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Patologias alimentares: um desafio interdisciplinar
were discussed. The aspects that were emphasized are the value of the
interdisciplinary work, the challenge of establishing dialogue with profes-
sionals that work with different conceptions of body, the precarious train-
ing and the prevalence of care fragmentation.
ca falha, e, com ele, falha o domínio do prin- devido de laxantes, prática excessiva de exercí-
cípio do prazer, pois o aumento do fluxo de cios físicos, entre outros (Fernandes, 2006; Fa-
excitação estaria além do tolerável, impedin- rias e Cardoso, 2009, 2010). Estamos diante de
do o trabalho de processamento psíquico e sujeitos extremamente frágeis psiquicamente,
submetendo, assim, o psiquismo a uma única que utilizam seus corpos e sua relação com o
tarefa, a de tentar dominar tal excitação (Car- objeto comida como recurso de sobrevivência
doso, 2010). psíquica, mesmo que isso, muitas vezes, ame-
Assim, nas patologias alimentares vemo- ace a vida (Chervet, 2011).
-nos diante de uma lógica traumática em que Seguindo a perspectiva psicanalítica, o
o que está em jogo, como resposta, é a tentativa foco do tratamento não deve estar nos sin-
de dominação, por meio da descarga, de ele- tomas corporais, mas na montagem psíquica
mentos excessivos e irrepresentáveis presentes que está subjacente; uma vez que as manifes-
no psiquismo (Farias e Cardoso, 2010). A ideia tações corporais nas patologias alimentares
de descarga pressupõe um retorno direto da são uma resposta, uma forma de defesa à ex-
excitação pulsional (que parte inicialmente do citação excessiva que ameaça o funcionamen-
corpo e chega ao psiquismo para ser processa- to psíquico (Farias e Cardoso, 2009; Brusset,
da) do psiquismo para o corpo, sem passar, no 2003; Jeammet, 1999). Nessa perspectiva, o
entanto, por um trabalho de simbolização, de tratamento das patologias alimentares vai na
elaboração. Dessa forma, a excitação pulsional direção da elaboração psíquica, do processa-
não consegue ingressar em um circuito pulsio- mento do excesso de excitação que ameaça
nal, em um trabalho de mediação, de simboli- as fronteiras egoicas e corporais (Cardoso e
zação, tendo que ser descarregada imediata- Monteiro, 2012).
mente no domínio corporal, de forma repentina A eliminação dessas manifestações corpo-
e disruptiva (Borges, 2012). Assim, há uma con- rais sem que haja uma elaboração psíquica,
vocação do corpo, fonte de alívio momentâneo sem que um caminho de processamento psí-
da excitação, que toma o lugar do trabalho de quico seja construído, poderá resultar em seu
elaboração psíquica (Marinov, 2001). deslocamento para outras manifestações cor-
Segundo Cardoso (2010), esse aspecto in- porais ou comportamentais (Cardoso e Mon-
dicaria a singularidade da temporalidade dos teiro, 2012). Segundo Fuks (2003, p. 152),
processos psíquicos implicados no traumá-
tico, o tempo do imediato, do não-mediado. [...] se nos limitamos a identificar e agir sobre os
Estaríamos, então, diante de um modo de comportamentos alimentares e seus efeitos somá-
funcionamento psíquico específico em que ticos e psíquicos sem levar em conta os processos
a possibilidade de representar encontrar-se- estruturais e históricos que os ‘solicitam’, o resul-
-ia dificultada, o que se constituiria em uma tado é nulo, pobre e proclive à repetição ou a uma
condição fundamental dessa modalidade de substituição, não benéfica, da sintomatologia.
resposta e a base de sua repetição compulsiva
(Chervet, 2011). É fundamental considerar a montagem
Encontramos, portanto, nas patologias ali- psíquica subjacente às patologias alimentares,
mentares, a presença de um excesso pulsional construindo uma compreensão psicodinâmica,
que se constitui como uma ameaça de morte sob pena, se nos restringirmos à busca pela eli-
narcísica, em outras palavras, como uma ame- minação de tais sintomas, de limitar a compre-
aça de desestruturação egoica. Diante de tal ensão desses casos e, assim, reduzir o alcance
ameaça, a descarga do excesso pulsional via terapêutico e o sucesso do tratamento (Fernan-
corpo torna-se urgente, como única forma de des, 2006; Cobelo et al., 2010; Farias e Cardoso,
sobrevivência psíquica possível (Farias e Car- 2009). Além disso, sua complexidade clínica é
doso, 2009). Tendo em vista a ameaça de de- tida como um aspecto fundamental a ser consi-
sestruturação que tais patologias comportam, derado, pois são patologias que reverberam de
constituem-se em casos em que está em jogo a forma violenta sobre o corpo.
auto-conservação narcísica. Embora o foco do tratamento das patolo-
Como destacado, a forma de resposta, de gias alimentares, na perspectiva psicanalítica,
defesa do ego diante do excesso pulsional que não seja os sintomas corporais, suas reverbe-
o ameaça de desestruturação, é a descarga, é a rações sobre o corpo não podem ser negligen-
convocação do corpo. A convocação do corpo ciadas. Pesquisadores dedicados ao estudo e
nas patologias alimentares implica em jejuns ao tratamento da anorexia e da bulimia, como
prolongados, vômitos auto-induzidos, uso in- Scazufca e Berlink (2004), Fernandes (2006),
Brusset (2003), Jeammet (1999), Farias e Car- terdisciplinar, uma vez que ele se constitui em
doso (2010) e Weinberg e Berlink (2010), res- uma forma de compreender temas complexos,
saltam a importância de uma abordagem que a partir da construção de um processo que
considere a complexidade diagnóstica e clíni- permite a articulação entre diferentes áreas.
ca no tratamento dessas patologias. Tal com- Assim, a interdisciplinaridade não se refere a
plexidade se deve, especialmente, aos efeitos uma teoria ou método específico, mas a uma
violentos do sofrimento psíquico sobre o cor- estratégia que articule fragmentos disciplina-
po e sobre o comportamento de tais pacientes; res e o diálogo dos saberes (Minayo, 2010).
efeitos estes que podem, em casos mais graves, É importante destacar que o trabalho inter-
conduzi-los à morte. disciplinar, conforme sua especificidade coloca
Esses pacientes estão expostos a riscos algumas nuances. Entre elas constata-se que no
que exigem atenção constante e que indicam trabalho interdisciplinar uma disciplina pode-
a importância fundamental do trabalho inter- rá possuir certo destaque diante de outras em
disciplinar nesses casos. Encaminhar e man- função de ter mais acúmulo de conhecimento
ter contato com profissionais de outras áreas e mais tradição acerca da temática. Isto, contu-
que acompanham o paciente tendo por obje- do, não pode resultar em uma desconsideração
tivos tanto o estabelecimento de diálogo sobre das contribuições das demais disciplinas (Mi-
o caso como a atenção para comportamentos nayo, 2010).
ou manifestações corporais que possam estar Neste artigo, parte-se da perspectiva psica-
indicando riscos para saúde ou para a vida, nalítica, compreendendo que as patologias ali-
torna-se de grande importância. Dessa forma, mentares possuem uma base psíquica, em bus-
o trabalho interdisciplinar é fundamental para ca de subsídios que favoreçam a construção de
que se possa construir intervenções adequadas possibilidades de diálogo com médicos e nu-
à singularidade do funcionamento psíquico e tricionistas – principais profissionais implica-
das manifestações sintomáticas dos sujeitos dos juntamente com a psicologia no tratamen-
com anorexia e bulimia. to de tais patologias. Para isso considera-se de
Segundo Minayo (2011), a interdisciplina- grande relevância conhecer como tais profis-
ridade constitui uma articulação de várias dis- sionais pensam o trabalho interdisciplinar que
ciplinas em que o foco é o objeto para o qual o tratamento das patologias alimentares exige.
não basta a resposta de uma área só. A autora
destaca que é o objeto que vai convocar as dis- Método
ciplinas que devem compor a abordagem in-
terdisciplinar. A complexidade das patologias
alimentares, da montagem psíquica subjacen- Delineamento
te e de suas reverberações sobre o corpo e o
comportamento convocam além da psicanáli- O estudo proposto caracteriza-se como
se, especialmente a medicina e a nutrição para uma investigação teórico-clínica de caráter
a construção de um trabalho interdisciplinar. qualitativo e exploratório, alicerçada no refe-
Entretanto, cabe ressaltar que outras discipli- rencial teórico da Psicanálise. Entende-se que
nas podem ser convocadas dependendo da tal delineamento permite o aprofundamento
singularidade de cada caso. dos significados que os sujeitos dão a suas
Trabalhar com pacientes com patologias ações e relações (Turato, 2013).
alimentares é desafiador para psicanalistas,
especialmente em função das intensas manifes- Participantes
tações corporais que colocam, na maioria das
vezes, em risco a saúde e a vida (Cobelo et al., A coleta de dados foi realizada em um hos-
2010; Farias e Cardoso, 2010; Fernandes, 2006). pital universitário do interior do Rio Grande
Médicos e nutricionistas também são desafia- do Sul. Tal hospital oferece atendimento clí-
dos por essas patologias, principalmente pelos nico com médicos endocrinologistas e nutri-
aspectos psíquicos que estão subjacentes às ma- cionistas para a população em geral, consti-
nifestações corporais e comportamentais (Al- tuindo-se como serviço de referência em sua
varenga e Scagliusi, 2010; Bechara e Kohatsu, região de abrangência. Os setores selecionados
2014; Palma et al., 2013; Bordignon et al., 2014). para pesquisa foram o Serviço de Nutrição e
Diante desses desafios é de extrema rele- Dietética e os Ambulatórios de Endocrinologia
vância o diálogo entre as diferentes áreas como (infantil e adulto). No momento da realização
alicerce para a construção de um trabalho in- da pesquisa não havia atuação de profissionais
que eles se sentissem mais à vontade durante Ninguém consegue com as patologias alimenta-
a entrevista, especialmente para falar sobre as- res tratar sozinho. Eu acho que tem que ser in-
pectos ligados a instituição e ao trabalho com terdisciplinar sempre, e a equipe, o ideal, sonho...
outros profissionais. Seria a equipe, se reunir uma vez por semana
para discutir, trocar, pensar junto as interven-
As atividades de campo do estudo ocor-
ções, mas acho que é um desafio (M5).
reram apenas após a aprovação do comitê
de ética da instituição em que foi realizada, Com relação ao tratamento das patologias ali-
sendo o projeto aprovado sob número CAAE mentares eu acho que é impossível fazer um tra-
57059116.3.0000.5346. Com o objetivo de pre- tamento sozinha, eu acho que tem que ser feito
servar o anonimato dos participantes, as falas um tratamento com profissionais de várias áreas:
serão apresentadas com a seguinte legenda: nutrição, psicologia, medicina. Eu acho que sozi-
letra N ou M (Nutricionistas ou Médicos) se- nha na tua área é muito mais difícil de conseguir
guida de um número que identifica o sujeito um bom resultado (N3).
no grupo profissional a que pertence.
Os participantes destacam que o sucesso
Resultados e discussão terapêutico do tratamento das patologias ali-
mentares, e de seu próprio trabalho nesses ca-
A análise dos dados, orientada pela escuta sos, está ligado a possibilidade de um trabalho
e transferência instrumentalizada dos pesqui- conjunto com outros profissionais. Isso indica
sadores em relação ao texto das entrevistas, que entre médicos e nutricionistas há o reco-
indicou questões fundamentais que se referem nhecimento da importância do trabalho inter-
a valorização, os desafios e os obstáculos do disciplinar para o tratamento da anorexia e da
trabalho interdisciplinar no tratamento das bulimia, bem como a valorização dos outros
patologias alimentares. Dessa forma, a inter- campos de saberes nas suas especificidades.
disciplinaridade surgiu como eixo principal Além disso, destacam a importância do diálo-
em torno do qual os dados foram discutidos. go como principal alicerce para a construção
de um trabalho interdisciplinar. Os profissio-
Interdisciplinaridade nais indicam que o diálogo permite através do
olhar direcionado ao outro o reconhecimento
As questões relativas ao tema da interdisci- de seu papel e a abertura para um processo de
plinaridade foram divididas em três categorias consideração e respeito acerca da sua profis-
principais: Reconhecimento da importância são e atuação, de modo a contemplar um bom
do outro: valorização do trabalho interdisci- alcance terapêutico.
plinar; Grandes desafios: o mesmo paciente, Nesse sentido, Romano (1999) pontua que
diferentes corpos; e Cada um no seu quadrado: pertencer a uma equipe com profissionais de
formação precária e cuidado fragmentado. diferentes áreas não significa exercer um tra-
balho interdisciplinar de fato. Para que a in-
terdisciplinaridade possa ocorrer Cachapuz
Reconhecimento da importância
(2006) destaca que é fundamental a construção
do outro: valorização do trabalho de relações menos verticais entre as diferentes
interdisciplinar disciplinas e isso não ocorre pela simples jus-
taposição ou complementação entre elas, e sim
Segundo Fazenda (2008) a interdisciplina- a partir do estabelecimento de trocas entre os
ridade pressupõe a abertura de canais de cola- campos, tendo em vista o paciente em torno
boração e comunicação com o saber de outros do qual se constitui a equipe.
profissionais. Nessa linha, os médicos e nutri- Na mesma direção, Fazenda (2008) enfatiza
cionistas entrevistados destacaram que o trata- que o exercício da interdisciplinaridade impli-
mento das patologias alimentares se constitui ca na escuta do diferente, assim como na dis-
em um grande desafio que exige o apoio de ponibilidade de perceber os limites da própria
outros profissionais para ser enfrentado. área. Segundo o autor, o que define a presença
da interdisciplinaridade é a construção de um
Eu acho bem importante essa questão interdisci-
espaço de diálogo, marcado pela disponibili-
plinar no caso das patologias alimentares, acho
que a gente consegue resultados muito melhores dade para aprender, pelo respeito pela espe-
quando tu trabalha em equipe, dialogando, do cificidade do campo de saber do outro e pela
que eu tentar abraçar o caso sozinha, que eu sei percepção da insuficiência do próprio saber
que eu não vou ter sucesso (M6). para o avanço do processo terapêutico. Morin
(2015) reforça essa ideia destacando que a in- cuidados em saúde se apresenta de forma
terdisciplinaridade além de significar troca e desafiadora e complexa. Um dos principais
cooperação exige que as diferentes disciplinas desafios para o trabalho interdisciplinar com
possam não apenas se reunir, mas também essas patologias é a perspectiva a partir da
dialogar, construir caminhos de forma conjun- qual cada profissional olha para o corpo do
ta. O autor ainda destaca que a integração de paciente, nesses casos, palco privilegiado de
diferentes formas de pensar, revela a interliga- expressão das manifestações patológicas.
ção destas. Nesse sentido, a interdisciplinari-
dade permite a construção de um pensamento Grandes desafios: o mesmo paciente,
alicerçado na complexidade que possibilita diferentes corpos
ligar as áreas e saberes que são tratados e es-
tudados, na maioria das vezes, de forma frag- A forma de a psicanálise pensar o corpo
mentada e independente. diferencia-se da nutrição e da medicina. O cor-
No que se refere ao reconhecimento da po psicanalítico apresenta-se diferente de um
importância do trabalho interdisciplinar, os corpo biológico, anatomopatológico, objeto de
participantes deram destaque também ao enri- estudos médicos e nutricionais. Para a psica-
quecimento profissional que a constituição de nálise, esse corpo é reconhecido como subje-
uma equipe interdisciplinar para o tratamento tivo, é um corpo que vai além das queixas de
das patologias alimentares propicia: “A gente ordem somática e já não se reduz ao conceito
vai aprendendo um pouquinho também de de organismo, é um todo em funcionamento
cada área, a gente já começa a ter uma visão atravessado pela história de cada sujeito (Fer-
mais ampla, então eu acho que é muito interes- nandes, 2002; Lazzarini e Viana, 2006).
sante, muito enriquecedor” (N1). Freud foi construindo o estatuto do corpo
em psicanálise, observando a influência do
Com o trabalho em equipe tu acaba tendo um re- psiquismo sobre o corpo e a importância dos
torno bem maior não só pro paciente, mas até pra conteúdos inconscientes na formação dos sin-
ti enquanto profissional, o teu trabalho vai sendo tomas, o que o levou a romper definitivamente
enriquecido, tem esse retorno profissional, esse
com o organicismo. Através da escuta das pa-
crescimento e esse reconhecimento (N6).
cientes histéricas, a pulsão foi delineando-se e
Essa relação faz a diferença pro paciente em di- demarcando sua importância, especialmente
versas áreas, mas no transtorno alimentar é enquanto matéria-prima para constituição do
fundamental. E a conduta terapêutica também é corpo psicanalítico. A ordem orgânica foi as-
mais correta, mais acertada, são vários profissio- sim subvertida, dando lugar a um corpo pul-
nais que participam da mesma conduta. Então a sional, erógeno (Viana, 2004).
chance de cada um construir um olhar mais com- O sujeito de que se ocupa a psicanálise
plexo é maior (M1). não é um ser exclusivamente psíquico nem,
obviamente, exclusivamente corporal, mas é
Em consonância com os entrevistados, Cos- o sujeito que se constitui nesse encontro en-
ta (2007) destaca que a interdisciplinaridade é tre o psíquico e o corporal, nessa intersecção
conceituada pelo grau de integração entre as entre o corpo e o psiquismo que é realizada
disciplinas e a intensidade de trocas entre os pela pulsão (Viana, 2004). A resultante desse
profissionais, sendo que cada profissional de- encontro entre o psíquico e o somático (consi-
veria sair enriquecido desse processo. A autora derando nesse encontro a presença do outro)
destaca ainda que o trabalho interdisciplinar pode ter como palco de expressão o psiquis-
deveria ampliar os horizontes dos profissio- mo e/ou o corpo. Nas patologias alimentares,
nais, conduzindo-os a perceber outras dimen- como indicado, a excitação não alcança um
sões e nuances das situações trabalhadas. processamento psíquico e descarrega-se no
Como pode ser percebido através das fa- corpo, sendo o corpo, portanto, nesse caso, o
las dos profissionais entrevistados, o traba- palco privilegiado de expressão do pulsional
lho interdisciplinar é considerado como de (Fernandes, 2002).
grande importância para o tratamento das Trabalhar com pacientes com patologias
patologias alimentares, sendo propulsor de alimentares é especialmente desafiador para
um cuidado integral e de um olhar comple- psicanalistas pelas intensas manifestações
xo ao paciente, de maneira a permitir um corporais que colocam, na maioria das vezes,
crescimento profissional. Contudo, percebe- em risco a saúde e a vida. Já para médicos e
-se que a abordagem interdisciplinar nos nutricionistas o desafio está relacionado com
A gente estuda, mas assim na época da minha fa- Mas o que eu percebo assim num todo, num con-
culdade, a gente estudou bem pouco, a gente até junto, é difícil, é um desafio, é muito difícil tra-
comentava assim, que era uma coisa tão impor- balhar em equipe e a gente percebe que todos são
tante, que tava crescendo e continua crescendo focados cada um no seu cantinho, então construir
o número de casos até hoje. Mas estudei muito um diálogo exige investimento e disposição para
pouco, não tenho muito conhecimento (N7). trocar com o colega, não é simples (N8).
Gonzaga e Weinberg (2012) indicam que Percebe-se através das falas dos profissio-
os pacientes com patologias alimentares, na nais que o trabalho interdisciplinar no trata-
maioria das vezes, iniciam o tratamento tar- mento das patologias alimentares está mais no
diamente; um dos motivos apontados para plano do ideal – do que acham que deveria ser
isso ocorrer é a dificuldade dos profissionais feito – e menos no campo da prática, no qual
em detectar os sintomas e reconhecer esses ainda se constitui em um grande desafio.
quadros clínicos. Esses dados estão alinha- Como pontua Figueiredo (2004), o trabalho
dos ao relato dos participantes que sinalizam interdisciplinar não se dá de modo automáti-
o desconhecimento ou o conhecimento pre- co, é um processo que precisa ser construído.
cário acerca dessas patologias, o que acaba Segundo a autora, a escuta do sujeito – como
comprometendo a possibilidade de diagnós- ética que norteia a prática psicanalítica – deve
tico precoce e mesmo de diagnóstico da ano- nortear também a construção do trabalho em
rexia e da bulimia. equipe interdisciplinar. Deslocar o foco da
Considera-se esse cenário bastante preo- patologia, dos sintomas, para o sujeito, para
cupante, pois se trata de pacientes que apre- sua singularidade, para seu sofrimento, é fun-
sentam riscos de desestruturação psíquica e damental para que se possa construir espaços
também de reverberações corporais provo- de diálogo, de troca entre profissionais de di-
cadas pela problemática psíquica que podem ferentes áreas. É fundamental, pois desloca
colocar em risco a saúde e a vida. Além do também o foco do saber de cada um – sem
diagnóstico dessas patologias, acredita-se desconsiderá-lo – e incentiva uma construção
que a formação precária termina por compro- conjunta, complexa.
meter também o processo terapêutico, pois, Segundo Costa (2007), o trabalho interdis-
segundo Peduzzi et al. (2013), ela se constitui ciplinar deve ser visto como um processo que
em um fator que dificulta, que inibe o diálogo demanda o repensar dos papéis, das relações
com profissionais de outras áreas, comprome- de poder e dos conteúdos já instituídos e pré-
tendo a construção de um trabalho interdis- -estabelecidos. Figueiredo (2004) nos indica
ciplinar. Segundo os autores, isso pode tam- que seria fundamental para efetivação de um
bém acentuar o temor que frequentemente é trabalho em equipe, especialmente em se tra-
encontrado entre os profissionais de que no tando de uma equipe interdisciplinar, que ao
contato com outros saberes, seu próprio sa- invés de nos perguntarmos “[...] o que pode-
ber seja questionado ou algum não saber seja mos fazer pelo paciente, perguntarmos o que
evidenciado. Esse contexto acaba, portanto, ele pode fazer para sair de tal ou tal situação
favorecendo o isolamento dos profissionais e com nosso suporte” (p. 81).
a fragmentação do cuidado. As intervenções, como aponta Figueiredo
A escuta do outro e o diálogo são aspectos (2004), devem ser constantemente discutidas
fundamentais do trabalho interdisciplinar e e avaliadas levando em conta suas reverbera-
também, segundo os entrevistados, seus maio- ções tanto para o paciente quanto para a equi-
res desafios: “as pessoas gostam de trabalhar pe. Tendo isso em vista, a autora propõe que
no seu quadrado, na faculdade é isso que é en- as intervenções da equipe sejam da ordem da
sinado. É muito difícil, porque a gente não tem invenção, movidas pelo questionamento e não
essa cultura da interdisciplinaridade, todos delimitadas a priori, o que torna imprescindí-
nós, todas as áreas da saúde” (M4). vel a constituição de um espaço de diálogo.
Em uma equipe interdisciplinar é funda-
Uma coisa é tu dizer que o trabalho é interdisci- mental que os profissionais tenham uma dis-
plinar, outra coisa é ele realmente ser interdis-
posição para aprender: aprender com os ou-
ciplinar. Não é cada um fazer sua parte, vários
profissionais ir ali atender o paciente e nem con- tros profissionais e aprender com o paciente,
versar, o ideal é que se discuta o caso, tenha diá- para que juntos possam construir caminhos
logo, troquem opiniões. E juntos vão decidindo que conduzam o tratamento a um maior al-
por onde ir (N2). cance terapêutico (Figueiredo, 2004). Como in-
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