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A viagem assombrosa de
João de Calais
Era um reino longe.
Um rei mandava lá.
0 rei tinha montanhas, matos e rios.
Castelos, cidades, fazendas.
Escravos, soldados, mulheres.
Para o rei, o tesouro primeiro, a riqueza adorada, era João.
João de Calais. Seu filho.
Os mais sábios professores João tinha.
As mais doces companhias.
Tudo.
0 moço era forte e belo. Um dia chamou o pai.
Queria viajar, correr mundo. Pediu um navio.
0 rei examinou. 0 filho estava homem.
Veio uma lembrança. Também um dia fora jovem.
Também um dia sentira vontades. Fomes e febres de par-
tir, medir a própria força contra tudo e contra nada.
Sorriu. Disse que sim.
Que construíssem o mais lindo navio que jamais houvera.
Que chamassem trinta audazes marinheiros.
Que carregassem o navio de jóias, tecidos, perfumes, ta-
petes, vinhos e animais raros.
Um arco-íris brilhava entre duas nuvens no alto do céu.
0 navio zarpou.
0 mar é manhoso. Dias se passaram.
Nuvens vieram, cinzentas. 0 navio marchava valente.
0 vento parou. As ondas pararam.
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Tempestade. Cães. 0 morto. Vermes...


Quanto tempo durou, ninguém sabe. E se alguém saldasse a dívida?
Mil águas caindo mil dias. Peixes jogados pelo céu. On- Correu João de Calais. Procurou autoridades. Falou, ex-
das feito véus encobrindo a proa e a popa. 0 navio dançava plicou, pagou.
a música das trevas. O mastro rachou. 0 barco rolando sem 0 morto foi enterrado.
governo acabou afogando. Quase. Encalhou. João de Calais Dia seguinte, um navio reformado içava suas velas. Partia
sobrou só. alegre no rumo de casa.
Aprendera no mar o às vezes lutar e dar tudo, em vão.
Gaivotas mergulhavam no azul do céu.
0 navio ficara atolado próximo a uma ilha.
Nuvens brancas olhavam.
Para lá, dirigiu-se João.
A viagem seguiu noite e dia na palma do mar.
Terra grande, aquela. 0 moço até se espantou.
Um ponto surgiu longe. Outro navio.
Cidade limpa. Ruas largas e retas.
Piratas.
Relógios. Movimento. Indústrias.
João de Calais gritou ordens de armar canhões.
Gente ocupada. Trabalho. Riqueza.
Homens correndo. Navio chegando perto de navio.
Como é vasto o mundo!
Cornetas.
Quanto lugar que ninguém viu!
Uma bandeira branca tremulou no mastro.
João disse quem era. Contou sua história. Foi bem trata-
do. Pediu e recebeu ajuda. Desencalhou o navio. 0 capitão pirata, com seus lábios finos, oferecia mer-
De volta para sua terra, um dia antes, descansando cadoria.
numa praça, sentiu o ar pesado, grosso. Jóia rara. Especiaria das especiarias.
Cheiro fétido. (Mas... ali?) Colocou uma mulher sobre o convés.
Seguiu o rastro ruim. Falou coisas.
Debaixo de uma árvore, sobre o verde da grama, havia Que era princesa tal, que tinha dotes assim.
um corpo. Homem morto. Cachorros comendo sua carne. A mulher, quieta, sem tirar os olhos do mar.
Deu medo. João gritou: As roupas rasgadas revelavam partes de seu corpo.
- Passa! — sua bengala de marfim zuniu enxotando os 0 pirata ria.
animais. Um bote caiu no mar.
Procurando os passantes, o rapaz perguntou e soube. Foi com ouro.
Era um costume antigo. Voltou com mulher.
Quem morresse ali, fosse quem fosse, sem pagar suas João nada perguntou. Mandou mostrar aposentos.
dividas, não podia ser enterrado. Perdia o corpo, sim, mas no Arranjou roupas. Que a moça descansasse e ficasse em paz.
chão. Devorado por cães e vermes. A viagem era longa.
0 moço baixou os olhos. 0 mar inventa histórias.
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Escravos, soldados, mulheres.


0 reino ficou em festa.
Seu nome era Constança.
Foi assim o casamento.
Constança era mulher bonita.
E logo nasceu um filho.
Num navio a vida é à toa.
Os moços riam felizes. Na vida tudo ia bem.
João conversava com a moça. Contaram coisas de si.
Mas o mar inventa histórias.
Constança, cheia de graça, brincava os olhos morenos.
Riam. Falavam tudo. Tinham quase a mesma idade. •••
Chegaram a inventar assuntos.
Deu em João vontade de seguir outra viagem.
Destinos, sonhos e signos.
0 tempo ali era manso. Queria mais movimento.
Vontades de ficar junto.
Visitar novos lugares. 0 mundo é imenso. 0 mar, sem fim.
Antes de pouco tempo, dois olhos leram dois olhos. Constança fez um pedido.
Uma mão tocou a outra. João chamasse um pintor. Mandasse pintar um quadro.
0 barco cortando ondas ia encurtando distâncias. Ela e o filho no colo.
Lábio procurou lábio. Queria que ele levasse esse quadro no navio.
Corpo procurou corpo. 0 quadro ficou bonito. Então o navio zarpou.
João aprendia no mar o às vezes sentir tudo, dar e receber. Viagem longa que foi!
Quando o barco aportou, nunca se viu tanta festa. João soltou-se no mundo.
Igrejas tocavam sino. Q povo todo na rua. Ultrapassou horizontes.
O pai recebeu nos braços o filho que voltava. Passou por terras geladas.
João falou de Constança. Por povos sem fé em Deus.
0 rei se fez preocupado. Alcançou reinos regidos por homens que se escondiam.
Quem era aquela mulher? Um dia, chegou num porto do outro lado do mundo.
João queria casar. Fez negócios no mercado. Comprou coisa. Vendeu coisa.
Quem era aquela mulher? Conheceu tantas pessoas. Gente pobre. Gente nobre.
O rei dizia que não. João ainda era moço. Convidou o próprio rei a visitar seu navio.
Quem era aquela mulher? Um banquete foi servido.
0 filho chamou o pai. Abriu o seu coração. 0 rei veio. De repente, seu rosto se contorceu.
Falou de coisas de amor, que descabiam em medidas. Dois olhos boquiabertos diante de uma parede.
Que não podiam em palavras. Chamou João de Calais.
Explicar como, a paixão? Que quadro era aquele quadro? Que moça era aquela
O rei ouviu. Aceitou. moça?
Montanhas, matos e rios. João contou sua história.
Castelos, cidades, fazendas. Falou do pai e seu reino. Da sede de viajar.
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Contou também do naufrágio. Do país que visitou. Aparentando amizade, seguiu com João na viagem até
Falou do morto. Da volta. Do encontro com o pirata. Constança.
Chegou então em Constança. Deu graças a Deus. Elogiou. Disse palavras de alegria.
Explicou sua beleza. Descreveu olhos morenos. Sorriu e chorou mentiras.
Confessou o seu encanto, seu amor, sua paixão. Navio cortando águas.
Relatou o casamento. A bordo, dois homens sonhavam.
A sensação de mistério de ser pai, de ter um filho. Um, com olhos morenos. Segredos de um corpo. Uma
0 rei chorando, sorriu. criança...
— Mas Constança é minha filha! 0 outro...
Já perdera a esperança de um dia ver de novo aquela Meia-noite. Hora do lobo. João levantou sem sono.
jóia querida. Saiu para o tombadilho, respirar, sentir a noite.
Que já tinha feito preces. Duas mãos em seu pescoço. Uma pontada nas costas.
Enviado seus navios por águas dos sete mares. Virou a cabeça. Reconheceu o rosto, os olhos, mas não o olhar.
Consultara cartomantes, feiticeiras, visionários. Lutou. Sentiu um golpe na cabeça.
Que já pegara doença. Quase caíra da ponte. Sangue. 0 corpo tonto. Tudo girando, voando, caindo.
Emagrecera. Sofrera. Sonhara. Desanimara. Um baque. Água salgada entrando pelos pulmões.
Beijou João. Aprendia no mar o mistério do mal. 0 ódio. A morte
- Você agora é meu filho! mesmo.
Ficou tudo combinado. 0 navio chegou sem João.
João partiria logo, buscar Constança e a criança, enquanto Perdera-se no mar. Ninguém sabia. Ninguém viu.
o rei preparava uma festa iluminada como jamais houvera - João!
ali e nos reinos perto. A voz do rei cortou as almas.
0 navio zarpou. - João!
— Haverá festa! 0 reino ficou de luto.
0 rei luzia de felicidade. A dor cobriu montanhas, matos e rios.
- Constança vive! Castelos, cidades, fazendas.
Mas nem tudo são prendas, nem flores, nem luz. Escravos, soldados, mulheres.
No reino havia um duque. Constança, quieta. 0 dia inteiro. E o outro. E o outro.
Esse homem era herdeiro no caso da morte do rei. Depois, vestiu-se de preto.
Com a vinda de João e a volta de Constança, tudo se Os olhos morenos. 0 corpo bonito. Mas dentro...
desmanchava. Só vontade de morrer. Raiva de respirar. Vazio.
Trono. Terras. Poder. Pegou o filho no colo.
Fel e veneno urdiram um plano. Decidiu que voltava para seu pai.
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Vento triste. Manhã cinzenta. O navio zarpou.


Nele, um homem cheio de planos e uma mulher sofrida
brincando com uma criança.
Mas o mar inventa histórias.

•••
O duque procurou Constança.
Falou que sentia pena. Eram amigos de infância. Puxou
lembranças no tempo.
Agora ela estava só. Queria estar a seu lado.
A mulher disse que não.
O duque foi e voltou.
Que ela pensasse bem. Imaginasse o futuro. Que lembras-
se da criança. Agora ela estava só. Queria estar a seu lado.
A mulher disse que não.
O duque se ajoelhou. Jurou juras. Inventou. Mentiu so-
nhos escondidos. Ofereceu mil carícias. Seu amor e sua mão.
A mulher disse que não.
O navio chegou de volta.
A festa foi adiada.
O rei, feliz — mas sofria. Pela filha, pelo neto, pela morte
de seu filho.
Sentimentos desiguais percorreram todo o reino.
A notícia da beleza.
A notícia da tristeza.
Mas o duque não cansava. Procurou pela mulher.
Prometeu mundos e fundos.
Chorou. Pediu. Implorou.
Constança ouvia calada.
Perder ou ganhar o quê?
A vida não tinha vida sem o amor de João.
Olhou para seu menino. Sozinho sem pai nem nada. Sem
ter modelo de homem para aprender a reinar.
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Constança disse que sim. 0 duque despedaçado, amarrado em dois cavalos.


Não que fosse por amor. Muito menos por paixão. Sonhava sonhos de amor.
Dizia sim pelo filho. A vida tem de seguir. Constança rindo e cantando com o filho na varanda.
0 rei foi comunicado. Constança doce e morena brincando na sua cama.
0 duque ria sozinho. Dois corpos entrelaçados. Calor, carícias, paixão.
Os clarins anunciaram as novas bodas no reino. Mas sonhos não alimentam quando as mãos não podem
Data certa foi marcada. Uma festa. Convidados. nada.
Mas Constança não queria. Apenas só aceitava. Um dia, já era tarde, João olhou para a praia.
A criança perguntava. Queria saber do pai. 0 céu estava vermelho.
0 duque se regalava. Longe, alguém se aproximava.
— Meu filho! Serei teu pai! Um vulto. Devagar. Passos retos sobre a areia.
Mas o mar inventa histórias. João ficou assustado.
0 vulto não era homem.
Nem vivo era.
Longe dali, numa ilha, um homem magro e imundo Seu rosto metade carne, metade osso.
olhava o fundo da noite. Sem pele nos lábios, a boca parecia eternamente sorrin-
Seu nome? João de Calais. do. 0 peito não mexia. Das mangas do paletó brotavam mãos
Não tinha perdido a vida, mas não podia encontrá-la. de cadáver.
Ficara só, com seu corpo. João sentiu o fim, mas o vulto vinha em paz.
Lembrava então e pensava. Disse que se acalmasse. Tinham muito que falar.
Julgara que já morrera. Sentaram-se em duas pedras.
Sentira a luz apagando. João numa. Noutra o outro.
0 ar fugir, sufocando. 0 descarnado era o tal que João - há quanto tempo? —
Mas foi só, não foi a morte. dera ordem de enterrar.
Acordou naquela ilha. Ferido, sujo e perdido. Começou uma conversa. 0 morto contou sua vida.
Passava ali os seus dias de olhos presos no mar, à procura Segredos desta terra e do além.
da esperança na forma de algum navio. Falou da dor e do medo. Da paz e da luz.
Lembrava sua Constança. Adivinhou o futuro.
Seu pai, seu filho. Contou lugares e povos que nunca ninguém sonhou.
0 tal duque. Sabia coisas.
Sonhava sonhos cruéis. Narrou a história de João. Detalhes. Disse notícias de
0 duque cheio de sangue, cortado por sua espada. Constança, do filho, contou do duque, do casamento...
0 duque vivo no chão, devorado por formigas. João deu um pulo.
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— O quê?! Um arco-íris brilhou em plena noite.


Andou e gesticulou. Aquilo nunca! Estrelas caiam e espocavam.
Gritou. Chorou. Gemeu. Uivos e gemidos subiam das trevas.
— Há um jeito. Gotas de prata desciam suaves sobre os dois corpos.
0 sol tinha apagado. 0 vento soprava lento. A noite es- João apertou os dentes.
cura engolia tudo. Do alto, agarrado no descarnado, enxergava o mundo.
João examinou o descarnado. Aquele sorriso. 0 peito A cerimônia do casamento começando.
parado. No templo iluminado, pessoas de todo canto ouviam, em
— Jeito? silêncio, palavras do sacerdote.
— Eu te levo. 0 rei. 0 duque em traje de gala. Constança.
Toda a vida cruzou a cabeça do moço. Duas figuras paridas da noite pararam na porta do templo.
Medos e coragens. Riscos. Lutas. Ódios. Amores. Noites de Um homem e um vulto.
dor e de prazer. 0 homem põe os braços no ombro do outro.
Apertou os olhos. Os dois se abraçam.
Fixou a figura sentada à sua frente. Um raio rabisca o espaço.
Quem seria? Morto? Vivo? Alma penada? Sonho? Estaria 0 vulto some.
louco? Sim. Era loucura. Ou então a morte que viera buscá-lo. 0 homem respira fundo. Atravessa a porta. Seu corpo é
A figura esperava imóvel. imundo e magro. Caminha devagar. Os olhos claros. As rou-
As carnes rasgadas balançavam com o vento. pas rasgadas. A cerimônia pára.
— Então? Murmúrios. 0 rei se levanta. Constança.
João lembrou Constança. 0 filho. Uma voz de criança grita: — Pai!
Fez que sim com a cabeça. Dois homens frente a frente diante do altar. Um dedo
O descarnado ficou em pé. acusa um rosto. Olhos furam olhos. Silêncio. Uma faca brilha
— Agarra minhas costas. e corta num golpe seco. Um corpo treme. Do traje de gala
Duas figuras explodiram no céu. escorre vermelho o líquido escuro e quente.
Uma, metade carne, metade osso.
Outra, um homem.
Uma, espécie de morte viva.
Outra, a vida.
Rasgaram nuvens fosforescentes.
Mergulharam no mais escuro dos breus.
Ventos velozes, ora gelados, ora ferventes, espatifavam-
se no rosto do moço.

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