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FILOSOFIA, ENSINO

E EDUCAÇÃO:
uma abordagem
interdisciplinar
Edna Maria Magalhães do Nascimento
Conceição de Maria Sousa Araújo
Organização

FILOSOFIA, ENSINO
E EDUCAÇÃO:
uma abordagem
interdisciplinar

2019
Reitor
Prof. Dr. José Arimatéia Dantas Lopes

Vice-Reitora
Profª. Drª. Nadir do Nascimento Nogueira

Superintendente de Comunicação
Profª. Drª. Jacqueline Lima Dourado

FILOSOFIA, ENSINO E EDUCAÇÃO: uma abordagem interdisciplinar

© Edna Maria Magalhães do Nascimento • Conceição de Maria Sousa Araújo

1ª edição: 2019

Revisão
Francisco Antonio Machado Araujo

Editoração
Francisco Antonio Machado Araujo

Diagramação
Wellington Silva

Capa
Mediação Acadêmica

Editor
Ricardo Alaggio Ribeiro

EDUFPI – Conselho Editorial


Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente)
Acácio Salvador Veras e Silva
Antonio Fonseca dos Santos Neto
Wilson Seraine da Silva Filho
Gustavo Fortes Said
Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz
Viriato Campelo

Ficha Catalográfica elaborada de acordo com os padrões estabelecidos no


Código de Catalogação Anglo-Americano (AACR2)

F488 Filosofia, ensino e educação: uma abordagem interdisciplinar / Edna


Maria Magalhães do Nascimento, Conceição de Maria Sousa Araújo,
organizadoras. – Teresina: EDUFPI, 2019. 53 módulos

E-Book.

ISBN: 978-85-509-0498-6

1. Filosofia. 2. Ensino de Filosofia. 3. Prática Pedagógica. I.


Nascimento, Edna Maria Magalhães do (Org.).  II. Araújo, Conceição
de Maria Sousa (Org.).  III. Título.

CDD: 107

Bibliotecária Responsável:
Nayla Kedma de Carvalho Santos CRB 3ª Região/1188
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Edna Maria Magalhães do Nascimento 9
Conceição de Maria Sousa Araújo

PREFÁCIO
Cassio Eduardo Soares Miranda 19
EDUCAÇÃO ÉTICA PARA A BOA VIDA
Susana de Castro
25
A OPINIÃO, A FILOSOFIA E
O ENSINO DE FILOSOFIA 35
Francisca Alaíne Pinheiro
Edna Maria Magalhães do Nascimento

ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA NUMA


PERSPECTIVA ÉTICA: UMA PROPOSTA 67
DE INTERVENÇÃO
Conceição de Maria Sousa Araújo

CONSTRUINDO VALORES ÉTICOS NA ESCOLA: A


PARTIR DA PRÁTICA DO DEBATE FILOSÓFICO 83
Conceição Maria Sousa Araújo
Pablo Andrey da Silva Santana

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O “NÓ


DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS” 95
Jéssica de Souza Lima

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS:


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA 127
Alex de Mesquita Marinho
O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA
METODOLOGIA PARA CONSTRUÇÃO DAS
DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA NO 161
ENSINO MÉDIO
Patrício Oliveira Lima

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES


PARA O ENSINO DE FILOSOFIA EM
ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO 175
Maria Genilda Marques Cardoso
Walter Pinheiro Barbosa Junior

O ENTENDIMENTO E A SIGNIFICAÇÃO DOS


CONCEITOS FILOSÓFICOS A PARTIR DA 199
SENSIBILIDADE DOS RECURSOS IMAGÉTICOS
Loise Ana de Lima

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA:


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA 209
Leônidas da Silva Elva de Sá

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA


E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE SUBALTERNA
NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
225
Vagner Marcos Costa Lima

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A


IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS TRANSDISCIPLINARES
PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 241
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
Maria Sueli Lopes da Silva

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO


FUNDAMENTO DA EPISTEMOLOGIA 265
NATURALISTA DE JOHN DEWEY
Maurozan Soares Teixeira

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR 289
Jaciara Ribeiro da silva Cardoso
Edna Maria Magalhães do Nascimento
CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE
SIGNO SEMIÓTICO NA FILOSOFIA DE 307
CHARLES SANDERS PEIRCE
Teônia Mikaelly Pereira

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE:


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO 323
Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima

SOBRE OS AUTORES 345


APRESENTAÇÃO

E
ste livro, na forma de coletânea, reúne trabalhos e
pesquisas desenvolvidos através do Núcleo de Pesquisas
em Filosofia da Educação e Pragmatismo – NEFEP/UFPI,
trabalhos estes produzidos por pesquisadores egressos do Programa
de Pós-graduação em Filosofia – PPGFIL e do Programa de Mestrado
Profissional em Filosofia – PROF-FILO, ambos da Universidade
Federal do Piauí, além de alguns estudos de Iniciação Científica
desta instituição. O livro também conta com a colaboração de
professores de outras universidades (UFRJ e UFRN). Neste esforço
de sistematização e produção de conhecimentos, a publicação tem
por objetivo aprofundar alguns temas relativos à filosofia e seu
ensino, à educação e a filosofia a partir de múltiplas perspectivas,
respondendo a algumas demandas urgentes de fundamentação da
prática do ensino de filosofia e suas estratégias político-pedagógica.
A escolha dos artigos norteou-se por três constatações.
A primeira, foi o fato da filosofia continuar sendo objeto de
questionamentos sobre sua existência ou presença enquanto atividade
de ensino. Apoiando-se nos dizeres de Karl Jaspers, “seja a filosofia
o que for está presente em nosso mundo e a ele necessariamente se
refere”. E ainda, “A opinião corrente é que a filosofia nada tem a
dizer e carece de utilidade prática”. São muitas as fórmulas usadas
para a negação da filosofia, que se traduzem em expressões como: a
filosofia é demasiadamente complexa; não está ao nosso alcance; não

APRESENTAÇÃO 9
a compreendemos; não é necessária enquanto conteúdo formativo,
dentre outras. Em outros termos, se quer afirmar a sua inutilidade.
É como se houvesse um instinto vital que odeia a filosofia, e sendo
assim este saber se vê rodeado de inimigos. Os artigos deste livro
não são apologias filosóficas, são reflexões sobre o papel deste saber
para a construção do pensamento crítico, da autonomia intelectual,
da ideia de comunidade livre e participativa movida pelo desejo da
verdade.
A segunda constatação foi a de que as teorias filosóficas
não devem continuar restritas a uma espécie de saber hermético,
especulativo, segundo o qual torna-se inacessível a muitas pessoas.
Não obstante o rigor conceitual da filosofia, há o desejo de uma
filosofia da ação. Uma filosofia que atenda, conforme Rorty, ao
desejo de esperança e solidariedade, a filosofia que exista a partir de
um olhar pragmático, não mais fundamentado epistemologicamente,
mas antes, a partir da contingência e da prática social.
A terceira constatação envolve o fazer filosófico como atividade
de ensino e as dificuldades que os docentes de filosofia enfrentam
diante dos desafios de ensinar a filosofar num contexto marcado
pelo utilitarismo, os convencionalismos, o hábito de considerar o
bem-estar material como razão suficiente da vida, ou de apreciar
somente o saber das ciências e sua utilidade técnica.
Portanto, tendo em vista estas constatações apresentamos os
seguintes trabalhos:
O primeiro artigo foi intitulado “Educação Ética para a Boa
Vida”, de autoria da filósofa Susana de Castro (UFRJ). Neste artigo a
autora discute a necessidade de uma educação para uma vida feliz. Ela
retoma a filosofia clássica para afirmar que antes da modernidade, a
filosofia era um modo de vida e os filósofos eram sábios responsáveis
por dar aconselhamentos práticos aos jovens e aos adultos. A
filosofia era prática, íntima e comunal, englobava elementos éticos,
psicológicos e políticos. Hoje os estudantes universitários de filosofia
aprendem teorias e são testados em tais teorias. Entretanto, muitos
não estão atentos em saber qual a validade dos conhecimentos
adquiridos para suas vidas.

10  Edna Maria Magalhães do Nascimento • Conceição de Maria Sousa Araújo


O segundo artigo foi nomeado de “A opinião, a filosofia e
o ensino de filosofia”, de Francisca Alaíne Pinheiro (UFPI) e Edna
Maria Magalhães do Nascimento (UFPI). Nele as autoras observam
o quanto as opiniões vigentes sobre a filosofia, produzem uma
representação negativa acerca dessa área de conhecimento, que
interfere na recepção dos discentes acerca da mesma. O artigo parte
de uma concepção de filosofia que adota a perspectiva socrático-
platônica de “busca amorosa do saber” cuja natureza é a discussão
de problemas e questões da experiência humana (opiniões) que,
submetida ao exercício da razão e do diálogo (dialética) propicie um
conhecimento que amplie e/ou fundamente as opiniões (quando
consideradas verdadeiras) ou as supere (quando consideradas
falsas). Desse modo, a finalidade do artigo, foi entender como as
opiniões sobre a filosofia, presentes no senso comum, compõem
uma representação social acerca deste ensino para o currículo do
ensino médio e que impactam em sua real efetivação.
O terceiro artigo discute o papel da ética nas aulas de filosofia
e foi intitulado de “Ensinar e aprender filosofia numa perspectiva
ética: uma proposta de intervenção”, de autoria de Conceição de
Maria Sousa Araújo (UFPI). Neste trabalho a autora se comprometeu
em verificar a aplicação dos conteúdos relacionados aos valores
éticos e morais presentes na escola, para indagar como levar os (as)
estudantes a reconhecer a importância dos valores éticos e morais na
sua formação integral. O estudo teve como fundamentação teórica,
uma concepção reflexiva e analítica acerca da construção do saber
moral, a partir de filósofos como Aristóteles, na sua obra “Ética a
Nicômaco”; em seguida, na fundamentação da ética do dever em Kant,
utilizando as seguintes obras: “Sobre a Pedagogia”, “Fundamentação
da Metafísica dos Costumes”; e, por último, analisou a construção
dos valores éticos com base nos estágios de desenvolvimento moral
em Lawrence Kohlberg. Da mesma autora e em coautoria com Pablo
Andrey da Silva Santana (UFPI), temos quarto artigo, denominado
“Construindo valores éticos na escola: a partir da prática do debate
filosófico”. O presente artigo analisa o ensino de ensino de filosofia
no contexto atual, tendo como pressuposto, a prática do discurso

APRESENTAÇÃO 11
filosófico como ferramenta essencial na consolidação dos valores
éticos e morais. A questão fundamental a ser respondida neste artigo
é: como a filosofia pode contribuir através do discurso em sala de
aula para construir o saber moral no ambiente escolar e sobre quais
aspectos poderá ajudar os alunos a compreenderem a si mesmos e a
sua realidade.
O quinto artigo, de autoria de Jéssica de Souza Lima (UFPI),
nomeado de “A relação do ensino de filosofia com o “nó de
problemas filosóficos”, tem por objetivo apresentar uma proposta
metodológica e epistemológica para o ensino de Filosofia com base
na concepção denominada de ceticismo metodológico. Esse artigo
se divide em duas partes: na primeira, pretende-se arguir sobre o “nó
de problemas filosóficos” no contexto do ensino de filosofia com
uma abordagem propedeuticamente epistemológica e, na segunda,
se quer elucidar a intervenção do ceticismo metodológico no ensino
de filosofia como ferramenta estratégica para o desenvolvimento de
uma mente inquiridora e examinadora.
O sexto artigo, de Alex de Mesquita Marinho (UFPI), traz uma
contribuição singular para a reflexão sobre ensino de filosofia com
base no conceito de equidade segundo o filósofo John Rawls. O
mesmo foi intitulado de “A justiça como equidade segundo Rawls:
uma proposta para o ensino de filosofia”. O objetivo é descrever
o trajeto teórico-metodológico necessário para a realização de
um trabalho docente em Filosofia no Ensino Médio com base na
utilização de elementos teóricos dispostos na concepção de Justiça
como Equidade desenvolvida pelo filósofo norte-americano John
Rawls. A proposta em questão está baseada na necessidade de se
obter, a partir do processo educacional, indivíduos capazes de gozar
de sua cidadania enquanto pessoas munidas de autonomia política,
segundo a teoria rawlsiana.
Seguindo a mesma abordagem da filosofia de Rawls, o leitor
encontrará o texto referente ao sétimo artigo, denominado “O
equilíbrio reflexivo rawlsiano: uma metodologia para construção das
Diretrizes conceituais para filosofia no Ensino Médio”, de autoria
de Patrício Oliveira Lima (UFPI). Este artigo apresenta o “equilíbrio

12  Edna Maria Magalhães do Nascimento • Conceição de Maria Sousa Araújo


reflexivo” na teoria da justiça de Rawls observando seu papel e
relevância para o projeto rawlsiano. Tem por objetivo mostrá-lo
como uma metodologia viável para dar conta de processos decisórios
entre teorias filosóficas na construção de conceitos filosóficos
fundamentais que sirvam de diretrizes para orientar o ensino de
filosofia e a prática profissional dos professores que atuam nessa
área. Objetiva, ainda, chamar atenção para necessidade dessa tarefa
ser exercida pelos próprios professores de filosofia, garantindo a
estes o status de sujeitos autônomos e cooperativos dentro de suas
profissões.
Ainda no campo da Filosofia da Educação, o leitor terá a
oportunidade de ler o texto referente ao oitavo artigo denominado
“Visões de currículo e suas contribuições para o ensino de filosofia
em escolas de ensino médio”, de autoria de Maria Genilda Marques
Cardoso (UFRN) e Walter Pinheiro Barbosa Junior (UFRN). Neste
artigo os autores analisam a obra Democracia e Educação, de John
Dewey (1859 – 1952), publicada em 1959, na qual está explicitada
a Filosofia da Educação deste filósofo, cujo pressuposto filosófico
é o pragmatismo, corrente filosófica que surgiu no final do século
XIX e começo do século XX, nos Estados Unidos. Dewey exerceu
forte influência no Brasil, com ideias que inspiraram o movimento
escolanovista (1930) e a formação de professores reflexivos (1970).
Alguns traços de suas ideias filosóficas se incorporaram a documentos
da época (Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova) e a reformas
educacionais.
A autora Loise Ana de Lima (UFPI) traz uma abordagem
estética para o nono artigo que foi nomeado de “O entendimento e
a significação dos conceitos filosóficos a partir da sensibilidade dos
recursos imagéticos”. O presente artigo tem por escopo conduzir o
leitor a uma análise sobre como os recursos imagéticos podem agregar
valor ao entendimento e à significação de conceitos filosóficos que
envolvem questões do nosso cotidiano como: a moral, a empatia, a
política e outros.
Tendo em vista a perspectiva da filosofia política, sobretudo,
uma leitura da teoria crítica, o leitor terá acesso ao décimo artigo

APRESENTAÇÃO 13
“Filosofia e Direitos Humanos na sala de aula: uma possibilidade
da vivência ética” de autoria de Leônidas da Silva Elva de Sá (UFPI).
O presente trabalho tem como objetivo central propor uma reflexão
filosófica sobre o estudo dos Direitos Humanos em sala de aula
visando a possiblidade de uma vivência ética no espaço escolar. A
escola tem uma função social de grande relevância na construção
de um projeto de uma sociedade participativa na produção de sua
existência, como sujeitos de direitos, ativos na realidade em que estão
inseridos e que é construída historicamente.
Esta abordagem também se encontra no décimo primeiro
artigo, de autoria de Vagner Marcos Costa Lima (UFPI). Neste artigo,
sob o título, “Ensino de filosofia, cidadania e emancipação da classe
subalterna numa perspectiva gramsciana”, o autor pretende fazer
uma análise breve do pensamento de Louis Althusser, que apresenta
uma visão pessimista da escola e, a partir de Antônio Gramsci,
afirmar que é possível uma escola transformadora. O estudo conclui
que esta teoria oferece instrumentos necessários para a emancipação
social do homem. Portanto, à luz das contribuições de Gramsci, que
concebe a filosofia como práxis é possível desenvolver na escola
oportunidades que leve o sujeito a problematizar o seu cotidiano e
a si mesmo e desenvolver uma atitude de comprometimento com as
transformações sociais.
O décimo segundo artigo, de autoria de Maria Sueli Lopes
(UFPI) adentra o campo da teoria da complexidade de Edgar Morin
com o texto “Filosofia da complexidade em Morin”: a implementação
de eixos transdisciplinares para a problematização do ensino de uma
Escola de Tempo Integral – Parnaíba PI”. O artigo problematiza o
modelo de currículo fragmentado, compartimentado, fruto da
herança positivista que esfacela o conhecimento em especialidades
denominadas de disciplinas. E à luz do pensamento complexo de
Edgar Morin, insere a problematização filosófica como paradigma
da construção do pensamento multidimensional. Os resultados
obtidos constituem uma contribuição para o melhoramento da
educação, subsidiando possibilidades de mudança no trabalho
pedagógico por meio da adoção de uma prática docente que

14  Edna Maria Magalhães do Nascimento • Conceição de Maria Sousa Araújo


trabalhe a problematização, promovendo o pensamento complexo e
a formação de uma cidadania planetária.
Os textos que se seguem são pesquisas cujo enfoque principal
é a Filosofia pragmatista. São estudos teóricos fundamentos
nesta tradição, com um enfoque específico na epistemologia
instrumentalista de John Dewey, na visão pós-metafísica de Rorty e
na semiótica de Peirce.
O décimo terceiro artigo de autoria de Maurozan Soares
Teixeira (UFPI – Floriano) discute a abordagem pragmatista e o
conceito de experiência da filosofia de John Dewey. Este texto recebeu
a denominação de “Conceito de experiência enquanto fundamento
da epistemologia naturalista de John Dewey”. O pensamento
epistemológico, educacional, ético e, sobretudo, político de Dewey
está fundamentado no conceito de experiência e na abordagem
naturalista desenvolvida a partir das ideias darwinistas. Todas as
suas obras são marcadas pela noção de experiência, cujo corolário
principal é a relação que essa experiência tem com a natureza
em todos os âmbitos. O objetivo do artigo é analisar conceito de
experiência enquanto fundamento da epistemologia naturalista de
John Dewey.
O décimo quarto artigo “A crítica de Richard Rorty à teoria do
conhecimento como essência especular”, de Jaciara Ribeiro da Silva
Cardoso (UFPI) e Edna Maria Magalhães do Nascimento (UFPI),
baseia-se numa análise sobre a crítica que o filósofo norte-americano
Richard Rorty constrói sobre a filosofia de herança platônica,
cartesiana e kantiana, cuja explicação sobre o conhecimento derivou
de uma perspectiva mentalista com base na noção fundacionista
e representacionista do conhecimento. Rorty faz objeções a este
modo de fazer filosofia que se consolidou na tradição ocidental
cuja ideia principal de conhecimento esteve associada a metáfora da
mente como um espelho que reflete a realidade e inspeciona tudo,
em busca de uma objetividade derivada da capacidade da razão
de apreender fidedignamente a realidade. O problema não está na
busca de um fundamento ou uma posição universal que nos indique
como conhecemos, como devemos agir, o que somos. Rorty deixa de

APRESENTAÇÃO 15
lado estas questões e procura uma perspectiva ética e política para
levantar questões, por exemplo, sobre o que podemos nos tornar.
O décimo quinto artigo, de Teônia Mikaelly Pereira (UFPI), é
uma contribuição ao estudo da semiótica de Charles Sanders Peirce
e foi denominado de “Conceito e caracterização de signo semiótico
na filosofia de Charles Sanders Peirce. O objetivo geral é realizar uma
investigação sobre o signo semiótico na perspectiva filosófica de
Peirce e visa compreender sua contribuição para a teoria geral dos
signos. O artigo analisa os textos “Como Tornar Clara nossas ideias”,
“A Fixação das Crenças” e “Classificação dos Signos”. Trata-se de
um estudo teórico de caráter qualitativo acerca do ‘signo semiótico’
desenvolvido pelo fundador do Pragmatismo. Ao longo do trabalho
serão pontuados elementos básicos da divisão dos signos, seja em
verbais, não verbais, simbólicos, icônicos ou indiciais. Pretende-se
realizar um estudo sobre a tradição pragmatista e o papel que teve
a semiótica de Peirce para a filosofia contemporânea. Portanto,
pretende resgatar na obra de Peirce os fundamentos filosóficos que
justificam o seu tipo específico de pragmatismo e a semiótica.
Por fim, o décimo sexto artigo denominado “A metafísica de
Charles Sanders Peirce: uma análise sobre aprendizagem e cognição’’
de Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima (UFPI) é uma contribuição
original à Filosofia da Educação pois articula a semiótica e a lógica
de Peirce na constituição do pensamento racional e sistemático. O
artigo tem por finalidade os seguintes objetivos: realizar um estudo
sobre o pensamento de Charles Sanders Peirce e sua contribuição
para a metafísica; interpretar a sistematização lógica proposta
por Ivo Assad Ibri (PUC-SP), que compreende a “arquitetura” do
pensamento de Charles Peirce e, visa, sobretudo, identificar no ensaio
“A fixação das crenças” as principais características do pragmatismo,
caracterizando a noção de experiência desenvolvida por Peirce e
articulando estes conceitos ao desenvolvimento da aprendizagem.
Em suma, de um modo ou de outro, todos os autores desta
coletânea, sob diferentes perspectivas, apontam para o papel
estratégico da filosofia e sua inserção nas escolas. Discutem
perspectivas teóricas que vão do platonismo à filosofia pragmatista,

16  Edna Maria Magalhães do Nascimento • Conceição de Maria Sousa Araújo


passando por abordagens alternativas como a teoria da complexidade,
a constituição de si, e a discussão de relações de poder na escola.
Apresentam também reflexões no campo da ética e da política cujo
foco é a noção de justiça como equidade e a educação e direitos
humanos.
Convidamos o leitor a participar desta livre comunidade
filosófica, que discute com abrangência e profundidade os diferentes
temas que envolvem a atividade filosófica. O leitor terá em suas
mãos uma importante contribuição para a reflexão sobre a filosofia,
o ensino de filosofia, a filosofia da educação, sobretudo, quando
se insurge na contestação ao projeto hegemônico da sociedade
brasileira, que no momento tenta impor uma antifilosofia. Este
livro reafirma o conhecimento como instrumento indispensável no
enfrentamento e na superação dos vários problemas vivenciados em
nosso país, com a certeza que o conhecimento crítico e filosófico é
fundamental na construção de um Brasil justo e soberano.

As organizadoras

APRESENTAÇÃO 17
PREFÁCIO

Cássio Eduardo Soares Miranda

“N
ão é possível refazer este país, democratizá-lo,
humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes
brincando de matar gente, ofendendo a vida,
destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha
não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade
muda”. Com esta frase do saudoso educador Paulo Freire, destaco a
importância deste livro organizado pelas professoras Edna Magalhães
do Nascimento e Conceição de Maria Sousa Araújo. De alguma
forma, “FILOSOFIA, ENSINO E EDUCAÇÃO: uma abordagem
interdisciplinar”, ajuda-nos a desfazer um mito: a educação não
é a tábua de salvação para tudo e para todos; os professores não
são sacerdotes que se entregam de forma sacrificial ao outro. Se a
educação, no entanto, não é tabua de salvação para tudo e para
todos, sem ela, todavia, não há saída para as mazelas sociais,
econômicas e pessoais que o país enfrenta. Da mesma maneira, se o
professor não é um sacerdote que se entrega de forma sacrificial ao
outro, ele é um profissional que necessita ser valorizado, assim como
todos os outros profissionais que são respeitados neste país, mas,

PREFÁCIO 19
no entanto, sem perder de foco a sua missão educacional, pois, esta
sim, é sagrada.
Resultado de trabalhos de pesquisa realizados por diversos
alunos e professores de programas de pós-graduação em Filosofia
e Educação, esta obra reflete sobre o ensino da filosofia em uma
perspectiva interdisciplinar, circulando por uma variedade de temas
e assuntos guiados por um fio comum: a filosofia e seu ensino.
Talvez pareça desnecessário apontar a importância de um livro que
tem a filosofia como norte no que tange às discussões em torno da
educação. Entretanto, em um país com apenas 15% da população
com curso superior, uma obra dessa natureza somente vem confirmar
seu caráter de resistência e ousadia frente aos impasses de nossa
época. Dito de outra maneira, trata-se da vitória da persistência, da
fé, da coragem, do combate e do companheirismo.
Ora, a formação filosófica, como é do conhecimento da maioria
dos leitores deste livro, fundamenta-se, a meu ver, nos seguintes
pressupostos: 1) Sólida formação teórico-metodológica, alicerçada
nos saberes filosóficos e afins, a partir dos quais se proporá um
processo emancipador do homem, sustentado na autorreflexão e
autonomia do pensar; 2) Formação político-social que propiciará
ao professor de filosofia a compreensão crítica das políticas e
projetos educacionais, bem como o desenvolvimento de atitudes
que demonstrem o compromisso com a construção de um projeto
educacional que priorize e expresse uma educação efetivamente
democrática Em função desses elementos que fundamentam a
formação do professor de filosofia, desejo ressaltar, em primeiro
lugar, um elemento conceitual. Em nossa concepção, consideramos
Educação um bem público, e não uma mercadoria sujeita às regras do
mercado e do lucro. Nossa busca deve ser a constante melhoria de
nossos estabelecimentos de ensino, a busca constante da melhoria
de nossos processos de gestão e acompanhamento, a busca
constante da melhoria das condições de trabalho dos profissionais
da educação e, por fim, a busca constante da garantia do Direito à
Aprendizagem de todos os nossos alunos e alunas, tomando como

20  Cassio Eduardo Soares Miranda


visada um posicionamento crítico acerca dos processos, programas e
projetos que diuturnamente aparecem no campo educacional.
Esses elementos se solidificam a partir de uma disposição
pessoal daquele que se propõe à ser professor-pesquisador da
área de filosofia, associada à uma vontade política. O Governo
Federal lançou, na época do então presidente Lula, o Plano de
Desenvolvimento da Educação, conjunto histórico de medidas
que tratam de maneira sistêmica os desafios educacionais do País
em todos os níveis. O Plano parte do princípio de que a educação
constitui responsabilidade do Estado, mas também é um esforço
social mais amplo que não se desenrola apenas na escola, mas tem
lugar na família, na comunidade e em todos os espaços de interação,
especialmente no trabalho. Nesse sentido, a educação impõe uma
forte mobilização e conscientização social, tanto quanto sólidos
mecanismos financeiros, viabilizando o projeto de desenvolvimento
da nação.
Talvez um bom caminho seja retomarmos a perspectiva
marxista em que “Condições desesperadoras da sociedade em que
vivo me enchem de esperança”. Neste aspecto, a posição na qual o
professor de filosofia se lança talvez seja aquela de considerar que
lugar a educação ocupa em uma leitura ao mesmo tempo crítica e
entusiasmada da sociedade em que vivemos. Por esse caminho, é
importante , a meu ver, um posicionamento contra a pobreza e suas
mazelas; uma denúncia de que o fracasso escolar não é apenas um
“problema emocional” e também não pode ser naturalizado, assim
como não se pode enxergar como como natural a desigualdade social
brasileira, que faz com que 50% dos 89 milhões de trabalhadores e
trabalhadoras recebam por mês, em média, 15% menos que o salário
mínimo e que 43,4% de toda a riqueza gerada no brasil se encontre
concentrada nas mãos de apenas 10% da população.
Mas diante desse quadro estranho, feio, confuso, repetitivo e
nada animador, o que pode a filosofia fazer, sobretudo no que diz
respeito à formação das novas gerações?
Para começarmos a pensar algumas saídas possíveis, recorro
não a um filósofo, mas às palavras de Sigmund Freud, aquele judeu

PREFÁCIO 21
errante de Viena que se tornou o pai da psicanálise ao sustentar uma
aposta no inconsciente: “Uma escola deve conseguir mais do que não
impelir seus alunos ao suicídio. Ela deve lhes dar o desejo de viver
e devia oferecer-lhes apoio e amparo numa época da vida em que
as condições de seu desenvolvimento os compelem a afrouxar seus
vínculos com a casa e com a família. Parece-me indiscutível que as
escolas falham nisso. A escola nunca deve esquecer que ela tem de
lidar com indivíduos imaturos a quem não pode ser negado o direito
de se demorarem no seu desenvolvimento e mesmo para alguns um
pouco desagradáveis. A escola não pode arrogar-se a si o caráter
de vida: ela não deve pretender ser mais do que ela é, um modo de
vida (Freud, 1980a, p. 217). Em razão disso, a escola, a creche, a
universidade, devem dar aos jovens “o desejo de viver”, acolhendo aí
seus singulares modos de vida.
Da mesma maneira, este livro nos faz pensar que a educação é
uma conquista social. Sua construção é crucial para encontrarmos
um entendimento nacional em torno do que é importante no
processo de desenvolvimento dos estudantes brasileiros. Isso implica
em uma oportunidade excelente que temos para discutir aquilo que
é necessário para o país, para a cidade, para a escola e universidade.
Entender seu real significado e participar da sua construção é direito
e dever de todos. Assim, conforme sustenta Giorgio Agamben,
pensar é um ato de coragem e, mais ainda, é uma questão de
contemporaneidade. Ser contemporâneo, então é, antes de tudo,
um ato de coragem. Para ele, isso se apresenta como uma espécie de
“imperativo categórico”: “porque significa ser capazes não apenas
de manter o olhar fixo na sombra da época, mas também perceber
nessa sombra uma luz que, dirigida até nós, se afasta infinitamente
de nós. Isto é: chegar pontualmente a um encontro ao qual só é
possível faltar”.
Para finalizar, interrogo aos autores desta importante obra
se eles se consideram contemporâneos e, portanto, corajosos. Para
tanto, evoco meu conterrâneo em uma de suas instigantes frases:
“O que lembro, tenho”. João Guimarães Rosa aqui pode ser tomado
como ponto de partida para a leitura desta obra escrita à muitas

22  Cassio Eduardo Soares Miranda


mãos. Ouso dizer que esse “lembrar” ao qual Rosa se refere, neste
livro para o qual tenho a alegria de escrever este prefácio, traduz-se
pelo tecer, pois é no próprio alinhavo dos textos apresentados nesta
obra que os autores e autoras reconstroem, costuram e desvelam as
marcas e os fios constitutivos dos discursos contemporâneos sobre
a filosofia e seu ensino em uma ótica interdisciplinar. Ancorado
no rigor de sua argumentação, na potencialidade de sua análise e
no vasto e profundo conhecimento do tema, o livro refere-se a um
conjunto de textos produzidos por autores brasileiros envolvidos no
ensino e pesquisa da filosofia em diversas escolas e universidades
brasileiras que se colocaram a trabalho no intuito de desvelar suas
práticas e demonstrar as incidências da filosofia no que tange ao
ensino, à pesquisa e à extensão na atualidade. A meu ver, este livro
constitui-se como leitura imprescindível para estudantes dos mais
variados cursos, além de interessar a pesquisadores que se debruçam
em temas diversos ligados à filosofia e seu ensino, além de ser um
livro que interessa a profissionais desses campos citados e que
são diuturnamente confrontados com os desafios que a prática
interdisciplinar cotidiana impõe. Assim, se “No osso da fala dos loucos
têm lírios”, como sustenta Manoel de Barros, no “osso” da prática
educativa do cotidiano também os “lírios” podem ser encontrados e,
pode-se dizer que esta obra se constitui como tal.

PREFÁCIO 23
EDUCAÇÃO ÉTICA PARA A BOA VIDA

Susana de Castro (UFRJ)

Introdução

U
ma das questões que marcam a separação entre
o mundo moderno e o antigo é a relação entre
governo e liberdade individual. Para os antigos cabia
à educação e ao governo preocupar-se com a felicidade e o bem-
estar dos membros da sua pólis. As escolas filosóficas e as religiões
propunham modos de vida e de ação com vistas à vida feliz e virtuosa.
Depois das revoluções burguesas liberais a filosofia se distanciou dos
temas práticos, relacionados ao aconselhamento sobre a boa vida,
e o governo deixou de interferir na vida privada dos cidadãos. As
liberdades individuais foram garantidas e cada indivíduo passou a ter
liberdade de escolher seu modo de vida. Hoje, passados séculos das
revoluções burguesas sentimos que algumas questões importantes
foram deixadas de lado nessa troca do modelo de aconselhamento
para o bem-estar e para a felicidade pelo da liberdade ‘negativa’ –
assim chamada por ser um direito à não interferência do Estado na
esfera privada.

EDUCAÇÃO ÉTICA PARA A BOA VIDA 25


Pressupostos de uma educação ética para uma vida feliz

O sistema de ensino, escolar e universitário, não está hoje


comprometido em oferecer aos alunos alguma orientação para a
vida, mas preocupa-se apenas com suas carreiras. Nas universidades,
os alunos não encontram cursos em que possam tratar de temas
relevantes para si, como a aplicabilidade do conhecimento adquirido
em suas vidas, ou/e na transformação da sociedade. O diploma
universitário passa a ser apenas uma porta de entrada para o mercado,
a grande fábrica, na qual todos entram e cujas regras ninguém pode
mudar. A fase escolar e universitária pode ser palco de muitas crises
emocionais e pessoais, naturais quando o caráter e a personalidade
estão em formação.
Mas no sistema produtivista escolar-universitário não há quem
queira ouvir e conversar com os alunos sobre os seus problemas
emocionais, suas dificuldades de relacionamento, suas angústias e
medos. Muitos abandonam o curso, entram em depressão, sofrem
crises de pânico.
Some-se a tudo isso o fato de que na sociedade contemporânea
os indivíduos estão cada vez mais isolados uns dos outros, conectados
mais tempo com os aparelhos de TV, celulares e computadores do
que com pessoas reais. O diálogo e a conversa ficam cada vez mais
silenciados pela presença da TV. O indivíduo não possui mais como
na época antiga o sentido do bem comum, o sentido de que sua
felicidade está ligada à felicidade da sua comunidade.
Antigamente, na Grécia Clássica e na época das escolas
helenistas as coisas eram bem diferentes. A filosofia era um modo de
vida e os filósofos eram sábios responsáveis por dar aconselhamentos
práticos aos jovens e aos adultos. A filosofia era prática, íntima e
comunal, englobava elementos éticos, psicológicos e políticos. Hoje
os estudantes universitários de filosofia aprendem teorias e são
testados em tais teorias. Estes não estão atentos em saber qual a
validade dos conhecimentos adquiridos para suas vidas. Os filósofos
gregos, a começar por Sócrates, sabiam que muitos comportamentos
e atitudes eram pautados por crenças e opiniões falsas. A fonte

26  Susana de Castro Amaral Vieira


das crenças e opiniões era a família, o senso comum, até mesmo a
educação, enfim, a cultura. Sócrates levava o indivíduo a refletir sobre
suas opiniões. Essa atitude socrática visava instruir o jovem no uso da
razão. Somente o exercício autorreflexivo constante podia depurar a
consciência do jovem das crenças que tornavam a sua alma doente.
A ação da argumentação filosófica era uma terapia da ‘alma’
-- hoje, diríamos, uma ‘psico’- terapia. Sócrates afirmava que uma
vida não examinada não seria uma vida que valesse a pena ser vivida.
Devemos salientar, entretanto, que nos diálogos platônicos, Sócrates
interpelava os jovens atenienses sobre questões epistêmicas, não lhes
pedia que discorressem diretamente sobre suas próprias vidas, mas
nessa interpelação encontrava-se a exortação para que se ocupassem
consigo mesmo, com suas almas. “Meu caro, tu um ateniense, da
cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio,
não te envergonhas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas,
fama e honrarias, e não te importares nem cogitares da razão,
da verdade e de melhorar quanto mais sua alma?” (Apo. 29d). A
experiência de ouvir o logos socrático tinha um efeito pedagógico
transformador na vida dessas pessoas. O que ‘salvaria’ a alma dos
jovens atenienses seria a verdade. Posteriormente, na modernidade,
como nos mostra Foucault, no livro ‘Hermenêutica do Sujeito’, ocorrerá,
uma ruptura com essa noção da relação da verdade com a esfera
individual e espiritual. Na antiguidade, o sujeito por si só não era
capaz de encontrar a verdade, precisava de um guia espiritual, o
filósofo, mas a verdade por si só seria capaz de transfigurar e salvar o
sujeito. Na modernidade, essa relação se inverte, o sujeito, tal como
ele é, é capaz de encontrar a verdade, mas a verdade, por si só, não é
capaz de salvar o sujeito.
A razão de ser da espiritualidade filosófica antiga está na busca
por um modo de vida que possa transformar o indivíduo em sujeito
soberano, imune aos efeitos dos desastres, sempre bem-disposto e
preparado para confrontar as situações em que for requisitado a
atuar. Os que hoje buscam livros de autoajuda estão de certa forma
buscando conhecimentos que lhes permitam também autogerenciar
suas vidas, ser o soberano delas, mas o foco dos ensinamentos de

EDUCAÇÃO ÉTICA PARA A BOA VIDA 27


autoajuda destes livros é o ‘mundo’ externo, o sucesso profissional
e financeiro, e não o ‘mundo’ interior, o equilíbrio emocional, a paz
mental e ética.
Busca-se o autocontrole para conquistar algo, e não o
autocontrole em si mesmo. O objetivo do educador Sócrates era
mostrar o caminho da autorreflexão racional. Uma vez aprendida à
técnica do autoquestionamento, ela deveria ser utilizada pelo resto
da vida. Como hábitos nocivos são difíceis de combater, pois estão
bem arraigados no fundo da alma, hoje diríamos, no inconsciente,
e o sujeito que segue um hábito age automaticamente sem refletir
o porquê de agir desta forma, é preciso estar sempre atento para
evitar adotar opiniões falsas como verdadeiras. Por isso, a prática é
tão importante para os gregos. Ninguém nasce sábio. A sabedoria
é fruto de uma prática constante. Ninguém está imune ao erro. A
grande questão dessa ética racionalista está na relação entre verdade,
felicidade e virtude. O caminho para a boa vida está na análise
constante de nossas ações com vistas a sua perfeição moral, ética.
Essa perfeição por sua vez é a forma do agir racional, verdadeiro.
Segundo o filósofo estóico Epiteto “os homens são perturbados
não pelas coisas, mas pelas opiniões sobre elas”. Ele está dizendo aqui
que não apreendemos um evento ou uma coisa sem interpretá-lo. Se
a interpretação não for baseada na razão, se o jovem ou o adulto
não tiver exercitado sua capacidade autocrítica e reflexiva, pode vir a
interpretar os fatos erroneamente. Para os filósofos a interpretação
não racional dos fatos leva ao erro, e ao sofrimento. Todo sofrimento
pode ser evitado, pois crenças e interpretações estão sob nosso
controle, todo o resto, nossos corpos, nossos pais, nossa reputação,
nosso trabalho, nossos amigos, o clima, a economia, o passado, o
futuro, o fato que iremos morrer, não. É muito comum hoje em dia
as pessoas sofrerem, por exemplo, por querer agradar os outros, por
estarem preocupadas com o que as pessoas pensam sobre elas, mas
se abdicassem dessa ideia onipotente de que podem controlar o que
as pessoas pensam sobre si, talvez evitassem a ansiedade social.
Na perspectiva do senso comum, as emoções em geral são
irracionais. Elas surgem não se sabe bem porque e afetam o equilíbrio

28  Susana de Castro Amaral Vieira


físico e psíquico dos indivíduos. Deveríamos, portanto, mantê-las
ao máximo, afastadas quando temos que tomar uma decisão ou
mesmo aprender ou ensinar algo, e deixá-las fluir somente quando
o momento for de descontração. A filosofia, entretanto, sabe pelo
menos desde Aristóteles que emoções e paixões são, na verdade,
motivadas, por crenças. Possuem aspectos racionais e cognitivos
e podem, por isso, ser educadas. Por um lado, para Aristóteles, as
crenças podem ser falsas e neste caso as emoções que ocasionam
seriam de fato irracionais, ou podem ser verdadeiras, e neste caso
a reação emocional é racional. Por outro lado, para os filósofos
helenistas a grande tarefa da filosofia seria justamente guiar os
indivíduos para o cuidado de si, isto é, para um processo socrático
de reflexão e autocrítica que os levassem a compreender que no
fundo as crenças que motivam suas emoções são todas falsas e por
isso ocasionam sofrimentos. O apego exagerado a bens materiais e
a afetos, como os laços filiais, por exemplo, crenças incutidas pela
cultura na mente das pessoas, levariam os indivíduos a sofrimentos
inúteis, pois, é claro, que não podem controlar a perda de um entre
querido ou a perda da fortuna.
A chave para a felicidade para os filósofos helenistas está na
compreensão da verdade profunda segundo a qual a felicidade está
na vida interior, na capacidade de exercer o domínio sobre tudo que
depende exclusivamente do livre arbítrio e da liberdade de consciência,
todo o resto, tudo o que for ocasionado por fatores externos que
escapam a seu controle não pode causar sofrimento, pois não afeta o
indivíduo treinado filosoficamente. A educação filosófica deveria neste
sentido primeiramente deseducar as pessoas, levá-las pela argumentação
a analisar criticamente suas crenças e uma vez descobrindo-as falsas,
abandoná-las. A educação filosófica helenista tinha como objetivo
extirpar através da argumentação racional as crenças basilares,
responsáveis por toda reação emocional e com isso dar ao indivíduo
o controle total sobre a sua vida. No processo de cuidado de si, de
autorreflexão crítica e aprendizagem pela argumentação racional, os
educandos aprendiam cinco teses fundamentais: (i) que há pouco a
temer dos homens, (ii) que há nada a temer dos deuses, (iii) que a morte

EDUCAÇÃO ÉTICA PARA A BOA VIDA 29


não produz nenhum mal, (iv) que é fácil achar o caminho da virtude,
(v) que é preciso achar-se um ser social nascido para a comunidade
(FOUCAULT, 2006, p. 209-210).
Uma vez adotadas tais crenças verdadeiras, nada os
perturbariam mais e atingiriam dessa forma a boa vida. A tranquilidade
da alma dependeria assim da aprendizagem do total desapego aos
bens externos, como dinheiro, sucesso, poder, a todos os apetites
corpóreos e sensuais, e, em última instância, o desapego à própria
vida, visto que é esse apego que ocasionaria o medo da morte e da
dor. Tanto Aristóteles, quanto os filósofos helenistas entendiam que
a filosofia deveria ter um papel terapêutico semelhante ao exercido
pelos médicos, sendo que a cura seria da alma e não do corpo, e a
ferramenta para a cura seria o logos, a argumentação racional, e não
o pharmakón.
As técnicas do cuidado de si, da terapia da alma, pressupõem
tanto o engajamento pessoal, com a própria cura, quanto à
orientação de um sábio. As técnicas mais comuns são a conversa
pedagógica com o mestre, que também podem ser feitas por meio
de cartas, como as escritas por Sêneca a seus parentes; os exames
de consciência diários, que podem ser feito através da escrita diária
dos acontecimentos do dia, como os diários do imperador romano
Marco Aurélio, Meditações; as práticas ascéticas de purificação do
corpo; os exercícios físicos.
A filosofia estóica, por um lado, é bem individualista, pois
privilegia a felicidade interior, por outro, também está comprometida
com o compartilhamento do saber. De acordo com os estóicos
todo ser humano tem capacidade racional igual. No meio de toda
a fragilidade da fortuna, a razão e a consciência são capacidades
divinas, cósmicas, que permitem o ser humano escapar ao sofrimento.
Na Grécia antiga, os estóicos ensinavam em local público para todos
que quisessem participar, fossem estes, mulheres, escravos, jovens
ou adultos. A ética antiga tinha como meta ensinar o indivíduo a agir
de forma a alcançar uma boa vida. Essa era pelo menos a meta de
Aristóteles e das escolas helenistas gregas e romanas: cética, estóica
e epicurista.

30  Susana de Castro Amaral Vieira


Dentro dessa meta de educar para a boa vida, o objetivo era
evitar o sofrimento e fornecer aos indivíduos condições racionais
para que pudessem ter controle sobre sua vida. Se, por um lado, a
verdade do discurso teórico, como o da matemática e o das ciências
das naturezas, não afeta diretamente o modo de vida das pessoas,
por outro lado, para Aristóteles e os helenistas, a verdade dos
ensinamentos éticos depende do sucesso de sua aplicabilidade na
prática. A ética tinha como meta ensinar as pessoas a agir no mundo
de tal forma que pudessem evitar o sofrimento e alcançar uma boa
vida. A ignorância sobre certas verdades fundamentais ocasiona
sofrimentos desnecessários.
A base da aprendizagem está sabidamente no fundo emocional,
psicológico, de cada um. Uma criança traumatizada pelo ambiente
familiar violento e abusivo vai certamente apresentar um baixíssimo
aproveitamento escolar. Sua desmotivação decorre de um sentimento
de baixa autoestima. Como elevar a autoestima dessa criança? Em
algumas escolas britânicas são utilizadas terapias cognitivas com
crianças com problemas de aprendizagem (EVANS, 2013, p.34).
A tarefa do terapeuta é conseguir mostrar a diferença entre o que
ela não é capaz de controlar, isto é, aquilo pelo qual não pode ser
responsabilizada e aquilo pelo que de fato pode ser responsabilizada.
No primeiro grupo, a criança vai colocar todo o passado, tudo o que
viveu de sofrimentos, ocasionados por pais abusivos, responsáveis
por maus tratos e abandono, e no outro, tudo o que depende
exclusivamente dela, da sua capacidade, do seu esforço e disciplina.
Como, em geral, crianças abusadas sexualmente se culpam pela
violência que sofrem, entender que o passado não pode ser mais
alterado é o primeiro passo para livrar o peso da culpa. Essa técnica
cognitiva visa amenizar ou mesmo excluir o sofrimento de lembranças
negativas e colocar em seu lugar crenças positivas que fortaleçam o
ego e a esperança de felicidade. A grande diferença entre a concepção
de boa vida aristotélica e a concepção de boa vida helenista está na
relação que estabelecem com as emoções e com os bens externos.
Para Aristóteles mesmo um homem sábio é afetado por
perdas materiais e afetivas. Ele não acredita que possamos ficar

EDUCAÇÃO ÉTICA PARA A BOA VIDA 31


inabaláveis diante de adversidades terríveis. Somos seres sociais e
uma das características da nossa sociabilidade é nosso apego filial.
Uma das bases para o florescimento humano é a existência de laços
de amizades. Uma pessoa solitária, sem amigos ou família, terá
seu desenvolvimento pleno enquanto ser humano prejudicado. Da
mesma forma, para Aristóteles o ócio, isto é, a possibilidade de ter
tempo para dedicar-se à reflexão e o estudo, é uma condição para a
eudaimonia. Além disso, emoções como a compaixão são vitais para
a vida comunitária. Na concepção ética de Aristóteles, os jovens e
adultos precisam compadecer-se com os infortúnios alheios como
mecanismo de aprendizagem da sua própria vulnerabilidade. Saber
que todos somos passíveis a dor e a perda significa reconhecer a
humanidade que nos une a todos os seres. Os estóicos adotaram de
Sócrates a importância do exame de consciência e de Aristóteles a
investigação sobre as emoções, como elas ocorrem, o que as motiva.
É graças ao entendimento acerca do mecanismo de funcionamento
de paixões negativas como a raiva, que os estóicos puderam propor
formas de aplacar seus efeitos nocivos.
Há muitas semelhanças entre os princípios das escolas
helenísticas e romanas de filosofia e a filosofia oriental indiana
expressa no livro Bhagavad-gita. Em uma época no qual o pensamento
racionalista moderno que forneceu o fundamento filosófico para
o entendimento de que a ciência e a vida eram coisas separadas e,
portanto, o desenvolvimento científico e tecnológico não poderia ser
detido por compromissos com valores humanísticos ou ecológicos, é
importante resgatarmos esses conteúdos que foram marginalizados
pela tradição filosófica ocidental. Para os seguidores da filosofia
indiana e da filosofia estóica, a filosofia é um exercício, isto é, uma
prática, e não só a aquisição de conhecimento.
Para ambas as escolas, a filosofia não se consistiria do ensino
de teorias abstratas ou na exegese de textos, mas em uma arte de
viver, em atitudes concretas que englobasse toda a existência. O
sábio estóico e o iogue indiano ensinam a como nos tornarmos
pessoas melhores. A decisão em buscar o caminho da evolução
espiritual é chamada pelos estóicos de ‘conversão’ (HADOT, 2014,

32  Susana de Castro Amaral Vieira


p. 22). Essa ‘conversão’ seja no caso indiano, seja no caso estóico,
decorre de um encontro ‘iluminador’ em um momento de crise. No
caso da obra indiana Bhagadvita, trata-se do encontro entre o príncipe
Arjuna e Krishna. O primeiro era conhecido por sua inteligência,
mas na hora da batalha se vê paralisado diante do exército inimigo
no qual estavam seus parentes. Khrisna aparece nesse momento de
indecisão para ensinar Arjuna o caminho do Iogue, aquele que ‘vê
inação na ação e a ação na inação’ (Bhagavad-gita, 4.18). Em todas
essas escolas, a conversão significa passar de um estado de vida
inautêntico, corroído pelo sofrimento, para um estado de felicidade
autêntica, estável, no qual o indivíduo adquiriria a paz interior.

REFERÊNCIAS

EVANS, Jule. Philosophy for Life – And her Dangerous Situations.


Londres: Random House, 2013.

FEUERSTEIN, Georg e FEUERSTEIN, Brenda. O Bhagavad-Gita,


uma nova tradução. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo:
Pensamento, 2017.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins


Fontes, 2006.

HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Trad. Flávio


Loque & Lorraine Oliveira. São Paulo: realizações, 2014.

SÊNECA. Sobre a Ira. Trad. José Eduardo S. Lohner. São Paulo:


Penguin-Companhia das Letras, 2014.

EDUCAÇÃO ÉTICA PARA A BOA VIDA 33


A OPINIÃO, A FILOSOFIA E
O ENSINO DE FILOSOFIA

Francisca Alaíne Pinheiro


Edna Maria Magalhães do Nascimento

Introdução

O
texto que agora se apresenta ao leitor em forma de
artigo, trata-se de um recorte temático dentro da
pesquisa de intervenção filosóficas desenvolvidas na
dissertação de mestrado intitulada ‘A representação de Filosofia na
opinião dos discentes do Ensino Médio: uma intervenção filosófica’.
Sob o título ‘A opinião, a Filosofia e o ensino de Filosofia, intentou-
se aprofundar a compreensão desses conceitos e suas interrelações a
partir da perspectiva identificada em diálogos platônicos, tais como:
A República, Teeteto, Fédon e Sofista.
O estudo realizado mostrou que a investigação sobre a
opinião se articula com a investigação a respeito da definição de
conhecimento, de Filosofia e de ensino de Filosofia. Além do mais, a
questão do ensino de Filosofia traz em seu bojo a questão do método
de ensino de Filosofia, que deve ser filosófico, atendendo a referência
em Platão – dialógico e dialético.

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 35


Nestas condições, o modelo do diálogo platônico, possibilita
a prática da maiêutica como método para o ensino de Filosofia
enquanto prática do filosofar a partir da opinião. A maiêutica
se configura a partir do diálogo, impulsionando e guiando o
pensamento no exercício da dialética, para chegar na Filosofia por
meio do filosofar.
O presente texto, se estrutura a partir desta introdução nos
seguintes itens: opinião: explicitando o conceito; diálogo como
método de pesquisa e de ensino de Filosofia; a opinião como
instrumento metodológico do diálogo; algumas faces da opinião nos
diálogos platônicos; o filosofar entre o opinar e o conhecer; o ensino
de Filosofia: saindo da caverna para voltar depois; e as considerações
finais.

Opinião: explicitando o conceito

O termo opinião (Gr. doxa / lat. opinio) pode assumir, em


diferentes contextos, diferentes significados. Em algumas situações,
é tomado como sinônimo de crença, em outras como sinônimo de
conhecimento, em outras como perspectiva possível acerca de uma
questão. Opinião também pode significar a manifestação de uma
forma de ver, representando o estado de espírito e a atitude de um
indivíduo ou de um grupo em relação a um determinado parâmetro
ou realidade.
Nas duas primeiras décadas do século XXI, a opinião, mais
que uma questão conceitual e filosófica, tornou-se um problema:
social, político e moral. Com o advento da internet, potencializada
na influência das redes sociais entre jovens e crianças, a emissão da
opinião tornou-se moeda de troca, para além de suas conexões com
a verdade dos fatos ou da fundamentação das informações por elas
veiculadas.
Pode-se perceber que, no espaço da internet, das mídias
sociais, existem diversas representações sobre um assunto, e é um
espaço fértil para a proliferação e veiculação de opiniões. Entretanto,
dificilmente se identifica a fonte de uma informação, além disso é

36  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


fato a velocidade com que estas fluem, não permitindo a maturação
ou o exame das ideias. Palfrey (2011) ao tratar da temática da
qualidade da informação na internet, aponta para essa questão
quando observa:

[...] o advento da internet gerou preocupações importantes


sobre os desafios que enfrentam os jovens que estão crescendo
cercados por tantas fontes de informação e por tantos serviços
que permitem alguém se tornar um autor ou um editor que
ficou ainda mais difícil distinguir as boas informações das ruins.
(p.178).

Quase sempre não há tempo para a verificação ou análise das


informações, assim como há um risco permanente de ações e reações
com implicações concretas de cunho afetivo, social, intelectual
e moral; seja por falta de uma responsabilização direta sobre as
informações veiculadas, seja pelas supostas autoridades imprimidas
de interpretações emitidas sobre essas informações e os diferentes
graus de influência psicológica sobre jovens e mesmo adultos.
A falta de validação transforma essas informações em pilhas
de opiniões, com maior ou menor grau de aproximação com os
fatos, reproduzidas e consumidas diariamente. Embora haja, de
fato, informações e opiniões de boa qualidade disponíveis na
internet também é fato a dificuldade e, por vezes, impossibilidade
de verificação. E a quantidade aliada à velocidade com que as
informações fluem elevam e aprofundam significativamente o
impacto e o risco de danos provocados por opiniões emitidas nesses
meios.
O termo opinião também pode ser usado como sinônimo de
crítica especializada, subentendo a ideia de autoridade intelectual
sobre um assunto ou conhecimento. É o caso quando se faz referência
a artigos de opinião em jornais ou revistas, ou em julgamentos
quando é requerida a opinião profissional de especialistas.
Entretanto, no âmbito da filosofia, a opinião é concebida de
forma diferente. Certamente não pretendemos neste espaço dar
conta das várias “opiniões filosóficas”, suas nuances e profundidades.

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 37


Faremos apenas um pequeno panorama sobre o termo opinião, sem
a intenção de criticar ou aprofundar, mas com o intuito de situar
a partir dos diferentes significados, o significado que referencia a
pesquisa-intervenção que deu origem a este texto.
Silvio Gallo no livro “Filosofia - experiência do pensamento”,
em busca do conceito de Filosofia, resgata algumas perspectivas de
filósofos a respeito da opinião, em sua conexão com o conhecimento
e com a Filosofia. Entre elas, a de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
tendo em vista a concepção de Filosofia que, em termos didáticos, o
referido livro se baseia: “a Filosofia como uma atividade de criação
de conceitos” (GALLO, 2016. p.335).
Percebe-se, diante das leituras realizadas, que a despeito da
opinião ser elemento presente em qualquer discussão, diálogo ou
exposição de ideias, incluindo as ideias filosóficas; por ser um termo
dúbio ela assombra a reflexão filosófica desde Parmênides e Platão
e, tratada como o avesso da Filosofia, tornou-se coadjuvante como
objeto de pesquisa filosófica.
Quando se observa alguns dicionários de uso cotidiano, que
costumam adotar significados construídos em usos e expressões do
senso comum, vemos repetir mais ou menos o mesmo significado:
forma de ver ou de julgar uma situação com ou sem fundamentação,
e por vezes na relação com o termo doxa em oposição ao termo
episteme. Abbagnano (2003) atenta para as singularidades conceituais
dos termos e suas interrelações, apontando a diferença entre opinião
e conhecimento falso. Neste sentido, a opinião é apresentada como
oposta à ciência, definida como uma forma de conhecimento que
não possui garantia interna da própria validade.
Ainda tendo a pesquisa do termo opinião, referenciada
nos dicionários de Filosofia, pode-se elencar alguns elementos
informativos sobre a concepção de opinião em alguns filósofos a título
de ilustração, percorrendo o fio condutor da história da Filosofia.
Considerando Japiassú (2001, p. 143), em Platão e Aristóteles “a
opinião se aplica ao que, sendo verdadeiro, poderia ser falso e vice-
versa”. E para Kant “a opinião é o fato de considerar-se algo como

38  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


verdadeiro, tendo-se, no entanto, consciência de uma insuficiência
subjetiva ou objetiva desse juízo.”
Conforme Abbagnano (2003, p. 629/630), para Parmênides
‘opinião’ (doxa) em oposição à ciência (episteme) “ designa qualquer
conhecimento (ou crença) que não inclua garantia alguma da
própria validade”; Platão consideraria a opinião como o significado
anterior, mas também a possibilidade de a opinião incluir a validade
interna, pois o que a distingue da ciência é o objeto ao qual se refere.
Na esteira da diferença de objeto entre opinião e ciência, Aristóteles
aponta que as opiniões “estão sujeitas a mudar e, portanto, não
constituem ciência”; lembrando que existem as opiniões comuns em
que todos os homens baseiam suas demonstrações, a exemplo de
postulados matemáticos e lógico.
Os estoicos definiram a opinião como “assentimento fraco
e ilusório”; Epicuro assim declarou: “opinião é uma assunção que
pode ser verdadeira ou falsa”; São Tomás de Aquino, concebia este
termo na seguinte maneira: “a opinião é o ato do intelecto que se
dirige para um lado da contradição por medo do outro”; Enquanto
Spinoza afirmava que a opinião se identifica “com o conhecimento
do primeiro gênero, que é o menos elevado e seguro e provém de
signos”. O filósofo Immanuel Kant diz; “opinião é uma crença
insuficiente tanto subjetiva quanto objetivamente, de que se está
cônscio”.
Hegel negava a existência da opinião no domínio filosófico ele
afirmava: “a opinião é uma representação subjetiva, um pensamento
casual, uma imaginação que eu formo desta ou daquela maneira e
que outro pode ter de modo diferente. Mas a Filosofia não contém
opiniões, já que não existem opiniões filosóficas”; e Dewey confirmava
“na solução de problemas que pretendem menor exatidão que os
casos jurídicos, os juízos são chamados de opinião, para distingui-los
dos juízos ou asserções justificadas. Porém, se a opinião professada
tem fundamento, é produto da investigação e, em tal medida, é um
juízo”.
Aqui, neste trabalho, importa investigar como a opinião pode
ser, ela mesma, ponto de partida para a Filosofia e o conhecimento;

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 39


ou expressão de um conhecimento, ainda que parcial; ou, ainda,
impedimento ou negação do conhecimento.
Nestas circunstâncias, a investigação a respeito da opinião se
articula com a investigação acerca do Conhecimento, da Filosofia e
do Ensino de Filosofia. Observando a temática abordada na pesquisa
a opinião e o ensino de filosofia na escola e a forma de intervenção
proposta (o diálogo), tonou-se fundamental abordar questões
como: O que é opinião? O que é filosofia? O que é conhecimento?
Seja para fundamentar teoricamente a intervenção filosófica, ou tese
proposta, seja para confirmar no âmbito na realidade investigada.
Apesar dos riscos, há um entendimento da opinião, como um
ponto de partida possível para o conhecimento e ou possíveis graus
de conhecimento sensível do mundo. Nesse sentido, haja vista que
se propõe , na intervenção filosófica, um retorno aos fundamentos
do filosofar como meio para reapresentar a filosofia aos discentes,
partindo de suas opiniões e exercitando a reflexão e a crítica por
meio do diálogo, fez-se mister uma abordagem teórica referenciada
na obra de Platão. Essa forma de ver Platão concorda com o que
registra Engler (2011. p. 9).

Ao contrário daqueles que pensam que a filosofia seja apenas uma


técnica de lidar com argumentos, uma atividade profissional ou
algo que pode ser outorgado por um diploma, Platão a compreende
como um acontecimento existencial que modifica à nossa maneira
de estar no mundo. Assim para ele como para a maioria dos
filósofos gregos, a filosofia é um evento que provoca reorientação
ontológica nas pessoas e implica a experiência de determinadas
“paixões”. Ela não é atividade meramente intelectual, pois embora
possua discurso de elevado nível teórico, origina-se antes de uma
série de escolhas e decisões existenciais que, muitas vezes, são
justificadas a posteriori (ENGLER, 2011. p. 9).

Portanto, foi adotada como ponto de partida, a perspectiva


platônica acerca da opinião (doxa), aqui entendida em suas nuances
ou graus possíveis em relação à aproximação do que seria o
conhecimento verdadeiro ou episteme. E, a opinião entendida como
construção dos sujeitos a partir da percepção da realidade sensível

40  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


e impressões colhidas no cotidiano que compõem a base do pensar,
inclusive do pensar filosófico.
Entende-se que essa forma de conceber a filosofia e seu ensino,
recupera, sem desconsiderar as diferenças entre os momentos
históricos e as concepções de realidade, de certo modo, o modelo
platônico de abordagem da Filosofia e do seu ensino, presente
nos Diálogos - a partir dos problemas/temas do cotidiano, das
opiniões correntes a respeito desses temas, e por meio do diálogo/
problematização levar os interlocutores ao conhecimento de outras
perspectivas.
Isto posto, visando a ideia de intervenção filosófica como
meio para apresentar a Filosofia e superar opiniões sobre ela a partir
destas mesmas opiniões, buscou-se um modelo de intervenção e
de Filosofia, nos Diálogos platônicos promovendo um retorno às
origens da Filosofia como a ação de filosofar a partir das opiniões
sobre questões práticas e significativas da vida cotidiana, e o filosofar
como exercício dialético por meio diálogo.

Diálogo como método de pesquisa e de ensino de Filosofia

O diálogo na obra de Platão é mais que um gênero escolhido


para expressar seu pensamento através da escrita; é, antes, um
método de ensino de Filosofia e de como filosofar. “É fato que Platão
concebe o diálogo como o lugar da Filosofia em construção, e não
confia ao monólogo do tratado seu pensamento” (CORNELLI, 2010,
p.52). E ainda, deve-se:

Considerar Platão, tanto do ponto de vista teorético como do


ponto de vista didático, como autor de um gesto fundador, de
um modo de fazer filosofia que, pela primeira vez, retalha para
si um âmbito didático-processual: definindo um lugar para
isso (a Academia), um método (o diálogo) e um estilo de vida
(CORNELLI, 2010, p.52).

Por conseguinte, por meio do diálogo, Platão não só executa


uma pesquisa em que elabora sua teoria filosófica, mas apresenta um

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 41


método de como filosofar (dialética) e ensinar filosofia (maiêutica),
e ainda nos mostra de onde filosofar (a vida) e por que importa
filosofar (ser feliz).
A maiêutica socrática tem como significado “dar à luz”,
“parir” o conhecimento. É um método ou técnica que pressupõe
que a verdade está latente em todo ser humano, podendo aflorar
aos poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas
simples, às vezes quase ingênuas, porém perspicazes.
As duas etapas do método constituem-se da ironia e da
descoberta propriamente dita. O interlocutor é levado a duvidar de seu
próprio saber sobre determinado assunto, revelando as contradições
presentes em sua atual forma de pensar, normalmente baseadas em
valores e preconceitos sociais, ou seja, nas opiniões correntes. Em
seguida o interlocutor passa a vislumbrar novos conceitos, novas
opiniões sobre o assunto em pauta, estimulando-o a pensar por si
mesmo. O primeiro, passa à desconstrução dos saberes aceitos sem
muita reflexão, depois ajuda a reconstruir conceitos, transitando do
básico ao elaborado, “parindo” noções cada vez mais complexas.
A autorreflexão, expressa no nosce te ipsum — “conhece a ti
mesmo” — põe o sujeito à procura das verdades que são o caminho
para a prática do bem e da virtude. O diálogo na concepção socrática,
deriva da aplicação da maiêutica, que como se sabe tem seu nome
inspirado na profissão de sua mãe, Phaenarete, que era parteira.
Sócrates esclarece isso no famoso diálogo Teeteto. Pode se afirmar
que a maiêutica é, até nossos dias, um importante componente
pedagógico, ao estimular o estudante a construir o seu próprio
conhecimento por meio do uso e direcionamento de perguntas e
respostas formuladas pelo mestre.
Platão, argumenta que o movimento dialético não parte de
conhecimento verdadeiro, puro ou ideal, mas das opiniões postas
pelos interlocutores acerca de questões e problemas vivenciados no
cotidiano, na política, na guerra e no amor, entre outros; opiniões
essas compartilhadas por um grupo e tomadas, em muitos casos,
como postulados em seus diálogos.

42  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


A dialética platônica, assim como o diálogo onde acontece, se
estrutura a partir do encontro da identidade com a diferença que
constitui o mundo sensível pois, de outro modo, se houvera somente
o encontro com a identidade impassível do ser, do mesmo sempre
igual no mundo inteligível, não haveria diálogo e sim monólogo.
Logo, a dialética necessita por sua própria lógica interna do encontro
do diferente que se choca com o outro, para após a depuração pela
razão chegar na identidade da ideia.
De mais a mais o diálogo, numa acepção platônica do termo,
em referência ao gênero literário desenvolvido em seus textos, permite
o acesso a um conteúdo genuinamente filosófico tanto como
construção teórico-conceitual quanto a um contexto específico da
história da Filosofia, dando corpo à pesquisa bibliográfica inclusive
por parte dos discentes envolvidos na pesquisa.
E por fim, o diálogo enquanto modelo de conversação
interna ao texto, na fala dos interlocutores, conduz ao despertar
do maravilhamento acompanhado do processo de análise crítica
das opiniões, por meio do exercício da dialética e por conseguinte
na superação da aporia1, em vista de uma opinião mais elaborada;
isto pode ser definido como a própria intervenção filosófica. É o
conhecimento acontecendo. É a pesquisa filosófica de fato e para
além da pesquisa bibliográfica ou de campo.
Então, seguindo essa linha de pensamento, o diálogo como
método de ensino, para a prática do exercício da Filosofia nas
escolas de nível médio é uma eficaz ferramenta pedagógica. Ademais,
observa-se que a literatura pertinente ao ensino de Filosofia, bem
como o seu ordenamento curricular vem apontando na direção dessa
estratégia de ensino. Considera-se que tal atitude pedagógica está
em consonância com o fazer filosófico desde sua origem.
A Filosofia, sob essa interpretação, deve partir da vida e voltar
para vida (mundo sensível), para que se realize a felicidade entendida

1 Aporia (em grego: Ἀπορία, “caminho inexpugnável, sem saída”, “dificuldade”)


é definida como uma dificuldade, impasse, paradoxo, dúvida, incerteza ou
momento de contradição que impede que o sentido de um texto ou de uma
proposição seja determinado.

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 43


como eudaimonia2. A exemplo do que se registra na ‘Alegoria da
caverna’, onde o filósofo só se torna filósofo ao escapar das correntes
na caverna e ter a coragem de sair encarando a luz e aguardando
o acostumar-se dos olhos com ela e, ao vislumbrar a existência de
um mundo lá fora e intuir a diferença entre as sombras e os objetos
mesmos, volta à caverna, mas agora voluntariamente e ciente de que
sombras são imagens e novamente precisará acostumar os olhos para
ver as sombras, isto é, como representação distorcida da realidade,
como imagens e não como verdade. O que Platão argumenta está
presente no trecho seguinte:

Deve, portanto, cada um por sua vez descer à habitação comum


dos outros e habituar-se a observar as trevas. Com efeito, uma
vez habituados, sereis mil vezes melhores do que os que lá estão
e reconhecereis cada imagem, o que ela é e o que representa,
devido a terdes contemplado a verdade relativa ao belo, ao justo
e ao bom (PLATÃO, 520c, 2005. p.324).

A Filosofia seria então esse movimento dialético de saída do


homem rumo ao mundo inteligível (que é interno) e retorno ao mundo
sensível; isto é, movimento da ascensão para o ser quando há “um
voltar da alma de um dia que é como trevas para o verdadeiro dia,
ou seja, a sua elevação até à realidade, que diremos ser a verdadeira
filosofia” (PLATÃO, 521c, 2005, p. 326). Gerando, assim, nesse
movimento, uma depuração das opiniões.

Mas, afinal, ao método de argumentação não importa menos a


lavagem com esponjas do que os medicamentos, atendendo-se a
que a ação purificadora de arte seja mais ou menos benéfica que
a de outra. Na realidade, é para alcançar a penetração de espírito
que, investigando todas as artes, ele se esforça em descobrir as
suas afinidades e as suas dessemelhanças (PLATÃO, 227 a-b,
1972. p. 151).


2
Eudaimonia (do grego antigo: εὐδαιμονία) é um termo grego que literalmente
significa ‘o estado de ser habitado por um bom daemon, um bom gênio’, e, em
geral, é traduzido como felicidade ou bem-estar. Contudo, outras traduções
têm sido propostas para melhor expressar o que seria um estado de plenitude
do ser.

44  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


O diálogo, assim, se instala na diferença em busca da identidade,
da identidade como condição do conhecimento. Não sem razão,
Platão instaura a dialética como fio condutor do pensamento e
exercício que eleva as almas do mundo sensível (das sombras) - onde
se instala a ignorância e se formam as opiniões - ao mundo inteligível
(das ideias) – onde vislumbra o Ser iluminado pelo Bem - em busca do
conhecimento verdadeiro (episteme); sendo que, ambos os mundos
integram a vida humana.
Portanto, Platão concebe o movimento dialético não como parte
de conhecimento verdadeiro, puro ou ideal, mas das opiniões postas
pelos interlocutores acerca de questões e problemas vivenciados no
cotidiano, na política, na guerra e no amor, entre outros; opiniões
essas compartilhadas por um grupo e tomadas, em muitos casos,
como postulados em seus diálogos. A dialética platônica se estrutura
a partir do encontro da identidade com a diferença. É possível
entrever na fala de Sócrates:

- E foi assim que designámos o inteligível e o visível.


- Exatamente.
- Ora era isso mesmo que a pouco tentava te dizer, que certos
objetos convidam à reflexão, e outros não, colocando entre
os primeiros os que recaem sobre a sensação acompanhada
de impressões opostas; ao passo que os que não estavam
nessas condições, os colocava entre os que não despertam o
entendimento (PLATÃO, 523c-d, 2005, p.332).

Sob esse testemunho, nota-se que a razão de ser da dialética


está na articulação entre as percepções e opiniões do mundo sensível
e o esforço racional de buscar a identidade dos seres através por meio
do exercício da alma alcançado pelo diálogo. Se houvesse somente
o encontro com a identidade impassível do ser, da forma acabada e
presente no mundo inteligível, não haveria diálogo e sim monólogo.
Logo, a dialética necessita por sua própria lógica interna do encontro
do diferente que se choca com o outro, para após a depuração pela
razão chegar no uma identidade.

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 45


Nesse sentido, o diálogo, numa acepção mais geral do termo,
como método de pesquisa possibilitaria a escuta do outro, e por
consequência, o acesso às informações de forma menos espontânea e
mais elaborada, uma vez que comporta também os afetos imbricados
nas relações e nas opiniões emitidas pelos participantes da pesquisa.
Pode-se se dizer que o diálogo é uma estratégia que desenvolve a
maturidade intelectual, o respeito às opiniões divergentes, favorece
a participação e a igualdade, princípios fundamentais da sociedade
democrática.
O diálogo, numa acepção platônica do termo, em referência
ao gênero literário desenvolvido em seus textos; permite o acesso
a um conteúdo genuinamente filosófico tanto como construção
teórico-conceitual quanto a um contexto específico da história da
Filosofia, dando corpo à pesquisa bibliográfica inclusive por parte
dos discentes envolvidos na pesquisa-intervenção.
.
A opinião como instrumento metodológico do diálogo

A opinião é a matéria fundamental na constituição de qualquer


forma de diálogo, independentemente das pretensões buscadas
pelos interlocutores ou do grau de aprofundamento teórico das
discussões. É a partir de uma opinião que se quer defender ou refutar
que se instaura o diálogo, não necessariamente entre amigos ou
inimigos, mas entre posições diferentes que podem ou não chegar
em consenso.
Pode-se dizer que nem toda opinião é ponto de partida para
alguma forma de conhecimento, mas toda forma de conhecimento
parte de uma opinião e se expressa numa opinião, seja ela mais
ou menos fundamentada em dados de realidade ou evidências.
Mesmo o conhecimento tecno-científico moderno, formula suas
hipóteses antes ou durante uma pesquisa e se expressa numa opinião
especializada e fundamentada, mas sempre incompleta e sujeita a
correções.
Em seus diálogos constantemente Platão propõe opiniões
diferentes em oposição à opinião expressa na fala dos interlocutores;

46  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


e nem sempre fica claro o que Platão pensa propriamente. Por meio
do personagem Sócrates, por exemplo, Platão, frequentemente
propõe para a conversa (diálogo) temas com base em argumentos
filosóficos ou crenças populares que expressam representações
sociais vigentes e opiniões diversas que se colocam como postulados
ou como pensamento hegemônico.
Sobre a ideia de uma divindade eterna Platão convida ao
debate afirmando: “na própria ordem das coisas, amigo, há dois
paradigmas: um divino e bem-aventurado; outro, contrário a Deus e
miserabilíssimo” (PLATÃO, 176e, 2001. p.87). Para discutir a arte de
partejar Platão dando voz a Sócrates afirma:

Dizem que a causadora disso é Ártemis: por nunca haver dado à


luz, recebeu a missão de presidir aos partos. Às estéreis de todo,
ela não concede a faculdade de partejar, por ser fraca em demasia
a natureza humana para adquirir uma arte de que não tenha
experiência. As que já passaram de idade foi que ela concedeu
esse dom, para honrar nelas sua imagem (PLATÃO, 149 b-c.,
2001. p.45).

Nesta citação do Teeteto, Platão, por meio da fala de Sócrates,


lança mão de uma opinião popular, que expressa crenças do senso
comum presentes naquela sociedade, como artifício para ilustrar
uma característica do filósofo e do método filosófico. Aí não importa
se o conteúdo expresso é verdadeiro ou falso, isso não impacta no
resultado do exercício do pensamento que ele propõe. Então uma
opinião é utilizada como referencial e ponto de partida para o
processo dialético de concepção do que é dialética. O filosofo põe
em cena a discussão sobre o conhecimento, a partir da exposição
de opiniões, construindo um quadro comparativo entre a arte das
parteiras e a arte do método filosófico de ajudar no parto das ideias
forjadas através do exercício dialético, e não na recepção de saberes
externos.
E um pouco mais à frente no mesmo texto, complementando
o quadro comparativo, apesar de dizer que nunca apresenta opinião
pessoal por não possuir sabedoria, na verdade apresenta uma opinião

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 47


pessoal que expressa uma crença, ainda que se trate de ironia, a
afirmação é utilizada como premissa no argumento. “E a razão é a
seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede
de conceber” (PLATÃO, 150c. 2001. p.47). Se Sócrates, ou Platão,
acredita de fato na divindade, não importa tanto quanto o utilizar
essa afirmativa no contexto de elaboração de um conhecimento
sobre o conhecimento.
O próprio autor apresenta uma justificativa para o uso da
opinião que fora forjada nas crenças comuns. Como se lê no Fédon.

Eu também, o que digo é por ouvir dizer, e seguramente nada


impede que se transmita o que dessa forma me foi dado aprender.
E, com efeito, talvez convenha particularmente aos que devem
transladar-se para o além a tarefa de empreender uma investigação
sobre essa viagem e de relatar, num mito, o que julgamos ser tal
lugar. E por que não? Que poderíamos fazer senão isso durante
o tempo que nos separa do pôr do sol? (PLATÃO, 61d-e, 1972.
p. 68).

Isto significa que o conhecimento humano não parte de


certezas, pois nenhum ser humano enquanto vivente, no mundo
sensível, é capaz de dá conta perfeitamente do que está além; e
aquele que faz essa viagem talvez possa relatar num mito, ou dito de
outro modo, numa linguagem acessível. É da condição humana ser
parte desse mundo onde se forjam e transmitem conhecimentos por
meio de opiniões.
Sócrates identifica no homem uma dualidade e não a unicidade,
isto o leva a desenvolver este argumento com um exemplo de algo
que pode atuar de maneira distinta em duas pessoas, o vento: “não
acontece, por vezes, um de nós sentir um mesmo sopro de vento frio e
o outro não? E um sentir pouco frio e outro muito?” (152b). Com este
exemplo, Sócrates introduz a possibilidade de, diante de um mesmo
acontecimento - o vento - dois homens terem percepções distintas,
um senti-lo frio, e o outro não ter essa percepção, ou mesmo um
atribuir ao vento a qualidade de ser muito frio, enquanto o outro
atribuir ao vento a qualidade de ser pouco frio.

48  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


O filósofo demonstra em momentos diversos de seus diálogos,
que há graus diversos de opiniões, inclusive chegando a esclarecer no
Teeteto, que a diferença entre a opinião verdadeira e o conhecimento
verdadeiro está na impossibilidade de demonstração daquela por
meio de um processo metodológico e lógico (dialético); “sendo assim,
companheiro, ele tem opinião verdadeira associada à explicação
racional, a que não podemos ainda dar o nome de conhecimento”
(PLATÃO, 208b, 2001. p.136).
Ou seja, o que define um conhecimento e o diferencia da
opinião, é o processo do conhecer (dialética) e isso não significa
que cheguemos à verdade absoluta ou à ideia. Como testemunha o
depoimento de Sócrates em A República:

Ora bem – prossegui – O método da dialética é o único que


procede, por meio da destruição das hipóteses, a caminho do
autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e
que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie de
lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas, utilizando
como auxiliares para ajudar a conduzi-los às artes que analisámos
(PLATÃO, 533c-d, 2005. p.347).

A opinião pode ser diferente, no sentido de que ela pode ser


falsa ou pode ser verdadeira – pois se baseia na aparência; indo desde
uma elaboração fundada na aparência (o que pode levar a se tomar
as sombras como sendo os objetos que lhes dão origem), até uma
opinião fundada no vislumbre do mundo exterior, que se aproxima
da essência, mas não chegou nela. Neste sentido a opinião filosófica
difere de outras opiniões, mas ainda assim é uma opinião. Pode
expressar a verdade, mas será sempre incompleta e imperfeita.
A filosofia tomada como a arte do filósofo seria, neste caso,
a opinião ou um conjunto de opiniões organizadas logicamente e
validadas pelo conhecimento; pois, o método do diálogo, como o
utiliza Platão, dá testemunho de que o filósofo, de volta à caverna,
partindo das opiniões dos interlocutores, num processo de ascensão
pela razão, vai aos pouco organizando as informações trazidas nessas
opiniões, até levar o interlocutor não a uma conclusão definitiva,

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 49


mas à conclusão de que a sua opinião não se garante logicamente,
enquanto a do filósofo sim.
Na ‘Alegoria da Caverna’, o filósofo nos convida a não ficarmos
presos às amarras de uma opinião, mas buscarmos o conhecimento
para chegar a opiniões cada vez mais próximas da realidade. O
filósofo explora o conhecimento do mundo sensível, não propondo
seu abandono, mas o enfrentamento: “em primeiro lugar, olharia
mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos
homens e dos outros objetos refletidos na água, e, por último, para
os próprios objetos” (PLATÃO, 533c-d, 2005. p.347).
O filósofo, aí, não se apresenta como sábio (possuidor de
uma verdade) mas como alguém disposto a subir cada vez mais em
busca da fonte da luz e da origem das coisas que se ver. “Ora, esse
dom, o dom dialético, não atribuirás a nenhum outro, acredito,
senão àquele que filosofa em toda pureza e justiça” (PLATÃO,
253e, 1972. p.184-185). Assim, opinião e ciência são separadas pela
garantia de validade interna fundada no vislumbre do ser, através
do pensamento; portanto, da presença de um conhecimento que é
obtido pelo exercício da dialética.
Ao voltar para a caverna, o filósofo contrapõe sua opinião
a opinião dos seus antigos companheiros e intenta convencê-los a
buscar o conhecimento verdadeiro, que ele vislumbrou.
Nesse sentido, o diálogo se situa como o lugar onde o
pensamento se exercita por meio da dialética, e as opiniões se
colocam como instrumento metodológico. A filosofia, é então, o
exercício do filosofar - o movimento dialético onde se contrapõem
opiniões (falsas ou verdadeiras) expondo-as à crítica, em busca da
verdade.
E enquanto movimento, a filosofia não se cristaliza na
identidade do ser, se constitui como a busca amorosa do saber
decorrente do maravilhar-se com o mundo, não como saber. A
filosofia é o conhecimento, ou a gnose propriamente, haja vista que
se configura como o exercício do método para se chegar ao ser
(o método que liberta o pensamento das amarras dos sentidos);

50  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


mas, não é o conhecimento pleno do ser (identidade), pois aí seria
sabedoria e não mais filosofia.

Algumas faces da opinião nos diálogos platônicos

Considerando a análise de alguns diálogos Platônicos, tais


como: República, Teeteto, Sofista e Fédon; observa-se que o termo
‘opinião’ pode ter diferentes concepções que implicam em um grau
maior ou menor de aproximação ao conhecimento verdadeiro.
Estas considerações são importantes para revelar a complexidade
do termo nos escritos de Platão. À primeira vista o termo é usado
para designar apenas um conhecimento produzido pela ignorância,
mas Platão atenua esta compreensão. Assim (PLATÃO, 478d, 2005.
p.261), esclarece que a opinião como uma forma de conhecimento
se situa entre a ignorância e a ciência.

- Ora nós não dissemos antes que, se aparecesse alguma coisa


que ao mesmo tempo existisse e não existisse, tal coisa ficaria em
posição intermédia entre o Ser absoluto e o Não-ser absoluto,
e que sobre ela não haveria ciência nem ignorância, mas o que
aparecesse a meio caminho da ignorância e da ciência?
- Exatamente.
-E agora surgiu entre elas aquilo a que chamamos opinião?
-Surgiu.

É importante destacar também que, em diversas passagens


no diálogo Teeteto, o filósofo também associa a concepção de
conhecimento racional à opinião. “E agora, segundo penso, se nos
interessa de algum modo tal parecença, precisaremos decidir se
ele entende de pintura e consequentemente, se pode opinar nessa
matéria” (PLATÃO, 145a, 2001. p. 38/39); ou ainda, “do mesmo
modo nos preparativos de um banquete, a opinião do convidado
desconhecedor da arte culinária valerá menos que a do cozinheiro,
em matéria do tempero das iguarias” (PLATÃO, 178d, 2001. p. 90);
em ambos os pontos citados, a despeito da matéria em análise, a ideia

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 51


de opinião expressada implica em algum entendimento necessário
para endossar a capacidade ou o direito de opinar.
A opinião se assenta numa experiência ou conhecimento do
assunto, ainda que incompleto ou não científico. O próprio filósofo,
faz uso das experiências de vida e conhecimentos cotidianos dos
interlocutores, neste caso Sócrates e Teeteto, para ilustrar e refutar a
opinião sobre a opinião.

Como bem sabes, a opinião unânime é que todos esses casos


concorrem para refutar a doutrina exposta agora mesmo, visto se
revelarem de todo o ponto falsas em tais casos nossas sensações,
muito longe de serem coisa como se nos afiguram, nada, pelo
contrário, existe tal como nos aparece. (PLATÃO, 157e-158a,
2001. p. 58).

Nestes termos, a opinião significa por um lado um consenso
de um grupo, fundamentado na observação e análise de argumentos
que demonstram que a opinião é diferente de conhecimento, já que
se funda na sensação e a sensação se funda em aparências e não
no ser das coisas. Por outro lado, a “doutrina exposta”, e que fora
‘refutada’ pelos ‘casos’ que referenciam a “opinião unânime”, é ela
mesma opinião.
Mais adiante utiliza, a opinião com o sentido de perspectiva
pessoal. “E para a mulher, amigo, és de opinião que uma arte ensinará
isso, e outra a colher fruto”? (PLATÃO, p.149e, 2001. p. 46), deixa
entrever aí, a opinião como ponto de partida para o conhecimento.
Como matéria para a crítica e para a possível refutação, ou seja, para
o exercício dialético.
Em outro momento, Sócrates considera que o discurso da
opinião pode ser visto como o discurso que a alma faz consigo
própria, como uma etapa no ato de pensar.

Sócrates – Ótimo! Mas por pensar entendes a mesma coisa que


eu?
Teeteto – Que queres dizer com isso?
Sócrates – Um discurso que a alma mantém consigo mesma,
acerca do que ela quer examinar. Como ignorante é que te dou

52  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


essa explicação; mas é assim que imagino a alma no ato de pensar:
formula uma espécie de diálogo para si mesma com perguntas
e respostas, ora para afirmar ora para negar. Quando emite
algum julgamento, seja avançando devagar seja um pouco mais
depressa, e nele se fixa sem vacilações: eis o que denominamos
opinião. Digo, pois, que formar opinião é discursar, um discurso
enunciado, não evidentemente, de viva voz para outrem, porém
em silêncio para si mesmo. E como te parece?
Teeteto – A mesma coisa (PLATÃO, 189e-190a, 2001. p. 107/108).

Desse modo, a opinião seria também uma etapa do filosofar e


do conhecer, quando firma uma hipótese a ser examinada, e quando
se constitui como uma resposta a partir desse exame. Opinião é o
próprio pensamento ao se fixar em um julgamento emitido no ato de
pensar. E o grande problema é o ‘fixar’, pois a opinião implica em um
fixar num julgamento “sem vacilações”, a tendência a cristalizar-se
numa crença e manter a alma presa.
A opinião pode resultar de um processo de pensamento
filosófico, tornando-se uma doutrina filosófica ou uma opinião
filosófica, ainda imperfeita, mas ciente da ignorância, como diz
Sócrates no acima citado “Como ignorante é que te dou essa
explicação”; ou pode resultar do senso comum, a partir de experiências
do cotidiano vivenciadas e ou transmitidas pela educação recebida.
Pode ser verdadeira ou falsa.
O que vai distinguir o caráter filosófico e cognoscível, é o
processo dialético de depuração das opiniões por meio da razão; o
que diferencia a filosofia de uma opinião verdadeira, propiciando
o conhecimento, é a argumentação empregada dialeticamente,
no âmbito do debate (diálogo) e através do qual se chega ao
conhecimento - o método. Ele ressalta a importância do processo
de filosofar, na utilização do método e não apenas nos resultados
obtidos ao final do exame.
Propõe-se, para objeto de reflexão, a constatação da realidade
ontológica do mundo sensível. Isso implica, por um lado, em um
conhecimento possível desse mundo, ainda que considerado simples
opinião e visto como um falso conhecimento ou um engano por se

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 53


fundamentar nas ‘sombras das coisas’ e não nas ‘coisas mesmas’;
e por outro, por apontar para um caminho (intermediário) a ser
percorrido pela razão (aprisionada no espaço sensível) até o ser -
caminho que ao interligar a doxa a episteme, por um processo lógico
de ascensão; que interliga ontologicamente as realidades dos dois
mundos.
Desse modo, identifica-se a opinião como uma elaboração
baseada numa crença verdadeira ou não, resultante de representações
oriundas do acesso ao mundo sensível de forma natural (de acordo
com as capacidades naturais de cada um) ou de representações
sociais oriundas da educação recebida. À medida que o homem
exercita a razão-pensamento, e sai do mundo sensível (das sombras),
há um desvelar do ser (Aletheia)3 no encontro com o mundo inteligível;
o ser se apresenta como o sol que lança a luz, mas a vista do homem
embotada pelas amarras dos sentidos o impede de encarar a fonte da
luz. Como se lê em (PLATÃO 507b, 2005. p.305).

- Que há muitas coisas belas, e muitas coisas boas e outras da


mesma espécie, que dizemos que existem e que distinguimos pela
linguagem.
- Dissemos, sim.
- E que existe o belo em si, e o bom em si, e, do mesmo modo,
relativamente a todas as coisas que então postulámos como
múltiplas, e, inversamente, postulámos que a cada uma
corresponde uma ideia, que é única, e chamamos-lhe a sua
essência.
- é isso.
- E diremos ainda que aquelas são visíveis, mas não inteligíveis, ao
passo que as ideias são inteligíveis, mas não visíveis.

Assim, a visão do mundo inteligível por meio do pensamento,


aproxima-o do conhecimento verdadeiro e a verdade resulta do
desvelamento, mas não assegura o acesso à ciência; pois a verdade
enquanto desvelamento do ser, pode ser parcial. E, por outro lado,

3 Alétheia, lit. verdade, no sentido de desvelamento: de a-, negação; e lethe,


“esquecimento”), para os antigos gregos, designava a verdade e a realidade,
simultaneamente

54  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


mesmo nas sombras da caverna, há um pouco de verdade; pois, as
sombras são imagens (cópias) e a cópia apresenta semelhança com a
coisa, embora não seja a coisa (idêntica a si mesma). A cópia ao ser
diferente da coisa, torna-se outra coisa; e justamente por ser diferente
da coisa de que é cópia, possui sua própria identidade como cópia.
Como podemos ver em (PLATÃO 477a-b, 2005, p.257/258).

- Seja. Mas se houver uma coisa que seja de tal maneira, que
existe e não existe, não ficaria em posição intermédia entre o Ser
absoluto e o Não-ser absoluto?
- Ficaria.
- Portanto, se o conhecimento respeitava, como vimos, ao Ser,
e o desconhecimento forçosamente ao Não-ser, relativamente
a essa posição intermédia, deve procurar-se algo de intermédio
entre a ignorância e a ciência, se acaso existe alguma coisa nessas
condições.

A opinião e a ciência são coisas diferentes por terem objetos


diferentes, mas também por implicarem em graus diferentes de
conhecimento. A ciência enquanto ideal a ser buscado, só poderá
ser atingida por meio do pensamento e no encontro com o ser no
mundo inteligível, é conhecimento da identidade. A opinião também
é uma elaboração do pensamento, mas que parte da sensação
diante do mundo sensível e será tanto mais verdadeira quanto mais
se aproximar da ideia no mundo inteligível, mas é o conhecimento da
diferença que reina no mundo sensível, uma coisa intermediária entre
o ser (identidade) e o não-ser.
Desse modo, o mundo sensível sendo cópia do inteligível se
diferencia deste, por um lado e tem sua própria identidade; e por
outro lado, reproduz e ao reproduzir desvela um pouco do mundo
que representa. Ou seja, as opiniões, oriundas do acesso ao mundo
sensível, podem carregar, aspectos verdadeiros que facilitam
reconhecer (lembrar) e identificar as coisas verdadeiras (ideias) no
mundo inteligível.

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 55


O filosofar entre o opinar e o conhecer

Segundo Platão, a filosofia nasce do espanto. Mas, o espanto


entendido como o maravilhar-se diante do que é comum ao perscrutá-
lo para além do visível, no que está invisível; “pois a admiração é a
verdadeira característica do filósofo” (PLATÃO, 155d, 2001. p. 55).
Como nos lembra Arendt (2000, p.109), ao fazer referência ao texto
platônico,

[...] o que deixa os homens espantados, é algo familiar, e ainda


assim normalmente invisível, que eles são forçados a admirar.
Aquele espanto que é o ponto de partida do pensamento não é
nem confusão, nem surpresa, nem a perplexidade; um espanto de
admiração.

Lembremos, que o ato de pensar para Platão implica num


diálogo interno, onde o pensamento examina opiniões e as reelabora.
Esse ato, dialogal, implica numa crítica interna das opiniões fixadas
em momentos anteriores, a partir de uma nova opinião posta que
descortina um novo olhar para a realidade. É o caso do prisioneiro
que escapou por um golpe de sorte e vislumbrou o mundo fora da
caverna.
O existir no mundo sensível pode acostumar a vista com as
sombras das coisas levando à fixação de julgamentos e constituindo,
como visto antes, as opiniões. No entanto, as sombras remetem aos
objetos do mundo inteligível e havendo uma oportunidade pode-se
despertar a mente por meio da dialética para o conhecimento do ser.
O vislumbre de um mundo diferente do que estava acostumado lança
uma nova perspectiva sobre o supostamente já conhecido. Não é
somente o mundo lá fora que se constitui como objeto de admiração,
de espanto; o mundo da caverna torna-se também estranho e novo.
O pensamento obriga-se à busca de novo conhecimento.
No diálogo consigo mesmo, o pensamento se opõe a si mesmo
como o outro, critica-se, e exercita-se por meio da dialética. Esse
exercício configura o filosofar, que oscila como corda bamba entre o
opinar e o conhecer – perder-se em um como noutro seria o seu fim.

56  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


Assim como a opinião está entre a ignorância e o conhecimento,
a filosofia está entre a opinião e conhecimento: constitui a ambos,
e é constituída por ambos. A filosofia também é um juízo que se
fixa em algum ponto para ser emitido como conhecimento daquilo
que é e não é (diferença), ainda que incompleto; e é o movimento
de superação desse juízo em busca do ser (identidade). Filosofar é
perceber a diferença e espantar-se com a incerteza do que parece
certo. Buscando a verdade, o filosofar se torna o conhecer.
Com base na reflexão sugerida por Platão na ‘Alegoria da
Caverna’ nos situamos no mundo sensível (da multiplicidade e
das sombras) sendo preciso ascender com a razão para além dele;
é possível, inclusive, que nosso conhecimento acerca da teoria
platônica, institucionalizado nos escritos e nas tradições acadêmicas,
seja uma ‘opinião mais verdadeira’, mas ainda uma opinião.

- Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora


aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando
o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da
fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo
superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a
ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha
expectativa, já que é teu desejo conhece-la. O Deus sabe se ela é
verdadeira. (PLATÃO, 517a-b, 2005, p. 319).

Portanto, mesmo Platão enquanto ser humano e filósofo,


estaria sujeito aos limites do mundo sensível, e ainda que liberto das
cadeias e curado da ignorância, sentiria os efeitos da luz, sobre seus
olhos sensíveis e sua razão aprisionada no corpo, portanto também
sensível. Então, não seria a filosofia platônica, seus escritos e ideias,
também opinião que parte de opiniões?
Detendo-se, no Livro VII da República, afim de buscar entender
o lugar da filosofia na Alegoria da Caverna de Platão, ainda que
a referência caiba a qualquer de seus Diálogos, pode-se notar que
para construir seus Diálogos e chegar à demonstração de suas ideias,
Platão, toma como ponto de partida as opiniões dos interlocutores,

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 57


assumindo, neste caso, na República, Sócrates como porta voz de
suas ideias (ou opiniões?).
Na verdade, o uso da metáfora, expressa na referida alegoria,
já se apresenta como uma forma de construção lógica que parte
de opiniões acessíveis ao senso comum e fundadas na visão do
mundo sensível. Platão utiliza o método dialético, daí a praticidade
dos diálogos como meio para sua argumentação. Dialética aqui
entendida como “processo em que há um adversário a ser combatido
ou uma tese a ser refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas
ou duas teses em conflito” (ABBAGNANO, 2003, p.269). Nesse
método, contrapõe sua opinião a outras opiniões, e chega a uma
síntese, que não se fecha numa suposta verdade, embora o Diálogo
chegue a uma conclusão.
Certamente entende-se o risco de se colocar o filosofar entre o
opinar e o conhecer, tendo em consideração os diálogos platônicos
como referência, e o esforço empregado para distinguir o lugar da
opinião no mundo sensível do lugar do conhecimento no mundo
inteligível; porém como podemos ler no Fédon:

É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma,
quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava
completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele;
que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão, através
da qual ela devia forçosamente encarar as realidades (PLATÃO,
82d, 1972, p.94).

A filosofia é ela mesma uma questão filosófica por que é a


um tempo conhecimento e processo do conhecer; está em aberto, é
curiosidade, e sobretudo, espanto. É por meio da filosofia que a as
opiniões podem ser desmascaradas, que as sombras podem ser vistas
como o que são: sombras. É na diferença que distingue as sombras
(opiniões) dos objetos (conhecimento) que a filosofia se constitui
para guiar a alma. Mas fora do corpo a alma é o divino não mais o
humano. E filosofia é a memória do divino no humano.
O filosofar, neste sentido, é o conhecer; é o exercício da
dialética em busca do saber, é percorrer o espaço intermediário entre

58  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


a opinião (vislumbre da cópia no mundo sensível) diferenciando-a da
ciência (por meio do vislumbre da ideia no mundo inteligível).
Filosofar é o movimento e o meio pelo qual se chega ao
conhecimento. O opinar é um falso conhecer (um simulacro) quando
se funda na cópia da cópia, mas pode ser um conhecimento incompleto
(uma imagem) quando se funda na cópia da ideia – ambos podem
levar à confusão da imagem com o objeto que representa, e quanto
maior a distância em relação ao objeto, maior o risco; o verdadeiro
conhecimento consiste na capacidade de reconhecer as diferenças
entre a cópia e a ideia, conhecer assim é um atributo do filósofo.
Sobre esta capacidade contemplativa da razão, Platão declara:

- Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo


superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as
sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros
objetos, refletidas na água, e, por último, para os próprios
objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há
no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das
estrelas e da lua, mais facilmente do que fosse o sol e o seu brilho
de dia.
- Pois não!
- Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de
contemplar, não já sua imagem na água ou em qualquer sítio,
mas a ele mesmo, no seu lugar (PLATÃO, 516a-b, 2005. p. 317).

O conhecimento, como o próprio trecho do diálogo citado


mostra, resulta do exercício da razão, da argumentação lógica. O
filosofar é, portanto, contemplação da verdade não a posse dela.
Filosofar é desvelar o ser, e distingui-lo da imagem; mas o filósofo
não acessa o ser, e de algum modo sempre volta à “caverna” pois
ainda é parte do mundo sensível.
Tendo como referência o modelo do diálogo platônico, como
o lugar próprio para o exercício da Filosofia, haja vista que aí ela se
coloca em movimento rumo a busca do saber, contudo sem esquecer
que a Filosofia se dá exatamente nesse momento em o filósofo ascende
pela dialética do mundo sensível ao mundo inteligível; entende-se que
a Filosofia simplesmente acontece no filosofar, e o filosofar acontece

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 59


na e a partir da experiência da vida, pois, segundo os ensinamentos do
filósofo, se algum tipo de experiência do pensamento ocorresse fora
da vida, da sensibilidade, seria a perfeição onde reinaria a identidade
e já não haveria lugar para a Filosofia.

O ensino de Filosofia: saindo da caverna para voltar depois

A Alegoria da caverna de Platão, é um texto emblemático da


obra do filósofo, apresentado logo no início do livro VII da República
que, frequentemente, é utilizado como referência para fundamentar
a ‘Teoria das ideias’ deste pensador.
Na referida obra, o autor utiliza a alegoria como metáfora
para explicar a existência da realidade sensível e da inteligível, ao
tempo que distingue a ciência do que chama de opinião. No entanto,
podemos observar que, ao se referir à opinião em momentos diversos
do livro VII – apresenta uma ascensão da razão, indo do mundo
sensível gradativamente ao inteligível.

– Depois disto – prossegui eu - imagina a nossa natureza,


relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a
seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação
subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para
a luz, que se estende a todo comprimento. (PLATÃO, 514a, 2005.
p. 315).

A caverna não é o lugar do nada; mas do ‘não ser’, da imagem


do ‘ser’4, do outro, da diferença, mas também da semelhança. “Uma

4 “O primeiro filósofo a colocar explicitamente o conceito de SER foi


Parmênides de Eleia (século VI a.C. - século V a.C.). Para ele, seria impossível
falar ou pensar no Não-Ser, pois o Não-Ser a nada se refere. Para o pensador
de Eleia, O Ser, que existe para além das ilusões do mundo sensível da doxa, é
uno, eterno, imóvel, não-gerado e imutável: “O Ser é e o não ser não é”. Platão
tenta resolver a questão do Não-Ser nos diálogos Parmênides e Sofista ao
passar a entender o Não-Ser como alteridade (diferença) em relação ao Ser em
vez de contrariedade. (Por exemplo, “o belo não é feio”). Segundo o discípulo
de Sócrates, quando dizemos “ o não-ser não deve participar nem da unidade
nem da pluralidade “ e o não-ser “ é impronunciável, inefável e inexprimível “ já
dizemos o Não-ser uno, pois dizer o já implica unidade, e contradizemos a ideia

60  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


vez que o belo é o contrário do feio, são dois. – Como não? – Por
conseguinte, uma vez que são dois, também cada um deles também
é um” (PLATÃO, 475e - 476a, 2005, p. 225).
Paradoxalmente o ‘ser’ está presente no não ser, no seu outro.
Na caverna há algo, ainda que não seja a essência. As sombras
ali projetadas, resultam da luz que vem de fora e ali penetra, e ao
penetrar respeita em certa medida, o modelo do objeto projetado.
A opinião antes do acesso ao mundo de fora, é diferente da opinião
ao voltar (do filósofo), mas o filósofo também terá que readaptar a
visão para ver novamente as sombras.

- Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem


soltos das cadeias e [...] da sua ignorância, a ver se, regressados
à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que
alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente,
a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso,
sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos
cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém
lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que
agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado
para objetos mais reais? (PLATÃO, 515c-d, 2005, p. 316/317).

O que diferencia, em termos, o prisioneiro do filósofo é que


este está livre e pode comparar as sombras com os objetos de que
são projeção; haja vista ter vislumbrado o mundo exterior. O risco
que a opinião oferece, é o de manter a razão aprisionada no mundo
da imagem, pelo conforto decorrente do costume, nas sombras da

de que ele não possa ser pronunciado ou expressado, pois lhe aplicamos o é.
Platão então, negando Parmênides, defende a comunhão entre Ser e Não-ser.
Impondo a introdução do Outro (ou diferença) e do Mesmo chega à acepção
predicativa do Ser. Esclarece que podemos designar uma única e mesma coisa
por uma pluralidade de nomes porque a acepção identitativa (A=A) não é a
única possível ao Ser, o homem pode então também ser chamado de bom e
não apenas de homem (“ o homem é bom “ e não apenas “ o homem=homem
“ e “ o bom=bom “). Podemos, com a ideia de predicação, tratar as coisas
como capazes de participação mútua. Com a ideia de identidade, podemos
supor a todas as coisas como incapazes de união mútua” (DIAS, J. R. Barbosa.
O Ser no “Sofista” de Platão. Kalagatos, revista de filosofia. Fortaleza. v.7 n.
14, 2010. p. 57).

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 61


caverna. Mas, as sombras mesmas podem ser vistas como uma forma
de realidade em si (enquanto cópias e simulacros têm sua participação
no ‘ser’); e, se se tem consciência de que existe um mundo lá fora e
da condição de imagem das sombras, há possibilidade de se ter uma
opinião verdadeira.
E ainda, enquanto se caminha para a luz, no processo de
ascensão da razão, há aquisição de conhecimentos, e um crescente
aproximar-se da ciência. “E então? Quando ele se lembrasse da
sua da sua primitiva habitação e do saber que lá possuía, dos sus
companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria
com a mudança e deploraria os outros”? (PLATÃO, 516c, 2005, p.
318).
A caverna, ou mundo sensível, é o lugar de elaboração de
opiniões em diferentes níveis de aproximação ao conhecimento,
e é também o lugar em que faz sentido o ensino, ou a intervenção
filosófica. A dialética mesma enquanto método para o conhecimento
se realiza diante da alteridade (ser - não ser): mundo sensível- mundo
inteligível.
A alegoria da Caverna, sendo alegoria é opinião e expressa a
opinião de Platão sobre os dois mundos cujo fim é revelar que o
homem e a Filosofia se situam na busca pela ciência. Mas também
é ciência, resulta do movimento da razão que se projeta para além
da opinião e contempla as ideias no mundo inteligível. E também,
é Filosofia, enquanto técnica aplicada para chegar na teoria
(contemplação das ideias) e voltar ao mundo da prática; o mundo
da experiência educativa que longe ser o lugar que aprisiona deve ser
o espaço que liberta.
Platão certamente esteve preocupado com o caráter prático da
Filosofia e sua possibilidade de intervir no espaço da vida pública,
com este fim iluminar o mundo sensível (a Caverna) quando propõe
um modelo educacional para uma sociedade justa. No mesmo Livro
VII, em decorrência da análise comparativa que faz da caverna com a
vida e a justiça, ele argumenta que o mundo lá fora, lugar iluminado
e real, é nossa referência para o mundo concreto.

62  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


Platão não propõe uma vida no outro mundo (não sensível)
isso seria abrir mão da experiência humana; o que não faria sentido
diante da preocupação de construir uma sociedade justa e governada
por filósofos para o bem de todos. Então, ou a Caverna representa
uma condição humana e não uma realidade ontológica; ou a Caverna
representa o mundo sensível e nossa ciência sempre será uma opinião,
mesmo que cada vez mais próxima da verdade. Pois, ainda segundo
Platão (2005).

- A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma


e de um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse
possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o
corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente
com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de
suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser.
A isso chamamos o bem. Ou não? (518c, p. 321).

A Filosofia aparece, então, como sendo esse exercício do


prisioneiro que, ao escapar da caverna, pelo pensamento, se encanta
e se enamora da verdade que se descortina diante de seus olhos
expostos à luz, e esse encantamento o eleva e leva ao amor pelo
saber; mas, também, o impulsiona a voltar para a caverna em busca
do humano, ainda, aprisionado na ignorância e nas sombras.
Neste contexto, entende-se que a Filosofia e o ensino de
Filosofia se configuram como processos dialéticos construídos numa
relação teórico-prática. Filosofia e ensino de Filosofia, estariam,
assim, imbricados num movimento contínuo rumo ao conhecimento
verdadeiro – o filosofar.
Portanto, a Filosofia, que não é sabedoria ou conhecimento
absoluto do ser, se coloca num lugar entre opinião e a ciência e
se constitui no exercício da capacidade da razão para superar as
sombras da opinião e descobrir, com a luz do bem, a ciência. Para
Homem o compreender o que é a caverna, precisa sair dela, mas não
saberia o que é a caverna se nunca tivesse tido a evidência dela em si
mesmo, em sua experiência com ela.

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 63


Sair da caverna é uma metáfora que oportuniza um olhar mais
racional sobre este mundo, mundo de representações, opiniões e
crenças e que se colocam muitas vezes como naturais e evidentes, mas
que estão à espera da função esclarecedora da razão, daí porque é
preciso o retorno à experiência e, nesse sentido, a atividade filosófica
tem muito que contribuir com este desenvolvimento de razão crítica,
autônoma e libertadora.

Considerações Finais

A partir da perspectiva considerada, a Filosofia pode ser a


descoberta de um mundo para além da contingência do humano por
meio do pensar metódico, mas também é o voltar-se maravilhado
para o mundo onde o humano se concretiza no sensível. Na Alegoria
da Caverna, a Filosofia se apresenta como exercício e processo
de ascensão das opiniões oriundas do mundo sensível rumo ao
conhecimento do mundo inteligível por meio da dialética.
Assim, entre as concepções possíveis de Filosofia e de ensino
de Filosofia, que articulam esse ensino com a ação de filosofar e, por
conseguinte, articulam a Filosofia com o seu ensino por meio de um
método filosófico, situa-se a perspectiva platônica onde o método
dialético se configura como meio pelo qual a filosofia se realiza
enquanto exercício do pensar. Desse modo, o ensino de Filosofia
acontece enquanto o discente é estimulado e guiado na dialética que
opõe e critica opiniões por meio do diálogo.
Por meio do diálogo, o professor-filósofo pode exercer a
maiêutica à moda socrática, estimulando o maravilhamento e
provocando a crítica das opiniões, sem impor perspectivas pessoais,
de modo que o discente possa livremente exercitar o pensamento e
fazer suas escolhas: seja fundamentando e defendendo suas opiniões
de forma racional, seja constatando sua ignorância, seja desistindo
do diálogo.
Após esse percurso teórico, tendo em vista a questão da opinião
em suas relações com a Filosofia e o ensino de Filosofia, compreende-
se que de fato a Filosofia é complexa e se mostra sob muitos vieses.

64  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


Isto não a torna inacessível nem distante das contingências humanas,
antes o que a faz complexa são suas possibilidades de ser na diferença
que constitui o existir humano, pois é aí que se realiza como atividade
do pensamento, mas também como um afetar-se do humano diante
da percepção de si mesmo e do mundo como Platão apresenta na
alegoria da caverna.

REFERÊNCIAS

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Martins Fontes, 2003.

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. 4. Ed. Rio de Janeiro: Relume


Dumará, 2000.

BENETTI, Cláudia Cisiane. Filosofia e ensino: singularidade e


diferença: entre Lacan e Deleuze. (col. Filosofia e ensino) v. 10. Ijuí:
Unijaí, 2006.

CORNELLI, Gabriele. História da filosofia antiga: começar


pelo diálogo. IN: CORNELLI, Gabriele (coord); CARVALHO,
Marcelo(coord); DANELON, Márcio(coord). Filosofia – ensino
médio (col. Explorando o Ensino). v. 14. Brasília: MEC/Secretaria de
Educação Básica, 2010.

DIAS, J. R. Barbosa. O Ser no “Sofista” de Platão. Kalagatos, revista


de filosofia. Fortaleza. v.7 n. 14, 2010. p. 57.

ENGLER, M. Reus. Tò thaumázein: a experiência de maravilhamento


e o princípio da filosofia em Platão.

GALLO, Silvio. Filosofia: experiência do pensamento. São Paulo:


editora Scipione, 2016. 2. ed.

JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de


filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

A OPINIÃO, A FILOSOFIA E O ENSINO DE FILOSOFIA 65


PALFREY, John; GASSER, Urs. Nascidos na era digital: entendendo a
primeira geração de nativos digitais. Porto Alegre: Grupo A, 2011.

PLATÃO. A República. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 2005.

________. Diálogos O banquete – Fédon – Sofista – Político. São


Paulo: Abril Cultural – Victor Civita, 1972. (col. Os Pensadores –
v.3).

_______. Diálogos Teeteto - Crátilo. Belém: Editora Universitária


UFPA, 2001. 3.ed.

66  Francisca Alaíne Pinheiro • Edna Maria Magalhães do Nascimento


ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA
NUMA PERSPECTIVA ÉTICA:
UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO

Conceição de Maria Sousa Araújo

Introdução

O
presente artigo é resultado da pesquisa intitulada
“Ensinar e aprender filosofia numa perspectiva ética:
uma proposta de intervenção numa escola pública”
que visa investigar a prática do ensino de filosofia tendo como
perspectiva a possibilidade de uma construção dos saberes éticos na
sala de aula, capaz de tornar o processo de ensino e aprendizagem
crítico e reflexivo, contribuindo com essa intervenção filosófica para
uma aproximação dos alunos do ensino médio com os conteúdos
filosóficos que permitam a participação dinâmica e criativa na sala
de aula.
A questão fundamental a ser problematizada seria: como
podemos construir o saber moral no ambiente escolar nas turmas
de ensino médio de uma escola pública de Teresina através das aulas
de filosofia? Em que aspectos este projeto fundamentado na ética
filosófica poderá intervir no comportamento ético dos alunos a fim

ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA NUMA PERSPECTIVA ÉTICA: 67


UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
de levá-los compreender a si mesmos e da sua realidade? E qual o
papel do aluno nesse processo de descoberta de si mesmo, como
cidadão responsável pelas suas atitudes? Estas questões apontam
para o problema central a ser pesquisado: Como construir um saber
ético nas aulas de filosofia no ensino médio de uma escola pública?
Esta investigação desenvolveu-se a partir de um estudo teórico
e prático que buscou: primeiro, realizar uma análise do conceito,
caracterização e problematização da questão relativa à construção
dos valores morais, tendo no ensino de filosofia uma possibilidade
para esta intervenção; segundo, desenvolver atividades filosóficas
por meio de metodologias mais criativas usadas como ferramentas
mais eficazes ao atendimento destes objetivos. Essa problemática é
pertinente porque parte da hipótese que a escola ainda é o espaço
ideal para o desenvolvimento moral do aluno, um espaço de
experimentação, socialização e formação cujos valores éticos são
constantemente testados, praticados e avaliados.
O projeto de intervenção a ser realizado se justifica por propor
uma reflexão sobre a construção dos conceitos éticos nas aulas de
filosofia, procurando a partir deste estudo fazer o resgate de uma
educação mais ética e humanizada; utilizando o conhecimento
filosófico, possibilitando assim a valorização do aluno na sua
totalidade, como forma de contribuir para a transformação da
realidade escolar por meio da mudança de comportamento dos alunos
envolvidos no processo educacional. Esta tentativa de inovar a forma
de educar deverá ter um caráter ético envolvendo toda comunidade
escolar, e que todos se sintam responsáveis pelo processo de ensino
aprendizagem levando os alunos a descobrirem o valor do aprender,
construindo por meio dessa interação, uma autêntica relação ética
solidária no interior da escola.
O presente estudo adotou um método qualitativo para a
execução da proposta de intervenção filosófica na sala de aula,
articulado com uma pesquisa bibliográfica e alinhado com uma
pesquisa de campo, pretende-se analisar como o ensino de filosofia
pode contribuir para uma formação ética com capacidade de gerar

68  Conceição de Maria Sousa Araújo


mudanças de comportamento dos envolvidos no processo de ensino-
aprendizagem.
A escola inserida num contexto de mudanças sociais intensas
traz consigo a problemática do comportamento ético para dentro
da sala de aula, convocando todos os envolvidos com o processo
educacional para uma reflexão sobre “que tipo de escola queremos
para os nossos filhos” ou “como a filosofia pode contribuir no meu
fazer pedagógico na formação ética dos meus alunos”? Partindo
destes questionamentos sobre a importância da ética no ambiente
escolar surgiu o interesse por esse estudo, que se justifica pôr a
pesquisadora está numa escola pública onde impera a evasão, a
desesperança, o uso de drogas, relações de desrespeito e problemas
de convivência.
Nessa perspectiva de estudo, as questões que nortearam este
estudo apresentam como objetivo geral: possibilitar uma intervenção
filosófica na sala de aula a partir da construção do conceito ético
aplicado aos alunos, como forma de melhorar o ambiente escolar
do 2º ano de uma escola pública de ensino médio na cidade de
Teresina. Os objetivos específicos apontam para a aplicabilidade dos
conteúdos éticos nas aulas de Filosofia como: verificar a aplicação
dos conteúdos relacionados aos valores éticos e morais presentes
na escola; levar os alunos a reconhecer a importância dos valores
éticos e morais na sua formação integral; analisar de forma crítica o
processo de ensino aprendizagem na disciplina de Filosofia; aplicar
um diagnóstico para identificar a situação educacional relacionada
aos valores éticos necessários à uma intervenção filosófica; realizar
uma estratégia de intervenção filosófica decorrente do resultado do
diagnóstico relacionado aos valores éticos que constará de várias
atividades: seminários, oficinas, palestras, exposições de Slides, café
filosófico dentre outros.
Reconhecer que a formação ética na escola passa pelo
reconhecimento do respeito ao outro no agir moral e da relação
próxima da ética e da moral, no que se refere ao comportamento
humano, implica numa tomada de decisões que leva o indivíduo a
escolher entre o certo e o errado e bem e o mal.

ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA NUMA PERSPECTIVA ÉTICA: 69


UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
O estudo tem como fundamentação teórica uma concepção
reflexiva e analítica acerca da construção do saber moral no ambiente
escolar, iniciaremos nossa reflexão fazendo referência a Aristóteles
na sua obra “Ética a Nicômaco”, De acordo com o pensamento de
Aristóteles, a ética está relacionada com aquilo que a pessoa “deseja”
para si. A questão ética é: “Que vida eu quero viver? ”. Já a moral
se relaciona ao agir, aos direitos e obrigações: “Como devo agir? ”.
(LEIBIG, 2009). Se recorrermos à história da filosofia, veremos que
desde Aristóteles o papel da formação ética do homem já havia sido
identificado.

Aristóteles: a excelência moral como hábito

Sobre a noção de virtude, Aristóteles no livro “Ética a Nicômaco”,


caracteriza dois tipos de virtudes; a intelectual e a moral. Assim como
a virtude intelectual requer o ensino, as virtudes morais resultam do
hábito:

Sendo a virtude, assim, de dois tipos, uma intelectual e outra


moral, a virtude intelectual depende mais do ensino, quer em
sua origem, quer em seu crescimento; portanto, ela precisa de
experiência e também de tempo; a virtude moral resulta do
hábito, de onde lhe vem seu nome, formado por uma pequena
e sutil alteração de “ethos”. Por isso, é evidente que nenhuma das
virtudes morais é gerada em nós por natureza, pois nenhuma das
coisas que existe por natureza torna-se diferente pelo hábito, [...]
(2016, p.39)

Aristóteles argumenta que “A razão é que ela é de todos os


sentidos o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos
descobre [...]” (Idem, p.11). Podemos concordar que a racionalidade
é essencial para o desenvolvimento moral do homem, levando-o a
partir da apreensão do conhecimento, a possibilidade deste fazer
as melhores escolhas tendo em vistas obter algum bem, que só será
possível mediante a prática das virtudes morais. O filósofo declara
que o uso a razão é o caminho para o equilíbrio que só acontece

70  Conceição de Maria Sousa Araújo


através da mediação no ato da escolha. A partir desta constatação
pode se afirmar:

A virtude é, portanto, uma ordenação de intenções, que consiste


na mediação em relação a nós mesmos, definida pela razão e
estabelecida como o faria o homem sábio. É uma mediação entre
dois vícios: um por excesso, outro por escassez. E como alguns
vícios são por escassez e outros são por excesso do que é devido,
seja nas paixões, seja nas ações, a virtude encontra o justo meio
(NICOLA, 2005, p.98).

A faculdade de aprender segundo Aristóteles ,capacita à espécie


humana por meio da memória, que aliada com os sentidos nos
diferencia dos demais seres da natureza. Sendo que o homem através
da experiência se torna capaz de produzir ciência e arte, ou seja, o
homem necessita da educação que baseada na razão juntamente com
a experiência adquirida lhe possibilita a habilidade de ensinar que é
uma característica humana. Para Aristóteles as atividades racionais
podem ser aprendidas através da experiência. O filósofo demonstra
que tanto a filosofia quanto a ciência se submetem ao âmbito da
experiência. Assim o filósofo chega a admitir “Além disto, quem
conhece com mais exatidão é mais capaz de ensinar, é considerado
em qualquer espécie de ciência como mais filósofo” (Idem, p.13).
De acordo com a ideia de Aristóteles, a virtude moral resulta
do hábito e por essa não fazer parte da natureza humana, precisa
ser desenvolvida e praticada em cada um de nós. Devido a sua a
importância na educação do ser humano, temos, pois, na condição
de professor de Filosofia, um desafio diário de despertar no aluno
uma nova experiência no aprender e agir moral, onde esse possa por
meio da formação filosófica fundamentada no conteúdo ético dar
novo significado ao modo de viver, promovendo novos hábitos na
perspectiva de um bem viver.
O filósofo concebe a virtude moral como um meio termo, no
qual o ser humano deve, de acordo com sua disposição de caráter,
se comportar a fim de adquirir bons hábitos que possa o afastar do
mal, e consequentemente o aproximar do bem, garantindo uma boa

ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA NUMA PERSPECTIVA ÉTICA: 71


UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
vida, já que segundo Aristóteles, o excesso e a falta são características
do vício e a mediania qualidade da virtude.
Aristóteles ao conceituar a virtude moral, não tinha como
objetivo apenas elucidar um conceito, mas demonstrar a necessidade
do homem de se educar como condição necessária para torna-se um
bom cidadão. Portanto, a virtude para o estagirita pode ser aprendida
e ensinada. Uma condição para ser aprendida é a de alcançar a justa
medida no comportamento humano, onde o equilíbrio dotado de
racionalidade possa praticar boas ações, criando condições para uma
vida boa. Sendo que se queres viver bem e com justiça, pratica o bem
e sejas justo com o teu próximo, do contrário se seres temperantes
terás muito do que lamentar, esta é uma das lições de Aristóteles
para podermos viver e passa pela formação moral que nos faz mais
humanos e éticos.
Considerando o ambiente escolar enquanto espaço de
socialização e formação da consciência individual e social, a escola
tem por objetivo a formação ética e cidadã de seus alunos e, portanto,
a virtude moral deve ser ensinada e valores como responsabilidade,
justiça, dever, respeito próprio e ao outro, solidariedade, igualdade,
entre outros hábitos, devem ser estimulados e ensinados na escola
desde cedo, para que o homem possa fazer uso da razão da melhor
maneira possível. Segundo Aristóteles (1984, p.77). “Do que
acabamos de dizer segue-se que não é fácil ser bom, pois em todas as
coisas é difícil encontrar o meio-termo [...]”. Nesse sentido, o ato de
educar na perspectiva ética nas aulas de filosofia busca o equilíbrio
entre o ensinar e o aprender dentro das possibilidades de se chegar
ao meio termo e atingir o entendimento da boa vontade que leve ao
bem.

Immanuel Kant: a moralidade fundada na razão

Kant legou uma sólida contribuição filosófica a respeito


da filosofia moral na qual defende uma educação fundada na
racionalidade. Este debate pode ser encontrado nas suas obras Sobre
a Pedagogia e Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Nestes escritos

72  Conceição de Maria Sousa Araújo


encontram-se fontes de inspiração para uma educação moral e
uma fundamentação para o ensino da ética. Diferentemente de
Aristóteles, Kant nega a doutrina da felicidade como um dado da
natureza humana, isto revela que embora discorde de Aristóteles os
dois filósofos tenham em comum a crença de que a ética pode ser
ensinada.

Se a doutrina dos costumes fosse simplesmente à doutrina da


felicidade, seria absurdo buscar princípios a priori para ela, uma
vez que por mais plausível que possa parecer afirmar que a razão,
mesmo antes da experiência, poderia entrever os meios para a
consecução de um gozo duradouro das genuínas alegrias da
vida, ainda assim tudo é ensinado a priori acerca desse assunto
é ou tautológico ou presumido sem qualquer base. Somente a
experiência é capaz de ensinar o que nos traz alegria. [...] (KANT,
2003, p.58).

Essa referência sobre a moralidade kantiana remete à


compreensão da importância do conhecimento aliado a experiência;
ou seja, uma experiência que pode ser vivenciada na vida escolar,
possibilitando a promoção de uma educação moral capaz de levar
o aluno a refletir sobre suas escolhas e tomar as melhores decisões
que farão diferença no seu modo de viver. A utilidade da boa
vontade, entendida como uma ação justa, na visão de Kant (2007,
P.16). “A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza,
pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão
somente pelo querer, isto é por si mesma [...]”. A filosofia tem muito
a contribuir no entendimento da moralidade, na qual as ações
humanas ganham significado de acordo com a sua utilidade. Nesse
processo educacional, o professor assume o papel de mediador na
condução da experiência filosófica pautada na racionalidade que leve
a construção de saberes morais baseados na autonomia buscando
uma mudança de atitude dos envolvidos.
Dentro da perspectiva de uma ética deontológica, verifica-se
que há um sentimento de dever em relação aos juízos morais da ação
humana, na qual, possui uma maior significação, independente da
utilidade que essa venha a ter. Remete-nos para o ensino da ética

ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA NUMA PERSPECTIVA ÉTICA: 73


UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
do dever na disciplina de filosofia, na aplicação de conteúdos
filosóficos, no qual os conhecimentos da história da filosofia,
especificamente os conteúdos éticos, não devam ser visto como mais
um mandamento, uma lei a ser seguida, que assimilada lhe traga a
promessa de aprovação ou caso contrário lhe traga a ameaça da
reprovação, mas como uma oportunidade de adquirir experiências e
poder pensar de forma crítica sobre si mesmo e a convivência com os
semelhantes em sociedade.
Na acepção de Kant (2007, P.16): “Toda a gente tem de confessar
que uma lei que tenha de valer moralmente, isto é, como fundamento
duma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta; [...]”.
Mais do que a regra moral em si, adquirida pelo costume, uma
lei moral precisa ser desenvolvida com a consciência do dever. A
consciência da lei moral e sua aceitação livre e autônoma é a meta
de uma educação emancipatória. Ao se pensar uma fundamentação
para os costumes morais, o filósofo buscava em primeiro lugar definir
a moralidade, ressaltando seus aspectos importantes para a vida
prática, ou seja, no que diz respeito aos significados das experiências
adquiridas pelo indivíduo no campo da ética, tanto na vida escolar e
fora dela. Kant assegura (2007, p.84). “A moralidade é, pois, a relação
das ações com a autonomia da vontade, [...] A dependência em que
uma vontade não absolutamente boa se acha em face do princípio
da autonomia (a necessidade moral) é a obrigação. ” Nesse sentido
uma ação moral praticada por obrigação chama-se de acordo com
Kant, um dever.
Nessa tentativa de conceituar e medir o valor moral a fim de
comprovar a sua aplicabilidade prática, a teoria kantiana busca levar
o homem a refletir sobre suas escolhas morais, e a partir da disciplina e
da instrução que podem ser ensinadas na escola, de forma justificada
, levar o aluno a desenvolver um raciocínio crítico é essencial no
processo de formação de si mesmo, na construção de um projeto
de conduta moral livre e consciente. O ensinar e aprender a ética do
dever na escola deve estabelecer uma metodologia dialógica a partir
da experiência e relações interpessoais que os alunos estabelecem
com as regras sociais e culturais a fim de se fazer uma análise sobre

74  Conceição de Maria Sousa Araújo


as escolhas e ações morais que devam ser refletidas e exercitadas no
ambiente escolar.
Kant (2007, p.30) afirma que “uma ação praticada por dever
tem o seu valor moral, não no propósito que dela se quer atingir, mas
na máxima que determina; não depende, portanto da realidade do
objeto da ação, mas somente do princípio do querer [...]”. O processo
de educar na ética do dever de Kant estava relacionado ao valor
moral que a ação praticada iria determinar, onde a única maneira de
disciplinar o comportamento do indivíduo e garantir uma formação
ética e integral do ser humano, era a partir de um condicionamento
baseado na disciplina, tendo como princípio a obrigação e o respeito
à lei moral que por si mesmo se basta.
No texto Sobre a pedagogia, Kant afirma que o homem é a única
criatura que precisa ser educada. Por educação entende-se o cuidado
de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução
com a formação. Consequentemente, o homem é infante, educando
e discípulo. (1999, p.11). Nesse entendimento que o homem precisa
ser educado e que a educação tem o papel de proporcionar essa
formação de sujeitos autônomos , na qual a finalidade seria de
orientação sobre os princípios da moralidade fundada pelo uso da
razão, na qual o indivíduo teria a liberdade de escolher entre o bem
ou o mal ,ao fazer suas escolhas de forma consciente , reafirmando
desta forma , a sua humanidade.
A prática da pedagogia para Kant era uma arte que precisava
ser raciocinada e aperfeiçoada, para que a felicidade ou infelicidade,
só dependesse do modo de vida que o homem escolhesse, sendo que
a educação é um problema proposto ao homem que só ele pode
conduzir, na busca da aquisição de conhecimento, que irá fazer o
diferencial na sua existência. Segundo o autor; Entre as descobertas há
duas dificílimas, e são: arte de governar os homens e a arte de educá-los. (1999,
p.20). Portanto, a educação deve ser iniciada nos primeiros anos de
vida do ser humano, um processo lento, complexo que é responsável
pelo desenvolvimento das disposições naturais do homem.

ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA NUMA PERSPECTIVA ÉTICA: 75


UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
Lawrence Kohlberg: uma educação para a moralidade

A formação do sujeito moral no ambiente escolar não passa


apenas pela aplicação de conteúdo relacionado à ética e a moral
pelo professor, mas é uma tarefa bem mais complexa, pois depende
da maturidade do aluno mediante sua vivência social e familiar
como sujeito. À luz de Lawrence Kohlberg (1988) intenta-se discutir
a construção de uma vivencia ética na escola. Este autor, como se
sabe, foi influenciado pela moral kantiana e trouxe contribuições
importantes para o entendimento do julgamento do desenvolvimento
moral na adolescência, sendo essencial nessa proposta a ideia da
autonomia moral dos sujeitos e o não cumprimento das regras por
meio da força ou coação.
Compreende-se que é preciso entender como acontece e se
consolida o desenvolvimento da moralidade nos jovens. De posse
desta leitura acredita-se que professores possam interferir no
comportamento dos alunos em sala em aula, a fim de possibilitar o
entendimento e aprimoramento das relações morais na construção
de uma vivência eticamente possível.
À maneira de Kant que defendia que os princípios gerais da ética
do dever levam à formação de uma moralidade autônoma e consciente,
Lawrence Kohlberg analisou os estágios de desenvolvimento
moral, procurando revelar como os valores morais e éticos podem
ser ensinados e compreendidos, e como a filosofia tem um papel
importante nesta formação. O movimento começado por Kohlberg
seguiu a tradição da psicologia genética de Piaget sobre o estudo
do desenvolvimento moral de crianças e adolescentes, seus estudos
passaram a ser referência no campo da psicologia educacional.
Kohlberg via “a criança como um filósofo moral”, que investiga
e reflete a respeito das crenças e dos valores dominantes. O interesse
de Kohlberg pelo estudo do desenvolviomento intelectual a partir da
teoria de evolução dos estágios de desenvolvimento moral de crianças
e adolescentes se justifica por sua visão estrutural e seu universalismo
moral, razão pela qual se identifica-se a herança kantiana em busca

76  Conceição de Maria Sousa Araújo


de uma autonomia moral baseada na justiça e na atitude de respeito
ao outro e as regras.
Em seus seus estudos kohlberg sistematiza três níveis de juízos
morais definidos em função da relação dos indivíduos com as normas,
expectativas e acordos da sociedade, ou seja, com as convenções
sociais e morais estabelecidas, no qual, estes se desdobram em seis
estágios morais, a saber: Nível 1, este nível foi chamado de pré-
moral ou moralidade pré-convencional e está associado aos estágios
1 e 2. No estágio 1, predomina a obediência e a punição, nesse
caso as consequências das ações determinam o certo e o errado.
No estágio 2, aparece o hedonismo instrumental ingênuo. Aqui,
o individualismo e a transação passam a serem consideradas. Na
pesquisa, Kohlberg observou que no caso de Heinz, as crianças davam
opções que reconheciam os interesses e necessidades diversos. Neste
nível se encontram a maioria das crianças menores de nove anos,
alguns adolescentes e muitos adolescentes e adultos que comentem
crimes ou contravenções, o indivíduo não compreende as normas e
convenções sociais bem como sua importância para o convívio em
sociedade e as veem como algo externo a eles (KOHLBERG, 1963).
O nível 2, trata-se do nível de moralidade convencional ou da
conformidade com os papéis sociais, neste nível são desenvolvidos os
estágios 3 e 4. No estágio 3, as relações interpessoais são consideradas.
Portanto, o ideal de “bom garoto”, ou seja, o que agrada aos outros
é bom. Já no estágio 4, Kohlberg observou que a autoridade mantém
a ordem social. Aqui se identifica que há atitude deontológica em
relação ao cumprimento dos deveres. No nível convencional, se
encontra a maioria dos adolescentes e adultos de muitas sociedades,
na qual ocorre a conformidade e manutenção da autoridade, das
normas e acordos sociais, pelo simples fato de estarem estabelecidos
enquanto tais. Ocorre aqui uma identificação entre o “eu” e as regras
e expectativas dos outros, em especial das autoridades (Idem, 1963).
No último nível, ou seja, no nível 3, está a fase da moralidade
pós-convencional ou nível da aceitação dos princípios morais.
Encontra-se neste nível os estágios morais 5 e 6. No estágio 5 há
uma aceitação do contrato social. Aqui, acordos democraticamente

ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA NUMA PERSPECTIVA ÉTICA: 77


UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
alcançados sobre valores são bons, cabendo ao indivíduo determinar
o certo e o errado dentro dos parâmetros desses valores e o estágio
6, seria a crença nos princípios universais. Os princípios de justiça e
ética são parte da consciência, sendo questões de escolhas individuais
dentro de princípios axiológicos universais, mesmo que contra as leis
e regras socialmente estabelecidas. Tem-se então, o mais elevado nível
de moralidade, que é alcançado apenas por uma minoria de adultos,
o indivíduo, em geral, mantém e compreende as regras e normas
sociais e morais, mas esta aceitação está baseada em princípios que
as fundamentam. Este nível é denominado pós-convencional, pois
o indivíduo se posiciona além da regra, além da convenção social,
avaliando e validando-as , a partir de princípios do que pelo fato de
serem acordos já estabelecidos (Idem, 1963).
Kohlberg ao estudar o julgamento moral não intencionava
direcionar suas pesquisas para o campo educacional com o estudo
do comporamento moral nas escolas, mas de acordo com a evolução
da pesquisa e os resultados obtidos com entrevistas na pesquisa de
campo foram comparadas os níveis de julgamento e comportamento
moral entre os entrevistados, e a partir desse levantamentos da
análise de dados, ficou comprovado que os indivíduos com os mais
altos níveis, na sua maioria, apresentam melhores comportamentos
morais, que aqueles que se encontram nos níveis mais baixos da
escala de classificação.
Os resultados apresentados permitiram concluir que um
julgamento moral consciente em um nível mais elevado, seria
uma condição para uma melhor conduta moral. Dessa forma, os
pesquisadores passaram a investir na aplicação da teoria á pratica.
Pode-se raciocinar em termos morais sem apresentar conduta moral
ou sem seguir os princípios morais. (BIAGGIO, 1998). A partir da
primeira metade da década de 1970, Kohlberg e alguns de seus
colaboradores investiram na aplicação da teoria à prática, em
tentativas de promoção do amadurecuimento do julgamento moral.
Sendo que através do entendimento dos estágios de desenvolvimento
moral será possivel se aplicar nas escolas e garantir comportamentos
moralmente aceitos.

78  Conceição de Maria Sousa Araújo


Considerações Finais

Este trabalho filosófico de ensinar e aprender filosofia numa


perspectiva ética considera à filosofia em sua especificidade como
capaz de promover criações de significados, pois é um saber aberto
às discussões e reflexões, sendo que através da problematização da
realidade do ambiente escolar e fora dele, os alunos podem adentrar
ao processo de experimentação e interpretação das experiências
dentro da reflexão filosófica que lhe são próprias, interferindo e
destacando as questões e acontecimentos sociais, políticos e culturais
que dizem respeito a uma variedade de perspectivas que fazem parte
do seu cotidiano e que precisam ser compreendidas, a fim destes
alunos poderem se reconhecer nas suas vivencias e através delas se
emancipar como seres humanos.
Pelo exposto as contribuições dos filósofos Aristóteles, Kant
e Lawrence Kohlberg para o campo educacional foram muito
relevantes, partindo do entendimento que as concepções dos
filósofos estudados possuem uma linha de raciocínio que indica a
importância do desenvolvimento moral para a construção do homem
livre e autônomo. Partiu-se do raciocínio de Aristóteles que definiu
a virtude moral como uma disposição adquirida pela prática do
hábito. Tal razão determina que o comportamento humano possa
ser melhorado e a educação tem esse papel de formação humana
na possibilidade de desenvolver bons hábitos com base na justa
medida. Em Kant a educação está relacionada diretamente com
a moralidade e a prática de princípios morais, como exercício da
disciplina na educação, cujo princípio motivador é o dever. Com os
estudos de Lawrence Kohlberg temos a possibilidade de compreender
o comportamento dos alunos através dos estágios de construção
da moralidade e, tais análises possibilitam a aplicação de formas
de ensinar que cultivem o desenvolvimento da consciência moral e,
pode-se acompanhar o desenvolvimento cognitivo e moral do aluno
a fim de interferir numa educação para a autonomia e a cidadania.

ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA NUMA PERSPECTIVA ÉTICA: 79


UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
A possibilidade de ensinar ética nas aulas de filosofia
implicaessa vinculação àuma complexidade sempre presente na práxis
do professor em manter a relação do filosofar com os desafios do
mundo contemporâneo. Como se percebe, a moral como valor tem
uma força normativa na sociedade e na escola, podemos concordar
que o bom relacionamento entre o professor e aluno passa pelo
comportamento ético na sala de aula, tendo o professor a eminência
de se julgar esse comportamento como aceitável ou não, é o que
torna complexa a análise do valor moral a ser avaliado na sala de
aula. Aristóteles ao sustentar que as virtudes morais comohábito
poderiam ser ensinadas, abriu enormes expectativas para a melhoria
da educação e formação da ética do homem, possibilitando acesso a
uma cidadania de fato e de direito a todos que através da busca do
conhecimento procurasse viver melhor.
Concluindo dessa forma , que é preciso reiterar a importância
do ensino de filosofia através do exercício da construção do saber
ético, como uma experiência constante do ensinar e aprender na sala
de aula, espaço de descobertas e conquistas, capazes de contribuir
para a transformação da realidade dos alunos do ensino médio, a
partir da formação de uma consciência crítica e participativa, capaz
de funcionar como resistência frente a crescente e generalizada
moralidade cultural imposta pelo avanço da tecnologia de
comunicação que nivela e aniquila as individualidades do ser no seu
meio.

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Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D.Ross. São Paulo: Editor
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82  Conceição de Maria Sousa Araújo


CONSTRUINDO VALORES ÉTICOS NA
ESCOLA: A PARTIR DA PRÁTICA
DO DEBATE FILOSÓFICO

Conceição Maria Sousa Araújo


Pablo Andrey da Silva Santana

Introdução

É
ponto pacífico entre os estudiosos do tema ‘ensino
de filosofia’ a importância desta disciplina para o
desenvolvimento intelectual e crítico dos estudantes,
entretanto, o cotidiano das aulas de filosofia são desafiadores. O
docente se vê diante de dificuldades e incertezas sobre a melhor
maneira de desenvolver este ensino. Desta feita, surge preocupações
de ordem metodológicas sobre formas de ensinar e aprender filosofia
que assegurem minimamente os objetivos propostos para esta área,
que envolva os estudantes nesta aventura intelectual, tornando-a
atrativa sem prescindir do conteúdo filosófico da tradição e de suas
mediações com a sociedade atual e com o cotidiano dos alunos.
A Filosofia como disciplina no ensino médio é uma realidade
recente nas escolas públicas brasileiras e sua presença pode contribuir
para propiciar o desenvolvimento da autonomia intelectual e a

CONSTRUINDO VALORES ÉTICOS NA ESCOLA: 83


A PARTIR DA PRÁTICA DO DEBATE FILOSÓFICO
formação ética do jovem na sociedade atual. Diante desse desafio,
os professores de Filosofia assumem a responsabilidade de informar
e problematizar questões relacionadas ao conhecimento, à política, à
lógica, à estética e questões da ética, dentre outros temas filosóficos.
O enfoque de análise considerado para os objetivos deste artigo
será a ética, cujo objetivo é compreender como estes valores éticos
podem ser construídos na escola através da contribuição das aulas
de filosofia.
O desejo de todo professor de filosofia é de fato conseguir
transformar a sala de aula numa comunidade “pensante“, ou quem
sabe também científica, ou seja, que os alunos consigam desenvolver
competências críticas e reflexivas através do desenvolvimento das
atividades de filosofia. Espera-se que os conteúdos trabalhados
aliados às experiências vividas pelos alunos assegurem a base para
pensamento crítico e para a autonomia do pensar.
Do ponto de vista da formação dos valores, espera-se que
o contato com as obras e pensamentos de escritores clássicos
e contemporâneas seja um catalizador da formação de hábitos
saudáveis no que diz respeito os valores da convivência social,
da solidariedade, da responsabilidade, dever, respeito próprio,
igualdade, respeito ao semelhante, diálogo com as diferenças, dentre
outros valores fundamentais à vivência ética.

A Filosofia no Ensino Médio: desafios e possibilidades

A preocupação em explicar e dar sentido à realidade é um fato


presente na história da humanidade deste os temos mais remotos.
A própria racionalidade mítica expressa o desejo de explicar o
mundo, no entanto, esta forma de consciência ainda é marcada pela
dimensão do desejo, da narrativa mágica e fantasiosa. Ao contrário
da consciência mítica, a filosofia legou uma tomada de consciência
crítica em torno da busca pelo saber racional, metódico, lógico e
argumentativo.
Este saber já nasceu como atividade pedagógica, já nasceu
paidéia, uma vez que a missão dos filósofos foi a de formar cidadãos

84  Conceição Maria Sousa Araújo • Pablo Andrey da Silva Santana


aptos a viverem numa comunidade ética, cidadã e científica. Portanto,
a atividade filosófica pode ser entendida, não como mero devaneios
de mentes privilegiadas, mas como atividade de ensino.
A importância da Filosofia como disciplina obrigatória no
Ensino Médio tem como objetivo geral “o aprimoramento do
educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”
(Lei nº 9.394/96, Artigo 36, Inciso III). É verdade que a Filosofia
não é o único componente curricular a oferecer subsídios para a
formação ética e o pensamento autônomo e crítico. No entanto,
também é certo que a Filosofia oferece ferramentas conceituais úteis
à promoção dessas competências.
Talvez, até o momento, o ensino da filosofia no ensino
médio não tenha sido efetivado realmente como assegura seus
objetivos principais, é possível que sua presença tenha se tornado
muito mais uma obrigação legal. Embora o ensino de Filosofia seja
constantemente ameaçado quanto à sua obrigatoriedade curricular,
ainda predomina a confiança neste ensino para o desenvolvimento
intelectual da juventude. Esta confiança vem da constatação que
seus fundamentos preparam o cidadão para a vida, por essa razão o
jovem deve ser lançado no mundo adulto com conhecimentos que o
possibilite viver satisfatoriamente. Para alcançar tal objetivo é exigido
um ensino que preze pela formação intelectual e crítico-reflexiva.
A reflexão sobre a construção do pensamento filosófico nas
aulas de Filosofia do ensino médio nos levanta questões relativas ao
mundo dos valores morais. Sabe-se que problemas do cotidiano do
aluno emergem e precisam ser discutidos à luz de uma reflexão mais
sistemática, problematizadora, de modo que o professor possa se
situar no que realmente possa interessar ao aluno e ao ministrar nas
aulas, deve levar em consideração conteúdos que realmente sejam
significativos para o entendimento e crescimento destes.
A problemática do cotidiano, que sabemos, muitas vezes
não tem respostas adequadas ou imediatas, demonstra através
da experiência de sala de aula, que tais questões surgem como
oportunidades de apresentar temas e conceitos filosóficos que

CONSTRUINDO VALORES ÉTICOS NA ESCOLA: 85


A PARTIR DA PRÁTICA DO DEBATE FILOSÓFICO
despertem o interesse dos alunos. Portanto, diante da deficiência do
aprendizado da disciplina de Filosofia, das dificuldades dos alunos
no âmbito da convivência escolar, bem como a falta de interesse em
relação à disciplina, uma abordagem que remeta à vida e sua reflexão
é uma forma de assegurar a sua utilidade.
A concepção reflexiva acerca da construção do saber moral no
ambiente escolar tem relação direta com a ideia de formação que
está inerente na prática do ensino de filosofia, tendo como análise
dessa compreensão a crítica do conhecimento na reflexão kantiana:

[...]na Crítica da razão pura, Kant apresenta, ainda que em segundo


plano, a função da filosofia na formação do sujeito. Damos
destaque especial à Arquitetônica da razão pura, momento no
qual Kant demarca a impossibilidade de se ensinar a filosofia,
enfatizando a autonomia do sujeito no aprender a filosofar. Essa
obra pode ser entendida como uma “metodologia” de como bem
usar a razão e do modo como a filosofia, compreendida como
crítica do conhecimento, se afigura primordial para a formação
crítica do sujeito [...] (GELAMO, 2009, p.51)

O ensinamento kantiano de que não se ensina filosofia, mas a


filosofar, leva-nos ao entendimento da aplicação de uma metodologia
capaz de envolver os estudantes no exercício do uso da razão. Neste
sentido, filosofar é pensar de forma crítica e criativa, é a possibilidade
da autonomia do sujeito, na sua capacidade de pensar, decidir e
assumir responsabilidades. É, portanto, compreender na prática
como se constitui os valores, qual a sua importância e necessidade
tendo em vista os fins éticos do sujeito e da comunidade em que está
inserido. Do ponto de vista da moral kantiana, a compreensão do
dever, como lei moral, é uma forma de entender as regras morais por
aquilo que elas têm em si mesmo e não porque lhe trará recompensa
ou desaprovação.

O Ensino de Filosofia e a Formação dos Valores Éticos

A formação do sujeito moral no ambiente escolar não passa


apenas pela aplicação de conteúdo relacionado à ética e a moral

86  Conceição Maria Sousa Araújo • Pablo Andrey da Silva Santana


pelo professor, mas é uma tarefa bem mais complexa, pois depende
da maturidade do aluno mediante sua vivência social e familiar
como sujeito. Desse modo, conforme a moral kantiana, busca-se a
construção de uma vivencia ética na escola, produzida pela vontade
e autonomia dos sujeitos e não pela força ou coação. Neste sentido,
observa-se a tradição filosófica como inspiração necessária para
tratar das questões éticas. Em virtude disto, é necessário no plano de
curso do professor estas referências teóricas, a fim de que o aluno seja
capaz de construir seu próprio entendimento sobre suas escolhas,
seu agir moral e consequentemente ter a capacidade de transformar
sua realidade racionalmente.
O professor em sala se torna um agente transformador na
medida em que ele aproxima o aluno do saber e mostra a necessidade
do conhecer. O professor, que media o conhecimento da filosofia,
necessita fazer experimentos com os alunos e apresentar elementos
para causar o prazer em aprender. Então a escola precisa ser um
espaço aberto os discursões, em especial nas aulas de filosofia, como
mecanismo capaz de oferecer ao aluno, espaço e vez de se manifestar
e através do conhecimento adquirido se reconhecer com pessoa.
O debate é um elemento didático utilizado na prática do ensino
de Filosofia pois através do discursão certo somos capazes de gerar
uma consciência e um senso crítico sobre os mais variados temas,
melhorar a capacidade de raciocínio e de pensar e ter uma melhor
resolução para os problemas sociais, exercitar o pensar e a prática
do “ato de filosofar”.
Buscar uma atenção sobre a discussão gerada em torno das
questões dos valores éticos na escola tem como um dos objetivos,
melhorar a visão que os alunos têm sobre o seu contexto formativo,
ou seja, provocando um melhor entendimento no aluno sobre a
formação oferecida na escola e não apenas nas questões de gênero,
mas também no currículo como um todo e que ele seja capaz de dar
opinião sobre o próprio conhecimento que recebe.
O debate filosófico como elemento didático no ensino de
filosofia visa compreender, de maneira mais especifica, como o
professor pode melhorar a aprendizagem do aluno enquanto agente

CONSTRUINDO VALORES ÉTICOS NA ESCOLA: 87


A PARTIR DA PRÁTICA DO DEBATE FILOSÓFICO
de sua formação escolar, procurando contribuir na melhoraria do
interesse dos alunos, (em especial os alunos do ensino médio), pela
sua formação oferecida na escola, e consequentemente pela aula de
filosofia, ajudando a ampliar a discursão sobre a melhor forma de
ensinar filosofia e sua aplicar pratica.
Pensando neste âmbito, estimular o debate filosófico, entre os
alunos do ensino médio pode melhorar a compreensão dos aspectos
filosóficos na pratica pessoal e social, ou seja, ao intensificar as
discussões sobre assuntos pertinentes a formação do indivíduo com
um caráter um pouco mais filosófico, pode contribuir para uma
transformação e melhoria na visão de mundo, gerando uma melhor
criticidade e atuação na participação social.
A possibilidade de ensinar ética nas aulas de filosofia implica
nessa vinculação a complexidade sempre presente na atuação do
professor em manter a relação do filosofar com os desafios do
mundo contemporâneo, neste sentido:

Essa compreensão implica atribuir caráter ético-político à


Filosofia no espaço da escola e contribui dimensão central do
filosofar. Nesse sentido, o ensino de Filosofia no espaço escolar,
além de ter o encargo de oferecer ao educando um referencial
da cultura produzida pela disciplina em sua relação histórica,
deve propor-lhe uma formação ético-política que possibilite
compreender significativamente as relações de poder presentes
na sociedade atual e sua responsabilidade ética na humanização
dessa sociedade (GHEDIN, 2009 p.37-38).

A construção do pensamento crítico nas aulas de Filosofia que


procure realizar o resgate de uma educação mais ética e humanizada
é uma possibilidade de valorização do aluno na sua totalidade, é
uma forma de contribuir para a transformação da realidade escolar
por meio da mudança de comportamento dos alunos envolvidos
no processo educacional e, sem dúvida, uma alternativa, para a
necessária revitalização da disciplina na sala de aula. Como também
uma nova forma de educação inclusiva com um caráter ético e moral,
onde todos se sintam responsáveis pela sua educação num processo
conjunto de ensino aprendizagem, envolvendo professor e aluno,

88  Conceição Maria Sousa Araújo • Pablo Andrey da Silva Santana


levando todos a descobrirem o valor do aprender, construindo uma
autêntica relação ética solidária na convivência diária da sala de aula.
Por isso, na aula de filosofia utilizar certos elementos estratégicos
ajudam aproximar o aluno ao saber, onde o debate filosófico é
apenas um destes exercícios e temos outros como textos filosóficos
extraídos de diversas obras, filmes e tudo isso e parte integrante do
apoio pedagógico para o exercício da aula de filosofia: “Dessa forma
nós fornecemos subsídios para que entendamos que o professor
necessita de determinando mecanismos que faça a mediação com
seus alunos, para que esses possam a começar a filosofar”. (ASPIS/
GALLO,2009, p.71).
O intuito é provocar uma oportunidade de metanoia sobre as
questões pertinentes a formação do indivíduo na atualidade e como
a filosofia se apresenta enquanto disciplina e como é transmitido o
seu ensino.
Gallo (2009) também nos aponta para o elemento primordial
para aplicação desta metodologia que sensibiliza o aluno diante
do conteúdo filosófico: “Esse caminho se faz necessário por via da
contextualização histórico filosófico que tem como objetivo, através do assunto
ou tema tratado, atingir o aluno por meio da sensibilização (…) ” (ASPIS/
GALLO,2009, p.69).
O ensino de filosofia, tido como formador da cidadania,
atribuição esperada por todos, coloca a escola como uma das
responsáveis pela formação do sujeito, em particular nas aulas de
filosofia. E a angústia do professor de filosofia começa ao procurar a
melhor metodologia de como convidar este aluno a querer descobrir
o seu próprio saber, já que a filosofia, por si mesmo, é uma busca, às
vezes solitária do próprio entendimento. Que segundo Gallo.

Fiquemos, então, com Deleuze: o filósofo é sempre um aprendiz.


Está mais para rato no labirinto, que precisa aprender a saída;
está mais para o sujeito de dentro da caverna, que descobre
sua condição e procura a saída, do que para o sujeito já fora
da caverna, que contempla o verdadeiro saber (a Ideia). No
primeiro, temos a imanência do problema; no segundo, a
transcendência da solução, já posta desde sempre. De modo que,

CONSTRUINDO VALORES ÉTICOS NA ESCOLA: 89


A PARTIR DA PRÁTICA DO DEBATE FILOSÓFICO
nessa perspectiva, a questão da “aprendizibilidade” da filosofia
se resolve: a filosofia é aprendizagem! O movimento do filosofar é o
mesmo movimento do aprender, a contínua passagem de um não
saber ao saber. Um processo no qual o procedimento, o percurso
é sempre mais importante do que o ponto de chegada. Aprender
filosofia, assim, só pode ser o aprendizado do próprio exercício
do filosofar. (2013, p.47-48)

Surge, então, o questionamento a respeito do que se pode


ensinar em filosofia, principalmente nas turmas de ensino médio,
onde a faixa etária de jovens adolescentes requer uma reflexão mais
complexa sobre o conteúdo a ser aplicado. E a forma de ver a filosofia
como busca, nos remete a opinião de Danilo Marcondes quando diz:

Podemos concluir, assim, quer a visão da filosofia como busca a


partir de nossas indagações, quanto como história da filosofia
e conhecimento das doutrinas da tradição, não necessariamente
se excluem e podem servir de ponto de partida para o ensino da
filosofia. O estudo da origem dos conceitos e das transformações
pelas quais passaram como no exemplo da causalidade, pode ser
relevante para o conhecimento em diferentes áreas. A análise dos
argumentos filosóficos talvez seja o que revela mais de perto o
modo de pensar dos filósofos, mostrando como esses argumentos
podem ser defendidos, refutados, reformulados, suscitando
por sua vez uma discussão sobre no que consiste argumentar e
como podemos legitimamente fazê-lo. O exame dessa questão
é fundamental para o ensino da filosofia em qualquer nível
(KOHAN, (Org.) 2004, p.61-62).

A escola por exercer a função social de promover a construção


do indivíduo visando A filosofia como ato, está sempre se renovando e
a condição da descoberta do aprender, se transforma numa contínua
busca de entendimento, entre a ignorância e o esclarecimento, no
sentido da própria essência do filosofar, um lugar sempre vago,
pronto a preencher, digamos assim! Lugar este sempre aberto a novas
descobertas, novos recomeços e novamente novos questionamentos,
todos regados a muitas reflexões, sempre dispostos a superar as
barreiras da ignorância e alcançar o esperado entendimento, que
não é nenhuma garantia, mas sempre um eterno recomeçar!

90  Conceição Maria Sousa Araújo • Pablo Andrey da Silva Santana


Este é o itinerário do professor-filósofo, na dúvida se vai chegar
a algum lugar, mas sempre confiante que está indo no caminho certo!
E na incerteza de estar desenvolvendo a metodologia correta, que seus
alunos não respondem os seus questionamentos de forma crítica e
articulada, se põe a refletir e buscar elementos da tradição filosófica
que fundamentem ou auxiliem na difícil missão de despertar para o
pensar, não um pensar determinado por um tem ou situação, mas
um pensar questionado, debatido que reacenda o valor do filosofar
e faça valer a missão de ser um professor-filósofo.

Considerações finais

O difícil processo de educação filosófica que tem na filosofia,


sempre um recomeço, por parte dos professores de ensino médio,
tem a missão de levar o aluno a pensar por si mesmo, na perspectiva
de criar significados para a aprendizagem adquirida, onde cada
acontecimento produzido possa conter conteúdos significativos
nesse ensinar, nessa metodologia filosófica, que dará novo sentido a
disciplina, tão necessária de valorização.
Nesse sentido, Gallo nos põe a reflexão sobre o macaco de
Kafka, na possibilidade de nos colocarmos no lugar do aluno, que
muitas vezes quer sair da jaula da ignorância, ou da mesmice, na
qual se tornaram algumas aulas tradicionais de filosofia, que se
concentram na teorização e acúmulo de conteúdo, faltando com
essa atitude o verdadeiro sentido do ato de filosofar, que seria o de
despertar a experiência da vida em sua plenitude, transformando a
assim, em uma obra de arte, algo que sempre novo, que inspire que
faço compreender nas palavras de Deleuze. Por fim, André
Luís da Silva pontua que:

Deleuze afirmou que, durante as aulas, estes momentos de


inspiração podiam ser efêmeros, mas eram buscados porque o
professor tem que achar interessante o que ensina, precisa ficar
fascinado com o que está dizendo para falar com entusiasmo.
Desse modo, se fosse possível extrair uma primeira característica
das aulas do professor Deleuze seria esta: é preciso está: é dar

CONSTRUINDO VALORES ÉTICOS NA ESCOLA: 91


A PARTIR DA PRÁTICA DO DEBATE FILOSÓFICO
aulas sobre o que se busca, estar preparado para fazer da aula um
momento de inspiração e de experimentação dos problemas que
se buscam (CARVALHO E CABRAL, (Org.) 2015 p. 52).

Podemos, pois partir da ideia do professor formador de


conceitos, como um artista, no sentido de inspirar seus alunos
a buscar algo mais que o simples entendimento da sua realidade,
reafirmando assim, a condição humana de sempre buscar o novo
conhecimento, com criatividade e inspiração. Essa atitude de atirar-
se nos braços do questionamento, de buscar sempre respostas aos
nossos problemas, torna o ensino da filosofia mais capacitado para
dar um novo significado a ideia de uma formação humanizada na
sala de aula. Nessa mesma linha de pensamento temos de alguma
forma repensar nossa educação filosófica, como bem diz Gallo:

Penso que os sentidos de uma educação filosófica no Brasil hoje


devem ser tomados de forma deslocada, ou melhor, provocando
um deslocamento em relação ao debate instalado entre nós.
Para que não sejamos macacos que nos tornamos humanos –
ao menos nas aparências, para conquistar uma saída da jaula,
investir numa educação de si mesmo, num cuidar de si e dos
outros para que possamos efetivamente nos tornar aquilo que
somos. E para isso investir numa experiência filosófica que não
esteja a serviço de outro senhor que não seja a vida, a afirmação
da vida, para além e para aquém de toda e qualquer condição de
cidadania (KOHAN (org.), 2004 p.214-215).

O sentido de uma educação filosófica voltada para o cuidado


de si é estar ciente que também tem o outro, que somos comunidade
e que a experiência filosófica não acontece de modo isolado. O
ponto da possibilidade de debater os valores morais na escola, é sem
dúvida, um caminho para uma melhoria do ensino da disciplina no
ambiente escolar. E o posicionamento ético do filósofo-professor em
frente a diversidade de opiniões, mesmo sabendo que o despertar
para o filosofar tem caminhos ás vezes incompreendidos, mas que
não deixam de ser importantes para o entendimento da problemática
que se pode encontrar é fundamental, para que a filosofia possa

92  Conceição Maria Sousa Araújo • Pablo Andrey da Silva Santana


contribuir para o exercício da cidadania e responsabilidade individual
e social dos alunos que fazem parte da comunidade escolar.
Sabendo que o professor ao se colocar em frente ao desafio de
formar cidadãos responsáveis e conscientes dos seus atos, dentro das
suas possibilidades de ministrar conteúdos significativos que levem
seus alunos a questionarem filosoficamente suas problemáticas,
estará criando condições de desenvolver com autonomia as
habilidades no pensar, analisar, refletir, problematizar e responder
com responsabilidade ás questões relacionadas à ética e moral que
fazem parte da rotina na escola e na comunidade ao qual seus alunos
façam parte.
Concluindo que o ensino de filosofia é ato, e está em constante
mudança e para isso precisa da autonomia do pensar, do problematizar
e do questionar, na liberdade do debate é que acontece a reflexão,
é onde a problemática passa a existir e se buscar as soluções no
tempo e no espaço da contemporaneidade, que só será entendida
através da interpretação dos temas primordiais e necessários para o
desenvolvimento ético e moral dos seus alunos das escolas do ensino
médio, tendo como fundamentação a tradição filosófica, como um
referencial inesgotável de constante busca de conhecimentos, que
serão capazes de ajudar a construir um pensamento racional sobre
o sentido da nossa existência e sobre a necessidade de tornar nossa
sociedade melhor e mais solidária para todos.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

CARVALHO, E.; CABRAL, I.N. de (Org.). (2012). Por uma


pedagogia do ensino de filosofia. Teresina: EDUFPI,2015.

EDUCAÇÃO, Parâmetros curriculares nacional; lei de diretrizes


básicas educação, art. 36 da Lei n. 9394/96 de 20 de dezembro
de 1996 Disponível<http://portal.mec.gov.br/component/tags/
tag/32546>:acessado 13 de julho de 2017

CONSTRUINDO VALORES ÉTICOS NA ESCOLA: 93


A PARTIR DA PRÁTICA DO DEBATE FILOSÓFICO
GALLO, Sílvio (coordenador). (2012). Ética e cidadania: Caminhos
da filosofia: Elementos para o ensino de filosofia. 20ª edição
Campinas, SP: Papirus.

GALLO, Silvio; Metodologia do ensino de filosofia. Uma didática


para o ensino médio:1° ed., SP, Papirus, 2013

GALLO, Silvio; Filosofia experiência do pensamento:1° ed., SP,


Scipione, 2014.

GELAMO, Rodrigo Pelloso. O ensino de filosofia no limiar da


contemporaneidade: o que faz o filósofo quando seu ofício é ser
professor de filosofia? São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

GHEDIN, Evandro. Ensino da Filosofia no Ensino médio. 2 edição. São


Paulo: Cortez, 2009.

KOHAN, Walter O. (Org.). Políticas do ensino de filosofia. Rio de


Janeiro: DP&A, 2004.

KOHAN, W. O. (Org.). Filosofia: caminhos para seu ensino. Rio de


Janeiro: Lamparina, 2008.

NOVAES, E.; AZEVEDO, I.N. (Org.). Filosofia e seu ensino: desafios


emergentes. Porto Alegre: Sulina, 2014.

RODRIGO. Lídia Maria; Filosofia em sala de aula, teoria e pratica


para o ensino médio. Campinas:1°ed, SP, autores associados ,2009.

94  Conceição Maria Sousa Araújo • Pablo Andrey da Silva Santana


A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA
COM O “NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”

Jéssica de Souza Lima

Introdução

O
ensino de filosofia é um locus privilegiado para o
trabalho de investigação, uma vez que este ensino
conduz à problematização, levando o aluno a uma
atitude de instigação e inquietude. A problematização é uma
ferramenta cognitiva que tem possibilitado uma construção objetiva
do conhecimento, debruçando-se na relação do professor e do aluno
(LUCKESI& PASSOS, 2012, p. 44).
Importante destacar que, mesmo o ensino de filosofia, sendo
um espaço de investigação, no sentido amplo do cenário, para
quem ainda não se direcionou as primeiras leituras ou a um estudo
sistemático com essa disciplina, apresenta como interpretação
à primeira imagem da filosofia como um espaço de “achismos”,
podendo cada um dizer o que quiser, ou melhor, o que pensa, pelo
fato da sua característica não empírica, ser entendida como uma
autêntica arbitrariedade.

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 95


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
Todavia, essa imagem é errônea, na proporção que a filosofia
não é um caos de pontos incomensuráveis ou de “achismos” (PORTA,
2004, p. 25), mas a filosofia refere-se à argumentação sobre
determinados assuntos e a justificação de seus argumentos. Salienta-
se que, o núcleo central da filosofia, não é constituído simplesmente,
por meras crenças temáticas, mas de problemas e soluções, sugerindo
assim a tensão problemática que, é o momento investigador num
dado instante para determinar o problema em questão (CARRILHO,
1994, p. 28).
Nesse teor, a problematicidade, exige-se uma particular
atenção, ao fato que a identificação, a formulação e a solução de
um problema são determinantes e, dependentes, de um contexto
que os integram. Nessa linha, o problema filosófico não pode ser
identificado, nem como mera proposição, como um tipo de estrutura
ou enunciado que pode ser verdadeiro ou falso, nem como um mero
estado de conhecimento, mas pelo espaço que permite acolher o
dinamismo da interrogatividade, do questionamento, do inquirir,
libertando a problematicidade de meras construções proposicionais
(CARRILHO, 1994, p. 30).
Esse artigo se divide em duas partes: na primeira, pretende-se
arguir sobre o “nó de problemas filosóficos” no contexto do ensino
de filosofia com uma abordagem propedeuticamente epistemológica
e, na segunda, se quer elucidar a intervenção do ceticismo
metodológico no ensino de filosofia como ferramenta estratégica
para o desenvolvimento de uma mente inquiridora e examinadora.

O “nó de problemas” no contexto do ensino de filosofia

A identificação do problema filosófico exige um apuramento


ao contexto do ensino de filosofia no cenário da relação do aluno
e do professor, reforçando o ponto – chave, que não há problemas
sem problemáticas (CARRILHO, 1994, p. 31). A atividade filosófica
primária, não é a afirmação ou negação de “teses em si”, ou mera
apresentação de proposição afirmativa, mas sempre a formulação
do problema (PORTA, 2007, p.33).

96  Jéssica de Souza Lima


Ressalta-se que, a problemática é o desenvolvimento dos
problemas dependendo do contexto que os suscita (CARRILHO,
1994, p.30). Nesse sentido, a problemática é essencialmente um “nó
de problemas”. Ademais, Carrilho (1994, p.31) afirma que:

A constituição e o desenvolvimento de um “nó de problemas”


decorrem da tematização da interdependência que dá forma a
esse nó, devendo ela, no mínimo mostrar que a formulação de
um problema depende de outros problemas que, por sua vez,
ela pode afetar e alterar. Nesse sentido, a constituição de uma
problemática implica sempre a nuclearização de um problema e a
periferização de vários outros. É este o sentido da determinação
que é simultânea com a formulação de um problema.

Nesse cenário, destaca-se que a atenção ao problema


filosófico, não é primordial, somente para compreender um filósofo
restritamente, mas também para entender a própria dinâmica
do movimento filosófico com a interdependência, que vem a ser a
dependência interna de um problema com demais problemas e a sua
nuclearização.
Importante destacar que, se houver apenas a atenção às
proposições afirmadas, não ocorrendo uma interrogatividade, uma
instigação ou um questionamento a construção da reflexão filosófica
se tornará uma mera sucessão de opiniões, cujo núcleo essencial é o não
poder decidir valores argumentativos e fundamentados, mas apenas
colocações primárias que respeitosamente, poderão se tornar fonte
para o encadeamento da identificação dos problemas filosóficos.
Em contrapartida, não se pode entender a filosofia, reduzindo-a a
uma sequência de pontos de vistas que sejam de “achismos”, já que
a exata fixação do problema é o elemento essencial para a filosofia
como um todo (PORTA, 2007, p.34).
Nessa oportunidade argumentativa, torna-se salutar mencionar
propedeuticamente sobre a concepção do inquérito do filósofo John
Dewey, apenas como um breve recorte do contexto filosófico, na
medida em que John Dewey valoriza a noção de problema, de maneira
especial a partir da concepção da existência de uma estrutura

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 97


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
comum, sendo o comum como a trajetória do senso comum até à
ciência – a investigação, que se distingue depois, através dos vários
tipos de operações que, de algum modo se formalizam, ou seja, a
investigação como “a transformação controlada de uma situação
indeterminada numa situação determinada nas distinções e relações
que a constituem, que converte os elementos da situação original
num todo unificado” (CARRILHO, 1994, p. 78).
Como ponto chave, o “nó de problemas” tem propriamente
um começo e um fim, todavia, se há uma problematicidade filosófica
não é como na ciência que a encontramos, pelo contrário, o “nó
de problemas”, no contexto filosófico, perfaz-se como um espaço
de articulações que se entrecruzam e, que nesse movimento, torna-
se possível a identificação de problemas, ou seja, na filosofia não se
contrapõe simplesmente uma proposição afirmativa a outra, ou
melhor, uma tese a outra (PORTA, 2007, p.34).
Nesse ensejo, a construção da reflexão filosófica contém
certa continuidade, sendo um entrelaçamento, ou melhor, uma
sedimentação conceitual que diferentemente da ciência, não nega
e nem exclui as construções reflexivas antecessoras, mas propõe
a superação ou a agregação posterior, concentrando-se na inter-
relação dos problemas e de suas justificações, existindo uma
continuidade e até uma direção, em que o explicitar argumentativo
torna-se fonte primária, na qual se manifesta o movimento reflexivo,
ora, característica básica da disseminação da Filosofia (PORTA,
2007, p.35).
No tocante, a construção da reflexão filosófica, Carrilho (1994,
p. 33) afirma que o “nó de problemas”, foi talvez o que, o filósofo
Immanuel Kant, projetou na obra Crítica da Razão Pura que, um só
problema pode articular uma diversidade de pesquisas. Nesse norte,
considera-se como três pontos fundamentais para a articulação
do “nó de problemas”, como assevera Carrilho (1994, p.33): os
problemas, as problematizações e as problemáticas.
Portanto, o problema é estritamente uma pergunta sem critérios
objetivos, surgindo de condições diversas, como uma dúvida, uma
irritabilidade, uma angústia ou espanto, a própria curiosidade, ou

98  Jéssica de Souza Lima


seja, independente da sua origem, o problema filosófico desencadeia
como uma referência intrínseca entre o pensamento e o mundo.
Torna-se até questionado: será possível existir tipos de problemas?
Compreende-se que, não é possível, uma vez que se pode referir aos
elementos internos que poderão diferenciar os problemas, a partir de
seu contexto e não havendo possibilidade para o estabelecimento de
tipologia de problemas (CARRILHO, 1994, p. 33).
Nessa sequência, a problematização é o centro do desenvolvimento
do “nó de problemas”, é nela que ocorre a definição de um
conjunto de procedimentos argumentativos por meio do espaço
da interrogatividade. Destarte, a problemática, refere-se ao “nó de
problemas”, desencadeado internamente pelas problemáticas
fechadas que se caracterizam pelas temáticas definidas, com a
identificação direta dos problemas e, as problemáticas abertas que são
caracterizadas pela dinâmica das temáticas indefinidas (CARRILHO,
1994, p.35), ensejando ambas as problemáticas, em um momento
de recepção, que é nada mais do que o sinal de finitude, uma vez que
a filosofia é uma atividade coletiva, nela existe uma divisão social do
trabalho, com o amadurecimento gradual de problemas, soluções e
argumentos, oferecendo assim uma contribuição filosófica em busca
da originalidade (PORTA, 2007, p.83).
Um ponto importante a ser destacado é sobre o campo da
interrogatividade, uma vez que é necessária uma dada distinção
entre o problema e a proposição, ensejando uma abordagem
epistemológica, ao ponto que exige uma crítica ao proposicionalismo,
defendia por Michel Meyer que desenvolve uma concepção chamada
de problematologia, ora, arguida por Carrilho (1994, p. 35) ao afirmar
que:

O proposiconalismo baseia-se na ideia de que a unidade da


razão se encontra no juízo, ideia que se deve a Aristóteles. Ela
surge no fim de um processo em que o questionamento, o
trabalho interrogativo perde gradualmente o seu poder, a sua
força – de que Sócrates forneceu, na dinâmica dos diálogos,
um exemplo paradigmático e, perde- o porquê a pergunta vai
sendo progressivamente a uma lógica da resposta, desde logo

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 99


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
com a teoria platônica da reminiscência que procura, sobretudo
estabelecer a prioridade da resposta a pergunta e depois com a
teoria do juízo que, Aristóteles, faz do juízo o elemento central da
racionalidade.

Frequentemente os filósofos chamam de proposição, nada mais


é, do que um enunciado capaz de ser declarado verdadeiro ou falso
(PORTA, 2007, p. 32), sendo vital a um segundo momento que é
o significado de uma proposição como uma sentença declarativa
(ROLLA, 2018, p. 25), tratando, portanto, do conhecimento
proposicional, ora, o que é conhecido está expresso em uma frase ou
proposição.
Sendo assim, a filosofia possui, por sua natureza, uma pretensão
de totalidade aos problemas, a partir de então, é importante enfatizar
a racionalidade com uma internalização da modernidade que busca
ascender à necessidade de interrogar as proposições, implicando em
um movimento de invenção, na efetiva articulação entre a questão-
resposta, partindo também da consideração do uso corrente da
linguagem nos vários contextos da ação e interação humana, como
bem, afirma Carrilho (apud MEYER, 1982, p. 122) “o uso da linguagem
é resolução dos problemas”.
Nesse sentido, a interrogatividade em face às proposições traz
consigo o ensejo de duas dimensões: a da resposta e a da questão, que
o filósofo, Michel Meyer nomeia de apocrítica e problematológica, em que
quando a questão da qual a resposta se direciona (problematológica)
se distingue daquela que ela resolve (apocriticamente), como assevera
Carrilho (apud MEYER, 1982, pp.125-126) que:

A resposta, enquanto unidade apocritico-problematolológica,


define pelo menos duas questões, fundando deste modo a
possibilidade dialógica da linguagem ao mesmo tempo em que
autonomização das respostas em relação às questões que as
fizerem nascer.

Observa-se, desse modo, que a problematicidade surge


da necessidade de relacionar o discurso com o problema que o

100  Jéssica de Souza Lima


desencadeou. Nessa conjectura, a problematicidade faz referência
a um elemento mediador que é o contexto, que trazendo para a
relação do ensino de filosofia, se configura como tudo aquilo que
engloba um determinado fato (PORTA, 2007, p. 77). No entanto, a
formulação dos problemas vem a ser parte nuclear da construção da
reflexão filosófica, interessante notar que, os problemas filosóficos
surgem sempre numa cultura, numa filosofia, numa comunidade,
numa linguagem: são históricos e contextuais (CARRILHO, 1994, p.
42), todavia, os elementos como historicidade e contemporaneidade,
se perfazem como dois registros indissociáveis, principalmente, na
busca pela diferença entre a filosofia e a ciência, repercutindo ao
aspecto que o ensino de Filosofia não é possível sem o zelo à sua
própria história.
Como elucida Porta (2007, p.79), “precisamos da História
porque nunca deixamos de estar diante de uma totalidade parcial
do universo infinito da significação”, ou seja, não existe interrogar
absoluto ou uma pergunta sem pressuposto, pelo contrário, a
pergunta nasce do dinamismo do saber e do não saber. Se não se
sabe nada, nada se pode se perguntar; se sabe tudo, a pergunta
não tem fundamento. O interrogar é a busca pela significação, pelo
sentido, inclusive reformulação do conhecimento. Ocorre que com
a “História da Filosofia”, não se pode fazer como um reducionismo
cronológico, com mera sucessão de nomes e obras filosóficas,
mas a delicadeza e a sensibilização de interagir com a articulação
dos problemas. Carrilho (1994, p.42), aponta as considerações de
Meyer, quanto os “problemas filosóficos”, que:

O critério da sua avaliação histórica não pode, em rigor, ser


o do progresso, como não deve ser o da verdade, mas o da
inteligibilidade, isto é, a articulação entre os problemas e as
respostas no espaço dinâmico das respectivas problemáticas,
ou seja, a inteligibilidade do passado filosófico baseia-se menos
numa verificação científica dos juízos, do que na reconstrução
das problemáticas de que eles pretendem ser a resposta. E
é está inteligibilidade que, ao sugerir uma abordagem da
racionalidade que deixa de estar manietada pelos padrões estritos
da cientificidade, permite conceber a tensão problemática

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 101


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
como uma nova articulação temática d historicidade e da
contemporaneidade.

Em síntese, o “nó de problemas” é elemento primário da relação


de ensino de Filosofia, isso ocorre porque ele é primordial para a
própria filosofia, como bem argumenta Carrilho (1994, p. 38):

A filosofia como prática interrogativa é sempre um trabalho


problematizador que em rigor não conhece soluções, mas apenas
respostas, que são sempre, tematizações dos seus problemas. No
cruzamento da historicidade e da contemporaneidade, a filosofia
aparece não como uma disciplina que, diferentemente de outros
saberes, e como sustentaram muitos dos seus críticos, não tem
problemas, mas como aquela que só tem problemas, que se
realiza no apuramento e na valorização do seu elemento mais
vital: a problematicidade.

Nesse cenário, o “nó de problemas”, mediante a sua


interdependência, a tematização e a tensão problemática propõe
conduzir as atribuições do professor de Filosofia no Ensino Médio,
quanto à compreensão gradual de um determinado problema ou
conjunto de problemas filosóficos provocando em sua atitude de
lecionar, questionamentos aos alunos, como: O que é realmente o
problema, por exemplo? Como podemos formulá-lo com precisão?
O que está em causa? Por que razão é importante? Não será antes
uma confusão, um falso problema? Quais são os argumentos e
fundamentos? Qual a solução ou a resposta?
Sendo assim, como expõe Murcho (2008, p.15) “uma forma
de tentar compreender um problema é saber o que alguns dos
grandes filósofos, clássicos e contemporâneos, pensaram sobre esse
problema”. Portanto, o professor de Filosofia, precisa apresentar e
instigar os seus alunos a terem contatos com o que distintos filósofos
compreenderam e compreendem sobre um determinado problema
filosófico.
Essa abordagem deve provocar a perspectiva do aluno em
produzir perguntas próprias, como, por exemplo: será o que um dado
filósofo entende sobre tal problema? Será a melhor compreensão?

102  Jéssica de Souza Lima


Ou não? Por quê? Percebem-se, com essas breves perguntas, que
o foco é construir elos de conexões e paradoxos, entre as formas
dialógicas com os diferentes filósofos que formularam ou formulam
um determinado problema. Sendo assim, a estratégia eclética,
ora apresentada superficialmente denota no estabelecimento de
equivalência generalizada de todas as filosofias. A partir de então,
quando ocorre uma escolha distinta, sem critérios, tendo em vista
a transmissão escolar e a sua utilidade social, sugerindo assim,
uma significação com o conhecimento direito do objeto em análise
filosófica (CARRILHO, 1994, p. 40).
Desse modo, o professor irá contribuir com a interpretação
e a construção argumentativa dos alunos, mas interligando a
sensibilização, ou melhor, o convite para que aluno tenha interesse e
liberdade na construção da reflexão filosófica.
É notório, que os problemas existem e tem-se a necessidade
de que sejam resolvidos, os filósofos destacam-se pela possibilidade
de oferecem as suas soluções, por intermédio de suas teorias, para
destacar soluções para tais problemas, assim como os físicos e
os biólogos. Mas é interessante o questionamento: será que essas
teorias são eficazes?
Essa intersecção, por exemplo, traz para a Filosofia,
principalmente no contexto do seu ensino, a necessidade de propor
aos alunos o pensar, o analisar, o interrogar, a problematização e o
cuidado com as diferentes teorias desencadeadas pela ciência, sendo,
uma estratégia de verificação passo a passo do problema filosófico,
ou seja, o estudante de filosofia poderá com a identificação do “nó
de problemas” propor uma análise entre as teorias e formular a sua
argumentação sobre tais conhecimentos.
Destaca-se, que as teorias se sustentam em argumentos e essa
é uma característica, em que a Filosofia se distingue das demais
disciplinas. As teorias filosóficas se estabelecem em argumentos
filosóficos diferente das teorias científicas que se apoiam na
experiência e métodos quantitativos. Murcho (2008, p. 16) enfatiza
que:
As teorias filosóficas apoiam-se quase exclusivamente em

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 103


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
argumentos filosóficos. Os raciocínios dos físicos têm dois tipos
de ajudas: a experiência empírica e a matemática. A experiência
empírica permite-lhes testar as suas teorias, verificar se a
realidade é como a teoria diz que é. A matemática permite dar
um grande rigor a essas teorias, e permite retirar consequências
experimentais precisas da teoria. A Filosofia, ao contrário das
outras disciplinas, nem dispõe de testes empíricos, laboratórios
e observações, estatísticas e outros dados; nem se apoia em
raciocínios meramente matemáticos e formais.

Interessante destacar, que mesmo com a distinção


metodológica acima arguida pelo doutrinador Murcho, é possível a
interdisciplinaridade entre a Filosofia e as ciências, na medida em
que o objetivo da identificação do “nó de problemas” seja alcançada
à perspectiva do professor em “capacitar o estudante de Filosofia no Ensino
Médio para argumentar e justificar o conhecimento adquirido, estimulando o
mesmo, em desencadear a sua construção reflexiva autônoma e reagir em face
aos contra-argumentos e a contraexemplos”. De acordo com Chauí (2010,
p.24):

[...] a filosofia compartilha a explicação da realidade com as


ciências, pois cada uma delas define um aspecto e um campo da
realidade para estudo [...], não sendo admissível que haja uma
única disciplina teórica que possa abranger sozinha a totalidade
dos conhecimentos ou o conhecimento total do Universo.

Em face de valoração da Filosofia integrada a outras disciplinas,


como também de outras ciências sociais, Matthews (1995, p.165)
afirma que “podem tornar as aulas de ciências mais desafiadoras
e reflexivas, permitindo, deste modo, o desenvolvimento do
pensamento crítico; podem contribuir para um entendimento mais
integral de matéria científica”; isto posto, nota-se que esta associação
é indispensável para tornar o ensino de ciências formador também de
seres críticos e protagonistas do conhecimento.
Em conexão aos parágrafos anteriores, a abordagem construída
nessa dissertação é epistemológica, uma vez que temos uma vasta
série de conhecimentos, não somente aqueles conhecimentos da

104  Jéssica de Souza Lima


vivência cotidiana, bem como, aos conhecimentos contidos nas
múltiplas ciências e que o professor de Filosofia, deve instruir o seu
aluno a refletir sobre um dos elementos pilares que fundamenta a sua
presença na sala de aula, ora, a busca pelo conhecimento. Afinal, o que
é o conhecimento?
Ocorre que, uma das principais atribuições da epistemologia
é superar essa possível “dificuldade crucial”, com a busca pela
definição do conceito de conhecimento e as suas características,
sendo uma assunção plausível e, com efeito, ela guiou maior parte do
projeto epistemológico, sendo que desde Sócrates, a filosofia busca
estruturar e definir certos conceitos fundamentais. É primordial
recordar que, no diálogo de Teeteto, Platão formula de maneira
significativa a pergunta: O que é conhecimento?
Percebe-se que, essa investigação é a “espinha dorsal” do projeto
epistemológico ao longo da história e, apenas recentemente foi posto
em dúvida. É importante esclarecer, o significado das condições que
busca analisar certos conceitos, e não apenas a maneira como nós os
usamos. O resultado dessa empreitada é promover um entendimento
filosófico que se constrói de modo piramidal (ROLLA, 2018, p.24).
Nesse contexto, frisa-se a necessidade de entendermos, alguns
pontos com os usos dos termos saber ou conhecer, uma vez que no
cotidiano das vivências, esses dois vocábulos tornam-se comuns,
sendo literalmente indispensável, para uma boa formação do
aluno de filosofia do Ensino Médio. Nesse sentido, mesmo que a
preparação do aluno seja com noções razoáveis, para a dimensão do
conhecimento e os seus impactos, o ensino de filosofia deve ater-se
a identificação do “nó de problemas”. Neste norte, possibilitando
ao aluno estratégias de abordagens, de maneira que possa começar
pelo envolvimento dos mesmos na percepção e interação com as
tarefas de definir e explicar alguns conceitos básicos que surgem com
a identificação dos problemas filosóficos.
Por conseguinte, para abordagem epistemológica o terceiro
uso do conhecer é a que centraliza maior interesse, principalmente
quanto à elucidação da tese que o conhecimento é uma crença verdadeira
justificada, que implica na análise tripartite como as condições que

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 105


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
desencadeiam o conhecimento, como afirma o doutrinador Rolla
(2018, p. 36):

Ou, ainda em outras palavras, um sujeito sabe determinada proposição


se, e somente se, (i) ele acredita nessa proposição, (ii) essa
proposição é verdadeira e (iii) ele possui justificação para crer
nessa proposição. Dado que o conhecimento requer a satisfação
de três condições – e dado que há a suposição de que isso é a
mesma coisa que analisar o conhecimento – essa análise ficou
conhecida como análise tripartite e, mais recentemente, é chamada
simplesmente de CVJ (crença verdadeira justificada).

O conceito de “conhecimento” é um dos conceitos que


tem tomado a cautela dos Filósofos, no decorrer da história da
Filosofia ensejando uma relevância pilar para a Filosofia como um
todo. Nossas ações do dia-a-dia são em grande parte motivadas
pelas nossas expectativas em relação àquilo que já “sabemos ou
compreendemos”, em contrapartida àquilo em relação ao qual
“temos dúvidas”, ou “mera opinião”. Ele também é um conceito que
impregna certas conjecturas pré-teóricas. Comumente consideramos
“conhecimento” como um termo de afirmação, em contraposição
ao “erro”, por exemplo, (e não precisamos estudar filosofia para
percebermos tal coisa). Procedemos, a partir de então para uma
análise propedêutica da estrutura tripartite, como um desafio que
é introduzido epistemologicamente na busca pela significação dos
elementos: crença, verdade e justificação.
Inicialmente, o que é uma crença? As definições são diversas,
porém, a crença apresenta-se sobre duas abordagens comuns,
uma abordagem mentalista: a crença seria uma atitude mental
diante de uma proposição e, na abordagem comportamentalista: o
comportamento de uma pessoa revelará a sua crença (SMITH, 2010,
p.149).
Ocorre que, alguns filósofos criticam o critério que o
conhecimento seria um tipo de crença, chamando a atenção para a
discussão acerca da colocação que o conhecimento não é subjetivo,
mas objetivo havendo, assim, uma crítica à concepção subjetiva que

106  Jéssica de Souza Lima


permeia o entendimento que o conhecimento é um estado mental
e, Popper sobre essa visão expõe a concepção objetiva, ou seja, o
conhecimento deve ser compreendido por meio de enunciados em
que as teorias e as teses são estruturadas (SMITH, 2010, p.150).
Além disso, o conhecimento e a crença seriam categorias
individuais, na proporção que existem apontamentos que os
segregam, como por exemplo, o conhecimento depende de um fato
objetivo, a crença depende de um estado interno. O reconhecimento
possibilita a margem de erro, ao contrário do conhecimento, mínima
probabilidade de erro, como bem afirma Smith (2010, p. 150) “crer
em alguma coisa implica admitir que o erro é possível, mas quando
sabemos alguma coisa, o erro não pode surgir”.
Importante recordar que, desde Platão, entre o conhecimento
(epistéme) e a crença (doxa) a filosofia sempre se ateve na procura pela
verdade, habitualmente, ao longo da história da Filosofia, ensejando
uma noção de aprovação integral. Para Platão, o conhecimento
faz parte do universo da razão, se porventura, o conhecimento for
integralmente, uma crença, representará o abandono da concepção
tradicional (SMITH, 2010, p. 150).
O conceito de verdade traz consigo algumas nuanças, primeiro
a verdade pode ser compreendida, como a correspondência entre o
que dizemos e como as coisas são, parece não ser razoável identificar
“verdade” com “aquilo em que acreditamos por boas razões e sem
evidências em contrário”, ou seja, não parece razoável chamar de
“verdadeiro” àquilo que nos parece ser verdadeiro. Isto por uma razão
simples: nossa decisão sobre o que nos parece ser verdadeiro só pode
estar baseada nas evidências atualmente disponíveis; mas temos uma
larga experiência no que diz respeito ao surgimento inesperado de
novas evidências, evidências por vezes contrárias às nossas crenças
atuais, trazendo uma crítica à comparação da concepção da verdade
entre o fato e a proposição. Nesse contexto, Smith (2010, p. 151)
expõe que:

Como um fato pode corresponder a uma proposição? As


respostas tendem a elaborar uma visão metafísica do mundo. Por

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 107


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
exemplo, fazemos corresponder à noção gramatical de sujeito a
noção metafísica de propriedade, como se houvesse uma mesma
estrutura entre a linguagem e o mundo. Outra dificuldade
é a de que o fato deve servir de justificação para a verdade da
afirmação, mas uma razão para aceitar uma proposição é sempre
outra proposição, nunca um fato.

A importância da noção de “verdade” para a epistemologia


parece manifesta, como já foi enunciada, a verdade constitui um
objetivo epistêmico, o de atingi-la, evitando o erro. Tão interessante
que no cenário social, pode uma pessoa rejeitar uma determinada
tese, alegando que anteriormente os antecessores construíram
teorias intricadas e amplamente explicativas, teorias que podem ser
falsas. Mais, além disso, poderá argumentar também que é razoável
pensar que possamos estar iludidos em nossas crenças científicas
ou até mesmo pelas crenças filosóficas. Nota-se, a instabilidade, ou
melhor, a confusão, mas que pode ser sanada, a partir do momento
em que a justificação é o elemento norteador.

Um requisito razoável para muitos (mas ainda forte demais para


aqueles epistemólogos que defendem teorias da justificação
externalistas) é o de que estejamos justificados em crer que a
crença em questão é verdadeira. Assim, não precisaríamos - para
saber que E=m.c², ter garantias de que a fórmula é verdadeira;
basta que estejamos justificados em aceitar que a fórmula parece
ser verdadeira para nós, neste instante, dado o que nossa melhor
ciência nos diz (MEYER, 2013, p. 44).

Por fim, traz-se à discussão nesse momento, o elemento da


justificação epistêmica que como já mencionado é o elemento norteador
para o conhecimento, apesar de que argumentar em defesa se uma
teoria na busca pela justificação ou contra isso é algo complexo;
porquanto, não se tem um conceito definido de justificação
epistêmica, uma vez que a base epistemológica ressalta predominante
a imagem que o conhecimento – é uma crença verdadeira justificada.
Todavia, destacando-se as contribuições do filósofo René Descartes
que, por exemplo, buscou direcionar os espíritos por meio do

108  Jéssica de Souza Lima


uso da razão, conduzida por um modelo rigoroso de justificação,
sustentado no alcance da certeza. Tratando a certeza como o grau
máximo de justificação, na sua obra Meditações Metafísicas, tem-se a
disponibilidade de todos os elos do conhecimento e, no fundamento
concreto enseja o cogito “Penso, logo existo”.
Desse modo, o recurso ao método cartesiano (ceticismo
metodológico que será abordado no próximo tópico) é importante
e útil ao ensino de Filosofia para entendermos a proeminência do
conceito de justificação para a definição de “conhecimento”. Todavia,
Meyer (2013, p, 46) argumenta que “Descartes não identificava a
“justificação e a verdade”, mas o método cartesiano oferecia justificação
num grau tão elevado que o objetivo, a verdade, era sempre atingido”.
Interessante mencionar brevemente sobre a contribuição
teórica do filósofo Edmund Gettier, em seu artigo Is Justified True
Belief Knowledge (É Crença Verdadeira Justificada Conhecimento?)
em 1963, ao definir o conhecimento como crença verdadeira
justificada, todavia, ele aludiu o problema da formulação de
uma conceituação de conhecimento conservada ao ataque de
contraexemplos, incidindo, pois em ataques severos à tradicional
definição tripartite de conhecimento, referindo-se de maneira
especial à estrutura de justificação. Gettier destinou a demonstrar que,
mesmo que a justificação seja central, que mesmo que se esteja na
melhor condição para saber algo, dispondo de refutáveis evidências,
a justificação sempre estará condicionada a uma conjunção de
fatores externos ao próprio sujeito.

A tarefa dos epistemólogos passa a ser, então, desde 1963, a de


elaborar uma nova definição de conhecimento proposicional.
Esta nova definição deve satisfazer nossas intuições acerca do
conhecimento e deve prever o que não deve ocorrer, externamente
ao sujeito conhecedor; em outras palavras, uma definição
adequada de conhecimento deve garantir que só atribuamos
o conceito de conhecimento àquelas proposições que de fato
não estão sujeitas àquela conjunção de fatores que caracteriza
os exemplos de Gettier (e toda uma classe de contra-exemplos
denominados de tipo-Gettier) (MEYER, 2013, p. 44).

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 109


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
Nessa perspectiva, podemos orientar-se em dois grupos as
teorias que tentam prover justificação às crenças: eles podem ser
classificados como internalismo e externalismo. Esses grupos se
estendem em fundacionismo e coerentismo, logo são as teorias básicas
de justificação das crenças e aquelas as quais nessa dissertação,
busca-se ensejar algumas breves considerações.
Em linhas gerais, pode-se asseverar que as demandas de
justificação são aquelas que se pautam com as razões que geram
as crenças, logo, entre elas, a corrente do fundacionismo que
coloca uma diferença entre crenças básicas e crenças derivadas. As
crenças básicas têm a codificação epistémica superior, ou seja, são
estabelecidas por um grau de certeza, de tal forma que não precisam
de nenhuma outra crença essencial para estarem justificadas. Em
uma grande maioria são identificadas como “auto justificadas” de
tal modo que, a sua compreensão é imediata. Propor a sua negação
ou buscar defender integralmente a sua falsidade será um caminho
para a irracionalidade.
Desse modo, as crenças derivadas só são justificadas, em última
análise, por estarem vinculadas as crenças básicas. Estas podem ser
de natureza lógica, bem como de natureza empírica. Portanto, o
projeto de investigação baseado no fundacionismo é um caminho
para responder ao ceticismo, ou seja, o fundacionismo defende um
projeto epistemológico capaz de evidenciar que, no meio de toda
a dúvida e de todo a “neblina cética”, é possível conhecer algo de
forma objetiva e distinta. Trata-se da busca por uma “filosofia
original”, com critérios de justificação e verdade próprios, passível
de ponderação, autojustificação e autoconstatação. Observa-se o
caminho ao propósito de René Descartes. Assim, Dancy (1985, p.
73) afirma que:

Esta distinção entre crenças básicas e não-básicas, é um distinção


estrutural. Mas o fundacionalismo dá conteúdo à distinção
acrescentando que as nossas crenças básicas são crenças que
se referem à natureza dos nossos próprios estados sensoriais,
da nossa experiência imediata. Tais crenças são capazes de
se aguentar sozinhas, sem o apoio de outras. Outras crenças

110  Jéssica de Souza Lima


precisam de apoio, pelo que devem obtê-lo a partir de nossas
crenças acerca dos nossos estados sensoriais.

Enquanto no fundacionismo, o processo de justificação implica


uma imersão nas razões fundamentais de uma crença, no coerentismo
trata-se antes da inclinação para “analisar”, a racionalidade e
coerência de um conjunto, com a sustentação às crenças particulares.
O fundacionismo é singular, dado que a justificação se concentra
num sentido. O coerentismo é diversificado, dado que uma crença
está justificada pelo conjunto, pelo todo, mas contribui, ao mesmo
tempo e na mesma proporção que todas as outras, para a justificação
desse mesmo conjunto e, por inerência, de cada uma das crenças
particulares.
Cumpre aqui destacar que existem duas respeitáveis
características fundamentais das teorias coerentistas, são elas: as
teorias coerentistas abdicam que haja algumas crenças básicas ou
fundacionais e a justificação de uma crença é em desempenho de
outras crenças. A postura do coerentismo pode ser definida como
aquela que conduz nossas crenças iniciais particulares e gerais para
serem usadas na teoria da construção do conhecimento. Tal como
escreve Soares (2004, p.48) que:

O holismo pressuposto no coerentismo forte imprime um carácter


monista a todo o sistema de crenças e conhecimentos demasiado
radical e insustentável. A única alternativa seria admitir que
o conjunto de crenças para o qual a coerência é o critério de
justificação, não é constituído por todas as crenças de um sujeito,
mas por um subconjunto dessa totalidade.

Neste contexto, parece mais plausível acolher que certas


incoerências no âmbito de um dado conjunto de crenças não alocam
em causa todo o conjunto, do mesmo modo que as contradições
de visão do mundo, por maiores que sejam não colocam em causa
certas crenças.
Todavia, aceitar a probabilidade de um coerentismo local seria
aceitar que nem todas as crenças de um sujeito podem ser justificadas

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 111


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
somente pelo juízo crítico da coerência. Seria, neste caso, aprovar
que têm crenças que podem ser justificadas com base na experiência
do sujeito, interna ou externa. Ora, ao admitir a importância da
experiência para a justificação, o coerentismo coloca em causa uma
das suas implicações básicas e refuta-se a si próprio.
Com base nisso, existe uma complicação em decidir se algum
tipo de justificação epistêmica tem um caráter fundacionista ou
coerentista, levando em consideração que ao estabelecer conexões
positivas entre as crenças, o processo reflexivo fortalece as razões e
as suas proposições. Além disso, quando se tem uma crença, tem-se
que partir de algo, ou seja, de alguma fundação. Eis a questão: ao
considerar isso, os seres humanos vêm justificando as suas crenças
no universo contemporâneo?
No projeto cartesiano, ora, estrutura recorte dessa dissertação,
o conceito de justificação foi tratado, na história da epistemologia,
em termos da perspectiva do sujeito epistêmico como o acesso às
evidências e razões apropriadas, isto é, que dão suporte à verdade
da crença alvo de conhecimento (ROLLA, 2018, p.34.), ou seja, o
conceito de justificado consistia em cumprir (ou ser capaz de) uma
série de requisitos intelectuais em relação a uma crença em questão,
num determinado instante de tempo. Assevera Meyer (2013, p. 46)
que:

O apelo à certeza como ingrediente da justificação epistêmica


fez com que Descartes fosse considerado um “infalibilista” no
tocante à justificação. “Infalibilista” é aquele que considera que
justificação, uma vez adquirida, não pode mais ser perdida. Esta
posição foi, hoje, totalmente abandonada.

Mesmo com o “abandono”, arguido por Alessandre Meyer


aos pilares da justificação epistêmica cartesiana, ocorre que a
característica epistemológica cartesiana contribui com o objetivo
do andamento dessa dissertação, pois filósofo francês Descartes,
exige um tipo de saber que não pode ser abalado por nenhum tipo
de dúvida, por menor que seja ela. Dessa forma, a infalibilidade do
conhecimento humano para Descartes significa certeza absoluta e

112  Jéssica de Souza Lima


completa. Para isso, o filósofo francês percorre, na Primeira Meditação,
o itinerário de uma dúvida hiperbólica e radical que mantém a
suspensão do juízo acerca do mundo exterior, sendo necessário
examinar a totalidade de nossas crenças e opiniões de uma maneira
sistemática e completa (LANDESMAN, 2006, p.118-121).
Essa referida dúvida cartesiana representa um procedimento
metodológico que busca alcançar a certeza absoluta do conhecimento.
Ressalta-se que, essa produção dissertativa, apenas faz um recorte
do ceticismo metodológico ao critério de utilizar metodologicamente
o caráter da não passividade à natureza das experiências sensoriais,
colocando em crivo a razão e a identificação dos problemas ao ato de
questionar, não buscando uma justificação absoluta, mas a construção da
reflexão filosófica e, sendo um dos pontos coerentes o desenvolvimento da
argumentação.
Ocorre que, o ceticismo metodológico compõe de hipóteses
céticas presentes de maneira peculiar nas Meditações Metafísicas
- Primeira Meditação, especialmente a dúvida sobre as coisas
materiais, logo, a dúvida cética deve ser compreendida com natureza
de exercício mental sugerido como recurso para fragilizar a confiança
dos sentidos e dispor o ser humano para a apreensão de verdades
acessíveis à luz da razão. Nesse sentido, pretende-se mostrar que a
dúvida cética como instrumento de questionamento, de inquirições e
inquietude desempenha, uma função, construtiva e epistemológica.
Observa-se que Descartes adota essa postura da não
passividade, ao exemplo, do artifício do gênio maligno que traz à tona
o ataque as nossas crenças ordinárias fundadas nos sentidos. Nesse
sentido, a dúvida cética cartesiana, procedida da representação do
gênio maligno é uma referência, como um contrapeso à tendência
espontânea que tem o ser humano de se acomodar frente às suas
opiniões preconcebidas (SCRIBANO, 2007, p. 45).

Suporei, pois, que há um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte


de verdade, mas que certo gênio maligno, não menos astuto e
enganador que o poderoso, que empregou toda sua indústria em
enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras,
os sons e todas as coisas exteriores que vemos não passam de

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 113


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
ilusões e enganos. Considerai a mim mesmo como não tendo
mãos, nem olhos, nem carne, nem sangue, como não tendo
nenhum sentido, mas crendo falsamente, ter todas essas coisas.
Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se
por esse meio, não está em meu poder alcançar o conhecimento
de alguma verdade, pelo menos está em meu poder suspender
meu juízo (DESCARTES, 2005, p. 38).

Nesse ensejo, tem-se um traço importante que faz parte da


estrutura da justificação do conhecimento que é a argumentação,
uma vez que a construção argumentativa consiste na racionalidade
filosófica com a organização e a focalização dos problemas, que
desenvolve e orienta os vários episódios dando-lhes formas, como
a defesa de um enunciado e assim, o coexestensivo ao problematizar
(CARRILHO, 1994, p. 43).
Nesse sentido, Smith (2010, p. 153) expõe que:

Parece, entretanto, que toda justificação que pretenda garantir


infalivelmente a verdade de uma crença ou leva a uma regressão
ao infinito, ou a uma adoção arbitrária de uma hipótese, ou a
um raciocínio circular. Se esse é o caso, então não há nenhuma
justificação no sentido pretendido. A conclusão se impõe por si
mesma: se pretendemos que a justificação deva ser absoluta e
garantir de maneira infalível o vínculo entre a crença verdadeira e
a realidade, então não temos nenhum conhecimento.

Logo, essa colocação acima citada, remete de maneira paralela


à relação do ensino de Filosofia, com a abordagem real que o ser
humano não detém da certeza absoluta, no sentido mais amplo
do termo, mas através do problematizar, do questionar, da não
passividade, poderá estabelecer a justificação em níveis menos
elevados e compatíveis com os seus objetivos, evidente, que o
desejável seria o alcance da justificação absoluta. Sendo que, a
justificação depende de propriedades das razões que dispomos para
raciocinar sobre tal objeto. E as razões podem estar no máximo,
ligadas aos dados fornecidos por nossos sentidos que podem nos
iludir. O conceito de conhecimento é fundamental para o nosso meio
social e age como uma verdadeira incógnita epistemológica.

114  Jéssica de Souza Lima


Salienta-se que, a epistemologia vem fornecendo elementos
indispensáveis para todas as outras áreas como para a própria ciência,
tecendo de maneira peculiar ao ensino de Filosofia uma posição
inicialmente pouco privilegiada que nos leva à busca de evidências em
favor de nossas crenças e à manutenção de uma atitude de abertura
frente à problematização e autonomia dos alunos, por ser um sujeito
pensante que deve se envolver com as problemáticas que o circunda.
Portanto, o envolvimento dos alunos é primordial e uma das
várias maneiras para esse envolvimento, é oferecer sensibilizando
os alunos a tarefa de definir e explicar conceitos básicos como
conhecimento, em vez de permitir que eles recebam passivamente
informações e somente, depois tecerem por conta própria as suas
colocações, talvez seja melhor, que nesse momento de envolvimento,
invés de uma reflexão pronta, propõem-se questões e a receptividade
de respostas com a discussão da mesma. Por exemplo, o professor
apresenta a pergunta “O que é o conhecimento?”.
Ocorre que, o professor deve enfatizar a importância da
leitura do texto filosófico, ou seja, cada texto exige uma postura
e um comprometimento do leitor, portanto, o objetivo central do
professor será a dinâmica do “nó de problemas filosóficos”. Nessa
relação do ensino de Filosofia, o professor deverá instruir os alunos
para identificar na leitura do texto, o problema filosófico e inquirir com
a sua identificação a posição defendida, ou até mesmo, a posição
criticada pelo autor, mas acima de tudo, sensibilizar o aluno ao
interesse em identificar o problema e, posteriormente a busca pela
compreensão dos argumentos e os contra-argumentos e, promover
que o aluno se dedique à construção argumentativa.

A intervenção do ceticismo metodológico no ensino de filosofia

É perceptível uma problemática central e investigativa acerca do


ensino de Filosofia no Ensino Médio, todavia, não significa ser uma
pretensão pedagógica para definir uma técnica pronta e acabada
quanto ao modo de ensinar a Filosofia, mas, sim, a reflexão quanto

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 115


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
à (s) possibilidade (s) estratégica (s) de examinar essa problemática,
no sentido de resignificar o ensino de Filosofia no Ensino Médio.
Nesse sentido, Folscheid e Wunenburger (2006, p.10) afirmam
que “o aprender filosofia não é aprender a servir-se de um instrumento
para aumentar nosso poder sobre as coisas ou sobre os homens, mas
é adquirir progressivamente a arte de desenvolver aptidões de nosso
próprio espirito, a julgar e raciocinar em geral”.
Partindo desse pressuposto de Folscheid e Wunenburger,
observa-se que, no cotidiano da sala de aula no Ensino Médio é
compreensível a dificuldade em geral dos alunos, ao ato de filosofar
por trazerem consigo uma compreensão rasa, singular ou até
mecanizada, por exemplo: frequentemente, os alunos não conseguem
perceber a importância da filosofia para o futuro de suas vidas, seja
no campo pessoal ou profissional (aos instrumentos de avaliação e
ingresso ao Ensino Superior), entre eles, a prova do ENEM (Exame
Nacional do Ensino Médio), os alunos não conseguem dialogicamente
estabelecer elaboradas relações causais, não conseguem suspeitar de
discursos elaborados para fins ideológicos, os alunos não conseguem
ter um domínio razoável da língua portuguesa e, demais episódios
que podem conciliar diretamente a importância da Filosofia no
Ensino Médio.
Apesar de todos esses obstáculos ou justamente por conta deles,
a proposição estratégica do ceticismo metodológico na construção
da reflexão filosófica no Ensino Médio, justifica-se como um passo
necessário que leva ao caminho do conhecimento e da verdade do
mundo exterior, bem como a ressignificação da Filosofia no Ensino
Médio, uma vez que o ceticismo não aceita nada, sem que antes
passe pelo crivo da razão, pois o ceticismo filosófico, segundo Stroud
(1984, p.1) pode ser qualificado através da “tese de que ninguém sabe
nada sobre o mundo físico ao seu redor, nem mesmo que ele existe
quanto ao conhecimento do mundo exterior” (tradução nossa).
Neste contexto, fazendo menção ao filósofo René Descartes,
encontra-se identificado o instrumento da problematização, ora
argumentado em colocações retro mencionadas no bojo deste
trabalho, mas é preciso manter um cuidado intelectual nesse

116  Jéssica de Souza Lima


momento, em que o crivo da razão é imprescindível, pois o ceticismo
metodológico, proposto por Descartes estabelece ceticamente que
“todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos...”
(DESCARTES, 2005, p.12).
Reitera-se que, para o ceticismo metodológico, o instrumento
da dúvida acerca das coisas materiais não tinha tanto a pretensão
de estabelecer uma conclusão filosófica (cética e provisória),
mas sim provocar um “exercício meditativo” que conduziria o ser
humano à sugestão de que a realidade exterior pode ser uma ilusão
e que, portanto, não caberia confiar nos sentidos como guia para o
conhecimento. Descartes (2005, p.80-81), expõe que:

Muito úteis para provar o que elas provam, a saber, que há um


mundo, que os homens têm corpos e outras coisas semelhantes,
que nunca foram postas em dúvida por homem algum de
bom senso; mas porque, considerando-as de perto, chega-se a
conhecer que elas não são tão firmes nem tão evidentes quanto
aquelas que nos conduzem ao conhecimento de Deus e da nossa
alma; de sorte que estas últimas são as mais certas e as mais
evidentes que possam cair no conhecimento do espírito humano.

Nesse sentido, a Filosofia no Ensino Médio necessita conduzir


os seus alunos para o “o exercício meditativo”, identificando a
fragilidade dos sentidos com relação ao mundo exterior, que podem
condicioná-los a ilusão ou ao engano, na medida em que se afastarem
do crivo da razão. Logo, é primordial despertar o aluno de Filosofia
no Ensino Médio, conforme o seu contexto ou especificidade
ao “filosofar”, como uma postura epistemológica que busca
possibilitar uma construção analítica, reflexiva, crítica e autêntica do
conhecimento, procurando imprimir a marca da Filosofia à educação
contemporânea, bem como busca revolucionar o cotidiano e a
própria sociedade ao caminho do pensamento analítico e crítico.
Enfim, em um primeiro momento, é pouco eficaz querer que
o educando questione verdades preestabelecidas, pois existe uma
disposição em aceitar passivamente verdades já proclamadas pela
tradição. Ocorre que, o aluno não se questiona, simplesmente

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 117


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
absorve o exposto como sendo algo incontestável. Entendemos que o
aprimoramento da capacidade analítica e crítica, no âmbito escolar,
passa primeiramente por um processo de rompimento com crenças
arraigadas, ou seja, ninguém desenvolve uma habilidade analítica e
crítica sem primeiro ter feito uma crítica das suas próprias convicções
e isso pode ser feito na seara da própria Filosofia.
O ensino de Filosofia deve disseminar a problemática, a
análise, dispor-se a dúvida, não ser subordinado. A Filosofia sobre
a sua atribuição referente à crítica, não se deve acomodar em suas
formalidades, paradigmas e sistemas. A Filosofia não pode limitar-se
somente a sua história e como se necessariamente devesse obediência
a qualquer cronologia dos fatos. Todavia, não se pode negar o
vínculo do ensino da Filosofia com sua história, porém é necessário
compreender que essa vinculação só será com êxito, se os conteúdos
atrelados à história do pensamento filosófico provocar a fertilidade
do filosofar ao aluno e interseção analítica para a descoberta das
verdades ou até mesmo, um novo estágio caracterizado pelo percurso
investigativo.
Percebe-se que, a problematização, a dúvida, a análise,
a exposição da fragilidade dos sentidos são mecanismos para
Descartes (2005) que incorporam uma função especial de afastar os
obstáculos que poderiam prejudicar o caminho para a construção da
reflexão filosófica, seguido pelo investigador em direção ao emprego
das dúvidas céticas.

Na primeira, adianto as razões pelas quais podemos duvidar


geralmente de todas as coisas, e particularmente das coisas materiais,
pelo menos enquanto não tivermos outros fundamentos nas ciências
além dos que tivemos até o presente. Ora, se bem que a utilidade de
uma dúvida tão geral não se revele desde o início, ela é todavia nisso
muito grande, porque nos liberta de toda sorte de prejuízos e nos
prepara um caminho muito fácil para acostumar nosso espírito a
desligar-se dos sentidos...(DESCARTES, 2005, p. 79)

Essa intenção de Descartes em afastar os obstáculos que


poderiam prejudicar o caminho para a construção da reflexão
filosófica, seguido pela investigação em direção ao emprego

118  Jéssica de Souza Lima


das dúvidas céticas, contribui para o presente trabalho, com a
contextualização ao ensino de Filosofia no Ensino Médio, uma vez
que, o professor como “investigador”, poderá propiciar ao aluno
o sabor da análise, da trama, o gosto pelo pensar, o sentido da
apropriação filosófica.
Nesse movimento epistemológico e intervencionista, o ensino
de Filosofia no espaço escolar, há que ser potencializador das
qualidades humanas, instaurando um processo de conscientização e
problematização do processo de conhecimento, que sugestivamente
se concilia ao ceticismo metodológico.
Ressalta-se que, para Dewey (1979, p. 56), o instrumento da
problematização é metodológico e político:

[a] formação de hábitos de pensamento reflexivo é o problema de


estabelecer condições que irão despertar e orientar a curiosidade;
de determinar associações entre as coisas experienciadas que
posteriormente promoverão um fluxo de sugestões, de criar
problemas e objetivos que favorecerão o encadeamento lógico na
sucessão das ideias.

Desse modo, é necessário que as escolas e peculiarmente a


Educação Básica no Ensino Médio, preocupem com determinados
aspectos da formação intelectual de seus alunos, especialmente,
relacionando ao desenvolvimento e fortalecimento do pensamento
analítico e crítico, mas estimulando no aluno a etapa de concentração,
cuidado e reflexão, ou melhor, a capacidade de meditar. Traz-se à
baila, ponderações ao fato que a composição das meditações de
Descartes, ora eixo do ceticismo metodológico, houve uma forte
influência da meditação espiritual. Sendo que Descartes, exige a
atenção e reflexão do leitor. Tão interessante, que Descartes (2005,
p. 167) afirma que:

Preferi escrever meditações e não disputas ou questões, como


fazem os filósofos, ou teoremas e problemas, como os geômetras,
a fim de testemunhar que as escrevi tão-somente para os que
quiserem dar-se ao trabalho de meditar seriamente comigo e
considerar as coisas com atenção.

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 119


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
Nessa mesma linha, a proposição da intervenção do ceticismo
metodológico no ensino de Filosofia no Ensino Médio, enseja uma
conexão clarividente quanto à propagação da cultura do pensamento
crítico na escola e na sala de aula referenciando a um ambiente em que
várias forças (linguagem, valores, expectativas e hábitos) reforçam o
objetivo do bem-pensar, como bem menciona Tishaman, Perkin e Jay
(1999). Ocorre que, essa menção a cultura do pensamento crítico na
escola e na sala de aula salienta que o ensinar a pensar é preparar os
alunos para um futuro que possam resolver os problemas, de maneira
consciente, inquisitiva e imaginativa.
Por esse prisma, o processo de ensino e aprendizagem
desemboca na construção de conhecimento, havendo uma interação
individual e grupal entre os sujeitos, ora o professor e os alunos, da
qual o professor assumirá o papel de mediador, fazendo com que
a ação na sala de aula, se construa como verdadeira colaboração/
cooperação dos alunos e todo o grupo da sala de aula, caracterizando
a autenticidade, o diálogo, a segurança e o respeito quanto às
atividades desenvolvidas no âmbito escolar e estruturando-se na
formação afetiva e motivacional.
No que se segue, para a consecução da intervenção do ceticismo
metodológico ao ensino de Filosofia no Ensino Médio é evidente, que
na contemporaneidade não é tão fácil se espantar ou admirar-se com
o mundo exterior, no sentido investigativo, principalmente, como
já arguido em parágrafos anteriores, a sociedade atual e os jovens
alunos são afetados por um amontoado de informações e afazeres
cotidianos que dissolvem a concentração e a própria capacidade de
reflexão, ou seja, vivencia-se uma época que o “filosofar”, é substituído
por informações oriundas do senso comum, valorizando apenas o
“sensorial”, não havendo um crivo da razão, ou uma investigação
filosófica analítica ou meditativa em busca da veracidade ou até a
origem das informações.
Como bem, posiciona Santaella (2013) de maneira contextual,
os alunos estão informados e conectados durante 24 (vinte e quatro)
horas, recebendo diversificadas informações e o papel do professor
como mediador do conteúdo já não prevalece. Essa nova realidade

120  Jéssica de Souza Lima


educacional é um desafio para as escolas e professores, ou seja, a
sociedade contemporânea vivência um período de hipermobilidade,
conceito criado pela autora para instituir o deslocamento no espaço
físico conectado ao ciberespaço (internet), por meio do uso das
tecnologias móveis como celulares, smartphoes, tablets e demais que
transformaram as pessoas em seres ubíquos (é um termo originário da
computação para designar a comunicação entre pessoas realizada
através de dispositivos móveis), que podem ser encontrados em
qualquer lugar e a qualquer hora.
Porém, para Santaella (2013) as pessoas no cenário do
ciberespaço apresentam uma dualidade entre o presente-ausente
em suas relações comunicacionais e pessoais, a qual pode trazer
efeitos colaterais no decorrer dessas relações, entre eles, para a
educação vivencia-se a redução da reflexão filosófica e havendo uma
propagação de informações ou notícias falsas, os famosos Fake News.
Essa realidade decompõe as relações interpessoais, principalmente
entre os jovens, sendo que eles estão invariavelmente on-line e off-line,
e seus perfis nas redes sociais são expansões de suas personalidades.
Essa realidade promove aos adolescentes a criação de multíplices
identidades nos perfis das redes sociais.
Outro fator é a necessidade de as escolas se adaptarem às
tecnologias digitais como instrumento de interação com a juventude,
que já nasceu com as tecnologias móveis e o mundo virtual. Com o
advento do aumento do uso das câmeras digitais, a fronteira entre
o momento eternizado da fotografia e a vida real se dissolveu. As
pessoas estão vivendo um tempo de simultaneidade entre o real e
virtual.
Nesse sentido, Harrison (2013) argumenta sobre a “crise global
de ceticismo” no mundo contemporâneo, ao observar, que uma
parcela significativa da sociedade, manifesta uma predisposição em
aceitar e propagar ideias de maneira acrítica, havendo a ausência da
reflexão e até mesmo quanto à preocupação com a veracidade das
afirmações e com a qualidade das justificativas que são apresentadas
para sustentá-las. Nesse contexto, para Lipman (2008) uma
sociedade que aborda os assuntos importantes de forma irrefletida

A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 121


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
e não valoriza a clareza de pensamento terá como resultado uma
educação deficitária.
Como estratégia de encarar o desinteresse ou descaso, para
com a investigação séria e profunda, provinda dessa realidade
inconstante e diluída, a proposição estratégica da intervenção do
ceticismo metodológico, poderá diante de propostas mediadoras,
entre elas, com o uso do texto filosófico, possibilitar estrategicamente
a construção da reflexão filosófica no Ensino Médio, concebendo-se
com a seleção de textos vinculados em temas que possam instigar
a participação ativa dos alunos, como construtores do filosofar,
instituindo a possibilidade de um movimento do pensamento e
de uma nova percepção da realidade com o desenvolvimento da
habilidade de leitura, da escrita, bem como da arte de argumentar,
sendo essencial a todos os que vivem na sociedade contemporânea.

Considerações finais

Sendo assim, um dos caminhos possíveis é a intervenção do


ceticismo metodológico para o ensino de Filosofia no espaço da
sala de aula no Ensino Médio, com o pressuposto que a atividade
filosófica, venha a ser uma tentativa de desmitificação ideológica,
propondo o “filosofar” na direção da verdade com o fundamento
da reflexão analítica e crítica, ou seja, consistindo em uma proposta
que, não é de formar filósofos no sentido tradicional da palavra,
mas proporcionar no espaço da sala de aula, no âmbito da escola
e da própria da sociedade à oportunidade para uma cultura do
pensamento.
É notório que a educação e a escola necessitam “transgredir”
essa lógica da educação tradicional e quantitativa, ora impulsionada
em apenas administrar o controle do tempo e as técnicas de ensino
e aprendizagem, mas se preocupar no efetivo exercício educativo
autônomo, analítico, crítico e humanizador, pois a educação que
não se dissemina na direção da problematização, da dúvida, da
análise, do questionamento, só alcançará o caminho da reprodução,
da mecanização e da alienação.

122  Jéssica de Souza Lima


É importante compreender que o emprego da problematização,
da dúvida e do questionamento direciona a um caminho que não
só pretende frustrar as pretensões sensoriais ou superficiais, como
propõe a obtenção de conhecimento. Em suma, se prestará, ao
mesmo tempo, para duas funções distintas e interligadas: a remoção
dos obstáculos (prejuízos dos sentidos) e a apreensão de verdades.

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A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 123


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
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A RELAÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA COM O 125


“NÓ DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS”
A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO
RAWLS: UMA PROPOSTA PARA
O ENSINO DE FILOSOFIA

Alex de Mesquita Marinho

Introdução

O
presente artigo tem como objetivo descrever o trajeto
teórico-metodológico necessário para a realização de
um trabalho docente em Filosofia no Ensino Médio
com base na utilização de elementos teóricos dispostos na concepção
de Justiça como Equidade desenvolvida pelo filósofo norte-americano
John Rawls. A proposta em questão está baseada na necessidade de
se obter, a partir do processo educacional, indivíduos capazes de
gozar de sua cidadania enquanto pessoas munidas de autonomia
política, segundo a teoria rawlsiana. Foram abordadas discussões
acerca do método do equilíbrio reflexivo caracterizado como amplo e
também foi demonstrada a forma como se pode aplicar esse método
nas aulas de Filosofia.
Observou-se que na teoria de John Rawls encontram-se conceitos
que nos conduzem à reflexão sobre a constituição de cidadãos livres e
iguais que atuam com vistas à construção de uma sociedade pautada

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 127


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
na justiça. Estes conceitos também nos orientam para a forma como
podemos alcançar indivíduos com essas características. É a partir do
método do equilíbrio reflexivo que Rawls acredita que as pessoas
de uma dada sociedade, formadas a partir da pluralidade das
teorias abrangentes, podem alcançar um consenso e decidir sobre
os princípios de justiça que atendam a todos sem prejudicar nem
favorecer ninguém, gerando assim a equidade.

Concepção política de Rawls

Em Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice)5, publicada em 1971,


John Rawls apresenta uma ideia de justiça que se aplica à sociedade,
como alternativa ao modelo utilitarista que não contemplava nem
respeitava a inviolabilidade de cada indivíduo. Para tanto, o filósofo
se deteve em estabelecer de forma sistemática a maneira pela qual
os indivíduos de um corpo social poderiam agir de modo a criarem
uma sociedade justa, essa proposta foi denominada de Justiça como
Equidade.
Rawls contrapôs-se à dinâmica utilitarista6 justamente por
perceber que esta não tinha como resultado a justiça social, nem
abarcava as dimensões necessárias à promoção da justiça, já que
colocava como primordial o bem-estar da maioria, não dando
assistência a uma dada minoria. Sobre isso Rawls acredita que “cada
pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o
bem-estar de toda a sociedade pode desconsiderar. Por isso, a justiça
nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem
maior desfrutado por outros” (2008, p. 4).
No início de TJ, fica evidente que para Rawls a justiça tem
primazia na construção da estrutura social, pois ele desvela elementos
procedimentais que direcionam à justiça como equidade, com uma
aplicabilidade evidente que não se prende a questões puramente

5 A obra de “Uma Teoria da Justiça” de Rawls será nomeada aqui pela sigla
“TJ”.
6 Tendo como base a obra de Henry Sidgwick, como mencionado em TJ.

128  Alex de Mesquita Marinho


metafísicas. Ao tempo em que apresenta a ideia da justiça como
equidade, o filósofo explicita que sua obra não intenciona fundar um
sistema doutrinário engessado, mas sim abrir e preparar um caminho
para a teorização de uma ideia de justiça pautada na razão com
vistas a criar condições sociais realmente justas a todos os indivíduos,
partindo de determinados conceitos e procedimentos.
Em 1993 Rawls publica O Liberalismo Político (Political Liberalism)7,
resultado de aperfeiçoamentos realizados em sua obra, frutos
de críticas proferidas à TJ, bem como do amadurecimento de seu
pensamento político, em LP Rawls coloca as questões políticas como
centrais em suas discussões e conceituações.
Para Rawls, a justiça como equidade se daria a partir do
momento em que os indivíduos de uma dada sociedade fossem
capazes de escolher princípios de justiça que atendessem tanto
seus interesses individuais quanto os interesses de todos, gerando
assim uma estrutura social justa. Tais princípios seriam formulados
partindo de um procedimento denominado de posição original (original
position), acrescentando-se um dispositivo conhecido como véu de
ignorância (veil of ignorance).
Partindo dessa perspectiva, Rawls descreve em TJ a aplicação
de um procedimento que ele chamou de posição original. Em relação
à posição original Rawls discorre

[...] é o status quo inicial apropriado para garantir que os acordos


fundamentais nele alcançados sejam equitativos. Esse fato gera
a expressão “justiça como equidade”. Torna-se claro, então, que
quero dizer que uma concepção de justiça é mais razoável que
outra, ou mais justificável que outra, quando as pessoas racionais
na situação inicial escolheriam seus princípios, e não outros, para
o papel da justiça (RAWLS, 2008, p. 27).

Rawls propõe um modelo que remonta ao contratualismo,


todavia demonstra recusa ao estabelecimento de leis divinas
ou naturais, pois sua ideia é a ação de pessoas livres e iguais que

7 A obra o Liberalismo Político será designada pela sigla “LP”.

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 129


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
concordam em juntas escolherem os princípios de justiça adequados
de forma racional.
Ao realizarmos uma analogia, poderíamos dizer que a posição
original proporcionaria uma simetria entre os indivíduos no sentido
do seu status para escolherem os princípios de justiça sem que seus
interesses individuais se sobressaíssem em relação ao bem comum.
Dessa forma, não haveria riscos de uns estarem numa posição
vantajosa sobre outros, não ocorrendo assim a justiça, cerne da obra
rawlsiana, por isso coloca-se esta categoria como uma posição ideal
em meio à proposta de Rawls.
A posição original destaca-se então como um procedimento
para a justiça como equidade no sentido de ser através da mesma que
esse processo tem início, ou seja, é a partir da situação hipotética e
de representação criada pela posição original que começam a serem
esboçados os princípios de justiça. Corroborando com o pensamento
de Rawls, este comentador afirma que:

A posição original é, na filosofia política rawlsiana, a solução


para o problema da compatibilidade entre os fins plurais e a
instituição contratualista de princípios de justiça, igualmente
válidos para todas as pessoas, entendidas como livres e iguais.
Para que o contrato possa ter igual validade para as pessoas
moralmente iguais estas devem ser despojadas das inúmeras
diferenças inerentes à sua situação atual (QUEIROZ, 2003, p.
79).

Dessa forma, a posição original pode ser claramente


caracterizada como um procedimento contratual, já que as partes
contratantes devem encontrar-se numa posição de igualdade,
munidas de racionalidade na busca da escolha dos princípios
geradores da justiça.
Os princípios de justiça podem ser compreendidos como o
conteúdo da teoria da justiça, pois é a partir deles que se engendram
as discussões mais aprofundadas a respeito de como se obter uma
teoria que se aplique como justa. Quando se considera tais princípios
precisa-se conhecer a existência dos bens primários (primary goods)

130  Alex de Mesquita Marinho


descritos na teoria rawlsiana como elementos indispensáveis a todos
os cidadãos, os quais o filósofo destaca como sendo fundamentais “o
autorrespeito (self-respct) e a autoestima (self-esteem), acompanhados
das liberdades básicas, rendas e direitos a recursos sociais como a
saúde e a educação” (OLIVEIRA, 2003, p. 17).
São os princípios de justiça escolhidos na posição original sob
um véu de ignorância que devem assegurar a efetiva distribuição
dos bens primários equitativamente, pois Rawls entende que todo
indivíduo precisa necessariamente ter acesso a esses bens, que na
justiça como equidade ocorre através dos princípios de justiça.
O filósofo elabora dois princípios de justiça que acredita serem
escolhidos na posição original. Deixa claro que esses princípios,
inicialmente, são de caráter experimental. Rawls descreve-os da
seguinte forma:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais


extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível
com um sistema similar de oportunidades para as outras pessoas.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar
dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente
esperar que se estabeleçam em benefícios de todos como (b)
estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos (2008,
p. 73).

No primeiro princípio, há uma dimensão abrangente, ou seja,


todas as pessoas integrantes da sociedade devem ter satisfatoriamente
direitos e liberdades básicas iguais de forma compatível. Aqui não
se vê a preocupação equitativa – a não ser em relação às liberdades
políticas – pois cria um projeto que se aplica de maneira igual a
todos os indivíduos. Se no primeiro princípio – o da igual liberdade
– as deliberações são voltadas a todos os indivíduos no que tange à
liberdade, no segundo – princípio da diferença– vemos que a discussão
se centra nas questões econômicas e redistributivas. Nesse ponto, se
expressa com maior clareza a tentativa da equidade, pois as diferenças
– desigualdades – são consideradas nesse processo de constituição
de uma sociedade justa.

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 131


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
Feita estas considerações Rawls argumenta acerca da estrutura
básica da sociedade. Como se sabe, a estrutura básica da sociedade é
determinada através dos princípios de justiça escolhidos por pessoas
livres e munidas de racionalidade a partir do procedimento da posição
original, acrescido do dispositivo conhecido como véu de ignorância,
portanto torna-se o objeto primeiro da justiça. Essa estrutura pode
ser concebida como o resultado de um processo de interação entre
as principais instituições políticas e sociais para a formação de um
sistema cooperativo na sociedade, além de constituir a forma de
distribuição dos direitos e deveres básicos dos indivíduos. Pode-se
entender como uma exemplificação da estrutura básica o seguinte:

A Constituição política com um judiciário independente, as


formas legalmente reconhecidas de propriedade e a estrutura da
economia (na forma, por exemplo, de um sistema de mercados
competitivos com propriedade privada dos meios de produção),
bem como, de certa forma, a família, tudo isso faz parte da
estrutura básica (RAWLS, 2003, p. 13).

É nessa estrutura onde ocorrem os eventos e ações gerados pela


ação das instituições e indivíduos, em outras palavras, é um contexto
social específico do qual deverá resultar a justiça almejada pela
obra rawlsiana. Um importante aspecto a ser considerado acerca
da estrutura básica é que os princípios de justiça nela contidos não
são usados para regular instituições e associações específicas na
sociedade, o que ocorre é que os efeitos dos princípios estão ligados
à estrutura como um todo, o que acaba reverberando em casos
específicos, o que não significa dizer que estes mesmos princípios
foram formulados especificamente a casos isolados, logo, se entende
que a justiça de caráter equitativo tem seu ponto de partida de
uma estrutura que abrange várias dimensões e, consequentemente
as influencia. Isso quer dizer, por exemplo, que “embora as igrejas
possam excomungar hereges, não podem queimá-los; tal exigência
tem por objetivo garantir a liberdade de consciência” (RAWLS, 2003,
p. 14).

132  Alex de Mesquita Marinho


É importante salientar, na perspectiva rawlsiana, que princípios
que se aplicam de forma justa e razoável à estrutura básica sejam da
mesma forma aplicáveis a instituições específicas ou até mesmo certas
práticas sociais. Deve-se ter claro que a estrutura básica da sociedade
engloba um conjunto de instituições que constituem a sociedade,
todavia, não significa dizer que determinados arranjos institucionais
representam essa estrutura em sua totalidade, afinal esses arranjos
específicos têm em si objetivos distintos, por isso acredita-se também
que tenham suas próprias exigências, necessidades, anseios etc.
A noção de equilíbrio reflexivo (reflective equilibrium) na teoria
de Rawls consiste num certo movimento que envolve os princípios de
justiça escolhidos de forma livre, racional e razoável através da posição
original e nossas intuições morais. O que ocorre é que os processos
de escolha dos princípios advindos da posição original podem tornar
mais consistentes nossos juízos morais ou mesmo fazer com que os
revisemos, por outro lado, nossas próprias intuições morais podem
servir como um auxílio para aperfeiçoar o procedimento da posição
original.
O filósofo coloca esse método como um elemento central em
meio à sua ideia de justiça contida em LP, de maneira a sistematizar
uma base normativa para que sejam realizadas as escolhas de caráter
público, logo, a intenção é estabelecer certa harmonia entre as noções
morais individuais e os princípios de justiça já escolhidos.
É importante explicitar que para se alcançar a compreensão
acerca do equilíbrio reflexivo deve-se partir da

[...] ideia (incluída na noção de pessoas livres e iguais) de que os


cidadãos são capazes de razão (teórica e prática) assim como têm
um senso de justiça. Nas condições normais da vida humana, essas
capacidades desenvolvem-se gradualmente, e, com a maturidade,
são exercidas em vários tipos de justiça aplicados a todo tipo de
assunto, da estrutura básica da sociedade às ações particulares
e ao caráter das pessoas na vida cotidiana. O senso de justiça
(como forma de sensibilidade moral) envolve uma faculdade
intelectual, já que seu exercício na elaboração de juízos convoca
as faculdades da razão, imaginação e julgamento (RAWLS, 2003,
p. 40).

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 133


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
Corroborando com Rawls a respeito de elementos como o
senso de justiça, Nythamar de Oliveira afirma que

[...] o senso de justiça e a faculdade de concepção do bem são


inerentes a uma ideia de pessoas morais, livres e iguais, vivendo
numa sociedade democrática. Assim, a ‘justiça como equidade’
procura desvelar as ideias básicas de liberdade e igualdade
latentes no senso comum (OLIVEIRA, 2003, p. 13).

O equilíbrio reflexivo atua também como um tipo de aditivo


ou suporte para o véu de ignorância no procedimento da posição
original, pois durante a escolha dos princípios de justiça deve haver
uma correspondência entre aquilo que se entende como juízos
ponderados em equilíbrio reflexivo e a noção de justiça.
Sobre os nossos juízos refletidos, podemos afirmar que além
de apresentarem-se como distintos dos juízos das outras pessoas,
às vezes, eles próprios podem se contradizer, por isso esse processo
de ponderar os juízos para se alcançar um equilíbrio que corrobore
com as escolhas da posição original, bem como com os princípios
de justiça acaba gerando dúvidas, como a nos é apresentada por
Silveira:

A questão central é como se podem considerar esses juízos


ponderados (refletidos) de justiça política mais coerentes com
os juízos morais abrangentes, tanto os individuais como os das
outras pessoas, sem a imposição de uma autoridade política
exterior. Isto significa que os juízos podem estar em desacordo,
e, para tanto, será necessária a revisão de alguns deles para se
chegar a um acordo razoável sobre a justiça política (SILVEIRA,
2009, p. 151).

É importante salientar, como forma de buscar compreender


questões como a supracitada, que Rawls destaca dois tipos de
equilíbrio reflexivo objetivando demonstrar qual deles é mais eficaz
no sentido de os indivíduos ponderarem seus juízos de maneira
mais consistente e abrangente. John Rawls afirma haver o equilíbrio

134  Alex de Mesquita Marinho


reflexivo restrito (narrow) e o amplo (wide). O filósofo explica a
diferença exemplificando da seguinte forma:

Pensando agora numa pessoa qualquer, suponhamos que nós


(enquanto observadores) encontramos a concepção de justiça
política que menos exija revisões dos juízos iniciais dessa pessoa
e que se comprove aceitável quando apresentada e explicitada.
Quando a pessoa em questão adota essa concepção e a ela
alinha seus outros juízos, dizemos que essa pessoa está em
equilíbrio reflexivo restrito. O equilíbrio é restrito porque, embora
as convicções gerais, os princípios fundamentais e os juízos
específicos estejam alinhados, procurávamos a concepção de
justiça que exigisse menos revisões para ganhar consistência, e nem
concepções distintas de justiça nem a força dos vários argumentos
que sustentam essas concepções foram levadas em conta pela
pessoa em questão. Isso sugere que entendemos por equilíbrio
reflexivo amplo (ainda no caso de uma pessoa) o equilíbrio
reflexivo alcançado quando alguém considerou cuidadosamente
outras concepções de justiça e a força dos vários argumentos
que as sustentam. Mais exatamente, essa pessoa considerou as
principais concepções de justiça política encontradas em nossa
tradição filosófica [...] e pesou a força das diversas razões
filosóficas e não filosóficas que as sustentam. Nesse caso,
supomos que as convicções gerais, os princípios fundamentais e
os juízos particulares dessa pessoa estão alinhados; mas agora
o equilíbrio reflexivo é amplo, dadas a reflexão abrangente e as
várias prováveis mudanças de opinião que o precedem (RAWLS,
2003, p. 42).

Sendo assim, fica claro que na justiça como equidade utiliza-


se o equilíbrio reflexivo amplo, pois ele torna-se mais eficaz no
tocante às decisões tomadas por meio da utilização da razão prática,
visto que analisa uma visão que abrange uma série de elementos
que influenciam nas ações dos indivíduos numa estrutura social,
acrescentando-se, que a partir de LP a noção de justiça como
equidade para Rawls aplica-se às sociedades que detém determinadas
características estruturais que podem se adequar às proposições de
sua tese, diferente de TJ, onde o autor parece propor a aplicação de
sua ideia a qualquer estrutura social.

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 135


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
O Equilíbrio Reflexivo caracterizado como amplo (ER Amplo)
torna-se uma mediação metodológica fundamental a partir de LP,
como já mencionada anteriormente, tendo em vista que proporciona
uma maior abrangência à prática da revisão e ponderação dos juízos.
Norman Daniels nos aponta que,

O método do amplo equilíbrio reflexivo é uma tentativa de


produzir coerência em um triplo ordenado de conjuntos de
crenças mantidos por uma determinada pessoa, nominalmente,
(i) um conjunto de julgamentos morais considerados, (ii) um
conjunto de princípios morais, e (iii) ) um conjunto de teorias de
fundo relevantes” (DANIELS, 1996, p. 22. Tradução nossa).

Nessa perspectiva, Daniels apresenta de forma sistemática a


maneira pela qual esses três níveis interagem e busca esclarecer como
eles agem numa dinâmica coerente objetivando chegar a um sistema
de crenças confiável e consistente.

Nós começamos por coletar os julgamentos morais iniciais


da pessoa e filtrá-los incluindo apenas aqueles de que são
relativamente confiantes e que foram conseguidos sob condições
conducentes a evitar erros de julgamento. Por exemplo, a pessoa
tem informações adequadas sobre casos a serem julgados.
Propomos então conjuntos alternativos de princípios morais
que têm graus variados de “ajustes” com os julgamentos morais.
Não basta contentarmos com o melhor ajuste de princípios com
julgamentos, pois isso nos daria apenas um equilíbrio restrito.
Prosseguimos com argumentos filosóficos destinados a trazer
para fora os pontos fortes e fracos dos conjuntos alternativos de
princípios (ou concepções morais pungentes). Estes argumentos
podem ser interpretados como inferidos de algum conjunto de
teorias de fundo relevantes (eu uso o termo vagamente). Suponha
que algum conjunto particular de argumentos vença e que o agente
moral está persuadido de que algum conjunto de princípios é
mais capaz do que os outros (e, talvez, do que a concepção que
poderia ter emergiu em equilíbrio restrito). Podemos imaginar
o agente trabalhando indo e voltando; fazendo ajustes em seus
julgamentos ponderados, seus princípios morais e suas teorias de
fundo. Assim ele chega a um ponto de equilíbrio que consiste no
triplo ordenado (i), (ii), (iii)? Precisamos encontrar mais estrutura
aqui. As teorias de fundo em (iii) deve mostrar que os princípios

136  Alex de Mesquita Marinho


morais em (ii) são mais aceitáveis ​​do que princípios alternativos
com base em algum grau independente de (ii) coincidir com
julgamentos morais relevantes considerados em (i) (DANIELS,
1996, p. 22. Tradução nossa).

Como forma de demonstrar o ER Amplo na perspectiva de uma


reflexão apropriada, aplicável e consistente, acredita-se ser necessário
apresentá-lo através de um conjunto de passos que se complementam
e tornam possível uma melhor compreensão a respeito da execução
desse método.
O primeiro passo seria desconsiderar todos os seus juízos que
não fossem ponderados. Ou seja, qualquer tentativa de julgamento
comprometida, por exemplo, por situações que sofram influência de
aspectos emocionais alterados, foco em interesses próprios etc. Deve-
se evitar juízos que possam ser colocados em descrença no que se
refere à ponderação, pois eles não representam o real senso de justiça
do indivíduo, já que não haveria razão para tais julgamentos se não
fosse pela existência dessas situações específicas que influenciam as
pessoas.
Após o alcance dos juízos ponderados, o segundo passo é
identificar preliminarmente quais são os pontos fixos provisórios do seu
sistema de crenças. Esses pontos fixos são, na visão de Rawls, aquelas
crenças às quais não temos disposição à rejeição, pois acreditamos
veementemente serem elas verdadeiras.
Nesse segundo princípio, essa intuição de veracidade em relação
a certas crenças (pontos fixos) pode ser justificada, justamente,
pela nossa atitude no primeiro passo, pois rejeitamos aquilo que
não se caracteriza como ponderado e damos prosseguimento com
nossos juízos livres de influências, tornando esses pontos fixos mais
confiáveis e dispostos a uma sustentação. Para ilustrar o segundo
passo de forma mais clara, Andreazza exemplifica utilizando dois
grupos de juízos:

[...] em geral depositamos muito mais confiança nas crenças de


que “a escravidão é injusta”, “devemos evitar a dor”, “ninguém
deve insultar uma pessoa pela sua cor”, e “seria errado colocar

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 137


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
fogo no gato por diversão” do que depositamos nas crenças de
que “nossa sociedade deve ser regulada de acordo com uma
concepção liberal de justiça”, “devemos permitir a eutanásia
involuntária” e “uma mulher tem o direito de abortar depois
dos três meses, se ela quiser”. Os juízos do primeiro grupo nós
sentimos com certeza (“feel sure”, nas palavras de Rawls) eu
são corretos, já os juízos do segundo grupo admitimos (ou pelo
menos muitos de nós) que podem ser falsos porque os aceitamos
com muito menos “confiança” (“much less assurance”). Os juízos
do primeiro grupo são mais estáveis, pois perduram ao longo da
vida de uma pessoa não importa se ela mude de país, religião,
classe social ou visão política. Juízos do segundo grupo são muito
mais instáveis e podem – provavelmente irão – ser modificados
ou inteiramente recusados dependendo das circunstâncias
contingentes da vida (ANDREAZZA, 2015, p. 476).

Assim sendo, logo após a recusa dos juízos não ponderados


(primeiro passo), deve-se identificar aqueles juízos que podem ser
considerados como pontos fixos provisórios (segundo passo),
observando se não há neles instabilidade para sustentação,
independentemente da situação e contexto.
Após esses dois primeiros momentos, ao identificarmos quais
são os seus pontos fixos provisórios, no terceiro passo deve-se buscar
por considerações gerais que os expliquem. A intenção aqui seria
explicar o motivo pelo qual determinados juízos são estabelecidos
como pontos fixos. Por exemplo, pode-se partir da ideia rawlsiana de
que todos os cidadãos têm que ser tratados como sendo livres e iguais,
ou seja, os pontos fixos, nesse sentido específico, foram elencados
tendo como base de sustentação preservar a inviolabilidade de cada
indivíduo.
É importante salientar que os juízos ponderados não-fixos não
devem ser descartados, pois o indivíduo no processo do ER Amplo
precisa dar conta de ponderar os conflitos gerados nesses juízos,
tais conflitos se dão claramente pelo fato dessas crenças não terem
o status de fixas, afinal se estão estabelecidas como não-fixas, há
razões para tal. Acredita-se que esses pontos conflitantes podem se
expressar em vários tipos:

138  Alex de Mesquita Marinho


Pode ser entre duas ou mais crenças morais (em um momento
considera-se imoral a tortura de terroristas para obter informações
úteis, mas quando a segurança de seu país passa a estar em jogo,
faz-se o juízo inverso), entre razões aceitas (acredita-se que toda
vida humana deve ser respeitada e, ao mesmo tempo, acredita-se
que alguém tem direitos apenas se segue a legislação do seu país),
entre crenças e razões, e entre crenças morais e crenças não-
morais (sustenta-se que é correto realizar aborto até o quinto
mês porque tem a crença, talvez equivocada, de que o feto até o
quinto mês é incapaz de sentir dor). Nós ainda poderíamos falar
de outros tipos de conflitos práticos como a fraqueza da vontade,
hipocrisia e conflitos entre emoções e crenças (por exemplo,
quando sabemos que não faz sentido sentir raiva da pessoa
que faz a previsão do tempo, quando a previsão está errada)
(ANDREAZZA, 2015, p. 477).

No quarto passo, o último, é o momento em que se deve


eliminar, tanto quanto possível, esses conflitos. Entenda-se que aqui
a expressão “eliminar” não tem a intenção propriamente dita de
resolver por completo as questões envolvendo os sistemas de crenças,
pois esse é um processo que não finda. Já que esses passos compõem
o método do equilíbrio reflexivo amplo, examinar com minúcia os
conflitos existentes nas crenças proporciona um sistema coerente, o
próprio equilíbrio. Isso pode ser obtido valendo-se das considerações
mais gerais identificadas no terceiro passo e colocá-las como forma
de revisão para a eliminação dos conflitos existentes.
Dessa forma, a intenção é conseguir chegar a uma disposição
harmônica entre todos os juízos e as ideias relacionadas aos pontos
fixos provisórios identificados no segundo passo. Caso haja alguma
crença desalinhada com as ideias [dos pontos fixos provisórios],
acredita-se que elas não expressam de fato a verdade sobre os
juízos de um indivíduo, ou dizemos que a opinião do indivíduo não
é essencialmente reflexiva. Essa afirmação se sustenta na ideia de
que se uma pessoa, mesmo passando pelos quatro passos, ainda
permanece com alguma “pendência” depois de se submeter ao ER
Amplo é porque alguma falha durante o processo a impediu de
atingir uma reflexão que conduza a um sistema de crenças confiável

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 139


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
e provavelmente não alcançará um resultado conclusivo e realmente
reflexivo.
Se um indivíduo conseguir completar corretamente esses
passos, terá uma base de sustentação mais sólida para suas crenças
e, consequentemente será alguém voltado à prática de ações de fato
reflexivas, bem como obterá um maior grau de confiança em seus
juízos. Porém, isso não significa dizer que esse processo se findou,
afinal as pessoas estão sujeitas a serem expostas a novas experiências
morais ou entrarem em contato com novos sistemas de crenças, ou
seja, o trabalho reflexivo precisa continuar.
Fica claro, então, que o Equilíbrio Reflexivo Amplo se apresenta
como um processo que não finda e que busca se aproximar de
uma prática reflexiva apropriada, apesar de nunca atingi-la por
completo, estando em consonância com a própria dinâmica do
pensamento filosófico que, valendo-se da racionalidade como uma
de suas características, estabelece reflexões sobre determinadas
problemáticas com o intuito de alcançar conhecimento, porém
sabendo que esse movimento reflexivo não atingirá o nível absoluto
do conhecimento.

Do ensino de filosofia à proposta metodológica

A filosofia enquanto componente curricular no Ensino Médio


é, geralmente, encarada como uma disciplina responsável por uma
formação para a cidadania, pois segundo o Ministério da Educação
(2006, p. 31) a filosofia na escola deve desenvolver nos alunos a
“capacidade de relacionar o exercício da crítica filosófica com a
promoção integral da cidadania e com o respeito à pessoa [...]”.
Essa tarefa parece estar associada diretamente à filosofia devido
o caráter crítico-reflexivo específico dessa área do conhecimento.
Pode-se observar o direcionamento desse ensino para a cidadania
em documentos como as Orientações Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (OCN’s) nas quais são destacadas as competências e
habilidades para o ensino da disciplina, a saber: “1º) Representação e

140  Alex de Mesquita Marinho


comunicação; 2º) Investigação e compreensão; 3º) Contextualização
sociocultural” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2006, p. 33).
A primeira competência se relaciona especificamente com os
textos filosóficos, pois ao considerarmos o cânon da filosofia, não
podemos deixar de trabalhar a produção realizada pelos diferentes
filósofos ao longo da história. A intenção é apropriar-se dos textos de
modo a realizar leituras, produções e argumentações significativas e
que desenvolvam nos discentes uma atitude reflexiva.
Na segunda competência observa-se que a intenção é buscar
uma relação entre o pensamento filosófico e outras formas de
conhecimento tais como as ciências humanas e ciências da natureza,
bem como as formas de produção cultural que implicam na vivência
dos seres humanos.
Finalmente, a terceira competência está diretamente ligada
à maneira através da qual os indivíduos desempenharão seu papel
em sociedade, pois orienta que os conteúdos de filosofia sejam
abordados levando em consideração a dimensão pessoal, histórica,
social, política, cultural e tecnológica, ou seja, elementos que
configuram a sociedade onde os sujeitos desse ensino participarão
como agentes de transformação.
Ao realizar uma análise dessas diretrizes, pode-se perceber
que o ensino de filosofia no nível médio, mais que a transmissão de
conteúdos específicos, busca desenvolver nos jovens, habilidades
que se refletirão em suas vidas enquanto participantes de um corpo
social, no qual atuarão e, consequentemente, desempenharão
certo grau de influência na configuração social. Corroborando
com essas orientações a LDB em seu Art. 35 expõe que o Ensino
Médio, etapa na qual é presente o ensino de filosofia, tem como
uma de suas finalidades: “III - o aprimoramento do educando como
pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da
autonomia intelectual e do pensamento crítico”.
Sabe-se que os reveses que interferem no ensino de filosofia,
tais como carga horária reduzida, carência de materiais didáticos
apropriados, profissionais sem formação na área, desvalorização
por parte das instituições educacionais em relação a outras áreas,

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 141


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
entre outros, dificultam a construção de metodologias que atinjam
os objetivos da filosofia para o Ensino Médio, mesmo havendo
as indicações nos documentos oficiais. Sobre tal construção
metodológica afirma-se que “é necessária a elaboração de propostas
concretas para seu ensino, de modo que não sejam somente propostos
os conteúdos, mas que se atente principalmente ao modo como tais
conteúdos serão desenvolvidos com os alunos” (CAMPANER, 2012,
p. 14).
Ao buscar uma metodologia que se pretenda trilhar no ensino
de filosofia, deve-se ter em mente as dificuldades que envolvem esse
ensino, pois tendo consciência do terreno onde almejamos atuar,
podemos chegar ao estabelecimento de processos metodológicos
que estejam alinhados com as orientações dos documentos oficiais e
também com o desenvolvimento de um ensino significativo no que se
refere ao fazer filosófico.
Tendo em vista tais orientações, a questão que se esboça
está relacionada ao tipo de cidadão que se pretende obter a partir
do ensino de filosofia no Ensino Médio, ou seja, como se dá sua
caracterização, visto que a ideia de cidadania é ampla e que não se
deve trabalhar com esse propósito sem de fato saber como atingi-
lo, faz-se necessário um embasamento que fundamente o ensino de
filosofia com vistas a ofertar uma proposta educativa que culmine em
cidadãos autônomos no sentido político para atuarem em sociedade.
Seguindo essa discussão propõe-se o trabalho docente em
filosofia a partir da ideia de justiça como equidade segundo John
Rawls focando no despertar para a autonomia política de acordo
com a obra rawlsiana, objetivando uma formação para a cidadania
que possa culminar na gênese de uma sociedade justa.
A importância da justiça como equidade em Rawls enquanto
objeto de intervenção filosófica está na concepção de que ela
proporciona e afirma a autonomia política daqueles que compõem
a sociedade.

Portanto, a autonomia como valor político, ocorre quando


cidadãos agem conforme a concepção política de justiça

142  Alex de Mesquita Marinho


orientados pela razão pública em busca do bem tanto em sua
vida pública quanto na sua vida não-pública e não levando em
consideração somente à proteção de desejos materiais, porque,
caso o contrário, a posição original só modelaria o aspecto
heterônomo dos cidadãos. Desta maneira, a autonomia política
é fundada na razão pública e, quando os cidadãos afirmam a
concepção política em seu conjunto, eles são considerados seres
autônomos (GONDIM, 2010, p. 77).

Essa autonomia política aparece como um elemento que


contribui significativamente para um ensino de filosofia que busque
desenvolver uma educação para a cidadania, pois ao se trabalhar no
contexto de sala de aula a noção de justiça como equidade de Rawls,
pode-se desenvolver amplamente a competência da razoabilidade nos
estudantes, dando-lhes os meios necessários para agirem movidos
pelo desejo de uma sociedade pautada na justiça, ou seja, através
da filosofia em sala de aula, a teoria da justiça como equidade pode
reverberar socialmente através da formação dos alunos.
A necessidade da formação de cidadãos conscientes e pensantes
sobre a estrutura na qual se inserem socialmente é cada vez maior,
pois estes podem se tornar meros instrumentos para a legitimação
dos governos e ficar aquém do conhecimento sobre a dinâmica social
da qual fazem parte.
A obra de John Rawls ao tratar da justiça como equidade
lança os aportes para que os indivíduos que formam o corpo social
possam desempenhar seu papel na busca de uma sociedade justa.
É valendo-se desses aportes teóricos que se pretende aplicar uma
metodologia ao ensino de filosofia no Ensino Médio que utilize os
passos do Equilíbrio Reflexivo Amplo (ER Amplo) para assim levar os
estudantes a alcançarem um consenso sobreposto utilizando a razão
prática pública e, finalmente desenvolvam a autonomia política.

Aplicação do método de John Rawls ao ensino de Filosofia

Como ponto de partida para o desenvolvimento da proposta


metodológica em questão, é necessário ter mente que ela será

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 143


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
executada a partir dos conteúdos programáticos da disciplina filosofia
para o Ensino Médio, ou seja, será considerado o planejamento
curricular rotineiro do professor ao qual a metodologia se encaixará.
Para que se compreenda a forma como serão aplicados
os passos do ER Amplo, tomaremos como base conteúdos
relacionados à temática ÉTICA. Dessa forma, ficará mais claro,
através de exemplificações, como esse procedimento metodológico
se desenvolve nas aulas de filosofia.
Vejamos sinteticamente os passos do ER Amplo que serão
utilizados no método: (i) considerar os juízos não ponderados; (ii)
identificar de forma preliminar os pontos fixos provisórios; (iii) buscar
considerações gerais que expliquem os pontos fixos provisórios; (iv)
ponderar os juízos em meio aos conflitos existentes.
Sigamos o modelo de trabalho docente proposto que será
apresentado partindo de (a) uma temática geral; (b) problemáticas
relacionadas à temática; (c) aplicação dos passos do ER Amplo.
Conteúdo será de ética e a questão é: o que significa ser livre?
Vejamos como os juízos relacionados a essa problemática se
comportam quando submetidos ao ER Amplo. Chamaremos o
sujeito envolto nos passos dos ER Amplo de P.

(i) P julgou que todos os eventos da vida dos seres humanos


estão pré-determinados; não dependem da livre adesão ou
recusa de cada indivíduo em particular, pois está “escrito”
e determinado, assim como no mito de Édipo. Todavia, tais
crenças foram formuladas em momentos extremos como a
morte prematura de um ente querido ou um acidente envolvido
numa série de coincidências. O fato desses juízos se formularem
a partir de situações onde a capacidade de julgamento estava
comprometida não permitiu que houvesse uma ponderação,
por isso devem ser desconsiderados já que sem a influência
desses contextos específicos, provavelmente, surgiriam crenças
diferentes.
(ii) Enquanto pontos fixos provisórios, P pode ter consigo
as crenças de que “a morte é inevitável”; “durante a vida

144  Alex de Mesquita Marinho


estaremos sujeitos às escolhas” e “nossas escolhas sempre
trarão algum tipo de consequência”. Consideramos tais
afirmações como sendo pontos fixos provisórios, pois elas se
sustentam independente do contexto (social, religioso, cultural
etc.). Já afirmações como “tudo está escrito”; “não se pode
fugir da ação do destino” ou “era mesmo pra acontecer, não
havia nada a fazer quanto a isso”, não têm uma base sólida
de sustentação, por isso são encaradas com menos confiança,
estabelecendo-se assim como pontos não-fixos.
(iii) Em seguida P entenderá, através da análise das situações
onde realizou seus julgamentos, que seus pontos não-fixos não
encontram maneiras de se manterem como crenças confiáveis,
pois, enquanto consideração geral nesse caso específico, não
se pode basear a vida humana numa sucessão de eventos
anteriormente estabelecidos por uma ordem cósmica, como
pregavam os estoicos. Porém, um conflito se estabelece no
momento em que P acredita que nossas escolhas têm forte
influência na forma como se moldam os acontecimentos ao
longo da vida, mas em outras ocasiões coloca o destino como
regente da vida humana, talvez movido por comodismo ou
interesses particulares. Há então um conflito existente entre
diferentes crenças que precisam de ponderação. Essa situação
conflitante persiste, provavelmente, porque P ainda realiza
juízos movidos por situações que prejudicam sua capacidade
julgadora.
(iv) Por fim, P terá que buscar resolver essa situação conflitante
entre seus juízos. Uma sugestão seria simplesmente eliminar
uma crença contraditória à outra, todavia isso daria início
a um novo ciclo reflexivo, sem antes resolver aquele já
estabelecido. A ideia então é revisitar o passo (iii) para saber
em qual consideração geral ele está alicerçado [não se pode
basear a vida humana numa sucessão de eventos anteriormente
estabelecidos por uma ordem cósmica]. Essa consideração
pode ser então utilizada como forma de revisão das crenças
para se alcançar um equilíbrio, ou seja, que ao final desse

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 145


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
processo é preciso que os juízos estejam em alinhamento com
os pontos fixos provisórios.

Ao seguir os quatro passos corretamente P provavelmente terá


maiores condições de obter crenças com uma base de sustentação,
caso isso não ocorra, significa dizer que o houve certo prejuízo ao
processo reflexivo.
É importante considerar que esse método não é uma garantia
de que o indivíduo sempre chegará a crenças inalteráveis, pois mesmo
após esse processo P pode se deparar com alguém que percorreu os
mesmos passos a respeito da mesma problemática, mas chegou a
um sistema de crenças diferente do seu, ou ainda, pode passar por
situações que o façam estabelecer novos conflitos em relação aos
seus juízos. O que o método proporciona é a oportunidade de o
indivíduo valer-se do máximo de recursos que o conduzam a uma
atitude puramente reflexiva que o levará a obter maior confiança e
estabilidade sobre seu sistema de crenças.
Nesse percurso, o docente atua como um mediador/
provocador, pois ao aplicar os passos do ER Amplo precisa estar
atento às situações que vão se constituindo no decorrer do processo
e assim, realizar atos de mediação para que os estudantes possam
de fato executar o método. O professor é também, nesse trajeto, um
provocador que tem o papel de estimular a prática reflexiva por parte
dos alunos para que tenham condições de se colocarem como sujeitos
ativos nesse percurso metodológico. Percebe-se então que o papel do
professor foge à rotina da aula puramente expositiva (que geralmente
culmina num ensino enciclopédico e pouco significativo), pois além
de dar mais espaço para a atuação direta dos estudantes, coloca-os
como sujeitos centrais desse processo de ensino, afinal é a partir de
suas crenças (dos alunos) relacionadas às temáticas propostas que
se inicia o processo metodológico.
Ou seja, não haveria como operacionalizar os passos do ER
Amplo com um roteiro pré-estabelecido, pois para o movimento
reflexivo funcionar, são necessários questionamentos (problemáticas),
argumentos e afirmações espontâneos por parte dos discentes. O

146  Alex de Mesquita Marinho


único elemento anteriormente posto é a temática a ser trabalhada na
aula e, a partir da qual se desenvolverão os passos do método.
Agora P terá a seu dispor elementos para auxiliá-lo em momentos
de incerteza e mesmo que venha a mudar seus juízos, o fará de forma
reflexiva. Assim sendo, o método do ER Amplo proporciona um
trabalho reflexivo a partir daquilo que o indivíduo tem como sendo
suas crenças não refletidas, sendo esse método uma expressão da
dinâmica filosófica.
A utilização do ER Amplo como método no ensino de filosofia
não objetiva somente o desenvolvimento de uma prática reflexiva
mais consistente, pois se na proposta rawlsiana de justiça a intenção
é percorrer um caminho metodológico que culmine em cidadãos
autônomos, em relação ao ensino de filosofia busca-se esse mesmo
objetivo através das aulas e conteúdos dessa disciplina.
Acredita-se que a partir desse percurso metodológico pode-se
levar os estudantes a atingirem um consenso sobreposto conquistado
através da razão prática pública e dessa forma serem cidadãos
munidos de autonomia política, ou seja, essa prática docente não
se restringe à sala de aula, pois suas benesses podem reverberar em
sociedade.
A prática reflexiva desenvolvida pelo ER Amplo dá ao indivíduo
a oportunidade de adquirir a capacidade para chegar a um consenso
sobreposto em meio aos conflitos existentes nos contextos específicos
nos quais ele se insere, por isso reafirma-se a importância desse
método na prática docente em filosofia.
Se o indivíduo agora está munido da reflexão e ponderação
em relação a juízos e crenças, estará mais propenso a alcançar o
consenso sobreposto em meio às divergências de sistemas e opiniões
encontradas no tecido social graças às competências adquiridas
através dos passos do ER Amplo. Dessa forma, se conseguirá a
“coexistência pacífica de interesses diferenciados, essencial para o
processo democrático” (OLIVEIRA, 2003, p. 35). Ou seja, o indivíduo
tem a sensibilidade para perceber que a diversidade de sistemas,
mesmo contendo conflitos internos, têm formas de conseguirem
existir harmoniosamente em sociedade através do consenso

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 147


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
sobreposto, exemplo disso são os sistemas religiosos e morais (Rawls
denomina de doutrinas abrangentes), que se submetidos a um
processo reflexivo podem coexistir sem maiores conflitos.

Considerações Finais

A justiça como equidade em John Rawls é uma teoria que


abrange outras dimensões além daquela ligada diretamente à própria
justiça, pois possui condições necessárias para que se possa haver
uma reflexão e também um trabalho voltado ao escopo educacional,
como é o caso da proposta em questão. Rawls elabora em sua filosofia
elementos essenciais para que se compreenda a forma como a justiça
pode vir a ocorrer em uma dada sociedade, o filósofo demonstra isso
através de um percurso teórico que é descrito sistematicamente com
vistas a ressaltar a aplicabilidade de sua proposta de justiça e qual o
papel dos indivíduos que compõem os contextos sociais específicos.
No que se refere ao campo educacional a teoria rawlsiana
acaba se tornando importante aliada no que diz respeito tanto
a questões puramente reflexivas quanto ao desenvolvimento de
estratégias de ensino. Essa transposição do método rawlsiano para o
ensino de filosofia, como apresentado neste trabalho, não ocorre de
forma aleatória, pois para que exista uma efetividade dessa proposta
de ensino são necessários alguns pontos importantes como os que
foram descritos ao longo do texto, como uma pesquisa baseada
na necessidade de transformação do ensino e também social; a
identificação de problemáticas de onde se deva partir; a compreensão
do contexto onde se vai trabalhar e também a maneira como
operacionalizar o trabalho com base nos objetivos estabelecidos.
Assim, fica claro que trabalhar com o método do Equilíbrio
Reflexivo Amplo nas aulas de filosofia, mais do que apresentar uma
nova metodologia de ensino, torna viável a desenvolvimento de
práticas e atitudes reflexivas importantes à prática da cidadania, já
que os estudantes tomam posse de elementos do arcabouço teórico
rawlsiano para atingirem a autonomia política e assim atuarem de
forma livre e consciente em sociedade visando à justiça.

148  Alex de Mesquita Marinho


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A JUSTIÇA COMO EQUIDADE SEGUNDO RAWLS: 149


UMA PROPOSTA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
RAWLS, J. Justiça como Equidade: uma reformulação. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

________. O Liberalismo Político. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2000.

________. Political Liberalism. Expanded Ed. New York: Columbia


University Press, 2005.

________. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

QUEIROZ, R. A igual cidadania na filosofia política de John


Rawls. Disponível em: <http://recil.grupolusofona.pt/
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SILVEIRA, D. C. O papel da razão pública na teoria da justiça


de Rawls: The role of public reason in Rawls’s theory of justice.
Disponível em: <file:///C:/Users/allex/Downloads/5005-16084-1-
SM.pdf>. Acesso em: 03/07/23017.

________. Posição original e equilíbrio reflexivo em John Rawls: o


problema da justificação. Disponível em: <http://www.scielo.br/
pdf/trans/v32n1/09.pdf>. Acesso em: 25/05/2017.

150  Alex de Mesquita Marinho


O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO:
UMA METODOLOGIA PARA ESCOLHA DAS
DIRETRIZES CONCEITUAIS DE FILOSOFIA NO
ENSINO MÉDIO

Patrício Oliveira Lima

Introdução

J
ohn Rawls desenvolveu sua teoria apoiado no propósito de
levar os cidadãos, por meio de um sistema de cooperação
intelectual contratualista8, a encontrar os princípios
e normas morais e políticas que fossem capazes de garantir uma
sociedade justa e para todos. Seu grande questionamento foi sobre
a possibilidade de existir uma sociedade justa e equitativa mesmo
havendo entre os cidadãos enormes diferenças caracterizadas por
inúmeras doutrinas. Todo seu projeto está diretamente relacionado
à hipótese de que, numa sociedade bem ordenada, os cidadãos - que

8 A noção de contratualismo trazida por Rawls em “Uma Teoria da Justiça” foi


revista em sua obra subsequente Liberalismo político. Lá, Rawls chama atenção
para o fato de que, em TJ, não há uma distinção clara do contratualismo como
uma doutrina moral ou como doutrina política, sendo esse último aspecto de
grande relevância.

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 151


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
seriam pessoas livres, iguais e racionais - teriam a oportunidade, de
maneira cooperativa, de construírem os princípios éticos, morais e
políticos, que garantiriam uma sociedade plena de equidade. Para
dar conta dessa tarefa, Rawls lança mão da estratégia do “equilíbrio
reflexivo”. Um procedimento decisório onde os cidadãos, em
“consenso sobreposto”9 deliberam sobre as questões que lhes são
fundamentais. No “equilíbrio reflexivo” rawlsiano, os cidadãos
envolvidos deveriam partir da condição de posição original sob um
véu da ignorância, situação que garantiria a plena igualdade entre
os mesmos, impedindo que qualquer um deles tivesse atitudes que
privilegiasse seus interesses particulares.
Em teoria, a proposta rawlsiana é exitosa e sabemos que
o mesmo fez questão de destacar que essa estratégia é puramente
hipotética, entretanto, nos perguntamos aqui sobre a possibilidade
de seu método ser aplicado às situações concretas bastante restritas,
como a escolha de diretrizes conceituais mínimas necessárias para
orientar o trabalho dos professores de filosofia do ensino médio
numa determinada região, ou até mesmo para orientar deliberações
acerca de outros assuntos concernentes a outras questões da vida
escolar de forma democrática, como na construção do Projeto
Político Pedagógico.
Os documentos oficiais brasileiros trazem uma série de
recomendações sobre a disciplina de filosofia para o ensino médio,
em especial, a tarefa de produzir, por meio do pensamento filosófico,
sujeitos autônomos, críticos e, por conseguinte, capazes de vivenciar
plenamente a vida cidadã, mas não trazem as definições do que
viria a ser a noção de filosofia a ser proferida, o conceito de crítica
e até a ideia de cidadania, deixando os professores num certo vazio
conceitual, colocando-os num limbo de onde eles mesmos devem sair.
Assim como Rawls propôs que os cidadãos devem deliberar sobre
os princípios morais éticos e políticos que devem gerar a sociedade
equitativa e para todos - construindo, assim, uma ideia política de

9 Esta não é uma tradução fechada. Alguns tradutores falam em “consenso por
justaposição”, por exemplo. Importante é que não se deve entender que as
opiniões estão simplesmente umas por sobre as outras.

152  Patrício Oliveira Lima


pessoa10 - também imaginamos ser tarefa exclusiva dos professores de
filosofia construir com seus pares o arcabouço conceitual necessário
para orientar sua profissão, mesmo tendo a lei como horizonte. A
proposta deste artigo é justamente apresentar a metodologia do
“equilíbrio reflexivo” rawlsiano como referência metodológica para
dar conta desta seara.

John Rawls e o equilíbrio reflexivo

Para compreendermos o “equilíbrio reflexivo” Rawlsiano,


devemos nos ater à questão fundamental da teoria do filósofo de
Harvard que é fundamentar uma sociedade livre e justa. Seu projeto é
uma alternativa ao projeto utilitarista11 - representado, especialmente,
por Bentham e Stuart Mill - até então, segundo ele, absolutamente
dominante, entretanto, insuficiente, mesmo tendo como princípio
a ideia de que uma sociedade está bem ordenada quando suas
instituições elevam ao máximo o saldo líquido de satisfação. Rawls
se pergunta sobre a possibilidade da existência de uma sociedade
justa e estável de cidadãos livres e iguais sobreviver, sendo que os
cidadãos permanecem profundamente distanciados por doutrinas
razoáveis de caráter religioso, filosófico e moral. No topo dessa
tarefa, observamos que Rawls apresenta a necessidade de sabermos
como distribuir os bens e direitos dentro de um corpo social e, para

10 Encontramos aqui mais uma vez uma diferença entre o Rawls de TJ e de LP.
No segundo, o autor chama atenção, desde sua introdução, para necessidade
de que, para construir a noção política de justiça, faz-se necessário construir
uma concepção política de pessoa.
11 Rawls destaca que existem muitas maneiras de utilitarismo, mas que existe um
ponto em comum entre todas elas que é justamente o que ele quer combater,
a própria noção de justiça. A grande crítica de Rawls ao utilitarismo é o fato
de que este acolhe para toda sociedade a escolha, mesmo que seja racional,
de um só homem, não levando em consideração a diferença entre as pessoas,
mas apenas uma maioria. Destaca ele que a principal ideia do utilitarismo
é: “(...) que a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas
principais instituições estão organizadas de modo a alcançar o maior saldo líquido de
satisfação, calculado com base na satisfação de todos os indivíduos que a ela pertencem”.
(RAWLS, 2016, p. 27).

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 153


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
tanto, faz-se necessário criar ou eleger normas, regras e princípios que
servirão de referência para que essa distribuição aconteça de maneira
justa. Seu problema inicial, portanto, está em como construir ou
formular regras e princípios que sirvam de referência para que esta
distribuição aconteça. Dessa forma, o próprio Rawls descreve sua
teoria como sendo uma teoria da justiça como equidade, cujo ponto
de partida é entender a sociedade como um sistema equitativo de
cooperação entre cidadãos, entendidos como pessoas livres e iguais,
vivendo em uma sociedade bem ordenada. Como afirma Norman
Daniels em Reading Rawls:

Rawls (Rawls 1971) argumenta que o objetivo de Uma Teoria da


Justiça é estabelecer os termos de uma cooperação justa que deve
governar agentes morais livres e iguais. Com este ponto de vista, a
perspectiva apropriada a partir da qual escolher entre concepções
concorrentes ou princípios de justiça é um contrato social
hipotético ou uma situação de escolha em que os empreiteiros
são constrangidos em seus conhecimentos, motivações e tarefas
de maneiras específicas. Como esta situação de escolha é justa
para todos os participantes, Rawls chama a concepção de
justiça que emerge dessa escolha de “justiça como equidade”.
Segundo essas restrições, ele argumenta que os contratantes
racionais escolheriam princípios que garantam igualdades de
liberdade básicas e igualdade de oportunidades e um princípio
que permitiu desigualdades somente se eles tornassem as pessoas
mais desfavorecidas possível. (DANIELS, 2016, P. 4)12 .

12 “Rawls (Rawls 1971) argues that the goal of A Theory of Tustice is to establish
the terms of fair cooperation that should govern free and equal moral agents.
On this view, the appropriate perspective from which to choose among
competing conceptions or principles of justice is a hypothetical social contract
or choice situation in which contractors are constrained in their knowledge,
motivations, and tasks in specific ways. Because this choice situation is fair
to all participants, Rawls calls the conception of justice that emerges from
this choice “justice as fairness.” Under these constraints, he argues, rational
contractors would choose principles guaranteeing equal basic liberties and
equality of opportunity, and a principle that permitted inequalities only if they
made the people who are worst off as well off as possible”. (DANIELS, 2016,
p. 4)

154  Patrício Oliveira Lima


Rawls traz como solução para esta problemática uma postura
contratualista, que rejeita a decisão individual das pessoas e apresenta
uma maneira coletiva de propor as regras e princípios necessários ao
propósito de estabelecimento da sociedade por ele idealizada. Para
dar conta da teoria da justiça como equidade, Rawls escreve:

Para fazer isso, não devemos pensar no contrato original como um


contrato que introduz uma sociedade particular ou que introduz
uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular
de governo. Pelo contrário, a ideia norteadora é que os princípios
da justiça para estrutura básica são o objeto do consenso original.
São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas
em promover seus próprios interesses, aceitariam, numa posição
social de igualdade como definidores dos termos fundamentais
de sua associação. (RAWLS, 1997, p. 12).

Sua ideia é considerar as pessoas em posição original de


igualdade, situação em que o indivíduo deverá estar sob aquilo que
ele chamou de véu da ignorância. Esta posição original requereria
um “equilíbrio reflexivo”, sendo este último o objeto aqui em análise.

A posição original e o véu da ignorância

O ponto de partida da teoria da justiça como equidade forma,


como Rawls denominou sua teoria é entender a sociedade como um
sistema equitativo de cooperação entre os cidadãos que são pessoas
livre e iguais. Inserido nessa concepção de justiça, encontramos a
posição original. Esta, assim como Rawls a descreveu, nada mais
é que um sistema heurístico de representação que estabelece as
condições formais para o estabelecimento dos princípios de justiça
necessários à construção da sociedade justa tal como ele pensou.
A grande pergunta é: como estabelecer os termos equitativos de
cooperação social de maneira que os indivíduos envolvidos, mesmo
sendo cidadão livres e iguais, escolham os princípios dos agentes
sociais considerando a justiça como equidade? Como determinar o
que é justo em uma sociedade? A resposta de Rawls é: por meio do
procedimento da posição original sob o véu da ignorância.

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 155


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que
ninguém conhece o seu lugar na sociedade, a posição de sua classe
ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição
de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas
semelhantes. Eu até presumo que as partes não conhecem suas
concepções do bem ou suas propensões psicológicas particulares.
(RAWLS, 1997, p. 13).

A posição original rawlsiana recusa, portanto, uma


fundamentação em uma lei divina, ou mesmo natural, e propõe um
modelo contratualista, pois os termos equitativos de cooperação
são resultado de um acordo estabelecido entre os cidadãos
comprometidos com a sociedade. As decisões devem advir das
pessoas que deverão, elas mesmas, submeter-se às regras criadas. Se
não fosse assim, não seria compatível com a ideia de pessoas livre e
iguais que estão habilitadas a cooperar socialmente. É uma proposta
de autorrepresentação que requer procedimentos reconhecidos
e aceitos por todos dentro de um ambiente de equidade, mesmo
havendo um pluralismo entre os cidadãos que possa vir a trazer
desacordos em alguns momentos.
Quais seriam, então, as condições específicas que validariam
esse contrato? Primeiramente deve-se situar, como já dissemos, as
pessoas livres, iguais e de forma equitativa. Isto implica dizer que
ninguém poderia exercer vantagem sobre o outro. Esse status só
seria possível se, e aqui presentamos a segunda condição, se excluir
a força, a coerção, o logro e a fraude. Dessa maneira, Rawls imagina
que os cidadãos poderiam encontrar pontos de vista recíprocos e
aceitos entre todos de maneira razoável de onde pudessem partir
para encontrar os princípios desejados.
Na posição original, todos os cidadãos devem estar isentos de
suas diferenças, ignorando as possíveis contingências, de maneira
que estes possam escolher, sem nenhum tipo de interferência de
qualquer possível preconceito, seja ideológico ou não, seja por
condição de nascimento ou não. É exatamente isso que se constitui
como véu da ignorância, ou seja, uma barreira que impediria os
indivíduos de atuarem em benefício próprio elegendo seus interesses

156  Patrício Oliveira Lima


pessoais e afastando sua isentabilidade do processo de escolha,
descaracterizando, por completo, as intenções do procedimento
da posição original. Deve-se, portanto, considerar que as partes
escolham sob o véu da ignorância. A tarefa da posição original é
estabelecer os termos justos de cooperação entre os cidadãos.

Na posição original, exclui-se o conhecimento de posições sociais,


doutrinas abrangentes, raça, etnia, sexo, dons naturais, ou seja,
as partes escolhem sob o véu da ignorância para assegurar um
ponto de vista não egoísta da escolha. Como o conteúdo do
contrato trata dos princípios de justiça para estrutura básica, na
posição original são estabelecidos os termos de cooperação entre
os cidadãos. Por isso, justiça como equidade. (COITINHO, 2014,
p. 129.).

O mecanismo da posição original funciona (i) substituindo o


estado de natureza dos contratualistas clássicos, pois um de seus
principais elementos é o próprio véu da ignorância que determina
que se deve ignorar as contingências e impedir que os preconceitos
interfiram nas escolhas dos indivíduos. Além disso, (ii) as partes na
posição original são iguais, pois todos têm os mesmos direitos no
processo de escolha que acontece em posição de completa igualdade
e devem estar em consonância com os juízos morais comuns entre as
pessoas. Finalmente (iii) entramos no terceiro elemento da posição
original, o “equilíbrio reflexivo”. No “equilíbrio reflexivo”, parte-se
de juízos morais concordantes. Como exemplo, seria razoável e todos
concordariam que juízos como o repúdio à escravidão e tolerância
religiosa poderiam ser pontos de partida interessantes. Escolhidos os
princípios de justiça, o próximo passo do “equilíbrio reflexivo” seria
utilizar esses princípios de justiça como referência normativa quando
houvesse casos de desacordo entre as partes, como, por exemplo,
distribuição de riqueza e autoridade. Nota-se, aqui, que se trata de
um procedimento coerentista, já que requer a coerência entre os
juízos morais e os princípios de justiça.
O papel da posição original é, portanto, atuar como um
recurso de representação que formaliza as convicções ponderadas

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 157


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
entre os cidadãos para estabelecer os princípios de justiça, além de
evidenciar e garantir e equidade como critério fundamental para os
consensos. A ideia é que pessoas razoáveis e iguais possam escolher os
princípios de justiça que melhor se adequem às necessidades de todos
e que sejam melhores que os propostos em outras concepções de
justiça como a utilitarista.13 As pessoas escolhem mais razoavelmente
precisamente por se encontrarem exatamente na mesma situação,
sem qualquer tipo de hierarquização entre elas ou mesmo diferenças,
promovendo, assim, pela razoabilidade, uma ideia de justiça que
contemple a todos sem distinção.

Equilíbrio reflexivo

Segundo Norman Daniels,

A proposta de Rawls é que podemos determinar quais os


princípios de justiça que devemos adotar, em plena reflexão, e
ser persuadidos de que nossas escolhas são justificáveis para
​​ nós
mesmos e para os outros, apenas se expandiremos o círculo de
crenças que devem ser coerentes.14 (DANIELS, 2013, p. 4).

Em Rawls, o “equilíbrio reflexivo” é um método de justificação


em ética que se opõe ao intuicionismo racional15 sem defender o

13 Rawls é contra, nesse caso, o utilitarismo quando aponta a falibilidade do


critério da maioria como condição de justiça, pois este critério sempre seria
excludente de alguns desprezando a equidade.
14 Rawls’s proposal is that we can determine what principles of justice we ought
to adopt, on full reflection, and be persuaded that our choices are justifiable
to ourselves and others, only if we broaden the circle of beliefs that must
cohere.
15 Segundo Gondin, “Em LP (Liberalismo Político), Rawls afirma que há várias
formas de equilíbrio reflexivo, dentre os quais aquele que o intuicionismo utiliza.
No entanto, não é este tipo que Rawls utiliza. Ele critica o intuicionismo racional
por este justificar as normas de uma forma epistemológica, assegurando que
existem princípios materiais a priori que podem ser conhecidos por intuição.
Neste sentido, as normas morais são consideradas como verdadeiras e elas
devem ser aceitas universalmente por sua evidência sem fazer referência ao
sujeito.” (GONDIN, 2010, p.34)

158  Patrício Oliveira Lima


posicionamento oposto do antirrealismo (relativismo moral)16. É
utilizado como núcleo central de sua concepção política de justiça
e tem o papel de instaurar a coerência entre os juízos morais
pertencentes individualmente aos agentes e os princípios éticos
entendidos como razoáveis por todos. Segundo Coitinho,

O método do equilíbrio reflexivo caracteriza-se por procurar


estabelecer a regra com base no uso, visando a evitar uma
reivindicação fundacionista para os critérios gerais. A ideia geral
é (i) partir dos juízos morais concordantes em uma sociedade
democrática, pela tolerância religiosa e o repúdio à escravidão,
por exemplo, para identificar a coerência entre os princípios
de liberdade e igualdade, a fim de (ii) usar os princípios de
justiça para o estabelecimento de julgamento dos juízos morais
discordantes, como sobre estabelecer o critério para distribuição
de bens, (iii) com base em uma teoria moral política, como a que
vê a justiça como equidade, por exemplo. (COITINHO, 2014, p.
139).

Aparentemente, o “equilíbrio reflexivo” é o momento último


de um procedimento de deliberação maior, onde se reflete e se
revisa as crenças morais com base em princípios e em teorias morais
mais abrangentes, de modo a construir uma coerência entre esses
elementos, garantindo, assim, mais credibilidade e uma maior
possibilidade aceitação por parte dos envolvidos.
Uma das características fundamentais do “equilíbrio reflexivo”,
provando, inclusive, que não se trata de uma postura dogmática, é o
movimento de avanços e recuos quando se analisa casos particulares
entre juízos ponderados, as regras ou princípios que, por ventura,
possam orientá-los e as teorias gerais aceitas e que justifiquem as
crenças que envolvem tais casos. Esse movimento permite revisar,
sempre que preciso for, qualquer dos elementos, visando alcançar
uma coerência aceitável entre eles, pois se chega a um “equilíbrio
reflexivo”, precisamente, quando os juízos, princípios e teorias estão
em consonância, sem desprezar a coerência, garantindo uma unidade

16 No relativismo moral não há a possibilidade de conceber os fatos morais


independentemente das crenças.

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 159


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
de razão aos elementos e, por isso, são dotados de um maior grau de
credibilidade. Como afirma Norman Daniel:

O método de equilíbrio reflexivo desempenha assim um papel


tanto na construção como na justificativa da teoria da justiça de
Rawls (Daniels 1996; Scanlon 2002). Seu papel na construção
é um exemplo de uso como forma de deliberação17 (DANIELS,
2016, p. 4).

O “equilíbrio reflexivo”, portanto, aponta para o ideal da


justiça como equidade desenvolvida por Rawls. Aqui, os princípios
de justiça devem ser escolhidos seguindo as restrições do véu da
ignorância além de corresponderem aos juízos ponderados sobre
justiça em “equilíbrio reflexivo”. Não havendo correspondência
entre esses dois elementos, faz-se necessário revisar as restrições
presentes dentro do contrato entre as partes a fim de chegar a um
acordo que gere princípios que estejam em “equilíbrio reflexivo” com
os juízos ponderados sobre a justiça18. Embora o contrato seja de
suma importância no projeto de Rawls - pois é por ele que se escolhe
quais princípios devem prevalecer em casos de opiniões divergentes
– é por meio do “equilíbrio reflexivo” que tais princípios encontram
sua justificação. O “equilíbrio reflexivo”, em Rawls, é, também, um
procedimento de justificação pública adequada a uma concepção
política de justiça para uma sociedade que se caracteriza por um
pluralismo razoável, característica marcante das democracias.

O processo de uma justificação pública significa que os juízos


políticos devem ser justificados entre os cidadãos, e isto representa
um esforço de convencê-los por meio da razão pública, isto é,
mediante raciocínios e inferências adequados a questões políticas
básicas correspondendo apenas a determinados valores políticos
que sejam razoáveis aos outros (COITINHO, 2014, p. 142-143).

17 The method of reflective equilibrium thus plays a role in both the construction
and justification of Rawls’s theory of justice (Daniels 1996; Scanlon 2002).
Its role in construction is an example of its use as a form of deliberation.
(tradução nossa)
18 Os juízos ponderados são julgamentos morais que confiamos e acreditamos,
como os que rejeitam a intolerância religiosa e a escravidão.

160  Patrício Oliveira Lima


O ponto de partida do procedimento de uma justificação
pública devem ser as ideias fundamentais contidas na cultura
política de um determinado grupo, construindo uma base pública
de justificação. Tendo como suporte as doutrinas abrangentes
dos próprios cidadão19, eles mesmos podem endossar essa base,
garantindo, dessa maneira, que haja um consenso sobreposto de
doutrinas razoáveis, revelando um aspecto político em “equilíbrio
reflexivo”.
Observadas as características do “equilíbrio reflexivo”, temos,
agora, que este procedimento acontece de duas maneiras diferentes,
caracterizando-se por um lado como sendo amplo e por outro lado
como sendo restrito.

Para melhor compreensão do procedimento do equilíbrio reflexivo,


é necessário estabelecer uma diferenciação entre um equilíbrio
reflexivo restrito (narrow) e um equilíbrio reflexivo amplo (wide).
Um equilíbrio reflexivo restrito (narrow reflective equibibrium) se dá
quando uma concepção política de justiça é facilmente aceitável
por alguém, bastando para isso apenas uma pequena revisão de
seu juízos morais particulares, e assim estabelecer uma coerência
entre as convicções gerais, os princípios básicos e os juízos
particulares, sem que se leve em conta das distintas concepções
de justiça (JF, I § 10.3: 30-31). Já um equilíbrio reflexivo amplo
(wide reflective equilibrium) se dá quando há a consideração de
outras concepções de justiça e a força dos argumentos que lhe dá
sustentação, como a consideração sobre as concepções de justiça
da justiça como equidade, do utilitarismo e do perfeccionismo, de
forma que, além das convicções gerais, os princípios fundamentais
e os juízos particulares concordarem, levam-se em consideração
estas outras concepções de justiça para a escolha dos princípios
(JF, I § 10.3: 31). (COITINHO, 2014, p. 144-145).

Percebe-se que no “equilíbrio reflexivo” amplo, diferentemente


do “equilíbrio reflexivo” restrito, encontramos uma coerência entre o
conjunto das crenças em três níveis: entre os juízos, entre os princípios
morais e entre as teorias de fundo. Essas últimas têm o papel de

19 Rawls considera que os cidadãos envolvidos devem ser tomados como


razoáveis e racionais, como capazes de razão e dotados de senso de justiça.

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 161


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
demonstrar que os princípios morais detêm mais razoabilidade que
outros princípios alternativos, de forma independente dos juízos
morais.
A postura adotada por Rawls na sua teoria da justiça como
equidade é a do “equilíbrio reflexivo” amplo (wide). Como as pretensões
do autor de Harvard são de trabalhar dentro de uma sociedade bem
ordenada, o “equilíbrio reflexivo” deve ser, ainda, pleno (full), pois
todos alcançam, de modo ideal, a mesma concepção pública de
justiça. No primeiro caso, uma mesma noção de justiça partilhada
entre todos, ou seja, uma mesma noção pública de justiça é afirmada
pelos juízos ponderados de todos os envolvidos. No segundo caso,
acontece o mesmo, só que numa sociedade bem ordenada, pois, em
uma sociedade com essa característica, os direitos que os cidadãos
julgam ter são arbitrados, a partir de um ponto de vista público,
onde todos reconhecem que esse ponto de vista é construído em
“equilíbrio reflexivo”.

O objetivo prático deste procedimento é alcançado quando uma


concepção pública de justiça pode ser assumida, tornando os
juízos ponderados mais coerentes com os princípios fundamentais
da justiça como equidade, o que traz por consequência utilizar o
procedimento da posição original sob o véu da ignorância, para
estabelecer quais princípios públicos seriam os mais aceitáveis,
princípios que devem ser escolhidos entre outros princípios
alternativos de outras teorias morais, oportunizando uma
oportunidade suficiente para garantia da estabilidade social.
Aquela teoria que melhor responde à construção de um ponto de
vista público razoável, que pode ser assumido por todos a partir
de suas doutrinas abrangentes, em consenso sobreposto, tem
sua força justificacional assegurada, especialmente no que toca
às questões que envolvem os elementos constitucionais essenciais
e as questões de justiça distributiva (COITINHO, 2014, p. 148-
149).

É perfeitamente razoável e justo que os princípios e caminhos a


serem adotados por uma comunidade sejam construídos de maneira
a respeitar e conter os interesses de todos os envolvidos sem qualquer

162  Patrício Oliveira Lima


tipo de parcialidade ou privilégio. Esse é o caminho que Rawls nos
aponta e que pretendemos seguir.

Aplicabilidade do equilíbrio reflexivo

O “equilíbrio reflexivo” é amplamente utilizado pelos filósofos


como método geral de pensar sobre questões morais. Basicamente,
ele funcionaria assim:

O ponto de partida para o método do equilíbrio reflexivo são


as instituições morais20 que pertencem tanto a casos específicos,
reais ou inventados, quanto a questões de nível de generalidade
maior. Não há dúvidas de que temos tais intuições (intuições
morais – grifo nosso) e de que muitas delas são objeto de acordo
substancial entre as diferentes pessoas. Contudo, também não há
dúvida de que as intuições de diferentes pessoas sobre a mesma
questão moral podem estar em conflito umas com as outras
(...) A esperança, entretanto, é que ao pensar refletidamente
tais intuições umas com as outras, descartando aquelas que
parecem estar em conflito com muitas outras, e talvez afinando
ou ajustando outras para evitar tais conflitos, pode se chegar a
um conjunto coerente no todo dessas alegações com vários graus
de generalidade. A ideia é, então, a de que a concepção completa
desse tipo que melhor preserva as intuições mais claras e mais
fortes (e também elimina muitas das intuições que se deve rejeitar
como erradas ou de alguma forma confusas) pode ter a mais alta
reivindicação de ser correta. A situação na qual tal resultado foi
obtido é chamado de equilíbrio reflexivo: “equilíbrio” porque os
tipos de conflito que tornam as concepções morais de alguém
instáveis e sujeitas à mudança foram, ao menos no momento,
eliminadas (BONJOUR, 2010, p. 394-395).

Antes de qualquer coisa, devemos dizer que o “equilíbrio


reflexivo” rawlsiano, como já foi destacado anteriormente, é bem
mais elaborado e consiste em um procedimento decisório, com base
contratualista e construtivista21, que envolve os indivíduos em torno

20 Intuições morais são opiniões morais imediatas que as pessoas têm a respeito
de algum fato.
21 É contratualista porque parte do acordo entre os cidadãos em busca do

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 163


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
de uma reflexão sobre determinadas situações concernente a todos,
onde se deve tirar deliberações acerca dos princípios de justiça e até
mesmo políticos para orientar o comportamento da comunidade. O
que Rawls faz é adequar esse método às necessidades de construir a
sua teoria da justiça como equidade que culminaria numa sociedade
justa e para todos.
A posição original assim como Rawls a pensou tem o véu da
ignorância como situação preliminar para finalmente se chegar ao
desejado “equilíbrio reflexivo”. É importante frisarmos que Rawls
não imaginou a possibilidade de colocar todos os cidadãos de uma
cidade como Nova York num só lugar - onde todos esqueceriam,
voluntariamente, suas características, habilidade, status social,
conhecimentos e preconceitos até estarem em posição original e
sob o véu da ignorância - e sugerir aos mesmos que debatessem até
chegarem à condição de “equilíbrio reflexivo”. O filósofo deixa claro
que essa é uma situação hipotética.

Venho salientar que esta posição original é puramente hipotética.


É natural nos perguntar por que devemos nos interessar por
esses princípios, morais ou de outra natureza. A resposta é
que as premissas inseridas na descrição da posição original
são premissas que de fato aceitamos. Ou, caso não aceitemos,
talvez possamos nos convencer a fazê-lo por meio da reflexão
filosófica. Pode-se demonstrar o fundamento de cada aspecto da
situação contratual. Assim, o que faremos é reunir em uma única
concepção uma série de condições impostas a princípios que,
após cuidadosa ponderação, estaremos dispostos a reconhecer
como razoáveis. Essas restrições expressam o que estamos

estabelecimento dos princípios básicos para gerir a vida social. Quanto aspecto
construtivista nos lembre Norman Daniel: “Rawls afirma que sua visão de
justiça é construtivista, o que significa que ele apela a algumas afirmações
gerais sobrea natureza das pessoas, bem como alguns fatos empíricos sobre
comportamento humano ou instituições como parte da justificação para os
princípios da justiça (ou a situação de escolha que nos leva a escolhê-los).”
Rawls claims that his view of justice is constructivist, meaning that he appeals
to some general claims aboutthe nature of persons as well as some empirical
facts about human behavior or institutions as part of thejustification for
the principles of justice (or the choice situation that leads us to pick them)
(DANIEL, 2016, p. 10).

164  Patrício Oliveira Lima


dispostos a considerar como injunções a termos equitativos de
cooperação social (RAWLS, 2016, p. 26).

Diante do exposto, devemos nos perguntar sobre a possibilidade


real dessa proposta metodológica acontecer na prática, já que
seu próprio autor a caracteriza como sendo apenas hipotética.
Imaginamos que sim, é possível, mas com um pequeno ajuste do
qual trataremos adiante. Nos parece ser viável submetermos algumas
problemáticas específicas da filosofia e, em especial, de seu ensino,
e sugerir essa estratégia para servir de referência metodológica e
procedimental para prática pedagógica de abordagens de conteúdos
filosóficos. Além disso, imaginamos, ainda, que o “equilíbrio
reflexivo” rawlsiano pode servir de referência e procedimento
para escolha dos princípios filosóficos orientadores das práticas
profissionais educativas em qualquer área do conhecimento, em
especial da disciplina de filosofia e é justamente esse o objetivo
deste trabalho. Da mesma forma que Rawls pretende encontrar
os princípios que garantam uma sociedade justa e equitativa para
todos, poderíamos, também, encontrar os princípios conceituais
necessários para darmos conta das necessidades da disciplina de
filosofia no ensino médio usando sua metodologia. Trata-se de uma
experiência de pensamento para testar uma hipótese, a de que o
“equilíbrio reflexivo” é uma boa estratégia para deliberar sobre as
diretrizes conceituais para disciplina de filosofia no ensino médio.
Tomemos a disciplina de filosofia no ensino médio como
ponto de reflexão. Os documentos oficiais que orientam a educação
no Brasil, em especial a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) e os PCNs
(Parâmetros Curriculares Nacionais), trazem, no seu fundamento,
a necessidade de se formar cidadãos pensantes, críticos e, por
conseguinte, capazes de exercer a cidadania. Eles revelam forte
preocupação com uma formação educacional mais abrangente22

22 Isso também pode ser observado na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), no inciso
II do artigo 35 da seção IV, que trata do Ensino Médio, onde se lê que um dos
objetivos da educação é “[...] o aprimoramento do educando como pessoa
humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 165


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
que, para além dos conteúdos técnicos, também abarque questões
políticas, éticas, estéticas, filosóficas que sirvam de referência para
ação e o comportamento das pessoas em sociedade. No Art. 2º da
LDB temos que a educação tem “por finalidade o pleno desenvolvimento
do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho”.
No projeto de educação para cidadania supracitado
encontramos um lugar de destaque para o Ensino de Filosofia.
Logo nas primeiras páginas da Organização Curricular Nacional /
Filosofia, percebemos que este é apresentado como uma estratégia
para abordar temáticas complexas e que requerem o aparelhamento
intelectual que é característico da própria filosofia.

Chama a atenção um leque de temas, desde reflexões sobre


técnicas e tecnologias até inquirições metodológicas de caráter
mais geral concernentes a controvérsias nas pesquisas científicas
de ponta, expressas tanto em publicações especializadas como na
grande mídia. Também são prementes as inquietações de cunho
ético, que são suscitadas por episódios políticos nos cenários
nacional e internacional, além dos debates travados em torno dos
critérios de utilização das descobertas científicas (BRASIL, 2008,
p. 15).

O ensino de Filosofia teria como finalidade, promover um


determinado tipo de reflexão, que conduziria o aluno a tal cidadania.
Embora essa preocupação seja latente, a lei não traz uma conceituação
bem definida, apresentando noções vagas sobre o que é filosofia
ou, mesmo, qual filosofia deve ser aplicada. Outro questionamento
importante versa sobre a relação apresentada, praticamente de
causa e efeito, na qual, por meio do exercício da reflexão filosófica,
se chegará, necessariamente, à cidadania. Os próprios documentos
oficiais não tratam sobre a natureza dessa reflexão e como ela poderia
conduzir aos efeitos desejados.
Responder ao questionamento sobre a natureza da própria
filosofia ou de qual filosofia se quer trabalhar, segundo Danelon,

intelectual e do pensamento crítico”.

166  Patrício Oliveira Lima


é o ponto de partida para a prática filosófica em sala de aula,
especialmente no Ensino Médio. Isso quando se tem no horizonte a
formação de indivíduos pensantes e autossuficientes intelectualmente.
Nesse sentido, Danelon argumenta que:

(...) o elemento indispensável para pensar filosoficamente o


ensino de filosofia é próprio conceito de filosofia. Que filosofia
ou quais filosofias queremos ensinar? Que conceito de filosofia
o professor assume para si em sua prática pedagógica? Definir o
conceito de filosofia é o passo fundante e, portanto, fundamental
do processo de ensinar filosofia (DANELON, 2010, p. 187).

Mesmo observados os avanços trazidos pela supracitada
legislação no âmbito do Ensino de Filosofia, existe a necessidade
de construir um arcabouço filosófico conceitual que sirva de
diretriz para a prática do Ensino de Filosofia nas escolas de Ensino
Médio. Somente com essa conceituação em mente, nosso sistema
educacional pode pensar o Ensino de Filosofia como uma prática
capaz de conduzir o educando à necessária autonomia intelectual que
lhe encaminhará ao senso crítico e ao processo real de inserção dele
na vida social e política propriamente dita de forma consciente e sem
direção alheia. Como, então, dar conta dessa tarefa? Nossa sugestão
é clara: cada grupo de professores responsáveis pela disciplina de
filosofia em determinada região deveria, reunidos em cooperação
mútua, utilizando-se do processo do “equilíbrio reflexivo”, construir
tal arsenal teórico conceitual. Se não for assim, como podemos falar
em autonomia intelectual dos estudantes se os próprios professores
não a têm?
O processo de decisão e justificativa de Rawls sustenta que:

Como cada pessoa deve decidir com o uso da razão (grifo nosso)
o que constitui o seu bem, isto é, o sistema de finalidades que,
de acordo com sua razão, ela deve buscar, assim, um grupo de
pessoas deve decidir de uma vez por todas tudo aquilo que entre
elas se deve considerar justo e injusto (RAWLS, 1997, p. 13).

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 167


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
Do mesmo modo, sustentamos que deve ser tarefa dos
professores de filosofia a construção do arcabouço conceitual
mínimo necessário à sua seara.

Assim, devemos imaginar que aqueles que entram em cooperação


social escolhem juntos, em um único ato conjunto, os princípios
que devem atribuir os direitos e deveres fundamentais e determinar
a divisão dos benefícios sociais. Os homens devem decidir de
antemão como devem regular suas reivindicações mútuas e qual
deve ser a carta fundacional de sua sociedade. Assim como cada
pessoa deve decidir por meio de reflexão racional o que constitui
seu bem, isto é, o sistema de fins que lhe é racional procurar,
também um grupo de pessoas deve decidir, de uma vez por todas,
o que entre elas está considerado justo ou injusto (RAWLS, 2016,
p. 14).

Para Rawls,

A nossa situação social será justa se for tal que, por meio dessa
sequência de acordos hipotético, tivermos compactuado o
sistema geral de normas que a define. Ademais, supondo-se que
a posição original defina um conjunto de princípios (isto é, que
seja escolhida determinada noção de justiça) então será verdade
que, quando as instituições sociais atendem a estes princípios,
seus participantes podem afirmar que estão cooperando em
condições com as quais concordariam se fossem pessoas livres
e igual cujas relações mútuas fossem equitativas (RAWLS, 2016,
p. 15-16).

É justamente essa a postura que os professores de filosofia


devem ter quando se trata de sua atividade profissional. É deles que
devem partir as deliberações para e as reflexões acerca dos conceitos
e do modo como estas ideias devem ser vistas, para que, a partir
disso, eles passam desenvolver nos seus alunos o espírito inquisidor
necessário àquilo que apontamos como sendo uma das finalidades
da disciplina de filosofia para o Ensino Médio no Brasil. Queremos
propor que o arcabouço conceitual mínimo necessário para prática
da filosofia em sala de aula seja resulta de um “equilíbrio reflexivo”
proposto pelos próprios sujeitos envolvidos, num sistema de

168  Patrício Oliveira Lima


cooperação que lhes conduzirá, por meio de um consenso sobreposto,
às ideias necessárias para dar o propósito desejado ao seu trabalho.
Se os professores não assim fizerem, teremos duas possibilidades:
ou não teremos “norte” algum para esta questão, ou o Estado se
encarregará de determinar esse “norte”, o que nos parece bastante
problemático.
A proposta aqui é que os professores assumam a postura de
sujeitos ativos dentro dos processos decisórios de sua disciplina se
revelando como indivíduos capazes de deliberar sobre os princípios
conceituais filosóficos orientadores de suas disciplinas. É nesse sentido
que Rawls aponta para possibilidade de construir uma sociedade
onde seus membros possam ser autônomos23 e, analogamente,
é nesse sentido que sugerimos que os professores sejam, também,
autônomos, o que certamente reverberará em seus alunos. No caso
de Rawls, os indivíduos estão numa situação ideal, mas, no nosso
caso, esse sujeito ideal se materializa na figura marcante do próprio
professor de filosofia.
Voltando à questão do ajuste citado anteriormente,
obviamente que compreendemos que a situação descrita como
“véu da ignorância” não é possível para nossa tarefa por vários
motivos: primeiro porque o próprio Rawls a descreve, assim como os
contratualistas clássicos descrevem o estado de natureza, como uma
situação puramente hipotética, sendo basicamente impossível de
ser formulada nos dias atuais, especialmente com pessoas adultas,
professores de filosofia. Como Rawls não supõe que os cidadãos, em
seus processos decisórios, não sejam neutros, mas imparciais24, isso

23 Ao longo de sua obra, Rawls alterou sua ideia de autonomia saindo da postura
inicial kantiana apresentada em Uma Teoria da Justica, ou seja, autônomos
seriam aqueles que agiriam sob a égide da razão, da liberdade e da igualdade,
dando a ela caráter mais político, quer dizer, quando os homens atuam em
consonância com os princípios escolhidos em posição original, a decisão deles
é autônoma e as suas ações, também, assim o são. (GONDIM, p. 72)
24 Na teoria da justiça rawlsiana, os cidadãos devem agir de maneira imparcial
e não neutra, já que os procedimentos decisórios têm base intuicionista e
os participantes são portadores de características morais, como o senso de
justiça e as concepções de bem.

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 169


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
nos leva a imaginar uma situação semelhante que podemos realizar
assim como os contratualistas clássicos o fizeram, é uma experiência
de pensamento pela qual queremos testar a hipótese rawlsiana da
posição original, sob o véu da ignorância, com vistas ao desejado
“equilíbrio reflexivo” para construir os conceitos que sirvam como
diretrizes para os professores de filosofia trabalharem no ensino
médio. Rawls usa isso como experiência de pensamento para
estrutura política e nós queremos usar para disciplina de filosofia.
Esse ajuste tem por objetivo garantir a viabilidade do processo
inteiro e não traz prejuízos ao processo do “equilíbrio reflexivo”, já que
este acontece num momento bastante posterior e diz respeito apenas
à situação de consenso sobreposto pela razoabilidade destacada por
Rawls. Superado o impasse inicial, podemos dar conta do nosso
propósito.

Considerações finais

Mesmo sabendo da importância do véu da ignorância na obra


rawlsiana, devemos destacar que o processo do “equilíbrio reflexivo”,
embora pressuponha esse momento, acontece em situação posterior.
A intenção de Rawls com essa ideia preliminar é de colocar o cidadão
numa situação de equidade tamanha que nenhum deles, submetidos à
responsabilidade cidadã de deliberar sobre os princípios que venham
a gerir sua sociedade, sejam, de qualquer maneira, parciais em suas
avaliações e juízos. Ele defende que os são cidadãos sejam imparciais.
Sabemos da impossibilidade de termos homens encobertos pelo
véu da ignorância e não é isso que queremos, ao contrário, nosso
propósito é cobrirmo-nos com o véu da sabedoria e da racionalidade
próprias da filosofia que há muito retirou o homem das trevas. O
debate, as observações das teorias abrangentes ou mesmo das
ideias individuais, os avanços e recuos característicos do “equilíbrio
reflexivo”, são a matéria prima do trabalho filosófico, o que nos faz
crer que esta é a metodologia mais adequada quando se trata de
construir o arcabouço conceitual mínimo necessário para orientar as
práticas do professor de filosofia.

170  Patrício Oliveira Lima


Este procedimento tem, ainda, outra característica que o faz
perfeitamente apropriado para proposta aqui em questão: ele é, nas
palavras de Braga. “indefinidamente aprimorável”, pois permite que o
processo seja revisto quantas vezes forem necessárias para alcançar
os princípios que sejam satisfatórios para todos os envolvidos. Assim,
sempre que necessário, os professores poderão refazer todo o caminho
e fazer revisões qualitativas e positivas nos princípios conceituais por
eles construídos. Mas se assim o é, como os professores saberão que
os princípios conceituais por eles construídos são corretos? Assim
como Rawls nos orienta, princípios corretos são aqueles que são
universalmente aceitos ou acordados entre os participantes de uma
deliberação justa e de maneira autônoma. Ao se falar em autonomia
devemos nos ater ao modo específico que Rawls a compreendia.
Em Rawls, a autonomia tem como fundamento valores políticos
fundados nos princípios da razão prática em conformidade com as
concepções políticas de pessoa e de sociedade. É de responsabilidade
do cidadão deliberar sobre os princípios que devem reger sua
sociedade, do mesmo modo que deve ser do professor de filosofia
a responsabilidade de traçar os princípios teóricos que regem a sua
prática em sala de aula.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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construção dos princípios de justiça na obra de Rawls. Dois Pontos,
São Carlos, vol. 10, n. 1, abril, 2013

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1998.

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O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 171


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
BRASIL. Lei 11.684, de 2 de junho de 2008. Altera o art. 36 da Lei
no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia
como disciplinas obrigatórias nos currículos do Ensino Médio.
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de dez. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
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BONJOUR, Laurence e BAKER, Ann. Filosofia: textos fundamentais


comentados. 2ª Edição, São Paulo: Artmed, 2010.

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2003; substantive revision Fri Oct 14, 2016.

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educação, cidadania e equilíbrio reflexivo. Revista Sul-Americadna
de Filosofia e Educação – RESAFE. Nº 15: novembro/2010-
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SILVEIRA, Dênis Coitinho. Posição original e equilíbrio reflexivo em


John Rawls: o problema da justificação. Revista Transformação –
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O EQUILÍBRIO REFLEXIVO RAWLSIANO: UMA METODOLOGIA 173


PARA CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CONCEITUAIS PARA FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS
CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE
FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO

Maria Genilda Marques Cardoso


Walter Pinheiro Barbosa Junior

Introdução

N
a extensa obra Democracia e Educação, de John Dewey
(1859 – 1952), publicada em 1959, está explicitada
sua Filosofia da Educação, cujo pressuposto
filosófico é o pragmatismo, corrente filosófica que surgiu no século
XX, nos Estados Unidos. Dewey exerceu forte influência no Brasil,
com ideias que inspiraram o movimento escolanovista (1930) e a
formação de professores reflexivos (1970). (SOUZA;MARTINELI,
2009). Alguns traços de suas ideias filosóficas se incorporaram
a documentos da época (manifesto da Escola Nova) e a reformas
educacionais. Distorções de entendimento de suas ideias também
balizaram práticas educacionais da época e preconceitos que ainda
transitam no meio intelectual, envoltos em sua origem e em sua
filosofia pragmatista.

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 175


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
O professor Ronai Pires da Rocha, autor do livro Ensino de
Filosofia e Currículo (2008), integra o diálogo nesse trabalho. Ronai é
professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de
Santa Maria, Rio Grande do Sul, e desde 1992 dedica-se a pesquisas
e a atividades vinculadas ao ensino de Filosofia na escola média. O
horizonte da obra de Rocha situa-se, segundo Favaretto (2008), em
uma:

[...] proposta de ensino de filosofia que intercepta exigência


filosófica e sentido pedagógico. Enfrenta produtivamente o
desafio de propor uma direção para o ensino de filosofia – levando
em conta o real funcionamento do dispositivo escolar brasileiro,
o seu emperramento institucional, pedagógico e operacional,
e as exigências de pensamento que o tornem filosófico -, que
desemboca no seu ponto de definição, a aula, onde a Filosofia
tem que aparecer simplesmente como mais uma disciplina, e uma
disciplina pedagógica, curricular, despojada das costumeiras
expectativas e mistificações que a envolvem, dentro e fora da
escola. (FAVARETTO, 2008, p. 10).

A escolha dos dois teóricos e filósofos deu-se pelas seguintes


razões: em relação à Filosofia de John Dewey, por ele fazer parte
de nossos estudos em curso no doutoramento , na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e, no caso de Ronai, pela
especificidade de sua produção, voltada à questão do currículo no
ensino de Filosofia.
Nosso objetivo geral, neste artigo, é refletir visões de currículo
e suas contribuições para o ensino de Filosofia em escolas de Ensino
Médio. Para atingir tal objetivo, elaboramos os seguintes objetivos
específicos: Entender a proposta de currículo em Dewey e Rocha,
abstraindo contribuições para o ensino de filosofia no Ensino Médio;
além de estabelecer (im)possibilidades de aproximações entre as
visões de currículo dos filósofos.
A abordagem metodológica utilizada foi a qualitativa, de cunho
exploratório e introdutório, com suporte teórico na obra Democracia e
Educação (1979), de John Dewey, e no livro Ensino de Filosofia e Currículo
(2008), de Ronai Pires da Rocha.

176  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


O ensino de Filosofia, desde a sua inclusão no currículo do
Ensino Médio pela Lei nº 11.684/2008 como disciplina obrigatória,
estimulou uma série de produções científicas e filosóficas na área
do ensino, todavia consideramos ainda escassa, dada a necessidade
de avanços na compreensão do ensino-aprendizagem em Filosofia.
A despeito desse momento passado de nossa história, tivemos
recentemente retrocessos do ponto de vista legal, dada a aprovação
da Lei nº 13.415 de 16/02/201725, que retroagiu em relação à
obrigatoriedade do ensino de Filosofia e Sociologia, garantindo
apenas a obrigatoriedade de sua inclusão na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), ficando sua presença nos currículos a cargo
de cada sistema de ensino (Artigo 35-A, parágrafo 2º, e Artigo 36,
parágrafo 1º). Apesar disso, e do cenário político e educacional
conturbado atual, não vamos arrefecer diante dos desafios inerentes
ao ensino de Filosofia e de sua contribuição para uma educação
crítica e emancipatória.
A discussão sobre currículo no ensino de Filosofia, mais
especificamente no Ensino Médio, segundo Rocha (2008, p.80),
tomando por referência as Orientações Curriculares para o Ensino
Médio (OCEMs), Ensino de Filosofia, Vol. 3, p.34, constitui-se em um
conjunto de “sugestões de conteúdos [referências, pontos de apoio
para a montagem de propostas curriculares] e cuja lista tem por
referência os temas trabalhados nos currículos mínimos dos cursos
de graduação em Filosofia”. Essa assertiva de Rocha e as experiências
advindas do ensino de Filosofia, seja no Ensino Médio ou Ensino
Superior, são ilustrativas do conceito restrito sobre currículo e de
sua pouca discussão entre os profissionais de Filosofia. Portanto,
consideramos, ainda que em caráter introdutório, ser oportuna e
necessária aos licenciados em Filosofia e professores de Filosofia em
exercício.
Com vista a tal intento, desenvolvemos as seguintes seções: O
currículo em Dewey; O currículo em Rocha; (Im)possibilidades de

25 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2017/lei-13415-


16-fevereiro-2017-784336-publicacaooriginal-152003-pl.html>>. Acesso em:
abril/2019.

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 177


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
aproximações entre visões de currículos e suas contribuições para
o ensino de Filosofia em escolas de Ensino Médio; Considerações
finais.

O currículo em Dewey

O livro Democracia e Educação, de John Dewey, com primeira


publicação em 1916, é um compêndio que se propõe a teorizar e
filosofar os problemas da educação de sua cultura estadunidense.
São 26 capítulos desenvolvidos com especificidades que integram
uma proposta de educação formal que, a nosso ver, dizem respeito
a todas as disciplinas de um currículo e a outras culturas que
apresentam características assemelhadas em relação à educação
formal. Nele estão contidos conceitos que são referenciais para o
que nos propomos a refletir neste estudo, a exemplo: conceito de
educação, de sociedade, de filosofia, de métodos, de conteúdo, de
escola, de como se aprende e se ensina, etc. Para o propósito que
motivou este escrito, de cunho exploratório e introdutório sobre o
assunto “currículo”, extraímos de seu livro aspectos importantes, sem
desconsiderar a igual relevância na discussão dos outros assuntos
para a elaboração ou formação de uma visão de currículo. Contudo,
em função dos objetivos delineados e a limitação que reveste este
formato de publicação científica, foi necessário fazer escolhas. Dessa
forma, buscamos destacar as ideias gerais que são preliminares aos
esclarecimentos de um currículo e que precedem a decisão dos seus
conteúdos. Nesse sentido, explicitamos de antemão seu conceito de
filosofia, de educação, de método e matéria de estudo26 em Dewey,
para em seguida abstrair sua visão geral de currículo formal na escola
e sua contribuição para o ensino de Filosofia.
A filosofia em Dewey é entendida como atitude filosófica
diante de problemas relacionados à vida, em que o homem se põe
a refletir, produzindo uma racionalidade hipotética de seus efeitos


26
Termo utilizado por Dewey em sua obra Democracia e Educação, que equivale
nos dias de hoje a disciplina.

178  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


sobre ela, resultando sentidos práticos para uma vida. Nas palavras
de Dewey, a Filosofia é:

[...] pensar o que aquilo que é conhecido requer de nossa parte


– qual a atitude de correspondência que ele exige. É uma ideia
do que é possível, e não um registro de fatos consumados. Por
essa razão é hipotética, assim como todo o ato de pensar. Ela
assinala alguma coisa a ser feita – alguma coisa a ser tentada.
Seu valor não está em proporcionar soluções (o que só pode
ser conseguido com a ação) e sim em analisar as dificuldades e
sugerir métodos para nos avirmos com elas. Pode-se quase definir
a filosofia como o pensamento que se tornou consciente de si
mesmo – que generalizou seu lugar, função e valor na experiência.
Mais especificamente surge a exigência de uma atitude “total”
por existir a necessidade de integrar na ação os vários interesses
em conflito, da vida. Não é perceptível a necessidade da filosofia
quando os interesses são tão superficiais que facilmente se
fundem, ou quando não são suficientemente organizados para
entrar em mútuo conflito. (DEWEY, 1979, p.359-360).

Caminha nessa mesma direção a definição que expôs sobre


a matéria de estudo, no caso a disciplina Filosofia e a atitude do
filósofo. A matéria Filosofia é “[...] uma tentativa para compreender,
isto é, reunir as várias particularidades do mundo e da vida em um
todo único que seja uma unidade, ou, como nos sistemas dualistas,
reduzir a pluralidade de particularidades a um número pequeno de
princípios finais” (DEWEY, 1979, p.357). E em relação à “atitude do
filósofo e daqueles que aceitam suas conclusões, há o esforço para
conseguir-se uma visão da experiência a mais unificada, coerente e
completa possível”.(DEWEY, 1979, p.357). Tanto a matéria Filosofia
como a atitude do filósofo são o continuum da experiência humana e
social. A matéria de estudo Filosofia e a concepção de Filosofia não
se dissociam do entendimento e prática do fílósofo e/ou professor de
Filosofia. Não se pode deixar de situar que esse professor ou filósofo
é parte de um contexto de práticas e vivências que se constrói e se
reorganiza numa coletividade de sujeitos.
Compreendemos o aprimoramento humano e daí podemos
dizer que a formação humana não reside na aplicação de um único

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 179


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
conhecimento, mas na ligação entre vários deles, e que se evidenciam
no processo de maturação dos indivíduos em seus ambientes sociais
e físicos. Não se separa Filosofia de Ciência, embora distintas em
relação aos métodos. Dewey explicou isso da seguinte forma:

Esta direta e íntima conexão da filosofia com uma visão da


vida, a diferencia da ciência. Os fatos particulares e as leis da
ciência influem evidentemente na conduta. Eles sugerem coisas
a fazer ou a não fazer e sugerem meios de execução. Quando a
ciência, porém, não significa simplesmente um catálogo dos
fatos particulares descobertos sobre o mundo e sim uma atitude
geral para com este – encarando-se essa atitude como distinta
das coisas especiais a fazer – ela passa a ser filosofia. Pois tal
disposição profunda representa uma atitude, não para com
esta ou aquela coisa, nem mesmo para com a soma das coisas
conhecidas, e sim para com as considerações que dirigem a
conduta. (DEWEY, 1979, p.357-358).

Ele explica ainda que “por isso não se pode definir a filosofia
tendo-se em vista apenas o objeto de conhecimento”. Por esta razão,
conseguiu-se “mais prontamente uma definição de concepções
como generalidade, totalidade e última causalidade (ultimateness)
encarando-se a atitude para como o mundo que elas denotam”
(DEWEY, 1979, p. 358).Contudo, ele buscou dirimir ainda mais esse
entendimento:

Em sentido literal e quantitativo, esses termos não se aplicam à


matéria do conhecimento, pois a plenitude e a última finalidade
acham-se fora de alcance. Impede-as até a própria natureza da
experiência, como processo contínuo e mutável. Em sentido
menos rígido, aplicam-se mais à ciência do que a filosofia.
Pois,para encontrar os fatos deste mundo e as suas causas, é
claro que deveremos recorrer às matemáticas, à física, à química,
à biologia, à antropologia, à história, etc., não à filosofia. Às
ciências é que compete dizer quais as generalizações admissíveis
sobre o mundo e quais, especificamente, são elas. Mas quando
perguntamos que espécie de atitude permanente ativa para com
o mundo as revelações científicas exigem de nós, estamos a
formular uma questão filosófica.

180  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


Por este prisma, “totalidade” não significa a tarefa impossível
de uma acumulação quantitativa. Quer antes dizer coerência
de um modo de reagir em face da pluralidade das coisas que
acontecem. “Coerência” não significa identidade completa, pois,
como a mesma coisa não acontece duas vezes, a repetição exata
de uma reação subentende algum mau ajustamento. Totalidade
significa continuidade – o prosseguimento de um primeiro hábito
de agir com a readaptação necessária para conservá-lo vivo e em
evolução. (DEWEY, 1979, p. 358, grifo nosso).

Nessa compreensão, sua perspectiva filosófica se propõe a


pensar o fenômeno da educação, em sentido estrito e lato, como liame
necessário ao processo de desenvolvimento humano [experiência
humana] e de sua emancipação. Em outras palavras, sua filosofia da
educação busca, sob forma de uma teoria da educação, expressar-se
com elementos que contribuam para mudanças na prática educativa
e no aprendizado dos alunos, de tal forma que este se potencialize em
seu crescimento humano, com autonomia e responsabilidade social
diante do contexto em que se encontra. Nesse mesmo processo, o
professor de Filosofia é coadjuvante da formação, na condição de
aprendiz e condutor do processo de ensino-aprendizagem. Esse é um
desafio educacional considerado por seus críticos utópico.
Ademais, sua concepção de educação, coerente com sua
filosofia e em contraste com outras ideias de educação27, consistiu
em:

[...] um constante reorganizar ou reconstruir [...] [da]


experiência. Ela tem sempre um fim imediato, e, na proporção
em que a atividade for educativa, ela atingirá esse fim – que é
a transformação direta da qualidade da experiência. A infância,
a adolescência, a idade adulta – tudo fica ao mesmo nível
educativo, no sentido de que aquilo que foi realmente aprendido
em todos e em cada um dos estágios da experiência constitui o
valor dessa experiência, e também no sentido de que a principal
função da vida é, sob todos os pontos de vista, fazer que o ato de


27
Concepções de educação citadas por Dewey: ideias do desdobramento do
interior para o exterior de faculdades latentes, e da formação do exterior para
o interior, entre outras.(DEWEY, 1979, p.82-83).

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 181


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
viver contribua para o enriquecimento de sua própria significação
perceptível. (DEWEY, 1979, p. 83).

Esse constante reorganizar ou reconstruir da experiência não


é neutro e nem está à margem de concepções éticas e políticas, ele
é expressão e resultado de uma democracia não meramente formal,
mas cultural, impregnada em seu modo de viver com políticas de
equidade. A educação, nessa configuração, tem como método o
ato de pensar por si mesmo, o autodesenvolvimento constante, a
experiência inteligente em seu curso de vida (DEWEY, 1979). Nesse
sentido, a instituição escolar tem o papel de desenvolver a capacidade
do alunato de pensar os problemas da vida na relação com o outro,
com vistas a sua humanização. Isso significa que os conhecimentos
informativos não podem estar separados da ação reflexiva. Sua
separação torna os conhecimentos informativos um

[...]peso esmagador para o espírito. Como simulam os


verdadeiros conhecimentos, segregam o veneno do preconceito,
e são poderoso obstáculo para o ulterior desenvolvimento de
inteligência. O único caminho direto para o aperfeiçoamento
duradouro dos métodos de ensinar e aprender consiste em
centralizá-los nas condições que estimulam, promovem e põem
em prova a reflexão e o pensamento. Pensar é o método de se
aprender inteligentemente, de aprender aquilo que utiliza e
recompensa o espírito. (DEWEY, 1979, p. 167).

Os conhecimentos informativos são os conteúdos das


disciplinas (DEWEY, 1979) que são ministradas, muitas vezes, sem as
estimulações para propiciar as conexões com a experiência do aluno.
Mas em que consiste o método do aprender inteligente? Consiste em
propiciar ao aluno experiências de aprendizado, isto é, em evocar a
espécie de situação que se apresenta naturalmente fora da escola. O
que sugere que:

[...] os primeiros contatos com qualquer material novo, seja qual


for a época da vida, deverão ser inevitavelmente da espécie de
“experiência e erro”. Um indivíduo deve experimentar, nos jogos
ou no trabalho, fazer alguma coisa com determinado material,

182  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


dando realização aos impulsos da sua própria atividade, e observar
então a interação da sua energia com a do material empregado.
É isto o que sucede quando primeiro uma criança começa a fazer
construções com blocos e é igualmente o que acontece quando
um cientista em seu laboratório principia a fazer experiências com
objetos não familiares. (DEWEY, 1979, p. 168-169).

A situação real de experiência educativa28 proporcionada ao


aluno gera a segunda necessidade, que é do professor estudar ”os
dados para suprir as considerações indispensáveis à análise e à
percepção da dificuldade específica que se apresentou por si mesma
naquela situação de experiência” (DEWEY, 1979, p. 172). Isso
demanda, segundo Dewey (1979, p.174, grifo do autor), que sejam
examinados “os seus correlatos, que são sugestões, inferências: em
suma - ideias”. Dessa forma,

A observação cuidadosa e a cuidadosa recordação revelam o que


já se acha nas coisas, o que já está presente, e, por isso, os dados.
[...] Os dados despertam as sugestões, e só em relação com esses
dados especiais é que poderemos apreciar a propriedade das
sugestões. Mas as sugestões, por outro lado, se projetam para
além dos dados da experiência. Elas preveem resultados possíveis,
coisas a fazer e, não, fatos (coisas já feitas). A inferência é sempre
uma invasão ao desconhecido, um salto dado daquilo que é
conhecido para o desconhecido (DEWEY, 1979, p. 174).

Assim, entendeu que “nenhum pensamento ou ideia pode ser


transferida como ideia de uma pessoa para outra. Quando uma ideia
é dita, ela é para a pessoa a quem foi dita um fato, e não uma ideia”
(DEWEY, 1979, p.175). Daí a necessidade do método no processo de
transposição da ideia.
Para Dewey (1979), o método empregado no ensino não
está separado da matéria de estudo, significa o arranjo da matéria
para tornar mais eficaz sua utilização em direção a resultados
desejados. Ou seja, a matéria é aquilo que experimentamos (a coisa


28
Esclareceu Dewey que o material para o pensamento não são os pensamentos,
e sim as ações, os fatos, os acontecimentos e as relações entre as coisas
(DEWEY, 1979).

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 183


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
experimentada) e o método o ato de experimentar – o como (DEWEY,
1979). Essa distinção Dewey faz apenas mentalmente, pois sua
real separação “gera o dualismo do método e do objeto a que ele
se aplica”.(DEWEY, 1979, p.184). Assim, “a experiência, [...] não é
uma combinação do espírito com o mundo, do sujeito com o objeto,
do método com a matéria, e sim uma única interação contínua de
grande diversidade de energias (literalmente inumeráveis) ” (DEWEY,
1979, p.184).
Os característicos do bom método são “[...] retilineidade,
plasticidade do interesse intelectual ou vontade de ter o espírito
franqueado para aprender, integridade de propósito ou objetivo
e aceitação da responsabilidade das consequências da atividade
empreendida com o emprego da reflexão” (DEWEY, 1979, p.
198). O professor e o aluno estão em processos diferentes e de
responsabilidades na atividade educativa, ambos em processo de
experimentação e de aprendizagem.
A matéria de estudo “são os fatos observados, recordados, lidos,
discutidos, e as ideias sugeridas no desenvolver-se de uma situação
que tenha um objetivo”. O papel do professor é o de “proporcionar
o ambiente que provoque reações ou respostas e dirija o curso do
educando” (DEWEY, 1979, p.199). Mas, que matérias devem ser
consideradas para compor o itinerário formativo do aluno? Dewey
nos dá alguns indicativos dessa condução.

Todas as informações e matérias científicas sistematizadas


foram obtidas em condições de vida social e transmitidas por
meios sociais. Mas isto não prova que tudo seja de igual valor para o
fim de formar-se o espírito e prepararem-se as pessoas para membros da
sociedade atual. O plano de um currículo deve tomar em conta a adaptação
dos estudos às necessidades da vida atual em sociedade; a escolha deve
ser feita com o fito de melhorar a vida que levamos em comum, de modo
que o futuro seja melhor que o passado. Além disso, deve-se planejar
o currículo colocando-se em primeiro lugar as coisas essenciais,
e, em seguida, as que constituem requintes. Coisas essenciais
são as socialmente mais fundamentais, isto é, as relacionadas com a
atividade compartida pelos grupos mais extensos. E secundárias são as que
representam as necessidades de grupos especializados e trabalhos técnicos.
Existe verdade no dizer-se que a educação deve primeiro ser

184  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


humana e só depois profissional. Mas os que assim se exprimem
têm frequentemente no espírito, ao proferir a palavra humano, só
uma classe altamente especializada: a dos homens instruídos que
conservam as tradições clássicas do passado. Eles se esquecem de
que a matéria se humaniza na proporção em que se relaciona com
os interesses comuns dos homens, em sua qualidade de homens.
(DEWEY, 1979, p. 211/212, grifo nosso).

As assertivas de Dewey nos deixaram, por certo, dúvidas.


Algumas, conseguimos dirimir; outras, destinaremos para momento
posterior. Em relação ao currículo ser uma adaptação dos estudos
às necessidades da vida atual em sociedade, advoga um programa
de estudos que leve em conta “situações cujos problemas sejam
relevantes para a vida em sociedade e em que se utilizem as observações
e conhecimentos para desenvolver a compreensividade e o interesse
sociais” (DEWEY, 1979, p. 212). Essa sua proposição ancora-se em
suas preocupações políticas e éticas:

A conservação das sociedades democráticas depende,


particularmente, do costume de organizar-se um curso de estudos
de critério largamente humano. A democracia não pode florescer
quando os principais critérios para a escolha das matérias educativas são
os fins utilitários estreitamente concebidos para as massas, e, quando se
escolhem para a instrução mais elevada dos outros poucos, as tradições de
uma classe instruída especializada (DEWEY, 1979, p.212, grifo nosso).

Em suma, eis alguns referenciais delineados por Dewey que


acreditamos ser basilares para mudanças na forma de pensar o
currículo. E para a disciplina Filosofia, seu desenho teórico evidencia
a presença da Filosofia na relação constante com as outras disciplinas
curriculares. Na qualidade de disciplina no ensino médio, compreende-
se que seu currículo se voltará para as especificidades do alunato e
do conjunto das disciplinas curriculares presentes nele. A definição
da matéria de estudo do professor para sua formação e do alunato
está diretamente relacionada a essas especificidades. De forma
parcial, isso já acontece, mas em termos muito mais enciclopédicos,
considerando o conjunto das informações trabalhadas pelas

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 185


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
diferentes disciplinas ao mesmo tempo, sem a interligação entre os
conhecimentos e a realidade social, econômica e política que circunda
a cultura local. Então, a disciplina Filosofia pensa a parte e o todo
das relações formativas e educativas, atributo que também confere
às outras disciplinas no processo formativo do professor. O método
e o conteúdo não estão dissociados, portanto, estão intimamente
ligados às especificidades do currículo, o qual consideramos o
conjunto das necessidades formativas que envolvem o ambiente
educacional e a forma de responder a necessidades. A organização
da disciplina e o trabalho colaborativo entre os professores e alunos
devem ser um princípio e intensificados com clareza de fundamentos
éticos e políticos das ações, pois inevitavelmente estarão imbricados
no processo educativo, seja de forma consciente ou inconsciente. A
compreensão dessas relações e do processo assegura uma condução
educativa mais consciente e autônoma do papel do professor na
relação de ensino-aprendizagem. A proposta de Dewey para um
currículo põe em evidência os valores assumidos na prática, que, na
sua visão, devem ser de busca de uma vivência cultural do modo de
viver democrático.

O currículo em Rocha

Utilizamos como referencial de discussão para esta seção as


contribuições de Ronai Pires da Rocha, em seu livro Ensino de Filosofia
e Currículo, que traz elementos para possíveis diálogos com a proposta
de Dewey. As pontuações feitas nessa produção fazem referência à
reforma do Ensino Médio, norteada pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais da Educação (PCNs) e pelas Orientações Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (OCEMs), dispositivos normativos
anteriores à Lei nº 13.415/2017, a qual retirou a obrigatoriedade do
ensino de Filosofia e Sociologia.
Segundo Rocha (2008), o modelo de estudos curriculares
que predominou no mundo acadêmico americano e no Brasil, nas
décadas de 60 e 70, foi o currículo por objetivos. Essa visão de
currículo considera a educação “um meio para obtenção de certos

186  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


fins, que devem ser enunciados por meio de planos, na forma de
resultados esperados” (ROCHA, 2008, p.83). De maneira que
“os conceitos de Tyler, Taba e outros, combinados com a maciça
divulgação dos objetivos comportamentais de Benjamin Bloom,
dominaram a cena instrucional nos anos sessenta”(ROCHA, 2008,
p.84). Essa visão, com o passar do tempo, foi criticada e considerada
abusivamente racional e que privilegiava uma abordagem psicológico-
comportamentalista “passando ao largo dos aspectos sociais e
políticos da educação”(ROCHA, 2008, p.84).As mudanças de
perspectiva curricular só ocorreram do final da década de setenta
para início dos anos oitenta. Segundo Rocha (2008), “a incipiente
tradição brasileira de desenho curricular foi abortada, dando lugar
a estudos educacionais mais amplos, de fundo cultural, político,
social”. (ROCHA, 2008, p.84). Dessa forma, entende Rocha que

[...] Se de um lado elas representaram uma reação saudável


à assepsia do modelo tradicional, de outro elas foram
sobrevalorizadas e arrastaram consigo o pouco que havia de
avanços na área de ensino-aprendizagem. Creio que uma parte
substantiva da crise do ensino básico brasileiro se deve a essa
demissão dos estudos curriculares, sacrificado no altar das boas
intenções dos estudos “pós-pós-críticos”. (ROCHA, 2008, p. 87).

Rocha (2008), em seu empreendimento reflexivo, considera


possível se linkar o modelo de currículo por objetivos, dados os
diferentes aspectos da práxis educativa/educação. Nesse sentido,
ele caracteriza todos os aspectos integrantes do macroconceito de
educação, definido por Stenhouse:

[...] os processos de treinamento. Em todas as sociedades há


um lugar privilegiado para a aquisição dos mais diversos tipos
de capacidades que exigem treinamento, em situações de
aprendizado do uso de instrumentos para fabricar e utilizar
coisas [canoas, carroças, plantar, cozer alimentos, etc.]. [...] A
educação comporta também os processos de instrução, [...] que
se ocupa com a aprendizagem da informação e uma instrução
com êxito dá lugar à retenção. Exemplo disso são a memorização
da tabela periódica, datas históricas [...]. [...] A iniciação é uma

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 187


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
decorrência do fato de se viver em comunidade. [...] Na maioria
das escolas a iniciação constitui parte do ‘currículo oculto”, com
frequência em forma de mito à semelhança da “ponta do iceberg”.
[...] Por último, [...] [cita] a indução, que tem a seu encargo a
introdução das crianças e jovens nos sistemas de pensamento e
no conhecimento da cultura. Os processos de indução, quando
bem realizados, dão lugar à compreensão, tal como se evidencia
na capacidade do ser humano para captar relações e juízos e para
estabelece-los por si mesmo [...] (STENHOUSE apud ROCHA,
2008, p.88-90, grifo do autor).

Dos quatro aspectos do macroconceito mobilizados por Rocha,


de Stenhouse, os dois primeiros - treinamento e instrução- podem ser
adequados ao modelo de currículo por objetivos. Os outros dois
não são passíveis de adequações, no caso da iniciação, pela seguinte
razão: “[...] podem ter uma intenção, mas se torna extremamente
difícil estabelecer uma congruência entre a socialização a que de
fato estão submetidos os alunos e as intenções da escola [...]”
(ROCHA, 2008, p.89). Apesar disso, ele vê o problema maior de
adequação do modelo referido, da aplicação na área da indução
do conhecimento, pois “trata-se de um processo tão vasto quanto
sutil, que diz respeito ao processo de apropriação pelo ser humano
das complexas estruturas conceituais e inferenciais que caracterizam
nossos sistemas de pensamento e conhecimento” (ROCHA, 2008,
p.90). O autor acredita que, com esse mapeamento de situações, é
possível se dizer onde se pode trabalhar com o modelo de currículo
por objetivo e, assim, evitar-se “a repetição da tragédia dos anos
oitenta, quando, para se completar a crítica ao modelo, deu-se as
costas a ele”. (ROCHA, 2008, p.90). Ao que nos parece, o conceito
de educação, pela sua fragmentação, atende à especificidade de
interesses e a pressupostos filosóficos e pedagógicos de educação
a serem melhor esclarecidos e pesquisados em outro momento de
estudo.
Em estudos de Filosofia, Rocha (2008) identificou a existência
de momentos de puro treinamento e instrução, a exemplo, quando
se coloca a estudar uma língua estrangeira para ler um autor em sua
língua original, ou seja, o uso do treinamento e instrução é meramente

188  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


instrumental e dá-se em um contexto de conhecimento, o qual é, em
um de seus aspectos, uma organização de aptidões e informação
(STENHOUSE, p. 123 apud ROCHA, 2008, p.90).
Rocha (2008, p.91) compreende que a tarefa de caracterizar o
que é o currículo não é algo fácil. Todavia, ele arrisca em conceituá-
lo como: “o conjunto de iniciativas, dos meios e dos procedimentos
com os quais, nas palavras de Stenhouse, se tenta colocá-lo em
prática”. Isso implica em outras palavras:

[...] falar em conteúdos e métodos de ensino; temos de falar


sobre coisas mais particulares que dizem respeito aos problemas
decorrentes de sua aplicação concreta nas instituições escolares;
devemos indicar princípios de planejamento e de avaliação a ser
colocados em prática; e devemos, antes de tudo isso, falar de
uma proposta educacional [...]. (ROCHA, 2008, p.91).

No entanto, ele entende que a conversa sobre currículo é


delicada, pois “para a maioria dos educadores, escolados pelas
teorias críticas e pós-críticas [...] a expressão ‘currículo’ indica apenas
um espaço discursivo e de poder em torno da escola”. (ROCHA,
2008, p. 91). Justificou essa posição argumentando que a crítica
ao modelo tradicional de Tyler e Bobbit foi necessária, todavia, os
elementos constitutivos da relação pedagógica foram colocados de
lado, “colocando no centro do debate discussões sobre a reprodução
cultural e social, a natureza do poder, as relações sociais de produção,
etc”. (ROCHA, 2008, p.91-92).
Referindo-se a uma visão mais ampla de currículo, Rocha
voltou-se para o currículo em Filosofia, especificamente. Identificou
que as Orientações Curriculares para o Ensino Médio fazem
menção a uma lista de conteúdos como sugestão para compor o
currículo da disciplina em Filosofia. Os conteúdos se “distribuem
democraticamente entre temas filosóficos tradicionais e autores”,
que têm como “referência os temas trabalhados no currículo mínimo
dos cursos de graduação em Filosofia”. (ROCHA, 2008, p.78/80).
Essa é uma forma reducionista de conceber um currículo. Alguns
teóricos denominam “de concepção logocêntrica do ensino, na

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 189


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
medida em que ele gira em torno da lógica dos conteúdos”. (ROCHA,
2008, p.81).
Quanto à escolha dos conteúdos, ele entende que é certa a
decisão pela escola, sob certos aspectos, todavia “não é incompatível
com a oferta de sugestões precisas, modelos, estudos de casos, relatos
de experiências exitosas, enfim, tudo o que possa inspirar o trabalho
escolar e servir como uma sinalização”. (ROCHA, 2008, p.97).
Em relação aos avanços didático-pedagógicos, ele observa
que outras áreas de ensino das licenciaturas avançaram, contudo,
a Filosofia ainda não conseguiu, sequer, “estabelecer os primeiros
acordos conceituais” (ROCHA, 2008, p.97). Talvez uma das razões
seja pelo que ele mesmo apontou, o fato da recusa do ensino de
Filosofia em discutir instrumentos e metodologias de ensino.
Fruto de seu levantamento feito nas OCEMs, ele sintetizou
algumas das reivindicações das diferentes áreas do conhecimento
e de como a Filosofia poderia contribuir com elas, propondo as
seguintes frentes de trabalho:

a)Em primeiro lugar, aquela que surge pelo consenso que a


consciência crítica não é uma consequência do atacado das boas
intenções curriculares, mas sim do trabalho miúdo na sala de aula
de todas as atividades escolares; todas as áreas concordam com
a importância de esforços conjuntos de cada uma das disciplinas
para desenvolver o que chamamos aqui de alfabetização de
segunda ordem [científica], para a qual a Filosofia pode contribuir
com atividades específicas.
b)Disso decorre a necessidade de um trabalho muito bem detalhado
em Filosofia; pelo fato de ser uma disciplina comprometida com
a racionalidade da argumentação humana, ela pode contribuir
de forma decisiva para o incremento da atenção do aluno junto
aos seus próprios modos de argumentação, fato que sugere
conteúdos e atividades específicos da área de conhecimentos e
habilidades de lógica e linguagem.
c) O que se convencionou chamar de “contextualização” – por
exemplo, na forma como está exposto o tema no documento da
área de Biologia, no item “Perspectivas de ação pedagógica” –
não deve visar apenas o contexto sociocultural do aluno, mas
também o contexto específico de suas aprendizagens escolares.
A identificação de conteúdos propriamente filosóficos, mas

190  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


igualmente fundamentais em outras áreas do conhecimento
representa, nesse sentido, uma frente de trabalho curricular
particularmente promissora. (ROCHA, 2008, p.98).

Rocha (2008) ainda alerta sobre pontos cegos no pensamento


curricular brasileiro; no caso, refere-se às esperanças depositadas na
interdisciplinaridade e contextualização. Acredita que, diante das
magras caracterizações sobre interdisciplinaridade feitas nos PCNs,
“muita coisa pode ser feita a partir das potencialidades da Filosofia,
quando valorizada em sua capacidade de transitar pelas mais diversas
áreas da experiência humana” (ROCHA, 2008, p.100).
Assim, o ensino de Filosofia apresenta-se com inúmeros
desafios, entre eles do envolvimento dos professores de filosofia com
a questão do currículo, que supõe estudos didático-pedagógicos.O
modelo de currículo por objetivos e sua argumentação a partir do
macroconceito de educação em Stenhouse sobre a utilização desse
modelo levou à indicação da possibilidade de uso desse modelo
em algumas situações educativas, no caso, do treinamento e da
instrução. As duas outras situações não seriam adequadas, visto
que na iniciação existiria um “currículo oculto” e na indução seria
pela complexidade do processo que se reveste de “apropriação pelo
ser humano de complexas estruturas conceituais e inferenciais que
caracterizam o sistema de pensamento e conhecimento” (ROCHA,
2008, p.90). Não creio que o autor fechou questão em relação
aos processos indutivos serem ou não trabalhados por um modelo
de currículo por objetivos, apenas ponderadamente admitiu sua
complexidade e necessidade de estudos.
A visão que o autor traz dos estudos curriculares nos mostra
duas perspectivas: uma ligada ao modelo de currículo por objetivos
(Tyler, Bobbit, Taba29 e outros) e a outra que se reporta ao campo dos

O autor destacou a intenção diferenciada de Hilda Taba em relação ao


29

modelo de currículo por objetivos, nos situando que ela era uma intelectual
comprometida com ideaisprogressistas, na tradição de Dewey, e não uma
porta-voz do comportamentalismo (ROCHA, 2008, p.85). Esse destaque nos
levou a pensar que um modelo pode ter diferentes perspectivas e intenções,
mas a forma de implementação dará voz as ênfases que se quer resguardar num

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 191


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
estudos “pós-pós-críticos”. Em relação ao modelo de currículo por
objetivos, ele destaca a atuação diferenciada de Hilda Taba e esclarece
que ela “era uma intelectual comprometida com ideais progressistas,
na tradição de Dewey, e não uma porta-voz do comportamentalismo”
(ROCHA, 2008, p.85). Essa assertiva nos fez pensar que em um
mesmo modelo temos diferentes formas de fazer, de implementar um
currículo, de forma que Rocha, em seu estudo, denota uma busca em
estudar a exequibilidade desse modelo para o ensino de Filosofia. Por
outro lado, não há um nível de detalhamento por parte do autor da
outra perspectiva de modelo de currículo; ele cita que tem sido um
problema pelo abandono dos estudos curriculares, mas não detalha
se há outras formas de pensar o currículo, resguardando, inclusive, os
achados nos estudos curriculares das décadas de 60 e 70 e as novas
mudanças e exigências operadas no currículo a partir da década de
80. Essa lacuna pretendemos dirimir em outros estudos.
Prosseguindo nossa escrita, encaminhamo-nos para a
seção seguinte no intuito de estabelecer as (im)possibilidades de
aproximações entre as visões de Dewey e de Rocha sobre currículo
e o que tiramos de suas contribuições para o ensino de Filosofia em
escolas médias.

(Im)possibilidades de aproximações entre visões de currículo e suas


contribuições para o ensino de filosofia em escolas médias

Nesta seção, partimos das (im)possibilidades de aproximações


entre as visões de Dewey e de Rocha sobre currículo e tiramos desse
debate algumas contribuições para o ensino de Filosofia em escolas
médias.
No campo das possibilidades de aproximações entre Dewey
e Rocha, resgatamos a visão complexa que ambos passam da
discussão sobre currículo. Em Dewey, a discussão teórica e filosófica
desenvolvida na sua obra Democracia e Educação (1979) dá conta

modelo. É o que recaiu o modelo na prática com excessos de racionalidadese


engessamento das ações, além de outras críticas socializadas pelo autor.

192  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


da série de discussões necessárias à formação de um currículo na
educação formal. Os capítulos de sua obra são exemplos dessas
discussões: a educação como necessidade da vida; a educação
como função social; a educação como direção; a educação como
crescimento; preparação, desdobramento e disciplina formal; a
educação conservadora e progressiva; a concepção democrática
da educação; objetivos da educação; o desenvolvimento natural e a
eficiência social como objetivos; interesse e disciplina; experiência e
pensamento; o ato de pensar e a educação; a natureza do método; a
natureza da matéria de estudo; o brinquedo ou o jogo e o trabalho
no currículo; a significação da geografia e da história; as ciências nos
currículos; valores educacionais; trabalho e lazer; estudos intelectuais
e estudos práticos; estudos físicos e estudos sociais;naturalismo
e humanismo; o indivíduo e o mundo; aspectos vocacionais da
educação; filosofia da educação; teoria do conhecimento; e, por fim,
teoria da moral. Esses assuntos e outros compõem a discussão sobre
currículo, que muitas vezes na escola se reduz à discussão meramente
dos conteúdos das disciplinas sem qualquer elucidação de questões
que precedem a decisão e a elaboração do currículo.
Para mostrar a complexidade da discussão e do entendimento
de Rocha sobre a discussão de currículo, vamos proceder da mesma
forma com que ilustramos a complexidade de entendimento sobre
currículo em Dewey. Assim, mostramos o esforço intelectual do
autor na discussão, fazendo menção dos assuntos tratados em sua
obra Ensino de Filosofia e Currículo(2008): por uma transversalidade
pedestre; ambiguidades da filosofia; estudos curriculares e filosofia;
didática mínima; a teoria dos campos conceituais e a didática da
filosofia; filosofia e infância; um ensaio de classificação de áreas de
conhecimento; sobre filosofia e linguagem. Em um dos capítulos,
reservado especificamente para debater currículo e filosofia, ele
traz um conceito, que dá conta, também, da amplitude do assunto:
“um currículo é uma tentativa para comunicar os princípios e traços
essenciais de um propósito educacional, de forma tal que permaneça
aberto à discussão crítica e possa ser levado efetivamente à prática”.
(STENHOUSE, 1998, p.29 apud ROCHA, 2008, p.91).

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 193


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
Outra possibilidade de aproximação entre Dewey e Rocha é a
preocupação com relação à presença de objetivos na ação educativa.
Embora o modelo de currículo por objetivo caracterizado por Rocha
vá de encontro à visão educativa de Dewey, que defende que objetivos
são orientadores da ação educativa, meio e fim não se dissociam. Ou
seja, sua formulação ganha força, se estiver calcado nas necessidades
da ação educativa que se apresentam para aquela ação, e não em
objetivos externos àquela ação, ignorando-se o que se apresenta de
concreto para aquela realidade. Supomos que Rocha, também, tenha
a preocupação com a elaboração de objetivos na ação educativa,
no caso do ensino de Filosofia. Detectamos isso pelo seu empenho
em buscar elementos que consubstanciem o emprego do modelo de
currículo por objetivos feito por meio do macroconceito em educação
mobilizado de Stenhouse.
Em relação ao papel da Filosofia no currículo escolar, encontramos
algumas aproximações entre os filósofos. Situando o lugar da Filosofia
no currículo das escolas médias, Rocha (2008) propõe em uma das
frentes de trabalho que haja a contribuição do ensino de Filosofia
em atividades específicas, no que ele chama de alfabetização de
segunda ordem, a alfabetização científica, já que esse é ponto comum
reivindicado entre as diferentes disciplinas identificadas no documento
Orientações Curriculares para o Ensino Médio. A relação entre Filosofia e
Ciência é vista por Dewey como necessária à formação humana e ao
seu desenvolvimento. Sem relação de continuidade entre as duas, uma
tende a ser meramente abstrações sem relação com a realidade e o
outro, conhecimento, que é um recorte da realidade, uma ciência sem
uso consequente e social.
Em relação às impossibilidades de aproximações das visões de
currículo dos intelectuais, podemos, pela linguagem dos escritos,
identificar a concepção de educação que Dewey e Rocha utilizam.
A concepção de educação em Dewey tem por base o movimento
reflexivo que o indivíduo faz em sua experiência de vida, de
reconstrução e reorganização da sua experiência, em um movimento
constante e progressivo de aperfeiçoamento humano. Essa é a
proposição de educação de Dewey para uma sociedade que pretende

194  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


viver na prática o modo democrático. Em Rocha, a concepção de
Stenhouse se apresentou de forma fragmentária (ver na página 187
deste artigo). O macroconceito de educação, certamente, é uma boa
caracterização do conjunto da realidade em que a educação opera,
dualista e fragmentária, porém o que se viu foi a manutenção de um
formato educacional com as devidas adequações em relação a um
modelo de currículo (por objetivos).
Na proposição de Dewey, observamos que todos os seus
conceitos resguardam uma coerência na formatação de uma
educação democrática. O que é Filosofia, que tipo de sociedade se
pretende construir, que tipo de homem ou mulher que se pretende
formar, etc, não estão à margem de um currículo. Compreendemos
que essas discussões são inevitáveis, pois tudo está implicado, por isso
o currículo que se elabora e se faz na prática precisa estar alinhado à
cultura da comunidade escolar, daí a necessidade de muito diálogo e
de formação continuada.
A filosofia da educação em Dewey estabelece nítidas relações,
sem dicotomias, em termos teóricos, em sua opção filosófica de
pensar os problemas da sociedade do ponto de vista ético, político,
estético e educacional. Senão vejamos: os critérios de definição de
um currículo passam pela sensibilidade ética e política no trato dos
conteúdos, todas as disciplinas são importantes no processo de
aprendizagem. Mas sua importância está diretamente relacionada
com as necessidades dos que estão a se educar. Não são as necessidades
do mercado, mas aquelas que promovam a emancipação dos sujeitos
em relação ao projeto de se constituírem eternos aprendizes, na
busca de um autodesenvolvimento constante de si e das relações de
convivência com seus pares. Nesse sentido, compreendemos que a
escola deve se organizar em torno de uma matriz de necessidades,
que se encaminhem para um trabalho colaborativo e cooperativo de
construção de conhecimento e de aprendizado entre os professores e
entre professores e alunos. A contextualização e a interdisciplinaridade
são necessárias nesse empreendimento. Rocha, entretanto, não nos
parece acreditar na possibilidade de construção desses expedientes
entre as disciplinas escolares.

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 195


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
Considerações finais

Um currículo envolve um conjunto de entendimentos,


procedimentos e coerência dos sujeitos que fazem parte da
comunidade escolar em relação as suas finalidades e aos pressupostos
deliberados. Ele ganha materialidade física no Projeto Político
Pedagógico da escola ou de um curso e muitas vezes a elaboração
não acontece de forma coletiva. Às vezes, é coletiva, mas não é
aprofundada. Ocorre que, ao longo da sua implementação, muitas
propostas de currículo transitam em um mesmo espaço, sem um
alinhamento coletivo aos anseios formativos almejados.
A concepção de educação de Dewey e os conceitos que transitam
nessa compreensão sustentam um currículo que seja coerente com
um modo de viver e educar em constante aperfeiçoamento e que
devem testemunhar práticas escolares e de escolhas de conteúdos
para uma formação cultural consistente em valores democráticos
e equânimes. A concepção de Filosofia de Dewey é um referencial
para se repensar o método e a matéria, uma das dualidades
operadas no processo de ensino e aprendizagem em escolas médias.
O distanciamento da disciplina Filosofia das outras disciplinas
escolares tem afastado a possibilidade de contribuição efetiva no
processo de negociação e presença constante de reflexão entre os
professores. Os professores de Filosofia auxiliariam em muito no
processo de formação continuada dos seus pares para a quebra de
redutos e adesão a uma construção cooperativa do conhecimento
juntos com o alunato. Afinal, os desempenhos também têm a ver
com a estimulação não só de uma disciplina, mas do conjunto da
escola que faz uma política educacional localizada, daí a necessidade
de atuação em comunidade, alinhada em seus propósitos.
Rocha se apresentou com propensão a construir elementos para
adoção de um modelo de currículo por objetivos em sua proposta de
currículo para o ensino de Filosofia. No currículo de Ensino Médio,
a Filosofia precisa atuar considerando o currículo da escola, pois lá
se encontram pontos comuns entre as disciplinas do currículo com o
qual a Filosofia pode contribuir, a exemplo, a alfabetização científica.

196  Maria Genilda Marques Cardoso • Walter Pinheiro Barbosa Junior


REFERÊNCIAS:

DEWEY, John. Democracia e Educação. São Paulo, SP: Companhia


Editora Nacional, 1979.

ROCHA, Ronai Pires da. Ensino de Filosofia e currículo. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2008.

SOUZA, Rodrigo Augusto de; MARTINELI, Telma Adriana Pacífico.


Considerações históricas sobre a influência de John Dewey no
pensamento pedagógico brasileiro. Revista HISTEDBR On-line,
Campinas, n.35, p. 160-162, set/2009. Disponível em: << https://
periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/
view/8639620>>. Acesso em 2018.

VISÕES DE CURRÍCULO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO 197


DE FILOSOFIA EM ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO
O ENTENDIMENTO E A SIGNIFICAÇÃO
DOS CONCEITOS FILOSÓFICOS A PARTIR DA
SENSIBILIDADE DOS RECURSOS IMAGÉTICOS

Loise Ana de Lima

Introdução

O
presente artigo tem por escopo conduzir o leitor
a uma análise sobre como os recursos imagéticos
podem agregar valor ao entendimento e à significação
de conceitos filosóficos que envolvem questões do nosso cotidiano
como: a moral, a empatia, a política e outros.
Como pressupostos teóricos, utilizei as obras A Imaginação
educada, de Northrop Frye, autor canadense formado em Filosofia,
Inglês e Teologia; Invenção dos direitos humanos: uma história, da autora
Lynn Hunt, professora de história europeia na Universidade da
Califórnia; Poetic Justice. The literary imagination and public life, de Martha
Nussbaum, doutora em Filosofia pela Universidade de Harvard em
1972. O trabalho consta ainda de um relato de experiência da autora
desenvolvido na condição de docente de filosofia no ensino médio
sobre o uso da metodologia imagética.

O ENTENDIMENTO E A SIGNIFICAÇÃO DOS CONCEITOS FILOSÓFICOS 199


A PARTIR DA SENSIBILIDADE DOS RECURSOS IMAGÉTICOS
A proposta é convidar o leitor a refletir sobre o modo como
somos afetados pela literatura, cinema, quadrinhos, memes e outros
recursos. Pretendemos neste trabalho analisar se esses recursos
são capazes de despertar em nós uma maior sensibilidade e gosto
pelo aprender, além disso, discutiremos se é possível compreender
conceitos filosóficos com a interface desses mecanismos.

Filosofia, sensibilidade e recursos imagéticos

Em sua obra A imaginação Educada, o crítico literário canadense,


Northrop Frye, comentou que há mais de 25 anos leciona literatura
inglesa em uma Universidade e que se sente incomodado com algumas
questões que sempre pairam em sua cabeça, a saber: qual é o lugar
da imaginação no processo de aprendizagem? Frye responde ao problema
afirmando que a imaginação “é o poder de construir modelos
possíveis da experiência humana” (p.19). Além disso, ele considerou
que o próprio cientista não poderia ser visto como um pensador frio,
sem emoções, assim como o artista não deve ser reconhecido como
um exemplo de quem vive mergulhado na embriaguez emocional
sem fim, mas que essas duas instâncias se complementam: razão e
sensibilidade.
Diferentemente da ciência, aponta Frye, a literatura não
evolui, não se aprimora e não progride, será que por isto ela perdeu
sua função social? Não perdeu. A literatura fala a linguagem da
imaginação, que é a base da própria vida, posto que está presente em
nossas conversas e em outros momentos de nossa prática cotidiana.
De acordo com o autor, para usar as palavras com propriedade,
temos de usar também a imaginação pois, do contrário, seriam
apenas clichês frios e mecânicos que se afastam cada vez mais de
qualquer realidade.
Percebemos que há sempre um elemento da vida humana que
se reconhece em determinadas leituras. Conforme analisado pela
professora de história europeia na Universidade da Califórnia e
autora de vários livros, Lynn Hunt, em sua obra Invenção dos direitos
humanos: uma história. Hunt conta que no século XVIII, quando o

200  Loise Ana de Lima


filósofo francês Jean-Jacques Rousseau escreveu o romance Júlia, ou
a nova Heloísa, houve um verdadeiro incômodo que envolveu tanto
as pessoas mais simples quanto os intelectuais da época, pois, a
princípio, acreditavam ter relação com uma obra homônima que
retratou o romance entre Pedro Abelardo e Heloísa, que de modo
trágico foram separados. Essa obra chama a atenção especialmente
para um comentário realizado por Jean le Rond d’Alembert, que
escreveu a Rousseau para dizer que tinha “devorado” o livro e avisá-lo
de que devia esperar ser censurado num “país em que se fala tanto do
sentimento e da paixão e tão pouco se os conhece”. A leitura, neste
caso, foi além da informação, ela foi capaz de sensibilizar, de causar
um efeito no leitor que acabou por significa-la.
Muitas obras de arte têm o poder de provocar empatia entre
seus leitores e as personagens, que passam a se identificar com suas
trajetórias, alegrias e dores e, por isso mesmo, acabam por analisar
com maior eficiência todo o percurso vivido e atitudes vividos além
de reconhecerem-se em algumas dessas histórias.
Certas obras, por exemplo, contribuem para estender a empatia
e a discussão moral para além de fronteiras sociais tradicionais
entre os nobres e os plebeus, os senhores e os criados, os homens
e as mulheres, os adultos e as crianças, que passavam a perceber os
demais como seus semelhantes, capazes das mesmas emoções. Isso
demonstra que a obra é capaz de provocar no leitor um efeito que
pode incorrer significações de conceitos e da realidade.
Analisando o romance escrito pelo poeta inglês Samuel
Richardson, intitulado Pâmela: ou, a virtude recompensada30 (1740),
Hunt identifica que é quase impossível o leitor não sofrer com as
cartas escritas pela personagem Pâmela e endereçadas à sua mãe,
quando conta das investidas de seu patrão.

Ele me beijou duas ou três vezes, com uma avidez assustadora —


Por fim, arranquei-me de seus braços, e estava saindo do pavilhão,
mas ele me reteve e fechou a porta. Eu teria dado a minha vida por

30 RICHARDSON, Samuel. TAGES, Rafael. Pamela: OU A VIRTUDE


RECOMPENSADA. Editora Pedra Azul, 2016.

O ENTENDIMENTO E A SIGNIFICAÇÃO DOS CONCEITOS FILOSÓFICOS 201


A PARTIR DA SENSIBILIDADE DOS RECURSOS IMAGÉTICOS
um vintém. E ele disse, não vou lhe fazer mal, Pamela, não tenha
medo de mim. Eu disse, não vou ficar. Não vai, garota! Disse ele:
Você sabe com quem está falando? Perdi todo o medo, e todo o
respeito, e disse: Sim, sei, senhor, até demais! — Bem que posso
esquecer que sou sua criada, quando o senhor esquece o que é
próprio de um patrão, SOLUCEI e chorei com muita tristeza. Que
garota tola você é, disse ele: Eu lhe fiz algum mal? — Sim, senhor,
disse eu, o maior mal do mundo: o senhor me ensinou a esquecer
quem eu sou e o que me é próprio; e diminuiu a distância que o
destino criou entre nós, rebaixando-se para tomar liberdades com
uma pobre criada. 

No momento em que as cartas são lidas, a impressão que


temos é a de que estamos sofrendo tudo aquilo sentido pelas
personagens, pois vivemos com elas problemas como as diferenças
sociais, as ameaças sobre sua reputação representadas pelo poder
de seu patrão.
Tanto nesta obra, quanto na de Rousseau, estão presentes
elementos de discussões sociais, políticas e filosóficas que envolvem,
dentre outros elementos, um apelo à moralidade; ao fim das diferenças
sociais; à condição degradante de mulheres que são obrigadas a
viverem em situações humilhantes, como a que foi representada
pela personagem Pâmela que, analisando a conduta de seu senhor,
que ela supunha que fosse ilibada, mas que se revelou tão voraz e
instintiva, chegando até mesmo a se comparar a qualquer outro
homem de condição social inferior. Além disto, é possível discutir
também sobre o papel da mulher nos diversos âmbitos sociais, seu
processo de reconhecimento e as dificuldades que ainda hoje precisa
enfrentar para se firmar enquanto ser de direito.
Precisamos compreender porque a maioria dos conhecimentos
voltados aos fatos e à lógica não conseguem dar conta de todos
os aportes necessários para que os cidadãos se relacionem bem
com o mundo que os rodeia. Neste sentido, não será preciso
desenvolver uma imaginação narrativa? Sobre esse problema, a
filósofa estadunidense, Martha Nussbaum, descreve o modelo de
imaginação como a capacidade de estar no lugar de outra pessoa,
de interpretar com inteligência os relatos dela e entender seus

202  Loise Ana de Lima


sentimentos, seus desejos e suas expectativas. (NUSSBAUM, 2001).
Para esta autora, a literatura, mais precisamente o romance, pode ser
trabalhada interdisciplinarmente com textos “abstratos” próprios da
filosofia moral, com a finalidade de educar e, sobremaneira, cultivar
adequadamente as emoções. Nussbaum, atenta para os romances
porque em suas narrativas eles apontam para uma compreensão mais
aproximada de algumas ações humanas, sendo capazes de perceber
o homem em sua complexidade e temporalidade. Desse modo, ficar
somente nos textos filosóficos puros, sem a vivência da arte, seria
demasiadamente simples para oferecer o tipo de compreensão que
necessitamos em nosso mundo de relações complexas (NUSSBAUM,
2008).
A leitura filosófica é muito vasta, rica e instrutiva, mas nem
sempre tem um alcance desejado. Se durante o curso de filosofia
esta questão é recorrente, imaginemos a dificuldade encontrada por
boa parte dos educadores que ministram esta disciplina nos ensinos
fundamental e médio, em alcançar o interesse dos seus pupilos que,
não raramente, percebem-se dispersos em relação à compreensão
de certos conceitos filosóficos que se mostram para eles como
puras abstrações e, quiçá, por esta razão, dificulte o envolvimento e
entendimento dos mesmos.
A tarefa do filosofar não é das mais fáceis, pois além do
compromisso assumido pelo professor com a sua prática, também
é interessante que faça uma boa escolha dos métodos que serão
utilizados em sua investigação a fim de que consiga auxiliar os
estudantes a construírem pensamentos mais críticos e autônomos,
como descreveu Bengoechea:

[...] todo processo de produção de conhecimento é a manifestação


de uma estrutura de pensamento que inclui conteúdos filosóficos,
lógicos, epistemológicos, teóricos, metodológicos e técnicos que
implicam sempre modos de atuar e omitir.31

31 BENGOECHEA et al., 1978, p.26.

O ENTENDIMENTO E A SIGNIFICAÇÃO DOS CONCEITOS FILOSÓFICOS 203


A PARTIR DA SENSIBILIDADE DOS RECURSOS IMAGÉTICOS
Relatos da experiência

Neste ano de dois mil e dezessete, propus um trabalho


diferenciado aos meus alunos de nono ano, de uma determinada
escola privada, em Teresina-PI. Tínhamos a missão de estudar a obra
O Príncipe, de Maquiavel, e isso me rendeu um certo receio porque
não queria que meus alunos apenas lessem e memorizassem alguns
conceitos com o claro intuito de depois responderem a uma atividade
avaliativa. Na ocasião, lembrei da fala de um historiador e ensaísta
nascido na Bulgária em 1939, chamado Tzvetan Todorov, que em sua
obra A Literatura em perigo, disse: “na escola, não aprendemos acerca do que
falam as obras, mas sim do que falam os críticos”(p. 27). Todorov foi muito
sensato na sua postura enquanto educador, pois analisou como o
ensino da literatura vinha sendo trabalhado numa boa escola francesa,
além de avaliar sua própria prática pedagógica, e inquietou-se ao
perceber que quase sempre os alunos são interrogados apenas sobre
o papel de determinado personagem, os motivos de determinadas
ações, os objetivos alcançados pelos personagens e etc., mas não
eram ensinados a compreender a própria significação dessa busca e
o sentido da obra.
Enquanto professora de filosofia, percebi que o mesmo
problema sofrido na literatura era recorrente na abordagem de
obras filosóficas. Então, decidi lançar um desafio para a turma, que
foi entregar a eles a responsabilidade da leitura e interpretação da
obra O Príncipe, mas que além de trabalharem os principais conceitos
descritos nesta, também deveriam descrever o seu sentido e de que
forma foram afetados pela mesma. Feliz foi a surpresa que tive
quando os grupos começaram a se apresentar e percebi que não se
detiveram apenas aos conceitos contidos na obra, mas conseguiram
relacioná-la às nossas questões políticas e sociais, além de discutirem
propostas para possíveis propostas de relações entre o povo e o
governo.
Durante as apresentações dos grupos, alguns recursos
foram utilizados, tais como: produção de documentários, memes
e quadrinhos, entrevistas, seminários, júri-simulados, relatórios

204  Loise Ana de Lima


e teatro. Entretanto, tratarei aqui da experiência de trabalhar a
obra através de uma peça teatral. Os alunos que se encarregaram
de trabalhar com esse recurso, leram toda a obra, discutiram e
elaboraram um roteiro teatral rico e constando doze páginas que
intercalavam entre os conceitos descritos na obra e a análise da
sociedade brasileira atual.
A história apresentada, em seu início, retratava o cenário de uma
sala de aula onde todos estavam lendo a obra, mas que começavam
a apresentar algumas indagações sobre alguns conceitos e posturas
aclamadas por Maquiavel. A professora, diante das discussões, sugere
que melhor do que “traduzir” conceitos frios, era deixar a imaginação
voar e “viver” os exemplos. Daqui em diante a peça se desenvolve com
os exemplos e, ao final, os atores retornam ao ambiente de sala de
aula para finalizarem as discussões e apresentações dos conceitos
basilares presentes na obra.
O que mais me entusiasmou o foi o fato de que além de terem
conseguido compreender os conceitos, eles foram criativos por
reinventarem um novo modelo de Principado ou República, mas sem se
esquivar do contexto, e foram muito sensíveis ao discutirem questões
morais de extrema relevância, como por exemplo: os conceitos de
virtude, fortuna, relações sociais, corrupção, desigualdade social, o
papel das instituições religiosas, relações entre o povo e as autoridades
políticas, direitos e deveres dos cidadãos, dentre outros.
Com este trabalho procurei resgatar o universo da imaginação e
das emoções partindo de um movimento pedagógico comprometido
com a formação de sujeitos que saibam ler o que está oculto nos
objetos em análise e que priorizem o fortalecimento da vontade
coletiva, contribuindo para a formação de pensamentos cada vez
mais autônomos frente às tantas sugestões do mundo globalizado.
Confiamos que o uso de imagens e textos selecionados,
enquanto mediação no processo de ensino de Filosofia, pode se
tornar uma ferramenta pertinente, desde que as partes envolvidas
sejam capazes de interpretar o que é “dito” nessas imagens e que
sejam considerados seus contextos e propostas originais.

O ENTENDIMENTO E A SIGNIFICAÇÃO DOS CONCEITOS FILOSÓFICOS 205


A PARTIR DA SENSIBILIDADE DOS RECURSOS IMAGÉTICOS
Alguns textos, como por exemplo A Invenção dos Direitos Humanos,
da Hunt, reforçam um sentimento de empatia especialmente pela
personagem Pâmela que sofre abusos e outros absurdos nas mãos
do seu senhor. Veja que quando algumas imagens reforçam atos de
violência, modelos de exploração, desrespeito à honra e aos bons
costumes, as pessoas sentem necessidade de discutir sobre isso, de
procurar respostas que se aproximem das razões que conduziram
certas ações ou reações.
Não podemos ficar apáticos diante de destas provocações,
portanto, trabalhar este perfil de material na sala de aula pode
promover debates incríveis além de contribuir com uma compreensão
mais ampla dos conceitos filosóficos que têm relação direta com a
obra literária ou com a imagem em questão.

Considerações finais

A pretensão desse trabalho foi resgatar o universo da


imaginação e das emoções partindo de um movimento pedagógico
comprometido com a formação de sujeitos que saibam ler o que
está claro e outros que estão ocultos nos objetos em análise, e que
priorizem o fortalecimento da vontade coletiva, contribuindo para a
formação de pensamentos cada vez mais autônomos frente às tantas
sugestões do mundo globalizado.
Confiamos que o uso de imagens e textos selecionados,
enquanto mediação no processo de ensino de Filosofia, pode se
tornar uma ferramenta pertinente, desde que as partes envolvidas
sejam capazes de interpretar o que é “dito” nessas imagens e que
sejam considerados seus contextos e propostas originais.
Alguns textos, como por exemplo A Invenção dos Direitos Humanos,
De Hunt, reforçam um sentimento de empatia especialmente pela
personagem Pâmela que sofre abusos e outros absurdos nas mãos
do seu senhor. Acreditamos que quando algumas imagens reforçam
atos de violência, modelos de exploração, desrespeito à honra e aos
bons costumes, as pessoas sentem necessidade de discutir sobre isso,
de procurar respostas que se aproximem das razões que conduziram

206  Loise Ana de Lima


certas ações ou reações. Não podemos ficar apáticos diante destas
provocações, portanto, trabalhar com os recursos imagéticos e
textuais na sala de aula pode promover debates incríveis, além
de contribuir com uma compreensão mais ampla dos conceitos
filosóficos que têm relação direta com a obra literária ou com a
imagem em questão.
A empatia envolve os ingredientes tanto afetivo quanto
cognitivo. O termo surgiu do grego Empatheia (Em – “em” e Pathos-
“emoção, sentimento”) e foi citado no século XX, pelo filósofo alemão
cujo sistema filosófico é de base psicologista, Theodor Lipps, que
indicava a relação entre o artista e o espectador que projetava a si
mesmo na obra de arte.
O fato é que ensinar exige tanto conhecimento quanto empatia.
Os espectadores, nossos alunos, precisam sentir-se confiantes
naqueles que vão direcionar seus estudos e é interessante que entre
todos aja uma boa relação, um entrosamento, uma empatia que seja
a ponte para a construção de um conhecimento efetivo.
É importante que o professor consiga envolver seus alunos
durante as aulas e uma proposta para isto pode ser, por exemplo,
promover aulas que os conduzam à construção de um conhecimento
que seja interessante, que apresente significados e sentidos para eles;
que desperte no aluno um olhar investigativo, criativo e empático.
Essa proposta de trabalho apresenta um caráter interdisciplinar
entre a filosofia, os recursos imagéticos e a literatura, apontando
suas confluências e avaliando o modo dialético como a imagem e
a literatura povoam os trabalhos filosóficos, onde o saber se torna
mais rico a partir da mútua fecundação entre aquilo que sempre
esteve tão próximo: a razão e a imaginação.

REFERÊNCIAS

FRYE, Northrop. A Imaginação educada. Tradução Adriel Teixeira,


Bruno Geraidine e Cristiano Gomes. Campinas, SP: Vide Editorial,
2017.

O ENTENDIMENTO E A SIGNIFICAÇÃO DOS CONCEITOS FILOSÓFICOS 207


A PARTIR DA SENSIBILIDADE DOS RECURSOS IMAGÉTICOS
HUNT, Lynn, A invenção dos direitos humanos: uma história.
Tradução: Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras,
2009, p.36.

MAQUIAVEL, Niccolò dei. O Príncipe. Tradução de Ciro Mioranza.


São Paulo: Escala educacional, 2006.

NUSSBAUM, M. Poetic Justice: the literary imagination and public


life. Boston: Beacon Press, 2004.

NUSSBAUM, Martha Craven. Love’s knowledge: essays on


philosophy and literature. New York: Oxford University, 1990.

RICHARDSON, Samuel. TAGES, Rafael. Pamela: ou a virtude


recompensada. Editora Pedra Azul, 2016.

SONTAG, Susan. Against interpretation and other essays. USA:


Picador, 1ª ed., 2001.

TODOROV, Tzvetan. A Literatura em perigo. Trad. Caio Meira, 7ª


ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2017, 98 p.

208  Loise Ana de Lima


FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA
SALA DE AULA: UMA POSSIBILIDADE DA
VIVÊNCIA ÉTICA

Leônidas da Silva Elva de Sá

Introdução

O
s direitos são conquistas e acontecem com a
participação e luta das pessoas ao longo da história.
Em um momento da história conquistaram direitos
civis e políticos e em outros direitos econômicos, sociais, culturais,
ambientais e sexuais.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, com o genocídio
imposto pelo nazismo, a discussão mundial sobre os Direitos
Humanos, apontou a criação de mecanismos para que este tipo de
arbitrariedade não acontecesse mais na história da humanidade,
resultando assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948) e ratificada na Declaração Universal de Direitos Humanos
de Viena (1993). Esses dois documentos trazem uma concepção
que todos os conquistados ao longo da história da humanidade são
universais, e são para todos.

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA: 209


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA
A educação em Direitos Humanos deve ser um ponto chave
porque tem um papel central estratégico de promover os Direitos
dos Humanos para que estes possam vivenciar a liberdade e o
respeito a seus direitos e aos dos outros. Direitos esses que sempre
são negligenciados o tempo todo. É a educação que vai levar a
possibilidade de efetivação da liberdade, levando a tolerância e a
dignidade humana.
Entende-se que a escola é um local privilegiado para se tratar
das questões de desigualdades e das diferenças porque possuem
características diversas que compõe esse grupo de diversidades,
de diferenças, mas onde todos são iguais. Na convivência diária
dos estudantes estabelecem limites e desenvolvem a criatividade,
constroem relações de interações sociais, mas também desenvolvem
a competividade condicionando-os porque vivem juntos. A Filosofia
tem um papel importante na sala de aula para a formação dos
cidadãos porque abre novos caminhos para o espírito crítico.
Os valores morais, ética, solidariedade, responsabilidade,
democracia, respeito, dignidade são fatores essenciais para a
formação do cidadão consciente e crítico e a escola não deve
negligenciar com essa formação. A escola deve estar constantemente
preocupada com esses fatores no processo ensino aprendizagem. É
preciso formar os estudantes para que eles reconheçam a importância
das regras do grupo em que ele está inserido e respeitar as diferenças
de cada ser humano. Estudar a ética na escola é levar o estudante a
reconhecer que todos, com suas diferenças são todos iguais e fazem
parte do ambiente escolar e do processo educacional. Assim, está se
promovendo a Educação em Direitos Humanos.

Direitos humanos, uma síntese histórica.

O cerne dos Direitos Humanos é a luta contra a opressão e busca


da igualdade entre os seres humanos, tendo a justiça, a igualdade e
a liberdade como consequência dessa luta. O desejo de igualdade
entre os seres humanos surgiu desde as primeiras comunidades
humanas. Nesse sentido pode se dizer que a evolução da história dos

210  Leônidas da Silva Elva de Sá


Direitos Humanos tem passado por várias fases ao longo do tempo
para chegar em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Ao longo da história várias culturas contribuíram para a
formação para a normatização referente aos Direitos Humanos.
Segundo Ramos (2017, p.32), refere-se que essas diversas fases

[...] conviveram, em sua época respectiva, com institutos ou


posicionamentos que hoje são repudiados, como a escravidão,
a perseguição religiosa, a exclusão das minorias, a submissão da
mulher, a discriminação contra as pessoas deficiências de todos
os tipos, autocracia e outras formas de organização do poder e
da sociedade ofensivas ao entendimento atual da proteção de
direitos humanos.

O primeiro momento que dá início a afirmação dos Direitos


Humanos, começa na Antiguidade nos séculos VIII e II a.C. com
Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Confúcio na China, Dêutero-
Isaías em Israel. Todos tratavam de direitos individuais baseados
no amor e respeito ao outro. No Egito Antigo, Menes (3100-2850
a.C.) reconhece os direitos individuais. Babilônia (1792-1750) com o
Código de Hammurabi, primeiro código de condutas contempla os
direitos individuais. Ciro II, no século VI a.C. edita uma declaração
de boa governança. Confúcio, na China, séculos VI e V a.C. trás a
defesa do mor aos indivíduos em sua filosofia. O Budismo prega o
bem comum e uma sociedade pacífica sem prejudicar qualquer ser
humano.
Na Grécia Antiga houve a consolidação dos direitos políticos
com a participação direta dos cidadãos na política. Platão em a
República (400 a.C.) defende a ideia de igualdade e bem comum.
Aristóteles defende a ideia do agir com justiça.
Os direitos humanos, em um sentido próprio em que se
atribui a qualquer direito atribuído ao ser humano, receberam uma
grande contribuição em sua defesa na República Romana, com
a sedimentação do princípio da legalidade, concessão de direito à
propriedade, liberdade, dentre outros, reconhecendo a igualdade
entre os seres humanos. Seguindo o curso da história, podemos

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA: 211


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA
encontrar grandes contribuições no Antigo e Novo testamento,
os livros de Moisés (1800-1500 a.C.) pregam a solidariedade e
preocupação com o bem-estar de todos. O Antigo Testamento
apresenta uma preocupação com a necessidade de respeito a todos,
principalmente os mais pobres. O Cristianismo prega a igualdade e
solidariedade com o semelhante. Santo Agostinho e são Tomás de
Aquino, filósofos medievais também têm a preocupação igualdade
aos semelhantes.
Vale salientar que, segundo Ramos (2017, p.37) “as normas
que organizavam o Estado pré-constitucional não asseguravam ao
indivíduo direitos de contenção ao poder estatal”. É uma crítica que
chama a atenção, mas não invalida a importância que a História
Antiga dá na constituição dos direitos humanos.
Na Idade Média, a ideologia dominante teocêntrica imposta pela
Igreja Católica dava poder ilimitado aos governantes,fundamentado
na vontade divina. Surgem os movimentos reivindicando liberdade.
Com o Renascimento e a Reforma Protestante surge a crise da Idade
Média dando surgimento dos Estados Nacionais absolutistas. No
século XVII, na Inglaterra, o Estado absolutista foi questionado e
estabelecido na Magna Carta que o Rei não deveria cobrar impostos
sem a devida autorização do Parlamento. Após a Revolução
Gloriosa, em 1689, é editada a Declaração dos Inglesa de Direitos
que reduz definitivamente o poder autocrático dos reis. Em 1701, foi
aprovado o Actof Setettlement que reafirmava o poder do Parlamento e
necessidade do respeito a vontade da lei, assegurando os direitos dos
súditos contra a volta da tirania dos reis.
Durante o iluminismo surge o debate das ideias de Hobbes,
Locke e Rousseau no campo das ideias políticas. Thomas Hobbes
(Leviatan, 1651) nos aponta que o primeiro direito do ser humano
é usar o seu próprio pode de forma livre para preservação de sua
própria vida. O homem é livre de quaisquer restrições e não é
submetido a nenhum poder. Pode se afirmar que este texto trata de
forma clara os direitos humanos. Para Locke (Segundo tratado sobre
o governo civil, 1689), mesmo contra o Estado, defende os direitos
civis, bandeira de defesa dos direitos humanos na atualidade, e diz

212  Leônidas da Silva Elva de Sá


que o objetivo do Estado em uma sociedade de humanos é proteger
os direitos naturais dos homens que existem desde o seu estado de
natureza. O Estado deve preservar os direitos à vida, à liberdade e
à propriedade. Rousseau (Do contrato social, 1762), nos diz que a
vida em sociedade é fruto e um contrato entre homens livres e iguais.
Os governos devem representar a maioria respeitando aos valores da
vontade geral.
O mundo foi palco de grandes revoluções que, com suas
Declarações de Direitos marcaram a primeira afirmação histórica dos
direitos humanos. A Revolução Inglesa com Petition of Rights (1628),
trouxe garantias de determinados direitos individuais. E consagrando
a supremacia do Parlamento, veio o Bill of Hights (1689). A Revolução
Americana proclamou a independência das colônias (1776) e mais
tarde criação do novo Estado (1787), introduzindo vários direitos
na Constituição norte-americana. A Revolução Francesa instituía
Declaração Francesa dos Direitos do Homem e o Cidadão (1789),
consagrando igualdade e liberdade, nascendo a concepção moderna
de cidadania, que surgiu no intuito de eliminar os privilégios, direitos
feudais e a imunidade de castras. Teve como lema: Liberté, egalité et
fraternité, que significa liberdade, igualdade e fraternidade.
Beccaria, em 1764, apresentou vários problemas existentes
no sistema criminal vigente, em especial a utilização das leis para
benefício de uma minoria privilegiada, enquanto a maioria que vive
de forma precária sofre o descaso das autoridades. Para solucionar
esse problema, ele aponta a utilização de boas leis para evitar o
abuso da minoria e promover o bem-estar das pessoas através das
leis. Baccaria se mostra indignado com a legislação do seu tempo
e fala a respeito da tipificação de penas que eram desumanas, e os
processos penais cheios de falhas.

Não houve um que se erguesse, senão fracamente, contra a


barbárie das penas que estão em uso em nossos tribunais. Não
houve quem se ocupasse em reformar a irregularidade dos
processos criminais, essa parte da legislação tão importante
quanto descurada em toda a Europa (BECCARIA, 2017, p. 16).

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA: 213


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA
Em 1791, surge o projeto de autoria de Olympe de Gouges,
chamado Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Essa
declaração reivindica a igualdade de direitos de gêneros já que nas
declarações anteriores as mulheres não eram contempladas.
A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão
foi consagrada de caráter universal, afirmando a liberdade e
igualdade como direito de todo humano. O caráter universal foi o
grande alicerce para a afirmação dos direitos humanos no século
XX, que no ano de 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU)
aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e, é ratificada
na Declaração Universal de Direitos Humanos de Viena (1993).

A universalidade dos direitos humanos para uma educação humana

Nos discursos sobre os direitos humanos não é muito difícil de


perceber as controvérsias acerca de questões a partir da ideia de um
direito seja considerado universal, ou seja, que seja válido para todos
os homens.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
afirma esse caráter universal e que foi reafirmado na Declaração
de Direitos Humanos de Viena, de 1993, parágrafo 5º, “Todos os
Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e
inter-relacionados. A comunidade internacional deve considerar os
Direitos Humanos, globalmente, de forma justa e equitativa, no
mesmo pé e com igual ênfase”.
Por outro lado, mesmo que a universalidade dos direitos
humanos tenha sido reafirmada em Viena (1930), os relativistas têm
tido uma preocupação em construir uma doutrina para justificar
a inaplicabilidade da universalidade destes direitos, na defesa e
em respeito às diversas culturas dos povos em todo o mundo. O
pluralismo cultural não contempla a formação de uma moral e de
direitos universais. Donnelly (1997), citado por Piovesan, diz que há
várias correntes relativistas:

No extremo, há o que nós denominamos de relativismo cultural

214  Leônidas da Silva Elva de Sá


radical, que concebe a cultura como a única fonte de um direito
ou regra moral. (...) Forte relativismo cultural acredita que a
cultura é a principal fonte de validade de um direito ou regra
ou regra moral. (...) Um relativismo cultural fraco, por sua vez,
sustenta que a cultura pode ser uma importante fonte de validade
de um direito ou regra moral. (2004, p.61)

Cada povo possui seu discurso acerca dos direitos humanos,


que está ligado a cada cultura e história de cada povo, de cada
sociedade. Nessa perspectiva, Piovesan aponta que “a noção de
direitos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico,
cultural, social e moral vigente em determinada sociedade” (2004,
p.78). Bobbio comunga com esse relativismo afirmando que “não
se concebe como seja possível atribuir um fundamento absoluto a
direitos historicamente relativos” (2004, p.18). Para ele, não se deve
ter medo do relativismo porque a constatada pluralidade religiosa e
moral é construída historicamente, e sujeita a modificações.
Diante destas duas perspectivas antagônicas, é necessária
uma análise rigorosa acerca dos direitos humanos para encontrar a
requerida universalidade. Os argumentos dos relativistas, contrários
à universalidade, segundo Pinheiro, são “fundamentados” através
de análises factuais e empíricas da história, e não ultrapassam
a fronteira da ciência. Não há como negar que o ser humano
está inserido em um contexto histórico. Não se pode viver fora da
história nem compreender o mundo fora dela. Mas também não se
deve aceitar a justificativa dos fundamentos referentes aos valores
morais tendo como referência única a história e a cultura. A análise
aqui proposta será numa perspectiva filosófica. “A filosofia por seu
turno seria a passagem do visível para o invisível, ou seja, procurar
por aquilo que está além do visível, aquilo que sustenta e garante o
visível” (PINHEIRO, 2006, p.301). A fundamentação filosófica leva,
além do empírico, a compreender o que a coisa faz ser a coisa.
Diante disso, é necessário entrar em numa discussão filosófica
acerca dos direitos humanos para se escapar do simplismo ou pouca
reflexão sobre o assunto e para isso é necessária fundamentação

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA: 215


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA
filosófica porque uma visão ingênua não mostrará a sua
universalidade.

É comum nos depararmos com contra-argumentos que buscam,


através da análise fatual e meramente empírica da história,
afirmar que uma possível universalização dos Direitos Humanos
não passa de quimera, ou pior, de retórica. Ora, cabe-nos fazer
uma breve análise daquilo que se propõe quando buscamos
pensar Direitos Humanos apenas a partir de dados históricos.
Mas, também, nada de impróprio é encontrado quando
mostramos a realidade atual e contrapomos sua efetividade com
caráter necessário e universal dos Direitos Humanos (PINHEIRO,
2006, p.300)

Diante da citação, Pinheiro propõe a possibilidade de


verificação filosófica da universalidade dos Direitos Humanos.
A fundamentação baseada em experiências empíricas e fatuais é
papel da ciência. Dessa forma, não se pode ficar parado “em uma
visão ingênua sem ligação entre uma ideia, um ideal e a realidade
que estamos inseridos.” (Pinheiro. 2006 p.301). Para Pinheiro “A
ingenuidade do pensamento não filosófico tenta justificar sua
ignorância através dos fatos meramente visíveis, ou seja, foge daquilo
que é próprio da Filosofia, para através de argumentos sofísticos,
ocultar-se por trás dos fatos empíricos”(2006, p.301).
A análise filosófica é de fundamental importância porque
é a partir dela que se pode verificar a universalidade dos Direitos
Humanos. A partir dessa análise pode se encontrar a ideia de
universalidade e de necessidade. É a Filosofia que tem esse papel
rigoroso nessa análise. Ao encontrar a universalidade encontra-se
também a importância para a formação humana.

Quando nos referimos ao conceito de universalidade e à


sua importância na formação humana, estamos ao mesmo
tempo propondo um alargamento da ideia de individualismo e
coletivismo. Universalismo implica o reconhecimento de todos e
não apenas de alguns, como iguais. Dessa forma, a igualdade,
diferentemente do que se pode pensar num primeiro momento,
não significa uniformização. Com isso, o princípio que deve reger

216  Leônidas da Silva Elva de Sá


a ideia de universalização é a liberdade (PINHEIRO; FRANKLIN,
2010, p. 84).

Segundo Pinheiro, é necessário buscar essa fundamentação


para não se permanecer com uma visão ingênua. Recorrer à filosofia
é encontrar um caminho possível com justificação racional. “A
filosofia, ao verificar o grau de acerto, de verdade ou de verdadeiro
de fato, baseia-se, necessariamente, em conceitos que pretendem
uma universalidade” (PINHEIRO, 2006, p.301).
A fundamentação dos direitos humanos deve ser feita além das
visões históricas e particulares de mundo e de uma cultura. É bem
verdade que não se pode negar e concordar com os relativistas no
que diz a respeito ao fato de que não se pode desconectar da história
e da cultura de um povo, que é construída de forma contingente.
Mas também é verdade que a história e a cultura não são aspectos
suficientes para fundamentar-se uma ordem comum de valores
que justifica a concessão de um conjunto de conceitos jurídicos e
práticas políticas que tem como objetivo a proteção do ser humano,
independentemente do lugar, tempo, história e cultura.
Na busca da fundamentação filosófica dos direitos humanos,
Pinheiro recorre a Kant, com sua célebre definição de direito: “o
direito é um conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um
pode conciliar-se com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal
da liberdade” (2006, p. 308). Esse conceito de direito estabelecido
por Kant aponta que não há como falar em direito sem reivindicar
uma universalidade. Cada pessoa, em sua liberdade, pode viver com
outra, sob uma lei que favoreça a universalidade.
Quando se reflete sobre o caráter justo de uma lei (não
será discutido aqui esse caráter) sobre sua fundamentação e sua
inteligibilidade, não é possível edificar-se no empírico. Há uma
necessidade de encontrar os princípios e finalidades dessa lei,
levando em conta a que ela se destina. É por esse viés que os direitos
humanos apresentam sua requerida universalidade. Para Hunt, os
direitos humanos requerem três qualidades ordenadas: “devem ser
naturais (inerentes nos seres humanos), iguais (os mesmos para todo

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA: 217


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA
mundo), e universais (aplicáveis por toda parte)” (2009, p.19). Para
a pensadora americana, para que os direitos sejam humanos, todos
os seres humanos no mundo inteiro devem possuí-los igualmente,
sem distinção.
Para os autores, quando se pensa na uniformização, afasta-se a
liberdade. São duas ideias diferentes e seguem afirmando que

O princípio da universalidade está afinado com a ideia de


liberdade no sentido de sermos livres para escolhermos o caminho
que considerarmos melhor. Ao contrário da uniformização, onde
somos obrigados ou coagidos para agirmos desta ou daquela
maneira, a liberdade da universalidade nos dá a possibilidade de
compreendermos quais ideias que nos levam a tal deliberação
(PINHEIRO; FRANKLIN, 2010, p. 84).

Sendo assim, qualquer ato que seja contrário à uniformização


estará ferindo a lei o costume e a ação conforme a uniformização
estará ferindo o princípio da universalização entrando em desacordo
com o sentido da humanidade e liberdade. Ser livre é escolher e decidir
deliberadamente, de forma que se escolhe aquilo que se considera
melhor. Segundo Pinheiro e Franklin, A universalização dos Direitos
Humanos, a partir da sua compreensão, pode-se fazer relação com
os conceitos de tolerância respeito e dignidade humana.

Se a universalização mantém a aproximação e relação com a ideia


de liberdade, então mais clara fica sua ligação com o conceito
de tolerância. Só é possível tolerar, no sentido amplo do termo,
quando compreendemos que, por meio da liberdade, somos
livres para escolhermos ser ou fazer. A liberdade, trazida à luz pela
universalização, garante a todos o poder de escolha e deliberação
(PINHEIRO; FRANKLIN, 2010, p. 84).

Sendo assim, com a ideia de universalização traz junto a


garantia de respeito e dignidade do ser humano. Cada um garante
o seu respeito e o respeito ao outro, sendo assim, a educação em
Direitos Humanos promoverá uma educação humana.

218  Leônidas da Silva Elva de Sá


Educação em direitos humanos uma possibilidade da vivência ética

Os direitos humanos concebem garantias mínimas que possa


assegurar as pessoas à convivência pacífica entre os organismos
sociais e a promoção do valor humano que objetiva proteger os seres
humanos de tudo que venha ofender e a sua dignidade. (CORDEIRO;
GOMES, 2017). A educação deve ser o ponto de partida para o
exercício dos direitos humanos. É através da educação que se pode
promover os Direitos Humanos. Franklin nos aponta a importância
da educação em Direitos Humanos.

Comunicar um direito é esclarecê-lo diante do outro. No entanto


estes outros são sempre iguais, pois partilham dos mesmos
direitos. Com isso, é possível perguntar: Por que comunicar algo
que já se sabe? Porque mesmo sabendo é preciso aprender a viver
com esse saber. A comunicação de um direito não garante que ele
será respeitado e compreendido como necessário. Por isso, a via
oportuna da garantia de responsabilidade dos Direitos Humanos
passa, necessariamente pela educação. Se ela comunica e ensina
como viver sob esses direitos, também ensinará a respeitá-los,
elegendo-os como fundamentais à convivência entre as pessoas e
as nações. (2006, p.213)
Pode-se dizer que a fórmula de fazer humanidade é a educação.
Se aprende a ser humano. Viver em comunidade necessita de
aprendizagem, como também ver o outro como humano.

É ao nascer que nos tornamos parte de uma comunidade, mas


o espaço de cada indivíduo precisa ser conquistado através da
compreensão de nós mesmos como humanos. Tornar-se humano
é buscar em si mesmo o que lhe é próprio, mas isso, não pode ser
conquistado sem educação (FRANKLIN, 2006, p.215)

É através do processo educativo que se deve uma boa


constituição moral dos estudantes que irão assumir seus próprios
direitos e deveres durante suas vidas. É a escola que deve promover
uma educação que confie a experimentação e defesa dos direitos e
deveres dos estudantes. É preciso a escola experimentar a educação
em Direitos Humanos.

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA: 219


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA
A escola tem uma função social de grande importância na
construção de um projeto de uma sociedade participativa na
produção de sua existência, como sujeitos de direitos, ativos na
realidade que está inserido e que se constrói historicamente. A escola
deve promover uma formação aos seus alunos para a convivência
numa cultura de diversidade e de direitos.
A escola de ensino médio está composta de jovens adolescentes
de diferentes conhecimentos, valores culturais, interesses e desejos.
Diferentes raças, orientações sexuais, religiões, grupos etários,
necessidades educacionais. Diferentes maneiras de ser, de pensar,
de viver e de existir. Todos e todas ocupando e compartilhando um
mesmo espaço. Aprender a conviver com a diversidade não é uma
tarefa fácil, porque nos desafia a questionar constantemente nossos
valores, a rever posicionamentos e a incorporar novas crenças àquelas
já existentes e muitas vezes cristalizadas dentro de nós.
Com a conquista da universalização do ensino as escolas
recebem novos grupos populacionais que se encontravam excluídos
de sua rotina. Surge necessidade da escola inclusiva e essa atuação
implica a diversidade. Diante disso, a escola tem um grande desafio.
Promover um ambiente escolar que as diferenças são valorizadas, que
elimine as desigualdades, que desenvolva o respeito e solidariedade.
Trata-se das relações e de valores democráticos, os quais devem ser
mais do que conteúdo de aulas, devem ser maneiras de direcionar a
vida no interior da escola. Neste contexto, configura-se um imenso
desafio que é educar em Direitos humanos.

Educação em Direitos Humanos configura-se como uma


necessidade das sociedades contemporâneas ao orientar suas
práticas e relações cotidianas por valores que reconhecem a
dignidade e a diversidade humana. Adotar a Educação em Direitos
Humanos como eixo vertebral das práticas escolares significa
priorizar a formação integral dos/as estudantes por meio de três
dimensões: acesso ao conhecimento e informações relativas aos
Direitos Humanos; vivência de valores relacionados aos Direitos
Humanos; e ações de acordo com os valores e os conhecimentos
apreendidos.(Klein, 2017)

220  Leônidas da Silva Elva de Sá


A escola não é um espaço somente para o conhecimento,
mas também é uma comunidade onde há convivência e são
estabelecidos laços de solidariedade humana que leva a promoção do
desenvolvimento humano, suas potencialidades, atitudes, valores em
favor de consciência e a busca para garantia dos Direitos Humanos. É
um espaço para a educação. Esses direitos têm ocupado um lugar na
escola em todos os níveis da educação básica, seja a violação desses
direitos ou a luta pela sua garantia e manutenção. Diante disso, a
escola tem um papel fundamental em preparar os jovens estudantes a
se tornarem sujeitos ativos e engajados na luta pelo reconhecimento
e garantia dos Direitos Humanos, onde os estudantes se deparam
com realidades diversas, como desigualdades e injustiças sociais, que
são violações dos Direitos Humanos.
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos nos
aponta que

A educação em direitos humanos deve abarcar questões


concernentes aos campos da educação formal, à escola,
aos procedimentos pedagógicos, às agendas e instrumentos
que possibilitem uma ação pedagógica conscientizadora e
libertadora, voltada para o respeito e valorização da diversidade,
aos conceitos de sustentabilidade e de formação da cidadania
ativa. (PNEDH, 2008, p.31).

E que o processo formativo

“pressupõe o reconhecimento da pluralidade e da alteridade,


condições básicas da liberdade para o exercício da crítica, da
criatividade, do debate de ideias e para o reconhecimento,
respeito, promoção e valorização da diversidade. Para que esse
processo ocorra e a escola possa contribuir para a educação em
Direitos humanos, é importante garantir dignidade, igualdade
de oportunidades, exercício da participação e da autonomia aos
membros da comunidade escolar.(PNEDH, 2008, p.31).

E deve ser promovida com as seguintes dimensões:

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA: 221


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA
a) conhecimentos e habilidades: compreender os direitos
humanos e os mecanismos existentes para a sua proteção, assim
como incentivar o exercício de habilidades na vida cotidiana;
b) valores, atitudes e comportamentos: desenvolver valores e
fortalecer atitudes e comportamentos que respeitem os direitos
humanos; c) ações: desencadear atividades para a promoção,
defesa e reparação das violações aos direitos humanos.(PNEDH,
2008, p.32).

Mesmo a educação em Direitos Humanos está incluída nos


documentos oficiais, ainda não é uma realidade no currículo das
escolas brasileiras. Aprender a viver com a diversidade é um dos
principais desafios da atualidade. No espaço escolar os estudantes
se deparam com todo tipo de diferença: de raça, gênero, religião,
valores, configurações familiares, ritmos de aprendizagem, dentre
outros. “A postulação de uma temática voltada aos Direitos pretende
oferecer aos alunos a possibilidade de avaliar, analisar, pesquisar e
refletir sobre a necessidade de obediência às regras mais fundamentais
da convivência humana” (PINHEIRO E FRANKLIN, 2010, p.91).
Não deve ser um estudo que irá oferecer um conjunto de
conteúdo com regras que devem ser obedecidas pelos estudantes,
mas que seja um estudo que proporcione aos estudantes compreender
os motivos e as necessidades das regras, descobrindo o valor da
universalidade e que fazem partes de uma comunidade de humanos
onde todos livres e iguais e que essa liberdade é o fundamento
essencial da humanidade.
Para Pinheiro e Franklin (2010, p.94)

Para buscar a vivência escolar significativa, os jovens não


devem ser estimulados apenas alcançar os índices satisfatórios
nas disciplinas curriculares, devem também vincular-se a
compromissos assumidos como indivíduo e grupos, devem
estar voltados a formação integral de sua persona e a escolha
deliberada de valores que sustentam suas ações.

Os estudantes devem ser esclarecidos sobre sua individualidade


e a comunidade e o princípio que deve agir. Para resolver essas

222  Leônidas da Silva Elva de Sá


questões tem que ser a partir das discussões filosóficas sob as
perspectivas morais e éticas. Quando se fala em humano não
se deve esquecer as fragilidades que este possui e as vezes as
dificuldades que tem de lidar com as emoções e as dificuldades
que pode levar agressões que são incorporadas a vivencia humana.
É necessário que se desperte a compreensão de “conceitos como
poder, violência, tolerância e medo, medo do diferente, medo do
render-se ao diferente, medo da rejeição. (PINHEIRO; FRANKLIN,
2010, p.96). Pela educação em Direitos Humanos em sala de aula,
através da Filosofia, será possível proporcionar vivencias éticas
autênticas aos estudantes.

Considerações Finais

Diante das questões abordadas ao logo deste trabalho, mostram


que a Educação em Direitos Humanos é de fundamental importância
na contribuição da formação dos estudantes para o exercício da
cidadania. Uma educação voltada aos valores éticos e morais,
tornando mais humano o ser humano. A escola precisa urgentemente
preparar os estudantes para se tornarem sujeitos ativos e engajados
na luta pelo reconhecimento e garantia dos Direitos Humanos. Os
estudantes vivem com realidades diversas, como desigualdades e
injustiças sociais, que são violações dos Direitos Humanos.
A Filosofia como disciplina na sala de aula deve desempenhar
um papel essencial na educação em Direitos Humanos porque
pode fazer com que o estudante perceba que somos todos
iguais. Podemos ser diferentes, mas algo comum a todos é que
somos dotados de liberdade, que é o fundamento essencial da
humanidade. A liberdade é o que define a universalidade dos
Direitos Humanos e que garante a tolerância e a dignidade
humana, que são valores que promoverão uma sociedade justa e
solidária. A educação em Direitos Humanos na sala de aula através
da filosofia com a inserção da ética faz com que o estudante seja
conduzido ao pensamento reflexivo e crítico.

FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS NA SALA DE AULA: 223


UMA POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA ÉTICA
REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 3 ed. São Paulo: Edijur,
2017.

BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Comitê


Nacional de Educação em Direitos Humanos. – Brasília: Secretaria
Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério
da Justiça, UNESCO, 2007.

CORDEIRO, Carlos José, GOMES, Josiane Araújo. Educação em e


direitos humanos. In: CORDEIRO, Carlos José, GOMES, Josiane
Araújo. Diálogo entre educação e direitos humanos. São Paulo:
Editora Pillares, 2017.

FRANKLIN, Karen. Educação: uma forma de promover os Direitos


Humanos? In: AGUIAR, Odílio; PINHEIRO, Celso de Moraes;
FRANKLIN, Karem. Filosofia e Direitos Humanos, Fortaleza: Editora
da UFC, 2006.

PINHEIRO, Celso de Morais. O caráter universal e necessário


dos Direitos Humanos. In: AGUIAR, Odílio; PINHEIRO, Celso
de Moraes; FRANKLIN, Karem. Filosofia e Direitos Humanos,
Fortaleza: Editora da UFC, 2006.

PINHEIRO, Celso de Moraes; FRANKLIN, Karen. Filosofia e Direitos


Humanos: Desafio para o Ensino Médio. In: HENNING, Leoni
Maria Padilha. Pesquisa, ensino e extensão no campo filosófico-
educacional: debate contemporâneo sobre educação filosófica.
Londrina: EDUEL, 2010.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4ª


edição. São Paulo: Saraiva, 2017.

224  Leônidas da Silva Elva de Sá


ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E
EMANCIPAÇÃO DA CLASSE SUBALTERNA
NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA

Vagner Marcos Costa Lima

INTRODUÇÃO

I
nicialmente o que motivou a pesquisa para o presente
artigo, foi o questionamento sobre a possibilidade da
difusão da filosofia para as massas, a democratização do
saber filosófico, pois, há um entendimento bastante disseminado que
a filosofia é um conhecimento erudito e, portanto, é uma atividade
específica de um grupo privilegiado, isto é, o homem simples, da
camada popular, com todas as suas deficiências, não teria acesso a
tal conhecimento. Outro questionamento presente é: Qual o papel
que a escola deve desempenhar na vida do jovem?
Na tentativa de teorizar esses problemas, analisaremos a
concepção de escola apresentada por Althusser, em seguida, seguir a
perspectiva de Antônio Gramsci, pensador marxista, para encontrar
indicações para a solução dessas indagações no cotidiano escolar.
No pensamento de Althusser (1985), a escola aparece como
um aparelho utilizado pelo Estado para se perpetuar as diferenças

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE 225


SUBALTERNA NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
de classe. O Estado, sendo dominado pela burguesia, a classe
dominante, utiliza a escola para inculcar as ideologias da classe
dominante. Nesse sentido, ela não assume outra função a não ser a
de reproduzir essas ideologias.
Encontramos em Gramsci (2001), uma visão um pouco mais
otimista da escola. Mesmo sabendo que a educação reproduz os
interesses da classe dominante, ele indica que a escola e o professor
pode contribuir decisivamente na elevação cultural e intelectualmente
da classe subalterna. O homem comum, que tem sua concepção
de mundo, uma filosofia espontânea, pode se conscientizar do seu
papel dentro da história, que encara os problemas criticamente e age
por meio de teoria.

Breves considerações: Althusser e a escola

Louis Althusser (1970) vê a escola como aparelho ideológico


moderno do estado, substituindo o serviço que era da igreja, o
aparelho ideológico religioso. A escola é a responsável pela formação
dos sujeitos no modelo capitalista, inculcando as ideologias
dominantes, através dos discursos escolares. Portanto, na visão de
Althusser, a escola não é um espaço neutro, ela atua sob orientações
e normas do Estado, e está a serviço da classe dominante, defendo
seus interesses, e inculcando na classe dominada, as ideias burguesas.
É importante destacar que o filósofo francês, concebe a condição do
homem como um sujeito alienado, formada pela ideologia, o que
o torna submisso ao sistema. Nesse sentido, o objetivo principal
do Estado é a reprodução das relações de produção e, a escola, é
um dos aparelhos mais importantes na reprodução da ideologia
da classe dominante, tendo o papel de tornar natural a divisão do
trabalho, mantendo a classe explorada sendo sempre subalterna.
Consequentemente,

[...] formar o trabalhador significa, não propriamente, ou não


apenas, qualificar seu trabalho, mas tornar, para o indivíduo,
natural e necessária a equivalência entre a qualidade do trabalho
e a quantidade da força de trabalho; tornar natural e necessária a

226  Vagner Marcos Costa Lima


venda da força de trabalho; a submissão às normas de produção,
à racionalidade da hierarquia na produção, etc. (ALBUQUERQUE
in ALTHUSSER, 1985, p. 12).

Seguindo Barbará Freitag, a escola a medida que qualifica


o homem, também, “inculca-lhes uma certa ideologia que os faz
aceitar a sua condição de classe, sujeitando-os ao mesmo tempo ao
esquema de dominação vigente”. (FREITAG, 1980, p. 34), portanto,
a escola é produtora da força de trabalho. Desse modo, Althusser
afirma:

Ora, é através da aprendizagem de alguns saberes práticos (savoir-


faire) envolvidos na inculcação massiva da ideologia da classe
dominante, que são em grande parte reproduzidas as relações de
produção de uma formação social capitalista, isto é, as relações de
explorados com exploradores e de exploradores com explorados.
Os mecanismos que reproduzem este resultado vital para o
regime capitalista são naturalmente envolvidos e dissimulados
por uma ideologia da Escola universalmente reinante, visto que
é uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante:
uma ideologia que representa a Escola como um meio neutro
(ALTHUSSER, 1970, p. 66- 67).

A escola qualifica, porém é serva dos interesses burgueses,


como instrumento de dominação, não de forma repressiva, utilizando
da violência, mas por meio de ação pedagógica consegue imprimir a
ideologia da classe dominante. A perspectiva de Althusser em relação
a escola é bastante pessimista. Para o filosofo francês, nenhum outro
aparelho ideológico do Estado dispõe

Desde a pré-primária, a Escola toma a seu cargo todas as crianças


de todas as classes sociais, e a partir da Pré-Primária, inculca-lhes
durante anos, os anos em que a criança está mais ‘vulnerável’,
entalada entre o aparelho de Estado familiar e o aparelho de
Estado Escola, ‘saberes práticos’ (des ‘savoirs - faire) envolvidos
na ideologia dominante (o francês, o cálculo, a história, as
ciências, a literatura), ou simplesmente, a ideologia dominante
no estado puro (moral, instrução cívica, filosofia). Algures, por
volta dos dezesseis anos, uma enorme massa de crianças cai ‘na

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE 227


SUBALTERNA NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
produção’: são os operários ou os pequenos camponeses. A outra
parte da juventude escolarizável continua: e seja como for faz um
troço do caminho para cair sem chegar ao fim e preencher os
postos dos quadros médios e pequenos, empregados, pequenos e
médios funcionários, pequeno-burgueses de toda a espécie. Uma
última parte consegue acender aos cumes, quer para cair no semi-
desemprego intelectual, quer para fornecer, além dos ‘intelectuais
do trabalhador coletivo’, os agentes da exploração, (capitalistas,
managers), os agentes da repressão (militares, polícias, políticos,
administradores) e os profissionais da ideologia (padres de
toda a espécie, a maioria dos quais são ‘laicos’ convencidos)
(ALTHUSSER, 1970, p. 65).

Então, pelo exposto, não é possível encontrar no pensamento


de Althusser outra função da escola, a não ser a de reproduzir a
ideologia da classe burguesa, que tem o domínio do Estado. A escola
apenas serve como aparelho ideológico do Estado, fazendo a classe
subalterna ter consciência de sua submissão.

Uma nova escola perspectivada por Gramsci

Antonio Grasmci, filósofo marxista, nascido em 1891 numa


região pobre da Itália, sendo de família numerosa e humilde. Foi um
ativista político, jornalista e intelectual italiano, e um dos fundadores
do Partido Comunista Italiano. Considerado um estudante brilhante,
entrou aos 21 anos na Universidade de Turim para estudar letras.
Foi preso durante o regime fascista na Itália, sendo condenado
a viver recluso durante 20 anos, como afirmou com franqueza o
promotor: “devemos inutilizar por 20 anos esse cérebro perigoso”,
fazendo referência a Gramsci. Mesmo encarcerado, utilizando
de uma linguagem codificada para despistar a censura fascista,
Gramsci escreve mais de 30 cadernos, conhecidos como “Cadernos
do Cárcere” e “Cartas do Cárcere”, contendo uma análise da história
e suas ideias da teoria crítica e educacional. Morreu 3 dias após ser
solto em 1937.
Gramsci, semelhante a Althusser, também concebe a escola
como reprodutora da dominação, fazendo a perpetuação da divisão

228  Vagner Marcos Costa Lima


de classe, mas diferente do filósofo francês, ele não é tão pessimista.
Gramsci, compreende que a escola, pode sim, ser um instrumento
fundamental na superação dessa dominação. Como demonstrou
Manacorda (2008), mesmo ele sabendo que a escola, em grande
medida, é determinada pela estrutura social, ela é direcionada a
reproduzir a sociedade que a engendra. Tanto que ele combateu
o caráter classista e oligárquico da escola, desde seus textos de
juventude, onde esse espaço privilegiado não pode ser negligenciado
pelos intelectuais, os professores. Para Gramsci (2001), é um espaço
de contradições, de batalha pela hegemonia, terreno de luta cultural
para transformar a mentalidade popular.
Gramsci, considerado o “pedagogo da práxis”, a escola
tem papel fundamental na formação do homem, pois ela pode
desempenhar a tarefa de elevar cultural e intelectualmente as massas,
quando ele afirma:

A escola unitária ou de formação humanista (entendido este


termo, “humanismo”, em sentido amplo e não apenas em sentido
tradicional) ou de cultura geral deveria se propor a tarefa de
inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um
certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e
prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa.
(GRAMSCI, 2001, p. 36)

Podemos perceber que, há um entendimento popular que


a escola deve desempenhar esse papel. Entendimento esse que é
ratificado na legislação brasileira sobre a educação, onde a LDB
9.394/96, quando apresenta no seu artigo 35 que o Ensino Médio
tem como objetivo a preparação básica para exercício da cidadania
do educando, a formação ética, o desenvolvimento da autonomia
intelectual e o do pensamento crítico. Nesse sentido, seguindo o visão
popular e a legislação, é possível perceber que a escola, pode oferecer
aos jovens um certo grau de maturidade e capacidade, dando a ele,
a possibilidade de uma autonomia intelectual, sendo possível viver
em sociedade como cidadão crítico e consciente de seu papel. Um
dos questionamento que se tornar inevitável para os professores que

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE 229


SUBALTERNA NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
atuam com disciplina de filosofia é o seguinte: de que forma é possível
a disciplina de filosofia contribuir para alcançar esses objetivos? Que
cidadania é essa que a legislação brasileira propõe para ser exercida?
A visão de cidadania proposta principalmente no Parâmetros
Curriculares Nacionais – PCN, está relacionada com a inclusão do
jovem no mercado de trabalho. Nos PCN (1999) “a perspectiva é
de uma aprendizagem permanente, de uma formação continuada,
considerando como elemento central dessa formação a construção
da cidadania em função dos processos sociais que se modificam”.
Nesse sentido, nos faz concluir que, ela supõe a capacidade de
continuar aprendendo para cumprir as exigências do mercado,
vinculada a qualificação para o trabalho. Mais adiante, no mesmo
documento, também é apresentado, que ela “implica o conhecimento,
o uso e a produção histórica dos direitos e deveres do cidadão e o
desenvolvimento da consciência cívica e social”. Nessa perspectiva,
podemos nos questionar: O ensino de Filosofia pode contribuir para
esse tipo de cidadania, que é liberal, limitada a direitos e deveres?
Ao que parece, o ensino de Filosofia na visão de Gramsci não
deve contribuir na forma apresentada pela legislação brasileira.
A inserção no mercado de trabalho tem seu valor, e que não se
pode descartar, pois pode oferecer uma melhora na qualidade de
vida da classe subalterna, mas o que se coloca em questão é que
essa tal cidadania liberal pode ser exercida sem o questionamento
da atual ordem. A divisão de classe continuará existindo. É uma
cidadania comprometida com a manutenção da ordem. Gramsci
(2006) aponta, para a superação da sociedade de classes, onde
os subalternos estejam preparados para assumir a posição de
governantes, efetivamente abolindo o modo de produção capitalista.
Para ele a escola pode e deve cumprir esse papel na formação dos
jovens das camadas subalternas. Sendo assim, podemos então nos
questionar a respeito do ensino de Filosofia nas escolas, em especial,
nas escolas públicas brasileiras. Sendo a escola pública, planejada
para suprir as necessidades do capitalismo, como a educação poderia
contribuir para formação desse cidadão nos moldes de Gramsci? E,
especificamente a Filosofia, o que ela poderia oferecer nesse sentido?

230  Vagner Marcos Costa Lima


Como foi apresentado acima, o filósofo italiano combateu
o lado classista e elitista da escola. Os professores, intelectuais
32
orgânicos , devem aproveitar esse terreno para travar uma luta
na superação dos obstáculos que impedem a elevação cultural e
social das classes subalternas. E a Filosofia também deve oferecer
meios para contribuir nessa luta de classes, pois nessa relação do
indivíduo com o meio, ele questiona, encara desafios e problemas,
sempre tentando superar, como bem demonstrou Oliveira (2006)
“o filosofar pressupõe a consciência de que estamos enraizados em
problemas que a condição humana apresenta”. Então, o ensino de
filosofia pode sim ser uma “ferramenta” para se construir um projeto
emancipador dos dominados, buscando a formação de cidadão no
perfil gramsciano.
O questionamento também que se faz é sobre a possibilidade
de ensinar filosofia para não-filósofos. A dúvida tem levado muitos
especialistas, ligados a uma filosofia tradicional, a não acreditar
nessa possibilidade, visto que a filosofia é um saber erudito, reservado
a um número restrito de pessoas, os especialistas, com requisitos
necessários para compreendê-la e exercitá-la (RODRIGO, 2009).
Portanto, a difusão desse saber especializado para as massas, para
o homem comum, é uma tarefa difícil de ser executada, mas se deve
adiantar que não é impossível. Para Freire (1989), é necessário criar
uma nova escola, que supere esse modelo de educação conteudista
que, segundo ele, silencia a voz do excluído. No entanto, a escola
pública não pode negligenciar o ensino, tendo como “pano de fundo”
a ideia preconceituosa de que isso é para os simples, pessoa do povo,
da classe subalterna, pois a escola pública continua sendo um único
meio de acesso desse grupo ao conhecimento cientifico, filosófico e
artístico.
Nesse sentido, é importante se recuperar essa característica da
escola tradicional, que prepara os “futuros dirigentes”, ou forma os
“homens superiores”. Minimizar a socialização desses conhecimentos

32 São os intelectuais que nascem e permanecem vinculados a uma classe,


lutando dentro do campo ideológico. Nesse caso específico, luta contra a
hegemonia burguesa.

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE 231


SUBALTERNA NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
aos alunos da escola pública é manter a ordem vigente, é impedir que
esse grupo de alunos alcancem a sua emancipação social. É possível
transmitir conteúdos, conhecimentos elaborados, científicos, sem
o uso da pedagogia autoritária, sem adotar o método silenciador,
que inibe, castra (FREIRE, 1981). No Caderno 11, o filósofo sardo
explicita a respeito da difusão do saber:

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente


descobertas “originais”; significa também, e, sobretudo, difundir
criticamente verdades já descobertas, “socializa-las” por assim
dizer, e, portanto, transformá-las em bases de ações vitais, em
elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O
fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar
coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é
um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do
que a descoberta, por parte de um “gênio” filosófico, de uma
verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos
intelectuais. (Gramsci, 2011, p.95).

Vale lembrar que as escolas particulares do Brasil, principalmente


as melhores, adotam esse aspecto da escola tradicional, não abdicam
de maneira nenhuma a transmissão/socialização dos conhecimentos.
Se as tais escolas valorizam esse método, e elas tem a função de
formar esses tais “homens superiores”, a escola pública deve também
considerar que esse aspecto deve estar presente na prática educativa,
a transmissão desses saberes não pode ser negado, simplesmente
por existirem outros aspectos negativos da escola tradicional. Além
disso, Gramsci aponta que a escola pública não deve simplificar,
ou descuidar da disciplina, facilitando o ensino, mas desde o início
demonstrar que o estudo também é um trabalho cansativo e sofrido:

Deve-se convencer muita gente de que o estudo é também um


trabalho, e muito cansativo, com um tirocínio particular próprio,
não só intelectual, mas também muscular-nervoso: é um processo
de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento
e até mesmo sofrimento. (GRAMSCI, 2006, p. 51)

232  Vagner Marcos Costa Lima


É importante retomar outro aspecto positivo da escola
tradicional. Esse modelo de escola era desinteressado, ela não
visava uma finalidade prática e imediata, mas sim a formação e
desenvolvimento da personalidade. Nessa perspectiva, é preocupante
a situação das escolas públicas no atual momento. Novamente, o
objetivo principal é a inclusão do jovem no mercado de trabalho,
fato constatado na disseminação de escolas profissionalizantes
em todo o País. Tendo se reduzido consideravelmente a formação
humanística, pautando o ensino principalmente por princípios
utilitários e imediatos.
No pensamento de Gramsci a relação entre senso comum e
filosofia é central. Ele compreende que, nessa relação existe dois
momentos, um negativo e outro positivo. O negativo é a crítica a
concepção de mundo da classe dominante, que é uma desarticulação
dos interesses burgueses, e o positivo é a rearticulação dos interesses
da classe subalterna, interesses populares. Portanto, é possível
perceber, que para o filósofo italiano, o homem comum, da classe
subalterna, pode se elevar culturalmente, e torna-se necessário
adiantar que ele percebe que a educação pode ajudar as classes
populares nessa emancipação. E o trabalho do filósofo- professor,
intelectual orgânico da classe subalterna, deve ser compreendido
como:

[...] não mais apenas como elaboração individual de conceitos


sistematicamente coerentes, mas além disso, e sobretudo, como
luta cultural para transformar a mentalidade popular e difundir
as inovações filosóficas que se revelem historicamente verdadeiras
na medida em que se tornem concretamente, isto é, histórica e
socialmente universais. (GRAMSCI, 2011, p.398).

O trabalho do professor deve ser concebido (GRAMSCI, 2006)


como transformador da mentalidade popular, e como consequência,
transformar o ambiente que ele está inserido, e nessa relação o
ambiente cultural também transforma o professor, numa relação
dialética, é recíproco, semelhante a aluno-professor.

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE 233


SUBALTERNA NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
Como forma de ampliar a compreensão sobre essa relação
apresentada por Gramsci, vale utilizar as palavras de Giorgio Baratta:

A escola que Gramsci tem em mente – cujo princípio moderno é o


de que “todo professor é sempre aluno e todo aluno, professor” –
realiza in vitro o modelo de uma sociedade capaz de promover um
processo de superação da oposição “entre camadas intelectuais
e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e
seguidores, entre dirigentes e dirigidos”. (BARATTA, 2010, p. 38)

Retornando ao questionamento sobre o ensino de Filosofia


para não-filósofos, o Filósofo Comunista afirma que a filosofia
tradicional difundiu a ideia de que o homem comum é incapaz de
elaborar suas concepções de mundo. Mas ele acredita que é necessário
destruir esse preconceito, se acredita que a filosofia é uma atividade
de uma classe privilegiada. É nesse sentido que ele afirma:

[...] que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os


homens têm na sociedade a mesma função de intelectuais (assim,
o fato de que alguém possa, em determinado momento, fritar
dois ovos ou costurar um rasgão no paletó não significa que
todos sejam cozinheiros ou alfaiates). (GRAMSCI, 2001 p.18).

Essa refutação da atividade filosófica reduzida a classe


privilegiada dos especialistas, não significa negar uma filosofia
culta, erudita, mas apresentar que o homem comum também tem
concepção de mundo, ele tem uma filosofia espontânea. Nicolas Go
em seu artigo “Filosofia: uma educação”, indica:

Existe, segundo o autor dos Cadernos do cárcere, uma filosofia de


“todo mundo”, contida dentro (1) da linguagem (que veicula
representações e sistemas de ideias); (2) do senso comum e do
bom senso; (3) do sistema de crenças, das opiniões, de maneiras
de ver e de agir que constituem o “folclore” e a religião popular”.
(GO, 2004 p.194).

Retornando sobre o papel que a escola pode desempenhar na


vida do jovem, ele apresenta um modelo de escola democrática, que

234  Vagner Marcos Costa Lima


possibilite a autonomia do jovem e que não eternize as diferenças.
Então, como foi afirmado anteriormente, ele não tem uma visão
tão pessimista como a de Althusser. Nessa perspectiva, Gramsci
apresenta um tipo ideal de escola:

[...] cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado


a perpetuar nestes grupos uma determinada função tradicional,
diretiva ou instrumental. Se se quer destruir esta trama, portanto,
deve-se evitar a multiplicação e graduação dos tipos de escola
profissional, criando-se, ao contrário, um tipo único de escola
preparatória (elementar-média) que conduza o jovem até os
umbrais da escolha profissional, formando-o entrementes como
pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar
quem dirige. (GRAMSCI, 2001, p. 49).

O desafio é justamente, por meio de recursos didáticos que


o professor pode utilizar para fazer o aluno partir dessa filosofia
espontânea, para dar um salto qualitativo, que é o pensamento
rigoroso, coerente, típico dos filósofos especialistas, e para isso,
retomando o aspecto positivo da escola tradicional, é necessário
conhecer a filosofia tradicional produzida na história, que está nos
livros, o contato direto com as obras dos grandes filósofos. Conforme
as palavras de Lídia Maria Rodrigo

Na conjuntura posta pelo atual ensino médio, cabe ao professor


ser o mediador entre a filosofia e os alunos iniciantes, que não
possuem ainda as qualificações requeridas para ter acesso a
esse saber por conta própria, o que supõe que ele seja capaz de
traduzir em termos simples um saber especializado. Para dar
conta dessa tarefa, muitos desafios precisam ser superados,
desde as deficiências de sua própria formação e as carências
de seus alunos, até condições institucionais adversas ao ensino
da disciplina, como, por exemplo, o tempo exíguo que lhe é
destinado na grade curricular. (RODRIGO, 2009, p.71).

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE 235


SUBALTERNA NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
33
A escola é um aparelho de hegemonia privilegiado na
34
organização de uma nova cultura . E, nesse sentido, os professores
devem utilizar desse espaço para formação dos novos intelectuais
oriundos das classes subalternas, os novos intelectuais orgânicos. O
professor deverá estar consciente de sua função como formador de
novos intelectuais das massas, isso poderá modificar sua postura em
sala de aula, deverá compreender que ele é o mediador entre o homem
comum, que tem sua concepção de mundo, e o conhecimento, nesse
caso a filosofia. Deve oferecer meios de superação, conscientizado o
aluno do seu papel na história.
Nessa perspectiva, o filósofo italiano elabora a expressão
Filosofia da Práxis, que remete nos seus primeiros escritos dentro no
cárcere, ao materialismo histórico de Marx, um vínculo inseparável
entre teoria e prática. Para Gramsci (1995), a filosofia da práxis é
uma atitude crítica de superação da antiga maneira de pensar, tendo
como elemento importante o pensamento concreto existente. A
35
filosofia da práxis busca a superação do senso comum e propõe
elevar a condição cultural da massa e dos indivíduos. Attilio Monasta
refere-se à filosofia da práxis de Gramsci como:

[...] um instrumento ideológico para ampliar a consciência das


massas sobre o mecanismo da política e da cultura e sobre a
determinação histórica e econômica das ideias, tornando as
massas populares melhor capacitadas para controlar suas vidas
e “dirigir” a sociedade ou “controlando os que a dirigem”.
(MONASTA, 2010, p.30)

33 Hegemonia é a supremacia de uma determinada classe, exercida pela força e


pelo consenso, visando formar um novo tipo de sujeito histórico.
34 Cultura é organização, disciplina do próprio eu interior, é tomada de posse
da própria personalidade, é conquista de consciência superior pela qual se
consegue compreender o próprio valor histórico, a própria função da vida, os
próprios direitos e deveres (GRAMSCI,1976)
35 É uma mistura de diversas ideologias tradicionais e da ideologia da classe
dominante, absolvidas sem uma consciência crítica.

236  Vagner Marcos Costa Lima


Para Gramsci, a Filosofia da Práxis, diferente de outras
filosofias, tem consciência das contradições presentes dentro da
sociedade, e por isso o próprio filósofo compreende as contradições
e coloca a si mesmo como elemento da contradição, eleva este
elemento a princípio de conhecimento e, consequentemente, de ação
(GRAMSCI, 2011).
Para Adolfo Sánchez Vázquez, a filosofia da práxis é uma
transformação com base na interpretação, na teoria, segundo ele
as ideias não mudam nada por si só, para transformar o mundo é
necessário a sua ligação com a prática

A práxis é entendida como uma atividade prática humana, a um


só tempo subjetivo e objetivo, ideal e real, espiritual e material,
que desemboca na transformação prática, efetiva, do mundo
do homem; portanto, não trata-se de apenas transformar sua
consciência, mas também as relações e instituições sociais que
condicionam sua consciência, sua subjetividade. (VÁZQUEZ,
2002, p. 70).

A Filosofia da Práxis propõe uma nova concepção de mundo, é


uma filosofia independente e original, ela não se confunde e não se
reduz a nenhuma outra filosofia: “ela não é original apenas enquanto
supera as filosofias precedentes, mas sobretudo enquanto abre um
caminho inteiramente novo, isto é, renova de cima a baixo o modo de
conceber a própria filosofia” (GRAMSCI, 2011 p.154).
A escola, especialmente a escola pública, deve estar a
serviço da construção do homem novo, através de uma reforma
intelectual, ativo na construção de uma nova sociedade, e
também, da reforma econômica, que tem como inspiração a
reforma proletária. Portanto, o professor de filosofia, utilizando
do ambiente escolar, deve desenvolver uma filosofia entre
seus alunos, que os leve a uma problematização do cotidiano,
seguindo Gramsci, uma filosofia da práxis, que tem como papel
fundamental, desenvolver uma consciência ética e política no
homem, capaz de elaborar a sua própria concepção do real, tendo

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE 237


SUBALTERNA NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
sempre uma ação no mundo orientada pela teoria, numa relação
necessária entre teoria e prática.

Considerações finais

As contribuições do pensamento de Gramsci para a educação


são fundamentais. Na sua perspectiva, a educação é um trabalho
efetivo e positivo na vida do homem. Distante da visão pessimista de
Althusser que apresenta a escola como reprodutora das ideologias
burguesas, o professor de filosofia, no seu ofício de ensinar, deve se
conscientizar que ele pode contribui decisivamente na emancipação
social, política e econômica de seus alunos.
Constatou-se que na visão do filósofo italiano, a filosofia
tradicional, produzida na história pelos grandes filósofos é
importante e deve ser transmitida aos estudantes. Conhecendo-a
é possível também criticá-la, para a partir daí, problematizar o seu
cotidiano, encarar criticamente os desafios encontrados na vida do
jovem, e mais ainda, poder superar a concepção de mundo que foi
adquirida acriticamente.
É ai que entra o trabalho do professor de filosofia, que media
o saber filosófico aos alunos, que já tem uma filosofia popular,
espontânea, absorvida na vivência das suas relações, deve a partir da
práxis educativa, compreender a relação necessária entre sociedade e
educação, assim, se sensibilizar da tarefa a ele confiada, de possibilitar
o aluno na superação da condição de dirigido, governado, que
passa da heteronomia para a autonomia, por meio da mediação do
professor. Então, o ensino de filosofia é possível ser democratizado,
e mais, é fundamental nessa tomada de consciência, onde o homem
pode transformar a si próprio e o mundo que ele participa, por meio
de uma nova filosofia, que Gramsci chama de Filosofia da Práxis.

REFERÊNCIAS

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aparelhos ideológicos de estado. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

238  Vagner Marcos Costa Lima


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Presença 1970.

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abr, 2010.

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Brasília, DF, 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/L9394.htm

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Nacionais. Brasília, DF, 1999. Em: http://portal.mec.gov.br/seb/
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de Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 1995.

______. Cadernos do Cárcere - Volume 1: Introdução ao estudo


da filosofia – a filosofia de Benedito Croce. 5 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.

ENSINO DE FILOSOFIA, CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO DA CLASSE 239


SUBALTERNA NUMA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
______. Cadernos do Cárcere - Volume 2: 2 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.

______. Caderno 12: Apontamentos e notas dispersas para um


grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: .
Cadernos do Carcere. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.

______. Escritos Políticos .vol. I. Lisboa: Seara Nova, 1976.

MANACORDA, Mario Alighiero. O principio educativo em Gramsci:


americanismo e conformismo. Campinas: Alinea, 2008.

MONASTA, Attilio. Antonio Gramsci. Trad: Paolo Nosella. Recife:


Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno. Filosofia da Educação: reflexões e


debates. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes. 2006.

RODRIGO, Lidia Maria. Filosofia em sala de aula: teoria e prática


para o ensino médio.
Capinas, SP: Autores Associados, 2009..

VAZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia e Circunstâncias. Rio de


Janeiro. Civilização Brasileira, 2002

240  Vagner Marcos Costa Lima


FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE
EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE
EIXOS TRANSDISCIPLINARES PARA A
PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI

Maria Sueli Lopes da Silva

INTRODUÇÃO

A
s escolas de Educação Básica em seus aportes
curriculares, de modo geral, apresentam uma prática
de ensino ainda acentuada em um modelo com ênfase
no conteúdo, que, por sua vez, tem pouca articulação mediada à
realidade na qual os estudantes estão inseridos. Esta é uma linha
de ensino no molde tecnicista, o que significa dizer que as práticas
de atividades contidas na proposta curricular são eminentemente
mecanicistas, o que restringe a função dos professores e alunos a
simples receptores e executores de projetos previamente elaborados,
fato que representa um modelo de ensinar sem vínculo com o contexto
sociocultural. Esta realidade corrobora a reprodução de um ensino
de natureza fragmentado, compartimentado, cuja herança reside

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 241
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
no positivismo que esfacelou o conhecimento em especialidades
denominadas de disciplinas.
Essa realidade exige a implementação de mudanças significativas
no âmbito de uma proposta curricular na escola, sustentada por
um referencial de ensino problematizador, para se chegar a uma
compreensão do pensamento complexo. Diante disso, considerando
que as práticas docentes na educação básica e, de modo particular,
no Ensino Médio são marcadas por fragilidades, uma vez que os
conteúdos — por serem fragmentados — estão dissociados da vida
cotidiana dos estudantes, formulou-se a pergunta central desta
investigação-interventiva, qual seja: — Como a problematização
filosófica se constitui como paradigma da construção do pensamento
complexo mediado no processo de ensino-aprendizagem na sala de
aula?
 Essa pergunta conduz, especialmente, ao delineamento para
uma pesquisa de cunho intervencionista, que é a implementação
da problematização filosófica como paradigma da construção do
pensamento complexo na proposta curricular da escola.
Nessa direção, esta pesquisa focaliza a revitalização do
paradigma da complexidade a partir da problematização filosófica,
realçando um caminho que contribua para a superação da
fragmentação do pensamento, por meio da proposição de eixos
problematizadores na proposta curricular, os quais integram e
articulam os conteúdos disciplinares com base na relação inter e
transdisciplinar, como condutores para o pensamento complexo.
Nessa perspectiva, elaborou-se como objetivo geral:
Implementar a problematização filosófica como paradigma da
construção do pensamento complexo na proposta curricular de uma
escola de Ensino Médio de Tempo Integral na cidade de Parnaíba-PI.
No âmbito dos objetivos específicos, foram definidos: a) Sensibilizar
o corpo docente como (re)organizar a proposta curricular da escola
na perspectiva globalizadora, integradora e transdisciplinar de
ensino-aprendizagem; b) Fomentar a proposta pedagógica, tendo
como referência a problematização filosófica a partir da abordagem
sistêmica da Teoria da Complexidade; c) Elaborar eixos articuladores

242  Maria Sueli Lopes da Silva


para um ensino problematizador como implemento político da
proposta curricular.
O estudo envolveu o corpo coletivo de uma Escola Pública
de Ensino Médio de Tempo Integral da cidade de Parnaíba que, de
forma efetiva, contemplou a gestora, a coordenadora pedagógica e
os professores, com uma dinâmica participativa e articulada entre a
pesquisadora e os partícipes. Considera-se que a pesquisa conduzirá
a uma prática de proposições interventivas, que possibilitará superar
a visão fragmentada do saber e do esvaziamento da reflexão, de
modo a propiciar mudanças na maneira de trabalhar uma proposta
curricular. Tais mudanças devem sustentar, atuando como uma
base articuladora, em um ensino pautado na problematização
filosófica, na qual os profissionais da educação sejam capazes e
livres para assumir uma visão educacional embasada no paradigma
da complexidade.

O PENSAMENTO COMPLEXO EM MORIN E SUA ARTICULAÇÃO


NA RELIGAÇÃO DOS SABERES

Esta seção tem como finalidade apresentar algumas discussões


em relação ao pensamento complexo, tal como formulado por
Edgar Morin, e de como a problematização filosófica pode conduzir
ao pensamento complexo. Com base nessa perspectiva, pensa-
se um currículo que apresente linguagem articulada e centrada
na problematização filosófica, o que, por sua vez, conduzirá ao
pensamento complexo.
A sustentação teórica que embasou esta pesquisa é
predominantemente alicerçada nas obras de Morin, considerando
que o seu vasto acervo teórico é fonte motivadora desta intervenção
filosófica. Para tanto, referenciamos as publicações de Morin dos
anos (2001; 2002; 2005; 2014; 2015); Morin; Ciurana (2004), entre
outros que fazem referência à Teoria da Complexidade.
Tendo presente uma realidade em que o conhecimento é posto
de modo esfacelado, Morin desenvolveu um pensamento em que as
partes e o todo são concebidos holisticamente. Nessa concepção,

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 243
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
se assenta o arcabouço teórico de Morin, que é transpassado
pela Filosofia, Ciência, Literatura e Poesia. Essas áreas foram as
bases incorporadas por um espírito inquieto e uma ânsia pelo
conhecimento, e que culminou no seu pensamento conhecido como
a Teoria da Complexidade. O surgimento desse termo — síntese
de seu pensamento — nasce do movimento dialético, existente nos
contrários da realidade, e que aponta como significado “integrar
simultaneamente as múltiplas dimensões de uma mesma realidade,
[...] a realidade humana, as incontornáveis contradições e as
inelimináveis incertezas” (MORIN, 2014, p. 13-14). Isso conduz ao
entendimento de que não se deve conceber a realidade de forma
linear, como se fosse meramente uma sucessão de acontecimentos,
mas sim perceber que a realidade é constituída de múltiplos fluxos,
de movimentos constantes que envolvem os seus contraditórios, suas
antíteses, vistas dentro dos seus contrastes, ou seja, paralelamente
a linearidade da existência dos fatos, dos acontecimentos fixados
historicamente como oficiais. Pressupõe-se, então, uma não
linearidade, considerando a dinamicidade das mudanças nos
diferentes segmentos e dimensões da vida, marcada por incertezas,
dissoluções de verdades cristalizadas historicamente.
Na origem do Pensamento Complexo a ideia basilar a respeito
da noção de vida, e que percorre em toda a sua teoria, são os
conceitos de auto-organização e de complexidade. Desse modo, a
sociedade humana adquire — em relação à natureza — um estado
de emancipação em razão de sua autonomia, alimentada por
suas multidependências. É preciso, portanto, compreender que
a complexidade se eleva quanto maior for a ordem ecossistêmica,
de modo que a sociedade se nutre com uma extrema riqueza e
diversidade de objetos e produtos, da ordem social, daí deriva a sua
complexidade.
Nesse contexto, a individualidade humana é outra categoria
entendida como tudo o que há de mais emancipado e ao mesmo tempo
dependente da sociedade; este processo pode ser compreendido a
partir “das dependências educativas envoltas pelos longos períodos
de escolaridade, socialização culturais e técnicas, o que constituirá

244  Maria Sueli Lopes da Silva


no desenvolvimento e na manutenção da sua autonomia” (MORIN,
1975, p. 30).
Encontramos essas ideias que originaram a complexificação do
conhecimento, na obra - O Método - os quais embasam o conceito de
complexidade formulado por Morin (2001, p. 38):

Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade


quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do
todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico,
o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente,
interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu
contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si.

O entendimento deste conceito contribui para a reflexão de


que os acontecimentos não podem ser concebidos nem tratados de
forma isolada, mas sim no vasto campo em que ocorrem a realidade
fenomênica expressa nos acontecimentos, interações, retroações,
ações, acasos, eles se interconectam na relação de interdependência
das partes e do todo que não podem ser entendidos isoladamente e
nem fora do seu contexto. É esta a concepção de complexidade que
atende aos objetivos desta pesquisa interventiva, uma vez que atende
aos seus propósitos para elaboração e implementação na proposta
curricular da escola que são os eixos de problematização filosófica.
A partir do conceito de complexidade, e para dar sequência,
levantamos uma indagação que é parte do fio condutor neste
trabalho: — Que caminhos se abrem ou que se deve percorrer para
o pensar de forma complexa? Certamente não é uma tarefa fácil,
porém necessária para uma educação que busca formar o cidadão de
modo mais holístico. Então, buscamos cooperar para que se chegue
a uma reforma do pensamento com a contribuição do pensamento
complexo.
A perspectiva da teoria moriniana nessa obra, ao propor a
elaboração do conhecimento, parte da concepção dialética. A partir de
então, trabalham-se os processos de ordem, desordem e organização
como categorias religadoras desse processo, fazendo desses termos
as ideias de base da elaboração do seu tetragrama, a qual a estas

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 245
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
categorias acrescentou a noção de interação, considerada aquela
que move o processo de circulação e funcionamento do tetragrama.
A obra O Método apresenta, como fio condutor, os sucessivos
processos que ocorreram com o homem na sua capacidade cognitiva,
demonstrando o seu desenvolvimento evolutivo, o que o fez um ser
pensante. Dada essa capacidade, o homem agiu sobre a natureza,
transformando-a; no entanto, chegamos a uma sociedade marcada
pelo desenvolvimento, como também pelo grande contingente de
informações em que o ser humano fica submerso, o que provoca,
consequentemente, dificuldades em desenvolver habilidades
necessárias para articular esses conhecimentos, de contextualizar,
organizar e compreender; isso ocasionou a compartimentalização e
a fragmentação do conhecimento distribuídos, o que denominamos
de disciplinas.
Destarte, adentramos, segundo Morin, pela sociedade dos
conhecimentos separados uns dos outros, separação que nos impede
de religá-los para conceber os problemas fundamentais e globais,
tanto na vida pessoal, quanto de nossa convivência coletiva. Estas
questões levantadas suscitam os desafios postos para se pensar uma
reforma paradigmática na educação.
A reforma do conhecimento proposta por Morin está centrada
na reforma do pensamento, e isso exigirá um pensamento que possa
religar os conhecimentos entre si, religar as partes ao todo, o todo
às partes, e que possa conceber a relação do global com o local, do
local com o global. No que concerne a essa reforma, ela se configura
situada em duas dimensões no campo epistemológico e reflexivo.
A reintrodução da reflexividade requer um constante retorno
autoexaminador e autocrítico da mente por ela própria. A mudança
que deve ser instaurada precisa conscientizar-se da existência das
contradições que a vida, a sociedade e o indivíduo suscitam, e que
deve ser enfrentado. Surge, então, um pensamento complexo cujos
princípios permitem desenvolver a capacidade de reagir de modo
pertinente em uma nova situação.
Diante dessa emergência que requer a reforma do pensamento,
Morin (2007, p. 187) afirma que “os analfabetos do século XX não

246  Maria Sueli Lopes da Silva


serão aqueles que não podem ler ou escrever, mas os que não podem
aprender, desaprender ou reaprender”. Esse pensamento nos coloca
diante de uma reflexão da necessidade de nos despir das velhas
práticas, alicerçadas no ideário positivista de uma visão reducionista
e tecnicista de ensinar e ser capaz de imbuir-se numa postura de
desconstrução para uma nova reconstrução.
Para maior articulação do pensamento complexo com a
educação, devemos desmistificar uma visão simplista sobre o que seja
complexo. Tomando a palavra “complexo”, quando dita de forma
corriqueira no cotidiano, transparece um entendimento como algo
inalcançável, de difícil compreensão ou que não tem explicações, no
entanto, Morin desenvolve sua abordagem teórica contrária a essa
noção que revela uma visão reducionista ou simplificadora do pensar
a partir da complexidade.
Nesse sentido, o pensar para a complexidade não excluí
a simplificação, contudo, integra os processos de disjunção –
movimento dinâmico que envolve “distinguir e analisar –; de
coisificação – inseparáveis da constituição de objetos ideais –, de
abstração –, isto é, de tradução do real em ideal” (MORIN, 2005, p.
432). Esses processos revelam que o pensamento complexo tem uma
natureza rotativa, espiralada, de eternos fluxos de contraditórios.
Vale destacar que este processo de disjunção não se atém de maneira
isolada, mas envolve uma relação complementar, por meio da
conjunção e transjunção, o que significaria sair das simplificações e
das reduções para uma abordagem holística das formas existenciais.
O esboço apresentado reflete o movimento norteador
do pensamento complexo, que age em forma de circularidade,
envolvendo movimentos de polarizações que vão “da parte ao todo,
do toda à parte” (MORIN, 2005, p. 433). Esse movimento exige no
seu cerne o princípio do antagonismo, das contradições, o que o
diferenciará do pensamento simplificador que realiza um movimento
disjuntivo e redutor.
Diante disso, o entendimento do conceito de complexidade
exposto por Morin origina-se a partir da palavra complexus, que
significa “aquilo que é ‘tecido’ em conjunto” (MORIN, 2005, p.

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 247
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
215); a ideia não é o engessamento dos fenômenos ocorrentes – até
então produzidos em séculos anteriores pela ciência – mas sim a
inseparabilidade entre a tríade da ordem, desordem e organização,
reconhecendo que nesta relação há existência entre si de forças
motrizes de conflito e cooperações. Tal processo é denominado
por Morin como “noções transdisciplinares”, porque cria sentido
próprio, não se reduzindo a um campo em específico.
Destarte, o pensamento complexo necessita de que seja
apreendida a multidimensionalidade que envolve todo o sistema vivo
nos seus entrelaçamentos, com todas as estruturas que suscitam
nos inúmeros processos de interações, dissoluções, organizações de
redes solidárias, entre outros. Entendemos, portanto, que a realidade
só pode ser vista sob o prisma multidimensional, que envolve os
aspectos humanos nos campos econômicos, políticos, sociais,
afetivos, lúdicos, éticos e estéticos; e eles são indissociáveis à vida,
consequentemente para o pensamento complexo.
Então, percebemos que a multidimensionalidade se projeta de
forma articulada na teoria de Morin, ao dizer que não se deve perder
de vista a realidade dos fenômenos, que não separa a subjetividade
da objetividade e não exclui o espírito humano, o sujeito, a cultura e a
sociedade (MORIN, 2001). Dessa forma, a complexidade é a que vai
dar conta das articulações que se enfraqueceram pelo esfacelamento
das disciplinas, posto que, de fato, a complexidade tende para o
conhecimento multidimensional.
É essa complexidade que nos ensina, simultaneamente, que
somos seres físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais
(MORIN, 2001; 2015). E essas dimensões devem estar presentes
em todos os processos da vida, destacamos aqui os processos de
ensino e aprendizagem, que ocorrem através dos sistemas formais de
ensino, e estes necessitam de uma reforma, considerando que atuam
em uma perspectiva simplificadora destas dimensões. Assinale-se
que isto nos leva a rever e repensar as propostas curriculares, que
tratam o conhecimento em planos de unidades didáticas distribuídas
em campo de disciplinas. Morin nos convoca a repensar este modelo
que prega verdades e certezas associadas ao tempo linear, a exemplo,

248  Maria Sueli Lopes da Silva


a um currículo que não se adequa as emergências do século XXI.
Diante desse fato, as instituições são interpeladas a se reorganizarem
em suas propostas curriculares, definindo bases integradoras para o
conhecimento pertinente.
A despeito disso, lançamos um questionamento: – Como essas
discussões subsidiam o trabalho com as especificidades curriculares
a partir de teorizações complexas? É perceptível, no contexto da
escola, como locus da existência de uma pluralidade de linguagens,
de uma multiplicidade de referências possíveis no que diz respeito
ao homem no seu contexto de vida, e de possibilidades que regem
a interpretação da realidade. Assim sendo, pensar uma proposta
curricular pautada na complexidade requer o reconhecimento da
pluralidade, da diversidade, a aceitação da diferença, sob a ótica das
diferentes leituras de mundo, das diversas e diferentes linguagens com
as quais os indivíduos utilizam e interpretam os fenômenos presentes
na sua realidade.
Isso nos leva a entender que um currículo possui dimensão
multirreferencial, que, assim, deverá incluir na concepção de
Nicolescu (1999): processos de reconhecimento das diversidades e
diferenças como característica fundamental da contemporaneidade.
A transdisciplinaridade requer um enfoque da transdisciplinaridade,
de modo que os saberes não devem ficar restritos ou constituídos
meramente por conteúdos disciplinares, mas também que as relações
possam transcender as diversas disciplinas, marcadas por um campo
de relações de natureza afetivas, sociais e emocionais que refletem
condições sócio-históricas e culturais, vividas pelos aprendentes.
Considera-se, portanto, como currículo multirreferencial
aquele composto de uma multiplicidade de relações, que possibilitam
uma integração envolvendo a escola, os alunos, os professores, os
pais, dentre outros; e seja criador de possibilidades, de caminhos que
conectem os diversos saberes disciplinares, para permitir e produzir
a transversalização, que, por sua vez, constitui um processo de
aprendizagem integrada e voltada para a problematização.
A sua maneira, Morin (2002) integra a esta proposta três
perspectivas que conduzem a uma mudança substancial da

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 249
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
reforma curricular para o ensino, são elas: que os princípios do
conhecimento sejam reproblematizados, e as ideias aparentes sejam
problematizadas; a proposição de uma reforma do pensamento, por
um pensamento contextualizado e globalizado o que é característico
da complexidade, e a sua natureza transdisciplinar. Para tanto, faz-
se necessário que os profissionais da educação se comprometam,
de forma assídua, com a formação contínua, pautada na dimensão
filosófica, a fim de que se possa desenvolver um ensino em que as
partes estejam em uma tessitura do conhecimento interdisciplinar e
transdisciplinar.
Pensar o currículo e a educação na atualidade exige alguns
princípios que regem o pensamento complexo, evocado por
Morin (2015), denominado por ele de operadores cognitivos. São
instrumentos que mediam o entendimento às multiplicidades dos
fenômenos, dos problemas situados nos contextos educacionais,
mas que, além de tudo, proporcionam a relação dialógica em torno
da vida e da realidade em que estamos envoltos. Tais princípios são: o
dialógico, o recursivo e o hologramático; além do princípio auto-eco-
organização. Em torno da (re)organização curricular, isto irá exigir
que a flexibilidade seja um elemento caracterizador do planejamento
que envolva todos os atores sociais que frequentam o espaço escolar,
sobretudo no que concerne à relação pedagógica entre alunos e
professores.
Mas o que significam estes princípios? O primeiro, o da
dialógica, não pode ser reduzido a um simples entendimento de
superação de contradição em que resulta uma síntese, mas como
presença necessária e complementar de instâncias antagônicas. É esse
processo que permite religar as ideias que se rejeitam mutuamente,
sem que isto negue a oposição entre elas (MORIN, 2015).
Assim, esses princípios impactam na proposta curricular
numa articulação dialógica com o cotidiano, possibilitando o fluxo
contínuo de informações, por meio de reflexões no âmbito coletivo
e individual. Um currículo de acordo com Morin, “onde toda ação
é sempre uma ação ecologizada sujeita às interações, às incertezas
e à não linearidade processual” (MORIN, 2003, p. 38). Desse

250  Maria Sueli Lopes da Silva


modo, ratificamos que desenvolver um currículo a partir da base
epistemológica da Teoria da Complexidade promove a formação
cidadã pautada em uma abordagem educativa mais globalizadora
e integradora, em que os valores desta formação atendam as
emergências da atualidade na construção da autonomia e da reflexão.
Assim sendo, deve-se estabelecer um agir inter e transdisciplinar,
considerando que o sistema de ensino está moldado em uma estrutura
curricular que, nos moldes disciplinares, divide, separa, o que tem
sido um grande entrave para que se possa implementar um currículo
dinâmico, tendo como características fundamentais a criatividade e
a integração de saberes.
Os eixos destacados anteriormente são compreendidos como
sistemas que permitem conectar e religar as partes a um todo e
livrar-se dos conhecimentos fragmentários. A dialógica é entendida
por Morin como dialética, tida como necessária e complementar de
processos ou instâncias antagônicas, o que permite religar as ideias
que se rejeitam mutuamente. O recursivo é definido como um aspecto
que se efetiva no circuito do conhecimento das partes, na direção
do conhecimento do todo na direção no que tange às partes, e o
hologramático, explicita que, nos sistemas complexos, o indivíduo
não apenas existe em uma sociedade, mas a sociedade existe no seu
interior, uma vez que, desde seu nascimento, a sociedade inculcou
nele a linguagem, a cultura, suas proibições, suas normas (MORIN,
2015).
Espera-se, da prática interdisciplinar, a superação desse quadro
de supervalorização e de fragmentação das disciplinas. Essa realidade
pode ser revertida tanto na universidade quanto nos sistemas
educacionais, desde o Ensino Médio, sendo a prática interdisciplinar
conduzida pela filosofia. Quando se fala em interdisciplinaridade
não quer dizer que deva extinguir a disciplinaridade das áreas de
conhecimento, considerando que cada área tem suas próprias
especificidades; trata-se, portanto, de dialogar com os diferentes
saberes, o que pressupõe superar os impasses e limitações.
É preciso descontruir o paradigma curricular vigente, e, para
tanto, se faz necessário considerar que esta reconstrução de saberes

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 251
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
seja pautada em um paradigma de um currículo que tenha como
eixo a problematização filosófica, com o intuito de estabelecer um
diálogo com as diferentes áreas de conhecimento ou saber.
No entanto, para que se tenha uma base curricular integradora
e globalizadora, há de se promover um ensino que desenvolva
uma educação de vivências democráticas. Assim, é preciso propor
um currículo ancorado na formação da cidadania, que leva em
consideração o cidadão crítico e autônomo.
Espera-se que essa abordagem centrada na teoria de Morin possa
ressignificar os currículos das escolas, tendo em vista a superação
da fragmentação do saber e o esvaziamento da reflexão, posto
que envolva mudanças de como trabalhar um modelo de proposta
curricular, que tenha como base articuladora um ensino pautado na
problematização filosófica; e que os profissionais da educação sejam
capazes de assumir uma visão educacional, a partir de um referencial
embasado no paradigma da complexidade, que propõe um ensino
transdisciplinar e problematizador do conhecimento pertinente.

A COMPLEXIDADE COMO CATEGORIA DE ANÁLISE NA [RE]


SIGNIFICAÇÃO DA PROPOSTA CURRICULAR: UMA ANÁLISE DA
INTERVENÇÃO

Neste trabalho temos evidenciado as implicações que um


ensino fragmentado tem causado, sobretudo, para a formação dos
discentes, em conceber o homem de forma compartimentalizada,
por áreas de especialidades. Consideramos que esta prática de
ensinar, ainda predominante nas instituições de ensino em geral,
está arraigada no modelo de ensino centrado na linearidade da
sucessão de fatos e acontecimentos, na transmissão de conteúdos
historicamente consolidados e na repetição reproduzida por meio
de roteiros de questões e avaliações, como forma de materializar e
quantificar o que foi ensinado e aprendido.
Essas questões elucidadas remetem a urgência de um ensino
mais significativo, crítico e integrador, diante das perplexas
transformações que impactam a vida humana, na sociedade

252  Maria Sueli Lopes da Silva


e no mundo; isso advindo, sobretudo, da realidade de um
mundo conectado, onde, instantaneamente, as informações são
processadas, e novos conhecimentos são produzidos. Tudo isto afeta
singularmente a educação, e em destaque os processos que envolvem
a aprendizagem.
Deste modo, é preciso ter a visão da totalidade. É neste contexto
que nos apoiamos e defendemos a concepção de complexidade
abordada por Morin, por acreditar no seu caráter transdisciplinar,
e assim possamos restabelecer os elos que interligam as diferentes
perspectivas do conhecimento, rompendo com a fragmentação dos
conteúdos esfacelados nas disciplinas, de maneira que proporcione
a religação.
Considera-se, portanto, que esta fragmentação se torna o
grande desafio a ser enfrentado e superado pelos professores, frente
ao processo educativo. Neste viés, o pensamento complexo constitui-
se, de acordo com Morin, em compreender a vida, o mundo, o homem,
e a sociedade como um todo indissociável. Isto nos faz entender que
é necessário desenvolver um conhecimento que estabeleça as relações
e a interdependência no que concerne à vida humana, em todas as
suas dimensões.
Face ao exposto, buscou-se saber a concepção que os partícipes
tinham sobre o pensamento complexo. O professor Heráclito expôs
que, para Morin, o conhecimento foi fragmentado, apontando para a
dicotomia entre o ensino e aprendizagem, o que, consequentemente,
provoca dificuldades para a compreensão dos alunos em relação ao
conteúdo, entendendo dessa forma não haver relação com a vida.
Ainda em suas palavras, indica que há necessidade de estruturar o
ensino, de forma que venha atender às reais necessidades do aluno
enquanto ser histórico e social.

PROF. HERÁCLITO: Para Edgar Morin o conhecimento foi fragmentado


onde só beneficia o ensino e não a aprendizagem. Essa forma de estrutura do
ensino dificulta a compreensão dos alunos à cerca dos conteúdos pois neste
momento não ver relação com a vida. Para reorganizar toda essa situação,
há uma necessidade imediata de se estruturar o ensino novamente para
atender às necessidades do aluno enquanto ser histórico e social.

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 253
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
A análise que se faz da posição do professor é que ele corrobora
o pensamento de Morin, tecendo crítica acentuada a estrutura do
ensino, o que nos faz entender que existe um distanciamento dos
conteúdos, os quais foram selecionados sem que houvesse as
interligações, as interdependências, o que é próprio para se pensar
de forma complexa.
A Teoria da Complexidade é entendida pelo professor
Pascal como aquela que ajuda na construção do conhecimento,
pois ela traz em seu bojo a conectividade, indissociabilidade dos
fenômenos existentes no mundo, justificando, deste modo, que a
aprendizagem almeja um trabalho numa abordagem multidisciplinar,
transdisciplinar. Entretanto, é preciso que a aprendizagem parta de
uma visão holística do objeto de estudo e, assim, saber aplicar nas
mais diversas situações do cotidiano.

PROF. PASCAL: Para mim, a teoria da complexidade ajuda


indubitavelmente na construção do conhecimento, uma vez que a totalidade
de um saber e/ ou de saberes não pretere suas partes. O conhecimento num
todo traz em seu bojo a conectividade, a indissociabilidade dos fenômenos as
quais compõem o mundo. Nessa perspectiva, o aprendizado dever ser feito
numa abordagem multidisciplinar, transdisciplinar; para tal o aluno e todos
no universo da aprendizagem necessitam de uma visão holística de dado
objeto de estudos e, dessa forma, aplicá-la nas mais diversas situações do
cotidiano.

Percebe-se que este professor apresenta um nível significativo


de entendimento acerca desta abordagem, reconhece que é inerente
ao conhecimento à conectividade e à indissociabilidade, o que
implica na aprendizagem significativa para o aluno. Daí reconhece a
importância de se desenvolver uma prática de ensino que considera a
multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade como necessárias nas
articulações dos conteúdos, em vista de compreendê-los globalmente,
bem como a aplicabilidade na vida cotidiana.
Na concepção do professor Montaigne, o ser humano é
montado numa perspectiva da complexidade, apontando como
justificativa que fatores naturais, políticos, morais, físicos e culturais

254  Maria Sueli Lopes da Silva


influenciam diretamente na condição humana; estas questões postas
são dimensões centrais que interpelam a complexidade.

PROF. MONTAIGNE: O ser humano é montado numa complexidade,


pois os fatores naturais, políticos, morais, físicos, culturais, influenciam na
própria condição humana. Atualmente o currículo escola encontra-se com
conhecimento, através das disciplinas fragmentadas, onde o aluno estuda,
por exemplo, geografia, Biologia... sem contextualizar onde realmente
utilizar aquele determinado conhecimento.

O docente reflete o sentido da complexidade fazendo uma


conexão entre o ser humano e suas múltiplas dimensões, no entanto,
deixa evidente a existência da estrutura curricular montada em
disciplinas que se encontram distantes das reais necessidades dos
educandos. Há um reforço neste modelo de estudos isolados, de
modo que dificulta uma formação voltada à complexidade.
O entendimento do professor Freud se centra no conceito de
ordem, definindo como o que extrapola as ideias de estabilidade,
rigidez, repetição e regularidade; mas que se une à ideia de interação
e que ela advém recursivamente, do oposto que é a desordem. Esta
parte de dois polos, um objetivo e outro subjetivo, reafirma que o
processo de desordem exige uma relação de ordem.

PROF. FREUD: O conceito de ordem extrapola as ideias de estabilidade,


rigidez, repetição e regularidade, unindo-se à ideia de interação, e
imprescinde, recursivamente, da desordem, que comporta dois polos, um
objetivo e outro subjetivo. Isso significa que todo processo de desordem exige
uma ordem.

Através da relação entre ordem e desordem, que são elementos-


chaves na compreensão do pensamento complexo, o docente
explicita sua concepção, o que nos leva a pensar em um ensino
transdisciplinar quando reconhece na relação de ordem e desordem
que o conhecimento tem uma natureza aberta e auto-organizadora.
Nesse mesmo direcionamento, o professor Marx expõe como
entende o pensamento complexo, considera-o como sendo a
interação entre as disciplinas, o que extingue as ideias simplistas e o

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 255
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
aprendizado com as noções de ordem, desordem e organização; são
elementos destacados que incitam para as reflexões.

PROF. MARX: Significa uma interação entre as disciplinas, uma maneira


nova de se pensar, extinguir as ideias simplistas e colocando em foco o
aprendizado sobre noções de ordem, desordem e organização.

Por sua vez, tanto o professor Freud quanto o professor


Marx destacam elementos comuns, tais como interação, ordem e
desordem. No entanto, o professor Marx deixa evidente que o centro
da aprendizagem se retém na ordem, desordem e organização. É
preciso que se reflita que o pensamento complexo não se reduz a
esses aspectos, o que poderia significar um pensamento fechado.
O professor Spinoza argumenta que a Teoria de Morin aponta
que o conhecimento pode ser potencializado a partir do fragmento
como parte do todo, considerando que as partes que formam o todo
podem modificar a visão unifocal do saber, o que em suas reflexões
considera que isto seja predominante.

PROF. SPINOZA: Morin nos mostra que o desenvolvimento do


conhecimento pode ser potencializado, o fragmento como parte do todo.
Nesse contexto podemos ressaltar as partes que formam o todo e por
tanto modificar a visão unifocal do saber que no momento atual é ainda
predominante.

A concepção deste professor alia-se ao pensamento da


complexidade, quando reconhece que as partes e o todo não são
dissociados. É preciso potencializar esta relação como superação de
uma educação pautada em uma perspectiva fechada, fragmentada
e isolada do todo; esta é uma herança, sobretudo, assentada nos
moldes do Cartesianismo e do Positivismo.
Na análise abstraída da fala do professor Rousseau, o ensino
complexo não produz um ensino fragmentado, mas sim um
ensino integral; destaca que o processo de ensino-aprendizagem
deve ser pautado na integração entre os diversos saberes, o que

256  Maria Sueli Lopes da Silva


consequentemente abre-se a novos saberes para além das disciplinas
ministradas pelos diversos professores.

PROF. ROUSSEAU: O ensino complexo não produz um ensino


fragmentado e sim um ensino integral. O processo ensino-aprendizagem
deve ser pautado na interação entre os diversos saberes e então se chegar a
novos saberes para além da disciplina de cada professor.

É notório na fala do docente a relação dos termos ensino


integral, interação de saberes e produção de novos saberes, que
perpassam por eles a ideia tanto de interdisciplinaridade como de
transdisciplinaridade; daí se chegaria ao ensino complexo, rompendo
com o fechamento disciplinar.
O professor Hegel destaca a propositura de Morin quanto à
religação dos saberes, percebendo a necessidade das mudanças
devido ao avanço da tecnologia da informação, a globalização
econômica e as relações internacionais. Diante disso, ele compreende
que o pensamento complexo, inspirado nas ideias de Morin, que é
caminhar tendo como o foco a solidariedade e a ética como forma de
religação dos seres e saberes, apoia-se nas reformulações das ciências
exatas e das ciências naturais; e para ele isso fica claro, os conteúdos
devem ser contextualizados.

PROF. HEGEL: Sabe-se que o arquiteto da complexidade, assim


conhecido por propor a religação dos saberes com novas concepções sobre
o conhecimento e a educação, percebeu a necessidade de fazer mudanças
devido o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e as
relações internacionais.
Fica compreendido que a sugestão de Edgar Morin é caminhar através da
solidariedade e da ética para que aconteça a religação dos seres e dos saberes,
apoiando-se na reformulação dos campos das ciências exatas e das naturais.
Está claro que o sociólogo é favor do uso de conteúdos contextualizados para
este fim.

A proposta de Morin acerca da religação dos saberes é a ideia


basilar defendida na fala do professor; para ele, a solidariedade e
a ética devem ser o caminho para a superação do isolamento não
só dos saberes, mas também na relação dos indivíduos fragilizados

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 257
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
por um sistema que exclui e prioriza os resultados em detrimento do
ser. Tudo isso traz um forte apelo a ressignificação dos conteúdos
mediados pela realidade em que os seres humanos estão envoltos.
Tendo por base a sequência apresentada sobre a noção de
complexidade dos professores, podemos destacar que há expressões
nas falas que revelam a concepção de complexidade desenvolvida na
literatura moriniana, como: conectividade e indissociabilidade dos
fenômenos; visão holística do objeto de estudo; ordem e desordem;
organização e auto-organização; as partes e o todo; religação dos
saberes e solidariedade e a ética. São termos que estão fundamentados
na vasta literatura sobre o pensamento complexo.
No arcabouço desse pensamento, esses termos e outros são
desenvolvidos na base epistemológica do pensamento complexo,
como princípios presentes em toda a trajetória da hominização
aprofundada no Método de Morin (2005). Para este pensador, na sua
vasta contribuição em torno do pensamento complexo, aprofunda
a compreensão do que seja a complexidade, definindo-a como “o
que está ligado, o que está tecido” (MORIN, 2005, p. 564); porém,
reconhece que é um movimento de interações e retroações que
envolve a inevitabilidade de desordem e de eventualidade em todas as
coisas, no conhecimento paira as incertezas (MORIN, 2005). Dessa
última decorre a essencialidade da educação em suscitar a natureza
interrogativa que se liga a possibilidades da busca do conhecer.
Deste modo, adentramos pelo século XXI com o desafio de
ensinar para a complexidade, quando Morin (2007, p. 63) aponta
que nele reside o duplo desafio “da religação e da incerteza”. Assim,
esclarece que “é preciso religar o que era considerado como separado.
Ao mesmo tempo, é preciso aprender a fazer com que as certezas
interajam com as incertezas” (p. 63). Pensar nesse desafio é cada
vez mais urgente na contemporaneidade, marcada por uma realidade
de múltiplos fenômenos, conhecida também como mundialização,
visto que tais fenômenos resultam em implicações de retroações na
relação dos problemas mundiais com os locais.
Os estudos da complexidade na perspectiva de Morin têm sido o
foco de pesquisadores, tais como Almeida; Petraglia (2015); Behrens;

258  Maria Sueli Lopes da Silva


Ens; Moraes (2015). São investigações que alicerçam e permitem
produzir conhecimento de maneira significativa e transformadora,
proporcionando a superação dos saberes desunidos, divididos e
compartimentalizados, exigindo uma reforma paradigmática, que,
segundo Morin, precisa apontar para aos saberes oriundos da
realidade, e que propiciem a visão “multidisciplinar, transversal,
multidimensional, transnacional, globais e planetários” (MORIN,
2001, p. 36).
Na obra O Método (2005, v. 3), Morin afirma que o conhecimento
é complexo e trinitário, e, por isso, precisa fazer dialogar suas
perspectivas: conhecimento empírico – perspectiva científica;
conhecimento reflexivo – perspectiva filosófica; e conhecimento
do valor do conhecimento – perspectiva epistemológica, para que
se realize o conhecimento do conhecimento. Estas perspectivas do
conhecimento complexo contribuem para o processo que envolve
reformas educacionais, ao promoverem a reflexão, ampliando
pontos de vista capazes de ir além das fronteiras que restringem a
aprendizagem do complexo.
Por conseguinte, se faz necessário interpretar a realidade
e, ao mesmo tempo, refletir constantemente na relação com o
conhecimento; é nesse processo que se efetiva a problematização
filosófica a partir da abordagem global e transdisciplinar.
É por meio das categorias que subsidiaram o Grupo de
Diálogo dos docentes que encontramos em seus discursos, de forma
recorrente, que os conteúdos curriculares devem se direcionar ao
enfoque centrado em um ensino globalizador; fato que significa
articular a vida, a realidade, os conteúdos de ensino e as dimensões
em que o homem está situado, como, por exemplo, o político,
econômico, afetivo, o que levará um processo transdisciplinar. Nessa
dinâmica não podemos esquecer que a ação de religar e problematizar
estão inseridas nesse processo.
Realçamos que a perspectiva de educar para o século XXI – e
que constitui o grande desafio – é estabelecer a religação dos saberes.
Neste sentido, Morin propõe como centro religador o Homem. Nesta
perspectiva, Morin, Almeida e Carvalho (2007, p. 69) aprofundam

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 259
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
que “religar as questões a partir do ser humano é mostrá-lo em seus
aspectos biológicos, psicológicos e sociais. Desse modo, poderia
chegar às disciplinas, mantendo nelas a relação humana e, assim,
atingir a unidade complexa do homem”.
Essa atitude, portanto, de aprender a religar e a problematizar
é fundamental; o que constitui tarefa vital, porque se funda na
possibilidade de um ensino centrado na tessitura do todo e das
partes, e assim encontrar caminhos que respondam ao desafio da
educação de nosso tempo.
A categoria, foco desta análise, impulsionou a avaliarmos, no
primeiro momento, que os resultados obtidos por meio do Grupo
Dialogal com os professores foram significativos e satisfatórios. O
resultado foi formalizado na proposta curricular da escola lócus da
pesquisa de intervenção; os eixos de problematização filosófica,
o que impactará na formação dos discentes, uma postura crítica-
reflexiva a partir da complexidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o enfoque na abordagem da complexidade em Morin,


acreditamos ter contribuído para as mudanças na forma de conceber
os conteúdos disciplinares a partir da perspectiva transdisciplinar,
a qual conduz ao pensamento complexo, considerando que os
professores foram provocados a pensar sobre o seu fazer educativo,
com base na reflexão acerca da relação entre a realidade em que se
ensina, e o que se pensa sobre uma proposta que traga no seu cerne a
relação articuladora do conhecimento, tendo presente a perspectiva
do ensino globalizador e transdisciplinar, oriundo da problematização
filosófica e almejando a complexidade do pensamento.
O resultado solicitado, de acordo com os encontros
desenvolvidos, durante a intervenção com os professores, nutriu-
se do referencial filosófico de Morin, que, à luz desta abordagem,
produziu efeitos significativos, impactando o trabalho docente e,
consequentemente, os discentes, no que diz respeito a pensar e agir
de forma ética, cidadã, planetária, sustentável e solidária, advinda

260  Maria Sueli Lopes da Silva


dos questionamentos que foram socializados no Grupo Dialogal.
Vislumbrando-se, dessa forma, os desafios e vicissitudes a serem
enfrentados para a inserção de uma matriz curricular disciplinar
idealizada partindo dos eixos de problematização filosófica,
norteados pela transdisciplinaridade.
As discussões realizadas com os professores levaram-
nos a definir no coletivo os eixos articuladores para um ensino
problematizador, como implemento político da proposta curricular,
fato que resultou nos eixos de problematização filosófica: Ensinar
a condição humana o que exige conhecer o mundo em que vive,
compreensão de si mesmo; vida biológica: meio físico e corpo;
condição humana: fatores naturais, políticos, morais e culturais e a
imaginação. Ensinar a ética do gênero humano cujo foco se centra
no agir de forma ética, democrática, inclusiva e solidária e respeito
aos direitos humanos. E o último eixo: Ensinar a identidade terrena
suas linhas problematizadoras, cuidado com o meio ambiente e a
tecnologia da informação, a globalização econômica e as relações
internacionais.
Ressalte-se que a intervenção filosófica não representou apenas
a inserção dos eixos de problematização filosófica na proposta
curricular da escola, mas os encontros com o grupo dialogal
favoreceram estudos, reflexões e necessidades a serem discutidas. Os
diálogos sinalizaram para as necessidades formativas dos docentes,
para que desenvolver, com maior propriedade, o ensino que atenda
a natureza do pensamento complexo. Esses diálogos também
foram propulsores para definirmos os eixos problematizadores e a
implementação do percurso metodológico para desenvolver os eixos
definidos pelos docentes.
Acreditamos que uma educação a partir da perspectiva
complexa que interliga os saberes constitui, de acordo com Morin,
uma reforma não só do pensamento, mas também em reformas
curriculares que possam direcionar os docentes na condução dos
conteúdos das disciplinas, situá-los em novos contextos, e, assim
possam levantar questionamentos diferentes, geridos por um
núcleo sistêmico, que são os eixos de problematização filosófica.

FILOSOFIA DA COMPLEXIDADE EM MORIN: A IMPLEMENTAÇÃO DE EIXOS


TRANSDISCIPLINARES PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE UMA 261
ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL – PARNAÍBA/PI
Podemos dizer que é uma dialética no constante devir. Então cabe
ao sistema educacional em todos os níveis da educação ensejar
essa reforma, como também fomentar as políticas públicas para tal
intento. A valorização profissional com investimentos na formação
é essencial para a concretização dessa reforma; só assim haverá
um rompimento com o modelo fragmentário que impulsionará o
pensamento multidimensional, multirreferenciado característico da
complexidade.

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264  Maria Sueli Lopes da Silva


CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO
FUNDAMENTO DA EPISTEMOLOGIA
NATURALISTA DE JOHN DEWEY

Maurozan Soares Teixeira

Introdução

Este trabalho é um estudo teórico sobre a epistemologia


naturalista do filósofo estadunidense John Dewey (1859-1952).
Tem como objetivo principal fazer uma caracterização do conceito
de experiência articulando-a a noção de natureza. A epistemologia
de Dewey se funda na experiência como um fenômeno natural,
biológico, social e histórico segundo a qual possibilitou uma nova
concepção do pensamento cujo propósito da inteligência é resolução
de problemas e de adequação do homem ao mundo.
O artigo discute em primeiro lugar o conceito de experiência
em John Dewey, em seguida analisa a concepção teórica que articula
experiência natureza e, apresenta as principais características da
epistemologia instrumentalista de Dewey.

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 265


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
Conceito de experiência em John Dewey

John Dewey é membro da tradição pragmatista americana,


herdou de Peirce o realismo científico na medida em que, defende uma
posição profundamente anticartesiana e inimiga do fundacionismo.
No realismo, Dewey acompanha o pensamento de Peirce no que
tange ao entendimento do real como sendo [...] “aquilo cujas
características são independentes do que alguém possa pensar que
elas sejam” (PEIRCE, 2016, p. 20). Contudo, a ação da mente vai
estar ligada à compreensão daquilo que lhe é revelado pelo exterior,
não sendo, pois, a consciência detentora do real em sua totalidade.
Assim como Peirce pensava, Dewey proclama que o
conhecimento deve começar na experiência, porém não entendida
como “experimentalismo” ou como uma espécie de sensualismo,
mas como um produto mental completo (BARRENA; NUBIOLA,
2013, p. 31). Esse produto mental completo não faz referência ao
pensamento cartesiano, mas à compreensão de que a experiência
passa pelo mental conduzindo o pensamento à compreensão das
coisas.
Considerado um pragmatista clássico, ao lado de Charles Peirce
(1839 -1914) e Williams James (1842-1910), Dewey desenvolveu uma
filosofia social e política que o distingue de Peirce e James. A sua
filosofia ele a denominou de instrumentalismo, enquanto Peirce
desenvolveu o seu “pragmaticismo” e James, o “pragmatismo”. Dewey,
enquanto seguidor desta tradição, defende que as ideias que não se
originam na experiência não conseguem produzir conhecimento.
A teoria do conhecimento do pragmatista John Dewey revela que
a mente é um mecanismo fundamental de resolução de problemas
e de adequação do homem ao mundo. Esta epistemologia está
inserida nas seguintes obras: Logic: the teory of Inquiry(1938), How We
Think(1910), The Quest for Certainty(1929) e Experience and Nature (1925).
Em todas essas obras citadas, Dewey descreve os fundamentos que
possibilitam a experiência e como essa experiência é desenvolvida,
tendo em vista uma crítica à maneira clássica de compreensão da
mesma. Contra este modelo clássico de experiência entendida como

266  Maurozan Soares Teixeira


algo que parte somente do sujeito ou aquela de um empirismo que
não se utiliza do experimentalismo é que Dewey exprime em sua
teoria e defesa do conceito de experiência.

Dewey se opõe ao conceito grego de experiência, bem como


ao conceito de experiência do empirismo não experimentalista
de tradição britânica. Nenhum pode se livrar da falácia
filosófica de querer converter os objetos do conhecimento em
entidades autônomas e ideias separadas de toda relação com os
procedimentos práticos. (NASCIMENTO, 2011, p. 82).

A crítica ao modelo clássico de compreensão da experiência está


inserida no momento em que a experiência não mantém aproximação
com a natureza, fazendo com que exista um compartimento separado
como outra estrutura, sem interligação e nem conexão. Esta não
conexão dá possibilidades para a existência de uma barreira que
não permite o deslocamento da experiência para com a natureza,
fazendo com que a ligação, em termos do evolucionismo, não
apenas seja quebrada, mas também desligada por completa do meio
natural, tornando essa noção de experiência produção de si própria,
franqueada somente ao homem.
Esta forma de experiência, baseada na subjetividade no
pensamento moderno, defendida por René Descartes, é fundacionista,
porque coloca o cogito como a base de todo o conhecimento e
abandona a experiência, colocando-a a margem da epistemologia.
Descartes parte da dúvida metódica para analisar existência das
coisas, e demonstra que a confiança que outrora existia através dos
sentidos, agora é sanada, e passa a valer o critério que o mental para
determinar os objetos e sua própria existência: “Tudo o que recebi,
até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos
sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que
esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se confiar
inteiramente em quem já nos enganou uma vez”. (DESCARTES,
1983, p.4).
No livro “Experiência e Natureza” (1980), Dewey faz uma crítica
à ideia de conceber a experiência como algo além do contingente,

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 267


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
para ele desta forma não haveria continuidade e conexão na natureza.
Para o filósofo, [...] “A experiência nunca se ergue acima do nível
do particular[...]. Só um poder que transcenda, na origem e por seu
conteúdo toda experiência concebível poderá alcançar autoridade e
direção universal, necessária e certa. Os próprios empíricos admitiram
a exatidão de tais afirmações” (DEWEY, 2011, p. 86).
A filosofia clássica entendia a experiência presa somente ao
particular sem autoridade e força para direcionar o conhecimento.
O conceito de experiência em Dewey foge de uma experiência onde
somente o mental detém o poder epistemológico. Isto porque quando
só o mental domina a ideia de conhecimento, a experiência é entendida
como algo puramente mecânico e material. Contudo os pensadores
clássicos condenavam a experiência que não fosse subjetiva,
demonstrando que ela proporcionava um conhecimento mecânico
da realidade e que precisaria alcançar essa transcendentalidade para
que pudesse sair deste plano.
Dewey versa a sua teoria sobre a crítica desse modelo de
compreensão da experiência; pois a experiência e a natureza em seu
pensamento apresentam uma sincronia, tendo em vista que as duas
“convivem harmoniosamente juntas, onde experiência apresenta-se a
si própria como método, e o único método para atingir a natureza”
(DEWEY, 1980 a, p. 3). Segundo Dewey a experiência torna-se
responsável pelo contato direto do homem com a parte natural e
que ela não é distante, mas interligada à natureza de tal forma que
tal experiência “penetra da natureza, atingindo suas profundezas e
de maneira tal que seu apoderar-se é capaz de expansão” (DEWEY,
1980 a, p.4). Contudo, esse apoderar-se, está longe de ser atributo
meramente mecânico, como entendiam os filósofos empiristas. Essa
expansão não se dá apenas no plano da natureza, mas, sim, em todas
as formas de expressividades dos corpos, seja humano ou qualquer
outro agente natural. Assim, a experiência no pensamento deweyano
pode ser identificada ao realismo ontológico.
Com base neste realismo, segundo Dewey (1980a, p. 4), “[...]
quando a experiência ocorre, não importa em que limitada porção de
tempo e de espaço, entra na posse de alguma porção da natureza, e de

268  Maurozan Soares Teixeira


maneira tal que torna outro de seus recintos acessíveis”. A experiência
é fundamental para o conhecimento da natureza, principalmente
por tornar a natureza mais acessível diante do aprofundamento das
realidades naturais que serviram e servirão para o homem. É com
a experiência que as informações referentes aos fenômenos naturais
e a toda a dinâmica de vida se torna passível de aprofundamento e
modificação.
Com base nessa concepção de experiência Dewey (2011, p.
90) argumenta, “onde quer que haja vida, há comportamento, há
atividade e para que a vida possa continuar torna-se necessário que
essa atividade seja contínua e adaptada ao meio ambiente”. Assim,
a partir desse pensamento, Dewey explica que vida e natureza estão
interligadas e que há uma adaptação e um processo de atividade
que desempenham os seres vivos. Dewey reconhece a atividade como
sendo uma ação exercida entre os seres vivos e o ambiente, num
processo de ação e padecimento. A atividade do ato de experienciar
é contínua e pede dos corpos mais do que adaptação, e sim criação,
desenvolvimento.
De acordo com Dewey, na obra Reconstrução em Filosofia
(2011), ao deixarem a forma passiva os organismos não esperam ser
modificados pelo ambiente, mas se dispõem a influenciar as futuras
modificações. Isto porque “não existe, no ser vivo, coisa que seja mera
conformidade com as condições, muito embora certos parasitas se
aproximem deste limite” (DEWEY, 2011, p. 90). Assim, a maneira
como acontece à modificação e adaptação dos corpos, acontece à
modificação e adaptação na parte experiencial, com maior grau de
elevação e reorganização do meio natural.
Em virtude deste argumento, os organismos sempre estarão em
contínua relação e modificação, no dizer de Dewey “as mudanças
produzidas no meio ambiente reagem sobre os organismos e sobre
suas atividades, de sorte que o ser vivente experimenta, e sofre as
consequências de seu próprio comportamento” (DEWEY, 2011, p.
91). Assim, os elementos não manterão uma condição de inércia, nem
de passividade, mas sim de constante atividade. Estes organismos
não ficam à espera de uma ação que os faça se movimentar, mas

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 269


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
buscarão sempre transformações que possibilitem conhecimento e
desenvolvimento.
No pensamento deweyano, acontece aquilo que se conhece
como “conexão entre as ações e atividades” (DEWEY, 2011, p.91).
Ele entende que a conexão íntima entre agir, sofrer ou submeter-se
a este modelo constitui aquilo que denominamos experiência. Não
faz sentido experiência e ações que não estejam em uma conexão.
Tais ações são importantes para que haja o conhecimento. A ação e
a experiência em conexão proporcionam sentido ao conhecimento.
A ação que é exercida serve para mostrar que a experiência está
presente em todos os espaços que são compostos por elementos
vivos e não vivos. Com isso, o sofrimento também é visto como uma
das maneiras pelas quais os organismos “experienciam”36 outras
realidades, sendo, pois, importante na obtenção do conhecimento.
Dewey explica que experiência não tudo que acontece. Para
o filósofo, só acontece uma experiência de fato quando acontece
uma ação que é causada pela tentativa de se descobrir algo ou que
se relacione com as transformações entre os elementos. Para ser
compreendida a experiência, é necessário que os corpos (elementos)
sofram e reajam do meio outra ação:

Suponhamos que o fogo se ateia num homem que está dormindo.


Parte do seu corpo é queimada pelas chamas. Entretanto a
queimadura não resulta do que ele fez. Não há nada em qualquer
modo instrutivo que possa ser denominado experiência. Há,
sim, uma série de meras atividades, tais como contrações
espasmódicas dos músculos. (DEWEY, 2011, p. 91).

Esta atividade para Dewey, não é tida como experiência,


mesmo que se pareça como algo experimental. Isto porque, para
ele, não há uma forma de aprendizagem e nem um processo de
acumulação do conhecimento. A dor sofrida pelo homem não foi
causada por uma ação conexa com a atividade. O que aconteceu não

36 O termo “experienciam” é usado por Dewey nas obras Experiencia e Natureza


e Reconstrução em Filosofia para designar a experiência como uma atividade
constante e contínua envolvida no chamado fluxo dos acontecimentos.

270  Maurozan Soares Teixeira


tem ligação com acontecimentos anteriores que possibilitem novos
acontecimentos e uma relação de continuidade:

Suponhamos agora que uma criança irrequieta coloque o dedo no


fogo. A ação é feita ao acaso, a esmo, sem intenção ou reflexão.
Porém, alguma coisa acontece. A criança experimenta a ação
de queimadura, sofre dor. A ação e a experiência, a impressão
e a queimadura, são coisas conexas: uma sugere e dá sentindo à
outra. (DEWEY, 2011, p. 91).

A defesa de Dewey em relação ao primeiro caso, que de certa


forma, se assemelha ao segundo por se tratar de queimadura, mas
que se distancia do segundo por demonstrar ações e atividades de
certa maneira diferentes, está na demonstração em que mostra
que a atividade do primeiro caso não tem uma relação direta de
ação e reação, sendo assim, o que aconteceu no primeiro caso foi
simplesmente uma série de atividades provocadas pelo sofrimento
desconexo. Já no segundo caso, acontece aquilo ao qual se pode
chamar de experiência num sentido vital e que possua significado na
vida. A criança aprendeu que não se deve atear fogo. Diante disso,
há no segundo caso um processo de continuidade e acumulação do
conhecimento de ação e reação conexa.
No pensamento deweyano as reflexões sobre estas conexões de
atividades são perceptíveis em um universo que está em constantes
mudanças e transformações, podendo ser vistas tanto a olho nu,
quanto com ajuda de aparelhos. Estas mudanças são possíveis por
conta da conexão das atividades de cada elemento. Nesta dinâmica
de mudanças, ocorrem as relações que são desenvolvidas pelos corpos
através da grandiosidade e diversidade que existem no universo. De
acordo com Dewey (1980, p. 13), “o universo é o conjunto infinito
de elementos, que se relacionam de diversas maneiras possíveis”. Os
elementos se entrecruzam ocorrendo a multiplicidade e variedade
dessas relações, que se fazem essencialmente precárias, instáveis e, ao
mesmo tempo, potencialmente ricas, pois possibilitam o crescimento
e a transformação. Essas transformações ocorrem a todo o momento

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 271


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
com uma dinâmica natural, sendo possível então a grandiosidade de
relações que se formarão a cada contato.
Os elementos, na visão de Dewey, estão em contínua
transformação e demonstram o sentido experiencial de cada corpo
ao se defrontar tanto com o novo quanto com o velho. Não importa
de que maneira será o contato, o que se percebe é que depois da
relação, os elementos não permanecem estáveis, sempre haverá uma
perpetuação de novas relações dando sentido a novas experiências,
fazendo com que surjam novas conexões e novas atividades.
Com isso, tudo o que possui existência viverá de acordo com as
relações mútuas com outros elementos. Os corpos se desenvolvem
de forma ágil a partir de uma ação sofrida de outro corpo, sendo
transformado a partir do experienciado e levado a modificação e
reciprocidade com outros corpos que também sofrerão alterações
(DEWEY, 1980, p. 13). Deste modo, Dewey caracteriza a experiência
como um agir sobre o mundo e não como uma mera “vivência
passiva” que o “intelecto sofre”, que é o modelo antigo.

Esse agir sobre outro corpo e, sofrer de outro uma reação é, em


seus próprios termos, o que chamamos de experiência. Nosso
conceito de experiência, longe, pois, de ser atributo puramente
humano, alarga-se à atividade permanente de todos os corpos,
uns com os outros. (DEWEY, 1980, p. 13).

Com isso, a experiência parte da ação exercida sobre os corpos


e da conexão existente entre esses corpos. Dewey alarga a experiência
à vivência no cotidiano. Isto porque, no pensamento deweyano,
todos os corpos estão incluídos na experiência. A diferença está nas
relações e nos objetos. No mundo dos objetos físicos da natureza,
como assim diz a ciência, as experiências diferem. Os corpos não
precisam conservar seu caráter principal e primário: o ferro ao passar
por alguns processos não apresenta necessidade essencial própria
que o faz tornar-se ferro novamente, ele não resiste no desejo de
permanecer o que era antes, com todas as características, “ao entrar
em contato com a água se transforma em bióxido de carbono”
(DEWEY, 1980, p. 113).

272  Maurozan Soares Teixeira


No plano humano é diferente, pois o ser humano não passa
a ser outro elemento. A ação entre os corpos necessita de uma
adaptação e readaptação. O corpo precisa conservar o organismo e
as experiências adquiridas, isto é, a pessoa humana não passa a ser
outra coisa, outro elemento diferente assim como acontece com o
ferro que se transformou óxido de ferro (ferrugem). As experiências
nesse plano são naturais e psicológicas; os corpos procuram agir
e reagir na tentativa de manter além da adaptação uma forma
equilibrada em seu plano de vida. A adaptação não está só no plano
biológico, mas também na construção criativa do ser, que por meio
do pensamento leva à reflexão e à “reconstrução” da experiência
(DEWEY, 1980, p. 113).
A vivência no curso normal da vida implica várias experiências,
principalmente os desejos e os impulsos naturais, sendo que essas
experiências possibilitam a abertura ao conhecimento, pois o
contato com a natureza não tem limitações, sendo a experiência
responsável por proporcionar a abertura para modificações
(NASCIMENTO, 2011, p.53). O teórico estadunidense descreve
isso como uma preparação para a reorganização das experiências.
E nessas preparações manifestadas através da vida, Dewey entende
que são o ponto de partida para o crescimento intelectual, desde
que o indivíduo consiga adiar-se da ação imediata e refletir, unindo a
observação à memória (experiências anteriores) (CARLESSO, 2008,
p. 6).
Para Nascimento (2017, p. 86), Dewey concebe a experiência
em conexão com natureza, tirando ideia de experiência apenas como
atividade subjetiva da consciência. Por este caminho, a experiência
torna-se o método capaz de fazer com que a natureza mostre suas
riquezas para a continuidade do conhecimento e reorganização de
novas experiências. Portanto, “a experiência é o ponto de partida e o
ponto de chegada da investigação” (NASCIMENTO, 2017, p. 81). É
com esse entendimento de experiência, que se percebe o afastamento
do pragmatista da filosofia clássica do tipo racionalista, bem como da
filosofia puramente empirista. Assim, pode-se entender a experiência,

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 273


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
na filosofia naturalista de Dewey, como uma situação, produtora de
uma síntese daquilo que se pode obter em dada circunstância.

Articulação teórica entre experiência e natureza

Vimos que a experiência para a filosofia de John Dewey só é


possível em articulação com a natureza. Em virtude disso, no primeiro
capítulo do livro Experience and Nature [Experiência e Natureza],
Dewey demonstrou qual o seu propósito em relação à epistemologia
e o naturalismo empírico: “[...] a filosofia aqui apresentada poderá
ser denominada naturalismo empírico ou empirismo naturalista,
ou, tomada ‘experiência’ em sua significação habitual, humanista
naturalista” (DEWEY, 1980, p.3). Dewey procura afastar-se das
filosofias clássicas que dicotomizaram esta relação, colocando o
homem e a experiência de um lado, e do outro, a natureza.
A filosofia da experiência de Dewey (1980, p.3), parte das
ideias desenvolvidas pelo darwinismo em relação à natureza em seu
processo evolucionário. Dewey amparado nesta abordagem descreve
que os corpos se adaptam ao ambiente e dele fazem suas próprias
experiências. Na filosofia clássica tal entendimento não acontecia,
sendo, pois, “introduzido algo não natural por meio da razão ou da
intuição, algo supra empírico” (DEWEY, 1980, p.3). Diante disso, o
filósofo destaca que, o conceito clássico de experiência era entendido
de forma errônea, pois tal conceito não entendia a experiência ligada
à natureza, introduzindo assim por dizer, algo subjetivo, colocando a
natureza separada da experiência.
Dewey apresenta a experiência em articulação com a natureza
como um processo de “continuidade”, ou seja, como um devir. Este
processo também pode ser descrito como atividade segundo a qual
a natureza se produz. Em relação aos seres vivos estes desenvolvem
processos de adaptação cuja experiência os potencializa para a
continuidade. Em relação ao homem esta atividade não é distinta, de
maneira que esse conhecimento adquirido dará possibilidades para
o surgimento de ideias ou representações sobre o mundo que tem
um caráter muito mais utilitário que transcendental; são estas ideias

274  Maurozan Soares Teixeira


tornadas práticas que garantem a atividade. Assim, o pensamento
reflete a experiência como um continuum responsável pela atividade.
Deste ponto de vista, Dewey formula uma ideia de conhecimento
proveniente desta intervenção do pensamento no mundo e, assim,
ele defende uma epistemologia naturalizada segundo a qual não
cabe mais justificar o conhecimento, mas reconhecer a sua origem
nos processos naturais, biológicos, cognitivos e inclusive históricos.
A experiência natural não é aquela do sujeito introspectivo, mas
uma relação interacionista entre o sujeito, o mundo, o ambiente e a
cultura (DEWEY, 1980, p. 90).
O pensamento deweyano se caracteriza diante de uma forte
defesa e argumentação contra a ideia de experiência e natureza
desarticuladas. Em sua defesa, Dewey apresenta um caráter científico
para articular experiência e natureza. Em Experiência e Natureza (1980),
Dewey permite a visualização do seu pensamento epistemológico
junto à natureza, perante a aplicabilidade do método científico e
experimental à filosofia, mantendo como principal estrutura uma
ideia filosófica de experiência e natureza.
Assim, Dewey mostra outro contexto e chama atenção por
demonstrar que a experiência e natureza não estão separadas, mas
“convivem harmoniosamente juntas, onde a experiência apresenta-
se a si própria como método, para atingir a natureza, [...] onde a
natureza revela empiricamente (pelo uso da ciência empírica natural)
o desenvolvimento posterior da experiência” (DEWEY, 1980, p. 3).
É com essa ideia de articulação que Dewey vê a possibilidade de
conexão que desenvolva novas experiência. Neste ponto ele apresenta
a chave para a busca de conhecimento seguro, ou seja, aquele em
que derivou da observação dos fatos e pode ser usado no processo
adaptativo com resultado positivo.
O grande problema da filosofia racionalista foi se apartar da
natureza. O pesquisador que se utiliza desse método, antes de tudo
e de qualquer outra influência, deve entender e “tomar providência
para que tais empreendimentos de ordem teórica partam do objeto
diretamente experienciado e nele terminem” (DEWEY, 1980, p. 4). Isso
ocorre porque o objeto é a principal fonte da inquirição e não o sujeito.

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 275


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
Os cientistas têm a capacidade de explicar eventos que existiram
a milhões de anos e de informar sobre possíveis acontecimentos
futuros. Tudo isso é possível graças à utilização do material coletado
da natureza e da articulação dessa natureza com o método de
verificação ao qual vai buscar responder a novos acontecimentos e
formas de continuidade da experiência. Com isso, “o geólogo, por
exemplo, não saltou do objeto que ele vê e toca para algum evento
pertencente a eras passadas; ele comparou o objeto observado com
muitos outros, de diferentes tipos, encontrados ao redor de todo o
globo” (DEWEY, 1980, p. 5). O cientista citado por Dewey procura de
forma sucinta a continuidade da experiência, possibilitando a partir
da comparação de outros objetos e experiências, respostas plausíveis
para o entendimento das coisas.
Segundo Dewey (1980, p. 3) “a experiência na abordagem
clássica formava um véu ou tela que nos separava da natureza”.
Quando a experiência não é vista em termos naturalísticos, a natureza
é interpretada como algo transcendental e até mesmo as abordagens
empiristas terminam por não considerar o caráter naturalístico da
experiência. A este respeito Dewey escreve:

Conforme uma escola oposta, a experiência apresenta-se


igualmente em situação desvantajosa, pois a natureza é pensada
como significando algo completamente material e mecanicamente
determinado; estabelecer uma teoria da experiência em termos
naturalísticos é, portanto, degradar e negar os valores nobres e
ideais que caracterizam a experiência. (DEWEY, 1980, p.3)

Como se vê, Dewey enfrenta não somente a tradição


racionalista, mas também o empirismo mecanicista; a crítica de
Dewey consiste em afirmar que nestes termos a experiência perde
seu valor de possibilitar uma conexão para o desenvolvimento do
conhecimento. A experiência no pensamento clássico, além de tornar
a ideia de natureza distante, também a tornava passiva e dependente
de artefatos, sendo até capaz de compreender a natureza como algo
mecânico de difícil acesso, sem valor ou nobreza. A natureza era
compreendida somente como material, esquecendo o seu caráter

276  Maurozan Soares Teixeira


mutável que permeia todos os campos dos elementos biológicos e
não biológicos. Com a articulação e renovação que Dewey faz do
conceito de experiência e da noção de conexão entre as experiências
futuras e a natureza, a ciência toma espaço e se desenvolve causando
certa revolução no mundo do conhecimento.
Diante disso, a articulação entre experiência natureza no
pensamento deweyano permite perceber a revolução que a ciência
causa interligando a experiência à natureza. Esta revolução
permite também entender a não dependência em uma ciência de
possibilidades finitas, presas a modelos arcaicos e imutáveis. “Em vez
de um universo fechado, a ciência brinda-nos agora com um universo
ilimitado no escopo e no tempo, sem limites aqui ou ali, nesta ou
naquela extremidade, infinitamente complexo, tanto na estrutura
quanto na extensão” (DEWEY, 2011, 74).
Para Shook (2002, p. 150), “[...] Peirce e Dewey descobriram
que a experiência apresenta juízos universais apropriados no caso de
processos naturais”. Para este intérprete a compreensão de Dewey de
experiência se torna desta maneira distante do modelo de experiência
proposto por Hume e Mill, assim, os traços apresentados na
articulação da experiência e natureza desvela quais os fundamentos
que a ciência deve se direcionar. Esta posição distante dos demais
pensadores, exibe que a “universalização de que trata Dewey não é
a de um conteúdo universal ou de um ente absoluto. O que requer
a universalidade é o processo de investigação, sua possibilidade de
aplicação em situações subsequentes e sua condição intrínseca de
autocorreção” (NASCIMENTO, 2017, p. 74).
Quando à universalização dos conteúdos e a mecanização da
natureza acontecia no pensamento clássico a “natureza encontrava-
se em situação de dependência, coagida, por assim dizer, a produzir
um número restrito de resultados estereotipados” (DEWEY, 2011, p.
79). O não elo entre experiência e natureza, tornava o conhecimento
preso e restrito, passivo e sem abertura para continuidade,
dependente da consciência ou de algo totalmente distante no campo
estável mecânico; e mantido com certa submissão e fins que já
estavam fixados.

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 277


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
A natureza não tinha liberdade de se abrir para facilitar a
compreensão dos acontecimentos e nem tão pouco para manter uma
ação e atividade em conexão acumulativa. Com isso, Dewey defende
a libertação da natureza, para que a mesma possa contribuir com o
conhecimento, mas não o torná-lo como algo mecânico e somente
material, isto porque, “quando a natureza passa a ser encarada como
jogo de interações mecânicas, perde aparentemente todo o sentido
e finalidade” (DEWEY, 2011, 79). A natureza não pode ser entendida
como sendo atividade puramente mecânica, mas deve ser entendida
como aquela que engloba todos os artefatos da vida, sem exceção e
com maestria, sem deixar guiar por fatos que a faça perder o foco na
conexão de atividades.

Desenvolvimento do pensamento através da experiência

A obra de Dewey “Experiência e Natureza” tem como objetivo


explorar o processo de constituição e desenvolvimento do
pensamento humano como um dado natural. O desenvolvimento
do pensamento, a produção das ideias e o cultivo das crenças são
condições de possibilidades de ação e resolução de problemas.
De acordo com Nascimento (2014, p. 54), “Dewey desenvolve um
programa que visa demonstrar como o pensamento se funda na
experiência”. Essa adaptação e cognição pensada por Dewey não
se assemelha ao pensamento clássico em relação à experiência, pois
o mesmo colocava os estados do mental (consciência) como mera
contemplação, sem uma interação com a experiência natural. Com
isso, a consciência em Dewey não pode ser tomada como algo que
é só contemplação. Ela tem a capacidade de reter as experiências
vividas pelo homem naturalmente e transformá-las em conhecimento.
Segundo Dewey (2011, p. 35), o homem com sua consciência “[...]
faz a associação de acontecimentos presentes àqueles semelhantes
ocorridos no passado”. Estes acontecimentos não estão dissociados
da natureza, sendo, pois, possível uma compreensão do espaço
natural que cerca o homem.

278  Maurozan Soares Teixeira


Assim, diante dessa associação, o homem carrega consigo a
realidade histórica, pois ele é capaz de recordar todo o conhecimento
adquirido no passado e transformá-lo em novas experiências. Em How
We Think [Como pensamos] (1919), Dewey destaca a importância do
pensamento reflexivo para a experiência e para a investigação sobre
as crenças já existentes enquanto uma abertura para se adentrar a
natureza com maior vigor. Ele esclarece o sentido da observação da
natureza nestes termos: “Portanto, se advertirá que a observação não
se opõe ao pensamento nem é independente dela. Pelo contrário, a
observação reflexiva é ao menos em sua metade pensamento; a outra
metade é a manutenção e desenvolvimento de muitas hipóteses”.
(DEWEY, 1980, p.80).
Com base nesta lógica, pensamento e experiência só podem ser
entendidos em comunhão. Com isso, ele enfatiza a importância de se
unir pensamento à experiência, pois somente a partir da consciência
completa e refinada é que a experiência passa a um nível mais
elaborado de racionalidade; sendo, pois, a consciência é um filtro
das experiências angariadas no dia-a-dia.

O que há de fundamental, nesse modo de ver a experiência, é a


sua identificação com a natureza. Os pontos de vista do velho
dualismo de natureza e experiência, em que esta era um simples
instrumento de análise daquela. Daí a experiência ser considerada
transitória, passageira, pessoal, contra a realidade permanente
do mundo. (WESTBROOK et al, 2010, p. 34).

Esse dualismo não reconhecia natureza e experiência como


sendo algo ligado; sendo, pois, a experiência em uma fase da
natureza, uma forma de interação entre os corpos que dela fazem
parte. Assim, a experiência é um modo de ser da existência da própria
natureza. O que existe entre ambas é uma relação de processamento
de elementos do universo.
Com isso, a crítica à maneira clássica de ver a experiência e a
natureza se fortifica, pois não há como separar as duas, deixar cada
uma desenvolver suas próprias atividades sem a relação processual.

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 279


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
Quando essa separação ocorre a experiência fica sujeita a experienciar
a si própria. Quanto a isso Dewey explica que,

Quando os objetos são isolados da experiência através da


qual são atingidos e dentro da qual funcionam, a experiência é
reduzida ao simples processo de experienciar, e experienciar é por
esta razão tratada como algo também completo em si próprio.
(DEWEY, 1980, p. 12).

Quando a experiência se coloca de forma isolada da natureza,


ela se auto experiência. Para Dewey, isso é tido como um grande
absurdo, pois o experienciar que experiencia a si próprio, está
apenas fazendo a experiência dos próprios estados e processos da
consciência. Dewey (1980, p. 12) diz ainda: “[...] desde o século XVII
essa concepção de experiência, como equivalente de consciência
particular subjetiva, em contraposição à natureza, que consiste
exclusivamente de objetos físicos, tem devastado a filosofia”. Fica
clara a falta de conexão entre a natureza e a experiência, o fato
destas realidades serem tratadas como coisas totalmente distintas,
sem ligação nenhuma e que não tem relação entre si produziu o
que Dewey chamou de dualismos que geraram as pseudo-questões
filosóficas. A originalidade do autor consiste em adotar o conceito
de experiência, no sentido naturalista, evolucionista, cuja explicação
dos fenômenos não se dá pela dimensão sensível ou intelectiva, ou por
uma necessidade de demarcar o que é filosofia e o que é ciência. Para
Dewey, ao contrário, tudo está em conexão; ele como um autêntico
pensador pragmatista trouxe o debate epistemológico, ontológico e
ético para o solo da vida de seres humanos contingentes e, em virtude
disto afirmava:

Os fenômenos da vida social são tão relevantes para o problema


da relação entre individual e o universal quanto os da lógica; a
existência, na organização política, de fronteiras e barreiras, da
centralização, do intercâmbio através de fronteiras, de expansão
e de absorção, tornar-se-á exatamente tão importante para as
teorias metafísicas [...] quanto a análise química. (DEWEY, 1980,
p. 16).

280  Maurozan Soares Teixeira


Em virtude desta explicação, Dewey sustenta que a experiência
é muito mais que aquilo que o sujeito experiencia de forma
individual sem contribuição da natureza. Tudo deve ser levado em
consideração dentro da ideia de epistemologia naturalizada que
não segue mais moldes clássicos. Assim, só a união entre natureza
e experiência transformará todos os objetos em algo que possua um
valor inestimável e uma nobreza quanto à aceitação no campo dos
pensadores e cientistas.
A partir dessa unidade com a natureza, é possível entender que
os objetos ‘experienciados’ são muito mais do que mera imagem do
real. Assim, Dewey (1980, p. 17) descreve: a “natureza é constituída
de maneira tal que todas estas coisas, uma vez que se apresentam
concretamente, são naturalmente possíveis: não reduzidas à mera
aparência contrastante com a realidade”. Portanto, os objetos não
são passíveis em relação à experiência, no que tange a maneira como
se relacionam com o ser humano.
Diante disso, a experiência também estará coadunada com
as sensações. Dewey fala sobre essas sensações com relação ao
conhecimento e a capacidade que a experiência tem de fazer parte
do processo vital.

Quando a experiência se identifica com o processo vital e as


sensações são tomadas como pontos de reajuste, desaparece
totalmente o suposto atomismo das sensações. Com este
desaparecimento fica abolida a necessidade de uma faculdade
sintética da razão superempírica para ligá-los. (DEWEY, 2011, p.
93).

Dewey expõe que através da experiência as sensações são


reajustadas ou reorganizadas. A experiência é assim por dizer,
processo de adaptação cuja finalidade é ação, hábito, a função
ativa, marcada por conexões de ação e reação. O filósofo assume
uma posição crítica em relação à filosofia transcendental de Kant no
que diz respeito à necessidade de uma faculdade sintética da razão.
Segundo Dewey (1980, p. 9) a experiência é nossa
contingência:

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 281


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
[...] experiência é uma palavra de duplo sentido. Como suas
congêneres, vida e história, ela inclui aquilo que os homens
obedecem e fazem, aquilo que eles se esforçam por conseguir,
amam, creem e suportam, e também como os homens agem e
sofrem a ação; em suma processos de experienciar.

Nesse processo de experienciar, são levadas em consideração


as ações que os seres sofrem em sua história, tanto de quem está
iniciando a vida quanto de quem já sofreu tais ações. Para Dewey
(1980) a experiência, também encontra seus valores igualitários em
coisas simples como, por exemplo: na história, na vida cotidiana e na
cultura. Segundo Dewey “É significativo que vida e história possuam
a mesma plenitude de sentido indiviso. Vida: denota função, uma
atividade compreensiva. História: proezas realizadas, as tragédias
sofridas, registros, leis instituições, propósitos e planos” (DEWEY,
1980, p. 10).
Dewey sustentou que todo e qualquer conhecimento envolve
mediações, então para ele não faz sentido falarmos em termos de
distinção entre conhecimentos mediatos e conhecimentos imediatos.
De tal modo que, para Dewey no âmbito das mediações ou em
toda “asserção garantida” está envolvida uma função de inferência.
Portanto, não há nesta posição conhecimento imediato como pré-
condição para o conhecimento mediato.
Dewey apresenta a experiência como decorrente de dois
processos:experiência primária e experiência secundária. A
experiência que Dewey defende é fundamentada a partir do método
empírico, levando em consideração a configuração de duas formas
de se entender a experiência. Com essas duas formas ele adequa a
experiência ao uso da reflexão (pensamento sistemático). Essas duas
formas são chamadas de, primeiro, a experiência primária (objetos
grosseiros da experiência), e e segundo, a experiência secundária
(objeto refinato que se obtem pelo crivo da reflexão). Assim, Dewey
(1980, p. 7), descreve as diferenças entre os tipos de experiências,
“a diferença é a existência entre aquilo que é experienciado como
resultado de um mínimo de reflexão incidental e aquilo que é
experienciado em consequência de investigação reflexiva contínua e

282  Maurozan Soares Teixeira


dirigida”. Diante disso, é a partir do pensamento sistemático que o
processo de refinamento e organização das experiências acontece.
A intenção objetiva de Dewey em Experiência e Natureza foi
desvelar os traços dos objetos que se mostram à experiência. A
conclusão é que não é possível o conhecimento da coisa em si, mas
apenas a constatação dos atributos que são encontrados em forma
de atividade. Ele chamou estes atributos de coisas “experienciadas”.
Quando esses atributos são encontrados, passam de uma experiência
desorganizada (primária) e instintiva às situações mais refinadas pela
experiência secundária (trabalho sistemático da razão científica ou
filosófica).
A experiência deve passar por um refinamento de ideias vindas
da experiência primária. Deste ponto de vista ele diz que, “[...] os
produtos derivados e refinados experienciam-se somente por causa
da intervenção do pensamento sistemático” (DEWEY, 1980, p. 9).
O problema que Dewey se dispõe a resolver consiste em apresentar
duas maneiras de experienciar: a maneira espontânea e ordinária e
a maneira refinada da ciência. A novidade nesta argumentação é o
caráter prático da experiência e do conhecimento advindo desta. Não
interessa para Dewey uma discussão sobre origem do conhecimento
em termos metafísicos, ele constata esta origem no mundo natural
e o interpreta como ferramenta fundamental no processo de
sobrevivência e adaptações. Ele não abandona a racionalização, a
lógica de constituição do pensamento, ocorre que tal lógica incide
sobre a resolução de problemas.
O refinamento para Dewey (1980) além de filtrar o material
obtido da experiência primária e torná-lo plausível para ser utilizado
em outros meios do conhecimento, também contribui para uma
intervenção elaborada da experiência. É ´por meio da experiência
primária (bruta) que a ciência se utiliza para dela obter seus
testes necessários para se adentrar à natureza. Dewey reconhece
a importância do darwinismo para a reelaboração da atividade
filosófica.
Agora surgem as seguintes dúvidas em relação a esse método
empírico: como ocorre esse processo de utilização das experiências

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 283


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
primárias? Como a experiência primária poderá ser modificada em
experiência secundária? Quanto a estes questionamentos é necessário
entender que a experiência bruta é de suma importância, pois é da
experiência primária (bruta), que Dewey (1980) a descreve como
sendo o espaço natural (natureza) que se fundamenta as ciências
naturais. Um garimpeiro, por exemplo, extraí do minério de ouro
grandes pepitas para posteriormente transformá-las em joias de
valores exuberantes, e que possam ser usadas por várias pessoas. Um
físico usando métodos reflexivos sobre as teorias que partiram da
experiência primária poderá calcular distâncias e feitos luminosos.
Assim, a passagem da experiência primária para a experiência
secundária se dá através da reflexão e reorganização da experiência
obtida do material bruto. O garimpeiro obteve o minério (matéria
bruta), e depois o modelou para se tornar uma joia (refinamento da
matéria bruta), ou seja, experiência secundária. O físico por sua vez, já
apresenta o cálculo e explicação dos efeitos luminosos como exemplo
de uma experiência secundária a partir da reflexão que o mental
proporciona. Diante disso, o próprio Dewey (1980, p. 7) esclarece,
“o objeto da experiência primária põe os problemas e fornece os
dados iniciais da reflexão que constrói os objetos secundários”.
A divergência entre filosofia e ciência não é uma problemática
a ser considerada por Dewey. Ele não aceita a discussão teórica,
sobretudo, dos positivistas lógicos de demarcar o que é ciência
e o que é não ciência. Em Experiência e natureza (1980), Dewey
proclama o seu objetivo em relação a filosofia e ciência (experiência
experimental), deixando claro que não pretende elaborar uma teoria
acerca da separação entre ambas, mas “[...] mostrar os traços gerais
das coisas experienciadas e interpretar sua significação para uma
teoria filosófica do universo em que vivemos” (DEWEY, 1980, p. 6).
Para Dewey essa experiência se torna possível, porque “o
pesquisador científico fala e escreve a respeito de eventos e qualidades
particulares observadas, a respeito de cálculos e raciocínios
específicos” (DEWEY, 1980, p. 6). Com isso, quando tais ações são
desenvolvidas pelos pesquisadores, eles já estão se remetendo ao
contexto filosófico refletindo sobre essas ações. Assim, é possível

284  Maurozan Soares Teixeira


dizer que, não há uma separação entre filosofia e ciência. Mesmo
que o pesquisador não comente a palavra experiência, tornando-a
explícita na argumentação, ela ainda assim, está presente na defesa
e argumentação teórica. Isto porque, segundo Dewey (1980, p. 6),

Tudo o que é designado pela palavra experiência está de tal


modo incorporado aos procedimentos e ao objeto científico que
mencionar experiência seria apenas duplicar, através de um termo
geral, aquilo que já se encontra circunscrito por termos definidos.

Este pensamento defendido por Dewey apresenta que “a


experiência não admite divisão entre o ato e a matéria, sujeito e
objeto, coisa e pensamento, pois todos envolvem unidades, são
conexões” (NASCIMENTO, 2017, p. 99). A conclusão de Dewey é a
de que o debate em torno do que é ciência e não ciência desenvolvido
por Kant e pelos positivistas lógicos apenas reforçaram os dualismos
presentes na história da filosofia. O objetivo deste filósofo é afastar
das filosofias aprioristas e, sob a influência de Peirce advoga que o
melhor método para fixar as crenças é o científico. Dewey acredita
que o desejo de se chegar as crenças é o combustível para buscar as
experiências e delas obter a reflexão necessária para a vida.
Dessa forma a epistemologia pragmatista tem um caráter
instrumentalista uma vez que a sua concepção de pensamento e
ideias são regras de ação. Portanto, o conhecimento não é resultante
de uma mente ou consciência privilegiada que produz saberes sobre
o mundo, mas de uma mente em processo de experienciar que é
produzida ao tempo em que também produz conhecimento. Dewey
argumenta que o homem usa a inteligência como uma ferramenta
eficaz para conhecer a realidade tendo em vista sua inserção no mundo.
Os acontecimentos da natureza são apreendidos e transformados em
crenças que gerarão outras realidades de inquirição.
A concepção de conhecimento em Dewey não toma como ponto
de partida as certezas estabelecidas a priori, pois só podemos saber
o que são as coisas ao final do processo de inquirição, não tendo
sentido perguntar pelo conhecimento e sim pelo termo “inquiry”,
que Dewey herda de Peirce (ARAÚJO, 2008, p. 2). Dewey passa a

CONCEITO DE EXPERIÊNCIA ENQUANTO FUNDAMENTO 285


DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
preferir a utilização do termo inquirição, que será utilizado no sentido
de assertividade garantida. O termo foi introduzido a partir da sua obra
Lógica, de 1938, para substituir crença e conhecimento. A intenção de
Dewey foi afastar-se das imprecisões do termo crença, cunhado por
James, e adotar uma linguagem mais científica e menos ambígua na
defesa de seu naturalismo filosófico (WAAL, 2007, p. 170).
O conhecimento é resultante dessas mediações: Para melhor
ilustrar esta posição, podemos dizer de maneira sumária que:
a) o conhecimento, em sentido geral, está sempre e em cada
caso conectado com uma investigação; há uma continuidade na
investigação; b) a conclusão ou o fim da investigação deve distinguir-
se dos meios pelo qual se chega à conclusão garantida, entretanto
o juízo último é construído através de uma série de juízos, que são
parciais e intermediários; c) os meios intermediários da investigação
se formulam em discursos, em proposições, que exigem relevância
e eficácia, desse modo, o conteúdo dos juízos tornam-se materiais
e fáticos, portanto, os conceitos ou estruturas conceituais podem
ser compreendidos como ferramentas operativas usadas para se
alcançar o conhecimento; e d) as conclusões obtidas por meio deste
processo, não determinam que os objetos e situações futuras fiquem
isentos de reexame (DEWEY, 1980).

Considerações finais

A filosofia naturalista de Dewey corrobora para a sistematização


de sua concepção de conhecimento, uma concepção anticartesiana
e antifundacionista. Esta sistematização tem na experiência a
força necessária para se chegar à natureza e dela abstrair o que for
necessário para manter um conhecimento contínuo que se renova a
cada experiência.
Buscou-se, neste estudo, compreender e caracterizar o conceito
de experiência de Dewey e sua crítica a epistemologia tradicional,
destacando a importância do conhecimento desenvolvido através
do método experimental em conexão com a natureza. Foi possível
adentrar também a importância dos tipos de experiência que

286  Maurozan Soares Teixeira


Dewey apresenta em seu pensamento, a experiência primária, como
material inicial da investigação e a experiência secundária, quando
se dá o processo de refinamento das experiências primárias e a
posteriormente a organização dessas experiências.
Se pretendeu aqui demonstrar a posição anticartesiana e
antifundacionista de Dewey, cuja filosofia se desligou da visão dualista
em que se separava a realidade através dos pares binários: mente e
mundo, natureza e experiência, sujeito e objeto. Em seu lugar Dewey
apresenta uma concepção de experiência marcada pelas conexões
e interações. O trabalho desta experiência tem como consequência
novas e melhores formas de adaptações.

REFERÊNCIAS

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DA EPISTEMOLOGIA NATURALISTA DE JOHN DEWEY
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Rodrigues Paes Leme, Anísio S. Teixeira, Leônidas Gontijo de
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PEIRCE, Charles Sanders. Cómo esclarecer nuestras ideas. In: Obras


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WAAL, Cornelis De. Sobre o pragmatismo. Trad. Cassiano Terra


Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

WESTBROOK, Robert et al. (org). John Dewey. Recife: Fundação


Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

288  Maurozan Soares Teixeira


CRÍTICA DE RICHARD RORTY À
TEORIA DO CONHECIMENTO COMO
ESSÊNCIA ESPECULAR

Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso


Edna Maria Magalhaes do Nascimento

Introdução

O
presente artigo baseia-se numa análise sobre a
crítica que o filósofo norteamericano Richard Rorty
constrói sobre a filosofia de herança platônica,
cartesiana e kantiana, cuja explicação sobre o conhecimento deriva
de uma perspectiva mentalista com base na noção fundacionista
e representacionista do conhecimento. Rorty faz objeções a esta
perspectiva filosófica e discute a necessidade de superação da mesma.
Em sua obra seminal “A Filosofia e o Espelho da Natureza” (1979),
o filósofo critica este modo de fazer filosofia que se consolidou
na tradição ocidental cuja ideia principal de conhecimento esteve
associada à metáfora da mente como um espelho que reflete a
realidade e inspeciona tudo, em busca de uma objetividade derivada
da capacidade da razão de apreender fidedignamente a realidade.

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 289


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR
Rorty propõe o abandono da busca interminável pela
objetividade do conhecimento e conclui que, o que se pode
compreender a respeito das explicações filosóficas sobre o
conhecimento, a verdade e o mundo é que estas narrativas foram
desenvolvidas à luz de pseudos problemas filosóficos, como a busca
do fundamento e a objetividade do mundo, sendo que estes assuntos
podem ser reescritos a partir de novos vocabulários. Neste sentido,
a filosofia de Rorty é antes de tudo, antimentalista, antimetafísica e
antifundacionista. O problema não está na busca de um fundamento
ou uma posição universal que nos indique como conhecemos, como
devemos agir, ou o que somos. Rorty deixa de lado estas questões e
procura uma perspectiva ética e política para levantar questões, por
exemplo, sobre o que podemos nos tornar?

Richard Rorty: legado intelectual

Richard Rorty (1931-2007) apresenta seu pensamento


filosófico reconhecendo a importância da tradição pragmatista para
a sistematização de uma teoria filosófica crítica do mentalismo,
engajada em recuperar na filosofia sua função político-social. Ele vê
o pragmatismo clássico como fonte de inspiração, sobretudo com
relação às contribuições de filósofos como William James (1842-1910)
e John Dewey (1859-1952), bem como de autores contemporâneos
considerados por Rorty revolucionários no sentido de produzirem
novas interpretações a respeito das noções de verdade, de experiência
e conhecimento, a exemplo de Heidegger (1889-1976), Quine (1908-
2000) e Wittgenstein (1988-1951).
Para compreender o projeto rortyano de desconstrução da
filosofia tradicional, fundada, segundo o autor, na hipertrofia da
mente como modelo filosófico explicativo da realidade, recorre-se
à Hamberg (2001, p. 1) que apresentou Rorty na condição de um
filósofo cuja,

[...] marca distinta e controversa [...] se expressa ao longo de dois


eixos principais. Um é negativo – um diagnóstico crítico do que

290  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


Rorty considera os projetos que definem a filosofia moderna.
O outro é positivo – uma tentativa de mostrar como a cultura
intelectual se pareceria, uma vez que nos libertássemos das
metáforas que regem a mente e o conhecimento nas quais os
problemas tradicionais da epistemologia e metafísica (e de fato,
na visão de Rorty, a autoconcepção da filosofia moderna) estão
enraizados (HAMBERG, 2001, p. 1 apud RORTY, 1994).

Isso significa que o projeto de crítica ao mentalismo se constitui


como parte central da obra Philosophy and the Mirror of Nature (Filosofia
e Espelho da Natureza, 1979), cuja estrutura divide-se em uma narrativa
sobre a descrição do mental, ou seja, como a filosofia ocidental
inventou a ideia de teoria do conhecimento e a ênfase na crítica às
teorias da verdade de caráter representacionistas, que o levam a
buscar uma verdade sem espelhos que possibilite a construção de
uma filosofia edificante. Para Hamberg (2001), o alvo de Rorty é a
crítica a ideia filosófica de conhecimento como representação, como
um espelhamento mental de um mundo externo à mente.
Para entender o engajamento de Rorty nesse projeto filosófico
cuja tarefa é entender o modo como os problemas filosóficos
aparecem, desaparecem ou mudam de forma enquanto suposições e
vocabulários diversos é preciso conhecer um pouco da sua trajetória
pessoal e intelectual. Richard Rorty nasceu na cidade de New York em
1931, filho dos intelectuais estadunidenses James Rorty e Winifred
Raushensh que também eram escritores e ativistas dos círculos
mais conhecidos da cidade de New York entre as décadas de 1920 e
1940. Rorty cresceu no meio de intelectuais da esquerda reformista e
anticomunista no meio do século XX. Rorty (1998) declara que dentro
deste círculo ele vivenciava ideias que combinavam antistalinismo
com ativismo social esquerdista e o pragmatismo deweyano se
relacionavam de forma fácil e natural. Em 1946, Rorty foi para a
Universidade de Chicago, especificadamente para o Departamento
de filosofia que na época tinha em um dos seus quadros de
professores, pensadores de expressões como: Rudolph Carnap,
Charles Hartshorne e Richard McKeon. Rorty iniciou sua careira
acadêmica muito cedo. Mesmo tendo crescido em uma comunidade

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 291


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR
do interior de Nova Jersey seus pais encaminharam-no a uma escola
universitária da Universidade de Chicago, na qual fez sua graduação
e seu mestrado em filosofia e, depois, ingressou na Universidade de
Yale para fazer seu doutoramento. Conforme Nascimento:

Richard Rorty cresceu numa comunidade rural de Nova Jersey


onde seus pais compraram uma casa para escapar da agitação da
vida urbana. Foi uma criança precoce, aos quinze anos seus pais
lhe enviaram para a escola universitária Hutchins da Universidade
de Chicago. Esta decisão lhe permitiu não só escapar das
truculências de que era vítima por parte dos valentões da escola
secundária, mas também dedicar-se à leitura dos grandes
clássicos do pensamento. Em 1952, Rorty terminou o mestrado
em filosofia em Chicago e ingressou na Universidade de Yale para
fazer o doutorado, que terminou em 1956 (NASCIMENTO, 2016,
p. 347-348).

Em 1956, Rorty defendeu sua tese de doutoramento na


Universidade de Yale, sob a orientação de Paul Weiss. “Sua hipótese de
trabalho consistiu em argumentar que o conceito de potencialidade,
tratado de maneira extensa por Aristóteles e pelos racionalistas
do século XVII, tinha uma importância capital para a tradição do
empirismo lógico” (NASCIMENTO, 2016, p. 348). A teoria da
identidade é uma abordagem da filosofia da mente que afirma que
os eventos mentais são de um tipo idêntico ao dos eventos físicos do
cérebro com que estão correlacionados, ou seja, todos os atributos
potencialmente associados a sensações e outras atividades da vida
mental teriam que ser traços de processos físicos cerebrais. Tendo
em vista a problemática de sua hipótese de trabalho, Rorty precisou
dialogar com as duas tradições filosóficas, metodologicamente
concebidas como distintas, quais sejam: a filosofia continental e a
filosofia analítica.
Em 1961, Rorty mudou-se para a Princeton University onde
ele ficou até ingressar na Universidade de Virginia, em 1982,
como professor de Humanidades. Rorty deixou a Universidade de
Virginia em 1998, aceitando uma indicação para o Departamento
de Literatura Comparativa na Stanford University. No curso de sua

292  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


carreira, Rorty recebeu vários prêmios acadêmicos e homenagens,
incluindo um prêmio da Sociedade Guggenheim (1973-74) e um
da Sociedade MacArthur (1981-1986). Rorty apresentou várias
palestras de prestígio, dando, entre outras, as palestras Northcliffe
no University College em Londres (1986), as palestras Clark no Trinity
College em Cambridge (HAMMBERG, 2001).
Sabe-se que é nesse contexto filosófico que Rorty interessou-se
em confrontar a filosofia tradicional, tanto o racionalismo quanto
o empirismo, cujas pretensões eram respectivamente, essencialista
e objetivista. Quanto à filosofia analítica e o empirismo lógico,
com suas compreensões cientificistas da noção de conhecimento e
a ênfase na justificação lógica do conhecimento, Rorty as concebe
ainda como uma tradição herdeira do kantismo. Portanto, é neste
contexto, que se dá a ruptura rortyana com o cientificismo da
filosofia analítica e, consequentemente, a sua redescoberta do
pragmatismo norte-americano e da filosofia continental europeia,
na qual a hermenêutica representa a esperança de uma descrição
menos equivocada da realidade do que a descrição oferecida pela
epistemologia clássica.
Conforme Ghiraldelli (1999, p. 33), Richard Rorty se apresenta
como herdeiro da tradição pragmatista, como um filósofo que
aproveita bem as ideias dos fundadores dessa tradição. No entanto,
vários comentadores e historiadores da filosofia como Thelma Lavine
(1999), David Hall (1994) e Ivo Ibri (2011), por exemplo, hesitam
em ver Rorty como um pragmatista, mas sim como um pensador
neopragmatista. Quando perguntado sobre suas diferenças com
Dewey por exemplo, Rorty tende a minimizá-la. Para Rorty, as
diferenças, se existem, estariam apenas relativas ao contexto em que
os pioneiros produziram suas ideias, ou seja, na transição do século
XIX para o XX, uma vez que deram pouca importância à linguagem
– menos do que a que ela possui – na discussão filosófica ocidental,
sobretudo entre os filósofos de tradição anglo-americana.
Ghiraldelli (1999), esclarece que Rorty orgulha-se do
pragmatismo enquanto uma contribuição original dos Estados
Unidos para o mundo. Ele acredita que Rorty quer manter a unidade,

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 293


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR
com o intuito de contribuir para a consolidação desta tradição.
Por isso mesmo, não raro emite juízos que querem favorecer antes
a continuidade do pensamento pragmatista que suas divergências
internas. Assim, não dá muito crédito ao termo ‘neopragmatismo’,
que em sua opinião, dividiria o movimento em duas etapas.
Decerto, Rorty realiza uma leitura muito própria do
pragmatismo, entretanto, conserva a crítica ao representacionismo
e a filosofia apriorística. Como sabemos, o pragmatismo se coloca
em contraposição às teorias representacionistas, ou seja, aquelas
que afirmam que uma ideia é verdadeira quando o pensamento
concorda com a realidade. Conforme o pragmatismo, as crenças são
verdadeiras quando nos sãos úteis, enquanto importantes objetos de
ação que devem ser procurados tendo em vista as intenções práticas
em relação aos fins determinados. A máxima pragmatista descrita
por Charles Sanders Peirce expressa à concepção de verdade desta
tradição. Ela consiste em afirmar que para determinar o sentido de
uma concepção intelectual devemos “considerar as consequências
práticas pensáveis como resultantes necessariamente da verdade
da concepção; e a soma dessas consequências constituirá o sentido
total da concepção” (PEIRCE, 1975, p.7).
Dentre os seus principais livros, destacam-se The Linguistc
Turn (1967), A Filosofia e o Espelho da Natureza (1979), Consequências
do Pragmatismo (1982), Contingência, Ironia e Solidariedade (1988),
Objetividade, Relativismo e Verdade: artigos filosóficos I (1991), Ensaios
sobre Heidegger e outros: artigos filosóficos II (1991), Verdade e Progresso:
artigos filosóficos III (1998), Filosofia e Esperança Social (2000), dentre
outros. Nos três primeiros livros destacados, Rorty expôs as linhas
gerais de sua filosofia. Depois disso, o filósofo escreveu uma série
de artigos, que desenvolvem essa filosofia em variados domínios e
foram reunidos em diversos escritos.
Com a publicação do livro The Linguistc Turn [O giro linguístico]
(1967), Rorty torna-se bastante conhecido no meio acadêmico. Este
livro foi bem utilizado em cursos de pós-graduação em um contexto
da filosofia americana favorável à análise linguística e, muitos dos
seus artigos, dentre eles Mind-Body Identity, Privacy and Categories obteve

294  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


reconhecimento, sendo que foi uma publicação citada nas revistas
de maior prestígio em filosofia analítica (GROSS, 2008, p. 42). O
objetivo deste artigo era defender a “Teoria da identidade”, posição
já anunciada e defendida pelo filósofo J. J. C. Smart37. A teoria da
identidade é uma abordagem da filosofia da mente que afirma que
os eventos mentais são de um tipo idêntico ao dos eventos físicos do
cérebro com que estão correlacionados, ou seja, todos os atributos
potencialmente associados a sensações e outras atividades da vida
mental teriam que ser traços de processos físicos cerebrais.
Essa fase ainda comprometida com as discussões da filosofia
analítica dará lugar à análise crítica da epistemologia e da filosofia
representacionista. Quanto à filosofia analítica, em 1982, Rorty já
declarava que essa abordagem havia se tornado uma relíquia do
passado.
A postura historicista e o seu apreço pela filosofia social fizeram
com que Rorty abrisse mão do auxílio de um método rigorosamente
estabelecido (a análise linguística), para adotar uma visão filosófica
que o aproximava mais da história cultural ou de uma narrativa que
pudesse contar a história das grandes metáforas. Rorty acredita que
a filosofia analítica estava tomando os supostos “pseudoproblemas”
filosóficos e diluindo-os na análise linguística. Portanto, ele
argumentava que a filosofia deveria revelar os pressupostos por
trás dos vocabulários do que propor sua reformulação. Em vez
de preocupar-se com os temas centrais da epistemologia como
“Verdade” e “Sentido”, Rorty acreditou que estes assuntos não estão
à espera de esclarecimentos analíticos, mas da confirmação de sua
relevância. Cabe agora, não mais voltar às suposições clássicas entre
verdade e falsidade, mas adotar uma postura terapêutica em termos
de conhecimento.

37 Filósofo, professor universitário e autor inglês. Nasceu numa família de


acadêmicos: seu pai era professor universitário de Astronomia na Universidade
de Cambridge. Graduou-se na Universidade de Glasgow, assim como seu pai,
e depois adquiriu título de bacharel em Filosofia pela Universidade de Oxford.
Foi um dos primeiros proponentes da Teoria da identidade mente-cérebro.

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 295


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR
Desse modo, em sua obra seminal Philosophy and the Mirror of
Nature [Filosofia e Espelho da Natureza], Richard Rorty realizou uma
crítica à teoria do conhecimento, mostrando divergências com a
tradição clássica, que desconsiderou na reflexão sobre a verdade as
consequências práticas possíveis e as crenças como hábitos de ação.
Rorty propõe uma filosofia que seja edificadora e terapêutica. Uma
filosofia edificante preocupa-se com as questões político-sociais de
seu tempo e terapêutica porque produzirá conhecimentos capazes
de redescrever seu papel e evitar os erros do passado. Sendo assim,
Rorty faz uma crítica ao mapa conceitual da filosofia tradicional
presa à busca incessante do “conhecimento representacionista
e fundacionista”, que se funda na crença em verdades imutáveis e
universalistas.
A ideia de teoria do conhecimento como essência especular foi
à forma encontrada por Rorty para proceder a uma crítica à teoria
do conhecimento objetivista, ancorada numa metáfora da visão,
colocando em questão a teoria do conhecimento que foi formulada a
partir da metáfora da “fundação”. Esse modelo, ou seja, a teoria do
conhecimento como “essência especular” provocou a distinção entre
o “conhecimento de estado de coisas particulares e o conhecimento
dos universais, de tal modo que a distinção pode ser comparada a
ideia de “olho do corpo” e olho da mente (nous), isto é, o pensamento
intelectual.
Rorty se insurge contra a filosofia tradicional que atribuiu
ao gênero humano estes dois tipos de conhecimentos e se propõe
a revelar que a distinção entre alma sensível e alma inteligível, que
parece ser um tema da filosofia clássica e que teria desaparecido
do debate epistemológico, ainda permanece em nós com a ideia
de uma essência especular da mente que contempla os universais,
como a matemática, a filosofia ou a física teórica. Ele resgata no
pragmatismo a rejeição à metáfora do conhecimento do espectador
e a dualidade cartesiana mente e corpo. Rorty relaciona a metáfora
ótica (conhecer é ver) ao conhecimento verdadeiro; e a teoria do
conhecimento “do espectador” que, na visão de Rorty, é o resultado
inevitável do modelo ótico (NUNES, 2005).

296  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


Segundo Rorty (1994, p. 19), “os filósofos que geralmente
pensam a filosofia como discutindo algo eterno, estão cristalizados
em questões envolvendo a relação entre mente e corpo”. Estão
reproduzidos os dualismos da filosofia clássica que geraram os
pseudoproblemas filosóficos. Portanto, são falsos problemas,
conforme Rorty, porque este tipo de filosofia tem por objetivo
descobrir fundamentos ou uma essência sintetizadora sobre a
mente tendo como base a compreensão especial da natureza do
conhecimento e da mente em um estudo do homem conhecedor de
processos mentais ou da atividade de representação, tese que será
negada por Rorty.

Crítica de Rorty ao dualismo Mente versus Corpo

Rorty começa a discussão sobre mente e corpo trazendo a


reflexão sobre o próprio papel da atividade profissional dos filósofos,
ele declara em tom provocativo que, “os filósofos geralmente
pensam sua disciplina como discutindo problemas perenes, eternos
– problemas que surgem assim que alguém reflete” (RORTY, 1995,
p.19). Com base nesta ironia, Rorty diz que alguns filósofos pensam
que a diferença entre os seres humanos e outros seres envolve a
questão mente e corpo; outros filósofos estão preocupados em
legitimar os processos de “conhecer” e com isso envolvem-se com os
“fundamentos” do conhecimento.
Ora, descobrir estes fundamentos seria como descobrir algo
sobre mente e corpo. Assim, a filosofia como “disciplina” se vê na
“tentativa de ratificar ou desbancar asserções de conhecimento feitas
pela ciência, moralidade, arte ou religião” (RORTY, 1995, p. 19). Tal
pretensão se dar mediante a crença de quem tem uma função especial
de investigar a natureza do conhecimento e da mente. A filosofia
disciplinar pensa que cabe a si mesma ser a fundamentadora do
resto da cultura. Portanto, com base nessa compreensão “conhecer é
representar acuradamente o que está fora da mente” (RORTY, 1995,
p. 20).

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 297


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR
De acordo com Rorty, os grandes debates sobre a filosofia da
mente partem do pressuposto de que o mundo é divido entre o físico
e o mental e que ambos possuem atribuições que demonstram certas
características específicas. De tal modo, Rorty descreve:

Parece não ter dúvida de que dores, disposições de ânimo,


imagens, e sentenças que “relampejam diante da mente”, sonhos,
alucinações, crenças, atitudes, desejos e intenções, tudo isso
conta como “mental”, enquanto que as contrações do estômago
que causam dor, os processos nervosos que a acompanham e
tudo mais a que pode ser atribuída uma localização concreta
dentro do corpo contam como não-mentais. (RORTY, 1994, p.
31).

Segundo Rorty, Descartes revelou sua única confiança no


mental, sendo senão a mente, a manifestação intelectual encarregada
do trabalho de fornecer-nos a verdadeira realidade das coisas. Nesse
sentido, não seria mais prudente confiar nos sentidos, pois estes já
se demonstraram enganosos, não sendo capazes de nos fornecer
com exatidão, com clareza e distinção a realidade. Desta maneira,
para Rorty, “na concepção de Descartes, aquelas que se tornaram a
base para a epistemologia ‘moderna’ - são representações que estão
na ‘mente’. O olho Interno observa essas representações esperando
encontrar algum sinal que testemunhe sua fidelidade” (RORTY,
1994, p.58).
Rorty rejeita a explicação cartesiana e procura na reflexão de
outros pensadores um caminho que possa superar este dualismo.
No entanto, ele se vê diante da repetição desta perspectiva dualista,
observando modos mais ou menos cartesianos de tratar da relação e
mente e corpo. E conclui que, muitas tentativas e intuições são vãs.

Essas pretensas intuições servem para manter vivo algo como


o dualismo cartesiano. Os filósofos pós-wittgensteinianos que
se opõem ao behaviorismo e ao materialismo tendem a admitir
com Wittgenstein e Strawsin que, em algum sentido, não existe
nada além do organismo humano e que devemos desistir da
noção desse organismo como constituído por um bocado de
res cogitans não-espacialmente associado com um bocado de res

298  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


extensa. Mas, eles dizem, permanece a intuição cartesiana de que
a distinção mental-fisico é intransponível. Mas esses filósofos
neodualistas são confundidos por suas próprias conclusões, uma
vez que, embora suas intuições metafísicas pareçam cartesianas,
não lhes é claro se tem o direito de ter coisas como “intuições
metafísicas”. Tendem a sentir desagrado pela noção de um
método de conhecimento sobre o mundo anterior à ciência
empírica e intocável por esta (RORTY, 1994, p 32).

Nesta linha argumentativa, Rorty observa que muitos filósofos


tentando sair das armadilhas neodualistas resolvem tornarem-se
linguísticos e passam a falar a partir de um novo vocabulário como
“descrições alternativas” e mais uma vez recaem em dualismo, pois,
adotam posição semelhante à de Spinoza com sua teoria do “duplo
aspecto”. Esta teoria nada mais é que a explicação cartesiana dita de
outra forma. Spinoza descobriu apenas dois atributos: pensamento e
extensão. Ele defendeu que esses dois atributos podem ser aplicados
a tudo quanto há na realidade, pelo que, em certo sentido, estão em
toda parte.
O filosofo assinala que os neodualistas concedem um excesso
aos estados mentais, e que para eles, crenças e desejos, por exemplo,
são apenas “modos de falar sobre os organismos” (RORTY, 1994,
p. 32), entretanto, não mencionam os estados mentais de curta
duração, como dores, pensamentos, etc, pois consideram serem
eventos e não disposições.
Rorty esboçou duas respostas filosóficas a esta problemática
da identidade: a primeira é o argumento da “tradução”, isto é, a
identidade entre processos físicos e mentais decorrem do fato de que
os enunciados que aparentemente são atributos mentais (no sentido
metafísico), podem ser traduzidos em termos de uma linguagem
física. A segunda resposta é o argumento da defesa do enfoque
por “eliminação”, ou seja, a identidade existente entre processos
cerebrais e sensações, não seria no sentido estrito, pois as classes de
referências podem dar-se entre entidades existentes e não existentes.
Ele argumenta que as noções filosóficas se desenvolvem em contextos
históricos e linguísticos particulares. Portanto, o nosso modo de

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 299


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR
falar sobre as sensações tem sido desenvolvido em um contexto em
que podemos observar os processos mentais desde que sejamos
determinados por referências linguísticas peculiares.
Segundo Rorty, então, a distinção entre físico e mental,
aparentemente tão intuitiva, repousa em outra diferenciação obscura
e de natureza técnica, aquela entre universal e particular. A ideia
de que existe um olho interno na mente surge com mais força em
Descartes, entretanto, para Rorty:

Aristóteles foi honrado por ryleanos e dewyanos por ter resistido


ao dualismo ao pensar na alma como não estando mais
ontologicamente distinta do corpo humano, passando a vida
toda lançando água fria sobre as extravagâncias metafísicas de
seus predecessores (RORTY, 1994, p. 52-53).

Entretanto, mesmo com esta visão “naturalística” da alma,


Aristóteles não evitou conceber que o intelecto tinha a função superior
de receber a forma das coisas. Rorty cita em nota uma definição
mais precisa da ideia filosófica de ‘olho da mente’ explorada por
John Dewey no Texto The Question for Certainity [A Busca pela Certeza]
(1960):

A teoria do conhecimento é modelada a partir do que se supunha


ter lugar no ato de visão. O Objeto refrata a luz e é visto; isso
faz diferença para a pessoa que tem um aparelho óptico, mas
nenhuma para a coisa vista. O objeto real é o objeto tão fixado
em seu régio alheamento que é um rei para qualquer mente
observadora que possa olhá-lo. Uma teoria do conhecimento do
espectador é resultado inevitável (DEWEY, 1960, p. 23).

A metáfora do olho da mente expressa a ideia da noção prévia


de que o conhecimento deve ser sobre o imutável. Esta analogia entre
alma e espelho, esteve presente na filosofia escolástica, na ideia de
alma intelectual, que foi duramente criticada por Francis Bacon. Esse
filósofo mostrava tal ideia semelhante à de um espelho encantado,
cheio de superstições e impostura. Rorty reitera que estes conceitos
expressam uma divisão sentida por nós antes mesmo de Descartes.

300  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


A ideia de essência especular, não se trata de uma doutrina, mas da
imagem que os homens letrados encontravam pressuposta naquilo
que liam.
Desta forma, a noção de existir separadamente do corpo, segue
a partir da descrição epistemológica holomórfica e do dualismo
cartesiano, ambas, se baseiam por uma imagem do espelho da
natureza. De acordo com Rorty na concepção de Aristóteles:

[...] O intelecto não é um espelho inspecionado por um olho


interior. É tanto espelho quanto olho. A imagem retinal é ela
mesma o modelo para o “intelecto que se torna todas as coisas”,
enquanto que, no modelo cartesiano, o intelecto inspeciona
entidades modelas em imagens retinais (RORTY, 1994, p. 58).

Para Aristóteles as formas vão entrando diretamente no intelecto


e não o modo como elas são refletidas em espelhos, no entanto, para
Descartes “o olho interno observa essas representações esperando
encontrar algum sinal que testemunhe sua fidelidade” (RORTY,
1994, p. 58). Sobre esse aspecto, Rorty indaga: “como sabemos
que o mental representa algo que não é mental?” (RORTY, 1994, p.
58). O conhecido problema do mundo externo, um problema que
eventualmente se materializaria em uma questão sobre a fidelidade
de nossas representações. Descartes seguirá a estratégia de obter
representações mais precisas inspecionando o espelho, daí a atenção
que a filosofia moderna vai dar à mente. Como afirmamos, a imagem
retinal dos escolásticos é o mesmo modelo para o “intelecto que
se torna todas as coisas” (RORTY, 1994, p. 58), enquanto que no
modelo cartesiano, o intelecto inspeciona entidades modeladas em
imagens retinais.
Rorty também observa que por esta lógica era muito
importante que a mente pudesse ser estudada a priori, do contrário
a tarefa de analisar tanto o espelho quanto os reflexos seria diluída
muito rapidamente entre diferentes ciências, deixando a filosofia
em segundo plano. Esta conclusão é importante porque entra no
contexto de sua crítica à epistemologia.

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 301


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR
Na concepção cartesiana, as ideias claras e distintas são ideias
gerais que não derivam do particular, mas já se encontram no espírito,
como instrumentos de fundamentação para a apreensão de outras
verdades. São as ideias inatas que não estão sujeitas a erro, pois vêm
da razão, independentes das ideias que vêm de fora, formadas pela
ação dos sentidos, e das outras que nós formamos pela imaginação.
Para Rorty, estar preocupado com assuntos filosóficos era
estar preocupado com o que os olhos não podem ver, nem os ouvidos
ouvir, tanto a substancia ‘não-extensa’ quanto à ‘não-espacialidades’
atuais serão consideradas questões filosoficamente mais respeitáveis.
Entretanto, os filósofos contemporâneos, após atualizar Descartes,
são dualistas sem que o dualismo faça diferença para as preocupações
humanas ou científicas. Desse modo, na medida em que o dualismo
se reduz a simples insistência de que ‘dores e pensamentos’ não tem
lugares, nada pairam sobre a distinção mente e corpo.

Objeções de Rorty a uma “teoria do conhecimento”

O surgimento da epistemologia é visto negativamente por Rorty,


pois, as dificuldades insanáveis da epistemologia desviam a atenção
dos filósofos de questões que o neopragmatista considera realmente
importantes, questões que têm a ver com a busca e maneiras de
evitar o sofrimento físico e moral das pessoas. Também pelo fato de
o paradigma epistemológico querer assumir que os seres humanos
devam ser regulados pela ideia de verdade redentora do mundo, o
que para Rorty parece imaturo.
Conforme Rorty (1994, p. 56), a filosofia foi colocada como
uma disciplina muito elevada na qual estava sob o seu poder o
mais superior de todos os conhecimentos, ou seja, a demonstração
do funcionamento metafísico da mente. Do mesmo modo, para
o filósofo, esse saber é responsável por um tipo de conhecimento
especial, o “conhecimento das coisas mais elevadas e mais puras”.
Rorty considera que a matemática, a física teórica, a filosofia era
considerada o saber que dominava os universais, um saber absoluto
no qual possa haver uma concordância em terreno comum. Assim,

302  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


sugerir que não há “universais”, que são flatusvocis, ou seja, o universal
é um puro nome, um flatusvocis, pura emissão fonética, é colocar em
perigo nossa qualidade de únicos.
Na leitura de Rorty, constata-se que por toda a literatura da
filosofia clássica há uma predominância da busca de conhecimento
exato. A Filosofia procurou por uma ciência que a regesse e a
fundamentasse com o propósito de ser uma base reguladora para um
conhecimento de mundo, colocando assim a epistemologia como a
esperança de se possa obter uma concordância como um sinal de
existência de um terreno comum.
Rorty nos ensina que a noção de uma disciplina autônoma
chamada de “filosofia” com a função de exercer um julgamento sobre
religião e ciência é um fato bastante recente. Nem mesmo Descartes e
Hobbes ao denunciarem a filosofia escolástica pensaram em oferecer
uma teoria do conhecimento ou uma metafísica melhor. As distinções
entre os campos da filosofia ainda não estavam traçadas. Na verdade,
estes filósofos lutavam para que o mundo intelectual estivesse seguro
para Copérnico e Galileu. Hobbes definiu a “filosofia” como “tal
conhecimento dos efeitos das aparências, como o que adquirimos
por um raciocínio verdadeiro a partir do conhecimento que temos
previamente das suas causas de geração” (RORTY, 1994, p. 140). A
filosofia tentava sair dos moldes eclesiásticos para a busca da ciência
fundamentadora, tendo se convertido em teoria do conhecimento.
Portanto, foi a partir de Kant que a nossa moderna distinção
filosofia-ciência passou a predominar. A partir desse horizonte surge
a questão da demarcação da filosofia em relação à ciência tornando
possível que o centro de discussão da filosofia se desenvolva a partir de
uma “teoria do conhecimento”. Só a partir de Kant que esta noção de
“teoria do conhecimento” passa a ser incorporada às estruturas das
“instituições acadêmicas e às autodescrições imutáveis e irrefletidas
dos professores de filosofia [...]” (RORTY, 1994, p. 140).
Rorty desenvolve um estudo sobre a profissionalização
da filosofia e sua redução à uma teoria do conhecimento e se
compromete em contar a história sobre como a “filosofia-enquanto-
epistemologia” atingiu a auto certeza no período moderno. Contra a

CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 303


CONHECIMENTO COMO ESSÊNCIA ESPECULAR
essas ideias, Rorty (1994, p. 144) declara que vai apoiar as afirmações
comuns a Wittgenstein e Dewey que:

[...] para pensar no conhecimento como apresentando um


‘problema’, e mais, um problema sobre o qual deveríamos ter
uma ‘teoria’, é preciso encarar o conhecimento como uma
reunião de representações – uma visão de conhecimento que,
tenho argumentado, era um produto do século XVII. A moral a
ser extraída é que se esse modo de pensar em conhecimento é
opcional, então a epistemologia também é, e também a filosofia
como tem sido compreendida desde a metade do último século
(RORTY, 1994, p. 144).

Conforme Rocha (2012), Rorty continua sua crítica a teoria


do conhecimento ao afirmar que a epistemologia moderna é uma
tentativa de legitimação das nossas pretensões ao conhecimento
do que é real, mas também uma tentativa para legitimar a própria
reflexão filosófica, um persistente exercício, entre muitas razões,
uma vez que o início da nova ciência deu gradualmente conteúdo à
noção de conhecimento obtido por interrogação metodológica da
natureza.
Rorty destaca três fatores que ajudaram a filosofia se constituir
como epistemologia. Primeiro, o tema central da epistemologia
que trata de duas espécies de representações dos fenômenos: as
formais (conceitos) e as materiais (intuições) dando continuidade
aos dualismos da filosofia antiga e escolástica. Segundo, por
associar a epistemologia a um projeto de moralidade, isto é, a
epistemologia foi capaz de entrar no papel da metafísica como
fiadora das pressuposições de moralidade. E, terceiro, a ideia que
se tem da epistemologia como uma ciência fundamentadora, uma
disciplina com a prerrogativa técnica de descobrir as características,
estruturais, formais, lógicas, fenomenológicas de qualquer área do
conhecimento. Por fim, capacitou os professores de filosofia a se
verem como supervisores da cultura.

Considerações Finais

304  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


Rorty se propôs nesta análise a desenvolver uma crítica cuja
pretensão é dissolver os dualismos da tradição clássica e moderna,
sobretudo, o dualismo “mente e mundo” e apresentar uma perspectiva
mais interativa dessas realidades. Portanto, Rorty escreveu que a
filosofia representacionista e mentalista foi apresentada desde a
tradição platônica, a partir da ideia de mente como uma espécie de
olho interno, o noûs, o pensamento que apreende o universal (theoria)
e esta ideia tem sido uma marca presente na tradição filosófica.
Essa capacidade de apreensão da realidade nos dotaria de uma
essência especular. Na visão cartesiana, um olho interno inspeciona
as representações mentais, a consciência pensante produz certeza
e verdades indubitáveis. A consciência deve-se à faculdade que
produz representações acuradas (iguais ao mundo, objetivas). Essa
“essência especular” é uma noção que Rorty considera perfeitamente
dispensável no seu sentido epistemológico, uma vez que dela deriva
a noção metafísico-epistemológica de exatidão da representação
como fonte da verdade.

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CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO 305


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306  Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso • Edna Maria Magalhães do Nascimento


CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE
SIGNO SEMIÓTICO NA FILOSOFIA DE
CHARLES SANDERS PEIRCE

Teônia Mikaelly Pereira Sousa

Introdução

E
ste artigo resulta de uma pesquisa de Iniciação Científica
sobre o signo semiótico na perspectiva filosófica de
Charles Sanders Peirce (1839-1914). O estudo visa realizar
uma investigação sobre o pensamento deste autor para compreender
sua contribuição para a teoria geral dos signos. Trata-se de um
estudo teórico de caráter qualitativo acerca do ‘signo semiótico’
desenvolvido pelo fundador do Pragmatismo.
Ao longo do trabalho serão pontuados elementos básicos
da divisão dos signos. A investigação se concentrará no estudo da
tradição pragmatista e o papel que teve a semiótica de Peirce para
a filosofia contemporânea. Se quer, com isto, resgatar na obra de
Peirce os fundamentos filosóficos que justificam o seu tipo específico
de pragmatismo e a semiótica
Charles Sanders Peirce é conhecido como um filosofo que
deixou um legado importante sobre a Lógica, a Semiótica e Filosofia

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE SIGNO SEMIÓTICO 307


NA FILOSOFIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
da Ciência. Ele é considerado fundador do Pragmatismo, corrente
filosófica de origem americana que desafiou a metafísica clássica
defendendo que a filosofia precisa tornar-se tanto um método de
clarificação das ideias quanto uma teoria da ação. Peirce liderava
o Clube Metafísico de Cambridge, uma instituição acadêmica que
sistematizou as bases desta doutrina. O pensamento de Peirce se
concentra nas questões do significado, seu propósito é nos ajudar na
elucidação do significado dos termos gerais.
O presente artigo visa compreender a semiótica e a filosofia
pragmatista de Peirce no diz respeito ao conceito e caracterização
do signo semiótico. Considerando este fim, busca-se realizar um
levantamento bibliográfico da obra de Peirce que fundamenta a noção
de signo semiótico; fazer uma caracterização sobre o pragmatismo e
verificar as suas correlações com a semiótica peirciana.

Peirce: Vida e Obra

Charles Sanders Peirce nasceu em 10 de setembro de 1839, na


cidade de Cambridge, nos Estados Unidos, e morreu em 1914, aos 74
anos em Milford, na Pensilvânia. Era filho do matemático Benjamin
Peirce, professor da Universidade Harvard. Licenciou-se em ciências
e doutorou-se em química também em Harvard. De 1859 a 1891, foi
geofísico e astrônomo da United States Coast and Geodetic Survey.
Foi o primeiro a relacionar o comprimento do metro ao
comprimento de onda da luz e também o primeiro a tentar definir a
forma da Via Láctea pela medição do brilho das estrelas, apontando
erros nas observações gravitacionais europeias, estabelecendo,
portanto, um novo modelo para medições estáticas. A partir de 1864,
trabalhou duas décadas como docente de Filosofia nas universidades
de Harvard e na então recém-criada Universidade de Johns Hopkins,
mas nunca chegou a ocupar o cargo estável de professor. Foi demitido
sem aposentadoria, o que lhe causou grandes dificuldades na velhice.
Considerado uma pessoa de hábitos excêntricos, além de descuidado
e solitário, Peirce não evoluiu na carreira universitária. Em 1887,

308  Teônia Mikaelly Pereira


mudou-se com sua segunda esposa para a cidade de Milford, na
Pensilvânia, isolando-se ainda mais.
Em 1877, foi o primeiro delegado norte-americano no Congresso
Internacional Geodésico. Da matemática à história da filosofia e
da ciência, passando pela enologia e pela fonética da língua inglesa
do período elisabetano, sua obra é imensa. Mas ele mesmo sempre
se declarou acima de tudo um lógico. Seu trabalho nessa ciência é
praticamente inesgotável, com proeminência para a sua semiótica,
ou teoria geral dos signos, pela qual ficou mundialmente conhecido.
Peirce, William James e John Dewey são considerados os
fundadores do pragmatismo. William James utilizou o termo
pragmatismo para se referir a doutrina filosófica de Peirce. Peirce,
entendia primordialmente o pragmatismo como um método lógico
para a investigação cientifica. Seu pensamento exerceu grande
influência sobre vários pensadores do século XX, como Umberto Eco,
Roman Jakobson, Gilles Deluze, Alfred Tarski, Karl Popper e Juergen
Habermas, entre outros.
Sua pretensão foi superar um dos principais problemas da
filosofia moderna, o qual seja, a separação de natureza entre sujeito
e objeto. Ele critica os pressupostos da filosofia moderna, sendo que,
o ponto de partida para seu argumento é a defesa de uma concepção
radicalmente não-psicológica da lógica.
Entre 1884 e o ano de sua morte, em 19 de abril de 1914,
Peirce escreveu cerca de 80 mil páginas de manuscritos, vendidos por
sua esposa à Universidade de Harvard. Estes escritos encontram-se
publicados muitas décadas depois de sua morte com o título de The
Collected Papers os Charles Peirce.
Para nosso autor, a lógica não se restringe ao estudo de conteúdos
mentais, mas transcende-o, estudando todo e qualquer tipo de
signo, interno ou externo à mente humana, independentemente de
ser pensado por alguma consciência, sem prejuízo de sua capacidade
de se dirigir a alguma, que é anterior e necessária à significação.
Peirce realizou diversos trabalhos abrangendo os diversos ramos
do conhecimento, seja a ciência laboratorial, a lógica, a filosofia, a
semiótica ou pragmatismo.

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE SIGNO SEMIÓTICO 309


NA FILOSOFIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
Signo Semiótico da Filosofia de Charles Sanders Peirce

Peirce, na condição de um estudioso da lógica, resolveu


formular sua teoria da semiótica, também chamada de o estudo dos
signos, com o propósito de elucidar e clarificar o discurso científico
e filosófico.
A unidade semiótica seria o signo, ou seja, o estímulo com
parâmetro dotado de significado. Peirce listou três modos de o signo
mediar os significados: O ‘ícone’ é um parâmetro que se assemelha ao
objeto. Uma foto, por exemplo, é um ícone. Na nossa linguagem, as
‘onomatopeias’, por exemplo, também seriam ícones verbais. Quanto
ao ‘índice’ se pode afirmar que é um parâmetro cujo signo possua uma
relação de causalidade sensorial indicando seu significado. Alguns
índices também podem ser interpretados por animais. Por exemplo,
onde há fumaça geralmente há fogo. Os pronomes demonstrativos
e advérbios são equivalentes verbais dos índices. Já um símbolo
trata-se de uma relação puramente convencional entre o signo e seu
significado (PEIRCE, 2017).
O signo em si seria o representante que transmitiria a ideia
do objeto representado ao interpretante, não a pessoa em si, mas
o conjunto de pressupostos e percepções do receptor. O signo
não precisa ser uma palavra, pode ser uma ação, um pensamento
ou qualquer coisa que envolva um interpretante. No tocante ao
conhecimento, Peirce adentra a filosofia da ciência para apresentar
três categorias básicas do processo cognitivo. A primeiridade
(monádica), a secundidade (relação diádica) e a terceiridade (a
relação triádica).
A primeiridade diz respeito a qualidade de um ser que não teria
existência por si só. É tudo que está na mente de alguém no instante
presente e imediato, é a sensação sentida. A qualidade de sentir é o
modo mais imediato de conhecer, é nossa primeira forma rudimentar,
vaga, imprecisa de predicação das coisas (SANTAELLA, 2007).
De sua negação, oposição, semelhança e contraste com outro,
estabelece-se a secundidade, a própria relação, a qual assume função
e existência. A secundidade é factual, é a referência aos fatos externos,

310  Teônia Mikaelly Pereira


é a capacidade de representar a si mesmo, é a ação do sentimento
sobre nós. A factualidade do existir está na corporificação material.
A terceiridade é para Peirce a interpretação do fenômeno, é a
capacidade da razão de produzir generalizações, ou seja, a camada
do pensamento que envolve o signo, isto é, quando um objeto passa
a representar alguma coisa. Trata-se de uma síntese intelectual que
articula os dois momentos anteriores.
Esses elementos estariam no sistema do signo como
primeiridade: ícone, secundidade: índice, e a terceiridade: símbolo,
bem como no sistema semiótico de signo, objeto e interpretante. Para
Peirce, dentro do sentido geral, a lógica é apenas outra nomenclatura
ou denominação para semiótica, pois todo indivíduo tem a
possibilidade de associar coisas em comum e dar-lhe um possível
significado. Através deste argumento, nota-se que o signo é usado
para denotar um objeto real, ou inanimado dentro da perspectiva
individual dos participantes de uma sociedade.
O signo pode ter seu significado singular ou abrangente.
Contudo quando o signo tem domínio sobre algo, é interpretante,
quando existe a possibilidade de representar algo, trata-se do objeto
não na sua totalidade, mas com algumas caracterizações,

Ora, o Signo e a Explicação em conjunto formam um outro Signo,


e dado que a explicação será um Signo, ela provavelmente exigirá
uma explicação adicional que, em conjunto com o já ampliado
Signo, formará um Signo ainda mais amplo, e procedendo da
mesma forma deveremos, ou deveríamos chegar a um Signo de
si mesmo, contendo sua própria explicação e as de todas as suas
partes significantes; e de acordo com esta explicação, cada uma
dessas partes tem alguma outra parte como seu Objeto. (PEIRCE,
2017, p.47)

Nesse fragmento, nota-se que o objeto estará presente na


criação de outro objeto, possibilitando de novas compreensões e
ampliações do conceito original, entretanto, o autor dar ênfase sobre
o signo que teria sentido em si mesmo.
Peirce dedica-se, portanto, ao estudo aprofundado dos signos.
Neste sentido ele faz uma caracterização sobre os diversos signos, a

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE SIGNO SEMIÓTICO 311


NA FILOSOFIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
saber: Qualissigno, Sinsigno ou Legissigno. Primeiramente, o Qualissigno é
uma qualidade dada ao signo, em seguida, o Sinsigno é um signo e só
pode existir através de qualidade incorporando pelo seu antecessor,
o Qualissigno, por último o Legissigno é uma lei do signo, tendo
em vista que todo signo convencional é um Legissigno, contudo
essa relação não se faz de forma reciproca. Estas tríadas podem ser
associadas às noções de primeiridade, segundidade e terceiridade.
Peirce constrói outras mediações para o entendimento dos
signos, a tricotomia seguinte foi denominada Rema, Dicissigno-
Dicente e Argumento e está associada à relação sujeito e objeto do
conhecimento. O Rema é um signo de caráter subjetivo, é algo que é
compreensível e representa “esse” ou “aquele” objeto. Já o Dicissigno
ou Dicente é a relação com um objeto real sem correlacionar com
o ícone, enquanto o Argumento é a lei do Signo assim como o
Legissigno. Para esclarecer, Peirce, diz:

Podemos dizer que um Rema é um Signo que é entendido como


representando seu objeto apenas em seus caracteres; que um
Dicissigno é um signo que é entendido como representando seu
objeto com respeito à existência real; e que um Argumento é um
Signo que é entendido como representando seu Objeto em seu
caráter de Signo (PEIRCE, 2017, p.52).

As relações entre as ideias das tricotomias dos Signos estão


interligadas, sabendo que a essência sempre apontará para questões
de correlações entre os significantes-significado, estabelecidas
através do meio social na qual determinada sociedade está inserida.
Deste modo, os signos são um sistema que engloba as relações
diretas e indiretas do significado juntamente com o significante, essas
relações só fazem sentido porque são estabelecidos socialmente,
como algo que possuí sentido entre o objeto e sua possível
nomenclatura. Dentro disso encontramos os signos verbais e não
verbais. Na perspectiva de Santaella (1983), a semiótica pode ser
entendida como:

312  Teônia Mikaelly Pereira


A ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens
possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos
de constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de
significação e de sentido ou, simplesmente, [...] é a ciência dos
signos. (SANTAELA, 1983, p.13).

Nesta perspectiva, pode-se concluir que através da semiótica é


possível dar sustentabilidade ao signo, seja ele verbal ou não-verbal,
pois a semiótica engloba “toda linguagem” e sabendo que até uma
imagem, uma escultura ou moldura pode ser sinônimo de um signo,
é notável a relação para com a pragmática da linguagem quando esta
estuda a relação dos signos com as possíveis combinações.
Tanto o signo como a semiótica obtêm espaço para a pragmática
dentro de um contexto amplo, afirmando que os signos de uma
linguagem, necessitam organizar-se como estrutura, dependente da
língua e da linguagem de cada espaço. Essa maneira particular de
inserir a pragmática, através da semiótica, deixa a possibilidade de
associação entre os signos e os indivíduos que os interpretam.
Por fim, Peirce deixa um legado muito significativo do ponto
de vista da interpretação do mundo pela linguagem. Sua semiótica é
uma forma de contribuição às teorias do conhecimento que até então
se fixavam em relações dualistas sobre o mundo, dicotomizando a
realidade entre um sujeito que conhece e um mundo a ser conhecido,
sobretudo pela representação do sujeito.

Peirce e o pragmatismo contribuições para uma filosofia do


significado

O pragmatismo não foi uma teoria momentânea ou de


casualidade. O pragmatismo é algo que surgiu dentro da perspectiva
de crítica à filosofia tradicional, buscando uma teoria do significado
e da prática, fundamental para o desenvolvimento da filosofia, o
que deveria pressupor em seus postulados a veracidade e os grais
de compatibilidade e combinações entre os enunciados teóricos.
Esperava-se que dentro dessas possibilidades, os embates filosóficos,
considerados ‘pseudoproblemas’, fossem sanados. Assim, o

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE SIGNO SEMIÓTICO 313


NA FILOSOFIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
pragmatismo não se opõe a significados a ou b, mas ressalta que
existe a possibilidade de atribuir sentidos diferentes a uma mesma
palavra, portanto, tendo em vista o uso pragmático da linguagem,
a busca por uma verdade objetivista transforma-se numa quimera.
A este respeito o filósofo Pierce costumava declarar que a
filosofia tradicional, ao não considerar a questão dos sentidos
e da tradução dos significados, passou a valorizar as disputas
acaloradas entre pensadores e ideias, que nada mais são do que
pseudoproblemas. De acordo com Peirce:

[...] o pragmatismo não se propõe a dizer no que consiste os


significados de todos os signos, mas, simplesmente, a estabelecer
um método de determinação dos significados dos conceitos
intelectuais, isto é, daqueles a partir dos quais podem resultar
raciocínios. (PEIRCE, 2017, p. 194).

Na versão de Peirce, o pragmatismo enquanto método filosófico
visa possibilitar o sentindo e compreensões dos significados, contudo,
oferecendo um caminho para possibilitar e fixar a compreensão entre
os signos. Neste sentido, Peirce destaca a eficácia do pragmatismo
como método para se chegar aos significados dos conceitos por
meio das possibilidades e infinidades de significante e significado
para com o Signo.
Com as influências do Clube Metafisico, Peirce assume o termo
“crença” e deixa de lado a perspectiva de que as crenças são algo
apenas intelectual, passando dar-lhe o sentido de ação, ou seja, a
crença é o que impulsiona a vontade de agir.
Conforme Nascimento:

Tanto Peirce quanto os outros intelectuais de sua época passaram


a usar em suas reflexões a teoria das crenças de Bain cujo
corolário pode ser traduzido como a máxima: a ação é a base e o
último critério da crença. Esta ideia de crença ou hábito de ação
revela que a função da inteligência não é representar a realidade;
ao contrário, é capacitar-nos para atuar eficazmente. Portanto,
significa deixar de lado a “teoria do conhecimento como cópia”
que dominou a filosofia desde Descartes e, sobretudo, a ideia de
autoconhecimento intuitivo. Ao contrário desta posição, Peirce

314  Teônia Mikaelly Pereira


foi um dos primeiros filósofos a dizer que a habilidade de dominar
signos é essencial ao pensamento. (NASCIMENTO, 2017, p. 52)38.

Peirce reelabora uma concepção de conhecimento baseada


na semiótica em que os signos, não possuem a função clássica
de representação da realidade, o signo é algo que representa algo
para alguém dentro de uma perspectiva. Signos tem um significado
amplo. Tanto pode ser uma palavra, uma ação, um pensamento ou
qualquer coisa que admita um interpretante. Peirce apresentou os
signos com base em três categorias ou grupos: os ícones: são signos
que se assemelham aquilo que significa, da forma como a fotografia
se assemelha ao objeto fotografado. Indicadores, são signos cujo
significado se esclarece com base nos efeitos que produz, a sombra
é um indício da posição do sol e os símbolos são signos que se
associam a objetos graças a convenções especiais. Se considerarmos
o contexto e a diversidade linguística encontramos uma dicotomia
entre significado e significante
Peirce diz:

Há aqui duas coisas muito importante de que nós devemos


certificar e lembrar. A primeira é que uma pessoa não é, em
absoluto, um individual. Seus pensamentos são aquilo que ela está
“dizendo a si mesma”, ou seja, aquilo que está dizendo ao outro
ego que está surgindo para a vida no fluxo do tempo. Quando
raciocinamos, é esse ego crítico que estamos tentando persuadir;
e todo pensamento, seja qual for, é um signo e é fundamental
da natureza de linguagem. A segunda coisa a lembrar é que
o círculo de sociedade de alguém (no sentido mais amplo ou
mais estrito em que esta possa ser entendida) é uma espécie de
pessoa frouxamente compactada e, sob alguns aspectos, de um
grau mais elevado do que a pessoa de um organismo individual.
São estas duas coisas apenas que tornam possível ao leitor –

38 Alexander Bain Psicólogo escocês, nascido em 1818 e falecido em 1903,


desenvolveu as suas investigações na Universidade de Aberdeen. Amigo
de Stuart Mill considera que a psicologia, para ser considerada uma
ciência, deveria recorrer à observação e à experimentação como métodos
de investigação. Tal como as outras ciências deveria procurar formular leis
objetivas. Privilegiou a observação naturalista de pessoas e animais nos seus
contextos de vida. Estudou o sistema nervoso, a memória e os hábitos.

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE SIGNO SEMIÓTICO 315


NA FILOSOFIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
mas apenas num sentido abstrato, num sentido pickwickiano –
distinguir entre a verdade absoluta e aquilo de que o leitor não
duvida. (PEIRCE, 2017, p. 290)

O autor destaca o quão importante a sociedade é para


o individual, em outras palavras, Peirce sabe que o indivíduo é
completamente afetado pelas ações do meio e dentro disso cabe o
filtro interno da criticidade, pois não se fala o que vem à mentem,
mas, sim, o que a cabeça projeta como ideal para ser dito naquele
momento, e dentro da expectativa de quem se encontra no diálogo.

Charles Peirce: a fixação das crenças - contribuições para a semiótica

No clássico ensaio The Fixation of Belief (A Fixação da Crença)


publicado em 1877, Peirce discute que poucas pessoas se dão ao
trabalho de estudar lógica, porque toda a gente concebe a si mesmo
como sendo suficientemente versado na arte de raciocinar. Entretanto,
ele destaca que as pessoas se contentam em tirar inferências e
conclusões por meio de raciocínio simplistas ou do senso comum. A
lógica é algo que cabe aos inquietos a estudar, pessoas dispostas a
um trabalho sistemático do pensamento.
Em “A Fixação da Crença”, Peirce inicia o artigo tecendo críticas
à filosofia cartesiana. Principalmente a enfase do cartesianismo na
intuição, como meio para o atingimento de verdades, da qual o autor
fazia uma profunda oposição. Peirce procurou fixar a crença a partir
de um método que transcendesse as opiniões individuais e fizessem
todos chegarem às mesmas conclusões. O cartesianismo busca
fundamentar o “conhecimento certo e seguro” na intuição. Peirce,
por sua vez, busca algo que fosse estável e confiável, menos sujeito a
mutações a partir de um ato particular de reflexão, porém capaz de
levar a uma reflexão, e a um raciocínio, universalmente válidos.
Ele defendia princípios que levasse a um agir científico objetivo,
ainda que não se obtenha respostas para todas as perguntas.
Partindo desse pensamento, o filósofo aponta quatro limites para

316  Teônia Mikaelly Pereira


o pensamento, destacando que não temos poder de intuição; não
temos poder de introspecção; não podemos pensar de outra maneira
que não seja através de signos e, por fim, não temos concepção
algum do que é absolutamente incognoscível.
Sobre estas quatro negações,pode-se afirmar que, a primeira
impugnação é a de que não temos poder de intuição. A ideia de
um conhecimento intuitivo remota a filosofia de Platão (retornar a
Platão). Usando de analogia, podemos compará-lo com a luz de uma
lanterna que rebate sobre um certo objeto nos fazendo enxergá-lo. A
luz emitida pela lanterna seria o conhecimento imediato da verdade
de alguma coisa, e a visão aqui representaria a faculdade da razão.
A segunda negação de Peirce é a de que não temos poder de
introspecção. Aqui mais uma vez o autor entra num confronto de
ideias com Descarte que nas Meditações é enfático na asserção
de que temos tal poder. Conforme Descarte assevera, há uma
intimidade maior entre nós e nossa mente do que entre nós e mundo
externo. Pierce inverte a abordagem de Descartes. Segundo ele,
primeiro aprendemos acerca do chamado mundo externo, e diante
da interação decorrente dela, identificamos o eu e o que ele nos
provoca.
A terceira objeção de Pierce é a de que não podemos pensar
sem signos. Está negação decorre da anterior ao expor que não temos
o poder de introspecção. Se adquirimos primeiramente uma noção
do mundo externo para em seguida conseguirmos identificar nosso
eu, então podemos concluir que não há um contato direto como o
pensamento.
Isto posto, o pensamento nos chega indiretamente, por meio
de aspetos do mundo externo mediante signos. O que podemos
rematar a partir dessa alegação de Pierce, é que o único pensamento
do qual temos cognição é o pensamento em signos, e já que pertence
a essência do pensamento ser conhecido, todo pensamento deve ser
em signo.
Por último, Peirce apresenta que o absolutamente incognoscível
é absolutamente inconcebível. Com esse argumento, Peirce dirige
suas críticas àqueles que acreditam haver certas coisas que estão

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE SIGNO SEMIÓTICO 317


NA FILOSOFIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
completamente além de nosso alcance, ou seja, estas coisas não
podem ser conhecidas por nós. Foi por essa linha de raciocínio que
Pierce introduziu sua máxima pragmática ou como William James a
chamaria mais tarde, “o princípio do pragmatismo”.

Não pode haver concepção alguma do absolutamente


incognoscível, já que nada desse tipo ocorre na experiência. Mas
a significação de um terno é a concepção que ele veicula. Por
conseguinte, um terno não pode ter tal significação (PEIRCE,
2016, p. 168).

Vimos até o momento que a inquirição tem como objetivo, de


acordo com Peirce, o estabelecimento de uma crença; esta crença,
por sua vez, não necessariamente precisaria ser verdadeira, porém,
dever nos satisfazer. Elucidou-se também que a crença fixada nos
condicionaria a uma ação, ou o que podemos chamar de hábito.
Diferentemente de abordagens comuns à sua época, sobre a
faculdade do pensar, vinculadas diretamente a filósofos com Descarte
e John Locke, Pierce seguiu por outros caminhos. Descartes, partiu
da dúvida no intento de descobrir se alguma coisa está além dela.
Como resultado, ele compreendeu que no momento em que se está
duvidando, não é possível duvidar que duvida, o levando a formular
a conhecida frase “Penso, logo existo”. Se opondo a este raciocínio,
Locke arguia que depois de uma análise minuciosa, podemos dividir
nossos pensamentos e percepções em ideias simples e complexas.
Rompendo com ambas as tradições, Pierce considerou para
a elaboração de sua filosofia, as crenças que possuímos quando
iniciamos a inquirição. A inquirição é o ato de indagar até que se
alcance o conhecimento de alguma coisa. Ela aparece quando
estamos no estado de dúvida e precisamos reestabelecer nosso
estado de crença.
Todavia, Peirce, destaca que nesse processo em que realizamos
indagações para sair do estado de dúvida, usamos as crenças que
possuímos como fundamentos básicos para nos guiar na investigação.
Por exemplo, antropólogos e arqueólogos que estudam o surgimento
do homo sapiens na terra (desde origem da raça humana, a formação
dos povos e o estabelecimento da cultura/ costumes e etc.) tem de

318  Teônia Mikaelly Pereira


antemão um conhecimento sobre tudo isso, e levam eles para a
pesquisa. Mesmo sabendo que estes conhecimentos estão mais ou
menos corretos.
Para começar, a dúvida, observa ele “é um estado de desconforto
e insatisfação do que lutamos para nos libertar” (PEIRCE, 2016, p.
168). A crença por outro lado, diverge por ser “um estado calmo
e satisfatório”. Outra diferença tem a ver com a forma como cada
estado nos impele a ação. Sendo a dúvida comparada com um
incômodo, quase uma coceira, que exigira a ação imediata de nossa
parte afim de se obter o alívio. Assim também ocorre com a dúvida;
logo que é eliminada, desaparece com ela, o incômodo. No estado
de crença, há a ação, no entanto, não é imediata.
Com isso, Peirce nos explica que a crença nos serve como código
de conduta de como devemos agir em determinadas situações. Para
Peirce, a crença é o estabelecimento de um hábito que direciona
nossas vontades e desenha nossas ações. O autor destaca ainda que
sendo a dúvida semelhante a um incômodo, o remédio para este
desconforto seria a inquirição. Portanto, o objetivo final da inquirição
é o restabelecimento da crença. E está última, ao ser alcançada, não
necessariamente precisaria ser verdadeira; bastaria ser satisfatória.
Ainda neste artigo, depois de discutir as diferenças entre crença
e dúvida, questiona-se sobre como fixar a crença de tal maneira que
não haja mais a possibilidade de vir a recair novamente em estado de
dúvida. Parte da hipótese de que o “acordo de opiniões é o objetivo
único da investigação” e de que “a crença reveste a natureza de um
hábito”. Desta forma, o filósofo apresenta os quatro metodos de
cessar a dúvida (PEIRCE, 2016, p. 169).
O primeiro é o método da tenacidade. Quem o adota, estabelece
suas crenças como unicamente certas. Evitando a convivência com
pessoas que possuem opiniões diferentes ou desprezando e rejeitando
qualquer pensamento que confronte suas crenças pessoais. De
acordo com Peirce, este método funciona ate certo ponto, pois,
as nossas crenças são facilmente afetadas no momento em que
interagimos com pessoas ou nos deparamos com fatos inegáveis da
vida em sociedade. Peirce acrescenta,

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE SIGNO SEMIÓTICO 319


NA FILOSOFIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
“o impulso social e contra ele. O homem que o adota verá que
outros homens pensam diferente dele, e pode ser que lhes ocorra,
nalgum momento mais são, que suas opiniões são tão boas
quanto as dele, e isso lhe abalará a confiança em sua crença”.
(PEIRCE, 2016, p. 170).

Se o insucesso do método da tenacidade está no impulso


social, há um método que enseja dar fim a este entrave. O método
da autoridade, aqui, a crença não é fixada pelo indivíduo, mas por
um mecanismo superior, como a Igreja ou o Estado.
Neste método, o indivíduo não precisa mais se preocupar com
o confronto de ideias, pois, a evidências contraditórias são reguladas,
através de censura ou mesmo eliminação de elementos que estas
instituições considerarem subversivos. O ponto franco deste método
se encontra na incapacidade das dessas instituições de regular todas
as informações e opiniões presentes na sociedade, acarretando, por
isso, uma fixação provisória da crença.
Peirce chama o terceiro método de fixar a crença de método
a priori. Nele, a crença é fixada quando concorda com a razão. São
crenças que não passam pelo crivo de analises empíricas, mas que
por corresponderem a razão, acabam sendo consideradas boas.
O autor tece críticas também ao critério utilizado para escolha da
crença, similar ao conhecimento intuitivo.
E como sabemos, o mesmo nega a existência deste poder,
revelando assim, a fraqueza deste método em sua proximidade
com o que Peirce chama de “desenvolvimento do gosto”, pois, o
conhecimento aqui fica vinculado a inconstância de um mero desejo
que cedo ou tarde, mudará dependendo do que esteja na moda.
O último método de fixação da crença é científico. Esse método
difere dos anteriores por abolir a vontade humana que se impunha nos
outros métodos. Aqui a realidade não é definida pelo que desejamos,
ela é observada em si mesma. Sobre isso Peirce afirma que “há coisas
reais, cujas características são inteiramente independentes de nossas
opiniões acerca delas; essas realidades afetam nossos sentidos de
acordo com leis regulares, e, embora nossas sensações sejam tão
difententes quanto nossas relações com os objetos, ainda assim,
tirando vantagem das leis da perceção, podemos determinar por

320  Teônia Mikaelly Pereira


raciocínio como as coisas realmente são; e qualquer homem, se tiver
experiência suficiente e raciocínio o bastante sobre isso, será levado
a uma única verdadeira conclusão” (PEIRCE, 2016, p. 168).
Este método científico procede do reconhecimento da natureza
como uma realidade externa que não se amolda as nossas crenças.
Por conseguinte, a fixação da crença se dá por sermos guiados por
estas realidade que se apresentam. Porém, a crença fixa-se somente,
no entanto, quando estas realidades externas não são confusas, mas
revelam-se consistentes ao pensamento coletivo.

Considerações Finais

A preocupação principal de Peirce com sua semiótica


foi a elaboração de um sistema de pensamento, amparado no
entendimento da linguagem e suas possibilidades tanto para o
desenvolvimento científico quanto o trabalho da filosofia.
O objetivo principal do fundador do pragmatismo foi de
produzir um método para clarificar as ideias. Neste sentido, Peirce
antecipa as discussões da filosofia da linguagem que consolidam
com a chamada “virada linguística”. O caminho foi construído para
a estruturação e sistematização de uma teoria geral dos signos. Desse
modo, as ideias discutidas no texto A Fixação das Crenças teve um
papel decisivo para a constituição de um fazer filosófico não mais
amparado na mera intuição intelectual, mas, sobretudo, em esforço
pedagógico e educar para o pensamento.
Em nossas descobertas observou-se que o pragmatismo na
versão de Peirce se diferencia de seus contemporâneos. Sua teoria
visa afirmar o pragmatismo como um método para elucidar e
clarificar os significados dos conceitos. Neste sentido, sua filosofia
adentra o campo da lógica e da semiótica no sentido de interpretação
adequada da linguagem que se constitui por meio dos signos. Com
este propósito o autor se diferencia dos pensadores metafísicos que
visam encontrar uma verdade redentora de caráter apriorístico, para
Peirce os diferentes modos de interpretar os significados de um signo
têm a ver com o contexto e com eficácia prática da aplicação deste
conceito.

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE SIGNO SEMIÓTICO 321


NA FILOSOFIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
REFERÊNCIAS

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Dewey en las aulas. Madrid, Machado Nuevo: Aprendizaje. 2015.

NASCIMENTO, Edna M. M do. Dewey e Rorty: da metafísica


empírica à metafísica da cultura. Teresina: EDUFPI, 2014.

NASCIMENTO, Edna M. M do. Pragmatismo uma filosofia da


ação: de Dewey a Paulo Freire. Teresina: EDUFPI, 2017.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica [tradução José Teixeira Coelho


Neto]. 4º ed. 3° imp. São Paulo: Perspectiva. 2017.

_______. Semiótica e Filosofia. Introdução, seleção e tradução de


Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo, Cultrix,
1993.

_______. How to Make Our Ideas Clear. In: Popular Science


Monthly. (January 1878), 286-302.

______. A Fixação das Crenças: tradução Anabela Grandin,


Disponível em www.lusofonia/Textos/peirce_a fixação das crenças.
PDF (consultado em 10/05/2018.

______. La Fijación de La Creencia. In: Obras Filosóficas: Fondo de


Cultura, 2016, p.168.

______. Cómo Esclarecer Nuestras Ideas. In: Obras Filosóficas:


Fondo de Cultura, 2016, p.173.

SANTAELLA, Lúcia. Produção de linguagem e ideologia. 2. ed. ver e


ampl. São Paulo: Cortez, 1996.

______ Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.

322  Teônia Mikaelly Pereira


A METAFÍSICA DE CHARLES
SANDERS PEIRCE: UMA ANÁLISE SOBRE
APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO

Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima

INTRODUÇÃO

A
metafísica é uma das principais discussões propostas
pelo filósofo estadunidense, considerado uns dos
fundadores do movimento pragmatista Charles
Sanders Peirce (1839-1914). O filósofo pragmatista busca
transformá-la em uma filosofia da ação, distinguindo-a da
metafísica clássica. Sabe-se que a metafísica é um termo criado no
século I a.c. por Andronico de Rodes, para classificar as obras de
Aristóteles. Posteriormente, utilizada para referir-se aos estudos
e conhecimentos que transcendem o mundo sensível (ARANHA;
PIRES, 2009). A metafísica de Peirce, pode se dizer que trata da
atividade cognitiva do ser humano cujo conhecimento pode tornar-
se mais sistemático, seguro e eficaz, proporcionador de uma
educação voltada para o pensamento.
Este estudo tem por finalidade os seguintes objetivos: realizar
um estudo sobre o pensamento de Charles Sanders Peirce e sua

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 323


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
contribuição para a metafísica; interpretar a sistematização lógica
proposta por Ivo Assad Ibri, que compreende a “arquitetura” do
pensamento de Charles Peirce. Visa, sobretudo, identificar no ensaio
The Fixation of Belief [A fixação da crença] as principais características
do pragmatismo, caracterizando a noção de experiência desenvolvida
por Pierce e articulando estes conceitos ao desenvolvimento da
aprendizagem.
O estudo delimitar-se-á a investigar o ensaio The Fixation of
Belief [A fixação da crença] e as categorias peircianas proposta por
Ibri (2015). Buscou-se também elementos teóricos extraídos da obra
Semiótica e filosofia (1975) que se trata de uma coletânea que reúne os
principais textos escritos por Pierce, bem como de outros escritos
desta tradição.
O artigo seguirá a seguinte estrutura: uma discussão inicial
sobre a vertente pragmatista, em seguida serão apresentados dados
da trajetória biográfica de Charles Sanders Peirce, por fim o artigo
discute a metafísica de Peirce e sua contribuição para a educação”.
Esta seção foi subdividida nos seguintes tópicos: “Como fixar as
crenças: um legado educacional” e “O processo de aprendizagem no
mundo sensitivo”.

O que é pragmatismo?

O pragmatismo originou-se nos primeiros anos de 1870, nos


Estados Unidos, tendo como protagonista um grupo de jovens
intelectuais da cidade de Cambridge, Massachusetts, liderados pelo
filósofo Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo considerado
um dos fundadores desse movimento. De forma irônica, os membros
desse grupo se autodenominavam The Metaphysical Club [O Clube
Metafísico], uma vez que buscavam em suas discussões, fazer críticas
à metafísica clássica e promover uma conexão filosófica entre teoria
e prática. Além de Pierce, o grupo incluía outros pensadores, como
Nicholas Saint John Green, Chauncey Wright, William James, Oliver
Wendell Holmes Jr., dentre outros.

324  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


Essa corrente de pensamento é considerada uma grande
contribuição da América para filosofia mundial, por ser uma
escola de pensamento legitimamente americana surgida nos
Estados Unidos da América que se diferencia da extensão da
filosofia europeia presente no país como os transcendentalistas
da Nova Inglaterra ou os hegelianos de Saint Louis. (WAAL, 2007,
p. 19).

O termo “pragmatismo” vem da expressão grega “pragma” que


significa ação ou prática. De acordo com Nascimento (2017, p. 50):

Seu sentido está relacionado ao fazer, ao que é ação ou ao


que pertence ao campo da ação. Oficialmente o termo foi
introduzido na filosofia em 1898, na Universidade de Berkeley,
quando William James (1842-1910) se referiu à doutrina que
Peirce desenvolvia desde 1878.

Muitos interpretes do pragmatismo o consideram mais que


uma teoria filosófica, ou seja, esta doutrina é entendida como um
método para elucidar o sentido e significado dos conceitos. Seu
objetivo não é definir um conjunto de regras ou leis que interpretem
o mundo sensível ou produzir um conhecimento a ser aplicado em
uma área específica. Pelo contrário, o pragmatismo busca propor
métodos que guiem nossas atividades enquanto filósofo, educador,
cientista, entres outros. Nesse sentido, o Clube Metafísico buscava
produzir uma filosofia de base científica que valorizasse o poder da
experiência na obtenção de conhecimento (NASCIMENTO, 2017).
O mesmo procurava determinar o significado de termos filosóficos
e científicos que se apresentava obscuro, irrelevante à vida prática.
Isso pode ser confirmado na obra de De Waal (2007, p. 22) onde
este autor afirma que o objetivo do pragmatismo “era mostrar que
numerosos termos filosóficos não tinham significado e que certos
problemas filosóficos centrais eram causados por falta de clareza
terminológica”.
Os primeiros escritos dessa corrente de pensamento deram-se
através Peirce, com sua famosa ‘máxima’ presente e explorada no

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 325


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
artigo intitulado How to Make our Ideas Clear [Como Tornar Claras
Nossas Ideias]. Nesse escrito, o filósofo aponta um método para
fixar o conhecimento e com isto, evitar a especulação apriorística
do conhecimento, produzindo uma mentalidade científica. Com
esse trabalho Peirce mostrou-se um empirista com caraterística de
laboratório, mais precisamente, um empirista científico com forte
referência nos escritos de Kant. Segundo Nascimento, “os estudos
de Peirce se encaminhavam para interpretar a universalidade dos
conceitos no domínio da experiência, da mesma forma que Kant
estabeleceu a lei da razão prática do domínio a priori” (NASCIMENTO,
2017, p. 50).
Para Peirce o pragmatismo é um método que permite dar
significado às proposições e validar as concepções intelectuais
através de suas consequências práticas (NASCIMENTO, 2017). Em
sua concepção, o modo de pensar deve coincidir com as ações do
indivíduo, sendo esta a única forma de evidenciar o pensamento.
Outro pensador desse campo filosófico é Williams James,
que em seu famoso livro Pragmatism [Pragmatismo], declara que o
pragmatismo não trouxe em sua essência nenhuma novidade, visto
que essa maneira de filosofar era praticada pelos antigos filósofos
que buscavam compreender os problemas e discussões concretos
da humanidade. Ao contrário de Pierce, James preocupou-se em
estudar a verdade, trazendo com isso elementos humanísticos
para o pragmatismo e demarcando a noção de verdade, que para
ele é “aquilo que gera uma relação satisfatória com a realidade”
(NASCIMENTO, 2017, p. 55).
Williams James foi o primeiro a empregar o termo pragmatismo
de forma direta em seus escritos e foi com James que o pragmatismo
chegou ao cenário internacional, sendo tema de discussões durante
vinte anos. Já o intelectual John Dewey era um hegeliano que se
voltava à política e à educação da sociedade americana. Sua filosofia
buscava promover formas de agir que repercutissem nas lutas sociais
e morais, pautadas na noção de experiência. Dewey esforçava-se em
construir um método de investigação para alcançar o conhecimento,
negando a existência de pensamentos estáticos e imutáveis.

326  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


Ele concentra seus esforços na tarefa de negar que o pensamento
possua fundações estáticas e perpétuas. Para Dewey, esse tipo de
filosofia dependente de uma herança platônica é reducionista,
uma vez que tudo aquilo que não pertence ao esquema da
imutabilidade, da ordem, da necessidade ou da perfeição, é
considerado inferior e reduzido à aparência, ao secundário,
ao errôneo, ao ilusório. Seu antifundacionismo envolve uma
permanente rejeição dos conceitos abstratos, categorias
apriorísticas, perpétuos, entes transcendentais. (NASCIMENTO,
2017, p. 63).

Esses filósofos - Peirce, James e Dewey - são considerados os


fundadores do pragmatismo e compartilham do pensamento de que
a filosofia deve aproximações ao darwinismo. A ideia de inteligência
enquanto processo operativo e a noção de experiência com um fluxo
contínuo de atividades que tem como função o processo adaptativo
dos organismos, guardam similaridades com as teorias de cunho
darwinistas. Portanto, a ideia de aprendizagem que se constitui
num processo ativo foi um passo importante para as mudanças que
aconteceram na escola.
O pragmatismo como escola de pensamento deixou seu legado
na educação, trazendo grande contribuição até os dias atuais para o
campo educacional e pedagógico, principalmente John Dewey que
dedicou inúmeros escritos para construir uma educação inovadora
que valorizasse as experiências dos alunos para a construção de
conhecimento e aos educadores propunha que tomassem consciência
sobre sua experiência enquanto professores, criando hábitos que
reflitam a experiência, um professor com “pensamento reflexivo”. Pois
através do pensamento que se pode chegar a algo novo, reinventar o
antigo ou ver o conhecido por outro ângulo. (MURARO, 2013)
A educação em um viés pragmático exige uma educação fora
dos moldes tradicionais onde os alunos são tabulas rasas, no qual
os educadores devem transmitir conhecimento. O pragmatismo
propõe uma educação em que os alunos aprendam com suas
próprias experiências e possam produzir conhecimento com o
auxílio do professor, conhecimento esse que possa ser utilizado para

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 327


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
resolver problemas concretos da realidade, problemas éticos, morais,
políticos, entre outros. No Brasil, essa corrente deu origem a dois
importantes manifestos: Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
(1932) e Manifesto dos Educadores (1959), ambos os manifestos
têm forte presença da filosofia educacional de Dewey.
Para que se possa compreender a metafisica de Pierce, uns dos
objetivos desse trabalho, será dedicado uma seção que abordará
sua vida, fazendo uma análise de seu ilustre artigo denominado “A
Fixação das Crenças” que lhe concedeu a classificação de empirista
com caráter científico, a designação que o filósofo atribui as crenças
e aos signos, as categorias do pensamento responsável pelo ato de
conhecer e o processo evolutivo do conhecimento.

Peirce: vida e obra

Charles Sanders Pierce nasceu nos EUA, em Cambridge,


Massachusetts no dia 10 de setembro de 1839. Filho de Benjamin
Peirce, um ilustre professor de História Natural e Matemática de
Harvard, considerado um dos principais matemáticos de sua época
foi responsável por fazer Pierce apreciar matemática, lógica e filosofia.
No ano de 1859, formou-se em Química pela Universidade de
Harvard e em 1864-1865, lecionou na mesma universidade. Entre os
anos de 1867-1869 trabalhou no Observatório de Harvard e no ano
1869 voltou a atuar como professor na universidade, permanecendo
no cargo apenas por um ano. Na década de 1870, Pierce se reuniu com
os jovens intelectuais da época e fundaram “O Clube da Metafísica”.
Nesse grupo - como dito anteriormente - se reuniam para discutir
filosofia, buscando dar clareza (significado) a termos da filosofia
que permaneciam obscuros e afastados da vida prática.
Alguns anos depois, mais precisamente em 1875, Pierce à
procura de emprego, escreve uma carta para o reitor Daniel C.
Gilman da recém-criada Universidade de Johns Hopkins. Em sua
carta, o filósofo menciona seu preparo em lógica e se dispõe a ensinar
a matéria. Todavia, Pierce relata sua situação conjugal, motivo pelo
qual lhe traria grande infortuno. Nessa carta Pierce relata que:

328  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


“há vários anos, não me dou bem com minha mulher, tenho vivido
separado e nem sequer a vejo por mais de um ano”. (PIERCE,1972,
p. 13).
No ano 1877 publica o artigo The Fixation of Belief [A fixação da
crença] e no ano seguinte, publica na revista Popular Science Monthly
o artigo How to Make our Ideas Clear [Como Tornar Claras nossas
Ideias], trazendo a sua máxima que diz: “Considerar que efeitos -
imaginavelmente possíveis de alcance prático - concebemos que
possa ter o objeto de nossa concepção. A concepção desses efeitos
corresponderá ao todo da concepção que teremos do objeto”
(PIERCE,1972, p. 59). Esta máxima é considerada o jargão principal
do pragmatismo de onde se extraí os conceitos de ação, consequências
práticas e o entendimento dos significados dos termos.
Nesses artigos, Pierce aborda que a principal função do
pensamento é construir crença, e esta, para ser alcançada, precisa
da irritação da dúvida, a dúvida é cessada com a construção de um
hábito, um modo de agir. Seu principal objetivo é desenvolver um
método que faça as pessoas definir com exatidão os fenômenos
experimentais e dá-lhe um conceito. Pode se dizer que com estes
princípios Peirce está se aproximando das ciências empiristas e de
Kant (VIANA, 2014).
Sobre a carta referida anteriormente, poucos anos depois (em
1879), Pierce é admitido como instrutor em tempo parcial para alunos
recém-formados, ficando no cargo até 1884. Durante esses cinco
anos, ele desenvolveu com êxito o campo da lógica juntamente com
seus alunos. De acordo com o relatório apresentado pela instituição,
os alunos do filósofo apresentaram um nível de originalidade
em lógica nunca ainda alcançada por outros alunos dentro da
universidade (PIERCE,1972). Como resultado desse trabalho, em
1883, foi publicado o volume Studies in Logic by Members of the Johns
Hopkins University.
No ano de 1880, o pai de Pierce morre deixando uma herança
que lhe permitiu comprar uma grande casa de campo. Pierce sonhava
com a possibilidade de receber alunos da Universidade de Johns
Hopkins em sua residência, porém esses alunos nunca chegaram.

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 329


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
Homem maduro, tendo recebido uma herança, pôde Peirce
adquirir uma grande casa de campo, onde sonhou acolher
alunos que lhe fossem encaminhados pela Universidade de
Johns Hopkins; jamais, entretanto, lhe chegaram esses alunos,
nem mesmo depois de haver-se proposto alugar aquela casa à
Universidade. (PIERCE,1972, p.12).

Nesse mesmo ano, o filósofo se separou legalmente de sua


primeira esposa, fato esse que arruinou sua carreira, por ter sido
um escândalo para a sociedade da época. Do ponto de vista legal,
Pierce está correto, pois sua mulher foi acusada de abandono do lar;
contudo, de acordo com os escritos bibliográficos, ele também teve
sua parcela de culpa, por conta de seu temperamento impulsivo e
áspero (PIERCE,1972). Após sua separação, Pierce não conseguiu
outro emprego e viveu até a sua morte em situação quase de pobreza,
recebendo ajuda financeira de seus amigos, principalmente de
William James.
Em 1905, Pierce reformula sua máxima, publicando-a na revista
The Monist. O filósofo encontrava-se aborrecido pelo mau uso desta
por Williams James, e com isso mudou o nome de sua vertente para
Pragmaticismo. De acordo com ele, essa nova nomenclatura estava
salva de raptores. Foi com esse trabalho que Pierce deixou de ser
um empirista e passou, como ele mesmo afirma, um ideal-realismo
(VIANA, 2014).
Pierce morreu em 19 de abril de 1914, na cidade de Milford,
Pensilvânia, deixando apenas algumas obras fragmentadas e alguns
artigos públicos nas revistas The Monist e Popular Science Monthly.
Suas obras nunca publicadas foram vendidas para Universidade de
Harvard - no conjunto de seus originais- para custear o seu funeral
por quinhentos dólares. Pierce não teve seu reconhecimento em vida
e suas produções só foram acessadas quando a Universidade de
Harvard divulgou a Collected Papers, uma obra póstuma que continha
todos os escritos que a universidade comprou.

330  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


Como fixar as crenças: um legado educacional

O conhecimento sempre gerou discussões no campo filosófico,


vários estudiosos buscaram descobrir o que podemos conhecer
ou o que pode ser objeto do conhecimento. Pierce seguiu outro
caminho, buscou deter seus estudos em descobrir qual a função do
pensamento e qual é a melhor forma de se chegar a ele, através de
uma sistematização lógica. Deixando seu legado nessa tradição em
dois imensuráveis artigos: The Fixation of Belief [A fixação da crença]
e a How to Make our Ideas Clear [Como Tornar Claras nossas Ideias].
Essa subseção dedica-se a analisar apenas o artigo “A Fixação
da Crença”, estabelecendo uma relação entre o método apresentado
por Pierce com a construção do conhecimento dentro do ambiente
educacional, denominado dessa forma por não se restringir apenas
ao interior escolar.
A experiência tem a função de levar-nos a construir uma opinião
lógica que está presente nos conhecimentos cotidianos aos universais.
A exemplo, podemos citar duas situações distintas: uma criança,
de tanto ver em seu dia-a-dia os objetos caírem no chão quando
lançados em queda livre, deduz que, se ela lançar seu brinquedo em
direção ao chão ele irá cair. Os cientistas experenciaram que a água
ao chegar a 100ºC entra no estado de vaporização e, como isso,
deduzem que a água ferve a 100ºC. Levantar hipóteses é uma forma
de fixar as crenças que se tem sobre um determinado fenômeno, pois
permite que pessoas criem formas de proceder que serão validadas
ou não no campo da experiência.
O segundo passo é compreender que: “o objeto do raciocínio é
descobrir, a partir da consideração daquilo que já sabemos, alguma
outra coisa que desconhecemos” (PEIRCE,1877, p. 3). Com essa
afirmação, pode-se considerar que o raciocínio tem a função de
elaborar associação e resgatar o já experienciado. Buscando, com
isso, auxiliar o indivíduo a construir novas experiências ou reelaborar
uma opinião que guiem suas ações.
Nesse ponto, Pierce considera que nós, enquanto animais
lógicos, cometemos alguns equívocos. A mente humana tem

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 331


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
impulsos naturais para aceitar premissas de qualquer natureza
e, consequentemente, suas conclusões, podendo ser levado ao
erro. O pensamento sempre parte de alguma premissa que leva a
alguma conclusão. Por essa razão, o pensamento é eficaz se chegar
a conclusões verdadeiras, partindo de premissas verdadeiras; do
contrário são inferências falsas.
A exemplo, pode-se citar o sentimento de esperança. Imagine
um acidente aéreo em que não há a possibilidade de sobrevivência. Os
familiares das vítimas são informados da tragédia e da real situação
dos desaparecidos, mas apesar de todas as evidências (premissas),
os mesmos acreditam que seu familiar estará vivo (conclusão). A esse
tipo de inferência de natureza humana não se tem um controle, por
isso Pierce sugere uma educação do pensamento com base na lógica
voltada para resolver problemas de assunto prático, que deve partir
de premissa e conclusões verdadeiras.
Depois que se tece o raciocino (proposição), criamos hábitos
que são formas de agir no mundo sensível guiados pelo nosso
pensamento. Esse é o terceiro ponto que precisa ser compreendido,
como se constitui um hábito, que na definição do filósofo é:

[...] bom ou não segundo produz conclusões verdadeiras a partir


de premissas verdadeiras, ou não; e uma inferência é tomada como
válida ou não, sem referência especial à verdade ou falsidade de
sua conclusão, mas segundo o hábito que a determina é tal que
em geral produz conclusões verdadeiras, não. (PIERCE, 1877, p.
3).

O hábito depende de sua validade, ou seja, pode partir


de premissa verdadeira ou falsa, desde que sua conclusão seja
considerada verdadeira por meio de experiência e também seja útil
para resolver problemas reais. Portanto, o pensamento se constrói
dentro do campo experiencial e as proposições se consolidam em
forma de hábitos. A esse respeito, Peirce denomina de crenças os
pensamentos tomados como certo, que não se questiona a veracidade
e sempre se refletem em nossas ações práticas, como afirma em uma

332  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


passagem: “As nossas crenças guiam os nossos desejos e moldam as
nossas ações” (PIERCE, 1877, p. 5).
As pessoas são educadas para atingir um fim prático, ao longo
dos anos aprendem como executar uma determinada atividade, que
com a repetição tornam-se hábito. Seu pensamento opera de forma
lógica no contexto das situações cotidianas, mas quando expostas
a outras situações, ficam desnorteadas. Isso ocorre devido o ser
humano, quando colocados diante de uma situação de reflexão
lógica, se depara com uma infinidade de fatos possíveis, pois a lógica
sempre está repleta de indagação que levam a crença ou a dúvida.
A insegurança diante do agir leva a irritação da dúvida que é
uma insatisfação no modo de pensar que nos impossibilita de exercer
uma ação, causando um desconforto. Lutamos para cessar a dúvida
e alcançar a crença. A essa luta, Pierce denomina inquirição.
A dúvida e a crença são necessárias e positivas para a cognição,
pois permitem repensarmos o já conhecido ou aprendermos
algo novo. Ou seja, a irritação pode ser destruída por meio de
“ferramentas”, construindo um novo agir prático: a crença, um
conhecimento seguro, ético, moral, justo e prático, ou não. Isso
dependerá do método utilizado para cessar a dúvida.
Em um ato educacional e pragmático, a dúvida deve ser “real e
viva” um problema conflituoso que nos impossibilite de agir, afetando
nossa mente. Depois, ela deve ser levada ao campo da experiência,
ambiente em que ocorrerá a inquirição que levará o indivíduo
a construir inúmeras premissas. Quando essas premissas forem
verdadeiras, e consequentemente, suas conclusões, chegarão ao
hábito, uma forma de agir contínua que coincide com o pensamento,
ou seja, uma crença. Um ponto merece destaque, a crença enraizada
na mente pode ser abalada pela dúvida, gerando o desconforto ou
pode surgir por meio de problemas reais.
Deve-se educar o pensamento para criar dúvidas sob as crenças,
construindo um pensamento seguro e possível de ser utilizado em
situação diversas. Mas de que maneira o pensamento passa do estado
de crença para o de dúvida? O que acontece dentro da inquirição? E
qual é o método mais seguro para alcança o estado de crença?

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 333


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
Deve-se educar o pensamento para criar dúvidas sob as crenças,
construindo um pensamento seguro e possível de ser utilizado em
situação diversas. Para isso, os indivíduos devem indagar-se sobre a
veracidade de seu conhecimento e levar tais indagações ao campo da
experiência, levantando hipóteses para resolver seus conflitos, e ao
final chegariam a conclusões verdadeiras e resolvem seus problemas
de caráter prático. Chega-se ao método que nos leva da crença à
dúvida e desta a uma nova crença ou reafirmar a já existente, mas o
que acontece dentro da inquirição? E qual é o método mais seguro
para chegar a uma crença?
A esse respeito será abordado agora, a essa perspectiva que
faz pessoas compartilharem ideias e valores, que permite as pessoas
partirem de premissas diferentes encontrem a mesma conclusão.
Faz com que pessoas com diferentes opiniões acreditem no sistema
capitalista, comunista, igualdade de gênero, na existência de
moléculas atômicas, nas teorias pedagógicas desenvolvidas por
Piaget, no aquecimento global, etc. Que os alunos com perspectivas
diferentes sobre a avaliação (premissa) consigam chegar a uma
apresentação artística do conteúdo (conclusão).
Pierce apresenta quatro métodos para chegar a uma crença:
tenacidade, autoridade, a priori e científico. Sendo o último, o mais
eficaz e que leva às mesmas conclusões e a valorizar a experiência na
elaboração de opinião.
A tenacidade é um método de fixação das crenças em que os
indivíduos aderem a opinião que lhe agradem, sendo esta verdadeira
ou falsa. O objetivo desse método é construir uma opinião sólida e
evitar a irritação da dúvida. Os seres humanos que optam por essa
forma de proceder olham com desprezo outras crenças e não se
permitem entrar em contato com conhecimentos que possam abalar
suas convicções. Esta é aquela típica situação em que a pessoa faz
de conta que não quer saber ou ouvir outra opinião e se sujeita a
uma suposta zona de conforto em termos cognitivos. Para Pierce isso
ocorre devido: “O homem julgar que se conseguir manter-se fiel à
sua crença sem vacilar, isso será inteiramente satisfatório”. (PIERCE,
1877, p. 7) Com isso, o homem possui uma paz de espírito e se livra

334  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


de inconveniente, bem com elabora sentimentos de intolerância ao
diferente.
Em um contexto educacional, pode-se perceber que o método
da tenacidade está presente em estudantes que já possuem suas
convicções enraizadas na mente e se negam a debater um determinado
assunto, em decorrência de o mesmo ir contra aos seus princípios.
Ou quando a pessoa possui algum vício doentio, não se ver dessa
maneira, declarando uma crença que diz o contrário. Podemos
chamar o método da tenacidade de obstáculo epistemológico. Desse
modo, esse método está fadado ao fracasso, pois existem impulsos
sociais que nos levam à irritação da dúvida, reconhecem ao longo
do tempo que certos homens possuem opiniões tão boas e eficazes
quanto a sua, apesar de diferentes. Esse choque social o levará à
inquirição mesmo contra a sua vontade, pois é de natureza humana
que os homens influenciem a opinião uns dos outros.
O método da autoridade é utilizado em grandes impérios,
nações e potências mundiais, quando as mesmas buscam criar
uma crença através de doutrinação, sendo proibido qualquer outra
proposição ou ferramentas que levam os indivíduos a construírem
uma crença contrária ao sistema. Toda opinião contrária deve ser
sufocada ou punida. A exemplo, podemos relembrar a ditadura
militar brasileira, que impôs uma forma de proceder, condenando
as mentes à escravidão ideológica, além de negá-las o acesso ao
conhecimento, proibindo algumas obras literárias. Mas, também
podemos indicar como exemplo à posições políticas e filosóficas de
alguma autoridade que ganha força de verdade e hegemonia.
Esse método possui um poder sobre as mentes muito eficaz, e o
conhecimento torna-se fixo nas mentes individuais, além de que sua
evolução intelectual ocorre lentamente. Todavia, ele não consegue
exercer sua soberania em todos os campos do conhecimento, apenas
nos assuntos essenciais para o Estado, deixando o pensamento de
seus adeptos exposta a “ações de causas naturais” (PIERCE, 1877,
p. 9). Os civis podem ir contra o sistema e causar uma revolução,
como por exemplo, a redemocratização do Brasil. O principal legado

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 335


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
educacional é produzir mentes homogenias, obedientes e dóceis,
sendo o diferente delinquente e perigoso.
Passemos ao método a priori que permite a adesão voluntária
a uma proposição, entretanto, as opiniões que nela são construídas
não são levados ao campo da experiência. Assim, o sujeito adere a
opiniões em que está inclinado a acreditar. É possível visibilizar a
dualidade do método, na medida que os homens tecem suas crenças
na forma como lhe agradam. O método a priori utiliza-se da razão
para construir proposições, mas para Pierce esse método é o mais
falho por converter a inquirição a um processo modal, em que tudo
depende dos desejos e objetivos de cada indivíduo. Pierce cita a
metafísica como a principal seguidora desta vertente, pois a mesma
constrói uma crença que não se aplica a vida prática e não permite
um consenso intelectual.
Por fim, chegamos ao método mais eficaz na visão de Pierce: o
método científico, que permite aos indivíduos partirem de diferentes
premissas e chegarem a uma mesma conclusão. Isso ocorre em
decorrência de o método considerar realidade para tecer uma crença,
pois a realidade possui objetos independentemente da vontade
humana. Esse método é caraterizado por Pierce da seguinte maneira:

Existem coisas reais, cujas características são inteiramente


independentes das nossas opiniões acerca delas; estas realidades
afetam os nossos sentimentos de acordo com leis regulares, e
embora as nossas sensações sejam tão diferentes como o são as
nossas relações aos objetos, contudo, tirando proveito das leis
da percepção, podemos descobrir, através do raciocínio como
as coisas realmente são; e qualquer homem, se possuir suficiente
experiência e raciocinar o suficiente sobre o assunto, será
conduzido à única conclusão verdadeira. (PIERCE, 1877, p. 7-8).

A verificação científica é o método mais seguro para se chegar


a conclusões verdadeiras e fixar as crenças, pois não se pode negar
que existam realidades. Ademais, o método ocorre dentro de um
contexto prático, no qual entra-se em contato com objeto de dúvida.
O método fora capaz de estabelecer opinião, aceito por grande parte
da sociedade, estabelecendo um consenso intelectual; e quando

336  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


estas são submetidas ao processo de inquirição, chega-se as mesmas
conclusões anteriores; isso procede devido a opinião coincidir com
os fatos reais. (PIERCE, 1877)
A educação tem o papel de educar nosso pensamento a construir
crenças verdadeiras que se reflitam em ações práticas. Para isso, o
educador deve promover o contato dos educandos com o método
científico, fazendo com que estes experimentem o método inúmeras
vezes, a ponto de se tornar um hábito do pensamento. Desta forma,
todos terão uma opinião segura e passível de verificação.

O processo de aprendizagem no mundo sensitivo

A presente seção tem objetivo apontar o processo de


aprendizagem por meio das três categorias - primeiridade,
segundidade, terceiridade - elaborada por Pierce para explicar como
ocorre o desenvolvimento do pensamento através da interpretação
dos fenômenos externos à mente em uma perspectiva lógica.
Anteriormente, foi ressaltado o processo de construção de opinião e o
método mais seguro para procedê-la. Entretanto, não mencionamos
como ocorre a construção do “conteúdo” do pensamento, ou seja,
como nossa mente elabora abstrações acerca do mundo sensível.
Pierce utilizou-se da fenomenologia para ter um método
filosófico que representasse a arquitetura do pensamento e pudesse
explicar o processo de abstração que a mente realiza com fenômenos
da natureza e fenômenos mentais. A esse respeito Ibri (2015, p.21)
afirma que para Pierce “[...] a Fenomenologia é a primeira das
ciências positivas da Filosofia, sendo também nomeada por ele de
Faneroscopia ou Doutrina das Categorias.”. Ainda nas palavras de
Ibri (2015, p. 23) “a Fenomenologia não pretende ser uma ciência da
realidade, mas apenas buscará escrutinizar as classes que permeiam
toda experiência comum, ficando restrita às suas aparências”.
Com o uso da fenomenologia, Pierce propõem três categorias
universais. A primeira denominada primariedade, que é algo em si
mesmo, puramente uma qualidade que não estabelece nenhum tipo
de relação com outros objetos e está ligada aos sentidos. Pierce

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 337


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
caracteriza essa categoria como a faculdade ver, atentar para o que
está diante dos olhos (IBRI, 2015).
A mente vaga livremente em um mundo de possibilidade até
encontrar objetos que lhe cause devaneios, fazendo-lhe entrar em
estado contemplativo, e nesse instante, a mente cria uma unidade com
o objeto, representando apenas sua essência, sem fazer associações
com um segundo. A exemplo, podemos citar a cor, o som, o cheiro,
a textura e o sentimento quando não pertencente a um objeto. O
cheiro forte é uma qualidade de algum objeto em um determinado
espaço de tempo; quando terminado esse processo de percepção,
uma pessoa pode criar um conceito de “cheiro forte” sem associá-lo
a um objeto especifico:

Este estado de consciência de experienciar uma mera qualidade,


como uma cor ou um som, caracteriza-se por ser uma experiência
imediata em que não há para essa mesma consciência tinge-se
não pelo passado como alteridade nem pelo futuro por meio da
intencionalidade de um plano, que é da natureza do pensamento.
Ela é uma consciência que, por ser o que é sem referência a mais
nada, está absolutamente no presente, na ruptura com o passado
e futuro. (IBRI, 2015, p. 30).

Entretanto, quando a qualidade passar a ser de um objeto


(o cheiro forte da pimenta, por exemplo), adentramos na segunda
categoria: a secundidade. Nessa categoria, a mente associa a
qualidade fruto da primeridade com algo externo à mente, à matéria.
A mente é obrigada a interagir com os fatos da realidade, criando o
sentimento de “ação e reação, existência e resistência” (JUNGK, 2018,
p. 3) Através das experiências, os fatos exercem uma ação sobre a
mente que independe da vontade humana, e em contrapartida, esta
reage a esses fenômenos por meio de associação. Nesta categoria, os
fenômenos se apresentam à mente de outra forma:

[...] no fenômeno surge a ideia de outro, de alter, de alteridade;


com ela aparece a ideia de negação, a partir da ideia elementar
de que as coisas não são o que queremos que sejam, nem,
tampouco, são estatuídas pelas nossas concepções. A binaridade

338  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


presente neste se opor a traz consigo a ideia de segundo em
relação a, constituindo uma experiência direta, não mediatizada.
Parece que algo reage contra nós, fazendo-nos experienciar uma
dualidade bruta [...] (IBRI, 2015, p. 26, grifo do autor).

Essas associações são necessárias para que no futuro


estabeleçam-se as crenças e hábitos do pensamento. Na vida
cotidiana, uma situação clara de segundidade são os acontecimentos
passados. O passado independe da vontade humana e exerce um
poder sobre sua consciência que poderá transformar-se em hábitos
do pensamento.
A terceiridade é a categoria das leis, é quando a mente
constrói juízo de valor que é sistematizado e engloba a primeridade
e a secundidade. Precisamente, esta é a categoria da generalidade
e continuidade, por meio da ação/reação. O pensamento faz
abstrações, elaborando representações dos fatos, algo que Pierce
denomina de signo. A arquitetura de um signo é exclusiva da categoria
de terceiridade, por se uma construção mais sofisticada e complexa
do pensamento, bem como ser ela proveniente de generalização.
A crença em si mesma é composta por signo (representamem)
que é algo “sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma
coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa
pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido”
(PIERCE,1975, p. 94). Existem objetos reais, aqui entendidos com
amplas conotações, sejam ideias, teorias e coisas concretas e
apalpáveis. Esses objetos precisam ser levados à mente por meio da
observação, sendo construído alguma coisa que o substitua, uma
ideia com características similares ao objeto.
Pierce projeta a construção de signos por meio de relações
triádicas universal-signo-interpretante-objeto. O signo substitui um
objeto na mente humana; ao signo criado para representar um objeto
Pierce denomina de interpretante do primeiro signo. É importante
enfatizar que o representamem também é um signo. Esse signo novo
nunca terá os mesmos aspectos do objeto interpretado, pois se assim
ocorresse, não seria um signo e sim um objeto, todo signo possui

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 339


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
pontos de similaridades com seu objeto referente a alguma ideia
especifica. A esse ponto de similaridade o filósofo classifica como
de fundamento do representamem. Fazendo uma associação entre o
signo e sua relação triádica, funciona basicamente como uma ponte
na qual em dos pontos inacessíveis está nossa mente distante do
conhecimento e da realidade, no outro ponto, o objeto. A ponte
é interpretante que tem a função de interligar ambos, construindo
um novo conhecimento ou um conhecimento melhor desenvolvido,
ou não. Pode-se resumir as três categorias, nas palavras de Ibri, da
seguinte forma: “As três faculdades requeridas podem assim ser
resumidas como ver, alentar para e generalizar, despindo a observação
de recursos especiais de cunho meditativo”. (IBRI, 2015, p. 25).
Essas categorias de interpretação dos fenômenos conhecidas
como primeridade, secundidade e terceiridade, podem ser associadas
ao processo de aprendizagem. O pensamento transita por essas
categorias de forma hierárquica e ao chegar ao último estágio é
capaz de fazer abstrações. A educação nessa premissa deve nortear
os membros de uma sociedade ao uso da fenomenologia que é uma
ciência simples de ser praticada por estar presente no cotidiano e ser
aplicada ao campo experiencial, bem como por permitir o uso do
método científico.
Pode-se observar que essas categorias ocorrem em experiências
ainda não vividas ou em criança quando exposta a situações de
aprendizagem. Quando uma pessoa se depara com uma situação
inusitada, entra em um estado de epifania diante do novo
(primeridade), buscando compreendê-lo em sua essência. Após um
período de tempo, começa a estabelecer conexão com a realidade,
procura entender a função do novo objeto (secundidade) e por fim
constrói um conceito que pode ser verdadeiro ou não (terceiridade).
Crianças de tenra idade começam seus processos cognitivo desta
forma e só após um período de tempo constroem uma opinião,
mesmo que rudimentar sobre a realidade que só será lapidada na
educação institucionalizada ou em outras experiências que a façam
abandonar ou melhorar o conhecimento já construído. Com essas
categorias, Pierce consegue elucidar o processo percorrido pela

340  Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima


cognição, possibilitando que educadores a utilizem para colocarem
seus educandos em situações favoráveis a construções de crenças
que tenha um fim prático, ou seja, passíveis de verificação, possa ser
consensuada na sociedade e guie suas ações.
Entretanto, o mundo não é formado apenas por princípios
lógicos e regulares, existem na natureza os acasos que por definição
são princípios presentes nos fenômenos recobertos por irregularidade
e assimetria (IBRI, 2015). Apesar de existirem fenômenos recoberto
por relações de causalidade, pode-se estabelecer relações entre o
acaso e a lei, ou seja, pode-se estabelecer abstração acerca do acaso.

Considerações Finais

O Pragmatismo é um legado estadunidense para a filosofia


mundial segundo o qual o pensamento propõe métodos que se
traduz numa verdadeira filosofia da ação. Em seguida, relatou-
se a vida e obra do filósofo Charles Sanders Peirce, objetivando
apresentar a trajetória filosófica do intelectual e os motivos que
fizeram-no sistematizar esta teoria que na sua vertente quer elucidar
os significados das proposições e sua validade racional.
Adentrando em sua metafisica, a seção intitulada “Como
fixar as crenças: um legado educacional” procurou abordar como
é elaborada uma opinião que seja verdadeira. Pierce afirma que as
crenças são hábitos do pensamento que se refletem em nossas ações,
sendo construídas dentro do campo experiencial do ser humano.
As crenças são consideradas o critério fundamental da ação,
conhecimentos são transformados em crenças; através do exercício
do pensamento o sujeito problematiza suas crenças, conservando-
as ou abandonando-as; entretanto, as crenças são consideradas os
instrumentos ou ferramentas de intervenção na realidade, por isso
elas são transformadas em hábitos.
Dentro desta problemática, Pierce sugere um método para
construir melhoradas e inovadoras formas de agir, que é a irritação
da dúvida. Com ela, o ser humano sente-se provocado a reconstruir
suas crenças ou abandoná-las, visando criar opinião que resolva

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 341


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
seus conflitos internos ou externos. Entretanto, a mente possui
dificuldades para sair do estado de comodismo mental, sendo
necessário a interferência de um segundo fato: a educação. A
educação deve incentivar a criação de hábitos mentais de dúvida sobre
as crenças, para que os educandos consigam melhorar sua forma de
viver, construir novos conhecimentos ou até novas realidades. Uma
ressalva deve ser feita, pois há crenças em nossas mentes que não
necessitam entrar no status de dúvida, por serem uma proposição
que em todas as suas dimensões são consideradas verdadeiras para
o indivíduo, a exemplo podemos citar a fé.
O papel da educação em um viés pragmático e lógico, é
garantir uma educação que ponha os educandos em contato com
o método científico. Além disso, os educadores cientes das etapas
de aprendizagem que a mente percorre para tecer abstração, devem
incentivar os discentes a estarem atentos aos fatos cotidianos, que
consigam observar o já observado em busca do novo. Devem ensinar
a mente a ver os fatos, senti-los e após o indivíduo adentrar na última
etapa e abstrair os fenômenos, incentivar a verificação das crenças
construídas.
Existem uma relação entre as categorias do pensamento,
a fixação das crenças e o método científico, que é perceber que a
natureza apresenta regularidades no fluxo do tempo. A função do
pensamento é detectar essa regularidade e produzir proposições
verdadeiras que guiem suas ações.

REFERÊNCIAS

DE WAAL, Cornelis de. O pragmatismo e seus críticos. In: Sobre


pragmatismo. São Paulo: Loyola, 2007.

IBRI, Ivo Assad. Kómos noetós: a arquitetura metafísica de Charles


S. Pierce. São Paulo: Paulus, 2015.

JUNGK, Isabel. Aspectos semióticos da filosofia peirceana como


fundação para a educação do pensamento. Dialogia, São Paulo,

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n. 29, p. 69-82, mai./ago. 2018. Disponível em: . Acessado em: 25
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NASCIMENTO, Edna M. M. do. Pragmatismo: uma filosofia da


ação de Dewey a Paulo Freire. Teresina: EDUFPI, 2017.

NASCIMENTO, Edna Maria M. do. Charles Sanders Pierce:


pragmatismo, pragmaticismo e educação. In: SILVA, Heraldo
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perspectivas educacionais: dos clássicos aos contemporâneos.
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PEIRCE, Charles Peirce. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix,


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______. The Collected Papers of Charles S. Peirce. Cambridge,


Mass., 1958.

TURRISI, P. O papel do pragmatismo de Peirce na educação.


CognitioEstudos: Revista de Filosofia, São Paulo, n. 3, nov
2002. p. 122-135. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/
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VIANA, Wellistony C.. A metafísica de C. S. Peirce: do pragmatismo


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129, 2014. Disponível em:. Acessado em: 20 dez. 2018.

A METAFÍSICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE: 343


UMA ANÁLISE SOBRE APRENDIZAGEM E COGNIÇÃO
SOBRE OS AUTORES

Alex de Mesquita Marinho


Mestre em Filosofia através do PROF-FILO (Mestrado Profissional
em Filosofia), pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Especialista
em Docência do Ensino Superior pela Faculdade do Meio Norte –
FAEME. Especialista em Ensino de Filosofia no Ensino Médio pela
Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Especialista em Geopolítica
e Relações Internacionais pelo Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Piauí – IFPI. Licenciado em Filosofia pela Faculdade
do Meio Norte – FAEME. Licenciado em Pedagogia pela Universidade
Estadual do Piauí – UESPI. Atualmente é Professor de Filosofia e
Coordenador Pedagógico na Rede Estadual de Educação do Piauí –
SEDUC/PI, também com experiência em História e Sociologia. Atua
ainda como Tutor da Especialização em Educação Especial e Inclusiva
na Universidade Aberta do Brasil – UAB/IFPI. Experiência no Ensino
Superior na área de Pedagogia. Principais temáticas de estudo: Ensino
de Filosofia no Ensino Médio, Teoria da Justiça como Equidade em
John Rawls, Nazismo e Neonazismo. Email: allex.mesquita@hotmail.
com. Lattes: < http://lattes.cnpq.br/6854053183840197>.

Cássio Eduardo Soares Miranda


Professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Comunidade
(Saúde Coletiva) do Centro de Ciências da Saúde da Universidade
Federal do Piauí na Linha de Pesquisa: Saúde na Escola. Coordena

SOBRE OS AUTORES 345


o NIPSEC (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas em Psicanálise,
Educação e Contemporaneidade), que desenvolve pesquisa-
intervenção clínica e pedagógica sobre os sintomas escolares:
problemas de aprendizagem, distúrbios de comportamento, mal-
estar docente, violência e outras formas de manifestação do fracasso
escolar, na interface da psicanálise, educação e saúde pública.
Possui graduação em Psicologia Clínica e Licenciatura Plena em
Psicologia pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade
FUMEC, mestrado em Estudos Linguísticos pela UFMG, doutorado
em Estudos Linguísticos pela UFMG, doutorado em Psicologia pela
UFRJ com período de aperfeiçoamento na Universidade de Lisboa.
Possui estágio pós-doutoral em Análise do Discurso pela UFMG.
É Especialista em Educação-Afetivo Sexual pela UEMG e possui
formação em Psicanálise pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental
da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Minas. É membro do
Grupo de Trabalho Psicanálise e Educação da Associação Nacional
de Pós-graduação e Pesquisas em Psicologia.

Conceição de Maria Sousa Araújo


Mestra em Filosofia pelo Programa de Mestrado Profissional em
Filosofia – (PROF-FILOSOFIA- 2019); Especialista em: Metodologia
do Ensino de Filosofia (UGF-2009); Especialista em Ensino Religioso
(ICESPI-2010); Especialista em Docência Superior (UESPI-2008);
Especialista em Políticas Públicas e contextos Educativos (Faculdade
Ademar Rosado-2015);. Possui graduação em: Licenciatura em
Filosofia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI-2015); Pedagogia
pela Universidade Federal do Piauí (UFPI-2000) e Licenciatura
Curta em Teologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI-1994).
É professora da Rede Estadual de Ensino- (SEDUC) nas áreas de
Filosofia e Sociologia e Ensino Religioso. Tem como atuação as áreas
de conhecimento: Filosofia, Sociologia, Ética e Religião.

Edna Maria Magalhães do Nascimento


Possui graduação em Licenciatura Plena em Filosofia pela
Universidade Federal do Piauí (1985); Especialização em Filosofia

346 
Contemporânea na PUC - Minas Gerais - (1996); Mestrado em
Educação pela Universidade Federal do Piauí (2002) e Doutorado em
Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012). Concluiu
Pós-Doutorado em Filosofia - Epistemologia Contemporânea, na
Universidade de Navarra - Espanha (2016/17). Atualmente é professora
Associada, da Universidade Federal do Piauí, lotada no Departamento
de Fundamentos da Educação DEFE/CCE. Leciona na Graduação
e na Pós-Graduação no PPGFIL - Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da UFPI e no Programa de Mestrado Profissional - PROF-
FILO. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia
Contemporânea, Filosofia da Educação, Epistemologia, Pragmatismo
e Ensino de Filosofia. E-mail: magaledna@yahoo.com.br

Francisca Alaíne Pinheiro


Professora da Rede Estadual de Educação do Piauí. Em sua formação
acadêmica inclui Mestrado Profissional em Filosofia – PROF-FILO
pela Universidade Federal do Piauí – UFPI (2019); Especialização em
LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais (2015) pela Universidade Estadual
do Piauí - UESPI e em EPDS - Educação Pobreza e Desigualdade
Social (2017) pela UFPI; e como graduações as Licenciaturas em
Filosofia (1997) e em Ciências Sociais (2014), ambas as graduações
pela UFPI, sendo a de Ciências Sociais realizada como 2ª licenciatura
pelo PARFOR.

Jaciara Ribeiro da Silva Cardoso


Graduada em Licenciatura Plena em Pedagogia pela UFPI (2015).
Mestranda em Filosofia pela UFPI (biênio 2017-2019). Participa
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação e
Pragmatismo - NEFEP, do Departamento de Fundamentos da
Educação DEFE/CCE, na UFPI, desde 2015. 

Jéssica de Souza Lima


Advogada, Sócia do Escritório Barbosa&Lima Advogados
Associados, Mestra em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI), Especialista em Filosofia no Ensino Médio pela Universidade

SOBRE OS AUTORES 347


Federal do Piauí (UFPI), Licenciada em Filosofia pela Universidade
Federal do Piauí (UFPI), Bacharel em Direito pela Faculdade do
Cerrado Piauiense (FCP), Especialista em Direito Previdenciário pela
Universidade Cândido Mendes (UCAM), Especialista em Educação
Infantil pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Professora no
curso de Bacharelado em Direito na Faculdade do Cerrado Piauiense
(FCP), Tutora Presencial na Universidade Aberta do Piauí - UFPI -
Curso de Licenciatura em Filosofia, Licenciada em Pedagogia pela
Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Professora Formadora no
Centro de Educação à Distância do Piauí - Universidade Federal do
Piauí, Professora de Filosofia no Ensino Médio - Instituto Batista
Correntino (IBC), Coordenadora do Programa de Especialização Lato
Sensu em Advocacia Trabalhista e Previdenciária na Escola Superior
de Advocacia- OAB/PI, Presidente da Subcomissão dos Direitos da
Pessoa com Deficiência na Subseção de Corrente/OAB-PI, Integrante
da Escola Superior de Advocacia OAB/PI, Assessora Jurídica (Poder
Legislativo Municipal), Experiência na área de Licitações Públicas:
Presidência de Comissão Permanente de Central de Licitações
Públicas e Pregoeira, Palestrante nas áreas de interesse (Direito,
Educação, Filosofia, Administração Pública e Assistência Social.

Leônidas Da Silva Elva De Sá


Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí (PROF-FILO).
Especialista em Ensino de Filosofia. Graduado em Licenciatura Plena
em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí. Professor efetivo 40
horas, do Quadro de Pessoal da Secretaria de Estado da Educação e
Cultura do Piauí - SEDUC-PI. Foi professor Orientador de Estudo do
projeto d Extensão Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino
Médio - PNFEM/MEC. Foi professor tutor do curso de licenciatura em
Filosofia SEAD/UFPI – Oeiras-PI. Atualmente lotado como professor
de Filosofia e Sociologia no colégio Estadual Zacarias de Góis - Liceu
Piauiense. Desenvolve desde 2013 o Projeto Curta Liceu Direitos
Humanos que tem como objetivo inserir a educação em Direitos
Humanos na escola. Tem experiência na área de Filosofia, Sociologia
e Educação em Direitos Humanos, com ênfase em Filosofia.

348 
Loise Ana de Lima
Licenciada em Filosofia, pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI); Especialista em TEORIA DO CONHECIMENTO, pela UFPI;
Especialista em ADMINISTRAÇÃO E SUPERVISÃO ESCOLAR, pela
Universidade Vale do Acaraú-CE; Mestre em Filosofia (PROF-FILO/
UFPI). Professora da Secretaria Estadual de Educação do Piauí desde
2001, onde exerço a função de Técnica de Ensino e Aprendizagem
da 4 GRE (Gerência Regional de Educação); Professora de Filosofia
do Instituto Dom Barreto, desde 2008; Professora de Filosofia no
CEV Colégio, desde 2015; Trabalhei como Tutora à distância da
Universidade Aberta do Piauí (UAPI), de 2010 a 2014. Professora do
período especial da UESPI, de 1999 a 2003.

Maria Genilda Marques Cardoso


DOUTORANDA em Educação - PPGed/UFRN; MESTRADO EM
EDUCAÇÃO pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Piauí; ESPECIALIZAÇÃO EM DOCÊNCIA
SUPERIOR pela Universidade Estadual do Piauí; GRADUAÇÃO em
LICENCIATURA PLENA EM FILOSOFIA pela Universidade Federal
do Piauí; atualmente PROFESSORA DE FILOSOFIA do Magistério do
Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Piauí - IFPI.

Maria Sueli Lopes da Silva


Mestra em Filosofia pelo Programa de Mestrado Profissional em
Filosofia – (PROF-FILO/ 2019) ; Especialista em: Metodologia
do Ensino de Filosofia para o Ensino Médio (UFPI-CEAD-2016);
Politicas Públicas em Gênero e Raça (UFPI-2012); Administração
das Organizações Educacionais (UFPI/ 2002); Docência do Ensino
Superior (UESPI/ 2002). Possui graduação em: Licenciatura em
Filosofia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI-2015); Pedagogia
pela Universidade Federal do Piauí (UFPI-2000) e Licenciatura
Curta em Teologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI-1994).
É professora da Rede Municipal da Educação Básica. Atualmente é
professora efetiva da Faculdade Maurício de Nassau – (UniNassau-
Parnaíba). Tem experiência nas áreas de conhecimento como:

SOBRE OS AUTORES 349


Filosofia, Sociologia, Antropologia, Ética e disciplinas pedagógicas.
Atuou nos serviços educacionais de coordenação pedagógica,
Comissão Própria de Avaliação e Ouvidoria.

Maurozan Soares Teixeira


Possui graduação em Licenciatura Plena em Filosofia pelo Instituto
Católico de Estudos Superiores do Piauí (2014), Mestrado em
Filosofia pela Universidade Federal do Piauí (2018). Membro do
NEFEP- Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação
e Pragmatismo. Atualmente é Professor Substituto da Universidade
Federal do Piauí- UFPI- Floriano.

Pablo Andrew da Silva Santana


Mestre pelo programa do Mestrado profissional em Filosofia - PROF-
FILO - e especialista em Ensino de Filosofia do ensino médio, ambos
pela Universidade Federal do Estado do Piauí- UFPI (2016), também
especializado em Gestão e supervisão escolar (2014), e em Docência
do Ensino Superior (2011) ambas pela Faculdade latino Americana
de Educação -FLATED, onde atuou como professor no curso de
pedagogia, graduado em filosofia (2009) pela Faculdade Evangélica
do Meio Norte - FAEME. Tem experiência no ensino a distância -EAD,
atuou como (bolsista) na função de tutor do curso de graduação em
filosofia e atuou também como Professor do ensino médio na rede
estadual de ensino - SEDUC-PIAUÍ. E-mail: pablosempre@outlook.
com; CV:http://lattes.cnpq.br/2431944880373086

Patrício Oliveira Lima


Licenciado em Filosofia, especialista em Teoria do Conhecimento
e mestre em Filosofia pela UFPI - Universidade Federal do Piauí.
Professor de Filosofia da Secretaria de Educação do Piauí desde
2002. Foi professor substituto na UFPI (2004-2005) e na UESPI -
Universidade Estadual do Piauí (2006-2007). Em 2013 foi intitulado
Comendador do Estado do Piauí sendo agraciado com a medalha do
Mérito da Renascença em sinal de reconhecimento aos seus trabalhos
em educação no Estado do Piauí. E-mail: patricioufpi26@gmail.com

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Raylane Virginia Venâncio Ferreira Lima
Estudante de Graduação do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia
da Universidade Federal do Piauí. Atualmente é pesquisadora do
Programa de Iniciação Científica e membro do PIBID, com bolsa da
CAPES. É membro do Núcleo de Estudos em Filosofia da Educação e
Pragmatismo da UFPI (NEFEP).

Susana de Castro
Susana de Castro possui graduação em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1993), mestrado em Filosofia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995), doutorado em
Filosofia - Ludwig Maximilian Universität München (2003) e
pós-doutorado em filosofia na CUNY Graduate Center (2015).
Atualmente é professora Associada do Departamento de filosofia
e do programa em pós-graduação em filosofia (PPGF) da UFRJ.
Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente com
os seguintes temas: metafísica antiga (esp. Aristóteles), filosofia
da educação, neopragmatismo, estudos de gênero. Coordena o
laboratório Antígona de Filosofia e Gênero. Coordena o projeto
de pesquisa de extensão “identidade nacional e decolonialidades”.
Autora dos livros Filosofia e Gênero (2014), Ontologia (2008), As
mulheres das tragédias gregas: poderosas? (2011), entre outros livros
e capítulos de livros.

Teônia Mikaelly Pereira Sousa


Graduanda de Letras/Português na Universidade Federal do Piauí.
Atualmente, é pesquisadora e atua como bolsista de Iniciação
Científica, financiada pelo CNPq. Membro dos Núcleos de Estudos e
Pesquisas sobre Filosofia da Educação e Pragmatismo (NEFEP/UFPI)
e Núcleo de Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso (NEPAD/
UFPI).

Vagner Marcos Costa Lima


Possui graduação em Licenciatura Plena em Filosofia pela Instituto
de Estudos Superiores do Maranhão –IESMA (2010); Especialização

SOBRE OS AUTORES 351


em Filosofia da História na FAVIX (2013); Mestrado em Filosofia
pela Universidade Federal do Piauí (2019). Tem experiência em
Filosofia, com ênfase em Ensino de Filosofia. Professor do Ensino
Fundamental da Rede Municipal de Pedreiras-MA e do Ensino Médio
da Rede Estadual de Educação do Maranhão (SEDUC – MA)
e-mail: prof.vagnermarcos@gmail.com

Walter Pinheiro Barbosa Junior


Possui Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (1995), Mestrado em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (1999) e Doutorado em Educação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2002), atuando
principalmente nos seguinte temas: Gestão democrática com foco
em Conselho Escolar e Sertão.

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