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A viagem assombrosa de
João de Calais
Era um reino longe.
Um rei mandava lá.
0 rei tinha montanhas, matos e rios.
Castelos, cidades, fazendas.
Escravos, soldados, mulheres.
Para o rei, o tesouro primeiro, a riqueza adorada, era João.
João de Calais. Seu filho.
Os mais sábios professores João tinha.
As mais doces companhias.
Tudo.
0 moço era forte e belo. Um dia chamou o pai.
Queria viajar, correr mundo. Pediu um navio.
0 rei examinou. 0 filho estava homem.
Veio uma lembrança. Também um dia fora jovem.
Também um dia sentira vontades. Fomes e febres de par-
tir, medir a própria força contra tudo e contra nada.
Sorriu. Disse que sim.
Que construíssem o mais lindo navio que jamais houvera.
Que chamassem trinta audazes marinheiros.
Que carregassem o navio de jóias, tecidos, perfumes, ta-
petes, vinhos e animais raros.
Um arco-íris brilhava entre duas nuvens no alto do céu.
0 navio zarpou.
0 mar é manhoso. Dias se passaram.
Nuvens vieram, cinzentas. 0 navio marchava valente.
0 vento parou. As ondas pararam.
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Contou também do naufrágio. Do país que visitou. Aparentando amizade, seguiu com João na viagem até
Falou do morto. Da volta. Do encontro com o pirata. Constança.
Chegou então em Constança. Deu graças a Deus. Elogiou. Disse palavras de alegria.
Explicou sua beleza. Descreveu olhos morenos. Sorriu e chorou mentiras.
Confessou o seu encanto, seu amor, sua paixão. Navio cortando águas.
Relatou o casamento. A bordo, dois homens sonhavam.
A sensação de mistério de ser pai, de ter um filho. Um, com olhos morenos. Segredos de um corpo. Uma
0 rei chorando, sorriu. criança...
— Mas Constança é minha filha! 0 outro...
Já perdera a esperança de um dia ver de novo aquela Meia-noite. Hora do lobo. João levantou sem sono.
jóia querida. Saiu para o tombadilho, respirar, sentir a noite.
Que já tinha feito preces. Duas mãos em seu pescoço. Uma pontada nas costas.
Enviado seus navios por águas dos sete mares. Virou a cabeça. Reconheceu o rosto, os olhos, mas não o olhar.
Consultara cartomantes, feiticeiras, visionários. Lutou. Sentiu um golpe na cabeça.
Que já pegara doença. Quase caíra da ponte. Sangue. 0 corpo tonto. Tudo girando, voando, caindo.
Emagrecera. Sofrera. Sonhara. Desanimara. Um baque. Água salgada entrando pelos pulmões.
Beijou João. Aprendia no mar o mistério do mal. 0 ódio. A morte
- Você agora é meu filho! mesmo.
Ficou tudo combinado. 0 navio chegou sem João.
João partiria logo, buscar Constança e a criança, enquanto Perdera-se no mar. Ninguém sabia. Ninguém viu.
o rei preparava uma festa iluminada como jamais houvera - João!
ali e nos reinos perto. A voz do rei cortou as almas.
0 navio zarpou. - João!
— Haverá festa! 0 reino ficou de luto.
0 rei luzia de felicidade. A dor cobriu montanhas, matos e rios.
- Constança vive! Castelos, cidades, fazendas.
Mas nem tudo são prendas, nem flores, nem luz. Escravos, soldados, mulheres.
No reino havia um duque. Constança, quieta. 0 dia inteiro. E o outro. E o outro.
Esse homem era herdeiro no caso da morte do rei. Depois, vestiu-se de preto.
Com a vinda de João e a volta de Constança, tudo se Os olhos morenos. 0 corpo bonito. Mas dentro...
desmanchava. Só vontade de morrer. Raiva de respirar. Vazio.
Trono. Terras. Poder. Pegou o filho no colo.
Fel e veneno urdiram um plano. Decidiu que voltava para seu pai.
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•••
O duque procurou Constança.
Falou que sentia pena. Eram amigos de infância. Puxou
lembranças no tempo.
Agora ela estava só. Queria estar a seu lado.
A mulher disse que não.
O duque foi e voltou.
Que ela pensasse bem. Imaginasse o futuro. Que lembras-
se da criança. Agora ela estava só. Queria estar a seu lado.
A mulher disse que não.
O duque se ajoelhou. Jurou juras. Inventou. Mentiu so-
nhos escondidos. Ofereceu mil carícias. Seu amor e sua mão.
A mulher disse que não.
O navio chegou de volta.
A festa foi adiada.
O rei, feliz — mas sofria. Pela filha, pelo neto, pela morte
de seu filho.
Sentimentos desiguais percorreram todo o reino.
A notícia da beleza.
A notícia da tristeza.
Mas o duque não cansava. Procurou pela mulher.
Prometeu mundos e fundos.
Chorou. Pediu. Implorou.
Constança ouvia calada.
Perder ou ganhar o quê?
A vida não tinha vida sem o amor de João.
Olhou para seu menino. Sozinho sem pai nem nada. Sem
ter modelo de homem para aprender a reinar.
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