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08572015 843
Abstract This essay discusses the possibilities Resumo Trata-se de ensaio que discute possibi-
of conceptual and practical connections between lidades de conexões conceituais e práticas entre as
the ideas of line of care and therapeutic itinerar- noções de linha do cuidado e de itinerários tera-
ies, beginning with the theoretical contributions pêuticos, a partir dos aportes teóricos que emba-
that lay the foundations for the Line of Integrated sam a Linha do Cuidado Integral em Saúde e das
Healthcare and the hermeneutic approaches to abordagens hermenêuticas sobre o Cuidado. Vis-
Care. The implementation of lines of care tuned lumbra-se a implementação de linhas do cuidado
to individual and collective health needs can be afinadas com as necessidades de saúde – individu-
glimpsed in the construction of therapeutic proj- ais e coletivas – a partir da construção de projetos
ects, inasmuch as they privilege the particulari- terapêuticos, na medida em que privilegiam as
ties of each situation in the agreement of flows of particularidades de cada situação na pactuação
appointments, exams, and other procedures. The de fluxos de consultas, exames e demais procedi-
therapeutic project – taken as an arrangement, mentos. O projeto terapêutico, tomado como ar-
strategy, device, or basic dimension of Care in the ranjo, estratégia, dispositivo ou dimensão basilar
work process in health - can be seen as an image do Cuidado no processo de trabalho em saúde,
that lays out a possibility of the future, which in pode ser concebido como imagem que desenha
turn is a projection conditioned by past experienc- uma possibilidade de futuro, este, por sua vez,
es of health, illness, and life. From the criticism of uma projeção condicionada por experiências pré-
explanatory models, preponderant in the studies vias – de saúde, de doença, de vida. Da crítica aos
of therapeutic itineraries, we defend the invest- modelos explicativos, pregnantes nos estudos sobre
ment in approaches that privilege interpretation itinerários terapêuticos, defende-se o investimento
and understanding, capable of recuperating, em abordagens que privilegiam a interpretação e
contextualizing, and reconstructing trajectories, a compreensão, capazes de recuperar, contextuali-
1
Instituto de Estudos beginning with the subjects involved in the care zar e reconstruir as trajetórias, a partir dos sujei-
em Saúde Coletiva, process. tos implicados no processo do cuidado.
Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Avenida
Key words Health, Line of care, Therapeutic itin- Palavras-chave Saúde, Linha do cuidado, Itine-
Horácio Macedo S/N, Ilha eraries, Therapeutic projects rários terapêuticos, Projetos terapêuticos
do Fundão. 21941-598 Rio
de Janeiro RJ Brasil. neks@
iesc.ufrj.br
2
Universidade Federal de
São Carlos.
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Silva NEK et al.
rechaçado por aqueles que acreditam em uma Em um hospital público, referência nacional
supremacia do critério “técnico” em relação a para dada especialidade, em um município de
outras racionalidades, nas decisões sobre a saúde. grande porte, a fila de espera para cirurgia abri-
Ainda que respeitadas todas as posições, há ga centenas de pacientes, que chegam a aguardar
que se concordar que a apreensão da concepção até quatro anos para a sua realização. Antes de
de linha do cuidado como sinônimo de fluxo- chegar a essa fila de espera, essas pessoas já pere-
grama envolvendo exclusivamente os serviços de grinaram em outros serviços de saúde, não raro,
saúde parece nem corresponder e nem atender às por igual período de tempo, entre agendamen-
demandas e expectativas das pessoas, diante de tos, consultas e exames. Soma-se a esse contex-
suas necessidades de saúde e contextos de vida. to o fato de que ao dar entrada nesse hospital,
A incorporação da construção de projetos te- o paciente reinicia todo o processo diagnóstico,
rapêuticos, nos processos de trabalho em saúde, refazendo exames e avaliações médicas, desconsi-
parece ser uma fecunda proposta que permite derando-se tudo o que foi realizado “lá fora”. Não
incorporar e valorizar as particularidades dos obstante a demora, muitas pessoas preferem pas-
sujeitos no modo como lidam com as diferentes sar por todo esse processo e serem operadas nesse
situações envolvendo sua saúde e a doença, e não hospital de referência do que em qualquer outro,
apenas atuar sob a forma de prescrições protoco- no mesmo município e com maior brevidade.
ladas e pouco sensíveis a essas particularidades. Em outro hospital público, no mesmo mu-
Tanto os fluxogramas quanto os protocolos nicípio, outrora referência para determinada
de atenção à saúde têm sua função e importância, patologia, a situação atual é de franca e visível es-
mas tornam-se obstáculos a essa atenção quando cassez de recursos humanos e materiais, além do
não são suficientemente claros ou permeáveis às sucateamento de suas instalações físicas. Aliado
diferentes lógicas que perpassam o processo de a esse quadro, o hospital fica localizado em lugar
cuidado à saúde. Não se quer com isso, como isolado, de difícil acesso por transporte público.
equivocadamente costumam ser interpretadas Outros hospitais do município também prestam
as proposições dessa natureza, instaurar uma o mesmo atendimento, talvez com melhores con-
ditadura de atendimento a singularidades, que dições em relação às instalações físicas e aos re-
inviabilizaria o trabalho institucional e coletivo. cursos disponíveis, inclusive quanto ao número
O que se pretende ao enfatizar a importância da de profissionais. Não obstante tal panorama, os
dinâmica do projeto terapêutico é não fazer dos pacientes não abrem mão do vínculo com esse
fluxos e protocolos um escudo contra as possibi- serviço, recusando-se a serem atendidos em ou-
lidades de diálogo e de responsabilização das di- tro local.
ferentes instâncias e profissionais do setor saúde. Exemplos semelhantes a esses, que serão re-
Seja concebida como tecnologia leve14,15 ou tomados adiante, podem ser encontrados em
como sabedoria prática21, um dos grandes desa- todos os níveis de atenção à saúde, sugerindo a
fios da assistência à saúde é justamente essa di- complexidade do processo envolvendo a deman-
mensão “não padronizável” da atenção, que re- da e a oferta de serviços de saúde. Ainda que, em
quer a presença e interação efetiva dos sujeitos um primeiro momento, possa se suspeitar que o
envolvidos no ato assistencial, criando proposi- principal critério utilizado pelas pessoas na esco-
ções que ultrapassem as finalidades estritamente lha de um serviço de saúde seja a confiança no
técnicas – estandardizadas e reproduzíveis – do corpo técnico do hospital ou o renome da ins-
trabalho em saúde. tituição, nem sempre essa é tônica que mobiliza
Paralelamente ao caminho traçado no siste- suas decisões.
ma de saúde ou mesmo em cada um dos pontos No primeiro caso, poderia se inferir a disse-
de atenção à saúde, convivem pessoas e contex- minação e consideração de experiências bem-su-
tos, mutuamente implicados, que conformam di- cedidas nesse hospital e/ou de experiências mal-
ferentes expectativas, recursos, redes sociais e fa- sucedidas em outros e/ou a “fama” da instituição
miliares, valores e decisões que nem sempre cor- diante da opinião pública. No outro exemplo, a
respondem à lógica desenhada pelo sistema de rede de solidariedade e os vínculos afetivos entre
saúde. Tomemos como exemplo duas situações os próprios pacientes, e desses com os profissio-
concretas, em dois serviços de saúde, captadas a nais, poderia justificar a escolha por aquele servi-
partir da observação e de depoimentos apreendi- ço, que, contrastando com o caso anterior, dispõe
dos no desenvolvimento de uma disciplina teóri- de escassos recursos tecnológicos e infraestru-
co-prática, de um curso de graduação na área da tura para o atendimento. Entretanto, apegar-se
saúde, coordenada por um dos autores. apenas a essas hipóteses seria um modo muito
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Ainda que não se vislumbre questionar ou gerir o olhar ampliado por parte dos profissionais
fazer objeções à expectativa de aplicação do co- de saúde sobre o universo cultural dos usuários
nhecimento sobre os itinerários terapêuticos, de forma a adequar práticas e a atingir resultados
problematiza-se as apreensões fragmentadas, que terapêuticos mais efetivos”23. (grifo nosso)
tomam conhecimento e aplicação como ações Se, por um lado, a ampliação de uma lógica
distintas do processo. estritamente biomédica das práticas de saúde
abre-se a outras perspectivas de cunho socio-
Itinerários terapêuticos: entre a aplicação cultural, por outro, é notória a relação instru-
e a compreensão. De volta aos projetos mental que se estabelece entre o conhecimento
terapêuticos e sua aplicação prática. Em outras palavras, essa
apreensão de que diferentes concepções sobre a
Em 2008, na revisão de produção científica23 doença e/ou diferentes contextos sociais levam
versando sobre itinerário terapêutico, por insufi- as pessoas a construírem diferentes percursos na
ciência de referências literais com essa designa- busca de cuidados e que essas informações po-
ção, a busca foi ampliada para termos correlatos dem subsidiar a ação dos profissionais perpassam
que remetessem ao seu significado. Após a apli- duas ações distintas e não necessariamente inter-
cação de filtros que excluíram, por exemplo, os cambiáveis: 1) conhecer os itinerários e 2) subsi-
estudos que abordavam exclusivamente a percep- diar e traçar ações baseadas nesse conhecimento.
ção dos pacientes sobre suas doenças, tal revisão Ao postular possibilidades de articulação en-
resultou em 11 referências. tre linhas do cuidado e itinerários terapêuticos,
Os autores do referido estudo indicaram que pode-se inferir mera sequência de acontecimen-
o núcleo de interesse dos trabalhos sobre itinerá- tos, interligados por relação de causalidade, ou
rios terapêuticos no Brasil tem sido o compor- seja, a explicação dos itinerários teria a capacida-
tamento/percepção dos pacientes ou familiares de de levar os profissionais de saúde a reagirem,
sobre sua doença ou tratamento, buscando con- seja acomodando-se às necessidades dos pacien-
siderar a multiplicidade de práticas implicadas tes, seja identificando a necessidade de fomentar
nesse processo. Foram também resgatadas as o uso correto ou desejável da rede de serviços e
possibilidades de articulação entre o conheci- de atenção à saúde.
mento acerca dos itinerários terapêuticos e a Defende-se que é possível explorar a fecun-
gestão do cuidado em saúde, seja na organização didade do conhecimento dos itinerários tera-
dos serviços, nas interações entre profissionais e pêuticos, qualificando a construção de linhas do
pacientes ou mesmo no acesso à atenção à saúde. cuidado, sem necessariamente estabelecer essa
Em busca recente, de maio de 2014, recor- relação de causalidade. Para tanto, é preciso, ini-
rendo diretamente aos descritores itinerários cialmente, perscrutar como se constrói o conhe-
and terapêuticos and saúde, na base da Biblioteca cimento sobre os itinerários terapêuticos para,
Virtual em Saúde, foram encontrados 60 títulos, então, indagar sobre o seu sentido prático.
indicando um significativo incremento na uti- O resgate do trabalho de Alves e Souza22
lização desse termo como referência para os es- ainda nos situa em relação a essa tarefa de apro-
tudos sobre percurso dos usuários na busca de fundamento do conhecimento sobre itinerários
solução para os seus problemas de saúde seja, ou terapêuticos, a partir da literatura socioantro-
não, pelo sistema formal de saúde. pológica, perpassando abordagens sistêmicas e
A partir da ênfase na percepção dos doentes fenomenológicas. Os mesmos autores discorrem
sobre suas doenças e quais dispositivos acionam sobre o processo de interpretação que permeia os
para seu enfrentamento, os estudos sobre itine- estudos sobre itinerários terapêuticos, marcada-
rários terapêuticos têm buscado propiciar uma mente de cunho explicativo, cujo campo para-
apreensão ampliada acerca de condicionantes digmático é proveniente das ciências naturais e
culturais nas práticas de saúde. Destaca-se que a matemáticas:
essa apreensão segue-se a expectativa de que esse A lógica explicativa baseia-se na busca de uma
conhecimento possa instrumentalizar a ação dos regularidade, de uma suposta ordem. É por inter-
profissionais, como se depreende na frase dos ci- médio de enunciados, tomados como universais,
tados autores: que o investigador estrutura o seu argumento lógico
“[os estudos sobre itinerários terapêuticos] para entender a multiplicidade das ações sociais22.
têm como objetivos, entre outros, conhecer os Ao alertarem para a lógica presente no pro-
dispositivos de cuidados acionados pelo paciente cesso de explicação, chamam a atenção para a
e pela família no enfrentamento da doença e su- inconsistência epistemológica de se reduzir a
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dos em cada uma das posições dos usuários dos Certamente, esse não é o caminho mais fácil
hospitais, e a partir desse mote é possível contex- para se conhecer os fluxos dos usuários na busca
tualizar e compreender as motivações e aspira- de cuidado à saúde e de construir propostas de
ções não apenas dos usuários, mas dos sujeitos e cuidado à população. É um desafio permanente
instituições envolvidos, em interação. à Saúde Coletiva, de um fazer que não deve ser
A articulação entre itinerários terapêuticos moldado apenas segundo normatizações ou pro-
e linhas do cuidado não se dará iminentemente tocolos genéricos e verticalizados nem tampouco
pela via técnica ou instrumental, mas na medida se submeter arbitrariamente aos apelos “emocio-
em que as dimensões discursivas, ético-políticas, nais” de cada caso, ou seja, é um convite a todos
forem ativamente incorporadas tanto na inter- nós, usuários, profissionais de saúde, gestores
pretação dos itinerários quanto no modo como para a inovação e valorização das experiências
são apreendidos na construção dos projetos tera- que tenham o Cuidado como fim; e como ponto
pêuticos, promovendo encontros entre indivídu- de partida.
os – usuários dos serviços, profissionais de saúde
e gestores.
Colaboradores
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www.saude.rs.gov.br/upload/1337000728_Linha%20 Artigo apresentado em 08/03/2015
cuidado%20integral%20conceito%20como%20fazer. Aprovado em 27/06/2015
pdf Versão final apresentada em 29/06/2015