstico não tem folha de
ponto.
A grade integrada à pintura e a relação entre parte e todo que ela estabelece quando
traçada a grafite sob e sobre a pintura, surge por primeira vez no trabalho “a obra está” (2014)
e logo no trabalho corte (cutpiece), feito em meu próprio ateliê em 2015. Por esse motivo
ambos trabalhos integraram esta dissertação.
34
Contudo, o ponto não chega a se efetivar como idealizado. Não me sinto motivada
pelo pretexto pictórico. A composição dos gráficos não me instiga quando chega o momento
de fazê-la, não executo as pinturas. Fico avessa ao trabalho metódico e sistemático, pelo
menos deste modo, em que a composição pictórica estaria demasiadamente justificada. Tanto
me desapego da tarefa em si, do preenchimento das folhas, quanto me desapego de uma
performatividade da produtividade se sobrepondo à composição pictórica. A percepção da
produção de um “ritmo” que se dá no contato entre vida e arte, produtividade e ócio, desfaz o
nível categórico os coeficientes do trabalho.
Nesta dissertação trato de mostrar sem atalhos o que liga o trabalho “Ponto” (primeiro
ato do trabalho) ao “Ritmos” (último ato de trabalho). Ritmos é o resultado do ponto depois
de dois anos de mestrado, era necessário encontrar um modo para pintar e ser metódica que
não exigisse automatismos, e que se voltasse também para a corporeidade.
Seguindo, então, pelo caminho mais longo, seria interessante olhar sob essa
perspectiva um exemplo que se mostra avesso à produtividade, e que pudesse ser posto ao
lado de Marcel Duchamp.
Prazer, ócio, lazer – esses termos têm em comum uma relação estreita e nervosa com o
trabalho e com a economia do tempo. Como escreve Hannah Arendt:
Arendt é uma pensadora que define em “A condição humana”, ainda numa tradição
clássica e antropocêntrica, obra, trabalho e ação, os pilares do que denomina “Vita Ativa”.
35
Animal Laborans é então a condição de escravo, sujeito à necessidade, sendo o humano visto
apenas como força de labor, “apenas uma das espécies animais que povoam a terra”
(ARENDT, 1958, p.104), em oposição ao homo faber, para quem “a redenção da vida,
sustentada pelo trabalho, é a mundanidade sustentada pela fabricação” (ARENDT, 1958,
p.292). Caberia incluir entre estes modelos que designam o humano (não entrarei no
raciocínio do homo sapiens) o homo ludens, modelo no qual se a noção de jogo, é
fundamental, segundo Johan Huizinga.
A artista é na maioria dos casos alguém que tem autonomia na gestão de seu tempo de
trabalho. Como afirmei na introdução, na maioria das vezes a artista ou o artista é alguém que
não trabalha por demanda e não é assalariada. Porque não pensar, a partir de Duchamp, em
lugar de querer a tutela de trabalhador ou trabalhadora, pensar em arte como oposição ao
trabalho? Um modo combativo em relação ao que se convenciona como trabalho. Também
nessa negociação podemos pensar em ritmo, tempo e principalmente equilíbrio (relembrando
a oposição à firmeza).
Muitos trabalhos de Stilinóvic tratam dessa questão: pinturas em tecido e papel com
frases como: “Work Cannot no Exist”, “Work is Done”, “Work is a Disease – Karl Marx”, e
“Work is a Word”; em ações como “On work” 38 e na leitura do texto “Praise of Lazyness” (no
qual o artista compara os artistas ocidentais (capitalistas) e orientais (socialistas), alegando
que por desconhecerem as virtudes da preguiça os artistas ocidentais tornam-se meros
“produtores de algo...” e promotores do sistema de arte 39.
A evocação das virtudes da preguiça por Stilinóv não deixa de ser um elogio aos
valores socialistas. “Socialismo traz libertação ao inconsciente”40, diz ele (STILINÓVIC,
1998, s/n). Trata-se de uma educação do tempo e dos valores, que mostra como são
37
“Offer possibilities for examining the tangled knot of work and leisure in everyday life” (MOLESWORTH,
1998, p.57).
38
“Trabalho não pode não existir”, “Trabalho feito”, “Trabalho é doença –Karl Marx” , “Trabalho é uma
palavra” e “No Trabalho”, tradução livre.
39
Stilinóvic cita Duchamp em seu texto: “Duchamp never really discussed laziness, but rather indifference and
non-work.” (STILINÓVIC,1998, s/n)
40
“Socialism brings liberation in the unconscious”
36
indissociáveis a sensação de insatisfação e satisfação da economia do trabalho. Relaciona
preguiça e modo de vida tal como Lazzarato.
A mudança do meu ateliê para dentro de casa alterou uma rotina que exigia tirar o
pijama, sair de casa, tomar um transporte coletivo, chegar em outro lugar. Outro lugar sem
cama, louça e roupa sujas, sem fogão, sem brinquedos, sem criança, um lugar dissociado do
trabalho de casa.
O lugar do trabalho de arte é então, entre 2016 e 2017, o mesmo lugar do trabalho de
casa. O ateliê tem apenas duas paredes, uma que o separa do banheiro e outra que o separa da
cozinha. As duas paredes, mais uma estante, conformam um espaço com a forma de um
colchete, o qual, com a porta-chassi, ganha uma quarta face quando esta está fechada.
Graficamente algo como: “[ I” ou “[ _”. Ambos lugares (casa e ateliê) são contaminados pelas
atividades que se dão no espaço do mesmo apartamento. Aos poucos o limite se torna cada
mês mais difuso, passo a usar as paredes da casa para dispor obras em composições
provisórias, e logo a cesta de roupa limpa no ateliê, está no meio do ateliê. A vassoura
desconhece inteiramente este limite, também a poeira e a luz. E eu varro, dobro até anoitecer.
1.5. Ateliê/Cena
Entrego as minhas e meus colegas de mestrado uma ficha com o pedido: “Por favor
escreva no verso desta ficha uma ação a ser empreendida por mim no ateliê performativo.
Identificar-se é opcional. Obrigada. ”41
41
Com o retorno das fichas eu produziria a “composição 1”, denominação de Eleonora Fabião para trabalho
prático que deveria ser desenvolvido individualmente para sua disciplina e exposto no curso da mesma.
37
As respostas continham, além das ações, interpretações particulares do termo ateliê
performativo. As ações recebidas poderiam ser classificadas: (1) na tradição da tarefa ou da
instrução; (2) como desejo de materialização, o ateliê sendo o lugar de fabricação que a
permite; e (3) proposições especulativas e auto-reflexivas sobre meu estado no ateliê:
3- “Prove algum alimento que você nunca tenha comido antes, concentre-se no gosto,
textura, cheiro e sons das mordidas. Absorva esta experiência e deixe que ela
transpareça. Ana Kemper”
4- “Escolher uma tela em branco. Colocá-la sobre a cabeça. Deslocar-se pelo espaço
do atelier equilibrando a tela por tempo indeterminado por você ou até a tela cair.
Desenhar ou não o percurso nesta tela. ”
6- “Durante o período de uma hora narrar, com um gravador de voz ligado, todas as
ações desempenhadas no ateliê performativo durante o período.A narrativa deverá
ser atenta às gestualidades ínfimas ou grandiosas. Escutar o corpo que se move e
fala, enquanto se move e trabalha. ”
7- “Sonhar”
8- “Conte um segredo”
10- “Liberar um áudio em que Ana Halprin pede que você observe uma rocha. Você
escuta, observa a pedra e tenta incorporar as qualidades da pedra, o seu corpo
virado em pedra. Beijos, Nat”
Parece-me necessário, como artista mulher, pôr o ateliê – o lugar do trabalho – numa
perspectiva do trabalho da mulher e das práticas de artistas mulheres que se voltaram para a
questão do trabalho.
Em seu texto de 1967, “A desmaterialização da arte”, Lucy Lippard, junto com John
Chandler, escrevem que a matéria como pensada até então nas artes (a mídia) é “negada e
convertida em conceito” e “transformada em energia e tempo em movimento”. Entra em cena
39
a arte conceitual, o que os autores definem como “arte como ideia e arte como ação. ”
(CHANDLER & LIPPARD,1967, p.106, tradução minha).
No texto de 1995, Lippard observa que na exposição “c. 7.500” de 1973, inaugurada
no California Institute of the Arts, sob sua curadoria e que incluiu apenas artistas mulheres,
surgiram outros materiais:
Ao observar as práticas das artistas mulheres que participam da exposição curada por
Lippard, pode-se dizer que não tinham má consciência de classe, mas que estavam na luta por
reconhecimento e igualdade. Não pretendo aqui dar conta deste tema, apenas marcar uma
virada no meu referencial de trabalho e o início da minha identificação ou adesão ao
feminismo.
42
Artistas que levantaram essa questão podem ser vistos como artistas politizados, e como movimentos anti-
stablishment capitalista – Lippard dá o exemplo de Artists Placement Group; por outro lado também é presente,
ainda que não como uma demanda e fique numa capa abaixo da verve combativa, a questão do dinheiro, da
remuneração pelo trabalho de arte ainda é um tabu.
40
“Seria esperado que a arte produzida por um grupo de mulheres
propositalmente articulado e unido conscientemente sob o propósito de dar
corpo a essa experiência feminina fosse realmente identificável
estilisticamente como arte feminista, ou ao menos, arte feminina. ” (BARROS,
2016, p.17) 43
Barros procura identificar essas coincidências tanto nas demandas e discursos, quanto
no aspecto formal dos trabalhos de arte. Observa, contudo, que muitas artistas recusaram
associação com o feminismo – muitas vezes para não se verem excluídas de um circuito mais
destacado – ao que Barros diz ser um “esforço conciliador”:
São duas estratégias políticas diferentes, para usar os termos de Lazzarato, ocupar e
reivindicar do lugar (culturalmente convencionado) da mulher, ou reivindicar a partir da
recusa a deste lugar. Alguns cenários na luta trabalhista das mulheres seguem inalterados: a
falta de reconhecimento do trabalho doméstico, as desigualdades nos salários e na ocupação
de postos hierárquicos em relação aos homens.
Silvia Federici faz uma associação parecida com a que Marx faz entre metabolismo e
trabalho. É curioso observar que no caso do trabalho da mulher sua obrigação com este é uma
questão associada à de caráter (no lugar de metabolismo).
Daí vê-se bem sob que pressões operam mulheres e homens. O esforço do corpo
físico, e a luta da psique. Pergunto-me se o contorno efêmero e imaterial para as práticas de
artistas mulheres pode fazer parte da estratégia sitiada que ocupa o lugar da mulher, de
desigualdade ou falta total de remuneração.
43
No âmbito nacional, Roberta Barros vê particularidades nos temários das artistas brasileiras, devido à
associação do feminismo a partidos políticos e a setores progressistas da Igreja católica.
41
Sobre artistas que trabalharam nessa estratégia endógena, a artista baiana Leticia
Parente, considerada uma das pioneiras da vídeoarte brasileira, o faz, assim como Martha
Roesler, com humor; um humor indignado e corrosivo. Em “Tarefa I” de 1982, por exemplo,
Leticia Parente abre com uma tábua de passar, no que parece ser uma estreita área de serviço,
no quadro entra uma mulher com roupa clara, sapatos formais claros e pele clara, ela deita de
bruços sobre a tábua estreita também. Entra uma segunda mulher - de vestido escuro, e pele
escura - que executa a tarefa de passar a roupa clara, da mulher clara, deitada sobre a tábua de
passar. Mulheres sem cabeça e anônimas. O título do trabalho enfatiza a ação pré-
determinada que deve ser cumprida.
Pareceu-me irresistível e muito adequado trazer para esta discussão em torno dos
limites da vida privada e do trabalho e o lugar da mulher, um relato (uma provocação) do
próprio filho da artista, o também artista André Parente: “Escrever sobre a Letícia me coloca
muitas dificuldades. Não sou apenas filho da Letícia, sou também filho de seu trabalho.”
(PARENTE, 2014, p.1).
“Em seu Armário de Mim, Letícia nos mostra uma série de imagens de um
mesmo guarda-roupa, em que desfilam os objetos (roupas brancas, roupas
pretas, temperos, papéis amassados, condimentos, cadeiras, objetos de culto) e
as pessoas (em um deles, todos os cinco filhos são colocados dentro do
armário) da casa, compondo ao mesmo tempo uma estranha taxionomia e um
retrato miniaturizado da casa e da artista. ” (PARENTE, 2014, p.4)
Note-se que meu ateliê da rua Maria Angélica (ateliê e casa) era compartilhado por marido e
filha. Além de porta, a porta-chassi foi brinquedo e foi varal. Invisibilidade é uma palavra
42
central no debate sobre as condições de trabalho da mulher, e para trabalhadoras das artes não
é muito diferente. Apropriar-se desse lugar de invisibilidade do trabalho feminino é apropriar-
se das condições materiais da vida da mulher em muitos casos. Silvia Federici, em
“Devolvamos o feminismo ao lugar que lhe corresponde”, texto de 1984, diz que o
movimento das mulheres “deve confrontar as condições matérias da vida das mulheres”
(FEDERICI,2013 p.92), neste momento a autora está optando pela luta pelo trabalho
doméstico assalariado também como um modo de reconhecer a luta das mulheres como uma
luta de classe.
O ateliê então, sob a ótica do trabalho das artistas mulheres, passou a ocupar outros
lugares de modo aguerrido, “Contra-atacando desde a cozinha” (FEDERICI, 2013, p.51) a
artista Sonia Andrade videoartista contemporânea de Leticia Parente ataca com feijão, num
dos melhores gestos pictóricos em “Sem título (feijão) ” de 1975. Lança contra a lente da
câmera, contra a moldura do vídeo, contra a tela da TV, contra tudo que a confina.
Sobre o chão, na esquina da rua Santa Clara com a rua Nossa Senhora de Copacabana,
estendo uma lona de algodão crua. Na lona há vestígios de bordas aparadas de pintura. Sobre
a lona me ajoelho e distribuo os demais objetos que trouxe para o trabalho: um estojo de
metal, umas fichas de papel com campos em branco que deverão ser preenchidos, lápis,
caneta, uma colher, e um pacote de porcelana fria branca (biscuit).
Estender um pano sobre o chão pode ser visto como um gesto inaugural de ocupação.
O vendedor de meias, que estava à minha esquerda, não estava interessado em concorrência
no ponto dele. Eu argumentei, disse que não era concorrência, pois eu não ia vender nada. Foi
43
suficiente para tranquilizá-lo, mas não para garantir alguma empatia por mim ou pelo meu
fazimento, uma qualquer coisa não rentável.
Minha abordagem foi mudando no tempo em que estive naquela esquina. Fiquei mais
à vontade sobre o espaço da lona. Este funcionava como uma demarcação que me dava
segurança.
Numa ficha exposta sobre a lona, eu escrevi: “Colabore com um molde e em troca
uma escultura”.
Esta frase evidencia, além do convite a uma troca, uma afirmação de transformação.
Sobretudo uma crença nessa possibilidade de converter a porcelana fria em algo que se
reconhece como escultura. Uma escultura moldada pelo toque de duas pessoas. Ou melhor
duas esculturas, uma para cada pessoa.
Sobre esse valor adquirido, não é a simples conversão da porcelana em escultura, feita
por uma artista em seu ateliê, numa ação escultórica e formalista. O que a transfigura é o
encontro dos três corpos. Uma matéria que reage, eu e o outro ou outra de quem a volição me
é desconhecida. Encontro que ocorre no espaço público, e que produz dois ossos gêmeos.
44
Busco aqui construir um argumento que coloque em questão a intenção, as coisas e a s causas,
a partir do trabalho “Ossos do ofício”.
Para os seguidores de Wittgenstein, isso não é o mesmo que dizer que a ação é
intencional, porque não existe essa existência mental e interior com volição; existe a regra, o
contexto.
“Isso deu origem a uma proposição segundo a qual uma ação é um movimento
corporal mais x, o que, por analogia estrutural, originou a proposição de que
uma obra de arte é um objeto corpóreo mais y. Em ambos os casos, o
problema é resolver x e y de algum modo filosoficamente aceitável. Uma
primeira solução Wittgensteiniana foi a de afirmar que uma ação é um
movimento corporal que segue uma regra” (DANTO, 2005, p.38).
Mas quem ou o que cria a regra? O que é a regra? Sou eu, a colaboradora ou é
porcelana fria? As colaboradoras ou as partes do corpo oferecidas?
Na analogia de Danto, a obra de arte está para ação como o movimento corporal está
para a mera coisa. Ou seja, uma questão de volição. Para o filosofo, o ato de declarar ou o
contexto são algumas das possibilidades para a transfiguração da mera coisa em obra de arte.
Busco um possível X com Y. Uma negociação entre o que seriam volições e intenções
dos atos de X (fazer, ocultar e deslocar), no caso eu, e o outro Y (pessoa ou coisa).
45
Onde quero colocar a ênfase quando escolho chamar os ossos de escultura e não de
arquivo? E no que isso afeta o acontecimento? Fica claro que, pela filosofia de Wittgesntein,
não afetaria em nada. Isso faz do trabalho um acontecimento, mais aberto e permissivo aos
afetos, adesões e volições de quem faz e é feito.
Fiz ombro, testa, perna, bochecha, mão; e fizeram pé, orelha, umbigo. Tudo registrado
por escrito e numerado. Para cada dupla de ossos, eu anotava o nome da parte do meu corpo,
o nome da outra parte e de quem a oferecia.
Dos encontros, lembro me bem do dedo-à-dedo com Jonatan, que vendia balas
Mentos. Ele ficou fascinado pelo convite, pela simplicidade e pela possibilidade (especulo
eu), foi como se estivesse vendo gelo pela primeira vez.
46
Em “ossos” age-se sobre uma matéria prima para produzir algo. Porém, algo que está
entre vestígio e objeto.
Em relação ao fato de que “eu não vou vender nada”, talvez ele não seja tão
verdadeiro. “Ossos” é um trabalho possível tendo como suporte o programa de pós-graduação
em artes da cena. Em última instância, é o meu lugar de trabalho, é a instituição com a qual
tenho um compromisso, prazos, deveres, e também um “salário” (Capes).
47
Ato II
Ocultamento
Para iniciar este segundo ato, que trata da invisibilidade e privacidade do ateliê, parto
de registros feitos por artistas no ateliê de outros artistas. Trago dois casos, o primeiro é o
registro de Babette Mangolte no ateliê de Edward Krasinski, e o feito por Tacita Dean no
ateliê de Giorgio Morandi. Ambos pintores, ambas videoartistas.
No espaço, que permanece intacto, vê-se uma fita adesiva azul cerúleo, com dezenove
milímetros de espessura, traçando um horizonte nivelado a um metro e trinta centímetros do
chão. “Eu não sei se isto é arte”, comentário feito pelo artista em destaque na página da
fundação, “mas é certamente fita autoadesiva azul com dezenove milímetros; comprimento
desconhecido” 44. A fita também nivela hierarquicamente e equaliza o espaço e os conteúdos
do estúdio: paredes, quadros, cortinas, fotos e mobiliário. Simultaneamente, é um gesto
compositivo que se beneficia dos cantos e arestas para produzir desenhos tridimensionais.
O ateliê do artista é administrado e mantido por uma fundação e uma galeria, desde
seu falecimento em 2014. O ateliê é aberto para visitas públicas.
No ateliê, que também era o local de moradia de Krasinski, o visitante se depara com o
espaço cotidiano do artista, cômodos domésticos, uma condição que situa a obra no seu
aspecto diário, trivial e mundano.
44
“I don’t know whether this is art” é o comentário feito pelo artista, destacado na página da fundação “but it’s
certainly scotch blue, with 19 mm, length unknown” (KRASINSKI, INSTYTUT AWANDARD). Disponível
em: http://www.instytutawangardy.org/en/studio, acessado em janeiro de 18.
48
a duração nos corpos, fazendo-os sair o presente linear composto de uma sucessão de
instantes presentes[...]. As atitudes e posturas do corpo estão sempre se passando pela
teatralização do cotidiano nos corpos, suas esperas, seus cansaços e relaxamentos. ”
(PARENTE, 2000, p.106)
As imagens feitas por Mangolte não têm estrutura única, ou enquadramento fixo, não
há a mesma coerência formal e continuidade da linha azul sobre o espaço de trabalho e vida
(se é que se mantêm estas categorias) do pintor. O que não quer dizer que as suas fotografias
não tenham composição, porem certamente são menos rigorosas que as de Krasinski. Em uma
foto há uma paisagem externa, há fotos de detalhes e objetos. Fotos onde pode-se imaginar o
corpo da artista fotografando naquele espaço. Em planos mais abertos, bem como nos mais
fechados, a movimentação desse corpo só pode ser precisada numa sequência de fotos.
A captura da artista parece querer jogar luz nos acontecimentos dados naquele espaço,
como se lançasse o gerúndio sobre aquele ateliê congelado desde 2004, retratando-o como se
houvesse em cada enquadramento da câmera a permanência imaterial do acontecimento, o
espectro e o corpo fantasmagórico de Krasinski. É um retrato do trabalho e da vida de um
artista, ou melhor de dois artistas.
Mangolte afirma que o vídeo “evoca um dia do artista (the artist)” 45, e poderíamos
acrescentar que fora um dia dela e um dia de Krasinski, sobrepostos em espaço, ainda que não
em tempo. Mas, vistas lado a lado, as fotos selecionadas do ateliê do artista para ilustrar a
dissertação, uma de Mangolte e a outra anônima e institucional, não conservam nenhuma
diferença.
A abertura do ateliê para visitação evoca o tema do cotidiano e produz
questionamentos em torno do lugar de produção e exposição da arte, o lugar onde ela existe
para o público e onde/quando ela existe sem público. Vemos desaparecer a linha entre tempo
de vida e tempo de trabalho.
A artista britânica Tacita Dean fez uma série de retratos de artistas feitos em filme
16mm. Entre os retratados estão Merce Cunningham em “STILLNESS…” (2008); Claes
Oldenburg em “C.O. in Manhattan Mouse Museum” (2011); Cy Twombly em “Edwin
45
“evokes a day of the artist”.(MANGOLTE,2013) Disponível em: http://babettemangolte.org, acessado em
janeiro de 18.
49
Parker” (2011) e David Hockney em “Portraits” (2016). O de Morandi, dentre estes, é o único
póstumo.
São filmes que um dão visibilidade a algo antes privado da visão do público. Tacita
Dean se refere ao que busca capturar no filme como uma “essência” do retratado.
O relato de Dean transmite o anseio da artista impelida a agir: “Em certo ponto, de pé
no pequeno estúdio de Giorgio Morandi, [...] eu sabia que tinha de tomar uma decisão”
(DEAN, 2009, s/n, tradução minha). 46 A decisão de como agir, e de como agir com sua
câmera sobre aqueles objetos e também sobre aquele espaço.
Em dois filmes reconhecemos os objetos das pinturas de Morandi. Centralizados no
plano de Dean e mostrados de modo randômico em “Day for night” (2009) e em “Still Life”
(2009) – um loop com imagens das marcações que fazia Morandi para posicionar os objetos.
Calculadas e traçadas sobre um plano – plano que a frontalidade da pintura não mostra.
No caso de Dean, qual foi o cálculo para tomar uma decisão de como agir com a
câmera?
Os planos filmados em “Still Life” são também indícios de ações, pistas de
movimentos do artista, uma grade de existência, de variações e repetições cuja finalidade era
a composição dos objetos e as luzes que incidem no ambiente do ateliê. Este plano exposto,
antes privado do espectador, o retrato de Giorgio Morandi por Tacita Dean destaca essa faceta
métrica do pintor e também Dean resgata com seu próprio corpo uma movimentação do
espaço do ateliê.
46
“At a certain point, standing in the tiny studio of Giorgio Morandi, (…) I knew I had to make a decision.”
(DEAN, 2009). Em http://www.fondazionenicolatrussardi.com/exhibitions/still_life/Day_for_Night.html
acessado em janeiro de 18.
47
“The space between his objects was rigorously and mathematically worked out. Set squares, rulers and a
knotted string hang on the studio wall. The table surface and the lining paper are covered with intricate markings
and measurements, often initialed or marked with a letter when, you assume, a decision was finalized” (DEAN,
2009) Disponível em http://www.fondazionenicolatrussardi.com/exhibitions/still_life/Day_for_Night.html
acessado em janeiro de 18.
50
Se “Still life” é o tabuleiro, “faça você mesmo: território de liberdade”, é em “Day for
Night” que estão os peões.
São então muitos retratos e naturezas mortas, Dean vai inclusive chamar atenção para
o fato de que, entre os objetos retratados por Morandi, havia flores artificiais – deixando aí
uma incógnita sobre o que seria então essência, e sobre o quanto confiamos nas imagens. Seus
planos em “Day for night”, com objetos centralizados, podem parecer neutros e evocam a
extensão de um dia no ateliê pela variação da luz. Já na sequência de “Still life”, o plano
horizontal aparece levemente perspectivado, como para não produzir o plano da pintura
quando projetado.
Assim como Mangolte sobre Krasinski, uma artista agindo sobre a obra de outro
artista, um d’aprés que requalifica e atualiza a obra. Mangolte e Dean, com estes filmes,
fazem também retratos de si mesmas enquanto artistas nas instâncias do público e do privado.
Quiçá as ações de Mangolte e Dean sejam deslocar para o domínio comum os fazimentos
(making of) do ateliê, um registro simultâneo do passado e do presente.
Como realocar o valor para o fazimento do ateliê em detrimento do objeto? Esta foi
uma das primeiras questões que me vieram, dado que sou pintora que faz pinturas. Uma das
possibilidades foi explorar o aspecto privado e invisibilidade, do trabalho no ateliê. A este
status que denominei “regime de invisibilidade”, no qual eu não poderia mostrar as pinturas e
objetos feitos no ateliê. No lugar deles, assumindo a visualidade do trabalho exposto – ou de
outros lugares de aparição, como o portfólio – surgiriam registros, índices do tempo e da ação
51
que produziram certo objeto, por exemplo. Questionando se é a exposição pública das ações e
dos objetos de arte que os confere existência.
É um paradoxo: “Faço arte para mim. Para mim a audiência é secundária. Entretanto,
sem ela, minhas performances não existiriam”, afirma Tehching Hsieh em entrevista a Adrian
Heathfield (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.460, tradução minha). 48 Paradoxos não são
limites, senão reflexões que ativam e dão direcionamento ao trabalho.
Surgem outros aspectos da obra no espaçamento que se produz entre ação (fazer) e a
visualidade (mostrar). Podemos pensar que neste processo de ganhar visibilidade vão se
produzindo transfigurações, isto é, deslocamentos do sentido – tanto da ação quanto do
objeto. Um distanciamento entre o objeto e sua origem.
Em “O enterro da pintura” enterrei uma pintura, feita por mim para a ocasião, na ilha
do fundão, onde está o maior campus da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Não
se vê a pintura; tampouco sou vista ao enterrá-la. No quadro (do filme), se vê o prédio da
Reitoria, que abriga tanto Faculdade de Arquitetura e Urbanismo quanto a Escola de Belas
Artes. O enquadramento é estável, e o quadro é dividido no meio: na parte superior, a solidez
do edifício; e na parte inferior, o pasto de capim autogerido oscila com pouco vento. No
contra-campo da imagem, estou enterrando uma pintura, dobrada e ensacada. O áudio é a
parte mais eloquente do trabalho.
48
“I do art for myself. For me the audience is secondary. However, without them, my performances couldn´t
exist.” (HSIEH apud HEATHFIELD, 2012, p.460).
49
“The esthetic experience – in its sense – is thus seen to be inherently connected with the experience of
making” (DEWEY, 1934, p.49).
52
Visibilidade, contudo, não confere veracidade. Qual a credibilidade de uma ação que
não pode ser vista? Que não tem nem ao menos um coagente?
50
Já confrontado por alguns artistas e críticos de arte como “Anti-vision”, de Rosalind Krauss.
51
“When an artist does work but doesn´t show them in public (...) he cuts himself of communication” (HSIEH
apud HEATHFIELD, 2012, p.466).
52
"Beyond the safe confines of the studio and right into the complexity of the unpredictable public sphere”
(THOMPSON, 2012, s/n).
53
“The function of the studio”, texto escrito pelo artista francês Daniel Buren, é uma
convocação para que os ateliês de artistas não funcionem em conformidade com o sistema de
arte tradicional. Buren narra uma visita ao ateliê de Constantin Brancusi e afirma que as obras
deste nunca seriam melhor expostas do que no espaço do ateliê.
O que Buren não concebe, no entanto, é justamente uma obra feita no ateliê que não
seja imantada, ou seja, uma obra cujo “senso de realidade/verdade” (BUREN, 1971, p.56) 53
não difere em essência das coisas cotidianas. Para Buren, de fato, a passagem do ateliê ao
museu é sempre vivida na chave da perda. Como ele próprio afirma:
Realizada originalmente em 1964, a ação de Ono conferia aos participantes (já não
apenas espectadores) a prerrogativa de cortar com uma tesoura um pedaço de sua roupa. A
53
“Sense of reality/truth”
54
“The loss of the object, the idea that the context of the work corrupts the interest that the work provokes, as if
some energy essential to its existence escapes as it passes through the studio door, occupied all my thoughts”
(BUREN, 1971, p. 56).
54
extensão da performance é definida pela artista, que deixava a cena no momento que lhe
parecesse oportuno.
As regras foram apropriadas de um edital para uma feira expositiva em São Paulo
chamada “Camelódromo”. As regras do edital definiam um espaço expositivo de 1 m² (um
metro x um metro) e o preço máximo por produto de R$ 500. No entanto, optei por fazer o
trabalho no meu ateliê. No convite que enviei a amigos e conhecidos, no formato de evento no
Facebook, dizia:
“Cinco telas pintadas sobrepostas. Cada tela é composta por uma trama
ortogonal. A trama define 25 campos pictóricos por tela. Os cortes devem
acompanhar esta trama.
O comprador só pode cortar os campos visíveis. Os campos têm um valor
unitário, mas também compositivo. A motivação do comprador é assim
simultaneamente compositiva e comercial. O comprador pode adquirir um ou
mais campos, adjacentes ou não. A cada novo corte surge uma nova
configuração, uma vez que as incisões revelam a tela inferior/posterior. E isso
até o fim do evento (19h).
Dimensão e valores: Cada 20cm x 20cm = R$ 20, cada tela de 100 cm x
100cm = 25 x (20cm x 20cm) = R$ 500
Os cortes poderão ser acompanhados em tempo real pela página do evento.
Assim, xs interessadxs podem participar presencialmente ou não”. 55
Eu buscava então outros espaços e situações para fazer e para expor meu trabalho; e no
meu ateliê eu tinha autonomia total para fazê-lo. Mas, pela primeira vez expor era o mesmo
que fazer o trabalho com a presença ativa de outras pessoas. No período pré-estabelecido que
durou a performance (entre 13h e 19h), a pintura foi cortada, manuseada, editada, alterada,
despencou e se multiplicou através dos recortes dos participantes. O tempo de expectação da
pintura se estendeu. Então eu tinha agora uma pintura que suportava temporalidades, tinha
grade e tinha coautoria.
55
https://www.facebook.com/events/1596292183954968/.Este ano fiz Embalo, também uma venda on-line com
uma dinâmica lúdica, com características similares de colaborador, coagente da pintura, coautor:
https://www.facebook.com/events/143177626338922/
55
Dos cortes, já não posso alegar plena autoria. Além de cortá-los muitos participantes
recombinaram cortes não adjacentes, ou cortaram em formatos pouco ortodoxos, em “T” e
“L”. A participação e a ludicidade são atributos que retornarão em trabalhos mais recentes,
mas que, até então, eram inéditos na minha prática.
2.6 Ateliê/arquivo
Outra ocasião de tornar público é o ateliê performativo. Chega minha vez de expor em
um encontro organizado pelo coletivo EUM 56. Meu turno ocorreria durante o período de
ocupação da Casa França Brasil por coletivos de arte independentes. Oferecem-me sete dias
para a ocupação (junto com mais dois artistas) do espaço delimitado para o coletivo EUM: um
trecho de parede e uma pequena área sobre um apoio horizontal alto, e o segmento retangular
do chão, conformado pelos planos perpendiculares da parede e do apoio horizontal sem
delimitações visíveis.
Uso a ocasião para novamente explorar o termo ateliê performativo. Levo os arquivos
do ateliê para o declamado, novo e provisório, ateliê. Os arquivos são grandes envelopes de
papel branco, carimbados, identificados e datados: “ATELIÊ PERFORMATIVO _ Maria
Palmeiro_Abril 2016”, contendo todos os objetos, pinturas e desenhos, produzidos no ateliê
nos passados 3 meses de ateliê performativo.Coloco-os no chão, lá os arquivos estão, nem
apreciados, nem depreciados. Digo para uma pequena audiência no meu ateliê por sete dias:
56
O coletivo de Vila Isabel EUM (“és uma maluca”) organiza encontros onde um grupo de artistas –
selecionados sem curadoria, seguindo uma lista aberta para inscrições – debatem seus trabalhos.
56
“Tenho aqui os arquivos de março, abril e maio. Durante esse primeiro
trimestre do ateliê, trabalhei num regime de invisibilidade. Isso significa que,
o que eu faço no ateliê eu não mostro; não sai do ateliê. Eu mantive durante
esses meses um diário e uma ficha de ponto onde eu anoto o horário de
entrada e saída do ateliê, e as atividades aí praticadas”.
Na sequência, abro os envelopes, e peço ajuda para dispor os trabalhos, que são mais
documentos e menos obras. As pessoas presentes manuseiam os objetos e juntos fixamos os
objetos em um grande painel branco, criado pelo projeto expográfico 57. Surgem então
camadas, sobreposições, composições e inversões dos trabalhos.
Uso o ateliê para guardar o tecido, obra-sobra, da performance “Dobra #10”, que
aconteceu simultaneamente ao ateliê no campus da UFRJ na Ilha do Fundão. Dobro e
armazeno. Brinco com a expansão da superfície. O tecido como o suporte da cor. Espalho e
contraio no espaço o campo cromático. Acho que ninguém me observa, mas estou em um
espaço público.
57
Autoria de Juliana Sicuro e Vitor Gracez (OCO Arquitetura).
57
Lanço (drip) os travesseiros sobre a superfície amarela. Deixo os múltiplos de papel de
seda azul bebê carimbados (com tinta vermelha), identificados e datados: “ATELIÊ
PERFORMATIVO Maria Palmeiro Junho 2016”. A indicação é que no último dia, caso não
houvesse interesse, deveriam ir para o lixo. Meio lixo, meio precioso, meu trabalho de arte.
Na terceira parte desta dissertação irei justamente falar sobre deslocamento, a partir
dos trabalhos “Dobra” e “A obra está”. Este terceiro ato também sugere o deslocamento do
ateliê para um espaço de exposição, a galeria, a rua, a internet. Ainda construo uma relação
entre deslocamento e suporte.
Retornando então à questão da função do ateliê, a solução encontrada por Buren foi a
extinção do ateliê. “Todo meu trabalho advém da sua [ateliê] extinção” (BUREN, 1971, p. 58,
tradução minha). 58
Acontece que museus e galerias também são considerados lugares não satisfatórios
que, segundo Amelia Jones, oferecem hoje uma “experiência” apenas limitada e precária
daquilo que a autora consagra como arte:
58
“All my work proceeds from its extinction” (BUREN, 1971, p. 58).
59
“The institutional effect of the gallery often seems to put the masterpiece under house arrest, controlling all
conflicting and unprofessional commentary about it” (JONES, 1993, p. 146).
58
se fazem valer da neutralidade do cubo branco. Buren aponta duas hipóteses para a
colaboração das artistas: ou aceitam que as obras de arte são todas iguais e se adaptam sem
problema ao espaço expositivo; ou então, agem como se todas as obras fossem absolutamente
diferentes, portanto exigindo um espaço expositivo neutro. Em todo caso, destaca Buren,
“este é o destino final, onde estão todas perdidas” (BUREN, 1971, p. 54, tradução minha). 60
Jones é ainda mais específica. A instituição museu é a que dá valor - a que integra e
cataloga a obra de arte, e faz desta um episódio da história da arte. Kwon reforça o argumento
dizendo que “as instituições moldam o significado da arte para modular seu valor econômico
e cultural” (KWON, 2008, p. 169). E ainda por cima, o espaço institucional não dá conta,
como diz Jones, da “experiência”.
Mas que ideia de experiência têm Jones e Buren? Ora, do mesmo modo que Buren
alega que a obra perde potência ao deixar o ateliê, seria possível concluir que no ateliê
poderíamos experimentar a obra em toda sua plenitude? Seria esta uma experiência
supostamente “autêntica”, “pura”? Segundo o ensaio de Buren, parece que sim.
Neste momento, talvez o melhor caminho a seguir seja refletir sobre o quê, afinal,
entende-se por experiência. E, mais ainda, sobre as brechas entre a experiência do fazimento
do artista bem como do fazimento da expectação (do fruir, da percepção). Para John Dewey
filosofo americano que pensou as engrenagens entre arte, experiência e educação, a
experiência “singular” é da ordem do contínuo porem possui uma qualidade consecutiva e de
unidade, não basta ser“ uma sensação daquilo a que se refere e de para onde vai”
(DEWEY,2010,p.114), precisa de um “desfecho ou uma consumação da consciência” . Para
Dewey tanto a atividade intelectual quanto a atividade prática podem ser experiências
estéticas. Se dimensionássemos então a “consumação da consciência” a pequenos acessos eu
poderia encontrar em Dewey um par.
Este, me parece, é o limite da reflexão de Buren – o fato de ele não relacionar o que
ele chama de “realidade/verdade” (BUREN,1971, p.56) da obra com o cotidiano do artista,
uma vida menor. O que se perde para Buren não é muito distinto daquilo que Jones chama de
60
“This is where they all arrive in the end, where they are lost” (BUREN, 1971, p. 54).
59
experiência. Um e outro parecem creem numa certa autenticidade da obra, algo intrínseco a
ela no que se refere à sua experimentação. A extinção do ateliê em Buren é, de certo modo,
possível pela delegação da feitura do trabalho, a delegação da atividade prática, o que pode
constituir, segundo Dewey dependendo do nosso engajamento, uma experiência do fazer. Que
regime de produção é esse? Que engajamento é este? E como fica isso então, em relação ao
“corpo-em-experiência” da performance?
60
Ato III
Deslocamento
Pondo em questão os contornos de ação política dados por Arendt, por considerá-los
modos produzidos pela elite, Judith Butler nos alerta, no texto “Bodies in Alliance and the
Politics of the Street”, que o espaço público não é pressuposto, não pode ser considerado
como fato, e que garantir que um espaço seja público é parte da ação política dos corpos na
rua. O texto de Butler faz um apreço das ocupações como ato político, tendo como principal
exemplo os atos na Praça Tahir, no Cairo (Egito), que se tornaria simbólico do processo
histórico que ficou conhecido como “Primavera Árabe”, iniciado em 2011.
O que Butler faz de modo animador é ampliar o escopo do que é entendido como
“suporte” para a ação política. O espaço público deixa de ser entendido como o principal
suporte da ação política, o lugar dado da visibilidade. Com isto, Butler expande não apenas os
locais onde se faz política, mas expõe uma trama de suportes que permitem, suportam,
manifestações políticas.
Digo animador também pelo modo como a autora estabelece a relação entre agente
agido como indissociáveis: x age y, y age x. Nas palavras de Butler, “esse ambiente material
faz parte da ação e eles mesmos agem quando se tornam um suporte para a ação” (BUTLER,
2011, p.1, tradução minha).61
Ou seja, toda ação humana precisa de suporte, e lutamos também pelo suporte. O
suporte também é constitutivo da ação. O que está em questão é o que se entende por suporte,
não mais suporte para ação, mas parte desta. Qual é a sua materialidade? Ou quais os modos
deste?
Em diálogo com Arendt, que diz no livro “O que é política”, “a política surge no entre-
os-homens, portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma
substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação”
(ARENDT,1998, p.35-36) 62 e que tratou o espaço público como categoria universal estável,
61
“Those material environment are part of the action and they themselves act when they become support for
action.” (BUTLER, 2011, p.1).
62
Citação soprada por Eleonora Fabião na banca de conclusão.
61
Butler sugere a criação de um espaço outro (utópico, distópico, heterotópico) – que Butler
trabalha em dois domínios: o “pré-político” e o “extra-político”. Através do pensamento de
Butler, é possível se reescrever, e introduzir um novo repertório de ação política. E esta pode
promover encontros e subjetivações.
Para Butler, essa reescritura está sendo feita a partir da “Aliança”, dos corpos em
aliança, no que ela chama de “ação em acordo e aliança”64. Conforme afirma a autora, “As
reivindicações políticas são feitas pelos corpos à medida que aparecem e agem”. 65
“Intra-espaço”, “entre aqueles que participam”: essas frases ressoam na minha cabeça.
A concepção de um espaço que se constitui entre me fascina, tenho vontade de preencher com
cor, peso e movimento.
Se, nos atos anteriores, a performatividade do ateliê lida com as questões do fazer e do
expor, abordagens mais conceituais e metodológicas a respeito da produção no ateliê, neste
ato irei tratar da performatividade da pintura pelo mais gestoual, na tradição dos happenings,
da liveart e da performance.
63
“To be outside established and legitimate political structures is still to be saturated in power relations, and this
saturation is the point of departure for a theory of the political that includes dominant and subjugated forms,
modes of inclusion and legitimation as well as modes of delegitimation and effacement.” (BUTLER, 2011,p.4)
“Political claims are made by bodies as they appear and act.”
64
“Concerted and allied action" (BUTLER, 2011, p.3).
65
“Political claims are made by bodies as they appear and act”, (BUTLER, 2011, p.3).
66
“Action in alliance happens precisely between those who participate, and this is not an ideal or empty space –
it is the space of support itself – of durable and liveable material enviroments and of interdependency among
living beings.” (BUTLER,2011, p.1)
62
Contudo, tentarei reconhecer uma prática de pintura, com ajuda dos instrumentos
conceituais como a instrução e a coreografia, aplicados ao pensamento da “action painting”.
Levarei em conta o tempo e espaço do ateliê, bem como o tempo-espaço da performance.
Trata-se de algo similar ao que sugerem as fotos do ateliê de Mondrian em Nova York.
As fotografias do ateliê de Mondrian aludem a uma instância de investigação, de processo e
de pesquisa em andamento – uma existência relativizada, não plena, do trabalho na
privacidade do ateliê. Existência que se dá pela difusão desses registros do ateliê – que
literalmente expandem a pintura de Mondrian.
Mas o que acontece se incluímos a dimensão do tempo na relação entre pintura e site-
specific? Exposições de pintura são geralmente um arranjo posterior, no espaço expositivo,
de pinturas previamente feitas no ateliê. Este deslocamento torna evidente a adequação da
63
obra às condições físicas da galeria, e a compatibilidade entre os espaços do ateliê e da
galeria.
O campo de cada pintura foi definido pela sobreposição das arestas dos dois espaços e
pelas temporalidades decorrentes dessas duas situações e ações. Não há parte (no caso
unidade) dissociada do todo e vice-versa. A etapa e o local em que cada ação ocorreu são
fatores constitutivos do trabalho; estão lá em grafite, corte e tinta. Mas, o que dizer sobre o
enunciado do projeto acima em termos de ação? Junto com as “questões da pintura”, a tarefa,
a instrução, e por que não, a coreografia do movimento.
67
“the frame, envelope, limit” (BUREN, 1971, p. 1).
68
Neste momento tenho pela primeira vez um ateliê exclusivo instalado em um apartamento conjugado.
64
No texto, “Masculinidade, solipsismo, e coreografia”, Lepecki, em diálogo com Janet
Kraynak sobre enunciado e a coreografia, usa como exemplo os vídeos de Nauman. Diz
Lepecki: “Tal enunciado-instrução é sempre manifesto no título de cada peça. Cada filme de
Nauman ‘performa’ ou ‘faz’ o que seu título anuncia. O título ganha autoridade autoral,
definindo um espaço muito restrito para o comportamento e o ser.” (LEPECKI, 2017, p.61).
Essa análise chama minha atenção para o caráter de instrução que o projeto de “A obra
está” tem, assim como de todo projeto. O projeto não apenas condicionava formalmente a
pintura, mas também prescrevia um amplo escopo de ações, abrangendo os movimentos
como: alisar minhas mãos sobre a parede no ato de forrar, agachar os joelhos ou esticar os
braços para marcar as linhas verticais, mover os dedos da mão ligeira e rapidamente no ato
desenrolar a tela, com as palmas fazendo anteparos para que desenrole somente o suficiente
enquanto me equilibro acocorada, e até mesmo solicitar ajuda para fixá-la à parede.
"O texto que acompanha, e se sobrepõe, a estes desenhos, por sua vez, faz
referência às ações de seu corpo, que se manifestam tanto no espaço do
estúdio como no filme. O roteiro [score] destaca o papel de Brătescu como
autora, intérprete, atriz e espectadora em seu trabalho à medida que se move
entre auto-retrato, auto-instrução e encenação [enactment] . Existe [roteiro-
desenho] nas relações entre textual e visual, entre o tempo de atuação ao vivo
no estúdio e o tempo de atuação no filme, com o corpo de Brătescu, tanto o
sujeito negociador, como o objeto que interpreta e afirma [enacts] as
linguagens da partitura” (FOLKERTS, 2016, p.7, tradução minha). 69
Hendrik Folkerts chama a atenção para as temporalidades que coexistem no trabalho
de Bratescu e com isso para uma ambiguidade constitutiva do próprio. O tempo dos desenhos
e da escrita, o tempo da ação frente à câmera, o tempo do vídeo. O mesmo acontece em “A
69
“The text that accompanies and is superimposed on these drawings, in turn, references the actions of her body
that manifest in the space of the studio as well as on film. The score highlights Brătescu’s role as author,
interpreter, actor, and spectator in her work as it moves between self-portraiture, auto-instruction, and enactment.
It exists in the relationships between the textual and visual, between the time of live performance in the studio
and the time of performance on film, with Brătescu’s body both the transactional subject and the object that
interprets and enacts the languages of the score” (FOLKERTS, 2016, 7).
65
obra está”: diferentes estágios, que remetem ao deslocamento da tela galeria-ateliê-galeria, e
as condições que este deslocamento impõe tanto a mim quanto à pintura.
Ou seja; mais uma vez : não é só ideia, nem é só ação, também é pictórico.
Img 25 GetaBrătescu, “O Ateliê”, 1978
Assim como ocorre com a fita azul de Krasinski, em “a obra está” a pintura adquire
tridimensionalidade nos cantos e dentes do ateliê – apenas para, e logo em seguida, se
planificar novamente nas paredes da galeria, configurando outra tridimensionalidade.
Outro modo de perceber a ação pictórica, levando a pintura para o campo da ação, mas
da ação que não é a “performatividade pollockiana” (cunhada e problematizada por Amelia
Jones). Isso se dá pelo fato da pintura ocupar ainda um lugar supostamente apaziguado e à
parte, produzida na apatia do ateliê. Não para dizer que a pintura ela é política; mas para
pensa-la como modo de produção, ação e performatividade.
Assim que eu gostaria de deter na questão das convenções e categorias das expressões
das artes para localizar redefinições para o ato de pintar. Transpondo de forma análoga essa
discussão sobre ação para o ato de pintar, podemos nos perguntar: é possível que esse ato
ocorra fora da tela?
“My painting does not come from the easel ... I need the resistance of a hard surface”
(POLLOCK, apud JONES,1998, p.73)
I
Encaramos telas, baldes de tinta branca e utensílios.
Proponho uma ação, uma oficina-performance. Pois esta se daria nos moldes de uma
oficina, visando a participação como um modo de observação e experimentação dos corpos (o
meu próprio e o das participantes) para as relações entre movimento, espaço, pintura e
performance.
66
Proponho que pintemos telas sem suporte de um chassi, sem apoiar no chão e
tampouco nas paredes. Usaremos tinta branca sobre telas brancas, e uma diversidade de
utensílios para aplicação da tinta.
II
A participante A apoia a tela sobre a palma da mão. Transfere a tinta branca do balde
com a outra mão e passa tinta sobre o trecho apoiado. Côncavo da mão, tênar, hipotênar,
punho, falanges e polpas.
Outro participante prende a tela com o queixo e com a broxa passa a tinta branca sobre
suas clavículas, externo, torso, abdômen, umbigo, púbis, flanco.
Pintam no contra corpo. Prensam a tela.
Outros não abandonam a intenção da representação figurativa ou abstrata. M. faz
ondulações, pequenos círculos sobre os trechos de tela que consegue alisar sobre o terço
inferior, médio e superior da perna. Sobre a dorsal do pé faz uma onda.
Outros dançam e os gestos visam pinceladas breves e carregadas de tinta.
Outros dançam, os gestos não visam a pintura senão a manipulação dos materiais.
Tinta é meio, corpo é meio, tela é meio e utensílios são meio.
Eu me pergunto: quem cria o corpo? (Quem é o agente do gesto?)
O fim da pintura faz o gesto? O fim do gesto faz a pintura? E o que é isso que se faz
quando já não há distinção entre gesto e pintura? É o índice da intenção compositiva que
some?
O gesto deixa de definir forma, para ser forma.
Após pintadas as telas, que, à primeira vista, têm a mesma aparência, estas são
dispostas à preferência dos participantes. Observamos e tentamos falar a mesma língua delas.
67
São todos coisas e causas.
“Todos os corpos são causas” para os Estoicos, diz Deleuze na segunda série de
paradoxos “dos efeitos da superfície” – balde de tinta, participantes, telas, pincéis, broxas,
gravetos, bisnagas, etc. Todos causas, não mais sujeito e objeto. “Todos os corpos são causas,
causas uns com relação aos outros, uns para os outros” (DELEUZE, 2009, p. 4). Essa
afirmação que equipara e desconstrói as categorias de sujeito e objeto desorganiza toda lógica
da ação pré-concebida, e faz aflorar a nossa percepção para o ato na sua expressividade (no
sentido usado por Deleuze) não racionalizada.
Some a intenção, entra a contingência. Sai o gesto que quer definir a forma, fica o
gesto que é a própria forma.
O que ocorre entre coisas e causas em relação durante a oficina – com finalidades não
distinguidas – pode ser visto na chave dos acontecimentos incorporais (DELEUZE, 2009, p.6)
que se dão na superfície das causas e coisas quando estes se afetam. Essa interpretação me
instiga a questionar o estatuto da matéria, no caso o leite condensado e o granulado de Marcia
X., na retórica da produção do objeto de arte. A própria definição de incorporais desconstrói o
referencial do corpo com substância e com atributos fixos; os atributos são pensados como
fatos que se exprimem.
68
“Desfaz as noções habituais de linguagem e ontologia, possibilitando uma
nova maneira de pensar, ou problematizar o que significa pensar, o que é o
pensamento ou seja pensar o acontecimento entre a possibilidade e a
impossibilidade do próprio pensamento.” (FIGUEIREDO, 2012, p. 129)
Vale ressaltar que incorporal não supõe abstrato ou imaterial. Meu interesse pelo
termo é de não reificar a matéria, não impor a esta uma moralidade ou uma verdade, o termo
também reforça um encontro entre temporalidade (acontecimento) e materialidade.
III
O que se dá, e que vejo quando olho para os participantes e como estamos organizados
no espaço, é uma criação de um espaço ativado, uma superfície contínua de gestos contíguos,
que contém as causas e coisas. Espaço este que é desativado à medida que cada participante
produz uma separação de sua tela, um descolamento de toda energia que estava concentrada.
P. parece padecer especialmente neste processo e desfaz-se de sua tela em ritmo ultra
desacelerado.
Não só esta é uma discussão entre o gesto e o fim, como sobre a distinção entre
trabalho e ação. O termo de Deleuze (“acontecimentos imateriais”), por isso, pode ser uma
ferramenta conceitual interessante por justamente dissolver causa e consequência, além de
promover uma expansão no que se entende por forma. É também sobre a distinção entre o
fazer e o agir:
69
Essa forma, ou acontecimento, está posta no limite do encontro entre disciplinas; entre
dois campos convencionados, a pintura e algo outro que lida com corpo e movimento (a
dança, por exemplo) ou com o espaço quando o pictórico se dá em três dimensões; assim
construindo relações também com a arquitetura ou a escultura. Essa forma é sempre o entre.
“Um híbrido”, “um diálogo”, escreve André Lepecki sobre o trabalho “It´s a
Draw/Live Feed”, de Trisha Brown, uma “dança-desenho simultânea” (LEPECKI, 2006,
p.65-69). No texto, o “diálogo” entre dança e artes visuais é analisado, em certo ponto, de
modo a evidenciar o referencial e contexto histórico que esse encontro evoca.
Para fim de especulação e exemplificação em torno deste tema, sugiro outro gesto
performativo (sempre que uso essa palavra tenho em mente uma crença não apenas as
possibilidades de declarações no fazimento da obra, como também o que a obra faz),
alternativo para a relação entre ação e pintura com as pinturas brancas de Robert
Rauschenberg (“White paintings”, 1951).
70
Pintura branca é um exemplo, para mim, de objeto que faz. É um dispositivo que
confere à pintura o que Donald Judd chamou de “single”, senso de unicidade:
“As partes são poucas e tão subordinadas à unidade que não são partes em um
sentido ordinário. Uma pintura é quase uma entidade, uma coisa, e não a
indefinível soma de um grupo de entidades referenciais” (JUDD, 1965, p. 98)
Judd diz que os trabalhos que adquirem senso de unicidade (“single”) possuem um
modo específico de tridimensionalidade, não mais pintura nem tanto escultura. São objetos
específicos.
“Abre na criança algo como uma cisão rítmica repentina. Torna-se por isso
mesmo o necessário instrumento de sua capacidade de existir, entre a ausência
e a presa, entre o impulso e a surpresa. ” (DIDI-HUBERMAN,1998 p.79)
Não se trata de pensar uma nova categoria, como a instalação, por exemplo, ou o “site
especific”. Mas de pensar à deriva para o campo performance, uma categoria que abarca esses
“frutos estranhos”, diria Florência Garramuño, uma vez que, dentro de suas próprias
convenções, que não podem ser pensadas fora da história da arte, trabalhariam de modo
irruptivo e afirmativo, utilizando-se da força da convenção como enunciado.
Img 28 Niki de Saint Palle & Robert Rauchenberg, “Painting made by dacing, 1961”
Meu ponto é que operar com as convenções, nos limites destas, nubla a antecipação da
visualidade do trabalho, o que permite que não haja representação categórica, e que nesta
71
ausência de controle, do acontecimento, se depure um gesto. O gesto nas belas palavras de
Agambem: “medialidade pura e sem fim que se comunica aos homens” (AGAMBEM, 2008,
p.13)
Mas o que convenciona a pintura? Concluo que a pintura são as “questões da pintura”.
IV
"Eu acho que comecei a fazer o derramamento porque eu não podia derramar cera no
chão e fazê-la funcionar, e eu não estava interessada em telas esticadas. Mas eu estava
zombando de toda a questão figura e fundo” (BENGLIS,1983) – diz Benglis em áudio da
época. De fato, a gestualidade de Benglis parece uma zombaria de Pollock em detrimento do
pintor Louis Morris, que também fez derramentos, por sua vez sobre tela, ou mesmo as
pinturas de Helen Frankenthaler, mas que não seria um contraponto interessante para Benglis
dada a suavidade de ambos atos pictóricos, uma anti- virilidade. A meu ver, Benglis, com toda
admiração, também queria destituir o Papa Pollock. E para isso precisou repetir o ataque do
“macho” à tela no chão. Na análise de trabalhos mais recentes de La Ribot e Trisha Brown,
Andre Lepecki estende, todavia, para o chão e a tela na horizontal, a imagética do gesto,
ressaltando o aspecto de conquista territorial do ato de Pollock.
Sem tela eu tiro minha camisa. A camisa é azul turquesa, de musseline, não oferece
nenhuma resistência ao meu contato quando vestida em um só braço e eu traço linhas
verticais, que não sucedem como linhas verticais, com o pincel.
72
Lynda Benglis, em 1971, derramou poliuretano pigmentado sobre o suporte de
plásticos estruturados com tela de galinheiro. Ela pintou a superfície do plástico armado (isto
é, estruturado contra a ação da gravidade); e depois ela retirou o suporte.
O objeto-resto pintura, este que foi desvinculado de cada participante quando postos
para apreciação, está em um lugar conflituoso entre meio e produto, ou, melhor dizendo, já
que abandonamos a distinção sujeito/objeto no início do texto, conflito entre meio e meio;
meio para atingir algo (medium) e o meio de expressar algo (mitten). Por “expressar” tenho
em mente o pensamento de Deleuze acerca do “efeito de superfície”:
73
Mas antes de assumir a ordem dos acontecimentos incorporais, que resolveria
enquanto definição a qualquer categoria, gostaria de passar por mais duas discussões: sobre
tempo e matéria.
O encontro entre campos faz com que as medialidades sejam ainda mais obtusas, pois
mesmo como linguagem é uma linguagem que transita entre dois campos. Dois regimes
temporais distintos. Toda discussão sobre os meios incide na experimentação do tempo, pois
meio é processo e a oficina-performance não é processo, a interação não se dá numa lógica de
ação e reação, agente e matéria. Os acontecimentos incorporais são os da forma cingida, sem
hierarquia das causas e coisas e em relação, portanto, no “presente que se espalha”
(DELEUZE, 2009, p.153), dando ênfase ao acontecimento. “É por ela [noção de
acontecimento] que se desfaz as noções habituais de linguagem. ” (DELEUZE, 2009, p.153)
VI
74
Os participantes se juntam, retiram todos suas camisas. Forma-se com essas uma
superfície, as participantes seguram as bordas da superfície, de pé, concentrados e parados.
Não mais dispersos ou movimentando-se.
3.5. “Dobra”
“Dobra” é uma série de trabalhos que tiveram como ponto de partida um pedaço de
tecido musseline azul marinho dobrado e costurado no interior com uma linha branca circular.
O trabalho foi motivado pela pesquisa da minha orientadora, Livia Flores, em associações
livres em torno do tema Desilha. Inicialmente relacionei o tema de Desilha à condição do
ateliê. Porém, em minha opinião, a ideia do ateliê ilhado, enquanto lugar que não está
subjugado a nenhuma ordem ou poder, ou que atua com autonomia, é ilusória. Essa ideia me
parece falsa. No que se refere ao artista que trabalha no ateliê, a nomenclatura parece mais
apropriada quando este se isola no sentido político.
Da linha branca que costurava a musseline dobrada em partes iguais (“Dobra #1”),
seguiu-se uma musseline de bordas costuradas e depois cortadas (“Dobra #2”). O trabalho tem
semelhança com uma série de trabalhos de pintura anteriores chamados “pedrinhas”, nos
quais eu me detinha em pintar vazios entre supostas pedras (cheios de vazio) que ocupavam
os cantos das telas.
Os restos foram usados para a pintura que foi enterrada, sem antes ser vista por
qualquer outra pessoa. Nesse gesto abri duas frentes: invisibilidade e a continuidade (na
dissertação foram reformuladas em ocultamento, fazimento e deslocamento). Escolho como
75
método de trabalho a continuidade para fugir da exclusividade do temário das aulas, a unidade
dos trabalhos apresentados e o estatuto da obra de arte.
O que eu pretendia com a continuidade era tornar os restos parte constitutiva das
obras. Que esse caráter contínuo me deixasse mais à vontade com o estatuto dos objetos que
eu deveria levar semanalmente para as aulas. Especialmente eu estava interessada em fazer
dos objetos menos obras e menos processo, restos de ações/eventos/acontecimentos. Dobra é
um modo de trabalho em que a obra deixa de ter uma origem. Neste contíguo de variação, a
obra perde qualquer ideia de sentido ou intenção original, para se tornar um suporte de
acumulações semânticas, interesses e experimentação.
Na sequência, “Dobra #3”, é uma tela crua com pedaços de plásticos encontrados na
praia colados sobre ela. Destaco que parte das ações envolvidas na produção do trabalho se
deu fora do ateliê, caminhando na areia à procura desses restos plásticos, preciosos lixos,
trabalhados pela maré e pelo tempo.
Nesta altura os trabalhos não tinham título. O trabalho pode ser levado para o galpão
da EBA dobrado, como uma toalha de mesa, então estendido sobre a mesa para ser exposto
em sua totalidade, quando o tampo da mesa que vira plano, parede e lugar de aparição.
“Dobra #4” é uma pintura, sem chassi, que mimetiza os pedaços de plástico. Campos
cromáticos são pintados respeitando uma grade, logo são retirados os pedações inscritos e
irregulares dentro da grade. O trabalho ganha volume com a estrutura dos recortes. Os cortes
multiplicam não só a quantidade de pinturas como os planos da pintura. Reproduzo pinturas a
partir da combinação dos recortes (“Dobra #5”).
76
“Dobra #6” é uma repetição do gesto de Dobra #1. Dobro o número de mãos,
dobramos a quatro mãos. Agora com uma musseline preta convido meu amigo, colega e
performer Elilson. Cada um segurando duas pontas, repetimos a dobra em zigue-zague. A
coreografia da Dobra. Feita a dobra, cada um corta duas pontas, o gesto doméstico de dobrar o
lençol que surgiu do encontro entre o trabalho doméstico e o de ateliê se dando no mesmo
espaço. Finalmente há desejo por parte dxs colegxs de tocar no objeto. Abrimos o tecido, e
este passou de mão e mão, pelos buracos passaram braços e cabeças, e a musseline como se
lançasse uma sombra sobre os corpos, dando a estes outros contornos superfícies e dobras.
A número sete (#7) é uma colagem com os restos de dobra #6, os pedaços de
musseline relativamente simétricos são colados sobre diferentes grids que sugerem diferentes
escalas, como se aqueles restos representassem instancias reais, ilhas, e não estivessem em
verdadeira grandeza. Em “Dobra #7”, surge essa mancha cromática central, amorfa,
ocasional, porém situada sobre uma grade de grafite sobre papel.
Na número oito (#8) uma camiseta masculina social é cortada e costurada de modo
que o torso cria uma mancha central e tridimensional no tecido branco. É uma vagina?
Também. Na “Dobra 10#”, o trabalho se dá no espaço público, grande e com a necessidade de
muitas mãos para fazer a dobra.
Vinte-e-oito (28) mãos, quatorze (14) pessoas dobrando 4,8 m x 6,0 m de visco-sport
amarelo para depois cortá-lo.
77
A intensidade do amarelo destacou a cor nesta Dobra, e evocou Hélio Oiticica e seu
pensamento de cor–ação, assim como a “potencialização do corpo” (OSORIO, 2016, p.180), e
o diálogo com a pintura. “Entre os anos 1958 e 1964 sua [de Oiticica] poética sintetizou toda
a experiência moderna da cor e a deslocou através da apropriação de novos materiais”
(OSORIO, 2016, p.181). Como se a pintura fosse então definida pela experimentação da cor
no espaço pelo corpo. Pintura é pulsação cromática. “Tudo o que era antes fundo, ou também
suporte para o ato e a estrutura da pintura, transforma-se em elemento vivo. ” (OITICICA,
2016, p. 50). Um “divisor” para juntar corpos. Osorio destaca a diferença no corpo de Oiticica
e Pape:
O tecido entrou no meu trabalho para substituir a tinta quando o ateliê foi transferido
para dentro de casa. Além da cor, o tecido se misturou com os têxteis da casa, lençóis, toalhas
de mesa, panos de chão e panos de prato.
78
A dobra cotidiana dos têxteis da casa, cama, mesa, banho, vestuário dos indivíduos
que coabitam a casa. A disciplina do trabalho doméstico, a disciplina do trabalho de arte. A
dobra e justaposição destes dois universos.
Como diz Sofia Karam sobre os corpos dos personagens dos filmes de Claire Denis,
“Dança que explode do (no) corpo no meio da noite, no cotidiano, no meio do dia, no meio da
pista, quando os tímidos e inseguros têm vez. ” (KARAM, 2014, p.62)
Estender os panos sobre o chão. Agora os panos-telas se justapõem, são mais leves e
são lançados para o ar por Maria Acselrad, com sua “descoreografia”, e enquanto meus
movimentos são mais metódicos e objetivos, mais tensos também, Acselrad está mais à
vontade, desfruta cada movimento. Fazemos dobraduras, emulamos a gestualidade de
Pollock. Idealizamos uma estrutura (coreografia ou não) em 12 partes para “Dobra #12”, e
buscamos denominações para cada gesto: Arejar / Jogar / Girar / Deslocar / Lançar/ Observar/
Deixar/ Puxar/ Dobrar/ Aproximar/Esticar/ Deitar/Alongar/ Ocultar/ Rodar/ Empilhar
/Ensacar / Sugar.
79
No texto “Rests in pieces: On scores, notation and the trace in Dance”, Myriam Van
Imschoot analisa o que seriam os arquivos da dança, como são operados, as relações com a
partitura de música e a interpretação de arquivo. Van Imschoot diz:
O argumento de Van Imschoot é de que nem deve a performance (no caso a dança)
estar “condenada” a desaparecer se não produzir seus próprios arquivos. A autora parte do
termo trabalhado por Jacques Derrida no livro “Mal de arquivo: Uma impressão freudiana”,
relacionado então tanto a origem quanto a comando “commencement and commandment”, e
parte do exemplo da música que teria logrado tornar-se “palpável” através da partitura. Pela
analogia de Rebecca Schneider entre o osso e a carne, sendo o osso o equivalente ao arquivo e
a carne como uma “matéria não passiva”, como memória e permanência através da
transmissão e repetição, Imschoot levanta a hipótese do corpo como arquivo móvel (mobile
body-archives). “Não são apenas recipientes domiciliados, mas ecologias metabólicas que
compõem os traços vivos da experiência” (IMSCHOOT, 2005, p. 7). “As instruções não são
sistemas a cultivar como tal, mas uma ‘geratriz’ para que as interações mais complexas
aconteçam e sejam observadas” (IMSCHOOT, 2005, p.15, tradução minha).71
“No entanto, é preciso ter cuidado para não reduzir esse estoque vivo (...) Isso
negaria precisamente o fato de que esse corpo nunca é uma carne ‘pura’, mas
já está se estendendo em um círculo elaborado de tecnologias de todos os
tipos. Os restos do seu histórico de performances eram físicos, de fato, mas
uma fisicalidade que sempre foi mediada e remediada, já que foi permeada
pela existência de outros objetos, relações, agências – humanas e não-
humanas” (IMSCHOOT, 2005, p.10).
70
“Because visual arts takes the form of a tangible object with permanence and durability, it was thought to be
more ‘advanced’ than music, and for that matter all art whose medium is unstable (sound, gesture, etc) and
which must rely on ‘interpretation’ (or ‘performance’, the English term) to exist” (VAN IMSCHOOT, 2005, p.
2).
71
“They are not merely domiciled containers, but metabolic ecologies that compose the living traces of
experience” (IMSCHOOT, ANO, p. 7). “Scores are not systems to cultivate as such, but a ‘generatrix’ for more
complex interactions to happen and to observe” (IMSHOOT, 2005, p. 15).
80
De modo similar, o trabalho doméstico, de dobrar roupa limpa, classificá-la e guardá-
la, é coreografia e os têxteis (lençóis, roupas, toalhas) são uma partitura.
“Dobra #13” foi uma convocação no dia do trabalho72, motivada pelo texto “Bodies in
Alliance and the politics of the street”. Judith Butler diz neste texto que o “verdadeiro” espaço
que surge entre as pessoas, assim que esse espaço abstrato se materializou para mim nos
tecidos das Dobras.
Logo, se como pintora estou interessada na dança e no estatuto dos objetos produzidos
por e para as “Dobras”, a cor no espaço é para mim o que reforça a intenção pictórica. É
também um modo de pensar outros gestos, movimentos corporais, que “produzam” pintura.
Em “Dobra #13”, pedi que as participantes trouxessem seus lençóis. Lençóis têm
categorias comerciais: “solteiro”, “casal”, “infantil”, “king size” e “queensize”. E me pareceu
interessante explorar o lençol como objeto de identificação, e de contaminação do espaço
público com esses objetos da esfera privada e doméstica. No dia do trabalho, fui motivada
pela reflexão em torno do trabalho doméstico feminino e sua invisibilidade.
A dobra também produz efeito, afetos e ação. Agimos sobre a dobra, mas ela também
age em nós.
3.6. Fôlego
Talvez esse amálgama, esse acúmulo de sentidos, referências e derivações tenha uma
boa imagem em “Fôlego”, trabalho que, não por acaso, esteve exposto no centro cultural
Hélio Oiticica, entre outubro e novembro de 2017. “Fôlego” é uma pintura /É feita de retalhos
72
Contudo, em função à mobilização contra as reformas trabalhistas, foi adiada para o dia 07/05.
81
/ Texturas / transparências e pelúcias / estampados e lisos / naturais e sintéticos, uma pintura
sem chassi, uma pintura que só se ergue quando preenchida pelo folego dos participantes da
pintura. Um tecido esgrouvinhado sobre o chão / uma superfície mole/ maleável e
vulnerável/Invertebrada, sem estrutura, é suporte de si/ E que cresce numa ação acordada e
em aliança.
“Já não quero mais o suporte do quadro, um campo a priori onde se desenvolva o ‘ato
de pintar’, mas que a própria estrutura desse ato se dê no espaço e no tempo” (OITICICA,
1986, p.51)
Ainda que a concepção metódica que eu tinha inicialmente do ateliê performativo não
tenha se efetivado, e que as práticas do ateliê performativo tenham mostrado certa
incontinência à um método e rotina disciplinada de fazer, há algo que na conclusão da
dissertação, na necessidade de efetivá-la, se manifesta: um equilíbrio, uma economia do
cotidiano que mescla arte, vida e obra. Um ritmo de manutenção, de constância, uma
“permanentemente em manutenção” (JONES, 2010, s/n).
Ou seja, não-processo.
Groys faz uma análise da produção artística contemporânea a partir dos anos 1960 que
se aproxima das práticas de “ateliês laptop” que Caitlin Jones apresenta. É o que ele chama de
“estética das redes sociais”:
Essa nova relação entre expectação e trabalho de arte que se dá através do que Groys
define como “weakgesture” (GROYS, 2010, p.10), ou “gesto débil”, descrito também como
gesto diário, não transcendente, reduzido de significados e mensagens.
Também posso entender o “gesto débil”, no modo como Jones caracteriza um dos
exemplos que traz em seu texto: “um espaço de equalização onde profissional e amador, luxo
73
“Without the artistic reductions effectuated by these artists, the emergence of the aesthetics of these social
networks would be impossible, and they could not be opened to a mass democratic public to the same degree”
(GROYS, 2010, p. 10).
82
e banalidade alta e baixa coexistem em harmonia lúdica”. (JONES, 2010, s/n, tradução
74
minha). Ou outro que “cria um trabalho que torna visíveis os caminhos intermináveis e
rotas tortuosas de influência e apropriação” (JONES, 2010, s/n, tradução minha). 75
Uma “vida menor”, “não o morto nem o eterno ou o divino, apenas o vivo, o
pequenino, calado, indiferente e solitário vivo” (DRUMMOND, 1962, p.224).
Última mudança de ateliê: saindo do largo do são Francisco, Rua Luis de Camões 12,
ateliê onde fiz minha qualificação. Num acontecimento o pão de cimento parte-se em dois.
74
“an equalizing space where professional and DIY, luxury and banality high and low coexist in gleeful
harmony” (JONES, 2010, s/n).
75
“creates a work tha makes visible the endless paths and circuitous routes of influence and appropriation”
(JONES, 2010, s/n).
76
“Vida menor” (ANDRADE, 1962, p.224).
83
BIBLIOGRAFIA
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1972.
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BARROS, Roberta. Elogio ao toque, ou como falar de arte feminista à brasileira. Rio de
Janeiro, editora Relacionarte, 2016.
BASBAUM, Ricardo. “Percursos de alguém além de equações” in: Concinnitas: Revista do
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WARHOL, Andy & HACKETT, Pat. POPism, Penguin Modern Classics, 2007.
87
ANEXO I
Caderno de imagens
88
Img 01 Primeiro ateliê: Alabama Street (São Francisco, CA), 2012
Open Studio Art Explosion: Depth and Gravity , 2012
89
Img 02 Ateliê de Daniel Buren (sem data)
Daniel Buren, “Within and Beyond the frame”, 1973
90
Img 03 Serigrafia do “Ponto”, 2015
91
Img 05 Tehching Hsieh, “13 year plan”, 1986-1999
92
Img 07 “A deixa: a padeira no ateliê performativo”, Maria Palmeiro, 2015
93
Img 08 Marcel Duchamp, “Door”, 1927
Tehching Hsieh. “One-Year Performance” , 1980-1981
96
Img 14 Sonia Andrade, sem título(feijão), 1975
98
Img 18 “O enterro da pintura”, 2016
Instantâneo de vídeo 7’33’’
102
Img 23 “A obra está”, Maria Palmeiro, 2014
Galeria Casamata, RJ foto: Lua Perê.
103
Img 24 “A obra está”, no ateliê Rua Conde de Irajá, 2014.
104
Img 25 Geta Brătescu, “O Ateliê”, 1978
Img 28 Niki de Saint Palle / Robert Rauschenberg, Painting made by dancing, 1961
Img 29 Dobra #13, com lençóis, Aterro do Flamengo, 2017 foto: Pia Palmeiro
106
Img 30 Ligia Pape, “Divisor”, 1968
107
Fotos: Wilton Montenegro
109
Img 34 “Fôlego”, Maria Palmeiro, 2017 Centro Municipal Hélio Oiticica
110