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TEMAS LIVRES FREE THEMES


Deficiência, políticas públicas e bioética:
percepção de gestores públicos e conselheiros de direitos

Disability, public policies and bioethics:


the perception of public administrators and legal counselors

Liliane Cristina Gonçalves Bernardes 1


Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araújo 2

Abstract A descriptive study of the perception of Resumo Tomando como base reflexões bioéticas
public administrators and counselors regarding sobre direitos humanos, realizou-se um estudo
disability was conducted on the basis of bioethi- descritivo e exploratório sobre a percepção de con-
cal reflections on human rights. The survey in- selheiros e gestores públicos acerca da deficiência.
volved 50 participants, divided into two groups: Para tanto, foi conduzido um survey com 50 par-
29 counselors on the rights of disabled people and ticipantes, distribuídos em dois grupos: 29 conse-
21 specialists in public policies and government lheiros de direitos da pessoa com deficiência e 21
administration. The data obtained was submit- especialistas em políticas públicas e gestão gover-
ted to descriptive statistical analysis. In general, namental. Os dados obtidos foram submetidos à
the results showed that for counselors disability is análise estatística descritiva. De modo geral, os
a social issue and should be shared by society, resultados apontaram que, para os conselheiros, a
whereas for public administrators it is predomi- deficiência é uma questão social que deve ser com-
nantly a personal tragedy limited to the individ- partilhada em sociedade; ao passo que, para os
ual and family sphere. It is considered that this gestores, trata-se sobretudo de uma tragédia pes-
differentiated view arises from different perspec- soal circunscrita à esfera individual e familiar.
tives regarding the allocation of public resources. Hipotetiza-se que tal visão diferenciada decorre
It is also necessary to stress the importance of liv- de perspectivas diferentes em relação à alocação
ing with a disability, or living with people with dos recursos públicos. Destaca-se, também, a im-
disabilities, to base the assessment of quality and portância da vivência da deficiência, ou a convi-
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Secretaria Nacional de
satisfaction with life experienced by people with vência com pessoas com deficiência, para funda-
Promoção dos Direitos da
Pessoa com Deficiência, disabilities and contribute to the elaboration of mentar a avaliação da qualidade e a satisfação
Secretaria de Direitos public policies. Similar studies with more com- com a vida experimentada pelas pessoas com defi-
Humanos da Presidência da
prehensive and diversified samples are recom- ciência e contribuir para a elaboração de políti-
República. SCS B, Q 09, Lote
C, Edifício Parque Cidade mended, as well as the adoption of participative cas públicas. Recomendam-se estudos semelhan-
Corporate, Torre A - 8º and qualitative methodologies. tes com amostras mais abrangentes e diversifica-
Andar. 70775-090 Brasília
Key words People with disabilities, Bioethics, das, assim como a adoção de metodologias quali-
DF.
liliane.bernardes@sdh.gov.br Public policies, Counselors on human rights, Pub- tativas e participativas.
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Departamento de lic administrators Palavras-chave Pessoas com deficiência, Bioéti-
Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento, Instituto
ca, Políticas públicas, Conselheiros de direitos,
de Psicologia, Universidade Gestores públicos
de Brasília.
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Bernardes LCG, Araújo TCCF

Introdução importância da linguagem, do simbolismo e da


representação. Diversas forças políticas, teóricas,
No Brasil, diferentemente de países que possu- históricas e culturais influenciam o modo como se
em centros de estudos e linhas de pesquisa volta- representa e se nomeia a deficiência. No Brasil, até
dos exclusivamente para a condição social da recentemente, o uso de termos como “aleijados”,
deficiência, ainda são escassas as pesquisas desti- “incapazes”, “inválidos” indica que a sociedade bra-
nadas a este tema. De modo semelhante, poucos sileira encarava essas pessoas como inúteis e sem
são os estudos realizados para análise dos dile- valor. No entanto, a constante mudança de deno-
mas bioéticos que envolvem a deficiência, como minações reflete o empenho dos movimentos so-
por exemplo: aborto de fetos com deficiência, ciais para rechaçar a noção de “menos-valia” sobre
eutanásia de pessoas com deficiência e alocação a deficiência5. Cabe lembrar que a expressão ado-
de recursos públicos para esse segmento. tada contemporaneamente para designar esse gru-
Definir deficiência não é simples, pois é preciso po social passou a ser “pessoa com deficiência” e foi
haver consistência conceitual e aplicabilidade em consagrada pela Convenção sobre os Direitos das
diversos contextos: assistencial, científico, social e Pessoas com Deficiência da Organização das Na-
político1. Alguns autores argumentam inclusive que ções Unidas (ONU) em 20066.
a suposição de que é possível criar definições e clas-
sificações universais de deficiência é, em si mesma, Modelos de deficiência: médico e social
um ponto de vista culturalmente determinado, as-
sociado às sociedades estadunidense e europeia, com Segundo o modelo médico, a abordagem da
forte vinculação às ciências biomédicas universa- deficiência toma como ponto de partida a reali-
listas, de um lado, e às concepções individualistas dade biológica do comprometimento. Sendo as-
da personalidade, por outro lado. Evidências an- sim, a deficiência seria um atributo ou caracte-
tropológicas e de sociologia médica apontam que rística do indivíduo, causada diretamente por
crenças culturais afetam a maneira como profissi- doença, trauma ou outra condição de saúde, que
onais de saúde e pessoas com deficiência interpre- requer algum tipo de intervenção de profissio-
tam a saúde, a doença e a deficiência. Tais crenças nais para “corrigir” ou “compensar” o proble-
influenciam a atribuição de etiologias e orientam ma7. Nas décadas de 1960 e 1970, Saad Z. Nagi
as expectativas quanto ao tratamento e ao com- desenvolveu um influente modelo de deficiência8,9.
portamento dos profissionais de saúde2. Seu arcabouço teórico apresentava quatro fenô-
A ciência moderna integrou o discurso cientí- menos distintos, considerados básicos para o
fico à técnica, e o conhecimento científico passou campo da reabilitação:
a desempenhar um importante papel no campo (i) patologia ativa: estado de mobilização das
político. Como proposto por Foucault3, “de fa- defesas do organismo contra infecção, lesão trau-
zer morrer e deixar viver [soberania]”, o poder mática ou alguma outra etiologia;
passa “a fazer viver e deixar morrer [biopoder/ (ii) impedimento (impairment): anormalida-
biopolítica]”. A histórica parceria entre moder- des ou perdas anatômicas ou fisiológicas;
nidade e medicalização produziu uma concepção (iii) limitação funcional: restrições no desem-
hegemônica de que a deficiência é resultado da penho funcional da pessoa; e
limitação física ou mental. Pessoas com deficiên- (iv) deficiência (disability): padrão de compor-
cia eram aquelas cujos corpos estavam “quebra- tamento que se desenvolve em situações de longo-
dos”, ou cujas mentes eram “defeituosas” e, para prazo e está vinculado a limitações funcionais.
tal mentalidade, parecer “quebrado” ou “defeitu- Sob influência do modelo desenvolvido por
oso” constitui ofensa ao senso de ordem e intro- Nagi, em 1980, a Organização Mundial de Saúde
duz caos em um meio dominado por aparência e (OMS) desenvolveu uma classificação comple-
clareza. A medicalização e a corporeidade da de- mentar à Classificação Internacional de Doenças
ficiência sugerem que a vida da pessoa com defi- (CID), com a finalidade de ordenar os tipos e os
ciência deve ser entendida em termos de incapa- níveis de função e de deficiência associados às con-
cidade e confinamento. As políticas sociais têm dições de saúde: Classificação Internacional de
acompanhado esse discurso da modernidade, de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CI-
tal forma que essas pessoas têm sido socialmen- DID), ou International Classification of Impair-
te excluídas, despojadas de suas responsabilida- ment, Disabilities and Handicaps (ICIDH), na lín-
des e consideradas epítomes da dependência4. gua inglesa10.
Um dos grandes desafios, dentre as controvér- Na CIDID, o impedimento é toda perda ou
sias que envolvem a discussão sobre deficiência, é a anormalidade de uma estrutura ou função psi-
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cológica, fisiológica ou anatômica. A deficiência é mentos físicos, sensoriais e intelectuais tornaram-
toda restrição ou ausência de capacidade para se incapazes de vender sua força de trabalho sob
executar uma atividade normalmente, ou dentro tais condições. Por isso, gradativamente, elas fo-
da margem do que se considera normal para o ram posicionadas na escala social como depen-
ser humano. E a desvantagem (handicap) é uma dentes e excluídas da produção mercantil.
situação desfavorável para um determinado in- Durante o século XIX, a indústria de larga
divíduo, consequência de um impedimento ou escala progressivamente usurpou a manufatura
da deficiência, que limita ou impede o desempe- de pequena escala e a pequena produção mer-
nho de um papel esperado em função da sua cantil, consolidando a dependência das pessoas
idade, sexo, fatores sociais e culturais11. com impedimentos. A solução política para o
A OMS, por meio de uma elaboração consen- “problema social” gerado foi sua institucionali-
sual que envolveu múltiplos stakeholders, incluin- zação e a medicalização do seu impedimento. A
do pessoas com deficiência, desenvolveu a Classifi- exclusão e a dependência que as pessoas com
cação Internacional de Funcionalidade, Incapaci- deficiência passaram a experimentar no século
dade e Saúde (CIF), como uma resposta às preo- XX (barreiras na educação, trabalho, serviços de
cupações de que a CIDID estava desatualizada e assistência, habitação, transporte, lazer e cultu-
inadequada12. Ao contrário da CIDID, a CIF foi ra, nos campos institucional ou comunitário)
endossada pela Assembleia Mundial de Saúde, em podem ter origem nesse rebaixamento das pes-
maio de 2001. Coerente com os modelos prévios, a soas com impedimentos à categoria de “não-pro-
CIF visa fornecer uma perspectiva abrangente, in- dutivos” e dependentes.
cluindo os planos biológico, pessoal e social das Para Oliver13, não há modelo médico de defi-
condições de saúde. A CIF é a classificação vigente ciência, mas sim modelo individual de deficiên-
adotada pela OMS com o objetivo de padronizar a cia, no qual a medicalização é um importante
terminologia sobre deficiência7. No entanto, apa- componente. A medicalização da deficiência é ina-
rentemente essa meta ainda não foi alcançada de- propriada porque a deficiência é um estado so-
vido à complexidade de sua utilização rotineira nos cial, e não uma condição médica. Por conseguin-
procedimentos institucionalizados e à falta de con- te, a intervenção e o controle médicos sobre a
senso sobre sua utilidade como ferramenta de de- deficiência são inapropriados. Deficiência e do-
finição de quem tem e quem não tem deficiência. ença não são sinônimas; algumas doenças po-
O modelo social foi desenvolvido por pes- dem ter como consequência a deficiência e pes-
soas com deficiência, como uma resposta ao soas com deficiência ficam doentes em algum mo-
modelo médico e ao seu impacto em suas vidas. mento de suas vidas. Desse modo, os médicos
A deficiência seria um produto das barreiras físi- têm um papel importante na vida das pessoas
cas, organizacionais e atitudinais presentes na com deficiência ao estabelecer a condição inicial
sociedade, e não culpa individual da pessoa que a da deficiência, prevenir e tratar doenças.
tem, ou uma consequência inevitável de suas li- O problema surge, de acordo com Oliver13,
mitações13-15. Davis15 descreveu a relação entre quando médicos tentam usar seus conhecimen-
impedimento e deficiência, afirmando que a de- tos e habilidades para tratar a deficiência ao in-
ficiência é uma construção social. Falta de mobi- vés de ocupar-se das doenças. Os médicos são
lidade, por exemplo, é resultado de um impedi- levados pela sua própria formação a acredita-
mento, mas um ambiente sem rampas transfor- rem que são “especialistas”, e que a sociedade con-
ma o impedimento em deficiência. fiou a eles esse papel. Nesta função, os médicos
Segundo Oliver13, que analisou a relação en- têm grande poder e controle sobre aspectos fun-
tre deficiência e o modo de produção capitalista, damentais da vida de pessoas com deficiência –
a emergência do capitalismo industrial é causa onde elas devem viver, se devem ou não traba-
da restrição de atividades impostas à pessoa com lhar, que tipo de escola devem frequentar, quais
deficiência. Quando, ao final do século XVIII na serviços e benefícios podem receber e, até mes-
Inglaterra, o trabalho assalariado tornou-se cada mo, no caso de fetos com deficiência, se devem
vez mais vinculado à indústria de grande escala, ou não viver. Quando confrontados pelos pro-
as pessoas com impedimentos passaram a ser blemas sociais da deficiência, os médicos não
sistematicamente excluídas do envolvimento di- podem admitir que não sabem o que fazer. Sen-
reto na atividade econômica. Longas horas de tem-se ameaçados e voltam-se para suas habili-
trabalho nas fábricas requeriam padronização dades e treinamento profissionais, mesmo que
na habilidade, velocidade e intensidade na execu- inadequados, e impõem sua visão médica às pes-
ção das tarefas. Muitas das pessoas com impedi- soas com deficiência.
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O campo da reabilitação possui uma estreita Modelos médico e social de deficiência


relação com a questão da deficiência. Segundo na legislação brasileira e políticas públicas
Oliver13, a indústria médica e de reabilitação está
baseada na ideologia da normalidade, o que tem Conceitos e terminologias relacionados à de-
profundas implicações para o acompanhamento ficiência são empregados na legislação brasileira,
das pessoas com deficiência. Sua meta crucial é o influenciando a construção, a aplicação e o de-
retorno à normalidade, seja lá o que isso signifi- senvolvimento de políticas públicas no setor. Es-
que. Quando isso não é possível, tenta-se tornar tas, envolvem atividade e decisão política dos go-
a pessoa com deficiência o mais próxima daquilo vernos, os quais buscam satisfazer as demandas
que é estimado como normalidade. Assim, em que lhe são dirigidas por atores sociais, ou que
nome da ideologia da normalidade, intervenções são originadas pelo próprio sistema político.
cirúrgicas e tratamentos de fisioterapia são sem- O Brasil possui legislação e políticas específi-
pre justificados, não importando quais sejam os cas voltadas à população com deficiência17. No
custos em termos de dor e sofrimento para os entanto, a caracterização da deficiência na legis-
envolvidos nesse processo corretivo. lação brasileira é baseada no modelo médico de
Crow16, no entanto, faz uma crítica em rela- deficiência, pois se relaciona a um diagnóstico
ção aos defensores do modelo social no que con- definido por profissionais de saúde, especialmen-
cerne à centralidade da deficiência na discussão e te da classe médica. Considerando-se o modelo
a exclusão do impedimento da análise, como se social de deficiência, em que a deficiência é um
este fosse neutro, irrelevante, e às vezes até posi- produto das barreiras físicas, organizacionais e
tivo. A autora esclarece que o movimento das atitudinais presentes na sociedade, constata-se
pessoas com deficiência tem uma diferença fun- claramente que o pilar do desenho das políticas
damental em relação a outros movimentos pelos públicas voltadas para a população com deficiên-
direitos civis, com os quais se alinhou, uma vez cia ainda está assentado no modelo médico de
que não há nada intrinsicamente desagradável deficiência. Reforçando as considerações de Oli-
ou penoso nas vivências de outros grupos, quan- ver13, os médicos, chancelados pela legislação vi-
do se compara com a vivência de comprometi- gente, exercem controle sobre aspectos funda-
mento físico, sensorial ou intelectual. Em outras mentais da vida de pessoas com deficiência ao
palavras, os corpos das pessoas com deficiência definir se elas devem ou não trabalhar, que tipo
provocam condições penosas e a luta delas per- de escola devem frequentar, quais serviços e be-
manecerá, mesmo que as barreiras não mais exis- nefícios podem receber.
tam. O impedimento, portanto, pode sim res- Entretanto, percebe-se, na legislação mais re-
tringir atividades de maneira substantiva, possi- cente, que o modelo social de deficiência tem in-
bilidade particularmente problemática para os fluenciado a elaboração de leis e normas e, conse-
defensores do modelo social de deficiência, para quentemente, o desenho das políticas públicas.
os quais a supressão das barreiras representaria Conforme a Convenção sobre os Direitos da Pes-
a superação do desfavorecimento acarretado pela soa com Deficiência, a eliminação de obstáculos e
deficiência. barreiras à acessibilidade possibilita às pessoas
Nesse sentido, são quatro as principais res- com deficiência viver de forma independente e
postas aos impedimentos e à deficiência15: participar plenamente nos diversos domínios da
1. eliminação / fuga: por aborto, esteriliza- existência. O Decreto nº 6.214/200718, que trata
ção, negação de tratamento a bebês com deficiên- do Benefício de Prestação Continuada (BPC),
cia, infanticídio, eutanásia ou suicídio; considera os princípios da CIF para avaliação da
2. manejo: os efeitos difíceis do impedimento deficiência, introduzindo parâmetros ambientais,
são minimizados e incorporados à vida indivi- sociais e pessoais. Há diversas leis, decretos e nor-
dual, sem qualquer mudança significativa no mas que tratam da questão da eliminação de bar-
impedimento; reiras e obstáculos ao meio físico, ao transporte,
3. cura: por meio da intervenção médica; e, à informação e comunicação, a exemplo das Leis
4. prevenção: incluindo vacinação, educação nº 10.048 e n° 10.098, de 2000; Lei nº 10.226/2001,
para saúde e melhoria das condições sociais. Lei nº 10.436/2002 e da Lei nº 11.126/200519.
A adoção dessa nova perspectiva e da absor-
ção dos novos referenciais teóricos na legislação
tem impactado a formulação de políticas públi-
cas para pessoas com deficiência e para o restan-
te da sociedade. A arquitetura e o urbanismo das
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cidades têm sofrido modificações a fim de pro- mento bioético de que, em certos casos, a vida de
mover o acesso das pessoas com deficiência e pessoas com deficiência não deve ser mantida. A
mobilidade reduzida. Os meios de transporte, a eutanásia e o infanticídio têm sido amplamente
comunicação e a informação de massa estão sen- defendidos, especialmente por bioeticistas utili-
do adaptados para garantir a inclusão social desse taristas, nas situações em que a qualidade de vida
segmento. No campo da saúde, têm-se investido de uma pessoa com deficiência é considerada ina-
recursos em reabilitação, órteses e próteses, de- ceitavelmente ruim e restrita. Para essa vertente
senvolvimento de novas tecnologias e em pro- da bioética, o suicídio entre pessoas com defici-
moção de qualidade de vida. Para isso, recursos ência é frequentemente considerado muito mais
públicos e privados têm sido investidos e vários racional do que em pessoas sem deficiência, como
questionamentos têm surgido no tocante à alo- se a lesão ou o impedimento tornasse essa alter-
cação de recursos públicos para o que é conside- nativa óbvia, senão a única opção23.
rada uma minoria. As controvérsias têm se acirrado principal-
mente no contexto de tomada de decisão pela
Bioética e deficiência família, quando pessoas com deficiência solici-
tam a suspensão de tratamento ou quando soli-
A bioética e o movimento pelos direitos das citam ajuda médica para morrer. A tomada de
pessoas com deficiência tornaram-se mais co- decisão sobre a vida das pessoas com deficiência
nhecidos na segunda metade do século passado; geralmente ocorre em três situações23:
ambos surgiram como uma reação a paradig- - pais que devem decidir submeter a trata-
mas dominantes nas profissões de saúde e de mento, ou não, crianças ou menores que terão
assistência. deficiência após a intervenção, mas que poderão
Interessante registrar que à época da formu- morrer sem tratamento;
lação da teoria bioética principialista20 – funda- - futuros pais que precisam ponderar quan-
mentada nos pressupostos básicos de autono- to à criação de uma criança que poderá ter uma
mia, beneficiência, não maleficiência e equidade deficiência, e;
– novos paradigmas também surgiam no cam- - consentir, ou não, sobre algum procedimen-
po da deficiência. Assim, no início dos anos 1970, to de saúde no caso de familiares que não têm
foi criado o primeiro Centro de Vida Indepen- capacidade de decidir por si mesmos.
dente na Universidade da Califórnia, em Berke- No caso de recém-nascidos, o desafio para a
ley, nos Estados Unidos da América (EUA), que bioética emergiu com questões a respeito do tra-
buscava resgatar a autonomia e a independência tamento médico de crianças com graves deficiên-
da pessoa com deficiência, reconhecendo sua ca- cias. Justificativas para a não realização de inter-
pacidade de gerir a própria vida e tomar suas venção têm se concentrado: no sofrimento e na
próprias decisões21. Constata-se, assim, uma con- dor impingidos pelo tratamento e pela própria
fluência entre bioética e deficiência no tocante à deficiência; na convicção de que a tecnologia uti-
valorização da autonomia do indivíduo. lizada manterá vivas crianças que terão uma vida
Segundo Asch22, embora a bioética se asse- curta, dolorosa e miserável; na angústia de pais
melhe ao movimento pelos direitos das pessoas que têm que assistir seu filho morrer e sofrer; no
com deficiência em seu comprometimento com desapontamento de pais que não terão a criança
a autonomia do paciente e no ceticismo quanto saudável que desejavam; e na crença de que os
ao paternalismo profissional, ela nunca aceitou recursos gastos em tais tratamentos deveriam ser
as reivindicações do movimento e dos estudos utilizados de outra maneira22.
mais recentes sobre deficiência em relação à ava- Em razão de seus pontos de vista sobre a vida
liação do impacto da deficiência. Seja na perspec- de pessoas com síndrome de Down, espinha bí-
tiva religiosa ou secular, a bioética sempre tendeu fida, hemofilia e outros impedimentos sensori-
a discutir questões sobre vida e morte baseada ais, cognitivos e físicos, Singer, bioeticista utilita-
na contraposição entre “sacralidade da vida” e rista, foi alvo do furor do movimento das pesso-
“qualidade de vida”. Entretanto, o argumento as com deficiência. Segundo este autor22: “(...)
predominante na bioética é de que a vida huma- tirar a vida de um bebê deficiente não equivale,
na deve ser valorizada e respeitada, mas não ne- moralmente, a tirar a vida de um bebê normal.
cessariamente a qualquer custo e nem em qual- Quase sempre não constitui erro algum”. O au-
quer condição de lesão ou deficiência 22. tor reconhece que, embora as pessoas em tais
O movimento das pessoas com deficiência condições possam vir a ter uma vida satisfatória,
tem manifestado sua indignação com o pensa- os impedimentos necessariamente tornam suas
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vidas menos satisfatórias que as vidas das pes- quanto mais utilidade eles ganham ou produ-
soas que não os têm. Consequentemente, sus- zem a partir de um recurso, maior é sua reivindi-
tenta que é justificável a atitude de pais que prefe- cação sobre esse recurso. Na medida em que a
rem deixar que recém-nascidos nessas condições deficiência reduz a utilidade, a preservação de vi-
morram. Contudo, o autor insiste que, uma vez das de pessoas com deficiência tem menor prio-
que pessoas com deficiência tenham passado de ridade; se a correção da deficiência aumenta a
um ano de idade, elas têm o mesmo direito à utilidade, a intervenção médica torna-se mais
vida de qualquer outra pessoa sem deficiência, prioritária.
desde que tenham racionalidade, autoconsciên- Considerando, portanto, o interesse científi-
cia, senciência e capacidade de diferenciar o pas- co e social da temática discutida anteriormente,
sado do futuro23. realizou-se um estudo descritivo e exploratório
Ativistas dos direitos das pessoas com defici- sobre a percepção de conselheiros e gestores acerca
ência têm uma visão crítica da prática generaliza- da deficiência e das políticas públicas, adotando-
da da realização de diagnóstico pré-natal seguido se como base o debate bioético e a legislação.
de aborto, quando há possibilidade da gestação
resultar em uma criança com deficiência. Segun-
do Saxton24 é irônico que, após tantos ganhos Método
alcançados pelas pessoas com deficiência na legis-
lação (no acesso à educação e ao emprego) e os Participantes
avanços nos campos médico e da reabilitação, as
novas tecnologias genéticas e de reprodução este- A amostra foi composta por dois grupos dis-
jam prometendo eliminar nascimentos de crian- tintos. Para integrar o grupo de conselheiros,
ças com deficiência. Muitos ativistas dos direitos foram convidados membros do Conselho Naci-
das pessoas com deficiência e feministas referem- onal de Direitos da Pessoa com Deficiência (CO-
se ao aborto seletivo como a “nova eugenia”. NADE), órgão colegiado superior criado para
Para Saxton24, há uma diferença-chave em acompanhar e avaliar o desenvolvimento da po-
relação à liberdade reprodutiva entre os objeti- lítica nacional de inclusão da pessoa com defici-
vos dos movimentos pelos direitos reprodutivos ência. De um total de 76 indivíduos, participa-
e das pessoas com deficiência: enquanto o pri- ram 21 conselheiros, sendo que para um inter-
meiro enfatiza o direito de realizar o aborto, o valo de 85% (p = 0,85), o nível de confiança para
segundo busca a garantia pelo direito de não ter esta subamostra foi de aproximadamente 90%.
que realizar o aborto. Os defensores dos direitos O grupo de gestores foi constituído por mem-
das pessoas com deficiência acreditam que mu- bros da carreira de Especialistas em Políticas Pú-
lheres com deficiência devem ter o direito de te- blicas e Gestão Governamental (EPPGG). Trata-
rem filhos e serem mães, e toda mulher tem o se de servidores públicos federais que atuam em
direito de resistir à pressão para abortar quando atividades de formulação, implementação e ava-
existe potencial para o feto ter deficiência. liação de políticas públicas e de direção e assesso-
A qualidade de vida muitas vezes tem sido ramento nos escalões superiores da Administra-
utilizada como parâmetro para definir como os ção Federal direta, autárquica e fundacional. Esta
recursos em saúde devem ser alocados. Contu- subamostra foi composta por 29 gestores, em
do, se a expectativa é auferir o maior benefício um universo populacional de 888 indivíduos.
através da maximização da qualidade de vida, Para um intervalo de 85% (p = 0,85), o nível de
estereótipos sobre como a deficiência diminui a confiança foi de cerca de 90%.
qualidade de vida podem limitar a assistência
recebida pelas pessoas com deficiência. Na opi- Intrumentos
nião de Wasserman25, as implicações da deficiên-
cia para a alocação de recursos, segundo a visão Foram elaborados dois questionários simila-
utilitarista, são bastante controversas em rela- res (versão conselheiro e versão gestor), cada um
ção à tomada de decisão na assistência à saúde. composto por 24 perguntas de múltipla escolha,
Em sua vertente clássica, o utilitarismo avalia o sendo que o primeiro conjunto de questões le-
valor das vidas pelo prazer, felicidade ou satisfa- vantava dados pessoais do participante e o se-
ção que elas usufruem, e julga entre as vidas pelo gundo apresentava afirmações às quais o respon-
seu impacto na soma de prazer, felicidade ou sa- dente deveria assinalar se concordava, concorda-
tisfação no mundo. Indivíduos importam ape- va parcialmente ou se discordava. Exemplos de
nas como portadores e produtores de utilidade: algumas afirmações: “As pessoas com deficiência
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não estão plenamente aptas a tomarem decisões ção (completa ou incompleta); e 9,5% (n = 2)
sozinhas, e por isso devem ser auxiliadas por fa- cursou o ensino médio (completo ou incomple-
miliares, médicos e outros profissionais na to- to). No que se refere à renda mensal, 47,6% (n =
mada de decisão”; “Como há grande possibilida- 10) relatou ter mais de 10 salários mínimos;
de da qualidade de vida de uma pessoa com defi- 28,6% (n = 6) entre um e seis salários mínimos; e
ciência grave ser muito ruim, o aborto de fetos 23,8% (n = 5) entre seis e 10 salários mínimos.
com graves deficiências deveria ser legalmente per- A subamostra de gestores foi integrada por
mitido”; “Para aquelas pessoas com deficiências 65,5 % (n = 19) participantes do sexo masculino
muito graves, que são conscientes, vivem no leito e 34,5% (n = 10) do sexo feminino. Em relação
e são totalmente dependentes de outras pessoas, ao estado civil, 75,9% (n = 22) informou estar
deveria ser dado o direito legal de decidirem se casado; 20,7% assinalou ‘solteiro’ (n = 6); e 3,4%
querem ou não continuar vivendo”. ‘divorciado ou separado’ (n = 1). Todos os gesto-
res comunicaram possuir nível superior comple-
Procedimentos de coleta to e renda superior a 10 salários mínimos.
e análise de dados Doze conselheiros (57%) afirmaram ter defi-
ciência: 25% (n = 3) tinham deficiência auditiva,
A investigação foi previamente autorizada 50% (n = 6) deficiência física ou motora e 25% (n
pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade = 3) deficiência visual; 91,7% (n = 11) afirmaram
de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. ter deficiência há mais de cinco anos. Um partici-
O convite foi feito pessoalmente pela pesquisa- pante não respondeu a essa questão; 25% (n = 3)
dora responsável durante uma reunião do CO- declararam deficiência leve; 33,3% (n = 4) defici-
NADE. Após a leitura e assinatura do Termo de ência moderada; e 41,7% (n = 5) deficiência gra-
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aque- ve. Merece destaque que apenas um gestor decla-
les conselheiros que desejaram, preencheram o rou ter deficiência física ou motora moderada há
questionário. Adicionalmente, para os ausentes mais de cinco anos. Os demais gestores não assi-
naquela reunião, enviaram-se o TCLE e o ques- nalaram este item do questionário.
tionário em formato digital via correspondência
eletrônica. Nesta condição, cada participante Percepção sobre deficiência
manifestou sua concordância após a leitura des- e políticas públicas
se documento e assinalando um “x” no campo
correspondente para tal finalidade. Este procedi- Conforme ilustra o Gráfico 1, 81% (n = 17)
mento também foi empregado com os gestores dos conselheiros discordaram da afirmação de
governamentais. Os participantes enviaram o que a deficiência é uma questão pessoal, circuns-
TCLE e os questionários devidamente preenchi- crita à própria pessoa e à sua família. Ao que
dos para o e-mail da pesquisadora. Os dados parece, para esse grupo, a deficiência deve ser
foram organizados, agrupados e analisados com compreendida como um assunto a ser compar-
auxílio das técnicas de distribuição de frequência tilhado em sociedade. Já entre os gestores, o per-
e cruzamento de tabelas. Para análise estatística, centual dos que discordaram desta afirmação foi
recorreu-se a uma planilha eletrônica, sendo os relativamente menor. Constata-se, ainda, que
resultados apresentados, sempre que útil, na sua 44,8% dos gestores assinalaram que concordam,
perspectiva percentual. completa ou parcialmente, que a deficiência é

Resultados e discussão

Caracterização sociodemográfica
Gestores 6,9 37,9 55,2
O grupo de conselheiros reuniu 66,7% (n =
14) participantes do sexo masculino e 33,3% (n Conselheiros 4,8 14,2 81
= 7) do sexo feminino; 66,7% (n = 14) informou
ser casado ou viver com companheiro, 19% (n = 0% 20% 40% 60% 80% 100%
4) comunicou ser solteiro, 14,3% (n = 3) divorci-
Concordo Concordo parcialmente Discordo
ado ou separado. Quanto à escolaridade, 52,4%
(n = 11) alcançou o ensino superior (completo
ou incompleto); 38,1% (n = 8) fez pós-gradua- Gráfico 1. Deficiência como questão pessoal
2442
Bernardes LCG, Araújo TCCF

uma tragédia pessoal. Em contraposição, ape- ampliar à acessibilidade de pessoas com deficiên-
nas 19% dos conselheiros manifestaram-se de cia em locais públicos, mesmo que os recursos
modo semelhante. É possível supor que tal visão disponíveis não sejam suficientes para atender às
diferenciada reflete perspectivas diferentes em re- necessidades básicas da maioria da população.
lação à alocação dos recursos públicos. Entre os gestores, esse percentual foi de 41,4%
Vale salientar que o percentual de indivíduos (Gráfico 2). Aparentemente, a percepção dos con-
que discordou da afirmação de que pessoas com selheiros revela uma concepção de que políticas
deficiência não estão aptas a tomarem decisões públicas devem alocar recursos para minorias,
sozinhas foi maior entre gestores (75,9%) do que mesmo que exista escassez de recursos orçamen-
entre conselheiros (47,5%). Isto suscita questio- tários. Em oposição, boa parte dos gestores pa-
namentos a respeito da maneira como os conse- rece corroborar a perspectiva utilitarista, de que
lheiros percebem a autonomia dos que têm defi- a tomada de decisão no campo público e coletivo
ciência. Haveria uma visão paternalista por par- deve priorizar o maior número de pessoas, du-
te dos defensores de direitos desse segmento? Ou rante o maior intervalo de tempo possível e com
a vivência da deficiência pelos conselheiros os le- as melhores consequências, mesmo que isso gere
vou a considerar que as pessoas com deficiência prejuízo para grupos minoritários.
necessitam de auxílio para a tomada de decisão? Porém, em ambos os grupos, foram encon-
Quanto à satisfação com a vida, mais da me- trados altos percentuais (95,2% e 93,1%, respec-
tade dos conselheiros concordou, ou concordou tivamente entre conselheiros e gestores) de dis-
parcialmente, que a vida das pessoas sem defici- cordância quanto à afirmação de que se deve in-
ência é mais satisfatória porque elas não enfren- vestir mais recursos para atendimento às neces-
tam barreiras em sua participação na sociedade. sidades de pessoas sem deficiência porque elas
Percentual semelhante foi encontrado entre os podem ser mais produtivas. Sendo assim, a
gestores. É interessante explicitar que, notadamen- amostra dessa pesquisa parece avaliar que pes-
te na opinião dos conselheiros, as barreiras à par- soas com deficiência podem ser tão produtivas
ticipação na sociedade podem ser um fator rele- quanto pessoas sem deficiência.
vante para a obtenção de uma vida satisfatória. Em relação à legalização do aborto de fetos
Conforme discutido anteriormente, na perspec- com graves deficiências, em razão de uma possível
tiva utilitarista, a qualidade de vida tem sido utili- qualidade de vida ruim, a maioria dos conselhei-
zada como critério para definir alocação de re- ros (57,2%) é contrária (Gráfico 3). Mas, soman-
cursos, e, em geral, considera-se que as pessoas do-se os que concordam com aqueles que concor-
com deficiência possuem pior qualidade de vida dam parcialmente, o percentual é de 38%, o que
que as pessoas sem deficiência23. O que se pode conduz à suposição de que a baixa qualidade de
inferir das respostas dos conselheiros é que a vida vida experimentada por aqueles que têm deficiên-
satisfatória de uma pessoa com deficiência está cia em nosso país é relevante nessa discussão.
diretamente relacionada à eliminação de barrei- Quando se trata de conceder o direito legal
ras à sua participação na sociedade. para adultos (com deficiência muito graves) de
Mais de 75% dos conselheiros concordam que decidirem se querem ou não continuar vivendo,
recursos públicos devem ser utilizados para rea- a maioria dos conselheiros discorda da afirma-
lizar as adaptações necessárias para favorecer e

27,6 31 41,4
41,4 51,7 3,4123,4 Gestores
12
Gestores 12
76,2 18 57,2 12
4,8
12
Conselheiros 12
76,2 23,8 12
12
Conselheiros
0% 20% 40% 60% 80% 100%
0% 20% 40% 60% 80% 100%
Concordo 123Concordo parcialmente
123
Concordo Concordo parcialmente Discordo 123Não responderam
123
123
Discordo 123Não responderam

Gráfico 3. Legalização do aborto de fetos com


Gráfico 2. Adequação de locais públicos deficiências graves
2443

Ciência & Saúde Coletiva, 17(9):2435-2445, 2012


ção (52,4%), destacando que quase 29% concor- Considerações finais
da e cerca de 19% concorda parcialmente (Gráfi-
co 4). Diferentemente, entre os gestores, 55,2% O presente estudo destacou o atual distanciamento
concordam com a eutanásia por pessoas com entre bioeticistas, gestores e defensores dos direi-
graves deficiências. tos das pessoas com deficiência no que tange à
No que diz respeito a questões envolvendo a compreensão da realidade da deficiência no con-
terminalidade da vida, seja em fetos, recém nas- texto social, apesar da sua base em comum na
cidos e adultos com deficiência, a maioria dos Bioética, inicialmente alicerçada na década de
conselheiros é contrária. Tal atitude corrobora a 1970.
posição de estudiosos da deficiência22,24, ao ad- No Brasil, a preponderância do modelo mé-
mitir que a vivência da deficiência, ou a convivên- dico de deficiência, comparativamente ao norte-
cia com pessoas com deficiência, é fundamental amento pelo modelo social, foi discutida por meio
para se avaliar a qualidade e a satisfação com a da análise da legislação e das políticas públicas.
vida experimentada por elas. Todavia, internacionalmente, evidencia-se uma
De acordo com Asch22 e Saxton24, é necessá- mudança de paradigma, cujas tendências e re-
ria uma aproximação entre bioeticistas, estudio- percussões já podem ser constatadas em nosso
sos e defensores dos direitos das pessoas, pois a país, ao se focalizar a evolução da legislação e o
vivência e o conhecimento da experiência do vi- desenho de políticas públicas mais inclusivas.
ver com deficiência é fundamental para uma re- Também foram apontadas, neste estudo, al-
flexão bioética coerente acerca dos dilemas que gumas controvérsias entre bioeticistas e o movi-
perpassam a existência das pessoas com defici- mento das pessoas com deficiência. Muitas vezes,
ência. Grande parte dos debates na esfera da Bi- na perspectiva da bioética utilitarista, a qualida-
oética tem sido afetada pelo preconceito e por de de vida das pessoas com deficiência tem sido
uma visão negativa da qualidade de vida das pes- considerada inferior à vida das pessoas sem defi-
soas com deficiência. Os argumentos favoráveis ciência. No entanto, os defensores de direitos
à terminalidade da vida de fetos, recém-nascidos questionam o parâmetro utilizado pela corrente
ou adultos com deficiência, adotados pelos bioe- utilitarista para definir o valor e a utilidade da
ticistas que se baseiam na crença de que a vida vida de pessoas com deficiência, pois conside-
das pessoas com deficiência é uma vida miserá- ram que tais convicções estão embasadas em fal-
vel, merecem ser rediscutidos. Tanto estudiosos, sos pressupostos. Ou seja, questionam se uma
quanto defensores dos direitos das pessoas com existência com deficiência é necessariamente mi-
deficiência questionam o critério da baixa quali- serável, em razão da própria deficiência, ou se as
dade de vida como uma realidade. Recomendam- limitações enfrentadas são um reflexo de uma
se, inclusive, investigações que avaliem mais cla- sociedade pouco inclusiva.
ramente e extensamente a qualidade de vida nes- De maneira geral, o que se depreende das res-
te segmento da população, considerando-se o postas obtidas junto aos defensores de direitos
acesso aos recursos atuais de promoção e ampli- das pessoas com deficiência é que vivenciar a defi-
ação de bem-estar e desenvolvimento pessoal no ciência é essencial para a compreensão desta no
espaço social e no ambiente físico. contexto social e seu impacto para a satisfação
com a vida. Os dilemas bioéticos que envolvem
essas pessoas precisam ser analisados também a
partir da perspectiva daqueles que a experienciam
em suas relações sócio-afetivas no cotidiano. Su-
gere-se, ainda, a condução de mais estudos apoi-
ados nos aportes teorico-conceituais da bioética.
Quanto aos gestores governamentais, perce-
Gestores 55,2 24,1 20,7 be-se que, para alguns temas investigados, a per-
cepção de dilemas bioéticos é similar ao pensa-
Conselheiros 28,6 19 52,4 mento dos defensores de direitos. No entanto,
especialmente no que se refere à alocação de re-
0% 20% 40% 60% 80% 100% cursos, os gestores distinguem-se dos defenso-
res de direitos. As respostas dos defensores de
Concordo Concordo parcialmente Discordo
direitos estão mais alinhadas à perspectiva de
proteção de grupos vulneráveis e minorias; ao
Gráfico 4. Direito legal de praticar eutanásia passo que as respostas dos gestores apontam
2444
Bernardes LCG, Araújo TCCF

para uma alocação de recursos embasada na pers-


pectiva utilitarista, que se aproxima do que pre-
conizam muitos bioeticistas.
Em síntese, é mister melhor considerar a defi-
ciência – à luz da realidade social, mais do que do
ponto de vista médico – visando, assim, a cons-
trução progressiva de políticas públicas mais jus-
tas, efetivas e eficazes.

Colaboradores Referências

LCG Bernardes participou na concepção, elabo- 1. Altman BM. Disability definitions, models, classifi-
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Artigo apresentado em 31/05/2011


Aprovado em 05/07/2011
Versão final apresentada em 29/07/2011

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