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Silvana Calvo Tuleski

VYGOTSKI
A construção de uma
psicologia marxista

2ª Edição

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Maringá
2008
Copyright © 2002 para Silvana Calvo Tuleski

2ª Edição 2008
lª Reimpressão 2009
2ª Reimpressão 2013

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(Eduem - UEM, Maringá - PR., Brasil)

T917p Tuleski, Silvana Calvo


Vygotski: a construção de uma psicologia marxista /
Silvana Calvo Tuleski. -- 2. ed. -- Maringá : Eduem, 2008.

207 p.

ISBN 978-85-7628-104-7

1. Educação - Fundamentos. 2. Educação - Psicologia. 3.


Psicologia educacional. 4. Vygotski, Lev Semenovich, 1896 -
1934 - Crítica e interpretação. I. Título.

CDD 21.ed. 370.15


CIP-NBR 12899

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Quando se fala de idéias que revolucionam uma
sociedade inteira, isto quer dizer que, no seio
da velha sociedade, se formaram os elementos
de uma nova sociedade e que a dissolução das
velhas idéias marcha de par com a dissolução das
antigas condições de vida.

Marx e Engels
Como pode uma coisa criar outra coisa, a
não ser que a outra coisa crie a primeira?
Ü· L. Moreno).

Aos meus filhos queridos, Laila e Fabrício que,


dialeticamente, ao criá-los, me recriam a cada
dia.
Sumário

Prefácio da primeira edição . .. . . . ....... .......... . ...... . .. .. . .. . ....... .. . .. 11


Prefácio da segunda edição.................................................... 15

INTRODUÇÃO.................................................................... 21

CAPÍTULO 1
As interpretações ocidentais da obra de Vygotski . . .... . ..... .. .... 29

CAPÍTULO 2
Da revolução material à revolução psicológica - as bases da
psicologia comunista de Vygotski.......................................... 71

CAPÍTULO 3
Formação da consciência: um salto da evolução à revolução no
comportamento humano....................................................... 119
Considerações finais ...... . .. . ....... .. ....... . . . .. . .... . ....... ............ . ..... 191
Referências .... ..... . . . .... . .. ... .. . .. .. .. . . . ............ ... .. . . . .. . . . ..... ..... .. . ... 199
Prefácio da
primeira edição

Circunscrevendo nossa discussão ao caso brasileiro, é possível


afirmar que a Educação foi um tema recorrente no decorrer do século
XX. Compareceu em discursos das mais preeminentes figuras do
cenário educacional, como é o caso de Miguel Couto: "A educação
do povo é o nosso problema nacional: primeiro porque é o mais
urgente; primeiro porque resolve todos os outros ; primeiro porque
resolvido, colocará o Brasil a par das nações mais cultas, dando-lhe
proventos e honrarias e lhe afiançando a prosperidade e a segurança;
e, se assim faz-se o primeiro, na verdade se torna único" (COUTO,
1 927 , p. 19). A educação também esteve presente em discursos
de ilustres personagens da política brasileira, e neste caso temos
um exemplo presidencial. Em 1934, Getulio Vargas, em discurso
realizado perante a Assembléia Nacional Constituinte, afirmava:
"Convençamo-nos de que todo homem brasileiro poderá ser um
homem admirável e um modelar cidadão. Para isso conseguirmos
há só um meio, uma só terapêutica, uma só providência: é preciso
que todos os brasileiros recebam educação" (ln: CUNHA, 198 1).
Quanto a pensar a educação como uma das prioridades do País,
certamente não há em que discordar. Quanto a entendê-la como
sinônimo de "terapêutica" ou como salvadora da pátria, o tempo
passado não permite a concordância; mas, apesar do testemunho
• V Y G O T S K I

da história, estes discursos ainda são bastante familiares nos dias


atuais.
Enfim, é por conta desta busca da redenção da Pátria que
muitas reformas educacionais foram realizadas, via de regra,
sustentadas por tantas e diversas teorias. Neste percurso e nas
últimas décadas, outros tantos teóricos e "novas" teorias têm
estado presentes nas novas propostas pedagógicas e documentos
oficiais. Esta diversidade de pensamentos e a possibilidade de sua
manifestação têm seu lado interessante. Empenhamo-nos há séculos
e a humanidade já pagou pesados tributos para que os dogmas
façam parte apenas dos compêndios de História da Civilização. Em
nossa época, superado o obscurantismo, entendemos que "o saber
não ocupa lugar", como afirma a sabedoria popular. Obviamente,
isto não significa que os teóricos e suas teorias são peças de
tamanho único que servem para qualquer situação em que a eles
recorramos. Com isto estamos querendo dizer que todo saber é
datado historicamente. Este é um dado que não se pode perder de
vista, com o risco de reduzir, simplificar e distorcer (por que não?)
significativas produções teóricas.
É exatamente este cuidado que Silvana Tuleski, jovem
pesquisadora e professora universitária, psicóloga por formação,
revela neste livro ao nos apresentar Lev Semionovich Vygotski
(1 896- 1934). Este reconhecido pensador russo, freqüentemente
citado nas produções teóricas, conferências, palestras, cursos,
seminários e tantas outras atividades da área educacional, é-nos
apresentado por ele mesmo. Ao contrário do que comumente tem
sido publicado a respeito, Silvana percorre internamente a obra
(conhecida) de Vigotski e traz algo de pouco comum na literatura
existente sobre este tão importante pensador: delineia seu tempo,
seu espaço e a singularidade da Revolução de Outubro, cenário e
inspiração deste aporte teórico que tão ampla aceitação e divulgação
tem tido na educação atual. Através de instigante e contínua
interlocução com a historiografia russa e as posições teóricas
assumidas por Vygotski e seus pares, Silvana vai dimensionando a
estrutura interna desta teoria e "( . . . ) a luta que a sociedade russa
travava para completar a subversão da ordem, na qual Vygotski se
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Prefác i o da p r i m e i r a edição •

envolveu no sentido de fortalecer essa luta pela consciência que os


homens deveriam ter dela", como afirma a própria autora.
Assim, ao demonstrar, com propriedade, a estreita articulação
entre as concepções teóricas de Vygotski e o projeto coletivo
de sociedade comunista, Silvana aponta para os problemas
de interpretação quando as idéias da época se divorciam da
situação em que foram geradas e elaboradas. Em tom polêmico,
explicitado através de uma linguagem simples e clara, Silvana nos
oferece este livro, deveras oportuno, na medida em que rejeita a
ortopedia das idéias, tão em voga em nossos dias. Afinal, um livro
que reúne seriedade e reflexão, como este, não precisa de longos
preâmbulos.

Maringá, maio de 200 1

Maria Lúcia Boarini

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Prefácio da
segunda edição

A leitura do livro ljgotsky: A Construfão de uma Psicologia


Marxista, de autoria de Silvana Calvo Tuleski, é estimulante,
suscitando, de imediato, inúmeras questões. Mas seu grande mérito
está em provocar o debate sobre a produção histórica das teorias e
sua apropriação abstrata pela academia. Tendo como pressuposto
que as teorias emergem das lutas que os homens travam entre
si para a produção de sua existência material, a autora verifica
que, no mundo acadêmico, elas são desentranhadas dessas lutas,
passadas por diferentes filtros e consideradas neutras para aplicação
em qualquer tempo e lugar. Essa "assepsia" destrói sua relação
originária com a prática social que a engendrou, privando-a de falar,
por meio de seu sistema de idéias, como os homens transformam
o mundo que parece ameaçar sua existência ou como tudo o que
antes era dado para sempre pode se mostrar obsoleto e vir a ser
diferente do que é. Essa limpeza explica, também, a esterilidade
e inoperância da teoria frente às questões práticas, semeando a
discórdia entre os chamados profissionais do "tró-ló-ló" e os do
"cotidiano", sobretudo no curso de Pedagogia, exemplo clássico
desta contenda.
Uma análise mais criteriosa da clássica oposição entre práticos
e teóricos do ensino mostra que o pomo da discórdia pode estar na
• V Y G OTS K I

falta de entendimento do que vem a ser prática social e sua relação


com a prática escolar, em que as pedagogias acontecem. Nem sempre
estes conceitos são aplicados com os cuidados que merecem. A
pedagogia escolar, por exemplo, dispensa maiores explicações, pois
se trata de um conceito de domínio público, cuja ação é entendida
como formal, sistemática e intencional, apesar de se desconhecer o
que está subentendido nas finalidades educacionais proclamadas.
A pedagogia da prática social, ao contrário, precisa ser mais bem
compreendida, a começar pelo conceito de prática social, para que
não seja confundida com relações sociais ou interação social, como
em geral acontece no meio acadêmico. Refere-se a uma forma
histórica de organização, que os homens estabelecem entre si para a
produção de suas necessidades materiais, impregnada de pedagogia
informal e assistemática, porém inseparável do processo histórico
no qual os homens transformam a realidade circundante ao mesmo
tempo que se transformam. Assim como, na pedagogia escolar, a
escola ensina, na pedagogia da prática social, a vida ensina. Estas
duas pedagogias deveriam convergir para a mesma direção, de tal
modo que a pedagogia da prática social fundamentasse a pedagogia
escolar se a função da escola fosse instruir e não educar. Mas isso não
acontece, porque o fazer escolar se mantém distante dos processos
históricos reais e muito próximo da função moralizadora da escola.
Como defendia Compayré, porta-voz da recém-criada escola
pública, no século XIX: "[ . . ] a prática da virtude, o cumprimento
.

do dever sob todas as suas formas, eis a meta suprema da educação


humana. A instrução não vale a não ser que ela tenda e conduza a
fins morais"1. A pedagogia escolar rompia, assim, com a razão dos
iluministas, engendrada pela pedagogia da prática social e vedava
a transmissão da luz à escola aberta para todos.
Nesta perspectiva, o embate entre teóricos e práticos do ensino
não tem nem perdedores nem ganhadores, tanto um como outro
estão circunscritos aos limites da pedagogia escolar. Enquanto os
partidários do cotidiano negam a teoria, ou melhor, legitimam a
COMPAYRÉ, Gabriel. L 'education intellectuelle et mora/e. Paris: Librairie Classique
Paul Delaplane. 1 908. p. 227. (Manual premiado pela Academia Francesa, publicado
em 1908, 456p.).
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Prefác i o da segu n d a edição •

teoria do status quo, fazendo a prática pedagógica coincidir com a


prática social, os partidários do tró-ló-ló dispensam, simplesmente,
a prática social ou reduzem-na a simples relações sociais, de tal
modo que a teoria não passa de um sistema de idéias que chega a
ser "contextualizado'', mas não historicizado.
A verdadeira divisão entre teoria e prática se dá entre
a pedagogia escolar e a pedagogia da prática social, sendo a
pedagogia da prática social a grande ausente das preocupações
dos partidários dessa esfuziante polêmica. O distanciamento da
pedagogia escolar do mundo do trabalho, das relações de produção
da vida e de suas transformações ao longo da história, além de
não permitir ultrapassar a leitura abstrata das teorias e solucionar
a interminável disputa entre teóricos e práticos, separa as teorias
da prática social que as engendrou, estabelecendo a verdadeira
dicotomia entre teoria e prática. Isso quer dizer que o velho adágio
acadêmico de que as teorias não se realizam na prática tem um
fundo de verdade; contudo, qualquer tentativa de reparar isso,
substituindo uma teoria por outra, criando recursos para torná-las
operacionais, a exemplo da interdisciplinaridade, ou reduzindo a
prática social a uma "contextualização'', como geralmente se faz,
não resolve.
Em resumo, essa é a questão do livro, mas ele vai mais além.
A autora faz, também, o exercício metodológico de recolocar
a teoria de Vygotsky em seu devido tempo e lugar, devolvendo­
lhe, assim, a historicidade perdida. Essa tarefa não é fácil, ela
pressupõe o conhecimento da história como uma totalidade de
processos objetivos e a teoria de Vygotsky, no caso, como processo
reflexivo daquele processo objetivo agregado a um complicador,
que é a história russa na passagem de uma sociedade ainda feudal
para o socialismo, quer dizer, uma historiografia de natureza
político-ideológica sem precedente e mantida sob suspeita no seu
processo de vulgarização. Essa dificuldade, no entanto, não invalida
o resultado da proposta, visto que a verdadeira história da Rússia,
embora não deixe de ser importante, secunda a preocupação maior
da autora que é exercício do método de leitura da teoria, quando
ele (o método) é que está em discussão.
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• V Y G O T S K I

Nesta perspectiva, e ao contrário da leitura "contextualizada"


da teoria, o indivíduo e o contexto deixam de ser o foco principal
para dar lugar aos processos objetivos. Vygotsky, que é esse
indivíduo, não foi "contextualizado" nem biografado, como em
geral se faz, mas aparece mergulhado no processo revolucionário
russo, enfrentando contradições jamais vivenciadas antes e fazendo
história enquanto ela acontece com discernimento do caminho a
ser tomado. Suas premissas, definições e proposições, nascidas no
embate com as forças adversárias, estão impregnadas de desafios e
incertezas, mas também de coragem e determinação, encarnando
tanto o espírito de destruição do velho como o espírito de construção
do novo. Sua perseguição a um ideal de homem, que substituísse
o estado de degradação do homem existente naquela sociedade,
pulsa em cada frase e em cada conceito de sua teoria. Ou seja, na
experiência de Vygotsky, não há dicotomia entre teoria e prática,
uma vez que a pedagogia escolar converge para a pedagogia da
prática social.
A "limpeza" acadêmica, diferentemente, ao tirar-lhe a luta
revolucionária que visava destruir a velha sociedade e forjar a
nova, tira-lhe a alma, separando a teoria da prática social que a
engendrou e lhe deu vida. Com essa "limpeza", a teoria não passa
de um corpo sem vida, um conjunto de conceitos e proposições a
ser interpretado segundo o entendimento de cada um e aplicado
ao léu para beneficiar intencionalidades desconhecidas. Ou seja,
mantidas tais condições, todo encaminhamento pedagógico
para restabelecer a relação entre essas duas instâncias, superar a
dicotomia e amainar os ânimos entre teóricos e práticos do ensino
não apresenta resultados significativos.
Em síntese, o grande mérito do livro de Tuleski é colocar em
questão a leitura abstrata da teoria não só de Vygotski, mas de
qualquer teoria, e promover o debate acadêmico sobre as implicações
dessa leitura na qualidade dos cursos e, consequentemente, na
formação dos seus profissionais.
Na globalização, essa consciência não pode mais existir.
Dependente de relações muito mais amplas, cada homem, no
entanto, parece livre para decidir o que fazer, sem ninguém
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Pr efácio da s egunda edição •

depender dele e sem depender de ninguém. Nesta relação entre o


ser e o parecer, definem-se os limites da consciência e da verdade
do conhecimento. Sobre a verdade dessa consciência paira a
seguinte dúvida: é possível a consciência de uma vida globalizada
sem o conhecimento compatível sobre essa existência? Em outras
palavras: o que sabemos da nossa vida globalizada quando o
conhecimento dela é produzido por uma ciência especializada!?
quando cada ciência particular levanta uma muralha em torno de
seu objeto com metodologia própria para dissecá-lo em fragmentos
cada vez menores!?

Zélia Leonel

19 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
Introdução

O fenômeno da globalização, tal como vem se materializando,


parece dizer cada vez mais aos homens quanto eles se distanciaram
dos seus antepassados, da vida em pequenas comunidades e da
consciência do que lhes era exigido pelas relações de dependência
existentes anteriormente. Estas relações de dependência entre os
homens e a consciência produzida a partir dessas relações eram o
que, de fato, garantia a existência e sobrevivência no interior das
pequenas comunidades.
Na globalização, essa consciência não pode mais existir.
Dependente de relações muito mais amplas, cada homem, no
entanto, parece livre para decidir o que fazer, sem ninguém
depender dele e sem depender de ninguém. Nesta relação entre o
ser e o parecer, definem-se os limites da consciência e da verdade
do conhecimento. Sobre a verdade dessa consciência paira a
seguinte dúvida: é possível a consciência de uma vida globalizada
sem o conhecimento compatível sobre essa existência? Em outras
palavras: o que sabemos da nossa vida globalizada quando o
conhecimento dela é produzido por uma ciência especializada!?
quando cada ciência particular levanta uma muralha em torno de
seu objeto com metodologia própria para dissecá-lo em fragmentos
cada vez menores!?
• V Y G O T S K I

A globalização da vida estimula essa reflexão; mas, como


enfrentar essa questão se toda essa forma de conhecer e de
consciência só deve desaparecer com o desaparecimento dessa
forma de existência? Essa condição pode desestimular a ação, mas
não impede a reflexão. Apenas o movimento dialético que se dá
no limite entre crítica teóríca e prática revolucionária poderia dar
conta de tal contradição.
Imagine-se que uma comunidade de homens, apartada de
um conjunto maior, optasse por se organizar de uma forma tal
que os homens fossem e parecessem dependentes uns dos outros
e de modo que a consciência coincidisse com o conhecimento e o
conhecimento com a vida tal como é. Esses homens provavelmente
teriam que enfrentar uma dura batalha para deixarem de ser o que
são e os de fora teriam sérias dificuldades para entender suas lutas
e conhecer seu processo de transformação tanto objetiva quanto
subjetivamente. Imagine-se, agora, que o povo russo seja essa
comunidade; o socialismo, o projeto de sociedade a ser construído
por eles; Lev Semionovich Vygotski ( 1 896- 1 9 3 4) a expressão
da luta dos homens para deixarem de ser o que são; sua Teoria
Histórico-Cultural, o resultado desses embates e os estudiosos
atuais, seus intérpretes do lado de fora.
A problemática, assim enunciada, propicia a formulação da
questão que motivou este estudo sobre a Teoria Histórico-Cultural,
tal como aparece na versão resumida de seus intérpretes e tendo em
vista sua ampla divulgação no campo educacional, notadamente
entre psicólogos e pedagogos, em âmbito nacional e internacional.
O simples fato de essa teoria ter sido produzida na Rússia pós­
revolucionária, mantida isolada do mundo ocidental sob o manto
ideológico de décadas de guerra fria, é suficiente para traduzir o
imenso desafio de seus intérpretes e dos críticos desses intérpretes
ao empreenderem essa tarefa. Basta considerar que a Rússia foi,
e continua sendo ainda, uma sociedade cercada de mistérios para
se ter consciência da margem de interpretações deixada para
comentários fantasiosos ou equívocos teóricos, que vão desde a
simples rejeição ideológica até a aceitação incondicional de tudo
o que é originário dela. Este trabalho procura manter distância
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I ntrodução •

desses extremos, ainda que não possa oferecer garantias de sua


plena isenção.
Partindo do pressuposto de que é no campo próprio da batalha
humana que as idéias, os conceitos ou as teorias encontram seu
pleno significado histórico, e que o campo concreto da batalha,
em que se transformou a sociedade russa pós-revolucionária para
tornar-se diferente do que era, está vivo nas linhas e entrelinhas
das idéias, dos conceitos, enfim, da teoria de Vygotski, a hipótese
deste trabalho é que a teoria transladada para um outro campo,
sem considerar o campo que a fez germinar, sofre um processo de
assepsia neutralizadora que autoriza sua vulgarização sem ameaça
ou suspeita. Em face disso pergunta-se: o que de fato fez com que
a teoria revolucionária de Vygotski fizesse tantos adeptos, fosse
tão vulgarizada entre psicólogos e pedagogos e tão divulgada sem
contestação? Que significado tinha para a sociedade russa e que
significado tem para a sociedade contemporânea? Essas e outras
questões derivadas delas nortearam os estudos realizados sobre o
tema da pesquisa que, por sua vez, resultaram neste trabalho.
Antes, porém, de encaminhar sua leitura, algumas
considerações preliminares são indispensáveis. Em primeiro
lugar, é preciso esclarecer que a crítica acima anunciada, sobre
a transplantação da teoria de Vygotski para esta realidade, não
fortalece a tese, muito presente na historiografia da educação
brasileira, de que os descaminhos do sistema educacional, na
sua trajetória histórica, muito devem à importação de modelos
originários dos países desenvolvidos. Esta tese pressupõe a
existência da singularidade do Brasil perante os demais países e
a singularidade da atividade educacional no conjunto da prática
social, rejeitando tudo o que é estrangeiro ou estranho; entretanto,
ela não resiste à prova quando submetida à luz da história.
Assim como não existe uma história da educação brasileira
separada das lutas travadas pelos homens da sociedade
brasileira, esta também não existe separada do processo de
gênese do capitalismo, forjado pelo comércio mundial e de
seu desenvolvimento sintonizado na globalização. Destarte, a
globalização, de que tanto se fala hoje, não deixa de ser um fenômeno
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• V Y G O T S K I

intrínseco ao processo histórico das sociedades capitalistas,


determinado pelas relações de troca. Essas trocas incluem tanto
os bens materiais como os espirituais. Se a importação do modelo,
nesse caso, é considerada estranha à realidade brasileira, embora
construída da mesma trama, o que dizer da importação de um
modelo originário de uma realidade que se pretende inteiramente
diferente desta, como é o caso da teoria de Vygotski?
Em segundo lugar, é importante destacar as semelhanças
existentes nas publicações nacionais e internacionais da década de
1 990, com relação às interpretações da teoria de Vygotski, tendo­
se em vista uma dada "seleção" de textos e idéias vygotskianas,
consideradas mais relevantes para a atualidade. Essas interpretações,
de modo geral, estão apoiadas na tradução norte-americana de
duas obras de Vygotski: Pensamento e Linguagem e Formação Social
da Mente. Além disso, os tradutores advertem, na introdução e
prefácio, respectivamente, sobre a retirada de trechos repetitivos
e de discussões polêmicas dos textos originais, bem como sobre a
recorrência a outros teóricos para facilitar o acesso, do leitor, ao
pensamento de Vygotski. Observa-se ainda a supressão de trechos
que sinalizam os vínculos de Vygotski com o marxismo e com a
construção do comunismo.
Notadamente, essa "seleção" de textos do conjunto da obra,
seguida da ação de "limpeza", tem conduzido a uma simplificação
e excessiva abstração das idéias do autor, tornando seus conceitos
extremamente obscuros e gerando a necessidade de buscar o auxílio
de outros teóricos, como Piaget, Bakhtin, Benjamin, Wallon, entre
outros, para dar-lhes significado.
Em conseqüência disso, observa-se, na maioria das publicações
consultadas da década de 1990, a pouca atenção dada à época em
que viveu o autor; ao processo de luta pela transformação no qual
estava envolvido e que lhe sugeriu teorizar sobre a historicidade da
consciência humana. Encontram-se algumas referências à União
Soviética daquele período embutidas em estudos biográficos,
realizados de modo sucinto e com ênfase nas idéias predominantes
na sociedade da época, que poderiam ter influenciado na sua
concepção. Pouco ou quase nada é abordado sobre as necessidades
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 24
Introdução •

concretas da revolução material, que conduziram a sociedade


soviética a uma revolução também na ciência, na cultura e,
sobretudo, na concepção da psicologia humana.
O quadro apontado acima, no entanto, a partir de 2000,
começa a apresentar mudanças que, embora não possam ser
ainda consideradas como significativas em termos quantitativos,
são relevantes qualitativamente, quando entendidas como um
movimento de superação das apropriações "simplificadas" da
teoria de Vygotski. Pode-se citar neste bojo a nova tradução da
obra Pensamento e Linguagem de Vygotski, diretamente do original
russo, com o título A construção do Pensamento e da Linguagem, em
2000, que possibilitou o acesso na íntegra das idéias do autor, sem
a "limpeza" ou "seleção" realizada a partir das traduções norte­
amencanas.
Com base neste exposto, ainda consideram-se como de
fundamental importância estudos mais extensos do pensamento
de Vygotski, no sentido de se encontrar na totalidade de sua obra
o significado histórico de seus conceitos, com base na premissa
de que é na difícil luta pela transformação das relações sociais de
produção que suas idéias, conceitos, aforismos, repetições e citações
ganham vida. Caso contrário, as repetições não passarão de trechos
cansativos e entediantes ao leitor.
Como a teoria vygotskiana, um dos referenciais teóricos da
Secretaria de Educação do Estado do Paraná e do Ministério da
Educação, tem encontrado entre os educadores amplo espaço de
divulgação e aceitação, tornando-se um dos principais aportes
teóricos para a educação atual, observa-se, com grande preocupação,
a divulgação de interpretações desta teoria com base em duas
obras do· autor, as quais, como as já citadas, apresentam objeções
quanto à fidelidade ao texto original. Uma das preocupações deste
trabalho diz respeito à seguinte questão: o que de fato tem sido
compreendido da teoria de Vygotski para estar tão em evidência
na atualidade? Será que uma teoria, com base marxista e de
cunho revolucionário, teria uma aceitação tão ampla, a ponto de
institucionalizar-se nos currículos, se houvesse uma compreensão
profunda do sentido histórico de seus conceitos?
25 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Na realização deste estudo foi utilizada, praticamente, a


totalidade dos escritos de Vygotski ( 1989; 1 99 1 ; 1 99 3 ; 1 996) em
sua tradução espanhola, considerada publicamente como aquela
que se manteve mais fiel ao original russo. Observa-se, no entanto,
que se, por um lado, as dificuldades de acesso às traduções mais
completas podem ter justificado a simplificação dos estudos, onde
aspectos importantes da teoria são desconsiderados, por outro,
as "facilidades" de acesso à tradução simplificada de dois de seus
escritos talvez expliquem o amplo espaço conquistado por esta
teoria no mundo ocidental. A partir de 2000 se tornou possível
encontrar traduções que primam pelo respeito às idéias originais
de Vygotski, mas mudanças em relação a como os intérpretes se
apropriam da teoria ainda precisam avançar significativamente
no sentido de considerar suas bases marxistas, superando visões
fragmentadas e superficiais.
O capítulo 1 procurará dialogar com os intérpretes de
Vygotski a partir da década de 1 990 até 2008, mostrando pontos
comuns nos estudos desta teoria, tanto no que diz respeito às
interpretações realizadas como em relação aos desdobramentos
práticos, explorando os fatores que têm conduzido à sua crescente
abstração e simplificação na atualidade. Neste, serão destacadas
também as mudanças que se descortinam a partir de 2000, com a
facilidade de acesso à traduções mais fiéis das obras de Vygotski.
] á os capítulos 2 e 3 , de modo geral, apontarão a possibilidade
de um novo diálogo com Vygotski, procurando trazer a
historicidade de suas idéias e concepções, ao evidenciar em sua
teoria as turbulências da sociedade soviética. No diálogo de
Vygotski com seus interlocutores, as questões sobre as quais ele
se debruçou serão tratadas como intrinsecamente ligadas às lutas
pela transformação da sociedade. Dessa perspectiva, suas repetições
passam a ganhar sentido por mostrarem um posicionamento, uma
luta que sai do mundo das idéias e passa a ter significação na vida
real, nas necessidades do povo soviético. Em específico, o capítulo 2
discutirá as bases da psicologia comunista, proposta por Vigotsky,
a partir das condições sociopolítico-econômicas da Rússia, no
período que antecede e sucede a Revolução; e o capítulo 3 discutirá
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 26
Introdução •

a formação da consc1encia, partindo do desenvolvimento das


funções psicológicas superiores e suas relações com a necessidade
de implementação do projeto coletivo comunista.
Finalmente, espera-se com este estudo abrir a discussão, de
modo geral, sobre as teorias psicológicas aplicadas à educação e
particularmente à teoria de Vygotski, como parte do exercício
de reflexão para compreender o homem e suas produções como
historicamente determinados.

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1 Asinterpretações
ocidentais da obra
de Vygotski

Neste capítulo serão apresentadas considerações pautadas nas


leituras e interpretações, que vêm sendo realizadas na atualidade,
sobre a teoria de Lev Semyonovich Vygotski ( 1 896- 1934), colocando
assim o leitor em contato com as convergências e divergências entre
os intérpretes e destacando algumas questões da época atual a que
os autores dessas interpretações buscam responder com a teoria
vygotskiana. Vale destacar que a discussão será realizada por meio
de um "recorte'', enfocando a década de 1990 e comparando-a a
primeira década do século XXI (2000-2008).
É importante registrar que optou-se por esta forma de
representação do sobrenome do autor por ser a utilizada na
tradução espanhola das Obras Escolhidas, mas pode ser encontrado
seu sobrenome grafado como Vigotski, Vygotsky, Vigotsky, entre
outras variações. No entanto, foi mantida a grafia utilizada pelo
autor citado da respectiva tradução.
Admite-se, aqui, que Vygotski não elaborou sozinho a
Teoria Histórico-Cultural. Estiveram, também, presentes Alexis
Leontiev e Alexander Romanovich Luria; no entanto, optou-se por
centralizar este trabalho nos escritos de Vygotski por serem estes
mais divulgados, lidos e pesquisados pelos educadores brasileiros.
• V Y G O T S K I

Esse diálogo entre intérpretes de Vygotski tem por objetivo


agregar esforços na difícil tarefa de compreender a Teoria Histórico­
Cultural como uma teoria produzida em circunstâncias históricas
inéditas, contribuindo para o debate atual.
Constatou-se, preliminarmente, com base na revisão da
literatura estudada até a década de 1 990, existirem, entre os
autores dessa literatura mais similaridades do que diferenças entre
as interpretações sobre o pensamento de Vygotski.
Essa similaridade começa pelas fontes de pesquisa comuns a
este período, ou seja, a grande maioria dos estudos publicados sobre
a teoria de Vygotski tem por base duas de suas obras: Pensamento
e linguagem e A formação social da mente, sendo ambas de tradução
norte-americana. Além disso, não são traduções literais do original
em russo, mas sim um "resumo" de suas idéias principais ou uma
"coletânea" organizada por tradutores e editores. No prefácio de
Pensamento e Linguagem os próprios tradutores advertem que "uma
tradução literal não faria justiça ao pensamento de Vygotsky" .
Assim, chegaram ao consenso de que a repetição excessiva de
"certas discussões polêmicas" teria pouco interesse para o leitor
contemporâneo e "deveriam ser eliminadas, em favor de uma
exposição mais clara" (VYGOTSKY, 1989, p. xiii). Explicam,
ainda, que a simplificação teve o objetivo de tornar mais claro o
estilo de Vygotski e que, embora a tradução compacta possa ser
encarada como uma versão simplificada do original, no entender
dos tradutores, a condensação aumentou a clareza e legibilidade
do texto.
Contrariando essa perspectiva, as repeuçoes podem
estar sinalizando informações valiosas a respeito das questões
fundamentais do pensamento do autor e, principalmente, das
questões enfrentadas pela sociedade da época e que lhes dão
significado. As repetições não podem ser consideradas como
mero lapso de memória ou digressões, mas como ênfase em uma
determinada idéia que precisava afirmar-se, como parte de uma
luta que se descolava da realidade objetiva e invadia o mundo
das idéias, consideradas do ponto de vista da arte, da literatura
e da ciência. Desse ponto de vista, suprimir as repetições em
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 30
l - As interpreta ções ocidenta is da o bra de V ygotski •

nome da "clareza" significa retirar a historicidade de suas idéias,


as transformações sociais implícitas na obra e, acima de tudo,
tornar equivalentes todos os conceitos expostos na teoria. Aliás,
reduzir a menos da metade a obra original do autor traz mais
dificuldades para o entendimento de suas idéias do que "clareza" .
Podemos citar como exemplo a tradução espanhola de Pensamento
e linguagem, contida no volume II das Obras escolhidas, que possui
mais que o dobro, aproximadamente 60% de páginas a mais do
que as traduções inglesa e americana.
No entanto, aqui é importante um adendo, a título de
esclarecimento ao leitor, observando que após as críticas realizadas
e amplamente divulgadas por Duarte (2000) e, depois, por Tuleski
(2002) em relação às traduções das obras de Vygotski, tem-se em
200 1 a publicação da obra Pensamento e Linguagem diretamente do
original russo, sob o título A construção do Pensamento e da Linguagem.
A primeira publicação desta obra, feita a partir das traduções
norte-americanas em final da década de 1980 possuía um total
de 1 3 5 páginas, enquanto que a última, realizada diretamente
dos originais em russo possui 496 páginas, sendo que ambas
possuem a mesma estrutura e quantidade de capítulos. Este fato
é importante para que seja possível observar pequenas mudanças,
porém significativas nas tendências interpretativas, nos últimos
anos.
No livro A formação social da mente de final da década de
1980, também foi encontrada a mesma situação em relação à
fidelidade da tradução. No Prefácio, os organizadores explicam
como a fizeram, reunindo diversos textos do autor e acrescentando
materiais provindos de fontes adicionais, com o objetivo de tornar
mais claro o significado do texto:

O trabalho de reunir obras originalmente separadas foi


feito com bastante liberdade. O leitor não deve esperar
encontrar uma tradução literal de Vygotsky, mas, sim,
uma tradução editada da qual omitimos as matérias
aparentemente redundantes e à qual acrescentamos
materiais que nos pareceram importantes no sentido
de tornar mais claras as idéias de Vygotsky. Como
31 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

outros editores já notaram, o estilo de Vygotsky é


extremamente difícil. ( ...} Temos, ainda, perfeita nofão
de que ao mexer nos originais poderíamos estar distorcendo
a história; entretanto, acreditamos também que,
deixando claro nosso procedimenro e atendo-nos
o máximo possível aos princípios e conteúdos dos
trabalhos, não distorcemos os conceitos originalmente
expressos por Vygotsky (VYGOTSKY, 1989, p. x,
grifo nosso).

A preocupação em não "distorcer a história" é relegada em


nome da "clareza" dos conceitos, principalmente quando se leva em
consideração a importância que o próprio Vygotski deu, em seus
trabalhos, ao significado das palavras em relação ao seu contexto.
Para ele, as palavras são construções históricas, seu significado não
é abstrato e eterno, mas varia conforme variam as relações entre os
homens. Os conceitos científicos devem ser entendidos no conjunto
das obras do referido autor e em relação ao momento histórico
vivido por ele, condições postas por Vygotski e que parecem estar
sendo ignoradas pela contemporaneidade, já a partir da tradução
de suas obras.
Concorda-se com Duarte ( 1 996) quanto à situação
problemática existente em relação à recepção que o pensamento de
Vygotski teve entre os educadores, pois este tornou-se famoso sem
ter sido lido e conhecido de fato. Proliferaram publicações sobre
sua Teoria na década de 1 990, tendo como base essas traduções
norte-americanas, o que reduziu consideravelmente o campo de
estudos pelas dimensões da obra completa de Vygotski.
Seve (apud DUARTE, 1 996) afirma que os cortes realizados
atingiram principalmente as reflexões marxistas de Vygotski, como
se elas tivessem importância secundária para a compreensão de seus
conceitos. Em conseqüência disso, as traduções se apresentaram
"assépticas'', "limpas" do que pareceu ser considerada a "ideologia
comunista" . Esta "limpeza", realizada pelos tradutores em relação
às reflexões marxistas, deu margem à polêmica existente de ser
Vygotski marxista ou não. Foi disseminada a idéia equivocada,
implícita, por exemplo, no livro de Valsiner e Van Der Veer ( 1996),
de que existia uma imposição ideológica desde a revolução, que
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 32
l - As interpretações ocidentais da o bra de V ygotski •

obrigava os cientistas a adotarem o materialismo dialético em


todos os seus trabalhos, acabando por reforçar ainda mais esta
polêmica traduzida na questão: era Vygotski realmente marxista
ou adotou o marxismo por imposição ideológica?
Segundo Bernstein, a ironia desta situação acabou gerando
grandes controvérsias na década de 1990:

O debate quanto à forma de filosofia política que estaria


por trás da obra de Vygotsky, especialmente no que
se refere à determinação do pensamento individual, é,
algumas vezes, cáustico. Existem aqueles que, como
Yaroshevsky ( 1989), desejam exumar o corpo da obra
precoce de Vygotsky para construir uma moderna
psicologia marxista, e aqueles que, como Kozulin
.
(1990), desejam purgar a identidade de Vygotsky de
toda influência marxista (DANIELS , 1994, p. 24).

Na verdade, essa controvérsia se enfraquece na medida em que


uma leitura mais abrangente e aprofundada das obras de Vygotski
se enraizar nas grandes questões que a sociedade russa, e depois a
União Soviética (em 1 922, a Rússia transformou-se em União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas/URSS), tinha que resolver.
É interessante apontar que autores como Elhammoumi
(200 1), expoem que os psicólogos sul-americanos, ao trabalhar
com os aportes teóricos de Vigotski e seus continuadores, têm
conservado os princípios marxistas desta escola soviética, de
maneira distinta dos vygotskianos europeus e norteamericanos.
No entanto, embora seja possível observar um aumento desta
tendência nos últimos anos, notadamente no Brasil, não pode ainda
ser considerada predominante, o que sera demonstrado ao longo
desse capítulo. Duarte (2000a), por exemplo, analisou inúmeras
distorções realizadas por intérpretes brasileiros de Vygotski, que
simplificam seus conceitos e associam sua Teoria aos paradigmas
pós-modernos e neoliberais.
Como a interpretação parte do texto para retornar a ele, isto é,
explicá-lo, se tal retorno não se realiza, de acordo com Kosik (2002,
p. 1 5 7) ocorre um equívoco, uma vez que não se chega ao seu
33 • S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

significado. Além disso, cada época, cada geração, vai acentuando,


no texto ou na obra, alguns aspectos, dando mais significado
a uns do que a outros e descobrindo, inclusive, significados
completamente diferentes. Exclui-se, assim, a possibilidade de
interpretação autêntica do texto, tornando-a um intrincado jogo
de múltiplas interpretações subjetivas.
Mas, quando se parte da possibilidade de uma autêntica
compreensão do texto e, ao mesmo tempo, concebe-se toda
interpretação como forma histórica da sua existência, a crítica
às interpretações precedentes torna-se indispensável à própria
interpretação. As interpretações parciais ou unilaterais se revelam
ora como fragmentação do tempo ou da história da obra ou texto,
como formas históricas da sua existência, das quais o texto é sempre
distinto e independente, ora, ao contrário, como manifestações de
determinadas concepções (filosóficas, científicas, etc.) que norteiam
a interpretação.

Toda interpretação já é sempre uma avaliação do texto,


seja inconsciente e portanto infundada, seja consciente
e findada: a omissão (que varia historicamente) de
determinadas partes ou frases do texto como pouco
importantes ou pouco significativas, ou até mesmo
a incompreensão de algumas passagens (em relação
à época, a cultura, à atmosfera cultural) e, portanto,
a sua "neutralização" já constituem implicitamente
uma avaliação, por distinguirem no texto o que é
significativo e o que é menos significativo, o que é
atual e o que é ultrapassado, o que é importante e o
que é secundário (KOSIK, 2002, p. 1 59).

Kosik (2002) considera autêntica uma interpretação quando,


no próprio princípio de sua explicação, a especificidade do texto
entra como um elemento constitutivo que é explicitado por toda a
exposição posterior. Seguindo esta linha, ele aponta que é possível
distinguir, substancialmente, entre uma exposição justificada do
texto e uma alteração ou modificação do mesmo, considerando
quatro pontos fundamentais:
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 34
- As interpreta ções ocidentais da o bra de V ygotski •

1 . que não deixe no texto pontos obscuros, não


explicados ou "casuais";
2. que explique o texto nas suas partes e no seu
conjunto, isto é, tanto os trechos isolados quanto a
estrurura da obra;
3. que seja íntegra, não apresente contradições internas,
falta de lógica, ou inconseqüências;
4. que conserve e capte a especificidade do texto, e
que desta especificidade faça o elemento constitutivo
da construção e compreensão do texto (KOSIK, 2002,
p. 1 58).

Com base no conceito de Kosik (2002) de "distorções", exposto


acima, procurar-se-á sistematizar alguns padrões observados em
âmbito nacional e internacional, em relação às apropriações dos
estudos de Vygotski.
As críticas e retaliações sofridas por Vygotski na década de
30, época em que se instala o dirigismo ideológico na U.R.S.S. ,
que culminaram com a proibição de suas obras, a partir de 1 936,
pelo governo de Stálin, ajudam a entender sua defesa por uma
"verdadeira" psicologia marxista, em oposição àquela que vinha se
evidenciando. Nesse sentido diz Riviere ( 198 5 , p. 67):

Naquela situação de dirigismo, Vygotski não era


um homem cômodo. Era um marxisra convencido e
profundo, mas esse podia ser, de certo ponto de vista,
um de seus aspectos mais "perigosos". A recusa sempre
do "método das citações", com o qual muitos psicólogos
soviéticos começavam justificando sua ortodoxia:
depois de duas ou três citações de Marx, Engels,
Lênin ou Stálin, passavam a desenvolver seu tema,
que geralmente não tinha nada a ver com as próprias
citações. Na realidade, essa era uma manifestação
da incipiente tendência a converter a ciência em
escolástica, o pensamento vivo em expressão temerosa
e submetida, a dialética em estrutura petrificada. Em
seus últimos anos (especialmente os dois anteriores a
sua morte), a situação de Vygotski - e também a de
outros psicólogos dialéticos - era delicada. Morreu
antes de ver o avanço incontestável dos novos poderes
e também a destruição de muitas de suas ilusões:

35 a S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

mas pôde ver, ao final de sua curta vida, como se


anunciavam tempos difíceis para a psicologia.

Segundo Davydov e Zinchenko ( 1994), a visão de mundo


de Vygotski desenvolveu-se nos anos da revolução e refletiu as
mais avançadas e fundamentais influências sócio-ideológicas
relacionadas à compreensão das forças essenciais do homem, das
leis de seu desenvolvimento histórico e de sua formação plena,
nas condições da nova sociedade socialista, pensamento que se
manifestou plenamente na filosofia materialista dialética que
conhecia a fundo e na qual baseou toda a sua teoria:

Entretanto, para Vygocsky, a filosofia marxista não


era um dogma ou uma teoria em que poderiam ser
encontradas as respostas para todas as questões
específicas da psicologia. Essas respostas só podem
ser obtidas com base no estudo psicológico cuidadoso
e científico da atividade e da consciência humanas.
Tendo um conhecimento profundo do marxismo,
um psicólogo pode aprender um método geral de
investigação científica, também baseado em muitos
anos de trabalho científico experimental em psicologia
(DANIELS, 1994, p. 57).

O desejo de Vygotski, como se verá no prox1mo capítulo,


era abordar o estudo da mente utilizando-se do método de Marx,
opondo-se frontalmente à utilização de citações e junções ecléticas
entre os clássicos marxistas e as teorias psicológicas ocidentais,
como tentativa de construção de uma psicologia marxista.
É interessante contrapor aqui o fato de que com a Teoria
vygotskiana a contemporaneidade vem fazendo exatamente aquilo
que ele (Vygotski) se opunha que se fizesse com os estudos de Marx.
Duarte (2000a, p. 161) aponta, por exemplo, "três procedimentos
de diluição, secundarização ou naturalização do caráter marxista
da teoria de Vigotski, presentes na bibliografia contemporânea
sobre o pensamento desse autor" : o primeiro, diz respeito às
"tentativas de afastar a teoria de Vigotski da teoria de Leontiev"
(p. 161); o segundo opera "a substituição do que escreveu Vigotski
pelo que escreveram seus intérpretes e as traduções resumidas/
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 36
1 - As interpreta ções ocidentais da obra de V ygotski •

censuradas de textos vigotskianos" (p. 166), e; o terceiro, destaca


"o ecletismo nas interpretações pós-modernas e neoliberais da
teoria vigotskiana" (p. 1 7 3). Para este autor, tais procedimentos
servem para incorporar a teoria vygotskiana às "pedagogias do
aprender a aprender" .
Bakhurst (2002, p. 230) reafirma tal ponto de vista quando
defende que ao estudar autores soviéticos como Vygotski, "não há
como fugir do contexto político em que foram produzidos" , já que

Ele determina a agenda bem como o modo de expressão


da contribuição desses pensadores. Especialmente
importante é o fato de que as circunstâncias sociais
e políticas determinaram grandemente como este
trabalho soviético foi relembrado, comemorado e (em
alguns casos) esquecido pelas gerações subseqüentes.
O modo como é lido hoje é o resultado de um longo
e às vezes misterioso processo de recordação coletiva
(BAKHURST, 2002, p. 230).

Bakhurst (2002) entende ainda que, ao se compreender


Vygotski como um pensador compromissado explicitamente
em fundar uma psicologia marxista no ambiente intelectual e
revolucionário da União Soviética de 1 920, abordando questões
com conseqüências imediatas para os compromissos políticos,
educacionais, clínicos e acadêmicos daquela sociedade em
transformação e, justamente por isso, ter sofrido retaliações
com a ascensão do stalinismo, este fato "deixa claro que a trilha
que leva da contribuição de Vygotsky às nossas formas atuais
de representá-la é uma trilha extremamente tortuosa" (p. 23 1).
Isto torna significativo o fato do contexto político de sua obra
ser desconsiderado pelos estudiosos atuais preocupados em
recuperar sua contribuição, sendo que "a memória da tradição
desses pensadores sofre amnésia acerca de sua própria história"
(BAKHURST, 2002, p. 232).
Elhammoumi (200 1) também aponta ser impossível a
compreensão dos postulados da escola de Vygotski sem a referência
ao marxismo, uma vez que os pontos cruciais desta psicologia se
baseiam nos princípios do materialismo histórico e dialético. As
37 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

versões sobre a teoria de Vygotski, nos Estados Unidos e Europa


Ocidental, para ele, contudo, constituem-se mais numa tentativa
de homogeneização dos indivíduos por intermédio de testes
e estatísticas, ao desconsiderarem que "a consciência humana
está imersa nas relações sociais de produção e está organizada
socialmente pela atividade prática" (ELHAMMOUMI, 2001, p.
5 8). Quando se retira o marxismo da escola de Vygotski, esquece­
se do seu materialismo, que postula ser "a estrutura e a prática dos
trabalhos organizados socialmente que vão prover o contexto para
poder compreender como o ser humano percebe, pensa e atua"
(ELHAMMOUMI, 2001, p. 60).
Do exposto, para os autores soviéticos Vygotski, Luria e
Leontiev, "as relações sociais de produção não são simplesmente
uma variável a ser considerada", mas constituem "a unidade de
análise apropriada para a psicologia" (ELHAMMOUMI, 2001, p.
61) e, neste sentido, o conceito de alienação resulta essencialmente
importante para a compreensão da consciência humana em uma
determinada sociedade.
Embora pareça haver uma mudança na abordagem dos
intérpretes de Vygotski nos últimos anos, considerando a base
marxista de seus conceitos como os autores destacados acima, esta
ainda não é predominante. O estudo de Vygotski hoje, portanto,
parece ainda ter que enfrentar dois problemas em um primeiro
plano: romper com a censura burguesa, referente à sua formação
marxista e a seu compromisso com a sociedade comunista, e
romper com a censura comunista de suas próprias obras, operada
a partir da década de 3 0 pelo stalinismo.
O primeiro problema pode ser resolvido com a utilização das
traduções espanholas inclusas nas Obras escolhidas e as traduções em
língua portuguesa, mais recentes, realizadas a partir dos originais
em russo, enquanto o segundo só seria resolvido tendo-se acesso
aos manuscritos do autor, muitos deles desaparecidos ou alterados
durante o governo de Stálin. Mas, como observa Ratner, o critério
de verdade de suas idéias se define na prática social, onde os homens
se enfrentavam para desenhar os destinos da sociedade russa:
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 38
- As interp reta ções ocidentais da o bra de V y g otski •

O próprio Vygocsky escava preocupado com as


influências societárias sobre a psicologia. Ele criticava
a estratificação em classes na sociedade soviética por
ter efeitos deletérios sobre a motivação, a cognição e
a educação dos jovens de classe inferior. Condenava,
também, a liderança autoritária no local de trabalho
por frustrar o incentivo e a criatividade dos operários.
Essas preocupações sociais renderam-lhe a inimizade
dos burocratas governantes e resulcaram na proibição
de sua obra. Até mesmo a recente edição de suas
Collected Works omitiu seus trabalhos referentes a
questões sociais, políticas e educacionais relacionadas
com a psicologia. As Collected Works reproduzem
principalmente as obras teóricas de Vygocsky sobre
temas sócio-psicológicos gerais, e essa parcialidade
fortalece o equívoco de se considerar que ele
não tinha interesse pelas influências societárias
mais amplas sobre a psicologia (RATNER, 1995,
p. 46-147).

O período imediatamente posterior à Revolução Russa ( 1 9 1 7-


1 929) significou, fundamentalmente, a abertura de um debate
amplo e rico nas diversas ciências, inclusive na psicologia, enquanto
o período posterior a 1 929 supôs uma acentuação e endurecimento
dos debates, mas também o começo do submetimento das forças
intelectuais aos interesses do poder político e os primeiros sintomas
de um dirigismo na ciência, que, segundo Riviere, terminou por
cercear diversas possibilidades geradas pela própria Revolução:

O começo dos anos trincas significou, do ponto de


vista sociopolítico, uma mudança decisiva na história
soviética. Os enfrentamentos anteriores entre o aparato
scalinisca e os grupos de oposição a ele, canto pela direita
como pela esquerda, tornaram-se de forma conclusiva
a favor de Scálin. [. . .] A oposição trotskista havia
sido vencida, e o próprio Trotsky, expulso da União
Soviética. A facção de Bukharin na ala direita havia
perdido sua influência. As propostas políticas para o
"socialismo em um só país", de Scálin, supunham uma
force mudança de direção (que implicava "inovações"
ideológicas substanciais) no sentido geral da política
soviética e deviam ser assumidas pelos grupos sociais
39 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

e intelectuais. Tudo implicava na coletivização dos


sistemas de produção, distribuição e intercâmbio, e
também (e isso é muito significativo para entender
algumas das críticas a Vygotski) na extensão de uma
ideologia nacionalista e com claros componentes de
xenofobia e suspeita em relação às influências externas,
inclusive às intelectuais (RIVI ERE, 1985, p. 69).

Neste contexto é possível compreender a crítica de Vygotski


às utilizações de citações de Marx, Engels, Lênin, pontuando que
uma psicologia verdadeiramente marxista não se faz como uma
"colcha de retalhos" de citações dos clássicos, mas através da
adoção do método utilizado por Marx para a análise da sociedade
capitalista. A ênfase metodológica está presente em todos os seus
escritos, como uma recusa implícita ao ecletismo burguês e ao
dogmatismo stalinista:

Muitas das facetas daquela sociedade podem explicar­


se pelo terrível esforço encaminhado para industrializar
o campo, coletivizar a produção e tentar manter,
do ponto de vista econômico, a difícil situação da
União Soviética pós-revolucionária. [ ..} A direção
.

sociopolítica da União Soviética, nos tempos do


primeiro plano qüinqüenal, exigia (na visão do aparato
ideológico e administrativo) a entrega e o sacrifício
de extensos setores sociais, entre os quais estariam
os próprios intelectuais, obrigados a submeter-se
à demanda de clareza e de unidade ideológica e
levados, mais ou menos diretamente, à necessidade
de desconfiar de influências intelectuais externas e
a acomodar suas idéias a um projeto social comum
estabelecido sobre a base da interpretação do marxismo
pelo aparato stalinista. Tudo isso foi um processo lento
e que manifestou suas facetas mais negativas (para a
liberdade intelectual) depois da morte de Vygotski
em 1936. Mas nos anos 32,3 3,34 já começavam a ser
freqüentes as "críticas" e "autocríticas", e as acusações
baseadas mais em uma simplificação escolástica do
marxismo e menos em concepções dialéticas profundas
(RIEVIERE, 1985, p. 70).
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 40
l - As interpreta ções ocidentais da o bra de V ygotski •

Seu posicionamento rendeu-lhe retaliações e a condenação de


suas obras na URSS, que somente na década de 5 0 voltaram a
ser publicadas em seu país. Nesta retomada, no entanto, como
afirmou Ramer, também foi realizada uma seleção de seus textos
que teriam interesse maior para o período de "abertura" da União
Soviética, excluindo-se grande parte dos trabalhos de Vygotski,
onde o mesmo tecia críticas à forma de organização que a sociedade
soviética foi assumindo após a morte de Lênin.
Existe, portanto, uma "leitura" específica feita na atualidade
sobre a teoria vygotskiana, priorizando alguns aspectos em
detrimento de outros, ignorando os aspectos que o autor
intencionalmente tentou evidenciar ou reiterar em seus textos.
Esta desconsideração do autor, como alguém historicamente
datado e, portanto, comprometido com os acontecimentos de sua
época, tem dado margem a inúmeras "interpretações" abstratas de
seus conceitos e pressupostos teóricos na atualidade.
No bojo dessa "leitura" da obra de Vygotski é possível
encontrar expressões um tanto estranhas entre os intérpretes como
a de " nosso Vygotsky" , utilizadas por Newman & Holzman (2002).
Eles dizem:

[ . . ) nosso J.j!gotsky é francamente americano, embora


.

distintamente internacionalista (é um marxista),


revolucionário, ativista, evolutivista, clínico e filosófico.
Ao dizer isso, não queremos ser sectários nem
chauvinistas, apenas mostrar que nosso J.Ygotsky broca
daquilo que somos e do que temos feito (NEWMAN;
HOLZMAN, 2002, p. 12, grifos dos autores).

Na verdade, não se trata de afirmar que exista o meu, o seu, o


nosso, o deles Vygotski, ou qualquer outro autor, pois isso significa
aceitar a existência de que todos sejam igualmente válidos, mas
sim que estes autores sejam entendidos tal como se apresentaram,
com respeito ao método que propuseram para a Psicologia e sem
desconsiderar ou ignorar suas bases filosóficas que dão significado
a seus conceitos.
41 • S I L V A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

Embora Newman & Holzman (2002), por se colocarem desta


forma, possam se aproximar de uma posição relativista, isto é,
de que as leituras se devem a posições pessoais ou interpretações
subjetivas e que possam, "democraticamente", caminhar em
paralelo, muitas vezes, até complementando-se mutuamente,
em um outro momento de seu livro demarcam características
importantes dos intérpretes atuais da Escola de Vygotski, que
merecem consideração.
De acordo com estes autores, por exemplo, as pesquisas no
laboratório de Michael Cole desde 1 9 8 1 vêm se concentrando
em explorar a zona de desenvolvimento proximal postulada por
Vygotski, em função da situação concreta existente nos Estados
Unidos, isto é, do crescimento do contingente de crianças
consideradas fracassadas no processo de escolarização e, ao mesmo
tempo, o advento do computador em sala de aula, direcionando as
pesquisas para a criação de "sistemas de atividade" planejadas para
promover desenvolvimento.

Existem outros que, como Cole, trabalharam para


enquadrar as descobertas de Vygotsky dentro de
paradigmas ou quase-paradigmas psicológicos
existentes. Entre eles estão seus colegas D. Newman e
Griffin, cuja pesquisa enquadra Vygotsky no paradigma
da ciência cognitiva (D. Newman, Griffin e Cole,
1984 ; 1989), e Tharp e Gallimore, que enquadram
Vygotsky num paradigma interacionista em sua
tentativa de "unir a ciência comportamental com o
neovygotskyanismo" (Tharp e Gallimore, 1988:8).
Mas a busca de Vygotsky por um novo método -
e, consequentemente, por uma nova psicologia -,
revivida nos primeiros dias do laboratório Rockefeller,
tinha se tornado de domínio público internacional.
Enquanto alguns se moviam para o Ocidente (literal
e metaforicamente) com Cole e companhia (que se
transferiram para o Oeste), outros vygotskyanos
prosseguiram numa trilha mais revolucionária - ou
ao menos mantiveram a trilha revolucionária aberta
(NEWMAN; HOLZMAN, 2002, p. 42).
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 42
l - As interpreta ções ocidentais da o bra de V ygotski •

Os que seguem esta segunda linha, isto é, que são contra a


assimilação da Escola de Vygotski à psicologia dominante, de acordo
com os autores citados acima, são Davydov e Radzikhovskii, 1985,
Kozulin, 1 986, Bakhurst, 1988 e Wersch, 1 990 (apud NEWMAN;
HOLZMAN, 2002).
Outro alerta a ser destacado, feito por Holzman (2002), refere­
se ao perigo das aproximações que vêm sendo feitas da Escola de
Vygotski com a abordagem pragmática da linguagem associada
à tradição filosófica do pragmatismo nos Estados Unidos, cujos
expoentes são John Dewey, G. H. Mead e Willian James. Nesta
tendência, ele aponta os comunicacionistas que se interessam
pela pragmática da comunicação e que, embora esta tenha se
desenvolvido como uma crítica e um corretivo das visões inatistas e
cognitivas sobre o desenvolvimento da linguagem, não é totalmente
incoerente com o inatismo: "parece haver uma premissa implícita
em vários dos estudos pragmáticos da linguagem de que os seres
humanos nascem com um entendimento compartilhado, uma
necessidade de compartilhar, ou uma necessidade de comunicar"
(HOLZMAN, 2002, p. 96).
Holzman (2002) demonstra, ainda, que, embora
superficialmente possa ser feito um paralelismo entre Mead e
Vygotski, esse só é possível sem a compreensão da essência dos
conceitos que se esconde sob terminologias aparentemente idênticas
como "atividade social" . No entanto, enquanto, para Mead,
"atividade social" significa processo de comunicação, de interação
interpessoal, para Vigotski, social não significa só interpessoal. Em
uma abordagem dialético-histórica como a da Escola de Vygotski,
o estudo da comunicação e da linguagem não pode se reduzir
ao processo de comunicação ou às relações interpessoais, como
também não pressupõe que a língua é neutra, mas é produto de
condições sócio-históricas.
Tais estratégias interpretativas, como a aproximação
"externa" de termos, têm sido mais comum do que se imagina
nas interpretações não só da década de 1 990, mas também nas
mais recentes da Escola de Vygotski, como foi demonstrado, e
concorda-se com Holzman (2002) que a ciência é em si mesma
43 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

uma atividade social e, como atividade, insere-se no âmbito das


relações de produção. Sendo assim, não se pode asseverar que seja
neutra, sequer pela omissão de entendê-la como histórica.
Vê-se então que os conceitos de Vygotski, tornados abstratos,
passam a não possuir compromisso com nenhum período ou
acontecimento, não respondendo a determinadas problemáticas
existentes em sua sociedade e podem, abstratamente, ser
combinados, comparados, complementados por quaisquer autores
de quaisquer períodos. Sua teoria pode também ser classificada de
acordo com a ênfase em um dado conceito.
A "limpeza" operada em relação às reflexões marxistas
presentes em sua obra, retira o significado marxista de sociedade,
social, interação e relações sociais existente em sua teoria,
permitindo que estes conceitos assumam significados distintos
daqueles diretamente vinculados às lutas pela transformação da
sociedade russa.
Para Duarte (2000a, 200 3 ), trata-se de um processo de
aproximação da Psicologia Histórico-Cultural às pedagogias
centradas no lema aprender a aprender, sintetizado por esse autor em
quatro posicionamentos valorativos, a saber: 1) são mais desejáveis
as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, em que está
ausente a transmissão por outros indivíduos de conhecimentos e
experiências; 2) é mais importante que o aluno desenvolva métodos
de aquisição, elaboração e construção de conhecimentos do que
os conhecimentos propriamente ditos, elaborados por outros; 3)
a atividade verdadeiramente educativa, realizada pelo aluno, deve
ser dirigida pelos interesses e necessidades da própria criança;
e 4) a educação deve preparar os indivíduos para acompanhar
uma sociedade em permanente e acelerada mudança, em que os
conhecimentos são cada vez mais provisórios.
A referência ao Prefácio do livro A formação social da mente
( 1989) feita no início do capítulo, onde os editores norte­
americanos alertam para o estilo extremamente difícil de Vygotski
para justificar a "limpeza" realizada pelos tradutores, parece ter
sido bem compreendida, por Burgess ( 1 99 3). Para este inglês,
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 44
l - As interpreta ções o cidentais da o bra de V ygo tski •

ler Vygotski não significa apenas compreender abstratamente a


estrutura de seu programa teórico, de seu projeto de pesquisa, de
experimentação e de seu trabalho empírico. "Com Vygotsky, texto
e argumentação importam. Além disso, por razões históricas,
a interpretação importa de maneira bastante característica"
(BURGESS, 1993, p. 3 1).
Ler Vygotski, segundo Burgess, é caminhar entre
antagonismos. O pensamento, que começa como algo familiar
e conhecido, vai sendo aos poucos destruído até mostrar o novo
emergindo do velho:

Na análise vygotskiana, acabamos por reconhecer


um tipo de movimento: do passado para o futuro,
dos fragmentos para a unidade, em direção a uma
formulação que permite ao pensamento enfrentar o que
necessita ser explicado, onde não está claro, nos escudos
que, do ponto de vista vygotskiano, são incorreros
ou incompletos. A proposta é reformular, e não
simplesmente fazer acréscimos ou complementações
em outros escudos (BURGESS, 1994, p. 32).

A grande dificuldade na compreensão dos textos de Vygotski


parece residir justamente na forma dialética de expor suas idéias.
Não suprimindo as contradições, ele expõe idéias antagônicas para
depois sintetizá-las ao término de seu raciocínio. Não constrói o
texto passo a passo, de forma linear como a lógica formal de ler e
escrever, e isso o torna extremamente difícil. Seus vaivéns de idéias
requerem do leitor grande dose de concentração e memória, pois
a cada passo acrescenta um elemento novo, que pode neutralizar o
ponto de vista anterior ou complementá-lo, sendo que as repetições
servem para frisar a importância de determinado argumento em
detrimento de outros.
Este ponto de vista é também referendado por Valsiner e Van
Der Veer que afirmam ser a dúvida sobre Vygotski ser marxista ou
não, de natureza estática, pois é, no entender desses autores, uma
tentativa de classificá-lo como membro entre duas classes distintas
de orientação ideológica:
45 • S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Este livro deixa claro que Vygocsky não pode


ser classificado desta maneira. Reconstituímos a
interdependência intelectual de Vygocsky em relação
a uma série de tendências teóricas e filosóficas (entre
as quais o pensamento marxista/hegeliano foi apenas
uma, embora das mais significativas). Além disso,
a mente dialética de Vygotsky aplicava a todas essas
ligações intelectuais o esquema 'Tese-Antítese­
Síntese'. Uma vez que essa abordagem não é adotada
pela psicologia acuai, é difícil para muitos psicólogos
compreender como Vygocsky poderia ser um
'piagetiano' em boa parte de seu pensamento (embora
fosse extremamente crítico a Piaget em algumas
áreas), ou como ele poderia apreciar alguns aspecros
da reflexologia de Pavlov (embora submetesse outros
aspectos dela, por exemplo, o reducionismo fisiológico,
a críticas severas). Além disso, embora Vygotsky se
identificasse com o movimento pedológico soviético da
época, assim mesmo ele submeteu· esse movimento a
críticas devastadoras (e redefiniu a 'pedologia' para seus
próprios propósitos). E, embora tenha se distanciado
cada vez mais da nova linha de pesquisa de sua
época (a ênfase na práxis da Escola de Kharkov), não
negava que ela havia produzido algumas novas idéias
intelectualmente valiosas. Podia criticar asperamente o
trabalho psicanalítico de Luria, ao mesmo tempo que
continuava a trabalhar com ele, chegando mesmo a
entrar como membro da Sociedade Psicanalítica Russa
(VALSINER; VAN DER VEER, 1996, p. 422).

O livro lrygotsky: uma síntese, de Valsiner e Van Der Veer


( 1996) apresenta uma das biografias mais completas de Vygotski.
No entanto, no que se refere aos acontecimentos sócio-político­
econômicos da URSS, seu tom é irônico e ideológico, referindo­
se, constantemente à "utopia socialista" , ponto de vista que neste
trabalho não se compactua, pois considera-se que naquele período
esta era uma realidade possível devido às condições políticas e
econômicas.
Estes autores, no entanto, parecem justificar o ecletismo em
nome da dialética, retirando do pensamento de Vygotski seu caráter
de crítica radical às psicologias anistóricas, as quais queria superar
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 46


1 - As interpreta ções ocidentais da o bra de V ygo tski •

com vistas à construção da "nova" psicologia, compatível com


os ideais da sociedade comunista. Justamente por compreender
as concepções filosóficas e psicológicas como históricas, Vygotski
era capaz de considerar suas contribuições para o momento em
que foram elaboradas, bem como o que deveria ser superado por
novas necessidades que a existência impunha aos homens do seu
período.
Para muitos estudiosos de Vygotski, o estilo de sua crítica tem
sido uma pedra no caminho das interpretações atuais por ter, talvez,
significado diferente da crítica existente nas correntes psicológicas
dominantes a partir da década de 90 do século XX. Essa diferença,
no entanto, se fundamenta na visão de mundo dialética de Vygotski
e na falta de uma abordagem dialética na tradição ocidental, pois
os psicólogos de hoje adotam uma perspectiva não-dialética, do
tipo "ou isto ou aquilo" , para determinar a "filiação" dos teóricos a
uma ou outra abordagem em psicologia:

Daí os freqüentes contrastes não-dialéticos entre as


abordagens 'piageriana' e 'vygotskyana', ou a difundida
separação dos psicólogos em categorias 'social' versus
'cognitiva', que parece ocupar nossa mente em suas
atividades metapsicológicas. Mesmo a existência de
uma sobreposição das duas ('cognição social') não altera
a classificação não-dialética do 'cenário' psicológico,
uma vez que o enfoque dessa taxonomia é basicamente
uma 'organização', e não uma sintetização de idéias
de campos opostos (VALSINER; VAN DER VEER,
1996, p. 423).

Assim, seja por dificuldades no entendimento do pensamento


dialético e histórico de Vygotski, seja por razões político­
ideológicas ou por peculiaridades do pensamento atual que prima
pela fragmentação, acaba-se por traduzir suas idéias linearmente,
retirando grande parte das "questões polêmicas" abordadas
por ele e, conseqüentemente, sua historicidade. Eliminar esta
singularidade de seu pensamento significa eliminar grande parte de
seu esforço por construir uma psicologia marxista em circunstâncias
históricas determinadas. A forma e o conteúdo de seus textos são
47 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

essencialmente dialéticos, estão em sintonia, complementam-se e


formam um conjunto, um afirma o outro constantemente. Como na
citação anterior de Burgess, a proposta de Vygotski era reformular
e não acrescentar ou complementar; para isto utilizava a dialética
na forma e no conteúdo de suas exposições e argumentações.
Ler Vygotski, destarte, é antes de tudo admiti-lo como
marxista e comunista, com todas as implicações decorrentes disso.
Como diz Duarte, comete-se um grave equívoco ao se pretender
depurar a psicologia de Vygotski de seu marxismo ou afastá-lo da
proposta de uma sociedade comunista: "[. .. ) para se compreender
o pensamento de Vigotski e sua escola é indispensável o estudo
dos fundamentos filosóficos marxistas dessa escola psicológica"
(DUARTE, 1 996, p. 7 8).
Retirar de seus textos as referências a Marx, Lênin ou Trotsky
é suprimir referenciais importantes para a compreensão de sua
teoria. Ignorar sua formação marxista e seu envolvimento teórico­
prático com o projeto coletivo de construção do comunismo
significa abstrair suas idéias das lutas vividas por ele e que lhe
dão significado. No entanto, grande parte do material escrito
sobre Vygotski relega a segundo plano seu envolvimento com o
comunismo e sua formação marxista, aparecendo brevemente em
alguns resumos biográficos parcas citações sobre os locais em que
trabalhou e autores em que se baseou, sem estabelecer relação com
seus postulados teóricos.
A maioria dos estudos divulgados prende-se a algumas
idéias de Vygotski consideradas relevantes para a atualidade.
Segundo Burgess, a primeira delas dá mais atenção à relevância
do pensamento vygotskiano em relação à criança como indivíduo.
Os seguidores dessa linha estão interessados em aprendizagem, em
desenvolvimento e no papel que a linguagem cumpre na formação
do pensamento, tendendo ao estudo do símbolo e da simbolização,
pois se adapta bem à ênfase na criatividade e à contribuição ativa
da criança em sua própria aprendizagem:

Não negligenciam o social, ao contrário do que, às vezes,


dizem seus oponentes. No entanto, tendem a tratar
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 48
- As interpreta ções ocidentais da obra de V ygotski •

questões sociais em termos genéricos e complacentes.


Dão mais ênfase à interação do que à sociedade; mais à
natureza elaborada das instituições do que às limitações
institucionais ou à qualidade discutível do bom-senso.
Consideram a cultura e a história como importantes,
mas mantêm-nas principalmente como pano de
fundo de suas interpretações, e tendem a explicar a
cultura sem menção a poder ou conflito. Seu interesse
está nos processos e nas práticas, na ação dos atores
humanos e nas dimensões éticas da aprendizagem e da
educação. Os pontos enfatizados são: a aprendizagem
é interacional e a cultura, socialmente construída
(BURGESS, 1994, p. 35).

Para ele, essa leitura tira sua força da redescoberta do


pensamento kantiano, em fins do século XX, e dos novos
trabalhos nesta linha disponíveis no pós-guerra nos quais destaca­
se a influência generalizada da psicologia do desenvolvimento de
Piaget. É uma leitura de Vygotski que herda a ênfase no indivíduo,
na liberdade ética e na origem humana das idéias sobre a realidade,
características do pensamento kantiano.
Entende-se que afirmar ou compactuar com esta classificação,
a partir da identificação de seus pressupostos epistemológicos,
significa aprofundar estudos sobre estes pensadores, objetivo que
este trabalho não se propõe a realizar. Pode-se acrescentar apenas
que esta é uma visão comum ao especialista, preocupado apenas
com a educação, pura e simples, que vai em busca de um autor para
retirar dele apenas aquilo que compete a seu campo de atuação.
Grande parte das publicações nacionais desde a década de
1990 tem enfatizado a aprendizagem, a interação entre pares e
a relação entre pensamento e linguagem. Encontram-se poucos
estudiosos, inclusive estrangeiros, que consideram as influências
societárias mais amplas no desenvolvimento da psique humana. A
organização social, as relações sociais de produção como construtoras
de uma psique determinada não são analisadas. A ênfase na escola,
na interação em pequenos grupos, na relação aprendizagem
e desenvolvimento com enfoque na zona de desenvolvimento
proximal, na mediação, é destacada sem que se avance para o
49 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

significado que assumem em uma sociedade capitalista, quando o


próprio Vygotski estava empenhado na destruição dessa forma de
sociedade.
Nesta perspectiva de leitura, podem ser citados, como
exemplo, os trabalhos de autores brasileiros como Rego ( 1 994;
1995), Oliveira ( 1995a; l996; 1 997), Tunes ( 1995), Smolka
( 1 99 1 ; 1995), Oliveira (1995b), Cerisara ( 1995), Góes (1991)
entre outros; e estrangeiros como Evans ( 1 994), Saxe ( 1994), Lunt
( 1994), Pollard ( 1994), Moll ( 1996), Garnier ( 1996), Bednarz
( 1996), Siguán ( 1987) e Palacios ( 1987), Braga (2000), Góes
(2000), Vasconcelos (200 1), Japiassu (200 1 ), Kristensen, Almeida
& Gomes (200 1), Freitas (2002), Rego (2002), Camargo (2004),
Moura (2004).
Muitas destas publicações parecem ter como objetivo tornar
acessíveis aos educadores as idéias de Vygotski, convertendo-se em
resumos do que consideram as principais idéias do autor e suas
possibilidades de aplicação à educação.
Encontram-se também publicações de artigos e livros de
autores que se propõem a realizar comparações entre Piaget e
Vygotski ou complementações da teoria de Vygotski com outros
autores, também com enfoque nos processos de desenvolvimento
e aprendizagem como Castorina ( 1 996), Ferreiro ( 1 996), Lerner
( 1996), Palangana ( 1994), Smolka ( 199 1), entre outros; e
estrangeiros como Pereira ( 1 987), Vila ( 1 987) etc.
Rego, em seu livro lrygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da
educação, propõe-se, inicialmente, fazer uma contextualização da
obra do autor, mas acaba atendo-se apenas aos dados biográficos
disponíveis, com pouco aprofundamento em relação às questões
político-econômicas de sua época. Traz uma versão "atualizada"
das idéias de Vygotski, utilizando-se de classificações como
teoria socioistórica, concepção interacionista, sóciointeracionista
e psicologia genética, termos jamais utilizados por ele e seus
colaboradores para identificar sua teoria:

Podemos considerá-lo representante de uma outra


maneira de entender a origem e evolução do psiquismo
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 50
- As inte rpreta ções ocidentais da o bra de V ygotski •

humano, as relações entre indivíduo e sociedade e,


como conseqüência, um modo diferente de entender a
educação: a concepção interacionista.
Vygotsky, inspirado nos princípios do materialismo
dialético, considera o desenvolvimento da
complexidade da estrurura humana como um processo
de apropriação pelo homem da experiência histórica
e cultural. Segundo ele, organismo e meio exercem
influência recíproca, portanto o biológico e o social
não estão dissociados nesta perspectiva, a premissa é
de que o homem constitui-se como tal através de suas
interações sociais, portanto, é visto como alguém que
transforma e é transformado nas relações produzidas em
uma determinada cultura. É por isso qtte seu pensamento
costuma ser chamado de sócio-interacionismo (REGO, 1994,
p. 92-3, grifo nosso).

É interessante pontuar duas questões no trecho citado acima,


as quais se repetem no corpo de todo o livro: Vygotski nunca
se intitulou interacionista ou sóciointeracionista. Esta é uma
classificação que "atualiza" sua teoria, deformando-a. Relações
sociais - no sentido marxista de relações sociais de produção -
são transformadas em interações sociais, o que, freqüentemente,
adquire a conotação de relações interpessoais ou grupais.
Palangana, em seu livro Desenvolvimento e aprendizagem em Piaget
e Vygotsky, apresenta a concepção dos dois autores, mostrando a
proposta teórica de cada um, seus principais postulados e conceitos,
aprofundando os pressupostos filosóficos e epistemológicos,
demonstrando a base marxista do pensamento vygotskiano,
fundamentalmente diferente da base do pensamento piagetiano,
e definindo, a partir destes pontos, as diferenças principais entre
os autores no que diz respeito às concepções e relações entre
desenvolvimento e aprendizagem. Em suas conclusões, no entanto,
Palangana acaba por compactuar com o ponto de vista de Rego:

Pode-se dizer qtte Vygotsky fecha Stta proposta em torno


do paradigma interacionista ao superar o entrave
representado pelas condições maturacionais,
produzindo com isso uma verdadeira revolução em um
51 • S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

dos conceitos-chave para a psicologia da educação: a


relação desenvolvimento/aprendizagem.
Liberando a aprendizagem do jugo do desenvolvimento,
ele termina por reunir as teses que parecem garantir a
sua proposta uma maior eficácia, quando se trata de
discutir as possibilidades da interação na busca por
um ensino mais produtivo, via uma comunicação mais
clara, precisa, rica e desafiante. Isto posto, fica patente
que Vygotsky não pode ser classificado meramente como um
autor interacionista. Antes de mais nada, ele se enquadra
na vertente sócio-interacionista, dada a percepção clara
que aloca em sua obra às relações recíprocas que se
estabelecem entre sujeito e objeto, entendendo por
objeto não um meio genérico, abstrato e atemporal,
mas, sobretudo, um ambiente social, historicamente
determinado (PALANGANA, 1994. p. 147- 148, grifo
nosso).

Ainda que Vygotski tenha sido classificado como interacionista,


essa autora vai além de Rego ao pontuar diferenças significativas
nas duas abordagens, principalmente no conceito de meio social:

Não se nega, no entanto, que Piaget seja um


interacionista: a necessidade de interação criança/
meio, como um dos fatores responsáveis pela gênese do
pensamento, está clara em seu modelo teórico. O que
os estudos aqui empreendidos permitem observar é um avanço
da proposta de Vygotsky em relação à de Piaget, quando
analisadas do ponto de vista da matriz epistemológica que
dá sustentação ao interacionismo: amplia-se, na perspectiva
vygotskyana, a noção de "meio" q11e, de genérico e abstrato
(Piaget), passa a ser encarado como social e historicamente
contextualizado. [. . } Frente a essas constatações, é
.

pertinente conjeturar que a relevância do social em uma


perspectiva interacionista assume diferentes dimensões,
a depender das bases filosóficas e epistemológicas que
subsidiam e norteiam os princípios adotados em cada
modelo teórico (PALANGANA, 1994, p. 1 52, grifo
nosso).

A afirmação de que Vygotski tenha "avançado" em relação à


proposta de Piaget do ponto de vista epistemológico, parece retirar a
moldura das lutas humanas, historicamente determinadas, que dão
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 52
1 - As interpretações ocidentais da o bra de V ygotski •

significado revolucionário aos conceitos. Vygotski pensou o homem


e a relação deste com a natureza de acordo com a prática que se
desenrolava em sua sociedade, no período histórico em que viveu.
A autora analisa a diferença que cada autor atribui, em sua teoria,
à palavra "meio" . Referimo-nos ao significado possível que pode
ser apreendido, tendo em vista os fundamentos epistemológicos
de cada teórico e o contexto que deu base ao desenvolvimento das
teorias. Esse método difere significativamente da abordagem de
Rego, onde o conceito de "meio social" vygotskiano não parece
devidamente explicitado.
Leite, na sua análise comparativa entre Piaget e Vygotski,
utiliza-se dos "paradigmas" atuais para identificar, nas concepções
de ambos, o que existe de interacionismo e de construtivismo. E
chega à seguinte conclusão:

Temos, assim, na teoria piagetiana, uma dimensão


construtivista bem caracterizada e suficientemente
estudada e um aspecto interacionista que apresenta
lacunas no que se refere à contribuição do meio no
desenvolvimento de conhecimentos. Em Vygotsky,
a dimensão interacionista está bem definida, e o
meio sociocultural a que se refere, suficientemente
caracterizado. Permanece entretanto lacunar um
estudo aprofundado do papel tanto do sujeito quanto
dos mecanismos e processos que atuam nos níveis
interpsicológico, intrapsicológico e na passagem entre
esses dois planos (LEITE, 1994, p. 30).

Góes também compactua desta classificação da teoria


vygotskiana:

[ .. } posta que há uma necessária interdependência


.

dos planos inter- e intra-subjetivo, a gênese de seu


conhecimento não está assentada em recursos só
individuais, independentes da mediação social ou
dos significados partilhados. O sujeito não é passivo nem
apenas ativo: é interativo.
Essa forma de ver o mjeito e de conceber seu desenvolvimento
confere à teoria uma postura sócio-interacionista, pela
assunção de que o conhecimento é construído na
53 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

interação sujeito-objeto e de que essa ação do sujeito


sobre o objeto é socialmente mediada.
A autonomia do sujeito e a regulação de suas ações
constroem-se sobre interações (GÓES, 1994, p. 2 1 ,
grifo nosso).

Pereira defende em seu texto a classificação de Vygotski


no paradigma organicista. Ele explica que este paradigma
considera o organismo como um sistema vivo, organizado e
exposto à experiência em suas múltiplas formas. A atividade, e
não os elementos, é essencial, sendo esta a transição contínua de
um estado a outro, em uma sucessão incessante. Cada estado é
diferente qualitativamente e não é possível reduzir essas diferenças
aos elementos mínimos, como pretende o mecanicismo. É o modelo
do homem como organismo ativo:

Em resumo, as concepções metateóricas de Vigotski


correspondem às do paradigma organicista, e são
antitéticas às do paradigma mecanicista. Portanto
pode-se integrar a teoria de Vigotski entre aquelas que
compartilham o organicismo. Uma prova adicional
de sua adoção de tal modelo é a possibilidade de
debate entre aspectos de sua teoria e outras que
também o adotam. Debate que pode frutificar em
uma proximidade das posições. Isto tem sucedido com
a polêmica sobre a função e evolução da linguagem
egocêntrica sustentada por Piaget. Tal intercâmbio,
como vemos, é infrutífero entre teorias que adotam
paradigmas antagônicos (PEREIRA, 1987 , p. 76).

Como se vê, também nas citações dos autores acima, o


significado marxista de relações sociais é esvaziado e transformado
em simples interações entre indivíduos, o que torna possível
a classificação da teoria de Vygotski como interacionista,
organicista, entre outras. Torna possível, também, a aproximação
entre Piaget e Vygotski como querem diversos autores, dizendo­
os complementares ou similares, uma vez que se exclui a base
filosófica ou, dito de outro modo, o método que os guiou na análise
dos fenômenos psicológicos.
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 54
1 - As i nterpreta ções ocidenta is da o bra de V ygotski •

Não pretendendo polemizar a respeito das comparações e


distinções relativas à teoria de Piaget e Vygotski, observa-se que,
mesmo não se tendo lido tudo o que foi publicado sobre Vygotski, as
publicações consultadas, nacionais ou estrangeiras, não apresentam
diferenças significativas de leitura. As referências à sociedade
russa são realizadas de forma sucinta. O pensamento de Vygotski
é analisado tendo-se como base a história das idéias filosóficas e
psicológicas ou relacionado à sua história pessoal, estabelecendo-se
mínimas relações com as transformações sociopolítico-econômicas
de seu país.
Pode-se citar como exemplo de classificações similares o
estudo de Saxe em relação à compreensão lógico-matemática
em diferentes culturas. Segundo este mesmo autor, suas
pesquisas foram baseadas em "estudos construtivistas anteriores,
notavelmente os de Vygotsky e Piaget [ . . )" (DANIELS, 1 994, .

p. 1 70). É interessante observar em que sentido classifica Vygotski


como construtivista, e, mais ainda, a crítica que realiza em relação
a ambos os autores (Vygotski e Piaget):

A abordagem de Saxe (seg11ndo seus colaboradores)


tem suas raízes no tratamento construtivista do
desenvolvimento cognitivo tanto de Vygotsky
( 1978, 1986) como de Piaget (1970, 1977). Os dois
teóricos argumentaram que as crianças transformam
a experiência em base para a construção de novas
compreensões e de processos dialéticos específicos, por
meio dos quais o conhecimento prévio das crianças
conduzirá suas construções conceituais mais recentes.
Nenhum dos dois, porém, concebeu a interação de
processos socioculturais e desenvolvimento cognitivo
de uma maneira adequada para estudos empíricos,
e, consequentemente, nenhum deles contribuiu com
uma análise suficientemente completa do papel das
interações de crianças em processos localizados de
desenvolvimento cognitivo (SAXE et a!., 1994, p.
170-7 1 , grifo nosso).

Saxe é americano e representa uma das vertentes de


pesquisadores da "linha" vygotskiana. Nesta mesma perspectiva,
55 • S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

encontra-se Pollard ( 1994), pesquisador inglês que desde 1987 tem


buscado investigar o potencial de aplicação das idéias de Vygotski
na análise da aprendizagem nas escolas primárias da Inglaterra.
Sua estratégia teórica, como ele mesmo diz, "consistiu na tentativa
de vincular interacionismo social e construtivismo social" . Nesta
pesquisa acompanhou a trajetória escolar de um grupo de dez
crianças que ingressaram com 4 anos de idade em uma escola
primária, utilizando-se de diversos métodos qualitativos. Assim,
este autor conceitua os fatores sociais estudados como possíveis
influências no desempenho das crianças, sob a perspectiva
vygotskiana:

Enfoquei, principalmente, os fatores sociais que


provavelmente influenciariam a postura, as perspectivas
e as estratégias das crianças quanto à aprendizagem.
Assim, foram coletados, com os pais, dados sobre
a vida familiar, o relacionamento entre irmãos e as
identidades em formação das crianças; com os colegas e
nas situações de recreio, dados sobre as relações entre o
grupo de crianças; e, com os professores, dados relativos
ao comportamento de sala de aula e ao aproveitamento
escolar (POLLARD, 1994, p. 264).

Fica clara nesta passagem a conotação de social que envolve


a grande maioria das pesquisas sobre a perspectiva de Vygotski,
inclusive de pesquisadores russos, que estão sendo realizadas
atualmente.
Esses autores não ignoram por completo o social. Todavia,
"social" dilui-se ou, dizendo melhor, restringe-se às interações
individuais em pequenos grupos. As relações sociais, no sentido
dado por Marx e adotado por Vygotski, como produtoras e
transformadoras dos comportamentos, condutas e formas de
pensar humanos no decorrer da história, acabam por limitar-se a
relações interpessoais nesta forma de se ler Vygotski. As interações
e mediações, estudadas de maneira anistórica, independentes
de tempo e lugar, adquirem um significado distinto daquele
pretendido por Vygotski.
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 56
l - As interpreta ções ocidentais da o bra de V ygotski •

Enquanto ele (Vygotski) estava dispensado de estar apontando


continuamente a perspectiva deste social, uma vez que este era um
projeto ou sonho coletivo que se buscava realizar desde a Revolução
e, mais do que isso, estava transformando-se diante dos olhos dos
homens de sua época por sua prática revolucionária, pesquisadores
e estudiosos da atualidade, por não estarem vivendo as mesmas
condições políticas e econômicas, devem ter o compromisso de
resgatar o social de Vygotski, para poder compreendê-lo.
Diante desta afirmação o leitor pode estar se questionando:
Será que se deve abrir mão deste sonho coletivo na atualidade?
Será que a sociedade almejada por Vygotsky não pode ser um
projeto ainda hoje? Para estas questões que o leitor porventura
esteja se fazendo pode-se responder da seguinte forma: a grande
diferença entre a sociedade de Vygotski e a atual não está no
sentido de se desejar uma sociedade igualitária, pautada pelos
interesses coletivos, mas nos encaminhamentos práticos que
lá se evidenciaram e que aqui se evidenciam. Com certeza hoje
têm-se, em termos de desenvolvimento das forças produtivas,
mais condições de se socializar a riqueza e não a escassez, do que
naquela época. No entanto, como pensar em Revolução quando,
no conjunto da sociedade, o único movimento político que se
evidencia é o neoliberalismo, que determina o acirramento ainda
maior das relações capitalistas?
Para os pesquisadores atuais, orientados pela Ciência da
História, entender o social de Vygotski significaria fazer as
distinções entre as condições objetivas presentes na sociedade russa
daquele período, que permitiram a Revolução e a construção do
projeto coletivo socialista, e as condições objetivas atuais desta
sociedade, onde se tem a globalização do capital, e cujo projeto
coletivo é o neoliberalismo, para que se definam os limites de uma
teoria revolucionária, deslocada da materialidade que a produziu.
Observa-se, também, nessas interpretações anistóricas, a
tentativa de integrar Vygotski aos paradigmas da atualidade.
Duarte aponta esta preocupação negando duas classificações
correntes em relação à Teoria Histórico-Cultural: interacionista e
construtivista. Este autor cita alguns exemplos de como se misturam
57 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

as classificações: socioconstrutivismo, sociointeracionismo,


sociointeracionismo-construtivista, construtivismo pós-piagetiano,
entre outras.
Já Riviere cria uma outra classificação:

[.. .} a intenção de sair do círculo reducionista das


psicologias objetivas da conduta dos anos vintes e
trimas (pavlovismo, reflexologia, reatologia etc.), sem
cair na tentação do subjetivismo e do idealismo, levou
Vigotski a formular uma psicologia interacionista, que
poderíamos definir como uma forma de menta/ismo
objetivo. Uma psicologia mentalista porque, em definitivo,
seu objeto de estudo era a consciência, em suas formas mais
elaboradas e especificamente humanas. E uma psicologia
objetiva, ruja meta era explicar e não somente descrever, e
cujos procedimentos seriam comparáveis aos das ciências
naturais (RlVIÉRE, 1987, p. 1 34, grifo nosso).

A necessidade de classificar ou criar "novas" denominações


para a teoria de Vygotski é um fato realmente curioso que merece
maiores discussões e aprofundamento. Não se trata, como diz
Duarte, de uma simples denominação, pois o nome de uma escola
ou teoria é um dos elementos que definem sua especificidade perante
outras. Como o próprio Vygotski diz, uma revolução arranca os
nomes velhos das coisas e cria novos com novos significados. Que
dizer então de uma teoria que se pretendeu revolucionária em seu
período histórico, ser "adaptada" aos velhos paradigmas existentes
na atualidade? Por que não respeitar a denominação, dada pelos
próprios integrantes desta escola, de Teoria Histórico-Cultural?
Estas questões serão discutidas no término deste capítulo. Por
hora, deixa-se como argumento o que diz Duarte sobre o significado
da denominação escolhida por Vygotski e seus colaboradores para
sua teoria, de Histórico-Cultural:

[. .. } o divisor de águas para a Escola de Vigotski,


quando da caracterização das correntes da psicologia,
residia justamente na abordagem historicizadora ou
não-historicizadora do psiquismo humano. Ora, para
ele somente uma psicologia marxista poderia abordar
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 58
- As interpreta ções ocidentais da o bra de V ygotski •

de forma plenamente historicizadora o psiquismo


humano. E não se trata apenas de uma das possíveis
formas de se conceber o psiquismo, mas sim de que
ele não pode ser plenamente compreendido se não
for abordado enquanto um objeto essencialmente
histórico.
Estamos perante a questão do critério de classificação
das correntes da psicologia. Quando o critério é a
historicizacão ou não do psiquismo, Piaget, Skinner e
Freud estão muito mais próximos um do outro do que
da psicologia da Escola de Vigotski.
Procuraremos mostrar aqui que o interacionismo é
um modelo epistemológico que aborda o psiquismo
humano de forma biológica, ou seja, não dá conta
das especificidades desse psiquismo enquanto um
fenômeno histórico-social. Com isso estamos defendendo
que a Psicologia Histórico-Cultural não é uma variante do
interacionismo construtivista. Não basta colocar o adjetivo
social. A questão é a de que a especificidade dessa escola da
psicologia perante outras não pode ser abarcada pela categoria
de interacionismo nem pela de constrtttivismo (DUARTE,
1996, p. 84-5, grifo nosso).

Acrescente-se à reflexão de Duarte que uma leitura


aprofundada e mais completa dos textos de Vygotski, à luz das
lutas desencadeadas pelo processo revolucionário, não desprezará
as repetições pela necessidade de marcar a diferença entre o velho
e o novo. Reiteradamente Vygotski deixa ver em seus textos que o
comportamento humano está sendo estudado sob o ponto de vista
marxista. Esta é a característica que diferencia sua teoria de outras
teorias psicológicas.
Considerando-se tal linha como demarcação entre a teoria
histórico-cultural e outras, desaparece a polêmica existente
entre o social de Piaget e o social de Vygotski. Nenhuma teoria
desconsidera o social enquanto categoria genérica. O que
distingue-as e que Vygotski enfatiza, é a forma como este social é
considerado e conceituado em cada uma delas. O social de Vygotski
está sendo transformado pela ação coletiva dos homens, os quais,
abandonando o modo capitalista de produzir a vida, desejavam
construir uma sociedade comunista. Ele não é apenas o cenário, o
59 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

meio físico onde se desenrola a ação humana; nem é a convivência


harmoniosa entre indivíduos; pelo contrário, seu conceito de
social está intrínsecamente ligado às condições que conduziram à
revolução russa e aos acontecimentos posteriores a ela, bem como
ao pensamento marxista que os refletia e explicava.
Como argumenta Duarte, para Vygotski, mais importante do
que superar os unilateralismos na análise da relação sujeito-objeto,
seu objetivo principal era compreender as especificidades dessa
relação quando ambos (sujeito e objeto) são históricos e quando
a relação entre eles também é histórica, o que se torna impossível
quando se adota o modelo biológico de interação entre organismo
e meio ambiente:

Assim se empregarmos a categoria de interacionismo


(que vimos resultar de um modelo essencialmente
biológico) para caracterizar a Escola de Vigotski,
estaremos tentando enquadrar essa escola sob um
modelo que contraria a pretensão fundamental, de
construir uma psicologia histórico-cultural do homem
(DUARTE, 1996, p. 86-87).

As pretensões de classificação da teoria vygotskiana parecem,


sob esta análise, promover mais dificuldades do que facilidades
na compreensão de seu pensamento. Assim também quando
retiram-se partes de sua teoria, ou seja, conceitos isolados, que são
divulgados como pontos fundamentais sendo que na verdade o são
apenas para o intérprete. Isso ocorre, em nosso entender, devido
a formação especializada, decorrente da divisão do conhecimento,
presente em nossa sociedade.
Segundo Burgess, existe ainda uma segunda leitura de
Vygotski, que recebe influência de Gramsci. Nela, o pensamento
de Vygotski está relacionado à luta cultural e política, por isso os
interesses na ideologia e nos métodos de análise são explorados de
maneira mais completa. O ponto de partida desta "leitura" está na
ideologia e na cultura e não na criança, e seus seguidores enfatizam
a natureza política da cultura, interessando-se pelas formas como
essa natureza política é, com freqüência, disfarçada. Observam os
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 60
1 - As inte rpre tações ocidentais da o bra de V yg otski •

mecanismos sociais que manipulam o consentimento e insistem


sobre a importância dos planos político e cultural como lugares de
onde é possível alcançar a mudança, opondo-se a análises sociais
economicistas ou deterministas:

Nesta interpretação, portanto, há um conceito mais


desenvolvido de social. Os que seguem essa leitura
reconhecem o conflito. Relacionam os avanços na
cultura com as diferenças de interesse entre classes,
segmentos e grupos dominantes e subordinados na
sociedade. Interpretam a cultura por meio da leitura
gramsciana de hegemonia. Estão interessados no
poder e, especialmente, no poder de manter alguns
significados, como o "bom senso" dominante, excluindo
ou subordinando os outros. Salientam a ideologia e a
natureza ideológica dos sistemas de significação. Em
oposição aos que fazem uma leitura kantiana, tendem
a estar menos interessados nos aspectos da teoria
vygotskiana relacionados à aprendizagem do que no
escudo da mediação semiótica. O ponto enfatizado é
a necessidade de uma política de cultura e de crítica
(BURGESS, 1994, p. 38).

Este estudo não pretende realizar aquilo que está justamente


questionando, isto é, classificar autores ou interpretações realizadas
da teoria de Vygotski, como Burgess. Pretende-se, com tal revisão
bibliográfica, pontuar algumas diferenças e semelhanças nas
interpretações correntes da teoria vygotskiana.
Observa-se, portanto, que diversos autores, brasileiros e
estrangeiros como Souza ( 1995), Freitas (1 994), Ratner ( 1 995),
Wertsch ( 1985), entre outros, em suas discussões da teoria
de Vygotski, utilizam-na como referência para a análise dos
encaminhamentos políticos e econômicos atuais e suas repercussões
ideológicas na subjetividade humana.
Souza explica, nas considerações finais de seu livro, o que esteve
presente desde o início, ou seja, a crítica à ideologia dominante
burguesa. Propõe, a partir do enfoque de Benjamin, Bak.htin e
Vygotski, um novo encaminhamento:
61 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

Do diálogo entre Benjamin, Bakhtin e Vygotsky,


destacamos uma preocupação em construir uma nova
ética e uma nova estética que, articulando a justiça e
o belo na busca da verdade do homem, estabeleça um
compromisso entre a razão e a paixão no plano do saber.
Mostrando-se a favor de todas as paixões que tornam
a vida mais humana, e recusando toda a racionalidade
dominante impregnada de falsos valores, esses autores
nos revelam que, toda vez que conseguimos recuperar
dispositivos de expressão que escapam ao despotismo
do sistema de significações dominantes, estamos
justamente lidando com formas altamente elaboradas
de relacionar conhecimento e verdade (SOUZA, 1995,
p. 161-62).

Freitas faz a análise das relações entre psicologia e educação,


também utilizando-se da teoria de Vygotski e Bakhtin, sob uma
perspectiva política:

Proponho, portanto, analisar a contribuição possível


de Vygotsky e Bakhtin para uma Psicologia que,
buscando compreender as relações entre o indivíduo
e a sociedade, possa apontar uma direção mais
eficaz e politicamente comprometida para a prática
pedagógica. Assim, talvez, chegue até a redefinir o
conceito de uma Psicologia relacionada à Educação,
não a partir dos construcos de pura e aplicada, mas
decorrente dos parâmetros colocados pela discussão de
um enfoque sócio-histórico (FREITAS, 1994, p. 34).

Observa-se, também, que alguns estudiosos de Vygotski têm


se dedicado à compreensão e ao aprofundamento das relações
existentes entre a linguagem e a consciência humana, como Pino
( 199 1), Palangana ( 1995) e Wertsch ( 1985).
Já outros autores procuram trazer a biografia do autor
ligada aos acontecimentos da URSS e o impacto destes em seu
pensamento. Embora de maneira sucinta e, algumas vezes, com
interpretações político-ideológicas evidentes, considera-se um
avanço, no sentido de possibilitar a leitura de um Vygotski histórico
na atualidade, rebatendo grande parte das "classificações" que têm
sido realizadas de sua teoria, idéias e conceitos. Nesta perspectiva
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 62
1 - As interpreta ções ocidenta is da o bra de V ygotski •

encontram-se Shuare (1 990), Siguán (1 987), Carpintero ( 1987),


Blanck ( 1 996), Montero ( 1 996), valsiner e Van Der Veer ( 1996),
entre outros. Todos estes autores, no entanto, também procuram
mostrar a atualidade das idéias de Vygotski, embora não detalhem
suas possíveis aplicações.
Dentre eles, Shuare é quem traz um panorama mais completo
da base filosófica da psicologia soviética e das relações entre o
desenvolvimento desta, após a Revolução, com as condições da
União Soviética, enfocando diversos teóricos do período e suas
investigações sobre o desenvolvimento da psique humana. Shuare
decreve a situação da União Soviética na década de 20 e no início
de 30 e seu impacto na ciência:

De maneira esquematrca podem-se identificar as


discussões dos anos 2 3 e 24 como as chamadas a
conquistar para a filosofia marxista o papel de guia e
orientação fundamental na construção de uma nova
psicologia. Nessa época a sociedade soviética assimilava
a Nova Política Econômica, destinada a superar as
conseqüências do comunismo de guerra (não só na
esfera da produção econômica, mas nos variadíssimos
aspectos da vida social) e encarava as perspectivas de
um desenvolvimento democrático não tradicional.
Em troca, as disputas de final dos anos 20 e começo
dos anos 30 se ligaram à industrialização forçada, à
"deskulaquização" do campesinaro (com as trágicas
conseqüências que hoje são públicas) e às modificações
na consciência social que começam a produzir a toda
velocidade o stalinismo. [ .. } o início de uma série de
.

exigências que se transformaram logo em dogmatização,


esquematização e, ao final das contas, em castração do
conteúdo verdadeiramente dialético do materialismo.
Trata-se, por uma parte, das exigências referidas ao
partidismo na ciência, ao enfoque classista, à erradicação
das concepções burguesas que, aparentemente, haviam
se infiltrado nas construções teóricas de psicólogos e
pedagogos (e de físicos, matemáticos etc.). Mas, por
outra parte, livra-se também da luta para superar o
mecanicismo e o reducionismo biologizante. [ } Estas
...

linhas antagônicas não se mesclaram e seu resultado


foi a escolástica (a força de exigir pureza ideológica),
63 • S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

a intransigência e a calúnia (a força de exigir enfoques


partidistas e classistas), o isolamento e a recusa
indiscriminada da "ciência burguesa" (em lugar de seu
estudo e crítica construtiva) e, finalmente, o triunfo
oficial da interpretação mecanicista e reducionista
biologizante [. .] (SHUARE, 1990, p. 86-87).
.

No entanto, pode-se observar que, embora de maneira sucinta,


ao analisar os encaminhamentos dados por Stálin à União Soviética
após a morte de Lênin, seu julgamento não aponta diretamente
as necessidades concretas que conduziram ao endurecimento do
Partido e à política autoritária de industrialização e coletivização do
campo. Tal forma de análise pode reforçar a idéia de que a história
humana é produto das boas ou más intenções de determinados
dirigentes ou instituições.
Notadamente, na primeira década do século XXI (2000-
2008), em contraposição à década de 1 990, observa-se um número
crescente de publicações que procuram fazer o caminho inverso às
"interpretações" criticadas até agora. Embora ainda em número
menor, há autores que vêm considerando o método materialista
histórico dialético como base da obra vygotskiana, admitindo
seu objetivo de construção de uma psicologia marxista. Nesta
linha encontram-se autores internacionais, como: Beatón (2001),
Newman & Holzman (2002), Beatón & Calejón (2002), Eilam
(2003), Menecacci (2005), e nacionais como Duarte (2000a),
Freitas (2002), Carvalho (2000), Furtado (200 1), Gomes (2002),
Silva (2003 ), Almeida (2004), Facci (2004), Moura (2004), Teixeira
(2005 ), Almeida (2006), Asbhar & Souza (2007), Barroco (2007),
Eidt & Tuleski (2007), Martins (2007), Meira (2007), Rossler(
2007), Tanamachi (2007), entre outros.
A questão, neste estudo, não é escolher uma dentre as várias
leituras apresentadas, uma vez que todas podem ser consideradas
incompletas de muitas formas. É importante frisar que adotar o
ponto de vista histórico significa admitir que não se tiram leituras
dos textos de psicologia, simplesmente, mas que a leitura se
constrói a partir das questões postas pelos homens historicamente
determinados. Dito de outra forma, as leituras e interpretações
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 64
1 - As interpretações ocidentais da o bra de V ygotski •

encontram seus limites nas formas de pensar e interpretar a


realidade produzidas na luta pela organização da sociedade. Daí
a dificuldade, nos tempos atuais, em entender o pensamento de
Vygotski como ele propôs que assim se entendesse o pensamento
em geral, isto é, historicamente.
Na contemporaneidade, o pensar e o fazer encontram-se
dissociados e fragmentados. Como entender a totalidade quando
se pensa a realidade somente por partes, por especificidades, por
áreas de conhecimento separadas e sem relação entre si? Daí a
tendência, nas interpretações, de priorizar partes das teorias,
classificá-las, etiquetá-las e engavetá-las. Aprende-se a pensar de
forma fragmentada numa sociedade que dissocia, aliena e isola,
mais do que une e relaciona. Tal dificuldade é enfrentada por
todos e externaliza a maneira como esta sociedade desenvolve o
pensamento individual e coletivamente.
Aceitar a leitura histórica é um primeiro passo, mas para
isso é preciso admitir que o fazer e o pensar são históricos e estão
intimamente relacionados, o que subentende uma determinada
forma de existência em processo de transformação, tanto quanto
compreender que uma teoria não prolifera em alguma estratosfera
semântica, alijada das lutas que os homens travam na produção
material de sua existência social.
Lê-se com objetivos diferentes e, neste sentido, a idéia de
fidelidade de interpretação deve ser reconsiderada. "A leitura não
é um processo transparente e natural. Considerações ideológicas,
genéricas e sociais entram na leitura de psicologias. O objetivo da
interpretação fiel, portanto, não é o absoluto, a ser determinado
para todo o sempre" (BURGESS, 1 994, p. 40).
Duarte reforça este ponto de vista quando chama a atenção
para o ideário pedagógico que pode estar norteando a leitura dos
trabalhos de Vygotski no Brasil, demonstrando a importância de
que este seja explicitado pelos intérpretes:

Ao explicitarmos aqui o ideário pedagógico que


mediatiza nossa leitura de VIGOTSKI não estamos
preconizando que somente a partir desse ideário é que

65 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

se possa realizar uma leitura pedagógica de Vigotski.


Acreditamos sim ser esse um debate que ainda está por
ser travado. Para provocá-lo explicitamos aqui nosso
referencial pedagógico. O ponto que defendemos de
forma intransigente é a necessidade dessa explicitação.
Pensamos que é indispensável, quando Vigotski é
lido com olhos de educador, dizer qual o olhar que
lançamos a essa obra. Precisamos ter auroconsciência
de nossa leitura pedagógica. Não adianta fingir que
essa mediação não existe. É mais frutífero torná-la
aucoconsciente (DUARTE, 1996-, p. 90).

Em ambos os pontos de vista, a interpretação de um autor


é conceituada como prática social e cultural e não apenas como
uma dedução individual de significados. Tendo-se como base a
concepção de natureza histórica das ciências, entende-se a leitura
como discursiva, política e histórica em si mesma, intimamente
relacionada à prática social. Como a prática social, as teorias não
são permanentes e eternas, elas mudam incessantemente.
Segundo Burgess ( 1994), as abordagens ocidentais, estudadas
por ele para ler Vygotski, surgiram no pós-guerra fria, ligada à
compreensão ocidental do pensamento marxista. Onde o marxismo,
por exemplo, era encarado como religião estatal, Vygotski foi
interpretado como retórica política, mais do que como "[. . ] uma .

especialidade de origem intelectual ou um projeto intelectual com


potencial explicativo" (BURGESS, 1 994, p. 44). Desta forma,
tais abordagens vão desde a rejeição total da Teoria Histórico­
Cultural, considerada ideológica, como sua "limpeza" em relação
aos componentes marxistas, chegando à aceitação integral como
possível teoria revolucionária para a atualidade:

A interpretação vygotskiana foi inserida na história


do pós-guerra como um discurso de mudança. Daí,
surgem padrões característicos de defesa, crítica,
oposição e síntese. Os defensores procuraram seguir (e
contribuir para) a lenta reaproximação entre Ocidente
e Oriente, junto com a desescalinização da União
Soviética, que foi a história de idas e vindas desses
anos. Eles tiveram de refazer um ambiente intelectual.
As interpretações mais recentes ensinam o marxismo
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 66
- As interpreta ções o cidentais da o bra de V ygo tski •

aos psicólogos ocidentais e começam pela colaboração


entre intelectuais ocidentais e soviéticos (BURGESS,
1994, p. 45).

O pesquisador vai à obra de Vygotski para retirar o que julga


importante para a atualidade de acordo com sua especialidade,
sua visão de homem e natureza. Encontram-se, então, vários
Vygotskis, alguns marxistas, outros não; uns preocupados com a
crise da psicologia (que diversos autores contemporâneos dizem
ser atualíssima) em primeiro plano, outros interessados em
Educação Especial; outros preocupados com desenvolvimento
e aprendizagem, com enfoque na zona de desenvolvimento
proximal; enfim, observa-se uma fragmentação de sua obra, com
a perda de significado de seus conceitos. Vygotski apresenta-se
como pedólogo, metodólogo, psicólogo, estudioso da arte, todos
separados e nunca em comunicação com as grandes questões da
sociedade de seu tempo.
Desta maneira, torna-se quase impossível compreender a
totalidade de sua obra, o fio condutor de todas as suas análises, o
que efetivamente lhe deu base para discutir assuntos tão diversos
sem perder de vista a perspectiva revolucionária da sociedade russa.
Entende-se que é imperativo superar estas formas de análise do
pensamento vygotskiano, pois seus estudos sobre o pensamento
humano (quando entendido em sua totalidade), um dos interesses
da própria psicologia vygotskiana, demonstraram a impossibilidade
de se manter uma estratégia anistórica desse tipo.
Burgess ( 1 994) analisa as diferentes interpretações de
Vygotski nas suas versões atuais e levanta a hipótese de que existe
uma tentativa de aproximação entre o pensamento soviético e o
americano, tendo em vista a construção de uma psicologia social
comum:

Os vínculos entre os níveis de explicação psicofisiológico


e sócio-semiótico dominaram o debate recente
sobre Vygotsky. A emergência desse rema como
fundamental não é de surpreender. O marxismo de
Vygorsky e importantes versões soviéticas de tradições
dentro da psicologia soviética deram impulso a sua

67 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

interpretação. Se entendemos a atenção dada a esse


tema como algo que ocorre, historicamente, dentro
de um processo de reaproximação entre o pensamento
soviético e o americano, o interesse por ele torna­
se mais claro. A construção de uma psicologia social
ocidental apropriada e, de maneira correspondente, a
reconstrução da tradição vygotskyana na psicologia
soviética estão aí para serem trabalhadas.

Ao entender todas estas "leituras" e "interpretações" de


Vygotski como históricas, isto é, no sentido de estarem também
respondendo a necessidades deste momento histórico, observa-se
a emergência de uma determinada interpretação de social e de
sociedade. Desta perspectiva, todos os autores são interpretados e
analisados como se chegassem a um ponto comum ou dissessem
coisas semelhantes, independentemente do período e da forma de
sociedade em que viveram. É como se a atualidade entendesse que
cada autor escreveu para o vazio ou para a eternidade, como se o
que se pesquisa e se escreve hoje servirá para os leitores do ano de
2500, sem ao menos se ter idéia do que será a sociedade humana
naquela época. Esta brincadeira serve para que se reflita que o
pensamento e o produto deste (ações, textos, pesquisas, obras de
arte etc.), embora possam ser apreciados muitos anos ou séculos após
sua criação, são datados e devem ser entendidos como produto de
uma determinada forma de organização social. Portanto, quando
os autores escrevem, o fazem tentando responder a necessidades
enfrentadas pelos homens do período em questão. O mesmo
pode-se dizer dos intérpertes, isto é, a forma como conduzem sua
interpretação dos autores pode servir às necessidades mantenedoras
ou transformadoras das condições reais e concretas de vida, quer
pela crítica realizada, quer pela ausência dela.
Isto quer dizer que não se pode aprender ou utilizar aquilo
que se produziu no passado? Não, o que se quer dizer é que, ao
apreender o que se produziu no passado, devem-se considerar, a todo
momento, as condições objetivas que permitiram o seu surgimento,
o seu desaparecimento, bem como o seu ressurgimento.
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 68
1 - As interpreta ções ociden tais da o bra de V ygotski •

Pergunta-se então: é possível trazer Vygotski para a atualidade


sem distorcer o significado comunista de seus conceitos? O que a
atualidade poderia aproveitar na leitura de Vygotski sem abstraí­
lo, sem desistoricizá-lo ou descaracterizá-lo?
De acordo com Duarte (2000a, p. 161), "a realidade
educacional tem mostrado de forma bastante evidente, para quem
queira ver, que a descaracterização das teorias e do pensamento
dos mais diversos autores não tem produzido nenhum tipo de
avanço mas sim, ao contrário, tem servido de forma bastante
eficaz à legitimação de políticas educacionais comprometidas com
os interesses da classe dominante" .
Entende-se que, mais do que buscar soluções ou "receitas" para
os problemas educacionais da atualidade, retirando-se Vygotski do
contexto histórico que lhe dá significado e fragmentando-o, deve­
se buscar em sua teoria o método de análise por ele utilizado na
compreensão dos fenômenos psicológicos para uma sociedade que
se transforma pela ação consciente de seus homens. A apreensão
de seu método permitirá pensar soluções para os problemas da
atualidade, considerando o psiquismo humano individual como
produto das relações sociais mais amplas. Para que isso seja possível
é importante o conhecimento da organização social vigente e
das implicações desta no comportamento dos indivíduos e na
consciência social. É como dar conta do fenômeno da globalização,
onde se rompem todas as fronteiras econômicas entre países e
nações, gerando uma vulnerabilidade também globalizada, com
o conhecimento de suas interferências e determinações no âmbito
individual e particular.
Romper com a tendência à fragmentação do conhecimento
talvez seja uma das necessidades urgentes que a época reclama,
sob pena de não se conseguir sobreviver em um mundo que, sem
uma compreensão totalizante, mais parece um navio à deriva.
Parafraseando Vygotski, parece ser necessário que se apreenda o
método de Marx e se construa não somente a psicologia partindo-se
dele, mas todas as ciências, para que se possa entender a sociedade
que produziu a teoria vygotskiana, bem como as sociedades atuais
69 • S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

com suas formas de reprodução estreitamente ligadas à consciência


individual, dicotomizada e fragmentada.

S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 70
Da revol ução material à
2
revol ução ps icológ ica -
as bases da ps icologia
com u n ista de Vygotski

Este capítulo procura compreender os postulados teoncos


de L. S. Vygotski como produto das lutas na intrincada União
Soviética que vai da Revolução Russa, em 1 9 1 7 , à década de 30.
Com ele, pretende-se continuar a discussão sobre a conversão dessa
teoria histórica em universal, pelo tratamento abstrato que vem
sendo dado a ela.
Recuperar a historicidade do pensamento de Vygotski
significa, antes de tudo, pensar sua concepção teórica à luz da
história, ou seja, como projeto coletivo pós-revolucionário, tal
como se fez, sem julgar os acontecimentos como produto de boas
ou más intenções dos homens, ou como fruto de equívocos teóricos
ou práticos. Neste sentido, Vygotski não se adiantou à sua época,
apenas lançou seu olhar perscrutador sobre as necessidades da
Rússia, buscando respostas aos problemas com que se deparavam
os homens daquele período.
As transformações que ocorreram na Rússia, durante e
depois da Revolução de Outubro, com vistas à construção de
uma sociedade socialista, estão imbricadas com as transformações
internas das sociedades capitalistas, determinadas, todas elas,
pela primeira grande crise do capital e suas conseqüências: o
imperialismo expansionista e o movimento revolucionário da
• V Y G O T S K I

classe operária. Tais acontecimentos teriam seus desfechos nas


duas grandes guerras mundiais e no fortalecimento momentâneo
dos estados nacionais de bem-estar social.
Neste cenário complexo de forças contrárias, a Rússia vai
despontar como o país capaz de catalisar o ideal revolucionário
do operariado mundial, ao combinar interesses contraditórios do
proletariado e do campesinato. Esta estranha combinação não
passou despercebida a Lênin ( 1982). Nos seus escritos, a Rússia
que antecede a Revolução é retratada como uma sociedade que
deixava gradativamente os resquícios feudais e transformava­
se em capitalista. Um tal processo havia se acelerado com a
reforma de 1 8 6 1 , que emancipou os servos, mas estava longe
do patamar de desenvolvimento capitalista de outros países,
cuja materialidade engendrara o operariado revolucionário e a
possibilidade do socialismo, tal como fora concebido por Marx.
Ao demonstrar, estatisticamente, os níveis de desenvolvimento
dos meios de produção com as relações de trabalho predominantes
na sociedade russa, sobretudo as do campo, pautadas na servidão,
Lênin afirmava que tais condições impulsionariam uma revolução
mais burguesa do que proletária. Mesmo assim, a Revolução teria
um lado progressista, que era o de promover as transformações
técnicas necessárias ao socialismo. Tais transformações, embora
desproporcionais, aleatórias, aos saltos e com todas as conseqüências
sociais de sua própria natureza, não poderiam ser negadas como
desenvolvimento.

A socialização do trabalho pelo capitalismo se manifesta


nos seguintes processos. [. . ) o próprio crescimento da
.

produção mercantil põe fim à dispersão das pequenas


unidades econômicas, própria da economia natural,
e reúne os pequenos mercados locais num grande
mercado nacional (depois mundial). [ . . .) substitui a
antiga dispersão da produção por uma concentração
sem precedentes, [ ...) elimina as formas de dependência
pessoal que são parte inalienável dos antigos sistemas
econômicos. [ . . .) cria necessariamente a mobilidade
da população, que era desnecessária aos sistemas de
economia social anteriores, [. .. ) provoca uma redução
S I L V A N A C A LV O T U L E S K I • 72
2 - Da rev ol ução m a teria l à rev ol ução psi col ógica •

constante da parte da população ocupada na agricultura


(onde sempre predominam as formas mais atrasadas
de relações econômicas e sociais) e um crescimento do
número de grandes centros industriais. [ . . .} aumenta
a necessidade de união e associação da população e dá
às suas organizações um caráter peculiar, distinto em
relação aos períodos anteriores. [. . } todas as referidas
.

transformações do antigo regime econômico, operadas


pelo capitalismo, levam inevitavelmente à mudança da
estatura moral da população (LÊNIN, 1982, p. 374-
375).

O conhecimento dessa natureza revolucionária do capitalismo,


como condição necessária para a construção do socialismo na
Rússia, colocava Lênin em oposição à tese dos populistas de 1 89 1 .
É importante lembrar que o Populismo foi um movimento que
surgiu na Rússia em meados dos anos 60/70 do século XIX,
após a reforma, que lutava pela liqüidação da autocracia, pela
entrega das terras dos latifundiários aos camponeses, tendo como
principal liderança Zheliabov, Mikhailov, Plekhanov, entre outros.
Negavam o caráter necessário do desenvolvimento capitalista na
Rússia, viam na comunidade agrária o embrião do socialismo e
acreditavam ser o campesinato e não o proletariado a principal
força revolucionária (TUARDOVSKAIA, 1978). A revolução
proletária, para Lênin, em oposição aos populistas, deveria partir
dos países onde o capitalismo encontrava-se mais desenvolvido e
onde existisse uma massa operária melhor organizada. De fato,
todos tinham como certo que uma revolução na Rússia não podia
e não seria socialista, pois condições para tal transformação não se
encontravam presentes num país camponês, sinônimo de pobreza,
ignorância e atraso e onde o proletariado industrial era apenas uma
minúscula minoria, mesmo que estrategicamente localizada. Os
próprios revolucionários observavam que a derrubada do czarismo
e dos latifúndios só poderia produzir uma "revolução burguesa"
(HOBSBAWM, 1998). A Rússia, portanto, segundo entendimento
de Lenin, era o país menos indicado para empreender a revolução
proletária, tendo-se em vista o fraco e lento desenvolvimento de
suas forças produtivas em relação a outros países:
73 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Quanto ao problema da lentidão ou rapidez


do desenvolvimento do capitalismo na Rússia,
tudo depende daquilo com que se compare esse
desenvolvimento. Se se compara a época pré-capitalista
da Rússia com seu período capitalista (e é justamente
essa comparação que deve ser feita para a correta
solução do problema), é forçoso reconhecer que, sob o
capitalismo, a nossa economia nacional se desenvolve
muito rapidamente. Mas se a comparação é feita entre
este ritmo de desenvolvimenro e aquele que seria
possível sob o nível atual da técnica e da cultura, deve­
se, em geral, reconhecer que esse desenvolvimento do
capitalismo na Rússia é realmente lento. E não poderia
ser diferente: nenhum país capitalista conserva tantas
instituições antigas, incompatíveis com o capitalismo,
retendo o seu desenvolvimento e agravando
infinitamente a situação dos produtores, que 'sofrem
tanto pelo capitalismo como pelo seu insuficiente
desenvolvimento' (LÊNIN, 1 982, p. 37 5).

A Rússia do final do século XIX se explica pelo anacronismo de


suas instituições e classes sociais. O grito de ordem da Internacional
Comunista de unir o operariado em um movimento comum não
deixou de ser ouvido pelo incipiente e pouco organizado movimento
operário russo dos centros marcadamente industriais. No entanto,
a necessidade de se buscarem melhores condições de existência era
sentida com muita intensidade pela população campesina que,
liberta dos laços servis, era expropriada de forma violenta pelos
latifundiários. Esta combinação de descontentamentos acabou por
conduzir à Revolução de 1 9 1 7 , sob a liderança do proletariado
enquanto classe politicamente organizada.
Interesses divergentes, portanto, estavam presentes na luta
revolucionária: o proletariado visando à socialização dos meios de
produção e da propriedade privada; o campesinato expropriado
visando à propriedade privada ou pequena propriedade. Este foi
um dos fatores que imprimiu à implantação do comunismo no
campo um caráter tão agressivo.
A previsão de Lênin, de que a Rússia participaria da revolução
sob a tutela dos países capitalistas mais desenvolvidos, revelou-se
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 74
2 - Da rev o l ução materia l à rev o l ução psi cológi ca •

equivocada quando, com o agravamento da crise devida à guerra


mundial, camponeses e operários se unem contra o governo
czarista. Enquanto nos países desenvolvidos, principalmente na
Inglaterra, observar-se-ia uma involução do movimento operário.
Hobsbawm ( 1 998) mostra quanto a Grande Guerra
generalizou o colapso das democracias liberais e exacerbou a crise
revolucionária. A Rússia, madura para a revolução social, cansada
da guerra e à beira da derrota, foi o primeiro regime da Europa
Central e Oriental a ruir sob as tensões da Primeira Guerra. O feito
extraordinário de Lênin foi transformar a anarquia e revolta popular
em poder Bolchevique, tendo claro que ali seria o início de uma
revolução que deveria ser expandida a todos os países da Europa.
Trapeznikov ( 1979) mostra que os anos de guerra conduziram a
fazenda camponesa à ruína, pois as medidas do governo afetaram
as forças produtivas do campo, subtraindo grande quantidade de
braços, forças de tração e matérias-primas.
As dificuldades econômicas encontradas pela população
campesina russa iam ao encontro das insatisfações do operariado
durante a Primeira Guerra, acirrando os ânimos contra o regime
czarista. Trotsky descreve a situação em que se encontravam as
cidades no período que antecede a Revolução:

O afluxo às fábricas de mão-de-obra pouco qualificada,


a corrida desenfreada para a obtenção de lucros de
guerra provocaram por roda a parte a deterioração
das condições de trabalho e ressuscitaram os mais
grosseiros processos de exploração. O valor do salário
era automaticamente reduzido pela agravação do
custo de vida. As greves de caráter econômico foram o
inevitável reflexo das massas, reflexo tanto mais intenso
quanto por longo tempo reprimido. Eram as greves
acompanhadas de meetings, de moções de ordem
política, de choques com a polícia e, freqüentemente,
de tiroteio, mesmo com vítimas (TROTSKY, 1980, p.
5 3).

A guerra e suas conseqüências devastadoras, para um país que


iniciava o desenvolvimento capitalista e lutava para abandonar
75 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

práticas ainda feudais no campo e na cidade, acabou por sublevar a


população contra duas forças que a oprimiam: o governo czarista e
o imperialismo capitalista. Observe-se a descrição de Trotsky sobre
a situação econômica da Rússia durante a guerra:

Viu-se a Rússia privada, no primeiro ano da guerra, de


uma quinta parte de seus recursos industriais. Cerca .de
50% da produção fora prejudicada pelas necessidades
do Exército e da guerra, sendo que, dessa percentagem,
7 5 % correspondiam aos tecidos fabricados no país.
Sobrecarregados de serviços, eram os transportes
incapazes de satisfazer às necessidades das fábricas, em
relação ao combustível e à matéria-prima. A guerra
não somente absorvia todos os recursos nacionais
em circulação, como também começava a dissipar
assustadoramente o capital fundamental do país
(TROTSKY, 1980, p. 5 5).

A especificidade do desenvolvimento capitalista na Rússia


determinou também a especificidade de sua revolução, que
combinou elementos de uma revolução burguesa com elementos
de revolução proletária. Para Hobsbawm ( 1998) ocorreu a união
do campesinato e do operariado por uma reivindicação comum: o
fim da guerra; mas, sob esta reivindicação coletiva, o que buscavam
os pobres da cidade era pão, os operários melhores salários e menos
horas de trabalho e os camponeses, terra. A proclamação do slogan
revolucionário "Pão, Paz e Terra" pelo partido bolchevique só fez
crescer o apoio popular e quando chegou a hora o poder não foi
tomado, mas sim "colhido" e o Governo Provisório, sem ninguém
para defendê-lo, dissolveu-se.
Trotsky é o formulador da lei do desenvolvimento combinado,
aplicável ao entendimento do processo revolucionário que se deu
na Rússia:

As leis da História nada têm em comum com os


sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é
a lei mais geral do processus histórico, evidencia-se com
maior vigor e complexidade nos destinos dos países
atrasados. Sob o chicote das necessidades externas,
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 76
2 - Da rev o l ução ma teria l à rev ol ução psicol ógica •

a vida retardatária vê-se na contingência de avançar


aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos
ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação
apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento
combinado, que significa aproximação das diversas
etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama
das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta
lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto
material, é impossível compreender a história da
Rússia, como em geral a todos os países chamados
à civilização em segunda, terceira ou décima linha
(TROTSKY, 1980, p. 25).

Esta combinação de fases diferenciadas foi o que permmu


também uma revolução combinada que se dirigia tanto contra os
resquícios do regime feudal representado pelo czarismo, quanto
contra o capitalismo imperialista. A luta era contra inimigos
internos e externos que impediam o desenvolvimento da Rússia e
condenavam a população àquela situação de penúria.
Com a Revolução de 1 9 1 7 , começam os problemas da
sociedade russa que iriam sugerir a teoria de Vygotski. A luta de
classes, de interesses antagônicos (burgueses e proletários), não
desaparece com a abolição da propriedade privada dos meios de
produção, ela metamorfoseia-se em cada etapa da construção do
socialismo russo.
O período que vai de fevereiro a outubro de 1 9 1 7 é marcado
pela tentativa de organização da sociedade pelo governo provisório,
representando interesses divergentes da burguesia, do proletariado
e do campesinato. A colaboração de parte do governo provisório
(Socialistas Revolucionários e mencheviques) com os interesses da
burguesia, principalmente no sentido de apoiar a continuidade
da guerra imperialista, conduziu à radicalização das posições
proletárias revolucionárias. Camponeses e soldados interessados
no acordo de paz constituíram a força social necessária que, unida
aó proletariado revolucionário, derrubou o governo provisório e
instaurou um governo forte, capaz de pôr fim à participação da
Rússia na guerra imperialista.
77 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

O amadurecimento das condições da revolução


proletária nas cidades e o começo de uma nova etapa
da revolução democrática no campo confirmam as
análises de Lênin que demostrara ser a Rússia o elo
mais fraco da cadeia imperialista e, portanto, uma
revolução proletária poderia obter a vitória devido
à explosiva combinação da exploração das massas
pelos proprietários rurais, capitalistas russos e capital
estrangeiro, e de uma opressão estatal que servia
simultaneamente aos interesses expansionistas do
imperialismo russo e às exigências da acumulação
primitiva. Esta combinação específica de exploração e
opressão era a causa da miséria de grandes camadas
populares e do profundo descontentamento de uma
grande parte da 'intelligentsia'. A guerra imperialista
levou ao extremo as contradições ligadas à situação
da Rússia e a experiência do governo provisório
demonstrou a incapacidade da burguesia e da pequena
burguesia de tirar a Rússia do beco sem saída em que
se encontrava (BETTELHEIM, 1976, p. 77).

A entrada dos camponeses expropriados e dos produtores


rurais, buscando o término da guerra e a partilha das terras, foi
o que permitiu o início de uma nova etapa da Revolução Russa,
significando a ruptura da aliança entre campesinato e burguesia, a
qual havia permitido a formação do governo provisório.
O campesinato, a partir do verão de 1 9 1 7 , rompe com a
burguesia ao iniciar as tomadas de posse das terras, principalmente
da Igreja e dos grandes proprietários rurais. Embora tais iniciativas
agredissem diretamente a questão da propriedade, ideológica e
politicamente, a luta revolucionária campesina permanecia nos
limites da exploração capitalista, pois visava à repartição das terras
para a exploração privada do solo.
O programa de Lênin, de empenhar o novo governo na
transformação socialista, era uma aposta na transformação da
Revolução Russa em revolução mundial, ou ao menos européia. A
princípio o governo bolchevique deveria "agüentar-se", mantendo
a produção e estimulando a revolução em outros países. Tal
revolução mundial não aconteceu e a Rússia Soviética foi condenada
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 78
2 - Da rev ol ução m a teria l à rev ol ução psicológi ca •

ao isolamento empobrecido e atrasado, em decorrência dos anos de


guerra civil e de intervenção estrangeira.
Diante da perda de regiões importantes pelo acordo de paz
imposto pela Alemanha, do caos da guerra civil sob intervenção
estrangeira, segundo Hobsbawm, o governo bolchevique não
podia definir estratégias ou perspectivas a longo prazo, devido
à necessidade de tomar decisões pragmáticas necessárias à
sobrevivência imediata e evitar situações de desastre. Ninguém
poderia dar-se ao luxo, durante a guerra civil, de medir as possíveis
conseqüências a longo prazo, das decisões e medidas que eram
tomadas emergencialmente. Somente depois descobriu-se que
tais medidas conduziram a sociedade russa para um lado muito
distante do que fora idealizado por Lênin para o socialismo, como o
Estado único de enormes dimensões da década de 20, empobrecido
e atrasado, mais do que na época do czarismo, e condenado ao
isolamento do mundo capitalista.
Este empobrecimento e atraso diz respeito, à princípio, às forças
produtivas. Esta situação só se agravou com os anos que se seguiram
à Revolução, devido à guerra civil e intervenção estrangeira que
ocasionaram grande destruição do patrimônio industrial e agrícola
russo. Além disso, a Rússia, país de grandes dimensões geográficas,
possuía centros altamente avançados nos níveis cultural: político,
econômico e industrial e, contraditoriamente, populações que
viviam em isolamento, em regiões remotas e distantes, com alto
índice de analfabetismo.
Depois de outubro, a sociedade russa se debateria mergulhada
nas contradições advindas do entrelaçamento de dois processos
revolucionários: o da revolução proletária e o da revolução
democrática burguesa. Entre essas contradições, sobressaíria a
existência de classes com interesses antagônicos mas, teoricamente,
com a mesma perspectiva em relação à construção de uma
sociedade socialista. Ainda que os capitalistas e proprietários rurais
tivessem perdido seus direitos de "dispor livremente" dos meios de
produção, pois as condições de utilização dos principais meios de
produção deixaram de ser diretamente submetidas às exigências
do capital, a luta de classes permanecia porque a relação burguesa
79 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

de produzir não fora inteiramente "abolida" . Em cada unidade de


produção os produtores inseriam-se no mesmo tipo de divisão do
trabalho, mantendo-se a separação entre trabalho intelectual e
manual, entre tarefas diretivas e executivas.

A inscrição material das relações de produção, na


divisão do trabalho e nos instrumenros de trabalho,
tem como conseqüência o fato de não ser suficiente
a dominação política de uma classe sobre as outras
para que ela transforme imediatamente as relações
de produção existentes. Ela só pode realizar essa
transformação destruindo e reestruturando, ou seja,
'revolucionarizando' o processo real de produção
(BETTELHEIM, 1976, p. 1 26).

Pode-se dizer que as relações capitalistas foram apenas


parcialmente transformadas, uma vez que as formas sob as quais
estas se manifestavam continuavam a reproduzir-se, como: a
moeda, o preço, o salário, o lucro etc. Tais formas não podiam ser
abolidas por decreto.
Nos anos que se seguiram à Revolução Socialista, não se pode
dizer que a aparência da sociedade soviética correspondesse à sua
essência, ou à essência do projeto coletivo que a impulsionou, pois
o fato de ter sido abolida juridicamente a propriedade privada,
não garantia que, automaticamente, as relações burguesas haviam
sido eliminadas. Esta contradição, intrinsecamente ligada à luta
de classes no interior da Rússia e ao período de reconstrução
da sociedade, que ora imprimia características burguesas, ora
socialistas, às relações de produção, será o fio condutor para a
análise da psicologia Vygotskiana.
Empreender o desenvolvimento do país de forma geral, isto
é, no campo e nas cidades, garantir o mínimo para a sobrevivência
de todos, passaria, necessariamente, pela industrialização intensa
e abrangente. A industrialização, por sua vez, dependeria do
avanço técnico e da qualificação dos trabalhadores recém-saídos
do campo.
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 80
2 - Da rev ol ução ma teria l à rev ol ução psicológi ca •

Formar indivíduos capazes de planejar ações, dominando a


totalidade do processo de trabalho, para encaixar-se em qualquer
etapa da produção, seria a possibilidade de se aproveitar toda a
mão-de-obra disponível. A história colocava para a sociedade
russa pós-revolucionária a necessidade de encontrar os meios para
sobreviver sem apoio e auxílio e convivendo, ainda, com ameaças
militares, políticas e econômicas constantes do ocidente. Um país
enorme em proporções geográficas, com grande atraso econômico
e cultural, arrasado pela guerra civil e pela guerra imperialista,
deveria transformar-se em um curto espaço de tempo em um
país capaz de produzir o suficiente para garantir a sobrevivência e
satisfação da população, sob pena de mergulhar na mais profunda
barbárie.

A necessidade de uma psicologia comunista

Uma das questões que chama a atenção quando se lêem


atentamente as obras de Vygotski é sua contundência e insistência
em superar a "velha psicologia" , postulando uma "nova psicologia"
que fosse capaz de eliminar a dicotomia entre corpo e mente e
realizar a síntese. Esta dicotomia foi historicamente o pomo da
discórdia entre as teorias psicológicas, justificando sua classificação
entre idealistas e materialistas. Vygotski parece perseguir o objetivo
de superá-la, trazendo para a Psicologia o método proposto por
Marx e Engels e construindo a ponte que eliminaria a cisão entre
a matéria e o espírito.
Com essa perspectiva, Vygotski revê as principais teorias
ligadas à "velha psicologia" mostrando seus pontos positivos e
negativos, e o faz mostrando os avanços e retrocessos, historicamente
determinados, como uma luta que se descola do mundo real e se
afirma no mundo das idéias e vice-versa. Opondo-se aos estudiosos
de sua época, ele procura demonstrar os elementos da crítica e da
análise das teorias existentes para construir uma nova psicologia.
81 • S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Este posicionamento fica evidente em seu texto O significado histórico


da crise da Psicologia. Uma investigação metodológica de 1 927 :

Ao invés de recorrer ao impressionismo e à


subjetividade inevitável em toda crítica, se guiará pela
certeza científica e pela veracidade. Desaparecerão
para ele (e esse será o primeiro resultado do novo ponto
de vista) as diferenças individuais. Compreenderá o
papel do indivíduo na história; compreenderá que não
se podem explicar as pretenções de universalismo da
reflexologia partindo de erros e opiniões pessoais, de
particularidades, da ignorância de seus criadores, ou
mesmo que não se pode explicar a revolução francesa
baseando-se na corrupção dos reis e da corte. Poderá
analisar em que medida o desenvolvimento da ciência
depende da boa ou má vontade de seus artífices,
o que se pode explicar em função dessa vontade e o
que, pelo contrário, deve ser explicado além dela, com
base nas tendências objetivas que atuam apesar desses
artífices. (. .. } Está claro que o que vai estudar, em lugar
do mosaico da boa e má vontade dos investigadores,
é a unidade dos processos de regeneração do tecido
científico em psicologia, que está condicionado à
vontade de todos os investigadores (VYGOTSKI,
1 99 1 , p. 292).

Vygotski deixa claro que, ao analisar as teorias psicológicas de


sua época, não tem como intenção realizar críticas a esse ou àquele
autor em particular, mas sim explicitar as tendências objetivas que
conduzem os postulados científicos. Para ele é na objetividade, nas
necessidades que a realidade impõe, de acordo com a organização
dos homens, que é possível entender as idéias, suas limitações e
contradições.

Por que deixa de existir a idéia como tal? Porque no


campo da ideologia rege a lei, descoberta por Engels,
da concentração de idéias ao redor de dois pólos - o
idealismo e o materialismo - que correspondem aos
dois pólos da vida social, das principais classes que
lutam. A natureza social das idéias se manifesta com
muiro mais facilidade em um fato filosófico que como
fato científico: acaba seu papel de agente ideológico
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 82
2 - Da rev o l ução ma teria l à rev o l ução psic o lógica •

oculto disfarçado de fato científico, e cai desmascarado,


começando então a participar como uma soma a mais
na luta de classes das idéias.Aqui, na qualidade de
pequena soma de uma enorme adição, se funde como
uma gota d'água no oceano e deixa de existir por si
mesma (VYGOTSKI, 199 1 , p. 272).

A cisao existente na psicologia, entre dois posicionamentos


aparentemente distintos, mostra que a discussão é ideológica
e não científica, no sentido de buscar a verdade, ou apreender
a natureza social das idéias. Neste sentido, a dicotomia entre
teorias materialistas e idealistas não só representaria, na sociedade
burguesa, a divisão entre duas classes que se opõem, como elas
(as classes) expressam a divisão, no processo do trabalho, entre o
pensar e o fazer, entre o interesse individual e a realização social.
A superação de tal cisão no mundo das idéias está condicionada
à superação dessa dicotomia na realidade objetiva. Dito de outra
forma, o enfrentamento desta dicotomia, no nível das idéias, estava
posto desde o século XIX; no entanto, apenas na Rússia do início
do século XX estava sendo enfrentada concretamente: a superação
de tal dicotomia era possível também na prática humana, através
do projeto coletivo comunista.
Enquanto subsistissem, no entanto, elementos da produção
burguesa, manter-se-iam as condições para a reprodução das
classes antagônicas e a possibilidade de que, sob este antagonismo,
ocorresse o fortalecimento desses elementos nas relações sociais,
consolidando os aspectos burgueses dos aparelhos ideológicos
e políticos e conduzindo à retomada e fortalecimento do
capitalismo.

A expropriação da burguesia não se identifica com


seu desaparecimento, porque o desenvolvimento
da propriedade estatal, mesmo sob a ditadura do
proletariado, deixa subsistir elementos de relações
capitalistas (que são modificadas apenas parcialmente).
Enquanto subsistem elementos capitalistas nas
relações de produção, subsiste também a possibilidade
de funções capitalistas, e a burguesia pode continuar
a existir sob uma forma modificada, especialmente
83 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

no seio dos aparelhos de Estado; ela assume, então,


a forma de uma burguesia estatal (BETTELHEIM,
1976, p. 1 27).

No período que vai de 1 9 1 7 a 1923, a classe burguesa,


amplamente alijada no aspecto político e econômico da iniciativa
privada, transformava-se, no entanto, numa burguesia estatal,
mostrando assim o reduzido grau de transformação no processo de
produção que as necessidades da sociedade russa determinavam.
A luta de classes não é eliminada com o término da guerra civil,
mas permanece enquanto permanecerem elementos da produção
burguesa. Vygotski, ao discutir criticamente as teorias psicológicas
de sua época, expressa esta luta traduzida entre uma visão de
homem (e de uma forma de ser do homem) antiga, que precisa ser
superada, e de outra nova que surge, a qual precisa ser construída
e consolidada.
Para entender melhor estes antagonismos, é necessário
compreender este período conturbado, denominado por Lênin
de "capitalismo de Estado", que abrangeu uma série de medidas
governamentais para consolidar o poder proletário e empreender
o caminho ao socialismo. Tais medidas, que podem ser resumidas
nas expropriações de um certo número de empresas industriais
e comerciais, na centralização do poder e na coordenação do
processo produtivo, tinham como objetivo enfraquecer econômica
e politicamente a burguesia e restabelecer a produção. Eles foram,
de acordo com Bettelheim ( 1976) tomadas porque os comitês de
fábrica não eram suficientes para organizar a produção, tratavam
cada fábrica como unidades de produção independentes, como
se fossem propriedades coletivas dos próprios trabalhadores,
determinando o que produzir, a quem vender e os preços dos
produtos. A necessidade de uma coordenação social da produção
era premente, para retirar as indústrias do caos e evitar a paralisação
da produção. O controle operário também mostrava-se incapaz de
assegurar a coordenação exigida pela grande produção industrial e
a situação de abastecimento das cidades e campos encontrava-se à
beira do colapso; apenas um direcionamento que partisse de uma
visão global da situação seria capaz de organizar a produção.
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 84
2 - Da rev o l ução ma teria l à rev ol ução psicol ógica •

Segundo Bettelheim, a partir de 1 9 1 8 , o Partido viu­


se obrigado, em conseqüência da pressão dos trabalhadores
e da hostilidade dos capitalistas industriais, a utilizar-se das
expropriações como arma na luta de classes, em uma proporção
que não correspondia à sua capacidade de organizar a produção
em novas bases, o que provocou uma crescente desorganização da
indústria. O emprego do controle operário e a criação do Conselho
Supremo de Economia Nacional pareciam as medidas adequadas
para adquirir a "competência" indispensável para a utilização social
dos meios de produção.
O Conselho Supremo de Economia Nacional tinha função
administrativa e poderes para confiscar, adquirir, seqüestrar
qualquer empresa ou ramo da produção ou comércio. Deveria
centralizar e dirigir o trabalho de todos os órgãos econômicos
e preparar as leis e decretos concernentes à economia, a fim de
submetê-los ao Conselho dos Comissários do Povo.
A este Conselho reintegraram-se importantes participantes da
burguesia, que passaram a ocupar cargos elevados devido ao seu
conhecimento técnico- administrativo. O conhecimento técnico
passa a ser valorizado em todos os órgãos estatais, principalmente
naqueles responsáveis pela coordenação e organização da
produção.
Observa-se, portanto, que as condições específicas criadas pela
Revolução, no âmbito da produção, determinaram, em grande
parte, a reinserção da burguesia nas mesmas atividades exercidas
anteriormente. Alguns membros desta intelligentsia penetraram
nos aparelhos administrativos do Estado, sobretudo nos da
área econômica, no novo sistema judiciário e na polícia política.
Ao mesmo tempo, parte da burguesia continuou a participar
ativamente de operações econômicas vantajosas, através de tráficos
ilegais, conservando uma força econômica que não poderia ser
negligenciada.
O processo de penetração de parte da antiga burguesia nos
aparelhos administrativos e econômicos do Estado continuou
durante toda esta fase e se fez em função de relações sociais objetivas,
85 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

que não puderam ser "abolidas" ou "destruídas" no decorrer de um


curto período e no estágio em que se encontrava a luta de classes.
A exigência concreta de se desenvolver a indústria de forma rápida,
tornando possível uma melhor distribuição de produtos, e o avanço
agrícola, diminuindo a escassez, não poderiam ser realizados sem
o conhecimento técnico aplicado à produção. Assim, ao mesmo
tempo que emerge uma burguesia estatal (ainda embrionária),
desenvolvem-se relações de distribuição favoráveis aos dirigentes
de empresas, organizadores dos ramos da indústria, engenheiros
e técnicos altamente qualificados, que, sem tais "concessões"
(diferenciações salariais, prêmios em espécie, cargos de chefia etc.)
por parte do Estado, recusavam seu envolvimento no processo.
Segundo Hobsbawm, o fato central era o de que o partido
bolchevique jamais havia esperado sobreviver em isolamento,
quanto mais tornar-se o núcleo de uma economia auto-suficiente.
Para eles, principalmente para Lênin, a Revolução Russa deveria
provocar a explosão revolucionária nos países industriais mais
avançados, onde estavam presentes as condições para a construção
do socialismo.

Quando ficou claro que a Rússia ia ser por algum tempo,


que certamente não seria curto, o único país onde a
revolução proletária triunfara, a política lógica, na
verdade a única convincente para os bolcheviques, era
transformar sua economia e sua sociedade atrasadas em
avançadas o mais breve possível. A maneira mais óbvia
de fazer isso que se conhecia era combinar uma ofensiva
torai contra o atraso culcural das massas notoriamente
.. escuras", ignorantes, analfabetas e supersticiosas com
uma corrida total para a modernização tecnológica e a
Revolução Industrial (HOBSBAWM, 1998, p. 367).

Este direcionamento conduziu ao planejamento, à rápida


industrialização e à prioridade dada à indústria pesada, que ocorreu
depois e durante a fase do "comunismo de guerra" . Isto levou
à nacionalização das indústrias e à divisão de terras, meio pelo
qual o partido bolchevique organizou sua luta de vida ou morte
contra a contra-revolução e a intervenção estrangeira, pois "todas
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 86
2 - Da rev ol ução materia l à rev ol ução psi col ógica •

as economias de guerra, mesmo em países capitalistas, envolvem


planejamento e controle pelo Estado" (HOBSBAWM, 1998, p.
268).
Pode-se dizer que a análise de Vygotski em relação à crise
da "velha" psicologia expressa a luta concreta pós-revolucionária
pela superação das relações capitalistas de produção. A revolução
socialista possibilitava a construção de uma "nova psicologia",
capaz de superar o antagonismo clássico entre materialismo e
idealismo, da mesma forma que o capitalismo seria superado pelo
comunismo. No entanto, como ainda permanecia a luta de classes
no interior da sociedade russa, permanecia a luta pela superação da
velha psicologia, que assumia um caráter cada vez mais agressivo no
mundo das idéias, tal como se fazia na vida prática a expropriação
da burguesia. A visão de homem unificado, uno e indivisível, só
poderia afirmar-se no terreno da prática humana, no interior da
sociedade russa, se houvesse a união de todos os homens para a
construção de um projeto coletivo também único, que sintetizasse
as necessidades de toda a população russa, o projeto comunista.
Para Vygotski, a natureza determina que o homem tenha
necessidades, e a história, por sua vez, determina quais serão estas
necessidades. Decorre, portanto, que o conhecimento científico é o
conhecimento da natureza, mas são as relações sociais engendradas
pelos homens em um determinado período que determinam a
forma de relação do homem com a natureza. Conseqüentemente,
a organização real dos homens determinará, em última instância,
quais idéias terão predominância e de que forma predominarão.
Partindo deste ponto de vista sobre o papel da ciência, Vygotski
passa a analisar a tendência predominante na psicologia de sua
época em tornar gerais e abrangentes as descobertas específicas e
particulares. Para ele, era necessária a criação de uma psicologia
geral que unificasse ou abarcasse os conhecimentos particulares e
específicos das diversas áreas relativas à psicologia:

Há um segundo ponto que nossa análise nos permite


estabelecer com certeza: o próprio fato de que a
psicologia teórica, e posteriormente outras disciplinas,
87 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

haviam desempenhado o papel de ciência geral está


condicionado, por um lado, pela ausência de uma
psicologia geral e, por outro, pela grande necessidade
que há desta, e de que sejam desempenhadas suas
funções para ser possível a investigação científica. A
psicologia está grávida de uma disciplina geral, mas
ainda não deu à luz.
( ... } Para a disciplina geral o objeto de estudo é o
geral, o que é próprio de todos os objetos da ciência
em questão. A disciplina se ocupa em princípio do que
é próprio dos grupos ou ainda de indivíduos dentro de
uma mesma categoria de objetos (VYGOTSKI, 199 1 ,
p . 265).

Para ele, a ciência geral surge da necessidade de unificar


ramos heterogêneos do saber, ou seja, quando disciplinas análogas
acumulam suficiente quantidade de material em domínios
relativamente distantes entre si, surge a necessidade de unificar
este material, de estabelecer e determinar a relação entre os
diferentes domínios e entre cada um deles e a totalidade do saber
científico. Esta é uma necessidade premente da psicologia, que
muitas vezes vinha generalizando o particular, como o que ocorreu
com a psicanálise, a reflexologia, a Gestalt e o personalismo.
Assim, a idéia de inconsciente, relacionada à sexualidade,
surgiu dos estudos de Freud sobre as neuroses e foi generalizada,
abrangendo a psicologia da vida cotidiana, a psicologia infantil,
a arte e diversos outros campos, transformando tudo em sexo
mascarado e disfarçado. O mesmo ocorreu com os estudos de
Pavlov sobre o reflexo condicionado. A salivação psíquica dos
pombos foi generalizada, tornando o mundo todo puro reflexo.
Também a psicologia da Gestalt generalizou os resultados da
investigação sobre os processos de percepção da forma:

Transformada finalmente em ideologia, a psicologia


da Gestalt descobre as gesralcs na física e na química,
na fisiologia e na biologia, e a Gestalc é estendida
até chegar a converter-se em uma fórmula lógica,
aparecendo como o fundamento do mundo; ao criar
o mundo, disse Deus: "que seja Gestalt'' e tudo se
converteu em Gestalt (VYGOTSKI, 199 1 , p. 275).
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 88
2 - Da rev ol ução m a teria l à rev o l ução psicol ógica •

O mesmo aconteceu com o personalismo. As investigações


da psicologia diferencial teriam se expandido para além de seus
próprios limites, incluindo no conceito de individualidade não
só o homem, mas também os animais e as plantas, "[. . . } e todo
o mundo se convertiria em personalidade. ( . . . } Resultou que as
coisas não existiam em absoluto. A coisa é unicamente uma parte
da individualidade" (VYGOTSKI, 1 99 1 , p. 276).
Em resumo, as idéias ou descobertas científicas particulares,
a princípio ligadas a necessidades humanas concretas, descolam­
se da realidade e alcançam o mais alto grau de abstração, onde
convertem-se em dogmas e ideologias sobre a natureza humana e
a relação homem - natureza.

Estes destinos, tão semelhantes como quatro gotas


da mesma chuva, arrastam as idéias pelo mesmo
caminho. O volume do conceito aumenta e tende para
o infiniro e, de acordo com a conhecida lei da lógica,
seu conteúdo tende com idêntica aceleração para zero.
Cada uma destas idéias é, no lugar que lhe corresponde,
extraordinariamente rica quanto a seu conteúdo, está
cheia de significado e sentido, está plena de valor e
é frutífera. Mas quando as idéias se elevam ao status
de leis universais valem o mesmo umas e outras, são
absolutamente iguais entre si, isro é, simples e redondos
zeros (VYGOTSKl, 199 1 , p. 276).

Um conceito, quando quer explicar tudo, acaba por não


explicar nada, tornando-se uma crença ou ideologia, quando está
descolado da realidade que o produziu, conclui Vygotski. Este
descolamento, segundo ele, determina a diferença entre a essência
e a aparência e a oposição entre teorias que têm em comum a
mesma raiz.
O nascimento da psicologia enquanto oencia, no final do
século XIX, teve como pedra angular a negação do espírito, da
alma, terminologia comumente utilizada nos estudos da natureza
humana pela filosofia. Mas, ao se desligar da filosofia, acaba negando
as concepções "metafísicas" que lhe eram intrínsecas, para buscar
explicações objetivas da natureza humana nas ciências naturais.
89 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Assim, o empirismo da psicologia nasce com um significado


puramente negativo.

E só com isso não pode unir nada. Empírica significa


em primeiro lugar: '"psicologia sem alma" (Langue),
psicologia sem metafísica alguma (Vedienski), psicologia
baseada na experiência (Hoffding). Não há necessidade
de esclarecer que estamos em realidade ante definições
de caráter negativo, que nada nos dizem sobre o que
trata a psicologia, de qual é seu significado positivo
(VYGOTSKI, 199 1 , p. 346).

Não adianta dizer o que a psicologia não é, ou o que não


pode ser: ela deve dizer o que na realidade é, raciocina Vygotski,
pois as ciências naturais, com as quais tanto a psicologia desejava
parecer-se, não falseavam sua essência. Se elas são essencialmente
materialistas, é porque partem da premissa de que a realidade existe
objetiva e regularmente fora do indivíduo e é cognoscível, e não
porque resolveram a questão da essência da matéria e do espírito.
Essa é a essência do materialismo, da perspectiva de Vygotski.
Enquanto as ciências naturais têm suas bases assentadas
em concepções materialistas, a psicologia as tem em concepções
idealistas. Ainda que a psicologia tenha tentado tornar-se uma
ciência natural, estudando fenômenos não naturais, suas diversas
teorias podem ser divididas em duas categorias: a psicologia
idealista e a científico-natural, "[ . . . ) uma ciência que subjetivizara
e outra que objetivizara o espírito, quer dizer, duas ciências"
(VYGOTSKI, 199 1 , p. 3 5 3).
No entanto, acrescenta, não existe sistema puramente
empírico em psicologia, todos vão além do empirismo, pois,
partindo de uma idéia negativa, não se chega a nada. "De fato,
todos os sistemas se vão enredando em suas conclusões e vão parar
de cheio na metafísica" (VYGOTSKI, 1 99 1 , p. 3 47).
O essencial é verificar o significado do conceito "empírico"
aplicado à psicologia, pois com ele a psicologia deseja situar-se
no grupo das ciências naturais. Depois de analisar o pensamento
de inúmeros teóricos onde aparece a grande contradição da
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 90
2 - Da rev o l ução materia l à rev o l ução psic ológica •

psicologia, conclui: ''A psicologia deseja ser uma ciência natural,


mas ocupando-se de coisas de natureza completamente distinta
daquelas de que se ocupam as ciências naturais" (VYGOTSKI,
199 1 , p. 3 48).
Ainda que as ciências naturais tenham uma premissa
materialista, elas revelam um matiz idealista, que a psicologia
aceita sem espírito crítico, ao seguir esta mesma premissa. Na
ânsia de tornar-se uma ciência objetiva, partiu da premissa de que
é suficiente observar e descrever os fenômenos, negando qualquer
interpretação ou explicação, considerada como subjetivismo. Esta
é, para Vygotski, a principal característica da psicologia descritiva
do século XIX. Existem duas tendências em litígio na psicologia,
mas que mantêm recônditas, por detrás das aparências, suas raízes
no idealismo.
A superação destas psicologias só seria possível com a
elaboração de uma "nova psicologia" que tratasse a relação homem
e natureza de uma perspectiva histórica, na qual o homem fosse
produto e produtor de si e da própria natureza. Caberia a esta
"nova psicologia" a tarefa histórica de superação deste dualismo,
mais condizente com o "novo homem" que se produziria na
sociedade comunista. A unidade, colocada como necessidade
da psicologia e da ciência em geral de sua época, só poderia ser
alcançada através de um método unificador. Significaria abandonar
as relações mecânicas, empíricas e simples, entre os fenômenos,
para compreender o homem como um ser complexo e dinâmico,
cujas relações estabelecidas com o meio determinam sua forma de
ser e de agir.
Esta psicologia, denominada por ele de psicologia geral,
teria uma base explicativa única para os fenômenos humanos; um
método que orientasse e fundamentasse a análise da realidade em
toda a sua complexidade, que buscasse as explicações nas relações,
nos elementos de ligação e não nas partes ou particularidades
isoladas. É importante assinalar que a criação desta psicologia
geral não seria uma questão de acordo entre as duas tendências,
mas de ruptura, de superação. Seria a criação do novo a partir e
contra os elementos antigos.
91 • 5 1 LV A N A C A LV O T U L E 5 K 1
• V Y G O T S K I

A idéia de que a psicologia geral eliminaria a dicotomia,


impedindo que os ramos de estudo envolvidos com as
particularidades se alçassem a explicar os fenômenos humanos
além dos seus próprios limites, ligava-se à concepção de que esta
nova psicologia deveria ter um método explicativo único norteador
em todos os ramos particulares. Este método explicativo deveria
ocupar-se, fundamentalmente, do que há de comum a todos os
homens.

A unidade se consegue mediante a subordinação


e o domínio, mediante a renúncia das disciplinas
particulares à soberania em favor de uma ciência geral.
[ . . } Por sorte que é a unidade que determina o papel, o
.

sentido e o significado de cada domínio isolado: isto é,


não só determina o conteúdo da ciência, mas também a
forma explicativa a adotar, o princípio de generalização
que com o tempo, à medida que evolui a ciência, se
converte em seu princípio explicativo (VYGOTSKI,
199 1, p. 267-268).

Para Vygotski, quando se busca um princ1p10 explicativo,


sai-se dos limites da ciência particular e se é obrigado a situar
os fenômenos estudados em um contexto mais amplo. Existe,
para ele, uma necessidade histórica de generalização e integração
em psicologia e em todas as ciências, mas esta não poderá ser
realizada por explicações particulares, fragmentadas, como
vinha acontecendo, sem transformar-se em ideologia, em crenças
desarticuladas da realidade, que é a maneira de ler a realidade
comum à sociedade burguesa. A ciência geral só pode existir a
partir das ciências particulares que nascem de necessidades práticas
e têm nelas sua validação, porém não é resultado de raciocínio
puramente lógico
Esse princípio explicativo, condutor da análise dos fenômenos
tanto no geral como no particular, só é possível de acordo com
uma metodologia científica que tenha base na história:

A regularidade na transformação e o desenvolvimento


das idéias, a aparição e a morte dos conceitos, inclusive
a mudança de categorizações etc., tudo isso pode
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 92
2 - Da rev o l uçã o ma terial à rev o l uçã o psico lógica •

explicar-se cientificamente se relacionamos a ciência


em questão: 1) com o substrato sociocultural da época,
2) com as leis e condições gerais do conhecimento
científico, 3) com as exigências objetivas que põe ao
conhecimento científico a natureza dos fenômenos
objeto de estudo no estágio atual da investigação.
Quer dizer, em última instância, com as exigências
da realidade objetiva que estuda a ciência em questão
(VYGOTSK.l, 199 1 , p. 270).

A crise das duas tendências explicativas, expressa em suas


contradições e limitações teóricas, evidenciava a impossibilidade
de explicar as novas transformações da realidade através das
concepções de homem comuns à "velha psicologia", e denotava
a necessidade de um novo método para estudar o homem, que
abrangesse as questões sociais, as relações entre os homens e a
capacidade de transformação destas relações.
Para ele, a Revolução decretou a crise das explicações
reducionistas em psicologia e impulsionou a criação da nova
pedagogia, pela necessidade da psicologia deixar de ser uma ciência
pura, desligada aparentemente das necessidades reais, e tornar-se
uma ciência capaz de solucionar o problemas postos pela prática
social.

Esta psicologia, que está chamada pela prática a


confirmar a veracidade do pensamento e que não trata
de explicar a psique como de compreendê-la e domina­
la, estabelece entre as disciplinas práticas e no seio da
estrutura da ciência uma relação total e essencialmente
distinta da que se dava na psicologia anterior. Nesta,
a prática era uma colônia da teoria, que dependia em
tudo de sua metrópole; a prática era uma conclusão,
um anexo, uma saída, em último termo, fora dos limites
da ciência; uma operação que se achava do outro lado
da ciência, que estava atrás dela, que começava onde
se considerava acabada a tarefa científica. O êxito, ou
o fracasso da prática não se refletiam em absoluto no
destino da teoria. Agora a situação é inversa; a prática
coloca as tarefas e é o juiz supremo da teoria, o critério
de verdade; dita como construir os conceitos e como
formular as leis.
93 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Isso nos leva diretamente ao segundo fato: da


metodologia. Por estranho, e paradóxico que pareça à
primeira vista, é precisamente a prática, como princípio
construtivo da ciência, que exige uma filosofia, isto é,
uma metodologia da ciência (VYGOTSKI, 1991, p.
3 56-357).

Assim, as necessidades da prattea social conduziriam o


desenvolvimento desta nova psicologia, unindo teoria e prática
e criando uma metodologia única. Os resultados dessa nova
psicologia na educação, no direito, no comércio, na indústria, na
vida social e na medicina seriam responsáveis pelo aperfeiçoamento
da psicologia e de suas concepções teóricas. "A vida necessita da
psicologia e de sua prática e a conseqüência deste contato com a
vida é esperar o auge da psicologia" (VYGOTSKI, 199 1 , p. 3 59).
Sua aplicação prática e sua correspondência às necessidades
sociais evitariam o perigo de a nova psicologia tornar-se
ideológica, descolada da realidade. Para Vygotski, não se trata de
pragmatismo simplesmente, mas de uma prática revolucionária e
transformadora. Além de constituir-se no único critério de verdade
da nova psicologia, o desenvolvimento da sociedade a impulsionaria
rumo a uma psicologia geral voltada à resolução dos problemas
humanos. É nessa vinculação da psicologia com a prática humana
que Vygotski encontra o significado da verdadeira ciência.
Esta idéia de aplicação prática da ciência na solução dos
problemas enfrentados em relação à construção do socialismo
é encontrada em vários autores que escrevem sobre a União
Soviética e em manuais de Economia Política russa, demonstrando
que o desenvolvimento do socialismo estaria ligado à revolução
científico-técnica:

As últimas descobertas da ciência e da técnica suportam


mudanças qualitativas nas forças produtivas e incidem
em todas as vertentes da produção material, ampliando
sensivelmente as possibilidades de seu incremento.
Assim, as descobertas no campo da estrutura atômica
e molecular da matéria, assentarão as bases para a
criação de novos materiais; os progressos da química
fizeram factíveis as transformações do petróleo e
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 94
2 - Da rev ol ução ma terial à rev o l ução psicológica •

do gás em plásticos e fibras sintéticas; o estudo dos


fenômenos elétricos nos corpos sólidos e dos gases
traduziu-se na criação da eletrônica; as investigações
da estrutura do núcleo atômico abriram o caminho
para o emprego na prática da energia atômica; o
desenvolvimento das matemáticas tem servido de base
para a criação dos meios de automatização da produção
e da gestão. Toda prova que tem surgido num novo
sistema de conhecimentos da natureza tem realizado
uma transformação radical da técnica, da tecnologia
e da produção, e tem reduzido a dependência de
seu crescimento às limitações condicionadas pelos
dotes fisiológicos do homem e seu meio natural
(RUMIÁNTSEV, A. et a!., 1982, p. 380).

Sob o socialismo, dar-se-iam as condições objetivas para


que a revolução técnico-científica seguisse uma orientação que
respondesse aos interesses do homem e da sociedade. Somente
o fomento acelerado da ciência e da técnica poderia cumprir as
tarefas finais de progresso social que conduziriam à construção da
sociedade comunista.
Em diversos momentos de seus escritos, Vygotski angustia­
se com os conceitos psicológicos das duas tendências, pela sua
falta de clareza. Ele demonstra quanto um determinado conceito
parece abranger tudo e, ao mesmo tempo, nada, tornando-o
inacessível, sobretudo quando se dá a mesma denominação para
coisas diferentes.
Vygotski escreve os textos que fazem parte das Obras escolhidas
no período de 1 924 a 1934. Grande parte deles, inclusive o que
aborda a crise na ciência psicológica, foi no período de vigência
da Nova Política Econômica (NEP), este plano econômico tinha
inicialmente como objetivo recuar do Comunismo de Guerra
para o Capitalismo de Estado, segundo palavras do próprio
Lênin, visando à reconstrução da sociedade e ao fortalecimento da
aliança entre campesinato e operariado, base para o comunismo.
Introduzida por Lênin em 192 1 a NEP foi abandonada pelo partido,
gradativamente, a partir de 1 927, após sua morte e em função da
crise. Seus escritos retratam as necessidades enfrentadas pelo povo
95 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

soviético neste período, as tentativas de se reconstruir a sociedade


sob as bases do comunismo e o enfrentamento das contradições
intrínsecas ao desenvolvimento deste projeto coletivo.
É comum que se considere a NEP apenas como uma política
econômica, o que seu próprio nome sugere, mas esta análise
acaba por mostrar-se superficial quando se leva em consideração
o movimento da sociedade e a luta de classes nela ainda presente.
As medidas inicialmente tomadas para executá-la, como o
restabelecimento de uma certa "liberdade de comércio", deixam
aos camponeses espaço maior do que durante o "comunismo de
guerra", como observa Bettelheim ( 1 976, p. 47):

Quando a guerra civil e a intervenção estrangeira


chegam ao fim, as obrigações do "comunismo
de guerra" deixam de ser aceitas pelas massas
camponesas. Estas exigem o abandono das requisições,
a instauração de um sistema fiscal estável, a liberdade
das trocas e o restabelecimento de trocas monetárias,
o que corresponde à forma de produção da exploração
agrícola. A aceitação destas exigências pelo poder
soviético constitui um dos aspectos essenciais da NEP.

Para Lênin, neste momento a NEP não era apenas uma


"reforma", mas era a restituição de uma aliança ativa entre
proletariado e campesinato, com o objetivo não só de assegurar
o restabelecimento da economia, como também de permitir a
caminhada ao socialismo, através da educação ideológica e política
das massas camponesas pelo proletariado e pelo desenvolvimento
generalizado de cooperativas agrícolas. Esse plano não era resultante
de mera coerção econômica e política, mas respondia aos próprios
interesses das massas camponesas.
O objetivo mais imediato da NEP era vencer a crise tirando o
país da fome e do caos econômico em que se encontrava, fruto da
guerra imperialista, dos três anos de guerra civil e da intervenção
estrangeira. A recomposição da produção era condição necessária
para a consolidação do poder político do proletariado e estes
objetivos foram plenamente alcançados durante os primeiros anos
da NEP. Nesse período houve um crescimento sem precedentes
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 96
2 - Da rev o l ução m a teria l à rev o l ução psicol ógica •

da produção agrícola e industrial, chegando a ultrapassar o


crescimento dos países europeus.
Para Hobsbawm ( 1 998) a NEP teve brilhante êxito na
restauração da economia soviética a partir da ruína de 1 920. Em
1 926 a produção industrial soviética havia recuperado parte de seu
potencial do pré-guerra. No entanto, a URSS ainda continuava
predominantemente rural, apenas 7 , 5 % da população estava
empregada fora da agricultura. Enquanto não houvesse um
desenvolvimento industrial em larga escala, pouco havia para os
camponeses comprarem nas cidades, a fim de tentá-los a vender
seus excedentes, ao invés de comê-los e bebê-los nas aldeias.
Outro objetivo da NEP era o desenvolvimento rápido das
trocas entre cidade e campo, o que constituiria a base material
da aliança operário-camponesa, citada por Lênin. Reconstitui-se
o sistema monetário e financeiro para regular as trocas efetuadas
internamente entre cidade e campo, como também para conduzir
à reinserção da Rússia no comércio exterior de importação e
exportação de produtos. As empresas estatais passam a ter
"autonomia financeira" e seus objetivos passam a ser a obtenção
de lucros. Parte desses lucros seria destinada ao Tesouro de Estado,
parte aplicada em reservas para o desenvolvimento da empresa e
compra de equipamentos e parte no pagamento de porcentagem
aos ll!tmbros da administração e prêmios aos empregados. Se as
empresas não obtivessem lucros ou, no mínimo, equilíbrio entre
receitas e despesas, teriam que fechar as portas. Para Lênin era
necessário o desenvolvimento simultâneo da agricultura, da
indústria leve e da indústria pesada e, portanto, o critério de
"rentabilidade" não poderia predominar.
Sob a base da "autonomia financeira" , as empresas estatais
deveriam assumir as seguintes características de funcionamento:
ser dotadas de fundos próprios que constituíam sua dotação em
capital; comprar suas matérias primas e combustíveis, bem como
outros meios de produção e vender seus produtos inserindo-se em
relações mercantis e monetárias; ser diretamente responsável pelo
emprego de seus trabalhadores e tomar decisões quanto ao número
de empregados e às condições de recrutamento e dispensa; seus
97 • S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

financiamentos deveriam depender de suas receitas e do sistema


bancário e suas possibilidades de desenvolvimento deveriam
depender das capacidades de autofinanciamento e da capacidade
de pagamento dos empréstimos requisitados (BETTELHEIM,
1976).
O impulso econômico ocorrido nos primeiros anos da NEP
foi estabelecendo uma ilusão otimista de que o sistema que
se constituíra desde 1924 seria capaz de dominar os aspectos
complexos do desenvolvimento econômico, inclusive aqueles
derivados das contradições de classe. Assim, quanto mais se
desenvolviam aparelhos econômicos separados das massas, cujas
medidas, que a elas interessavam diretamente, eram tomadas
sem seu conhecimento, mais se desenvolvia a crença de que tais
organismos seriam capazes de promover o desenvolvimento da
economia.
A partir de 1927 o domínio dos preços se reduz, uma parte
dos armazéns passa a não ser regularmente abastecida e ocorre
falta de mercadorias, enquanto os preços de varejo do comércio
privado aumentam.

A alta dos preços, a deterioração do abastecimento


da população, sobretudo das massas camponesas, a
continuaçãodainflaçãoetc.,indicamquesedesenvolvem
práticas que correspondem a um abandono de fato da
NEP e cujo prosseguimento conduz finalmente ao
seu completo abandono. Entre estas práticas figura
uma política de acumulação e de distribuição dos
investimentos que culmina em desequilíbrios duráveis
atingindo cada vez mais o campesinato. Assim, uma
linha política nova abre pouco a pouco seu caminho,
e se inscreve nos planos econômicos então elaborados
(BETTELHEIM, 1976, p. 67).

A NEP caracterizou-se, como já foi dito, pelo desenvolvimento


aberto das relações mercantis e também pelas possibilidades de
atividades concedidas, dentro de determinados limites, às empresas
individuais e capitalistas privadas, bem como pela "autonomia
financeira" das empresas de Estado. Juntamente com estas
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 98
2 - Da rev o l ução materi al à rev o l ução psi cológica •

orientações, o governo buscava adotar medidas que obstruíssem


as vias de desenvolvimento capitalista, constituindo órgãos
encarregados de coordenar as diferentes atividades econômicas,
através da elaboração de planos globais e específicos. A função
principal destes órgãos de planejamento seria política, preparando
e acompanhando as intervenções do governo na reprodução/
transformação das condições materiais e sociais da produção.
Segundo Bettelheim, embora existisse por parte do governo
o interesse em coordenar o desenvolvimento dos diferentes ramos
da economia, através de uma direção centralizada e planificada, a
ausência de participação efetiva das massas na elaboração dos planos
e de uma linha política firmemente traçada repercutiu na elaboração
dos documentos pelos órgãos estatais de planejamento.
Esta ausência de participação das massas nas decisões políticas
e econômicas tomadas pelos órgãos estatais foi gerando um
abandono gradativo dos encaminhamentos propostos por Lênin
no início da NEP. Com a morte de Lênin, em 1924, a aliança
entre campesinato e operariado vai se enfraquecendo cada vez
mais, até desembocar na crise da "coleta" de cereais de 1927 . A
"coleta" serve para designar as operações de compra de produtos
agrícolas realizadas pelos órgãos econômicos do Estado e pela rede
de cooperativas oficialmente reconhecidas. O bom andamento
da "coleta" era um sinal manifesto da consolidação de uma das
bases materiais da aliança operário-camponesa, que assegura o
abastecimento das cidades e da indústria, a estabilidade de preços
e o equilíbrio das trocas com o exterior, pois a exportação de cereais
era uma das principais fontes de divisas para o financiamento das
importações, contribuindo para o desenvolvimento da indústria
(BETTELHEIM, 1 976).
No período da NEP, a "coleta" efetuou-se em concorrência
com as operações de compras efetuadas pelo "setor privado".
A NEP determinava que a coleta deveria ser uma forma de
comercialização e não de requisição ou imposição ao campesinato,
pois isto destruiria a aliança política. Esta deveria ser efetuada a
preços a que os camponeses aceitassem vender e abrangeria apenas
as quantidades que estivessem prontas para entrega. Seu objetivo
99 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

era obter por parte do Estado um domínio crescente do mercado e


eliminar, gradativamente, o comércio privado. Até o ano de 1 927 o
comércio estatal e cooperativo ocupou posição predominante sem
recorrer de forma ampla a medidas de interdição ou coercitivas.
Com a crise da "coleta", produtos que desempenhavam papel
essencial na alimentação das cidades e nas exportações russas
começaram a desaparecer, ameaçando o abastecimento e os planos
de exportações, obrigando o governo a recorrer aos embargos e
requisições, medidas consideradas, a princípio, como provisórias
e excepcionais e aplicadas, principalmente, aos camponeses ricos
(kulaks), responsáveis pela retenção de grãos para pressionar a
elevação de preços. Tais medidas, inicialmente dirigidas apenas
aos kulaks, não foram capazes de permitir aos órgãos de coleta
realizar os planos de exportação e abastecimento interno e passam
a atingir os camponeses médios (grande maioria) e parte dos
camponeses pobres, proliferando a crise de uma região a outra
e provocando descontentamento de grande parte das camadas
camponesas. É importante ressaltar que durante a NEP grande
parte da produção agrícola devia-se principalmente à atividade
dos camponeses que trabalhavam na exploração de suas terras
individualmente, produziam para suas necessidades e vendiam
o excedente no mercado interno. As fazendas do Estado e as
explorações agrícolas coletivas (kolkhozes) desempenhavam papel
menor (BETTELHEIM, 1976).
A crise da "coleta" de 1 927-28, no entanto, não conduz
a uma retificação da política agrícola, demonstrando o
redirecionamento político do partido e um abandono da aliança
proletário-camponesa e, conseqüentemente, das determinações da
NEP. Mantém-se a ênfase na industrialização em grande escala,
exigindo-se que a "coleta" fosse mantida em um nível elevado e a
qualquer custo, mediante a utilização das "medidas excepcionais"
em larga escala. Como o programa de industrialização apoiava­
se, fundamentalmente, nas importações de produtos estrangeiros,
encontrou dificuldades devido ao fraco crescimento das exportações,
fazendo com que as "medidas" fossem utilizadas também com
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • l 00
2 - Da rev oluçã o materia l à rev ol uçã o psi c ológica •

o objetivo de correção do comércio exterior ou para manter o


equilíbrio da balança comercial.
Assim, em oposição às medidas tomadas pelo partido
desenvolve-se a resistência camponesa: diminuição das superfícies
de plantio, matança de parte do gado, reações ofensivas, levantes
camponeses e atentados. Para resolver o problema o Partido passa
à coletivizacão acelerada e forçada, que determinou a ruptura
definitiva da aliança proletário-camponesa e o aumento da crise
agrícola (BETTELHEIM, 1976).
Essas contradições enfrentadas pelo povo soviético aparecem
na teoria vygotskiana como luta concreta de duas tendências em
constante litígio, uma que quer afirmar-se na realidade objetiva
e, por decorrência, no mundo das idéias, e outra que se mantém
por força das relações de produção capitalista ainda presentes. A
crise da psicologia, descrita por ele, reproduz a luta concreta entre
a velha e a nova sociedade, e a confusão de conceitos, exposta
em diversos textos, exterioriza a falta de clareza do período de
transição, em que a forma de sociedade anterior não desapareceu
ainda e a nova sociedade não se firmou, permanecendo em combate
relações e concepções, no seio de uma mesma sociedade. É certo
que a crise metodológica que a psicologia enfrenta, no início do
século, não foi observada apenas por Vygotski; outros autores
perceberam as tendências antagônicas presentes na sociedade
capitalista materializando-se em duas concepções de homem
também antagônicas. No entanto, a Vygotski foi possível a síntese
destas tendências, na perspectiva materialista-histórica, por estar
vivendo a tentativa de superação das classes antagônicas no interior
de sua própria sociedade, objetivo do projeto coletivo da sociedade
comunista em construção.
Na tentativa de entender o que ocorre, a partir de seu campo
específico de conhecimento, Vygotski critica não só a psicologia
ocidental que, por possuir suas bases assentadas na realidade
burguesa, encontra aí os limites de suas interpretações; mas
também faz crítica à psicologia marxista em processo de construção.
Esta, de sua perspectiva, não passava de uma colcha de retalhos de
citações de Marx e Engels superpostas às análises de fenômenos
101 • S I LV A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

psicológicos realizadas pela psicologia ocidental, o que acaba por


desembocar no ecletismo tão comum à psicologia burguesa.

Sua análise resulta difícil, porque não dispõe ainda de


sua metodologia e trata de encontrá-la já terminada,
buscando-a em expressões casuais dos fundadores do
marxismo. Mas querer encontrar em obras alheias
uma fórmula terminada da psiquê significaria criar "a
ciência antes da própria ciência". Podemos dizer sobre
esses intentos que a heterogeneidade do material, sua
incoerência, a variação que sofre o significado da frase
fora do contexto, o caráter polêmico da maioria das
opiniões - exatas só na negação dos pensamentos falsos,
mas vazias e gerais no sentido da definição positiva das
tarefas - não permitem de modo algum esperar desse
trabalho outra coisa que um amontoado de citações
mais ou menos casuais e sua interpretação escolástica
(VYGOTSKI, 1 99 1 , p. 366).

Para Vygotski, a psicologia marxista não pode e não deve


construir-se sobre fragmentos de autores, pois assim não passaria
de uma cópia do que a psicologia burguesa vinha fazendo, isto
é, amontoando inúmeros fragmentos e citações e eliminando,
ideologicamente, as contradições contidas nos autores e,
conseqüentemente, sua origem histórica.
Para o ecletismo tudo se aproxima a tudo, é uma questão de
substituição de termos para adequar uma teoria a outra e assim,
aparentemente, os autores passam a falar a mesma linguagem ou
discutir as mesmas coisas.

Quem não investiga nem descobre algo novo não pode


compreender por que os investigadores introduzem
novas palavras para novos fenômenos. Para quem
não tem um ponto de vista próprio sobre as coisas e
aceita o mesmo de Espinosa e de Husserl, de Marx e
de Platão, considerar a substituição de um termo como
algo essencial é uma pretensão vã. Quem assimila
ecléticamente - por ordem de aparição - todas as
escolas, correntes e tendências existentes na Europa
Ocidental necessita de uma linguagem confusa,
indeterminada, niveladora, cotidiana, por exemplo:
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • l 02
2 - Da rev o l ução materia l à rev o l ução psicológica •

"como se diz na psicologia tradicional" (VYGOTSKI,


199 1, p. 326).

Desse modo, para Vygotski, a escolha de palavras para


designar um fato não é um processo pedante ou aleatório por
parte do investigador, está ligado ao processo de investigação
e à significação dada ao fato. "Podemos dizer de antemão que
a palavra, ao nomear um fato, proporciona ao mesmo tempo a
filosofia do fato, sua teoria, seu sistema" (VYGOTSKI, 199 1 ,
p . 326). A substituição de termos pelos ecléticos, aproximando
teorias que dizem coisas diferentes, significa eliminar as diferenças
e contradições das teorias, as quais expressam as diferenças e
contradições da própria realidade.
Ele reconhece que "a Revolução arranca sempre das coisas os
nomes velhos, tanto na política quanto na ciência" (VYGOTSKI,
199 1 , p. 327); defende, entretanto, que a transformação não se
faz apenas nos "nomes" e sim nas relações entre as coisas, na forma
como se explicam estas relações e no seu conteúdo. O importante
é conhecer não apenas a diferença terminológica entre os autores,
mas o valor do termo dentro do sistema conceptual de cada autor.
É este sistema, que está ligado ao olhar que o pesquisador lança à
realidade objetiva, que lhe conferirá significado.
Pode-se entender a sua preocupação com a origem social da
linguagem, no sentido de fazer chegar ao outro uma mensagem,
um significado. Se este significado se perde, se uma mesma palavra
pode significar infinitas coisas ou relações, perde-se a função
de comunicação e a linguagem se torna autista (só quem fala
compreende) ou restrita a um pequeno grupo que compartilha
os mesmos significados. Portanto, para entender as palavras, para
atingir seu significado, é preciso recuperar sua historicidade, isto é,
quais relações homem-natureza elas refletem. Sem esta concretude,
as palavras não passam de abstrações.
Os conceitos psicológicos das teorias que ele critica encontram
seus significados numa determinada concepção de homem e
natureza intrínseca a uma forma de organização da sociedade e ao
conteúdo das relações por ela engendrado. Assim, esta forma de
l 03 • S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

análise pode e deve ser estendida à sua própria teoria, o que grande
parte das leituras atuais de Vygotski não tem realizado.
As tendências antagônicas, ou seja, a luta de classes,
permanecem durante a NEP e tornam-se acirradas após a crise da
"coleta" de 1 927 ; as contradições tornam-se evidentes exprimindo
as dificuldades de se construir o socialismo mesmo em um só país. A
sociedade soviética estava sendo "forçada" a saltar a etapa de pleno
desenvolvimento capitalista para a organização do socialismo.
Estimular e organizar a produção fora dos moldes capitalistas
era um desafio, principalmente com a permanência de relações
burguesas no interior da sociedade. Vygotski parece apontar
quanto a mudança terminológica é insignificante: de nada adianta
trocar o nome capitalismo por socialismo, se as relações sociais que
dão significado a estas concepções não forem transformadas.
Quando ele se refere à "velha psicologia" como psicologia
burguesa, está referindo-se à psicologia que reflete e referenda
as relações burguesas, isto é, que explica o homem burguês, seus
sentimentos, seu funcionamento mental e sua ação no mundo.
Quando se coloca na luta com o objetivo de superar a psicologia
burguesa, posiciona-se no sentido de mostrar a necessidade
de superação das relações burguesas no interior da sociedade,
as quais dão base material a esta psicologia. A construção da
sociedade comunista e, conseqüentemente, do homem comunista,
necessitaria de uma nova psicologia que fosse capaz de explicar o
funcionamento mental deste novo homem.
Coerente com suas concepções, Vygotski postula que, estando
a sociedade comunista em construção, não é possível existir uma
psicologia comunista acabada. Esta só será capaz de se completar
com a existência real da sociedade comunista, com a concretização
desta forma de organização social e com a transformação das
relações sociais.

Necesitaremos termos distintos para outra coisa:


para a divisão sistemática, moderadamente lógica,
metodológica, das disciplinas dentro da psicologia:
falaremos assim da psicologia geral e infantil, da
psicologia animal e da psicopatologia, da psicologia
S I LV A N A C A LV O T U L E S K I • 1 04
2 - Da rev ol ução m a terial à rev o l ução psicológica •

diferencial e comparada. Psicologia será o nome comum


de toda uma família de ciências; porque nossa tarefa não
consiste, em absoluto, em diferenciar nosso trabalho de
todo o trabalho psicológico do passado, mas em uni-lo
em um só conjunto sobre uma base nova com tudo o
que tem sido estudado cientificamente pela psicologia.
Não queremos diferenciar nossa escola da ciência, mas
diferencia-la do que não é científico, a psicologia da
não-psicologia. Essa psicologia de que falamos não existe
ainda; há de ser criada, e não por uma só escola. {...} Com
esse nome entrará nossa ciência na nova sociedade, no umbral
do qual começa a estruturar-se. Nossa ciência não podia nem
pode desenvolver-se na velha sociedade. Ser donos da verdade
sobre a pessoa e da própria pessoa é impossível enquanto a
humanidade não seja dona da verdade sobre a sociedade e da
própria sociedade. Pelo contrário, na nova sociedade, nossa
ciência se achará no centro da vida. "O salto do reino da
necessidade ao reino da liberdade" colocará, inevitavelmente,
a questão do domínio de nosso próprio ser, de S11bordiná-lo a
nós mesmos. [. ..} Será, com efeito, a última ciência do
período histórico da humanidade, ou a ciência da pré­
história dessa humanidade. Porque a nova sociedade
criará o homem novo (VYGOTSKI, 199 1 , p. 406,
grifo nosso).

Em outros escritos, como "Psicologia geral e experimental",


''A introspecção e o método da psicologia", "Princípios de ensino
baseados na psicologia" e "Ensaio sobre o desenvolvimento
espiritual da criança", ele argumenta que na transição para uma
psicologia comunista, a psicologia burguesa deveria ser utilizada
com restrições. A nova psicologia não poderia existir, porque não
existia o novo homem na realidade da sociedade soviética. As
relações entre eles pautavam-se mais pela prática burguesa do que
pela prática comunista, existindo apenas a possibilidade de que este
novo homem emergisse com a consolidação da nova sociedade.
A eliminação da economia capitalista e a criação da socialista
não se fazem por assalto ao poder político pelo proletariado, como
assinala Lênin: a meta de construção do socialismo

[. ..} exige um período de transição bastante grande do


capitalismo ao socialismo [ .. .} porque se necessita de
1 05 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

tempo para introduzir mudanças radicais em todos os


domínios da vida e porque a imensa força do hábito
de dirigir de modo pequeno-burguês e burguês a
economia só pode superar-se em uma luta extensa e
tenaz" (ln: RUMIÁNTSEV, 1982, p. 385-386).

A duração do período de transição dependeria das condições


históricas concretas, isto é, do nível das forças produtivas, do
grau de desenvolvimento dos diversos tipos de propriedade, da
correlação das forças de classe e do grau em que a velha ideologia
perdura na consciência da população. Seriam importantes também
as condições externas, como o desenvolvimento de um sistema
socialista mundial, o crescimento sustentado de sua força e poderio
e o fortalecimento e ajuda mútua entre os estados socialistas.
A psicologia comunista só seria uma realidade a partir
da consolidação do verdadeiro comunismo, isto é, a partir da
eliminação das relações burguesas na produção. Qualquer período
de transição, no entanto, caracteriza-se pela coexistência de duas
tendências antagônicas no interior da sociedade, uma que luta
para não desaparecer e outra para se consolidar. A nova psicologia
deveria aproveitar os avanços da psicologia burguesa com o objetivo
de superá-la durante este período.
A impossibilidade de existência, ainda, de uma psicologia
comunista explica a quantidade de livros ocidentais traduzidos na
Rússia após a revolução, ainda que, em muitos deles, tivesse sido
feita triagem dos conteúdos, ou elaborados prefácios pontuando­
se a forma como deveria ser compreendido o conteúdo ali contido,
como no Prólogo ao livro de A. F. Lazurski Psicologia geral e
experimental, escrito pelo próprio Vygotski em 1 924:

É precisamente este o fim prático da nova edição,


de não se estar obrigado a limitar-se a reproduzir o
livro cal e como escava escrito pelo próprio autor,
mas submetê-lo a certa redação crítica (. .. }. O presente
intento deve ser considerado necessariamente como uma solução
provisória, capaz de proporcionar um manual temporário
de caráter transitório, mas não resolve de modo algum por
completo e de forma definitiva o problema da criação de um
novo manual que responda a todas as exigências que coloca o
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • l 06
2 - Da rev o l ução ma teri a l à rev o l ução psico lógica •

atual estado da ciência. Esse manual de novo cunho é coisa do


futuro (VYGOTSKI, 199 1 , p. 24, grifo nosso).

Em seguida a essa advertência, Vygotski chama a atenção


para as correções necessárias ao manual de Lazurski, retomando
a análise das duas tendências em psicologia e a necessidade de
superação de ambas, pela nova psicologia. Explicita também,
no final deste escrito, os conceitos que se dedicará a sistematizar
em outras obras, dando os primeiros passos para a construção da
psicologia comunista.

Para nós não há dúvida que na nova psicologia todos os


conceitos, classificações, terminologia, todo o aparato
científico da psicologia empírica serão revisados,
reconstruídos e criados novamente. É indubitável que
muito do que aqui ocupa o primeiro lugar ocupará o
último. A nova psicologia considera os instintos e os impulsos
como o núcleo fundamental da psiquê e provavelmente não
os estudará na última parte do curso. Também evitará a
análise atomística, dispersa, de fragmentos isolados
da psiquê, como a que decompõe o comportamento
do indivíduo na psicologia mosaica. Mas ainda não foi
criado o novo sistema, não nos fica outro remédio que aceitar
temporariamente, mesmo que de forma crítica, na ciência e
no ensino, o antigo aparato da ciência, recordando que este é
o único procedimento para poder incorporar à nova ciência o
incontestável valor das observações objetivas, os experimentos
exatos acumulados ao longo de um trabalho secular da
psicologia empírica. Só há que recordar a cada momento a
convencionalidade desta terminologia, o novo ângulo que deve
ser adotado em cada conceito e palavra, o novo conteúda que
inclui. Não se deve esquecer nem um minuto que cada vocábulo
da psicologia empírica é 11m jarro velho que deve encher-se com
vinho novo (VYGOTSKI, 199 1 , p. 36, grifo nosso).

Em seu texto "O problema do desenvolvimento na psicologia


estrutural. Estudo crítico" (ln: Obras Escogidas, Vol. I), escrito em
1934, recupera, com base na crítica às teorias ocidentais traduzidas,
a necessidade da construção da psicologia unificadora, capaz de
promover a integração do homem, em seu aspecto objetivo e
1 07 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

subjetivo, físico e psíquico, ao projeto coletivo de construção de


uma nova sociedade.
Este período já é marcado pela vigência dos planos qüinqüenais
de desenvolvimento, implantados por Stálin e que impuseram a
coletivização no campo de forma brutal, com o objetivo de reverter
a crise que se estendeu de 1 927 a 1 929. As mesmas questões
abordadas por Vygotski durante o período da NEP são retomadas
em 1934, como um apelo à construção do verdadeiro homem
consciente de seu papel histórico.
No texto "A introspecção e o método da psicologia", de 1 926,
introdução ao artigo de K. Koffka, Vygotski tem claro quão difícil
é a tarefa de realizar a transição para uma nova sociedade, mesmo
que executada com plena consciência e por um ato coletivo:

Os aliados de antes na guerra comum contra


o subjetivismo e o empirismo se converterão,
possivelmente amanhã, em nossos inimigos na luta
pela afirmação dos fundamentos de base da psicologia
social do homem social, por liberar a psicologia do
cativeiro biológico e por devolver-lhe o significado
de ciência independente, e deixar de ser um dos
capítulos da psicologia comparada. Em outras palavras,
quando passarmos a construir a psicologia como ciência do
comportamento do homem social e não do mamífero superior,
se contornará claramente a linha de discrepância com nosso
aliado de outrora (VYGOTSKI, 199 1 , p. 6 1 -62, grifo
nosso).

E repete no prefácio do livro de A. W Leontiev, Desenvolvimento


da memória, de 193 1 :

Qualquer que seja a futura psicologia, não poderá


ser em nenhum caso urna nova continuação direta da
antiga. Por isso, a crise significa um ponto de virada
na história de sua evolução, e sua dificuldade radica-se
em que se apresentam entrelaçadas em urna caprichosa
e complicada madeixa as diversas linhas da psicologia
passada corno as da futura, de modo que a tarefa de
desembaraçá-las apresenta muitas vezes enormes
dificuldades e cobra urna investigação histórica,
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 08
2 - Da rev ol ução materia l à rev ol ução psicológica •

metodológica e crítica dedicada especificamente a este


problema (VYGOTSKI, 199 1 , p. 1 1 1).

Afirma também, com redobrada força, no prólogo à versão


russa do livro de E. Thorndike de 1926, Princípios de ensino baseados
na psicologia :

Se no campo dos conhecimentos teoncos está se


produzindo uma transformação radical das velhas
concepções e idéias e uma reestruturação fundamental
de conceitos e métodos, nas disciplinas aplicadas, tanto
quanto nas ramificações do tronco geral, são também
inevitáveis os mesmos processos, sutis, mas frutíferos,
de destruição e reconstrução da totalidade do sistema
científico. Poderão atrasar-se, mas não deixarão de
produzir-se. [.. } Por isso agora, q11ando não se tem levado
.

a cabo esta revisão, reveste-se de maior importância contar


com livros adeq11ados q11e possam ser tttilizados neste período
revolttcionário de transição, no qttal todo o anterior está
irremediavelmente qttestionado e já não se pode tttilizar,
mas ainda não foi criado o novo capaz de mbstitttí-lo
(VYGOTSKI, 1991, p. 143, grifo nosso).

Nos três últimos trabalhos acima citados, Vygotski analisou


os estudos de Bühler, de Kõhler e de Koffka (psicólogos alemães
fundadores da linha Gestalt em psicologia ), de modo a chamar
a atenção para as questões que deveriam ser incorporadas
na construção da nova psicologia e aquelas que deveriam ser
rejeitadas.
Centra sua crítica a esses autores principalmente na comparação
que fazem entre o homem e o macaco, reduzindo o comportamento
humano ao comportamento animal. Para ele era necessário mostrar
as semelhanças entre ambos, mas, principalmente, deviam-se
pontuar as diferenças, como se observa nesse excerto da introdução
à versão russa do livro de. Bühler Ensaio sobre o desenvolvimento
espiritual da criança, de 1930:

É evidente que, ao não se ter em conta as


influências externas, do meio, das leis atuais sobre o
desenvolvimento do homem, não é possível diferenciar
1 09 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

as formas inferiores e das formas superiores da conduta


e pensamento, entre os fatores de desenvolvimento
biológicos e sociais que são próprios, específicos de
uma criança de uma determinada época ou classe
social, e as leis universais do desenvolvimento biológico
(VYGOTSKI, 1 99 1 , p. 1 7 2).

Para Vygotski, a única maneira possível de se construir a nova


psicologia seria atá-la à realidade objetiva, não de forma descritiva,
como fazia a psicologia empírica através da análise das relações
existentes entre os fenômenos e a realidade, "{. } o subjetivo é o
. .

resultado de processos em si objetivos" (VYGOTSKI, 199 1 , p. 3 82).


Isto quer dizer que o subjetivo reflete uma realidade objetiva que
existe fora, independentemente da consciência humana; todavia,
embora tenha existência independente, é refletida e incorporada
pela consciência, tendo como base as relações estabelecidas pelo
homem, isto é, a ação humana nesta realidade concreta. As relações
reais entre os homens, a forma como se organizam para produzir e
reproduzir suas vidas permitem a incorporação desta realidade na
subjetividade humana.
O pensar ou teorizar está irremediavelmente ligado ao
entrecruzar das velhas relações de produção com as novas. Só
assim pode ser entendida a impossibilidade de existência da
psicologia comunista sem o homem comunista, isto é, sem relações
essencialmente comunistas. Se as relações burguesas continuam a
se reproduzir, as concepções burguesas de homem inevitavelmente
estariam presentes.
A multiplicidade de tipos de economia e a existência de
diversas classes sociais originaram contradições que engedraram a
luta de classes:

A contradição fundamental da economia do período de


transição é a que se dá entre o socialismo ascendente
e o capitalismo que desaparece do cenário histórico.
Esta contradição antagônica se resolve em uma
acirrada luta pelo princípio de "quem vencerá a
quem". Lênin escreve que o "período de transição "não
pode ser menos do que um período de luta entre o
capitalismo agonizante e o comunismo nascente; ou
S I LV A N A C A LV O T U L E S K I • 1 10
2 - Da rev o l ução ma teria l à rev ol ução psi cológica •

em outras palavras: entre o capitalismo vencido, mas


não aniquilado, e o comunismo já nascido, mas muito
débil ainda (LÊNIN, 1982, p. 27 1).

A contradição essencial da economia deste período era a


existência do setor socialista e da pequena produção mercantil. O
Estado Soviético se esforçava para pôr ao seu lado os camponeses
e os trabalhadores em luta contra a burguesia e, ao mesmo
tempo, para restringir as tendências a proprietários privados e ao
anarquismo das massas.
O que se observava em nível teórico, portanto, acontecia na
prática. As relações burguesas continuavam a reproduzir-se na
construção da sociedade comunista tanto quanto as formas de
pensar burguesas. Se não existia um modo de pensar o homem
diferente do modo burguês era porque não existia concretamente
uma nova relação entre os homens, diferente da burguesa. A
ruptura revolucionária, sob condições indesejadas, criou um vácuo
que dificultava a luta pela abolição das relações e concepções
burguesas.
A psicologia, como qualquer ramo de conhecimento, é
elaborada em função da forma como os homens produzem
socialmente, inclusive a si próprios. Ela espelha como o homem se
compreende no interior destas relações sociais, as quais delimitam a
forma e o conteúdo das concepções psicológicas. No ser predomina
o biológico, o espiritual ou o social? Esta resposta quem dá é a
organização social, a maneira como os homens se organizam e
subsistem em determinada sociedade.

O método materialista histórico como base para a nova


psicologia

Construir uma psicologia comunista sem uma base concreta de


relações essencialmente comunistas foi um desafio para Vygotski e
outros teóricos de seu período, para o qual dedicou seu pouco tempo
111 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

de vida. Sua produção intelectual, rápida e intensa, deve-se aos


estímulos próprios de uma sociedade em profundas transformações,
cuja necessidade mais urgente era o estabelecimento de relações
comunistas auxiliadas por uma psicologia correspondente. Para
ele, a psicologia comunista seria a psicologia geral, que unificaria
todos os ramos particulares (psicologia do desenvolvimento,
experimental, vocacional etc.) através do método. Isso fica claro
em seu texto "O significado histórico da crise da psicologia. Uma
investigação metodológica" :

Proponho, pois esca tese: a análise da crise e da estrutura


da psicologia testemunha indiscutivelmente que
nenhum sistema filosófico pode dominar diretamente
a psicologia como ciência sem a ajuda da merodologia,
isco é, sem criar uma ciência geral; que a única aplicação
legítima do marxismo na psicologia seria a criação de
uma psicologia geral cujos conceitos se formulem em
dependência direta da dialética geral, porque esta
psicologia não seria outra coisa que a dialética da
psicologia; toda aplicação do marxismo na psicologia
por outras vias, ou a partir de outros pressupostos,
fora desce projeto, conduzirá inevitavelmente a
construções escolásticas ou verbalistas e a dissolver a
dialética em pesquisas ou testes; ao raciocinar sobre
as coisas baseando-se em seus traços externos, casuais
e secundários, haverá a perda total de todo critério
objetivo e o intento de negar todas as tendências
históricas no desenvolvimento da psicologia;
ocorrerá uma revolução simplesmente terminológica
(VYGOTSKI, 199 1 , p. 388-389).

Para ele, a psicologia marxista deveria ser construída a partir


do método, pois ela não estava pronta e acabada nos escritos
de Marx e Engels. Dirige sua crítica contundente aos teóricos
"marxistas" de sua época que utilizavam o procedimento eclético
de superposição de conceitos e citações. A nova psicologia feita
de retalhos tinha menos significado histórico do que a psicologia
burguesa que já havia perdido o seu.
S I LV A N A C A LV O T U L E S K I • 112
2 - Da rev ol ução ma teri a l à rev olu ção psicológica •

O que se pode buscar previamente nos mestres do


marxismo não é a solução da questão, e nem sequer
uma hipótese de trabalho (porque estas se obtêm
sobre a base da própria ciência). Não quero saber de
momento, retirando dentre um par de citações o que
é a psiquê; o que desejo é aprender, na globalidade do
método de Marx, como se constrói a ciência, como
enfocar a análise da psique. [ ...} O quefaz falta não são
opiniões pontuais, senão um método; e não o materialismo
dialético, senão o materialismo histórico (VYGOTSKI,
1 99 1 , p. 3 9 1 , grifo nosso).

Marx teria construído apenas o método capaz de conduzir e


orientar a construção da verdadeira psicologia comunista e afastá­
la de concepções ideológicas.
Em quase todas as suas obras ressalta a importância do
método para diferenciar a psicologia comunista/marxista das
psicologias burguesas. Em A psique, a conciência e o inconsciente,
de 1930, estudando as relações entre os fenômenos psíquicos e
comportamentais, com o objetivo de superar a dicotomia existente
na psicologia burguesa, afirma que a nova psicologia seria capaz de
restabelecer a unidade desses processos.

A psicologia dialética parte antes de tudo da unidade


dos processos psíquicos e fisiológicos. Para a psicologia
dialética a psiquê não é, como expressou Espinoza,
algo que existe além da natureza, um Esrado dentro
do outro, senão uma parte da própria natureza, ligada
diretamente às funções da matéria altamente organizada
de nosso cérebro. Igual ao restante da natureza, não
está criada a priori, mas surge em um processo de
desenvolvimento. Suas formas embrionárias estão
presentes desde o princípio; na própria célula viva se
mantêm as propriedades de mudança sob a influência
de ações externas e de reagir a elas (VYGOTSKI,
199 1 , p. 99- 100).

Para ele, em determinado nível de desenvolvimento


dos animais, produziram-se uma mudança qualitativa e um
aperfeiçoamento dos processos cerebrais, constituindo um salto
qualitativo complexo que seria a psique humana, entendida como
1 13 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

uma característica qualitativamente especial das funções superiores


do cérebro. Tal transformação deu-se em função de necessidades
de sobrevivência, através da criação de instrumentos necessários
à manutenção da vida, que são transmitidos e aperfeiçoados pela
gerações subseqüentes.
O reducionismo da antiga psicologia revelou-se impotente,
incapaz de entender a relação entre os fenômenos físicos e
psíquicos, de estudá-los como uma unidade, necessidade posta
pelo projeto coletivo da sociedade comunista em construção. Para
Vygotski, esta unidade, no entanto, não pode ser entendida como
identificação do físico com o psíquico.

A originalidade da psicologia dialética consiste


justamente em que intenta determinar de um modo
completamente novo seu objeto de estudo, que não
é outro que o processo integral do comportamento.
Este se caracteriza por contar tanto com componentes
psíquicos como fisiológicos, ainda que a psicologia
deva escudá-los como um processo único e integral,
tratando desse modo, de encontrar uma saída do beco
em que havia se metido (VYGOTSKI, 199 1 , p. 1 0 1).

Ao estudar o comportamento, sua tarefa principal seria


descobrir a conexão entre as partes e o todo, entendendo o
processo psíquico em conexão com o orgânico, de forma integral
e complexa.
Esta preocupação metodológica, como já foi dita, está presente
em todas as obras de Vygotski, inclusive em seus primeiros estudos
sobre a arte. O livro Psicologia da arte, segundo Leontiev descreve
no Prólogo (retirado em sua tradução para o português, da Editora
Martins Fontes), é um resumo dos trabalhos de Vygotski de 1 9 1 5 -
1922 sobre esta temática. E m todo o livro, ao analisar as teorias
de diversos estudiosos da arte, Vygotski evidencia a importância
de um método unificador, para que a arte seja entendida em seus
diversos aspectos e complexidades como uma produção social.

Não dispomos de quase nenhum sistema de psicologia


da arte completamente .acabado e universalmente
S I LV A N A C A LV O T U L E S K I • 1 14
2 - Da rev o l ução ma teria l à rev olu ção psicológica •

reconhecido. Aqueles autores, como Muller-Freinfelds,


que intentam reunir tudo o que há de valioso nesta
área, se encontram de fato condenados a limitarem-se
a um resumo eclético dos mais diversos pontos de vista
e opiniões. Em sua maioria, os psicólogos somente
elaborarão, de forma descontínua e fragmentada,
alguns problemas isolados da teoria da arte que
nos interessam, com a particularidade de que estas
investigações se efetuaram em insignificantes níveis
distintos e separados, portanto, por não existir uma
idéia unificadora ou um princípio metodológico, torna­
se difícil submeter a uma crítica sistemática tudo o que
a psicologia havia feito nesta direção (VIGOTSKI,
1972, p. 47).

Vygotski aborda também a dicotomia, a divisão e fragmentação


entre os estudiosos da arte, onde ora privilegia-se o conteúdo, ora
a forma. Sua crítica demonstra quanto a análise de elementos
isolados conduz a uma compreensão superficial do fenômeno
chamado reação estética. Para ele, forma e conteúdo devem ser
estudados e analisados em íntima relação.
Para sair deste atoleiro criado por diversas teorias que
analisam e classificam as obras de arte de forma fragmentada,
conforme palavras do próprio Vygotski, se tornaria necessário uma
mudança nos princípios fundamentais de investigação, em uma
forma totalmente nova de se colocarem os problemas, na eleição
de novos métodos:

No domínio da estética desde cima começa a afirmar­


se com mais força o reconhecimento da necessidade
de uma base sociológica e estética para construir
qualquer teoria. Cada vez cobra maior importância a
idéia de que a arte poderá converter-se em objeto de
investigação científica, somente quando for estudada
como uma das funções vitais da sociedade, em conexão
indissolúvel com todos os demais aspectos da vida social
em seu condicionamento histórico concreto. De todas as
correntes sociológicas da teoria da arte, a mais consequente e a
que vai mais além é a teoria do materialismo histórico, a qual
tenta construir uma análise científica da arte, baseando-se
nos mesmos princípios que se aplicam para o estudo de todas as
1 15 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

formas efenômenos da vida social. Desteponto de vista, a arte


se est11da habitualmente como 11ma das formas da ideologia,
q11e s11rge, como as restantes, como 11ma s11perestr11t11ra sobre
a base das relações econômicas e de prod11ção (VIGOTSKI,
1972, p. 26-27, grifo nosso).

Na perspectiva histórica, a mentalidade do homem social é


estudada como o subsolo comum de todas as ideologias de uma
época dada, incluindo a arte, reconhecendo que esta e sua relação
mais imediata são determinadas e condicionadas pela mentalidade
do homem social. Ao analisar obras de arte mais complexas,
portanto, torna-se necessário o estudo da psique, uma vez que a
distância entre as relações econômicas e as formações ideológicas
se faz cada vez maior e a arte não pode explicar-se diretamente
a partir das relações econômicas, isto é, como expressão direta
destas.

Deste modo, a análise marxista da arte, particularmente


em suas formas mais complexas, compreende
necessariamente o estudo da ação psicofísica da obra
de arte.
Tanto a ideologia por si, como sua dependência de
umas e outras formas de desenvolvimento social,
pode ser objeto de um estudo sociológico, mas
jamais a investigação sociológica por si só, sem uma
investigação psicológica, poderá descobrir a causa
imediata da ideologia: a mentalidade do homem social
(VIGOTSKI, 1972, p. 29).

A psicologia é imprescindível para o entendimento da arte,


uma vez que esta sistematiza uma esfera particular da psique
do homem social, a esfera dos seus pensamentos. Para que se
empreenda uma análise marxista que englobe também o aspecto
psicológico do homem é necessário entender o que é psicologia
social e individual.
Esta delimitação entre psicologia social e individual só cabe
no interior de uma psicologia social não marxista:

[ ... } a psicologia social não marxista entende o social


de forma precariamente empírica, inevitavelmente
S I LV A N A C A LV O T U L E S K I • 1 16
2 - Da rev o l ução ma terial à rev ol ução psi c ol ógi ca •

como uma multidão, como uma coletividade, como


uma relação com outros. A sociedade se entende
como um conjunto de homens, como uma condição
complementar da atividade de um homem. Estes
psicólogos não admitem a idéia de que o mais íntimo
e pessoal movimento do pensamento, da sensação etc.,
a mentalidade inteira de um indivíduo isolado, seja
social e socialmente condicionada (VIGOTSKI, 1972,
p. 3 1).

No marxismo a idéia é contrária, isto é, a psicologia individual


é também social; é esta que deve ser estudada pela psicologia social,
o restante é metafísica ou ideologia:

[ . ] por isso afirmar que a psicologia de um indivíduo


..

isolado não pode ser marxista, isto é, social, como a


mineralogia, a química etc., pressupoe não entender a
afirmação fundamental de Marx de que o homem, no
sentido mais literal, é um animal político, não somente
um animal sociável, mas também um animal que não
pode isolar-se senão dentro da sociedade (VIGOTSKI,
1972, p. 3 1).

A psicologia, sendo social, não pode desvincular-se dos laços


que prendem o homem à sociedade, os quais são responsáveis pela
construção de seu comportamento. Uma psicologia que não leve
em consideração as relações entre os homens em sociedade seria
pura abstração. Coerente com as concepções de sua sociedade,
Vygotski não poderia defender uma psicologia que fragmentasse
e isolasse o homem do projeto coletivo, pela transformação da
sociedade capitalista em socialista.
Procurou-se demonstrar quanto Vygotski deu importância a
uma definição metodológica para se constituir uma nova psicologia
essencialmente comunista. Em todas as suas obras ele enfatiza
o método materialista-histórico, que deveria ser tomado como
geral para a análise dos fenômenos, capaz de unificar a ciência
psicológica. A condição para a construção de uma psicologia
marxista no campo teórico era o domínio e utilização do método
117 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• Y Y G O T S K I

proposto por Marx, pois sem ele esta se transformaria em uma


colcha de retalhos semelhante à psicologia burguesa.
A repetição e ênfase na retomada e utilização do método
marxista pode significar um grito de alerta, uma tentativa de
mostrar que, embora tivessem realizado a revolução da sociedade,
cada vez mais esta se distanciava da realidade comunista. Apenas
a análise das contradições e da dinâmica das relações sociais, ou
seja, através do método marxista, seria possível enxergar além das
aparências.

S I LV A N A C A LV O T U L E S K I • 1 18
Formação da
3
consciência: um salto da
evol ução à revol ução no
com portamento h umano

Vygotski enfatizou, como foi visto no capítulo anterior,


a importância da análise histórica para o entendimento do
comportamento humano, pois o homem só pode ser entendido, em
suas características e atitudes, no interior das relações de produção
que estabelece em sociedade.
Construir uma psicologia compatível com as transformações
históricas implicava em abandonar o determinismo biológico e fazer
do homem o sujeito dessas transformações. A idéia que nasce e se
desenvolve com a sociedade burguesa, de que o comportamento
humano é determinado biologicamente, deveria ser superada
juntamente com as estruturas desta sociedade já enfdquecidas pela
Revolução. Tal concepção determinista não mostra a possibilidade
de transformação da natureza humana, pois esta já é dada a priori
desde o nascimento, eliminando a possibilidade de transformação,
de revolução. Assim, desenvolvimento, na concepção da psicologia
burguesa, é a emergência daquilo que já estava em estado
embrionário desde o nascimento. É uma transformação mais
quantitativa do que qualitativa, que ocorre de forma regular,
linear, e se repete em todos os indivíduos.
A construção de uma nova psicologia que abarcasse um
mundo em transformações, onde a luta de classes se fazia presente,
• V Y G O T S K I

e elementos contraditórios de uma revolução combinada emergiam


e criavam situações totalmente novas a serem resolvidas, foi um
desafio que Vygotski enfrentou até seus últimos anos de vida.
Romper com o determinismo biológico significava, antes de
tudo, criar a consciência da transformação da qual o homem é sujeito
e objeto e, para alcançar este objetivo, Vygotski procurou traçar
uma linha divisória entre o homem e o animal, demonstrando seus
pontos de convergência e de divergência, opondo-se à psicologia
fisiológica que reduzia os comportamentos de ambos a reações
instintivas e reflexas.
O caminho traçado por Luria e Vygotski, no livro Estudos sobre a
história do comportamento ( 1996), escrito no final dos anos 20 e início
dos anos 30, para demonstrar que no homem o desenvolvimento
histórico se sobrepõe ao biológico, segue três linhas principais:
evolutiva, histórica e ontogenética, como eles colocam desde o
prefácio:

A estrutura de nossos ensaios pode ser resumida da


seguinte maneira. O uso e a "invenção" de ferramentas
pelos macacos antropóides é o fim da etapa orgânica
de desenvolvimento comportamental na seqüência
evolutiva e prepara o caminho para uma transição
de todo desenvolvimento para um novo caminho,
criando assim o principal pré-requisito psicológico
do desenvolvimento histórico do comportamento.
O trabalho e, ligado a ele, o desenvolvimento da
fala humana e outros signos psicológicos utilizados
pelo homem primitivo para obter o controle
sobre o comportamento significam o começo do
comportamento cultural ou histórico no sentido
próprio da palavra. Finalmente, no desenvolvimento
da criança, vemos claramente uma segunda linha de
desenvolvimento, que acompanha os processos de
crescimento e maturação orgânicos, ou seja, vemos
o desenvolvimento cultural do comportamento
baseado na aquisição de habilidades e em modos de
comportamento e pensamento culturais (VYGOTSKY;
LURIA, 1996, p. 5 2).
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 1 20
3 - F o rm a ção da consciência •

Para estes autores, cada processo de desenvolvimento prepara


dialeticamente o seguinte, transformando-o em um novo tipo
de desenvolvimento. Não existe uma seqüência linear, mas uma
continuação em nova direção, mantendo-se a conexão, a relação
entre o processo que antecede e aquele que lhe sucede. Entender
o comportamento dos animais superiores no que diz respeito às
diferenças e semelhanças com o ser humano significava romper
com a tendência biológica em psicologia, isto é, aquela que
reduzia o comportamento humano e animal a reflexos e reações
fisiológicas, igualando-os. Compreender o comportamento do
homem primitivo significava demonstrar as diferenças entre
ele e o homem moderno, rompendo com a concepção universal
de natureza humana. E, finalmente, descrever o processo de
apropriação, desenvolvimento e integração da criança ao seu meio
histórico-cultural, demonstrando as transformações intrínsecas a
este processo, significava demonstrar a importância do meio social,
da organização deste, para a formação dos indivíduos, isto é, das
formas e conteúdos do comportamento e pensamento.
Comprovar que não só a organização social, mas também a
naturezahumanaera passível de transformação e de revolucionarizar­
se era fundamental. A transformação das atitudes, comportamentos
e valores, no entanto, só se concretizariam à medida que a prática
social mudasse efetivamente, isto é, eliminasse gradativamente
os elementos burgueses e se afirmassem relações de produção
comunistas. A vivência de relações diferentes, essencialmente
comunistas, determinaria a revolução nos modos de pensar e
comportar-se em sociedade e a mudança destas impulsionaria,
cada vez mais, à transformação das relações.
A economia da União Soviética durante este período de
reconstrução caracterizou-se por sua multiplicidade de estruturas,
isto é, pela existência de vários tipos de economia social, com
relações de produção próprias e leis econômicas específicas como:
o tipo socialista, a pequena produção mercantil, o capitalismo
privado, o capitalismo de Estado e a economia campesina patriarcal.
As contradições de tal economia pluriestrutural só poderiam ser
superadas com o desenvolvimento econômico, eliminação da
121 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• Y Y G O T S K I

economia capitalista privada e com a associação voluntária dos


pequenos produtores individuais sobre bases socialistas, como
as cooperativas de produção. A Nova Política Econômica visava
justamente a tais objetivos:

A NEP se baseava na concentração nas mãos do


Estado, dos postos de comando da economia.
Estipulava a regulação social planificada e direta do
setor socialista da economia, o influxo ativo do Estado
sobre as relações de mercado entre a indústria socialista
e as pequenas exportações camponesas, o emprego do
capitalismo de Estado em benefício do socialismo, dar
margem temporária ao capital privado, com certas
restrições, uma luta tenaz dos elementos socialistas
contra os capitalistas e a vitória do socialismo sobre o
capitalismo (RUMI ÁNTSEV, 1 982, p. 364).

Além de restabelecer a economia na URSS, a NEP pretendia


eliminar os elementos capitalistas, assegurar o triunfo do socialismo
e consolidar o domínio absoluto, no país, das relações de produção
socialistas. Construir a consciência capaz de levar essas lutas
a bom termo era o plano de Vygotski. Ocorreu, no entanto, o
fortalecimento das relações mercantis no campo, que desembocou
na crise da "coleta" de 1 927 a 1 929, acirrando a luta de classes e
conduzindo o Partido à coletivizacão forçada da agricultura.
Embora o trabalho de Vygotski, enquanto cientista e
pesquisador, estivesse ligado à psicologia e à educação, as
questões apontadas por ele no conjunto de suas obras devem ser
interpretadas como respostas às necessidades da sociedade soviética,
nessa fase difícil que foi o processo pós-revolucionário. Em todos
os seus escritos reafirma a importância da análise histórica para
o entendimento dos fatos e fenômenos e, quando o faz, parece
estar alertando ao coletivo dos homens para não deixar a história
escapar-lhes das mãos.
Outra questão que se repete em diversos textos é a ênfase
sobre as diferenças entre o homem e os animais superiores.
Parecia ser de fundamental importância reafirmar e demonstrar
que, embora existam semelhanças orgânicas entre o homem e
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 22
3 - F o rma ção da consciência •

o macaco, existem diferenças de outra ordem que demarcam o


limite entre a evolução orgânica e a histórica. Seus principais
interlocutores são os teóricos da psicologia experimental, que
haviam conquistado para a psicologia o seu reconhecimento
como ciência independente. No entanto Vygotski opõe-se a eles
justamente por reduzirem o comportamento humano a reflexos,
reações instintivas e mecânicas.
Uma das similaridades encontradas, em relação à utilização de
instrumentos, no macaco e no homem, é a capacidade de transferir
a solução de um problema para outras situações, generalizando-a,
isto é, o instrumento adquire um significado funcional que pode
ser transferido a outro objeto:

Vemos, assim, que uma nova forma - o intelecto -


começa a surgir claramente no comportamento do
macaco ; é o pré-requisito básico para o desenvolvimento
da atividade laboral e funciona também como um
vínculo entre o comportamento do macaco e do
homem (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 84).

Vygotski conclui que o uso de instrumentos na ausência do


trabalho é o que mais aproxima e afasta o homem do macaco. Para
ele o chimpanzé encontra-se numa forma puramente biológica
de pensamento não verbal. A atividade laboral, que conduz o
homem ao domínio da natureza, cria necessidade de comunicar­
se com outros de sua espécie, opera o salto da adaptação, comum
aos animais, à transformação, característica humana. É a ausência
da fala no sentido amplo da palavra, isto é, a falta de capacidade
de produzir um signo, ou introduzir alguns meios psicológicos
auxiliares que marcam o comportamento e a cultura humana, que
traça a linha divisória entre macaco e ser humano primitivo.

Assim, na esfera da adaptação à natureza, a ausência do


trabalho e, ligado a isso, o controle sobre a natureza,
distinguem o macaco do homem. No macaco, o
processo de adaptação pode em gera] caracterizar-se
como manipulação das condições exteriores naturais e
adaptação passiva a elas. Na esfera psicológica, é também
característica do macaco não possuir autocontrole sobre

l 23 • S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

o comportamento ou, em outras palavras, ser incapaz de


controlar o comportamento com a ajuda de signos artificiais.
Isso constitui a essência do desenvolvimento cultural d-O
comportamento do homem (VYGOTSKY; LURIA, 1996,
p. 90, grifo nosso).

Engels, em seu texto "Sobre o papel do trabalho na


transformação do macaco em homem" , enfatiza o papel ativo do
homem em relação à natureza, dominando-a através do trabalho,
sendo este a principal diferença entre o homem e os demais
animais:

Em face de cada novo progresso, o domínio sobre a


natureza, que tivera início com o desenvolvimento da
mão, com o trabalho, ia ampliando os horizontes do
homem, levando-o a descobrir constantemente nos
objetos novas propriedades até então desconhecidas.
Por outro lado, o desenvolvimento do trabalho, ao
multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividade
conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa
atividade conjunta para cada indivíduo, tinha que
contribuir forçosamente para agrupar ainda mais
os membros da sociedade. Em resumo, os homens
em formação chegaram a um ponto em que tiveram
necessidade de dizer algo uns aos outros. A necessidade
criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do macaco
foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante
modulações que produziam por sua vez modulações
mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca aprendiam
pouco a pouco a pronunciar um som articulado após
outro (MARX; ENGELS, 1 985, p. 27 1 , grifo nosso).

E Engels acrescenta ainda:

O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu


serviço, a crescente clareza de consciência, a capacidade
de abstração e de discernimento cada vez maiores,
reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra,
estimulando mais e mais o seu desenvolvimento.
Quando o homem se separa definitivamente do
macaco esse desenvolvimento não cessa de modo
algum, mas continua, em grau diverso e em diferences
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 24
3 - F o rm a ção da consciência •

sentidos, entre diferentes povos e as diferentes épocas,


interrompido mesmo às vezes por retrocessos de caráter
local ou temporário, mas avançando em seu conjunto
a grandes passos, consideravelmente impulsionado e,
por sua vez, orientado em um determinado sentido
por um novo elemento que surge com o aparecimento
do homem acabado: a sociedade (MARX; ENGELS,
1985, p. 272-27 3, grifo nosso).

Vygotski parte das idéias de Engels e desenvolve em seus


estudos a importância da linguagem enquanto sistema simbólico
responsável pela transformação do pensamento prático em
pensamento verbal e pelo desenvolvimento das operações
intelectuais responsáveis pelo controle do próprio comportamento.
O desenvolvimento do comportamento do animal ao do homem
ocorre para ele, portanto, através de um salto qualitativo do
biológico ao histórico:

[ . . . ] o desenvolvimento do comportamento do
homem é sempre desenvolvimento condicionado
primordialmente não pelas leis da evolução biológica,
mas pelas leis do desenvolvimento histórico da
sociedade. Aperfeiçoar os 'meios de trabalho' e os
'meios de comportamento' sob a forma de linguagem e
de outros sistemas de signos, ou seja, de instrumentos
auxiliares no processo de dominar o comportamento,
ocupa o primeiro lugar, superando o desenvolvimento
'[d]a mão nua e [d]o intelecto entregues a si mesmos'
(VYGOTSKY; LURlA, 1996, p. 91).

A partir desta análise, rompe-se com os estudos que comparam


o homem ao animal, reduzindo um e outro a um amontoado de
reflexos, que eliminam as diferenças existentes entre ambos. Busca­
se também superar, ao descrever o comportamento do homem
primitivo em comparação com do homem moderno, a tendência
da psicologia em estudar o homem como produto de uma evolução
biológica prolongada e o comportamento da criança apenas como
quantitativamente diferente do comportamento do adulto.
Estas duas tendências, segundo Vygotski, muito fortes
e presentes na psicologia de sua época, deveriam ser superadas
1 25 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

por uma terceira forma de analisar o comportamento do homem


moderno, a histórica:

O comportamento do homem moderno, cultural,


não é só produto da evolução biológica, ou resultado
do desenvolvimento infantil, mas também produto
do desenvolvimento histórico. No processo do
desenvolvimento histórico da humanidade, ocorreram
mudança e desenvolvimento não só nas relações externas
entre as pessoas e no relacionamento do homem com
a natureza; o próprio homem, sua natureza mesma,
mudou e se desenvolveu (VYGOTSKY; LURIA, 1996,
p. 95).

Faz-se necessário abdicar das teorias que afirmam a


uniformidade do espírito humano, renunciar à idéia de reduzir
todas as operações psicológicas a um tipo universal, independente
da estrutura da sociedade, e de explicar todas as idéias coletivas por
um mesmo mecanismo psicológico e lógico que não se transforma
e nem se modifica.
Com o objetivo de comprovar suas hipóteses, tomou
como base o estudo do comportamento de povos primitivos ou
selvagens, por ser muito difícil estudar as formas de pensamento
e comportamento das civilizações já desaparecidas. Neste sentido
ele esclarece:

No sentido estrito da palavra, hoje não existe homem


primitivo em parte alguma, e o tipo humano como se
apresenta entre os povos selvagens (os mais antigos)
só relativamente falando-se pode ser chamado de
primitivo. A primitividade nesse sentido é o estágio
mais baixo e o ponto de partida do desenvolvimento
histórico do homem. Os dados a respeito do homem
pré-histórico, a respeito de povos no nível mais inferior
do desenvolvimento cultural e a respeito da psicologia
comparada de povos de cultura diversa são úteis
como material para a psicologia do homem primitivo
(VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 96).
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 26
3 - F o rm a ção da consciência •

Da mesma forma como faz a análise do comportamento


animal e humano, em suas semelhanças, mas sobretudo nas suas
diferenças, ele procede em relação ao homem primitivo e ao
homem moderno, pontuando as convergências e divergências. Ao
postular as características de cada um deles no que diz respeito às
funções psicológicas, deita por terra a concepção de uniformidade
e de universalidade de determinadas características psicológicas.
Elimina a idéia de que as funções psicológicas são dadas desde o
nascimento e não sofrem alterações qualitativas e que são comuns
a todos os homens, independentemente do período histórico ou
da sociedade em que vivam. Ao contrário, ele demonstra quanto
a diversidade qualitativa das funções está intrinsecamente ligada
à característica de sobrevivência, de organização e das relações
que cada tipo humano estabelece com os outros homens e com a
natureza.
Leontiev, o psicólogo russo que, juntamente com Vygotski
e Luria, desenvolveu a Teoria Histórico-Cultural do psiquismo
humano, trata deste mesmo assunto em seu texto O homem e a
cultura, deixando claro que a hominização resultou da passagem
à vida numa sociedade organizada na base do trabalho e que esta
passagem modificou a natureza do homem, marcando o início de
um novo tipo de desenvolvimento, diferente do desenvolvimento
dos animais, passando a submeter-se não mais às leis biológicas,
mas às leis sócio-históricas:

É o estágio do aparecimento do tipo do homem atual - o


Homo sapiens. Ele constitui a etapa essencial, a viragem.
É o momento com efeito em que a evolução do homem
se liberta totalmente da sua dependência inicial para
com as mudanças biológicas inevitavelmente lentas,
que se transmitem por hereditariedade. Apenas as
leis sócio-históricas regerão doravante a evolução do
homem (LEONTIEV, 1995, p. 281).

Vygotski também apresenta, em diversas obras, as diferenças


entre o homem primitivo e moderno no que diz respeito a diversas
funções, como a memória, a linguagem, o pensamento e as
operações numéricas. Em todas estas funções salienta o alto grau
1 27 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

de desenvolvimento dos órgãos de percepção no homem primitivo,


por serem mais utilizados para a sobrevivência. A memória é a
função dominante que subjuga as demais, desempenhando um
papel fundamental na vida intelectual do homem primitivo,
se comparada à do homem moderno. Esta memória "natural"
de cheiros, sons, imagens, no entanto, não está sob o controle
do homem primitivo. Apenas com o desenvolvimento da
mnemotécnica, isto é, dos primeiros instrumentos ou signos que
servem de apoio à memória, é que o homem primitivo passa a
controlar, gradativamente, a própria memória.
Vygotski explica, no que diz respeito às diversas funções,
quanto o desenvolvimento de signos externos vai tomando o lugar
das capacidades "naturais", de origem biológica, e o comportamento
humano vai tornando-se determinado culturalmente:

Do mesmo modo que a crescente supremacia do


homem sobre a natureza baseia-se não tanto no
desenvolvimento de seus órgãos naturais, quanto no
aperfeiçoamento de sua tecnologia, assim também
o crescimento contínuo de seu comportamento
origina-se primordialmente no aperfeiçoamento de
signos externos, métodos externos e modos que se
desenvolvem em determinado contexto social, sob a
pressão de necessidades técnicas e econômicas.
Todas as operações psicológicas naturais do homem
também são reconstruídas sob essa influência. Algumas
delas definham, outras se desenvolvem. Porém, o mais
importante, o mais crucial e o mais característico para
rodo o processo, é o fato de que seu aperfeiçoamento
vem de fora e é afinal determinado pela vida social
do grupo ou do povo a que o indivíduo pertence
(VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 143- 144).

A importância do desenvolvimento e aperfeiçoamento técnico,


como condição para a efetivação da sociedade comunista, aparece
em vários textos de Vygotski, expressando a estratégia da sociedade
soviética de sua época. O projeto coletivo socialista exigia não só a
nacionalização das terras e das empresas, mas, como dizia Lênin, a
socialização da produção na prática, assegurando a contabilização
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 28
3 - F o rm a ção da consciência •

e o controle de todo o povo em relação à produção e distribuição de


bens e o domínio da ciência e da arte. Para Vygotski, no entanto,
o sucesso desse processo híbrido de desenvolvimento, estratégico
para o socialismo e comunismo, dependia da consciência coletiva
do sujeito histórico. Em resumo, apenas o desenvolvimento do
coletivo, em seu aspecto geral, a mudança no modo de viver, de ser,
do coletivo, poria as condições necessárias para a modificação no
plano individual, para que a consciência dos homens em particular
deixasse de ser burguesa e passasse a ser comunista.
Antes da Revolução a grande indústria acusava um
desenvolvimento débil e insuficiente e durante o comunismo de
guerra as indústrias existentes praticamente entraram em colapso
devido à guerra civil:

A industrialização socialista significa um crescimento


da grande indústria mecanizada, que permite assegurar
que esta desempenhe o papel diretor na economia, o
progresso industrial dos outros setores econômicos, em
primeiro lugar a agriculrura, e o triunfo das formas
de produção socialistas. A criação de uma indústria
altamente desenvolvida, a pesada em primeira
instância, fortalece as posições do socialismo na lura
contra o capitalismo dentro do país e em âmbito
internacional (RUMIÁNTESEV, 1982, p. 366-367).

Por isso a ênfase na industrialização que houve durante


a NEP, período de reconstrução da sociedade, acaba por ser
acelerada pelo Estado soviético em finais da NEP, impulsionando
o redirecionamento para a coletivizacão e industrialização
mais agressiva, presente nos planos qüinqüenais. Com Stálin, a
prioridade passa a ser dada à grande indústria pesada e às técnicas
mais modernas, colocando-se em segundo plano as necessidades
das massas, as exigências de desenvolvimento da agricultura e o
equilíbrio das trocas entre cidade e campo, base material da aliança
operário-camponesa e, portanto, da consolidação do socialismo
pelo poder do operariado.
Hobsbawm aponta que qualquer política de rápida
modernização na URSS, naquelas circunstâncias, tinha que
1 29 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

de desenvolvimento dos órgãos de percepção no homem primitivo,


por serem mais utilizados para a sobrevivência. A memória é a
função dominante que subjuga as demais, desempenhando um
papel fundamental na vida intelectual do homem primitivo,
se comparada à do homem moderno. Esta memória "natural"
de cheiros, sons, imagens, no entanto, não está sob o controle
do homem primitivo. Apenas com o desenvolvimento da
mnemotécnica, isto é, dos primeiros instrumentos ou signos que
servem de apoio à memória, é que o homem primitivo passa a
controlar, gradativamente, a própria memória.
Vygotski explica, no que diz respeito às diversas funções,
quanto o desenvolvimento de signos externos vai tomando o lugar
das capacidades "naturais", de origem biológica, e o comportamento
humano vai tornando-se determinado culturalmente:

Do mesmo modo que a crescente supremacia do


homem sobre a natureza baseia-se não tanto no
desenvolvimento de seus órgãos naturais, quanto no
aperfeiçoamento de sua tecnologia, assim também
o crescimento contínuo de seu comportamento
origina-se primordialmente no aperfeiçoamento de
signos externos, métodos externos e modos que se
desenvolvem em determinado contexto social, sob a
pressão de necessidades técnicas e econômicas.
Todas as operações psicológicas naturais do homem
também são reconstruídas sob essa influência. Algumas
delas definham, outras se desenvolvem. Porém, o mais
importante, o mais crucial e o mais característico para
todo o processo, é o fato de que seu aperfeiçoamento
vem de fora e é afinal determinado pela vida social
do grupo ou do povo a que o indivíduo pertence
(VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 143-144).

A importância do desenvolvimento e aperfeiçoamento técnico,


como condição para a efetivação da sociedade comunista, aparece
em vários textos de Vygotski, expressando a estratégia da sociedade
soviética de sua época. O projeto coletivo socialista exigia não só a
nacionalização das terras e das empresas, mas, como dizia Lênin, a
socialização da produção na. prática, assegurando a contabilização
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • l 28
3 - F o rm a ção da consciência •

e o controle de todo o povo em relação à produção e distribuição de


bens e o domínio da ciência e da arte. Para Vygotski, no entanto,
o sucesso desse processo híbrido de desenvolvimento, estratégico
para o socialismo e comunismo, dependia da consciência coletiva
do sujeito histórico. Em resumo, apenas o desenvolvimento do
coletivo, em seu aspecto geral, a mudança no modo de viver, de ser,
do coletivo, poria as condições necessárias para a modificação no
plano individual, para que a consciência dos homens em particular
deixasse de ser burguesa e passasse a ser comunista.
Antes da Revolução a grande indústria acusava um
desenvolvimento débil e insuficiente e durante o comunismo de
guerra as indústrias existentes praticamente entraram em colapso
devido à guerra civil:

A industrialização socialista significa um crescimento


da grande indústria mecanizada, que permite assegurar
que esta desempenhe o papel diretor na economia, o
progresso industrial dos outros setores econômicos, em
primeiro lugar a agricultura, e o triunfo das formas
de produção socialistas. A criação de uma indústria
altamente desenvolvida, a pesada em primeira
instância, fortalece as posições do socialismo na luta
contra o capitalismo dentro do país e em âmbito
internacional (RUMIÁNTESEV, 1982, p. 366-367).

Por isso a ênfase na industrialização que houve durante


a NEP, período de reconstrução da sociedade, acaba por ser
acelerada pelo Estado soviético em finais da NEP, impulsionando
o redirecionamento para a coletivizacão e industrialização
mais agressiva, presente nos planos qüinqüenais. Com Stálin, a
prioridade passa a ser dada à grande indústria pesada e às técnicas
mais modernas, colocando-se em segundo plano as necessidades
das massas, as exigências de desenvolvimento da agricultura e o
equilíbrio das trocas entre cidade e campo, base material da aliança
operário-camponesa e, portanto, da consolidação do socialismo
pelo poder do operariado.
Hobsbawm aponta que qualquer política de rápida
modernização na URSS, naquelas circunstâncias, tinha que
1 29 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

ser implacável e, por ser imposta à grande maioria, exigia


sérios sacrifícios, em certa medida coercitivos. O modelo de
comando centralizado, assemelhado às operações militares e não
a empreendimentos econômicos, teve sua legitimidade moral
popular gerada principalmente por causa dos apelos ao "sangue,
esforços, lágrimas e suor" do povo para conduzir ao desenvolvimento
industrial e econômico do país. O custo social desse endurecimento
preocupava Vygotski pelos seus efeitos na consciência coletiva,
necessária para cumprir as finalidades da Revolução.
A ênfase dada por Vygotski à ciência aplicada às necessidades
da prática social e a importância do desenvolvimento cultural e
tecnológico demonstram quanto o povo russo via nestas formas
de desenvolvimento o caminho para a efetivação da sociedade
comunista. O acesso de todos aos bens culturais (instrumentos e
signos) impulsionaria o desenvolvimento de todos os indivíduos
em sociedade. Para ele, portanto, a forma como os homens se
organizam, se relacionam e produzem bens para sua sobrevivência
constrói e reconstrói de forma incessante o comportamento
humano. As funções psicológicas vão adquirindo um grau cada
vez maior de complexidade à medida que os signos produzidos
pelos homens são cada vez mais complexos. O desenvolvimento da
psique humana na modernidade estaria cada vez mais condicionado
ao grau de domínio de cada indivíduo em relação aos signos
produzidos socialmente.
Se a evolução humana não dependeria mais de leis biológicas,
hereditárias, independentes da vontade dos homens, nesta
perspectiva, proposta por Vygotski, seria o desenvolvimento
da sociedade que produziria a evolução dos homens em termos
coletivos e individuais. Qual seria então o mecanismo capaz de
produzir tal evolução, baseada não mais em leis biológicas, mas
em leis sócio-históricas?
Esta resposta pode-se encontrar em Leontiev de forma clara.
Para ele é a transmissão, de geração em geração, das aquisições
humanas que permitiria sua fixação e a continuidade do progresso
histórico; e esta ocorre somente de uma forma particular, que só
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • l 30
3 - F o rma ção da c onsciência •

apareceu com a sociedade humana, através dos fenômenos externos


da cultura material e intelectual:

Ao mesmo tempo no decurso da atividade dos homens,


as suas aptidões, os seus conhecimentos e o seu saber­
fazer cristalizam-se de cerca maneira nos seus produtos
(materiais, intelectuais, ideais). Razão por que todo
o progresso no aperfeiçoamento, por exemplo, dos
instrumentos de trabalho pode considerar-se, desce
ponto de vista, como marcando um novo grau do
desenvolvimento histórico nas aptidões motoras do
homem ; também a complexidade·: da fonética das
línguas encarna os progressos realizados na articulação
dos sons e do ouvido verbal, os progressos das obras de
arte, um desenvolvimento estético etc.
Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo
de objetos e de fenômenos criados pelas gerações
precedentes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo
participando no trabalho, na produção e nas diversas
formas de atividade social e desenvolvendo assim
aptidões especificamente humanas que se cristalizaram,
encarnaram nesse mundo (LEONTIEV, 1995, p. 283-
284, grifo nosso).

A história do comportamento humano, do homem primitivo


ao homem moderno, tanto para Vygotski como para Leontiev, neste
sentido, seria a história dos signos produzidos pela humanidade,
que são os instrumentos psicológicos necessários ao homem, de
acordo com sua organização social, para o domínio de si mesmo e
dos indivíduos com os quais convive em sociedade.
Tais signos, como as diversas formas de linguagem,
instrumentos auxiliares para a memória, a magia, entre outros,
servem como instrumentos coletivos que visam ao domínio do
comportamento do próprio homem, assim como a técnica serve ao
domínio da natureza:

De fato, a diferenciação completa entre o objetivo e o


subjetivo só se torna possível com base num sistema
desenvolvido de técnicas que ajudam o homem, em sua
ascendência sobre a natureza, a tornar-se conhecedor
dela como algo extrínseco, que possui suas próprias leis.
131 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

Na esfera de seu próprio comportamento, à medida


que acumula determinada experiência psicológica,
o homem se torna consciente das leis que regulam
aquele comportamento.
O homem produz um impacto sobre a natureza
mediante a combinação de forças dela mesma,
fazendo com que algumas delas acuem sobre outras.
Do mesmo modo, exerce influência sobre seu
próprio comportamento, combinando forças externas
(estímulos) e fazendo-as exercer uma influência sobre
ele próprio. Essa experiência de exercer influência
tendo forças externas como intermediário, esse
caminho da utilização de 'instrumentos', é idêntico,
do ponto de vista psicológico, para a tecnologia e para
o comportamento (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p.
145).

A utilização da magia pelos povos primmvos e selvagens


significa, para Vygotski, tentativas do homem de controlar a
natureza e, ao mesmo tempo, controlar seu próprio comportamento,
dando início ao desenvolvimento cultural. A continuidade deste
desenvolvimento se dá pelo crescente domínio do homem sobre
a natureza, conduzindo à separação destes dois processos. A
tecnologia avançada vai conduzindo à separação entre as leis da
natureza e as leis do pensamento, desaparecendo, gradativamente,
a magia. Não é mais o pensamento direto, o desejo que transforma
ou é capaz de dominar a natureza como ocorre na magia, mas
o pensamento tem que criar instrumentos concretos capazes de
efetivar tal controle.

Paralelamente a um nível superior de controle sobre


a natureza, a vida social do homem e sua atividade
de trabalho começam a exigir requisitos ainda
mais elevados para o controle sobre seu próprio
comportamento. Desenvolvem-se a linguagem, o
cálculo, a escrita e outros recursos técnicos de cultura.
Com a ajuda desses meios, o comportamento do
homem ascende a um nível superior (VYGOTSKY;
LURIA, 1996, p. 149).
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 1 32
3 - F o rma ção da consciên cia •

As diferenças de comportamento, do homem primitivo e do


homem moderno, só podem ser compreendidas a partir da história
dos signos, desenvolvidos sob pressão de necessidades coletivas,
com o objetivo de controlar o comportamento individual e social.
A comprovação desta tese constitui a revolução na compreensão da
psicologia humana, pois demonstra que, do homem primitivo ao
homem moderno, não existem alterações biológicas significativas
que justifiquem a discrepância comportamental, enquanto as
diferenças marcantes estão na organização social, nas relações
entre os homens e nos instrumentos que medeiam tais relações.
O pensamento e o saber de uma geração, segundo Leontiev,
formam-se a partir da apropriação dos resultados da atividade
cognitiva das gerações precedentes. Sendo assim, as aptidões e
caracteres especificamente humanos não se transmitem de modo
algum por hereditariedade biológica, mas são adquiridos no
decurso da vida por um processo de apropriação da cultura criada
pela gerações precedentes:

Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser


um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce
não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda
preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do
desenvolvimento histórico da sociedade humana.
O indivíduo é colocado diante de uma imensidade
de riquezas acumuladas ao longo dos séculos por
inumeráveis gerações de homens, os únicos seres,
no nosso planeta, que são criadores. As gerações
humanas morrem e sucedem-se, mas aquilo que
criaram passa às gerações seguintes, que multiplicam
e aperfeiçoam pelo trabalho e pela luta as riquezas que
lhes foram transmitidas e 'passam o testemunho' do
desenvolvimento da humanidade (LEONTIEV, 1995,
p. 285).

Desta forma, Leontiev e Vygotski demonstram que a


natureza humana opera um salto, uma revolução. Esta concepção
supera o determinismo biológico predominante na psicologia
daquela época, colocando as formas de organização social como
responsáveis pela construção e reconstrução da natureza humana.
1 33 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Assim, biologicamente determinadas seriam apenas as funções


mais elementares, aquelas comuns aos homens e aos animais,
como os instintos e reflexos condicionados, bem como o uso
rudimentar de instrumentos, também presente nos macacos
antropóides. Já as características que diferenciam seres humanos
e animais são determinadas por fatores extrínsecos ao indivíduo,
pelas formas de organização da sociedade e pelas características das
relações humanas presentes nesta organização. O comportamento
verdadeiramente humano, aquele que traça a linha divisória
entre o homem e o animal, é uma construção social e só pode
ser transmitido socialmente, isto é, não vem dado a "priori", em
estado embrionário desde o nascimento, como queria a psicologia
biológica.
Seguindo esta linha de raciocínio, o desenvolvimento
científico-tecnológico, sob bases materiais socialistas, seria
responsável pela construção do homem comunista, com pleno
desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores,
promovendo o avanço da sociedade em seu conjunto e superando
o primitivismo de algumas regiões. O desenvolvimento pleno das
funções psicológicas superiores permitiria ao homem o controle
de seu próprio comportamento, bem como da organização e da
disciplina necessárias à produção socialista.
A partir de 1 929, devido à ênfase na produtividade, o Partido
passa a apelar para que os trabalhadores concentrem toda sua energia
na consolidação da disciplina no trabalho e nas determinações do
Conselho dos Comissários do Povo, que aumentavam os poderes
disciplinares dos diretores de fábricas e empresas. Tais decisões
reforçaram as relações hierárquicas e autoritárias no interior da
fábrica, determinando, não sua transformação, mas a intensificação
destas. As faltas dos trabalhadores passaram a ser sancionadas com
maior rigor, bem como as punições relativas às desobediências de
ordens superiores. Ser disciplinado no trabalho passava a condicionar
a obtenção de vantagens sociais. As organizações operárias e os
sindicatos eram proibidos de intervir nas questões relativas à
direção e gestão das empresas. Os diretores e a administração
eram considerados os únicos responsáveis pela realização do plano
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • l 34
3 - F o rma ção da c onsciência •

industrial e financeiro e pelo cumprimento das tarefas de produção,


concentrando todos os poderes em suas mãos.
Todo esse reforço disciplinar no interior das fábricas estava
diretamente ligado à decisão do governo de empreender uma
industrialização acelerada, a qual se colocava como saída para
as dificuldades do setor agrícola, que deveriam ser resolvidas
através da mecanização e coletivização. A crítica a esta coerção
externa para o trabalho aparece de forma velada nos textos de
Vygotski, ao insistir na formação humana, no aperfeiçoamento
e desenvolvimento das funções psíquicas superiores, capazes de
promover a auto-regulação do comportamento humano. Para
ele, o homem comunista, consciente de seus comportamentos,
incapaz de atitudes impulsivas e imediatistas (instintivas) e
autodisciplinado, deveria ser formado através da educação para
o trabalho, isto é, em conjunto com o trabalho e não através da
coerção externa. A estimulação da capacidade reflexiva do homem
era por ele valorizada como fator capaz de permitir a desvinculação
dos interesses individuais e a percepção da totalidade das relações,
do coletivo.
Assim, as exigências de realização dos planos qüinqüenais
de industrialização adiantam-se à transformação das relações de
produção. Estas relações, por não sofrerem modificações, vão
reforçando, cada vez mais, suas características capitalistas. A divisão
do trabalho, ao invés de ser eliminada, acaba por consolidar-se no
interior das unidades de produção, o que vai configurando uma
espécie de "taylorismo socialista" .
A ênfase na produtividade, o recurso ao salário por
empreitada, aos estimulantes materiais e às diferenciações de
salários contribuíam para reproduzir as divisões internas no interior
da fábricas, consolidando o individualismo e a competição entre
trabalhadores por melhores salários. Ao mesmo tempo crescia a
distinção entre atividades técnicas qualificadas e aquelas que não
exigiam qualificação específica. Os planos qüinqüenais visavam à
industrialização acelerada por meio do aumento da produtividade
do trabalho, no campo e nas cidades, através de medidas que
aumentassem a intensidade do trabalho e a racionalização do
1 35 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

processo de produção, com grande ênfase no conhecimento técnico


e na tecnologia.
Vemos com clareza esta necessidade exposta em Economía
Política, um manual didático de Ciências Sociais da URSS, sobre
esse período:

A necessidade de elevar a eficácia da produção e do


desenvolvimento dinâmico da economia, determinam
a linha de aceleração do progresso científico-técnico,
de aperfeiçoamento da planificação e da gestão e
de reforçamento da disciplina e da ordem em cada
posto de trabalho e em cada elo administrativo
(RUMIANTSÉV, 1982, p. 472).

Além do reforço disciplinar, iniciou-se uma ampla campanha


de estímulo capitalista, apelando-se para a concorrência entre
diretores de empresa, entre empresas e entre ramos da produção,
visando ao desenvolvimento da nação. Esta concorrência foi
realizada em escala nacional e local e distribuíam-se prêmios por
produtividade, o que estimulava a intensificação do trabalho.
Os incentivos materiais ao trabalho tinham como objetivo
desenvolver a idéia de que todos eram co-proprietários dos
meios de produção e do produto do trabalho comum, assim
como os incentivos morais procuravam mostrar que o gigantesco
crescimento econômico do país era produto do trabalho de todos
os homens, que não trabalham para si, mas para o bem comum:

Na sociedade socialista desenvolvida os trabalhadores


alcançam um elevado nível de organização, ideológico
e de consciência. Não obstante, o fortalecimento
progressivo da disciplina segue rendo nela grande
relevância.
O fortalecimento da disciplina para o trabalho é um
dos principais canais para pôr em prática a política
econômica e social do partido e do Estado, para elevar a
eficácia da produção e inculcar uma atitude comunista
para o trabalho. O principal método para fortalecer a
disciplina é o convencer, o inculcar a atitude comunista
perante o trabalho. É importante ainda o papel que
desempenha o sistema de estimulação material

S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 36
3 - F o rma çã o da consciência •

dos trabalhadores por seus progressos no trabalho


(RUMIÁNTSEV, 1982, p. 458).

Pode-se observar que a disciplina e a organização para o trabalho


era uma necessidade premente deste período, com o objetivo de
elevar a produção em todos os níveis. Neste sentido, Vygotski e
Lúria fazem a crítica às formas como este desenvolvimento vem
acontecendo, isto é, através da coerção e do autoritarismo. Eles
demonstram, cientificamente, quanto a formação cultural dos
indivíduos, a apropriação dos instrumentos e signos culturais,
conduzem à regulação, ao controle do próprio comportamento, ao
abandono das condutas impulsivas e sem reflexão, desenvolvendo
o comportamento racional compatível com o homem comunista,
disciplinado e cumpridor de seus deveres em sociedade, sem a
necessidade da imposição externa arbitrária. O desenvolvimento da
consciência, do autocontrole, seria a melhor arma para a efetivação
da sociedade comunista.
Esta compreensão de desenvolvimento, que se repete em todos
os textos de Vygotski, intimamente comprometida com a filosofia
marxista, questiona a visão maturacionista e linear, desarticulando
a concepção de que existe um tipo humano universal e eterno ao
introduzir o conceito de transformação. Se os homens são capazes
de revolucionar a sociedade, sua forma de organização, as relações
sociais ligadas à produção de suas próprias vidas, são capazes de
revolucionar, de transformar sua própria natureza, podem desejar
ser algo diferente do que são e concretizar tal desejo. Poderão
abandonar os comportamentos individualistas, competitivos e
egoístas e desenvolver a cooperação e a solidariedade, atitudes que
visem ao bem comum e não a satisfações individuais.
Esse conceito histórico de natureza humana é o que Vygotski
apresenta de inovador à psicologia de sua época. Tais inovações, no
entanto, não podem nem devem ser atribuídas a uma genialidade
particular sua, mas sim às exigências da sociedade soviética,
que realizava uma experiência sem precedentes na história da
humanidade, de fazer-se conscientemente comunista. Embora a
exigência de se compreender o homem em sua totalidade estivesse
1 37 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

posta na sociedade como um todo, Vygotski foi capaz de articular


tal compreensão do psiquismo humano por ser esta forma de
entender o homem a que melhor correspondia às necessidades
específicas de construção de uma nova sociedade, onde os homens
desejavam fazer-se conscientemente comunistas.
A luta de classes no interior da sociedade soviética não foi
eliminada com a coletivização das indústrias e da agricultura;
somente assumiu outras características, ora mais agressivas, ora
aparentando um convívio pacífico. Enquanto existissem práticas
burguesas, existiriam a competição, a diferenciação entre os homens,
a hierarquia. Estas eram algumas das muitas contradições com as
quais os homens dessa sociedade se defrontavam. Quanto mais se
reforçavam as características da competitividade, do individualismo
e egoísmo de natureza capitalista, mais era necessário comprovar
que a natureza humana poderia ser transformada tanto quanto o
meio externo o fora pela Revolução. O conhecimento técnico que
conduzisse ao aperfeiçoamento da produção e o desenvolvimento
de instrumentos psicológicos (signos), que permitissem ao homem
controlar seu próprio comportamento, visando ao coletivo,
apresentavam-se como saída para a socialização da riqueza.
Eliminar a escassez, produzir em quantidade suficiente para
todos e desenvolver o autocontrole, seriam as maneiras possíveis
para eliminar comportamentos egoístas, próprios da sociedade
capitalista.

As funções psicológicas superiores e seu papel na formação


da consciência comunista.

Tais necessidades concretas de remodelação da natureza


humana para construir aquilo que a própria Revolução projetava
de novo, circunstanciada pela força da tradição, conduziu Vygotski
à necessidade de entender como a criança se transforma em um
ser sociocultural. Em outras palavras, como uma criança recém­
nascida, na qual predominam a princípio as funções elementares
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 38
3 - F o rma ção da consciência •

e biológicas, apropria-se dos instrumentos culturais e simbólicos


postos em sociedade, transformando-se, qualitativamente, em
um ser que se vê como unidade na relação com o coletivo em
construção, com o qual deve comprometer-se.
Uma das questões presentes na sociedade soviética era a de
formar as novas gerações com vistas ao projeto socialista. Esta
parece ser a questão sobre a qual Vygotski se debruçou: como
desenvolver nas crianças as atitudes e comportamentos necessários
ao homem da nova sociedade?
A preocupação de Vygotski com o desenvolvimento individual
fez com que estudasse a natureza humana do ponto de vista da
ontogênese e da filogênese, questão que está presente na grande
maioria de seus trabalhos:

Se desejamos estudar a psicologia do homem cultural


adulto, devemos ter em mente que ela se desenvolveu
como resultado de uma evolução complexa que
combinou pelo menos três trajetórias: a da evolução
biológica desde os animais até o ser humano, a da
evolução histórico-social, que resultou na transformação
gradual do homem primitivo no homem cultural
moderno, e a do desenvolvimento individual de uma
personalidade específica (ontogênese), com o que um
pequeno recém-nascido atravessa inúmeros estágios,
tornando-se um escolar e a seguir um homem cultural
adulto (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 1 5 1).

Vygotski se opõe ao conceito de que a criança difere do


adulto apenas em aspectos quantitativos. Para ele a criança nasce
com a preponderância do orgânico onde, pela ação social, essas
sensações fisiológicas vão sendo superadas com o desenvolvimento
do pensamento e da linguagem, enquanto processos interligados e
canalizados para a cultura com a qual convive.

A criança ainda não desenvolveu uma atitude objetiva


em relação ao mundo, atitude que lhe permita livrar-se
dos traços concretos percebidos de um objeto e que dirija
sua atenção às correlações e às leis objetivas. A criança
aceita o mundo como o percebe; não se preocupa com as
1 39 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

conexões entre cada um dos quadros que percebe, nem


com a construção de um quadro sistemático do mundo
e de seus fenômenos. Esse tipo de quadro é necessário
para o adulto cultural, cujo pensamento deve regular
suas interações com o mundo. Exatamente essa lógica
de relações, de conexões causais, e assim por diante, é o
que falta ao pensamento da criança e é substituída por
outros dispositivos lógicos primitivos de pensamento
(VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 167).

Através da inserção na cultura, a criança vai abandonando,


gradativamente, os traços característicos da percepção e modo
de pensar primitivos infantis, desenvolvendo-se e progredindo
rapidamente em direção ao que a vida social lhe ensina:

No processo de seu desenvolvimento, a criança não só


cresce, não só amadurece, mas, ao mesmo tempo - e
isso é a coisa mais fundamental que se pode observar
em nossa análise da evolução da mente infantil -, a
criança adquire inúmeras novas habilidades, inúmeras
novas formas de comportamento. No processo de
desenvolvimento, a criança não só amadurece, mas
também se roma reequipada. É exatamente esse
'reequipamento' que causa o maior desenvolvimento e
mudança que observamos na criança à medida que se
transforma num adulto cultural. É isso que constitui a
diferença mais pronunciada entre o desenvolvimento
dos seres humanos e o dos animais (VYGOTSKY;
LURIA, 1996, p. 1 77).

As mudanças que ocorrem no comportamento animal estão


ligadas a dois fatores principais: o desenvolvimento de traços
naturais, inatos, e o surgimento de novas habilidades, que são
adquiridas no decorrer da vida, ou seja, os reflexos. Assim, o animal
se adapta à natureza alterando-se organicamente, refinando seus
órgãos perceptivos e ativando seus recursos motores. O homem
evoluiu em outra direção. Em sua caminhada do homem primitivo
ao homem moderno, ele não altera sua estrutura biológica para
adaptar-se passivamente à natureza: ele cria e recria instrumentos
que servem de extensão a seus órgãos naturais, adapta e transforma
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 40
3 - F o rma ção da consciência •

a natureza de acordo com suas necessidades e neste processo


modifica seu comportamento, suas funções psicológicas.

Sob pressão imediata das condições externas, o homem,


em sua luta ativa com o mundo exterior, aprendeu a
não usar diretamente suas capacidades naturais na luta
pela existência, mas a desenvolver primeiro métodos
mais ou menos complexos para ajudá-lo nessa luta. No
processo da evolução, o homem inventou ferramentas
e criou um ambiente industrial cultural, mas esse
ambiente industrial alterou o próprio homem; suscitou
formas culturais complexas de comportamento,
que tomaram o lugar das formas primitivas.
Gradativamente, o ser httmano aprende a ttsar racionalmente
as capacidades natllrais. A influência do ambiente resulta
no surgimento de novos mecanismos sem precedentes
no animal; por assim dizer, o ambiente se torna
interiorizado; o comportamento torna-se social e mlt11ral
não só em se11 conteúdo, mas também em se11s mecanismos,
em seus meios. [ .. } Muito embora as funções naturais,
.

inatas, sejam semelhantes no homem primitivo e no


homem cultural ou, em alguns casos, possam até
deteriorar-se no correr da evolução, o homem cultural
difere enormemente do homem primitivo pelo fato de
que um enorme repertório de mecanismos psicológicos
- habilidades, formas de comportamento, signos e
dispositivos culturais -evoluíram no correr do processo
de desenvolvimento cultural, como também pelo fato
de que toda a sua mente se alterou sob a influência
das condições complexas que o criaram (VYGOTSKY;
LURIA, 1996, p. 179- 180, grifo nosso).

As colocações acima evidenciam que não existe um paralelo


rigoroso entre a evolução da espécie humana e o desenvolvimento
infantil, pois a criança já nasce em um ambiente cultural-industrial
existente e este fato torna-se a diferença principal entre a criança e o
homem primitivo. Com a criança ocorre um processo de integração
ao contexto cultural que acarreta transformações profundas no
comportamento através do desenvolvimento de mecanismos e
funções específicas necessárias à sobrevivência no ambiente.
141 • S I LV A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

Vygotski demonstra, experimentalmente, a transformação


das funções psicológicas infantis - a memória, a atenção, a
abstração, a aquisição de instrumentos, a fala e o pensamento -
de seus estágios mais primitivos para aqueles considerados, por
ele, como mais evoluídos culturalmente, isto é, mediados por
signos, pela utilização de instrumentos psicológicos, adquiridos
culturalmente.

O desenvolvimento começa com a mobilização das


funções mais primitivas (inatas), com seu uso natural.
A seguir, passa por uma fase de treinamento, em
que, sob a influência de condições externas, muda
sua estrutura e começa a converter-se de um processo
natural em um 'processo cultural' complexo, quando
se constitui uma nova forma de comportamento
com a ajuda de uma série de dispositivos externos. O
desenvolvimento chega, afinal, a um estágio em que
esses dispositivos auxiliares externos são abandonados
e tornados inúteis e o organismo sai desse processo
evolutivo transformado, possuidor de novas formas e
técnicas de comportamento (VYGOTSKY; LURIA,
1996, p. 2 1 5).

As tarefas que a sociedade moderna exige do homem são de


grande complexidade no que diz respeito ao domínio da técnica
e dos instrumentos existentes para a sobrevivência. Apenas a
convivência em sociedade, a inserção em ambientes informativos
informais espontâneos não garantiria o desenvolvimento necessário
para a integração futura nas atividades sociais produtivas:

Uma criança pequena não consegue resolver problemas


complexos da vida real por meio de adaptação natural
direta; só começa a utilizar caminhos indiretos para
resolver esses problemas depois que a escola e a
experiência tiverem refinado o processo de adaptação,
depois que a criança tiver adquirido técnicas culturais.
Em ativo confronto com o meio ambiente, desenvolve
a capacidade de utilizar coisas do mundo exterior,
como ferramentas, ou como signos. De início, o uso
funcional dessas coisas possui um caráter ingênuo,
inadequado; subseqüentemente, a criança passa aos
S I LV A N A C A L V O T U L E S K I • 1 42
3 - F o rma ção da consciência •

poucos a dominá-las e, finalmente, as supera, ao


desenvolver a capacidade de utilizar seus próprios
processos neuropsicológicos como técnicas para
alcançar determinados fins. O comportamento natural
torna-se comportamento cultural; técnicas externas e
signos culturais aprendidos na vida social tornam-se
processos internos (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p.
2 19).

A escola seria uma das principais instituições para responder


pelo desenvolvimento das funções psicológicas superiores, pois
ajuda a criança a se apropriar dos signos/mediadores culturais, que
permitem o autodomínio ou autocontrole das capacidades mentais
(intelectuais e emocionais).
As idéias de Vygotski comprovam cientificamente a
possibilidade de formação do homem comunista. Acreditava-se
que o socialismo era a fase inicial de transformação da sociedade e,
apenas com a transformação das relações em relações comunistas,
seria possível alcançar os ideais de igualdade. Segundo os clássicos
do marxismo-leninismo, o modo de produção comunista passaria
em sua trajetória por duas fases: uma inferior (o socialismo) e outra
superior (o comunismo). As características principais desta segunda
etapa são encontradas no manual Economía Política:

O comunismo é um regime social sem classes, com


uma forma única de propriedade sobre os meios de
produção; a propriedade é de todo o povo, e com
uma plena igualdade social de todos os membros da
sociedade. É nele que, junto com o desenvolvimento
universal dos homens, crescerão as forças produtivas
sobre a base de uma ciência e uma técnica em
desenvolvimento constante, emanarão em pleno fluxo
todas as fontes da riqueza social e será realizado o
grande princípio de cada qual, segundo sua capacidade;
a cada qual, segundo suas necessidades. O comunismo é uma
sociedade altamente organizada de trabalhadores livres e
conscientes, nela se estabelecerá a autogestão social, o trabalho
para o bem da sociedade será para todos a primeira exigência
vital, necessidade feita consciente, e a capacidade de cada
indivíduo se aplicará com o maior proveito para o povo
(RUMIÁNTSEV, 1982, p. 655, grifo nosso).
1 43 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

O socialismo cria condições para o desenvolvimento imenso


da produção, mas não assegura a abundância de artigos de
consumo capazes de satisfazer as demandas de todos os membros
da sociedade. Em seu seio continuam existindo diferenças
socioeconômicas entre cidade e campo e entre trabalho manual
e social, contradições que desapareceriam com o comunismo. A
produção socialista desenvolve-se de maneira planificada, enquanto
que no comunismo haverá uma organização da produção em um
grau superior de desenvolvimento do trabalho diretamente social,
desaparecendo as relações monetário-mercantis, que no socialismo
exercem um papel importante.

No processo de transformação das relações socialistas


de produção em relações comunistas se operarão
mudanças notáveis no âmbito da superestrutura social:
na atividade das instituições políticas, jurídicas etc. O
avanço da eJtatização JocialiJta conduzirá, paulatinamente,
a Jua traniformação em uma autogeJtão Jocial comuniJta
(RUMIÁNTSEV, 1982, p. 657, grifo nosso).

Para alcançar esta autogestão social, característica da etapa


superior, seria necessária a preparação das massas em nível técnico
e cultural, como também formar a consciência comunista, com
a total eliminação das características, atitudes e comportamentos
burgueses.

Á medida que se cria a sociedade desenvolvida se vai


formando um poderoso complexo econômico, ganha
em importância como nunca o papel da ciência e
alcança um alto nível de desenvolvimento cultural
e a instrução científica e técnica dos membros da
sociedade. Avançam e se fortalecem as relações de
produção do socialismo baseadas na propriedade social
dos meios de produção. O progresso material e cultural
da sociedade faz que se aproximem notavelmente as
condições de vida e trabalho na cidade e no campo, na
esfera do trabalho intelectual e manual. Aperfeiçoa-se
o funcionamento planificado da economia como um
todo único. Afirmam-se os princípios socialistas de
distribuição dos bens. Acelera-Je o proceJJo de JUperação
S I L V A N A C A LV O T U L E S K I • 1 44
3 - F orma ção da consciência •

das supervivências do capitalismo na consciência daspessoas e


a formação da atitude comunista ante o trabalho. O Estado
Soviético, que surgiu como ditadura do proletariado, se
transforma em Estado de rodo o povo (RUMIÁNTSEV,
1982, p. 658, grifo nosso).

A formação de atitudes e comportamentos só poderia ocorrer


desde o início, desde a inserção da criança como membro em
sociedade. A partir daí é possível analisar a importância dos estudos
de Vygotski para a sociedade russa daquele período. Identificar
como e em que momento da vida desenvolve-se o pensamento
racional e suas relações com as demais funções psicológicas, bem
como de que forma o meio externo pode transformá-lo ou modificá­
lo era de suma importância para o projeto coletivo comunista, cuja
ênfase estava na racionalidade humana.
No momento em que a criança começa a desenvolver a
linguagem, ocorre um salto qualitativo em seu desenvolvimento.
A aquisição da linguagem, a partir da interação com os membros
adultos de seu meio social, permite uma superação qualitativa dos
fatores biológicos existentes em cada função psicológica, isto é, a
percepção, a memória, a imaginação etc., enfim, todas as funções
se redimensionam a partir dos significados que a linguagem oferece
à realidade.
Todas as funções psicológicas, portanto, se desenvolvem e este
desenvolvimento é qualitativo e não apenas quantitativo, como a
"velha" psicologia pregava. As funções não estão prontas desde o
nascimento, elas possuem um componente primitivo, biológico,
instintivo a princípio, que com a inserção da criança em sociedade
vai se modificando e assumindo um caráter diferenciado. Ocorre,
então, um salto qualitativo interno, provocado pelo meio externo,
que redimensiona totalmente as funções elevando-as a patamares
superiores, pois o indivíduo passa de ser controlado por elas
(funções) a controlá-las conscientemente.
Em relação à percepção, Vygotski apresenta suas diferenças
na criança e no adulto:
1 45 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Uma das características particulares da percepção do


homem adulto é que nossas percepções são estáveis,
ortoscópicas; a outra é que nossas percepções têm
sentido. Tem-se demonstrado experimentalmente
que não podemos criar condições que separem
funcionalmente nossa percepção da atribuição de
sentido ao objeto percebido. [. .} A interpretação da
.

coisa, a denominação do objeto, se dá junto com sua


percepção e, como demonstram investigações especiais,
a própria percepção de aspectos objetivos isolados
desse objeto, depende do sentido, do significado que
acompanha a percepção (VYGOTSKI, 1993, p. 359).

Estas características, no entanto, não estão dadas desde o


nascimento, mas são produto do desenvolvimento da criança e de
sua inserção no meio cultural. O mesmo ocorre com a memória:
memoriza-se melhor o que tem sentido. Vygotski afirma que a
memória existe desde a mais tenra idade, ela é extraordinariamente
forte na infância e limita-se em grande parte a imagens (memória
eidética) ligadas a conteúdos emocionais. Com o desenvolvimento
da criança, esta memória de base fundamentalmente orgânica vai
debilitando-se cada vez mais, enquanto um outro tipo de memória
desenvolve-se gradativamente.

As investigações teóricas têm confirmado a hipótese


de que historicamente o desenvolvimento da
memória humana tem seguido a linha fundamental
da memorização mediada, isto é, que o homem
criou novos procedimentos, com ajuda dos quais
subordinou a memória a seus fins, controlando o curso
da memorização, fazendo-a cada vez mais volitiva,
convertendo-a em reflexo de particularidades cada vez
mais específicas da consciência humana. Em particular,
somos da opinião que o problema da memorização
mediada conduz ao da memória verbal, que no homem
acuai desempenha um importante papel e que se baseia
na memorização do registro verbal dos acontecimentos,
de sua formulação verbal (VYGOTSKI, 1993, p.
378).
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • l 46
3 - F o rma ção da consciência •

O desenvolvimento da memória, portanto, não é apenas


quantitativo, a estrutura funcional da memória se modifica ao
ligar-se ao pensamento verbal:

o central para toda a estrutura da consciência e para


todo o sistema de atividade das funções psíquicas
constitui o desenvolvimento do pensamento. Com ele
guarda também estreita relação a idéia de intelectualização
de todas as funções restantes, isto é, suas variações dependem
de que uma determinada fase do pensamento conduza a
atribuição de sentido a estas funções, que a criança começa
a comportar-se racionalmente em sua atividade psíquica.
Devido a isso, uma série de funções que atuavam
automaticamente começam a faze-lo conscientemente,
logicamente (VYGOTSKI, 1993, p. 400-40 1 , grifo
nosso).

A união do pensamento com a linguagem redimensiona todas


as funções psicológicas, fazendo-as passar para o domínio do próprio
indivíduo. Este processo de constituição das funções psicológicas
superiores, a partir das elementares, de base biológica, é lento e
gradativo, dependente das possibilidades que o meio social e cultural
oferece às crianças, bem como da forma e conteúdo das mediações
presentes nele. O acesso aos bens culturais (instrumentos e signos)
depende diretamente da forma de organização da sociedade e seria
a garantia de desenvolvimento de todos os indivíduos de forma
completa e contínua.
A linguagem, para Vygotski, e sua ligação com o pensamento
alteram inclusive a forma e conteúdo da imaginação, dos
sentimentos e da vontade. O comportamento infantil, a partir
do pensamento verbal, aquisição fundamentalmente social, vai
desligando-se gradativamente dos impulsos e reações basicamente
biológicas, intelectualizando-se.

A linguagem libera a criança das impressões imediatas


sobre o objeto, brinda-a com a possibilidade de
representar qualquer objeto que não tenha visto e
pensar nele. Com a ajuda da linguagem, a criança obtém
a possibilidade de liberar-se do poder das impressões
1 47 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

imediatas, saindo de seus limites. A criança pode


expressar com palavras também o que não coincide
com a combinação exata de objetos reais ou as idéias
correspodentes. Isso lhe proporciona a possibilidade
de desenvolver-se com extraordinária liberdade na
esfera das impressões designadas mediante palavras
(VYGOTSKI, 1993, p. 43 1).

A compreensão, alcançada através do pensamento verbal,


permite o autocontrole (inibição das atitudes impulsivas), das
ações apenas por reflexos. O comportamento da criança, sua
vontade, que a princípio são regulados pelo meio externo, pelos
comandos verbais e ações dos indivíduos com os quais convive,
passam, lentamente, a ser controlados pelo próprio pensamento.
Como todas as funções psíquicas, a imaginação não permanece
isolada, se combina e recombina com as demais no processo de
inserção da criança em seu meio cultural:

As investigações reais não só não confirmam que


a imaginação infantil é uma forma de pensamento
não verbal, autista, não dirigido, senão que, ao
contrário, mostram a cada passo que o processo
de desenvolvimento da imaginação infantil, como
o processo de desenvolvimento de outras funções
psíquicas superiores, está seriamente ligado à
linguagem da criança, à forma psicológica principal de
sua comunicação com aqueles que a rodeiam, isto é,
com a forma fundamental de atividade coletiva social
da consciência infantil (VYGOTSKI, 1993, p. 433).

A transformação do comportamento humano, ou seja, a


constituição das funções superiores e a superação do comportamento
primitivo, conduzido mais pela base biológica do comportamento
(instintos e reflexos), dependeria da organização social.
A União Soviética necessitava de uma racionalidade compatível
com o projeto coletivo de construção do comunismo, para
poder reorganizar-se. O movimento das massas, onde interesses
diversos foram combinados para efetivar a Revolução, necessitava
ser compreendido e que as energias fossem direcionadas para a
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 48
3 - F o rma ção da consciência •

reconstrução social, a fim de garantir a sobrevivência da população


e a passagem ao comunismo.
A época de Vygotski foi de extrema recessão, escassez de
alimentos, choques entre grupos antagônicos e, sobretudo, de
ameaça ao projeto coletivo, aos objetivos da própria Revolução e
ao ideal da nova sociedade. Contraditoriamente, também alcançou
grandes avanços no que diz respeito à industrialização e melhoria do
nível cultural da população, apesar dos sacrifícios e imposições.
A capacidade de produzir ações compatíveis com as
necessidades do projeto social aparece estritamente ligada ao
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, traduzidas
pelo domínio da própria vontade, das emoções e de todas as demais
funções psicológicas pelo pensamento verbal e lógico, afastando­
se do comportamento impulsivo comum aos animais ou mesmo
ao homem primitivo, e dando os primeiros passos em direção à
construção do homem comunista.
Este ponto de vista é fortalecido por Leontiev quando
afirma:

O verdadeiro problema não está, portanto, na aptidão


ou na inaptidão das pessoas para se tornarem senhores
das aquisições da cultura humana, fazer delas aquisições
da sua personalidade e dar-lhes a sua contribuição. O
âmago do problema é que cada homem, cada povo
tenha a possibilidade prática de tomar o caminho de
um desenvolvimento que nada entrave. Tal é o fim
para o qual deve tender agora a humanidade virada
para o progresso.
Este fim é acessível. Mas só em condições que permitam
libertar realmente os homens do fardo da necessidade
material, de suprimir a divisão mutiladora entre
trabalho intelectual e trabalho físico, criar um sistema
de educação que lhes assegure um desenvolvimento
multilateral e harmonioso e que dê a cada um a
possibilidade de participar, enquanto criador, de todas
as manifestações da vida humana (LEONTIEV, 1995,
p. 302).
1 49 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

Entende-se, portanto, que apenas a sociedade comunista


proporcionaria as condições necessárias para que os homens
empreendesssem a superação da dominação do homem pelo
homem e da alienação intrínseca à divisão de classes, presentes na
sociedade capitalista.
Em outras palavras, as possibilidades de dominar a própria
conduta, pela apropriação dos instrumentos e signos produzidos
pela humanidade já estavam postas pela história, isto é, o
desenvolvimento da conduta superior já era uma possibilidade
devido ao nível de desenvolvimento da cultura e da técnica, mas
só poderia concretizar-se em uma sociedade que efetivasse um
projeto coletivo de autogerência social, que negasse a exploração
do homem pelo homem.

O signo, em princípio, é sempre um meio de relação


social, um meio de influência sobre os demais e tão
somente depois se transforma em meio de influência
sobre si mesmo (VYGOTSKI, 1 995, p. 145).

Os signos, assim como os instrumentos, foram criados por


necessidades humanas concretas, vinculadas à sobrevivência
social, em cada período histórico. Da mesma maneira que os
instrumentos, as funções superiores do pensamento, por operarem
a partir de signos, se manifestam primeiro por necessidades da
vida coletiva, e somente depois passam a fazer parte da conduta
individual reflexiva infantil, isto é, de sua psique. Na gênese de
todas as funções superiores e suas relações, portanto, encontram­
se relações sociais concretas, as autênticas relações humanas que as
produziram.
Para Leontiev, a apropriação dos instrumentos implica numa
reorganização dos movimentos naturais instintivos do homem e na
formação das faculdades motoras superiores:

A principal característica do processo de apropriação


ou de "aquisição" que descrevemos é, portanto, criar
no homem aptidões novas, funções psíquicas novas, é
nisto que se diferencia do processo de aprendizagem
dos animais. Enquanto este último é o resultado de
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 1 50
3 - F orma ção da consciência •

uma adaptação individual do comportamento genérico


a condições de existência complexas e mutantes, a
assimilação no homem é um processo de reprodução,
nas propriedades do indivíduo, das propriedades e
aptidões historicamente formadas na espécie humana
(LEONTIEV, 1995, p. 288).

Assim, as aqu1s1ções do desenvolvimento histórico das


aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos
fenômenos objetivos da cultura material e espiritual, mas são
apenas aí colocadas. Para que cada indivíduo se aproprie destes
resultados, para que estas aptidões passem a fazer parte deles
(individualmente), deve-se entrar em relação com estes fenômenos
através de outros homens:

As aquisições do desenvolvimento histórico das


aptidões humanas não são simplesmente dadas
aos homens nos fenômenos objetivos da cultura
material e espiritual que os encarnam, mas são aí
apenas postas. Para se apropriar destes resultados,
para fazer deles as suas aptidões, "os órgãos de sua
individualidade", a criança, o ser humano, deve
entrar em relação com os fenômenos do mundo
circundante através de outros homens, isto é, num
processo de comunicação com eles. Assim, a criança
aprende a atividade adequada. Pela sua função este
processo é, portanto, um processo de educação.
É evidente que a educação pode ter e tem efetivamente
formas muito diversas . Na sua origem, nas primeiras
etapas do desenvolvimento da sociedade humana,
como nas crianças pequenas, é uma simples imitação
dos atos do meio, que se opera sob o seu controle
e com a sua intervenção; depois complica-se e
especializa-se, tomando formas tais como o ensino e
a educação escolares, diferentes formas de educação
superior e até formação autodidata.
Mas o ponto principal que deve ser bem sublinhado
é que este processo deve sempre ocorrer, sem o que
a transmissão dos resultados do desenvolvimento
sócio-histórico da humanidade nas gerações seguintes
seria impossível, e impossível, conseqüentemente, a
151 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

continuidade do processo histórico (LEONTIEV, 1995,


p. 290-291).

Entendendo a educação como um processo social, como


mostram Vygotski e Leontiev, é importante que se tenha em
mente qual o significado da palavra social, tal como estes autores
a compreendem. É assim explicitada a essência deste conceito para
Vygotski:

A palavra 'social' aplicada a nossa disciplina


cem grande importância. Primeiro, no sentido
mais amplo significa que todo o cultural é social.
Justamente a cultura é um produto da vida social e
da atividade social do ser humano; por isso, a própria
exposição do problema do desenvolvimento cultural
da conduta nos leva diretamente ao plano social do
desenvolvimento. Poderíamos assinalar, portanto,
que o signo, que se acha fora do organismo, como a
ferramenta, está separado da personalidade e serve
em sua essência ao órgão social o ao meio social.
Poderíamos dizer, por outro lado, que todas as
funções superiores não são produto da biologia,
nem da história da filogênese pura, senão que o
próprio mecanismo que subjaz nas funções psíquicas
superiores é uma cópia do social. Todas as funções
psíquicas superiores são relações interiorizadas
da orden social, são o fundamento da estrutura
social da personalidade. Sua composição, estrutura
genética e modo de ação, em uma palavra, toda
sua natureza é social; inclusive ao converter-se em
processos psíquicos segue sendo quase-social. O
homem, inclusive sozinho consigo mesmo, conserva
funções de comunicação.
Modificando a conhecida tese de Marx, poderíamos
dizer que a natureza psíquica do homem vem a ser
um conjunto de relações sociais transpostas para o
interior e convertidas em funções da personalidade
e formando sua estrutura. Não pretendemos dizer
que esse seja, precisamente, o significado da tese de
Marx, mas vemos nela a expressão mais completa
de todo o resultado da história do desenvolvimento
cultural (VYGOTSKI, 1995, p. 1 5 1) .
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 52
3 - F orma ção da consciência •

A tese central de sua teoria afirma ser a psique uma


construção histórico-social, o que constitui o elemento inovador
de sua psicologia, condizente com os encaminhamentos dados
para a construção da consciência comunista. A sociedade soviética
estava criando as condições concretas para o desenvolvimento de
relações sociais autenticamente comunistas, ao mesmo tempo
que necessitava alterar a consciência das massas, eliminando as
características burguesas, e transforma-la, gradativamente, em
consciência comunista, voltada à coletividade: essência do "homem
novo" .
A dificuldade crescente de s e estabelecerem relações
essencialmente comunistas e a crescente recuperação das
formas burguesas de produção eram a base para o reforço
das atitudes e modos de pensar burgueses que, como vimos,
foram solidificando-se pouco a pouco no interior de toda a
sociedade. O desenvolvimento tecnológico e industrial e o
incentivo à produção reforçava comportamentos adversos ao
projeto de sociedade comunista. Para evitar o abandono dos
postos de trabalho, as faltas e a desmotivação, recorreu-se à
autoridade arbitrária, às diferenciações salariais e prêmios por
produtividade, incentivando e reforçando a competição, o
egoísmo e o individualismo. A luta entre tendências antagônicas
no interior da sociedade, que dificultavam a construção de
atitudes coletivas verdadeiramente comunistas, trouxe a
necessidade de se compreender como o homem pode ser capaz
de redirecionar sua psique, reconstruí-la.
Para Bettelheim não basta a um sistema dizer-se comunista
para sê-lo na realidade, objetivamente; são as relações de produção,
que se reproduzem em seu interior, que determinarão a "natureza"
do sistema. Assim, a existência das formas "valor'', "dinheiro"
e "salário" implica que, a despeito da propriedade dos meios de
produção pelo Estado, os trabalhadores permaneçam socialmente
separados deles e não possam colocá-los em movimento senão por
obrigações externas. A atividade produtiva dos trabalhadores,
assim organizada, não tem caráter diretamente social, conservando
um duplo caráter, ao mesmo tempo "individual" e "social".
1 53 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Somente o desaparecimento deste caráter "privado",


individual e particular do trabalho, e da independência relativa
dos diferentes trabalhos possibilitaria a destruição das condições
de existência das relações mercantis e capitalistas, o que só
poderia ser assegurado pelo desenvolvimento em escala social da
produção e distribuição coletiva. Estas relações de cooperação, no
entanto, deveriam estabelecer-se gradativamente, enquanto forma
necessária à sobrevivência dos indivíduos, quando se inviabilizasse
a manutenção da grande maioria, sob condições individualizadas.
O que ocorreu foi uma coletivização em massa e realizada
pelo alto, através da utilização de meios coercitivos e violentos,
que transformou a forma de organização das empresas e unidades
agrícolas, mas manteve seu conteúdo mercantil.

A eliminação do comércio e da indústria privados e a


supressão da antiga exploração camponesa individual
representam uma vitória das formas socialistas da
economia, uma vitória do proletariado sobre a burguesia
privada. Entretanto, [ } os meios aplicados para este
...

fim não são principalmente meios proletários - são os


de transformações realizadas "pelo alto" -, o que limita
o alcance político e social das transformações operadas,
reforçando os elementos capitalistas de relações de
produção que se reproduzem no âmbito dos setores
do Estado e cooperativo, e reforçando os aspectos
burgueses dos aparelhos de Estado (BETTELHEIM,
1976, p. 309).

Assim, se a vitória das formas socialistas é resultante da


aplicação de medidas tomadas por uma cúpula, deslocada da
vontade das massas, ela não é resultado das contradições do próprio
processo de acumulação. Tal encaminhamento desencadeou uma
série de efeitos contraditórios. De um lado, consolidou a ditadura do
proletariado, aumentando o número da classe operária ao resolver
o problema do desemprego e transformando a União Soviética
em uma grande potência industrial; por outro, enfraqueceu a
ditadura do proletariado, pois acarretou uma ruptura definitiva da
aliança operário-camponesa, o que conduziu a uma crise agrícola
sem precedentes, que obrigou ao desenvolvimento de aparelhos
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 54
3 - F o rma ção da consciência •

de coerção e repressão, intervindo contra amplas camadas da


população e destruindo a democracia socialista.
O Primeiro Plano Qüinqüenal, anunciado por Stálin em 1928,
era a princípio uma proposta de coletivização gradual da agricultura,
passando as fazendas ao controle do Estado, pressupondo a adesão
voluntária do campesinato devido aos benefícios que este poderia
alcançar com a modernização da economia. O que ocorreu foi uma
resistência férrea em relação à nova política agrícola, desencadeando
a coletivização forçada por parte do Estado. Apesar da violência
exercida sobre os camponeses, as medidas triplicaram o número
de fazendas coletivas do Estado. Em 1938 as fazendas coletivas
abrigavam 9 3,4% da população rural (BETTELHEIM, 1 976).
Depois do Primeiro Plano Qüinqüenal, dois outros foram
criados que, embora mais moderados do que o primeiro, seguiam
as mesmas metas econômicas de desenvolvimento e modernização.
O resultado econômico positivo dos programas de coletivização e
industrialização, acelerado pelos planos, não pode ser negado, pois,
ao final da década de 30, a URSS era uma nação capaz de competir
com outros países quanto a índices de produção industrial, embora
o padrão de vida da população não pudesse ser comparado aos
das nações desenvolvidas. O país produzia carvão, energia elétrica
e petróleo em quantidades crescentes. A agricultura já mostrava
resultados positivos em decorrência do progresso técnico e as
fazendas coletivas já eram capazes de produzir alimentos em
quantidade suficiente para eliminar a fome e a subnutrição.
É preciso ressaltar que o desenvolvimento alcançado se fez
em sacrifício do comunismo (etapa superior do socialismo) ou,
da constituição de relações efetivamente comunistas e, talvez,
só tenha sido possível, tão rapidamente, por causa desta forma
contraditória. Para Bettelheim, a partir do final da NEP, o
proletariado vai se revestindo objetivamente de um duplo caráter.
Esta camada social é proletária por sua origem de classe e por sua
dedicação aos objetivos da Revolução, mas é burguesa pelas funções
que vai assumindo, pela maneira como cumpre tais funções, pelo
modo de vida que adota, tendendo assim, por certo número de
1 55 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

características objetivas e subjetivas, a se constituir em uma força


mais burguesa do que proletária.
Os traços específicos deste duplo caráter do proletariado
vão se modificando em função das lutas de classe e em relação à
destruição ou consolidação da separação da classe operária de seus
meios de produção. A destruição desta separação consolidaria a
ditadura do proletariado e, ao mesmo tempo, contribuiria para
o desaparecimento do próprio proletariado enquanto classe. Não
tendo desaparecido o proletariado, também não desapareceu a
burguesia, apenas modificou-se a sua forma de existência, bem
como suas relações com as outras classes. Esta também assume um
duplo caráter: de ser burguesa pela direção dada à produção e de
não o ser por estar subordinada à ditadura do proletariado.
Assim, a eliminação da ideologia e das práticas burguesas
era uma condição para a transformação das relações de produção
e vice-versa, o que seria possível com a formação de uma
consciência coletiva, daí o papel importante e decisivo da luta de
classes, principalmente no que diz respeito ao estilo de trabalho
e de direção, bem como em relação à manutenção da democracia
socialista. A via socialista triunfaria à medida que se destruíssem as
relações sociais capitalistas e suas práticas correspondentes, o que
efetivamente não ocorreu.
A impossibilidade prática de se estabelecerem relações de
produção inteiramente novas gerou a necessidade de conviver com
relações de produção que desejavam ver destruídas. Neste contexto
contraditório, a ciência, a tecnologia e o desenvolvimento cultural
passam a ser apontados como recursos necessários à superação
das classes; capazes de conduzir a sociedade ao socialismo e,
posteriormente, ao comunismo.
Esse contexto confere especial significado à teoria de Vygotski
que busca entender o processo de formação das funções superiores,
aquelas que praticamente independem do biológico, que se
sobrepõem às funções biológicas e elementares. O desenvolvimento
do pensamento interligado à linguagem é o ponto central de
todo o seu estudo. Ele demonstra quanto o pensamento verbal
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 56
3 - F orma ção da c onsciência •

opera um salto qualitativo de todas as demais funções. Esta forma


de pensamento, que tem seu auge na formação de conceitos
ou pensamento generalizante, o qual se estrutura por volta da
adolescência, é o responsável pela intelectualização de todas as
funções e domínio da própria conduta. Em sua obra Pensamento e
linguagem, de 1 934, Vygotski deixa clara esta interligação:

A análise experimental do processo de formação


de conceitos revela que o elemento fundamental e
imprescindível de todo esse processo é o uso funcional
das palavras e outros signos na qualidade de meios
para dirigir ativamente a atenção, analisar e destacar
os atributos, abstraí-los e sintetizá-los. A formação
do conceito ou a aquisição do significado por parte
da palavra é o resultado de uma atividade complexa
(o manejo da palavra ou o signo) na qual intervêm e
se combinam de um modo especial todas as funções
intelectuais básicas (VYGOTSKI, 1993, p. 1 3 1).

Todas as demais funções participam do processo de formação


de conceitos, mas nenhuma delas tem fator decisivo e essencial, pois
este não pode ser reduzido à associação, à atenção, à representação,
à inferência etc., embora todas estas funções sejam indispensáveis
para o mesmo. O mais importante é o uso funcional do signo ou
da palavra como meio para dominar e dirigir as próprias operações
psíquicas, controlando a própria atividade e orientando-a na
resolução das tarefas apresentadas ao indivíduo.
São as tarefas que o meio social apresenta ao adolescente,
as necessidades que este meio cria e alimenta, os objetivos que
propõe, que conduzem ao desenvolvimento do pensamento,
segundo Vygotski:

Diferente da maturação dos instintos e das inclinações


inatas, a força desencadeante do processo, que
põe em marcha os mecanismos de maturação do
comportamento e os faz avançar em desenvolvimento,
não está dentro do adolescente, mas fora dele. Neste
sentido, as tarefas que o meio social impõe ao adolescente,
relacionadas com sett ingresso no mttndo cttlt11ral, profissional
1 57 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

características objetivas e subjetivas, a se constituir em uma força


mais burguesa do que proletária.
Os traços específicos deste duplo caráter do proletariado
vão se modificando em função das lutas de classe e em relação à
destruição ou consolidação da separação da classe operária de seus
meios de produção. A destruição desta separação consolidaria a
ditadura do proletariado e, ao mesmo tempo, contribuiria para
o desaparecimento do próprio proletariado enquanto classe. Não
tendo desaparecido o proletariado, também não desapareceu a
burguesia, apenas modificou-se a sua forma de existência, bem
como suas relações com as outras classes. Esta também assume um
duplo caráter: de ser burguesa pela direção dada à produção e de
não o ser por estar subordinada à ditadura do proletariado.
Assim, a eliminação da ideologia e das práticas burguesas
era uma condição para a transformação das relações de produção
e vice-versa, o que seria possível com a formação de uma
consciência coletiva, daí o papel importante e decisivo da luta de
classes, principalmente no que diz respeito ao estilo de trabalho
e de direção, bem como em relação à manutenção da democracia
socialista. A via socialista triunfaria à medida que se destruíssem as
relações sociais capitalistas e suas práticas correspondentes, o que
efetivamente não ocorreu.
A impossibilidade prática de se estabelecerem relações de
produção inteiramente novas gerou a necessidade de conviver com
relações de produção que desejavam ver destruídas. Neste contexto
contraditório, a ciência, a tecnologia e o desenvolvimento cultural
passam a ser apontados como recursos necessários à superação
das classes; capazes de conduzir a sociedade ao socialismo e,
posteriormente, ao comunismo.
Esse contexto confere especial significado à teoria de Vygotski
que busca entender o processo de formação das funções superiores,
aquelas que praticamente independem do biológico, que se
sobrepõem às funções biológicas e elementares. O desenvolvimento
do pensamento interligado à linguagem é o ponto central de
todo o seu estudo. Ele demonstra quanto o pensamento verbal
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 56
3 - F o rm a ção da consciência •

opera um salto qualitativo de todas as demais funções. Esta forma


de pensamento, que tem seu auge na formação de conceitos
ou pensamento generalizante, o qual se estrutura por volta da
adolescência, é o responsável pela intelectualização de todas as
funções e domínio da própria conduta. Em sua obra Pensamento e
linguagem, de 1 934, Vygotski deixa clara esta interligação:

A análise experimental do processo de formação


de conceiros revela que o elemenro fundamental e
imprescindível de rodo esse processo é o uso funcional
das palavras e outros signos na qualidade de meios
para dirigir ativamente a atenção, analisar e destacar
os atriburos, abstraí-los e sintetizá-los. A formação
do conceito ou a aquisição do significado por parte
da palavra é o resultado de uma atividade complexa
(o manejo da palavra ou o signo) na qual intervêm e
se combinam de um modo especial todas as funções
intelectuais básicas (VYGOTSKI, 1993, p. 1 3 1).

Todas as demais funções participam do processo de formação


de conceitos, mas nenhuma delas tem fator decisivo e essencial, pois
este não pode ser reduzido à associação, à atenção, à representação,
à inferência etc., embora todas estas funções sejam indispensáveis
para o mesmo. O mais importante é o uso funcional do signo ou
da palavra como meio para dominar e dirigir as próprias operações
psíquicas, controlando a própria atividade e orientando-a na
resolução das tarefas apresentadas ao indivíduo.
São as tarefas que o meio social apresenta ao adolescente,
as necessidades que este meio cria e alimenta, os objetivos que
propõe, que conduzem ao desenvolvimento do pensamento,
segundo Vygotski:

Diferente da maturação dos instintos e das inclinações


inatas, a força desencadeante do processo, que
põe em marcha os mecanismos de maturação do
comportamento e os faz avançar em desenvolvimento,
não está dentro do adolescente, mas fora dele. Neste
sentido, as tarefas que o meio social impõe ao adolescente,
relacionadas com seu ingresso no mundo cultural, profissional
1 57 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

e social dos adultos, constituem na realidade um elemento


funcional extremamente importante, que manifesta uma vez
mais o condicionamento mútuo, a unidade orgânica e a coesão
interna dos aspectos de conteúdo eforma no desenvolvimento do
pensamento (VYGOTSKI, 1993, p. 1 3 3 , grifo nosso).

É o trabalho, a necessidade de dedicar-se ao trabalho, nem


sempre atraente, mas indispensável à sobrevivência, que fez
o homem desenvolver a atenção voluntária. Foram, portanto,
determinadas condições sooa1s que produziram a atenção
voluntária e a transformaram em uma operação interna:

Podemos dizer, portanto, que a atenção voluntária é um


processo de atenção mediada arraigada interiormente,
e que o próprio processo está inteiramente sujeito às
leis gerais do desenvolvimento cultural e da formação
de formas superiores de conduta. Isso significa que a
atenção voluntária, canto por sua composição como
por sua estrutura e função, não é o simples resultado
do desenvolvimento natural, orgânico da atenção,
senão o resultado de sua mudança e reestruturação pela
influência de estímulos-meios externos (VYGOTSKI,
1995, p. 224).

O desenvolvimento da atenção voluntária na criança, portanto,


segue a mesma lei que Vygotski postula para todas as funções
superiores, a lei da internalização, ou seja, todas as funções surgem
como necessidades do meio social, na interação entre os indivíduos
e, posteriormente, passam a fazer parte do arsenal psíquico de cada
indivíduo:

Se não se levar em conta esta função da linguagem, que


é a mais importante entre as primeiras funções, não se
poderá compreender jamais de que maneira se forma
toda a experiência psicológica superior da criança. [ . . .)
Sabemos que a continuidade geral do desenvolvimento
cultural da criança é a seguinte: primeiramente outras
pessoas atuam sobre ele; produz-se depois a interação da
criança com seu contexto e, finalmente, é a criança quem
atua sobre os demais e tão somente no final passa a atuar em
relação a si mesma.
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • 1 58
3 - F o rma ção da consciência •

É assim que se desenvolvem a linguagem, o


pensamento, e todos os demais processos superiores da
conduta. O mesmo ocorre com a atenção voluntária.
No princípio, é o adulto quem orienta a atenção da
criança com suas palavras, criando uma espécie de
indicações complementares, algo assim como flechas,
sobre os objetos de seu meio, elaborando com elas
poderosos estímulos indicadores. Logo é a criança que
passa a participar ativamente em tais indicações e é o
mesmo quem utiliza a palavra ou o som como meio
indicador, isto é, orienta a atenção do adulto para o
objeto que lhe interessa (VYGOTSKI, 1995, p. 232,
grifo nosso).

Neste sentido pode-se compreender a importância que


Vygotski atribui à educação, como processo capaz de desenvolver
estas funções, as quais não são fruto de uma evolução puramente
biológica.

Educação para o autodomínio, para a gestão coletiva. . .

Para Vygotski, portanto, o que antes era utilizado no meio


como formas de interferência no comportamento e conduta de
outros, passa a ser utilizado depois para o controle do próprio
comportamento. Este processo ocorre com todas as funções. Com
a memória, por exemplo, o autodomínio se dá através da utilização
de estímulos-signos externos, denominados de mnemotécnica. Para
ele, o desenvolvimento da memória cultural segue dois caminhos:
o da memorização lógica e o da escrita, ambos interligados pela
memória verbal, isto é, pela memorização mediante palavras.
A linguagem, portanto, é fundamental para o desenvolvimento
de todas as demais funções; reestrutura o pensamento, conferindo­
lhe novas formas e, através do pensamento verbal, transforma
todas as outras funções:

Fica por admitir que nosso domínio sobre os processos


próprios do comportamento se constrói, em essência,
1 59 • S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

da mesma maneira que nosso domínio sobre os


processos da natureza, já que o homem que vive em
sociedade está sempre sujeito à influência de outras
pessoas. A linguagem, por exemplo, é um desses poderosos
meios de influência sobre a conduta alheia e, como é natural,
o próprio homem no processo de seu desenvolvimento, passa
a dominar os mesmos meios que os outros utilizavam, para
orientar seu comportamento (VYGOTSKI, 1995, p. 290,
grifo nosso).

A dominação da conduta não se dá diretamente, mas é mediada


pelos signos, pelos instrumentos psicológicos que permitem a
auto-estimulação:

O homem, utilizando o poder das coisas ou estímulos


sobre sua conduta, passa a dominar por mediação
deles - agrupando-os, confrontando-os - seu próprio
comportamento. Dito de outra maneira: a imensa
peculiaridade da vontade consiste em que o homem não tem
poder sobre sua própria conduta, com exceção do poder que
têm as coisas sobre ela. O homem, sem dúvida, submete
o poder das coisas sobre sua conduta, o põe a serviço
de seus objetivos e o orienta a seu modo. Com sua
atividade externa modifica o meio circundante e influi assim
sobre seu próprio comportamento, o subordina a seu poder
(VYGOTSKI, 1995, p. 292, grifo nosso).

Este processo foi estudado por Vygotski de forma extensa


e aprofundada na grande variedade de textos que escreveu. Em
todos eles é dada ênfase à racionalidade, ao autocontrole racional,
à superação dos comportamentos instintivos e primitivos, mais
biológicos do que culturais.
Este autodomínio, por sua vez, só é alcançado com o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, que
pressupõem transformações nas relações de produção capitalista
e de seu caráter alienante, tornando os indivíduos capazes de
perceber e dominar os estímulos que os conduzem à ação:

Sabemos que a lei básica da conduta é a lei do


estímulo-resposta, portanto, não podemos dominar
nossa conduta de outro modo que através de uma
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 60
3 - F o rma ção da consciência •

estimulação correspondente. A chave para o domínio


do comportamento nos proporciona o domínio dos
estímulos. AsJim, o domínio da conduta é um processo
mediado que se realiza sempre através de certos estímulos
auxiliares. Precisamente o papel dos estímulos-signos [ .. }
.

(VYGOTSKI, 1995, p. 1 26- 127, grifo nosso).

Vygotski segue explicando que estes estímulos auxiliares,


atuando sobre a conduta humana, são primeiro utilizados pelas
outras pessoas com as quais se convive em sociedade, com o objetivo
de alterá-la. Colocando pelo meio social, vão sendo apropriados e
utilizados pelos indivíduos, criativamente, como forma de auto­
conduzir-se. É o homem se transformando enquanto transforma o
mundo à sua volta.

A criança passa a utilizar, com relação a si mesma,


aquelas formas de conduta que os adultos podem
aplicar em sua relação com ela. Esra é a chave do faro
de dominação da própria conduta que nos interessa
(VYGOTSKI, 1995, p. 1 28).

O autodomínio é alcançado com a superação das primeiras


etapas de desenvolvimento da conduta que, por serem primitivas
e estritamente do domínio biológico, são comuns aos homens
e animais. A primeira das etapas é denominada, por Bühler, de
estruturas colaterais, que seria a capacidade do animal de, perante
um obstáculo no caminho para alcançar seu objetivo, encontrar
outro caminho possível para atingi-lo. A segunda, que complementa
a primeira, diz respeito à utilização rudimentar de instrumentos e
a terceira está ligada às reações intelectuais primitivas, aos ensaios,
à observação da situação nova e novas tentativas, encontrada
principalmente nos macacos antropóides (VYGOTSKI, 1 99 5 , v.
3). Mas, para ele, a conduta humana vai além destas etapas:

À margem do esquemapermanece ofato de que o homem constrói


as novas formas de ação, a princípio mentalmente e sobre o
papel; dirige as batalhas no mapa, trabalha sobre modelos
mentais ou, dito de outra maneira, produz tudo o que está
relacionado em sua conduta com o emprego de meios artificiais
de pensamento, com o desenvolvimento social da conduta e, em
1 61 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

particular, com a utilização dos signos. Por isso, junto com o


esquema das três etapas, devemos falar em desenvolvimento do
comportamento numa etapa especial, nova, que se estrutura
sobre o esquema, etapa que talvez seja errôneo nomear de
quarta, pois sua relação com a terceira é algo distinta
da mantida por esta com a segunda; seria, talvez, mais
legítimo, em todo caso, passar da ordem dos números
ordinais aos cardinais e falar de quatro etapas e não
de três, no desenvolvimento da conduta (VYGOTSKI,
1995, p. 1 30, grifo nosso).

Esta nova etapa, que diferenciaria o comportamento humano


do do animal enfrentaria muita resistência por parte das tendências
predominantes na Psicologia de sua época, mas este salto era
fundamental para que a Psicologia se liberasse do "cativeiro"
biológico e passasse ao "terreno da psicologia histórica humana" .
Esta nova etapa, no entanto, esclarece Vygotski, não deveria ser
encarada como uma continuidade das demais, de forma linear,
como se ocorresse um "amadurecimento" :

Nossa tese inicial é o reconhecimento da nova, da


quarta etapa no desenvolvimento do comportamento.
Já dissémos que seria errôneo denominá-la quarta,
e isto tem seus fundamentos. A nova etapa não se
constrói sobre as três anteriores de maneira análoga à
como estas se edificavam uma sobre as outras. A quarta
etapa significa que se modifica o próprio tipo e a orientação do
desenvolvimento da conduta, que corresponde ao tipo histórico
de desenvolvimento humano. Mas é certo que quando
analisamos sua relação com as três primeiras etapas,
que podemos qualificar de naturais no desenvolvimento
da conduta, a dita relação vem a ser similar à que já
mencionamos. [. . } Do mesmo modo que não desaparecem
.

os instintos, senão que se S11peram nos reflexos condicionados,


ou que os hábitos seguem perdurando na reação intelectual,
as funções naturais continuam existindo dentro das culturais

(VYGOTSKI, 1995, p. 1 3 2 , grifo nosso).

Para ele a cultura não cria nada: utiliza o que a natureza dá


e a modifica a serviço do homem, da mesma forma que a vontade
não cria nada em parte alguma, apenas modifica e elege algo.
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 62
3 - F o rma ção da consciência •

Esta nova etapa de desenvolvimento não está subordinada às leis


biológicas da seleção, como as três primeiras:

A seleção deixa de ser nesta esfera da lei básica


da adaptação social; nesta esfera da conduta já
estão socializadas todas as formas neutras do
comportamento. Cabe dizer, se admitimos uma
comparação convencional, que a relação da nova esfera
com as três restantes é a mesma que se dá entre o
processo de desenvolvimento histórico da humanidade
em seu conjunto e a evolução biológica (VYGOTSKI,
1995, p. 1 3 3).

As formas culturais da conduta, que compreendem a quarta


etapa de desenvolvimento, não surgem somente como hábitos
externos, mas convertem-se em parte inseparável da personalidade,
incorporam a ela novas relações e criam um sistema totalmente
novo. É um desenvolvimento peculiar, se comparado com o
orgânico. O desenvolvimento e a mudança na criança se produzem
em uma ativa adaptação ao meio exterior. A adaptação, para
Darwin, se realiza mediante a eliminação dos indivíduos menos
organizados, tratando-se de vida e morte. A adaptação que se dá
no interior dos indivíduos seleciona os velhos métodos e cria novos,
sem transformar o biológico.
Na teoria vygotskiana a escola teria um papel importante no
desenvolvimento cultural das crianças, para a formação do "homem
comunista" com formação omnilateral de acordo com Marx, capaz
de dominar sua própria conduta.

( . . .} o homem, na etapa superior de seu desenvolvimento,


chega a dominar sua própria conduta, subordina a
seu poder as próprias reações. Da mesma forma que
subordina as ações das forças externas da natureza,
subordina também os processos de sua própria conduta
na base das leis naturais de tal comportamento. Como
as leis naturais do comportamento baseiam-se nas leis
do estímulo-reação, torna-se impossível dominar a
reação enquanto não se domine o estímulo. A criança,
por conseguinte, domina sua condttta sempre que domine o
sistema dos estímulos que é ma chave. A criança domina a
l 63 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

operação aritmética quando domina o sistema dos estímulos


aritmétcos.
Do mesmo modo dominará todas as demais formas do
comportamento uma vez que domine os estímulos, mas o
sistema dos estímulos é uma força social dada à criança de
fora (VYGOTSKI, 1995, p. 159, grifo nosso).

Existia a necessidade concreta de se produzir tecnologia,


maquinários para o campo e indústria, bens de consumo e alimentos
em grande quantidade, e com urgência, para diminuir a escassez
e a miséria que geravam o descontentamento da população,
ameaçando o projeto coletivo. Tal produção em grande escala
necessitava de trabalhadores disciplinados e organizados, capazes
de assumir qualquer função no processo produtivo.

No curso da industrialização e da reorganização


socialista da agricultura se produz uma reestruturação
de todos os setores econômicos sobre a base da grande
produção mecanizada. A base material e técnica
do socialismo é a grande produção mecanizada e
socializada em todos os setores econômicos, baseada
na eletrificação e no emprego em grande escala das
mais modernos progressos da ciência e da técnica,
organizada em forma planificada em escala em todo
o país, a fim de satisfazer cada vez mais plenamente
as demandas materiais e culturais dos trabalhadores
(RUMIÁNTSEV, 1 982, p. 3 7 1 ).

O desenvolvimento da produção mecanizada seria levado a


cabo sobre a base de um plano integral que abrangesse toda a
produção social. A indústria pesada deveria ser fomentada e baseada
nas descobertas técnico-científicas mais modernas. A concentração
da produção deveria estar nas grandes empresas, eliminando-se a
desigualdade em seus desenvolvimentos técnicos, e a distribuição
das indústrias deveria ocorrer por todo o país, acabando com o
atraso econômico de algumas regiões.

No curso da revolução cultural se preparam os quadros


que se põem a serviço da grande produção mecanizada:
engenheiros, técnicos e operários de alta qualificação.
[...} Os trabalhadores se converterão em participantes
S I LV A N A C A LV O T U L E S K I • 1 64
3 - F o rma ção da consciência •

ativos da vida cultural, da criação dos valores espirituais


(RUMIÁNTSEV, 1982, p. 372).

A educação deveria preparar os operários e futuros operários


para o desenvolvimento tecnológico e industrial avançado. Por
isso, a escola assume papel importante na sociedade russa. Através
dos escritos de Vygotski, essa importância fica evidente no prólogo
à versão russa do livro de Thordike:

[. .. } em todas as épocas, independentemente de sua


denominação e qualquer que fora sua ideologia: toda
educação tem sido sempre uma função do regime
social. Toda educação tem sido sempre essencialmente
social, no sentido de que, no final de tudo, o fator
decisivo para o estabelecimento de novas reações na
criança venha dado pelas condições que tinham origem
no meio ou, mais amplamente, pelas interrelações
entre o organismo e o meio.
Nos antigos liceus, nos seminários, nos colégios de
senhoritas, não eram os mestres, as preceptoras, nem
os zeladores quem, em última instância, educava, senão o
meio social estabelecido em cada um destes centros de ensino.
[. .. } E a enorme importância, excessivamente grande,
do mestre na escola estava condicionada precisamente
pelo fato de ser este o motor principal, a parte
fundamental do meio educativo. Devido a isto ele
esquecia suas obrigações diretas. De um ponto de vista
científico, o mestre é só o organizador do meio educativo social,
o regulador e controlador da interação desse meio com cada
aluno (VYGOTSKI, 199 1 , p. 1 59, grifo nosso).

Esta idéia de Vygotski pode ser complementada com a idéia


de Leontiev de que o movimento da história só é possível com a
transmissão, às novas gerações, das aquisições da cultura humana,
ou seja, através da educação:

Quanto mais progride a humanidade, mais rica é a


prática sócio-histórica acumulada por ela, mais cresce
o papel específico da educação e, mais complexa
é a sua tarefa. Razão por que toda etapa nova no
desenvolvimento da humanidade, bem como dos
diferentes povos, apela forçosamente para uma nova
1 65 • S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

etapa no desenvolvimento da educação: o tempo que a


sociedade consagra à educação das gerações aumenta;
criam-se estabelecimentos de ensino, a instrução
toma formas especializadas, diferencia-se o trabalho
do educador do professor; os programas de estudo
enriquecem-se, os métodos pedagógicos aperfeiçoam­
se, desenvolve-se a ciência pedagógica. Esta relação
entre o progresso histórico e o progresso da educação é
tão estreita que se pode, sem risco de errar, julgar o nível
geral do desenvolvimento histórico da sociedade pelo
nível de desenvolvimento do seu sistema educativo, e
inversamente (LEONTIEV, 1995, p. 291-292).

Nesta perspectiva, a educação é sempre um fenômeno


social, inclusive a educação escolar. Na sociedade soviética a
educação não poderia prescindir do desenvolvimento cultural
e técnico, pois somente este permitiria aos professores orientar
adequadamente o processo educativo. O professor não deveria
ser apenas um instrutor, mas um organizador do meio social, e
para isso necessitaria de conhecimentos científicos desenvolvidos
pela psicologia:

Esta é a fórmula exata da educação. E para isso é


completamente neceJJário que o mestre saiba deforma concreta
e rigorosa por quais canais deve desviar as tendências
naturais da criança, que devemfazer girar a qual mecanismo
(VYGOTSKI, 199 1 , p. 1 6 1 , grifo nosso).

Assumir este papel requer conhecimentos sobre o


desenvolvimento infantil e as possibilidades de trabalho em cada
idade, bem como ter claros os fins educativos propostos pela
própria sociedade. A Psicologia, para Vygotski, deveria dar o
embasamento científico à Pedagogia: "[ } renunciar à psicologia
. . .

significa renunciar à pedagogia científica" (VYGOTSKI, 1 99 1 , p.


1 44).
Neste sentido ele critica a "velha" psicologia como incapaz
de orientar o processo educativo, por estudar a psique de forma
estática e não dinâmica, em suas formas cristalizadas e não em
processo de origem, formação e desenvolvimento:
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 66
3 - F orma ção da consciência •

O que descreve e analisa, se classifica e categoriza,


é uma consciência já terminada, com todos os seus
atributos e componentes, como se houvesse existido
durante séculos tal como a descobre a introspecção
(VYGOTSKI, 199 1 , p. 146).

A sociedade soviética, para poder empreender seu projeto


coletivo, necessitava compreender a psique, a consciência humana
como algo passível de transformação, tal como a própria sociedade;
compreender que era possível superar as características, atitudes
e comportamentos burgueses, como fora possível eliminar a
propriedade privada dos meios de produção. Sendo assim, a
psicologia tradicional era incapaz de explicar as transformações
humanas:

Não explicam o crucial problema da própria natureza


psicológica do desenvolvimento, a origem e evolução
da psique e da personalidade da criança, deixando
sem explicar os mecanismos que movem essa
evolução e que são a essência do trabalho educativo.
A psicologia tradicional não localiza nem torna claro
esses mecanismos, ora silenciando-os, ora referindo-se
a eles em termos tão críticos que não explicam nada
e detrás dos quais não se traduz nada (VYGOTSKI,
199 1 , p. 146).

Desta forma, a "nova" maneira de enfocar o homem deveria


ocupar um lugar central no processo educativo. A psique deveria ser
estudada em transformação, levando-se em conta os mecanismos
capazes de acelerar ou bloquear seu desenvolvimento.

Neste ponto é que a nova psicologia será um fundamento


para a educação em maior medida que o era a psicologia
tradicional {. .}, O novo sistema não rerá que esforçar­
.

se para extrair de suas leis as derivações pedagógicas,


nem adaptar suas teses para a aplicação prática na
escola, porque a solução do problema pedagógico está
contida em seu próprio núcleo teórico, e a educação é
a primeira palavra que menciona (VYGOTSKI, 199 1 ,
p . 144, grifo nosso).
1 67 • S I L V A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

dinâmica. Por exemplo, se reconhecia justamente que


a memória do escolar era concreta, seus interesses
emocionais, e se deduzia disto - dedução igualmente
correta - que as lições nas primeiras classes deviam
ser concretas, imaginativas e altamente emocionais.
Sabiam qtte a educação só era eficaz se contasse com o apoio
das leis naturais que regem o desenvolvimento da criança.
Essa era toda a sabedoria desta teoria.
O novo ponto de vista ensina a buscar tal apoio, mas com o
fim de superá-lo. Estuda a criança na dinâmica de seu
desenvolvimento e crescimento; interroga-se sobre a
finalidade da educação, mas resolve o problema de modo
distinto. Para o novo ponto de vista seria uma loucura
se nas classes escolares não se levasse em conta a índole
concreta e imaginativa da memória infantil: ela é o que
deve servir de suporte; mas seria também uma loucura
cultivar esse tipo de memória, pois significaria reter
a criança em uma etapa de desenvolvimento inferior
e não compreender que o tipo de memória concreta
não é mais que uma etapa de transição, de passagem
ao tipo superior; que a memória concreta deve ser
superada no processo educativo (VYGOTSKI, 1995,
p . 307, grifo nosso).

A sociedade socialista tinha como muito importante a


revolução cultural, pois esta seria capaz de conduzir à cooperação
no trabalho e à atividade conjunta de trabalhadores livres de toda
exploração e agrupados de forma planificada em toda a sociedade.
Para a efetivação do projeto comunista era importante desenvolver
o sentido prático, a capacidade de ver a totalidade do processo
de trabalho e possuir energia e perseverança, núcleo do espírito
empreendedor comunista que se queria formar.
Para Rumiántsev, a atividade criativa dos que participavam da
produção tinha sua expressão na emulação socialista:

A emulação socialista é uma poderosa força motriz


da economia socialista, um método para elevar a
produtividade do trabalho e aperfeiçoar a produção
sobre a base da ascenção da 'atividade criadora dos
trabalhadores. O desenvolvimento da emulação
contribui para a formação comunista dos trabalhadores,
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 1 70
3 - F ormação da c onsciência •

a elevar e aperfeiçoar sua mestria profissional e seu


nível educacional e cultural.
Os princípios de organização da emulação socialista são
os seguintes: publicidade da emulação e comparação
de seus resultados, possibilidade de que se repita a
experiência de vanguarda e de difundi-la por outros
meios. Na etapa do socialismo desenvolvido, a emulação
socialista adquire características qualitativamente
novas. Está ligada à revolução científico-técnica,
centra-se cada vez mais nos problemas relativos à
eficácia e à qualidade e se orienta para a consecução de
resultados econômicos ótimos (RUMIÁNTSEV, 1982,
p. 460).

Criar a organização superior do trabalho era considerado a


principal missão do Estado após a Revolução. A sociedade socialista
deveria constituir-se em

uma associação de homens livres que trabalham com


meios coletivos de produção e que empregam suas
forças individuais de trabalho com plena consciência
do que fazem, como uma grande força de trabalho
social (RUMIÁNTSEV, 1982, p. 462).

A educação, portanto, deveria estar comprometida com a


perspectiva do trabalho diretamente social, sem o subterfúgio de
subordinar o público à propriedade privada.
Assim, a educação, para Vygotski, não poderia deter-se nas
funções elementares ou orgânicas, mas deveria fazer avançar o
desenvolvimento, para alcançar as formas superiores de conduta:

O educador começa a compreender agora que, quando


a criança adentra na cultura, não só toma algo dela,
não só assimila e se enriquece com o que está fora dele,
senão que a própria cultura reelabora em profundidade
a composição natural de sua conduta e dá uma orientação
completamente nova a todo o curso de sett desenvolvimento. A
diferença entre os dois planos de desenvolvimento do
comportamento - o natural e o cultural - se converte
no ponto de partida para a nova teoria da educação
(VYGOTSKI, 1995, p. 305).
1 71 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Sua proposta educacional, respaldada pelos seus estudos e


pesquisas, pode assim ser resumida:

Na educação atual a vontade tem substituído a tese


da ação intencional. Em lugar de disciplina externa, em
lugar de adestramento forçado, se propõe a autodominação
da conduta, que não pressupõe a repressão das atrações
naturais da criança, mas a dominação de suas próprias
ações (VYGOTSKI, 1 995, p. 1 2 5 , grifo nosso).

A educação proposta por Vygotski tinha como objetivo


eliminar a necessidade da coerção externa, formando indivíduos
capazes de postergar suas satisfações e controlar seus impulsos em
prol de um projeto coletivo a ser alcançado, a longo prazo, pelo
conjunto da sociedade.
Para ele, a educação escolar também é importante para o
avanço dos conceitos espontâneos aos científicos. Os conceitos
espontâneos baseiam-se na experiência que a criança adquire em
seu meio ambiente, através da observação, da manipulação dos
objetos que tem à sua disposição e do contato informal com os
adultos. Os conceitos científicos são desenvolvidos a partir do
ensino escolar e se apoiam nos espontâneos:

No processo de ensino do sistema de conhecimentos, à


criança se ensina conhecer algo que ela não tem ante
os olhos, algo que está muito além dos limites de sua
experiência atual e, quiçá, imediata. Cabe dizer que
a assimilação dos conceitos científicos se apóia nos
conceitos elaborados durante o processo da própria
experiência da criança na mesma medida em que a
aprendizagem do idioma estrangeiro o faz na semântica
da língua materna. [ ) E semelhante ao modo como a
...

assimilação de um novo idioma se produz sem recorrer


de novo ao mundo dos objetos e sem repetir o processo
de desenvolvimento já superado, senão através de
outro sistema de linguagem, previamente assimilado,
que se encontra entre o idioma novo e o mundo das
coisas, também a assimilação do sistema dos conceitos
científicos roma-se possível tão somente através de um
mesmo tipo de relação mediatizada com o mundo dos
S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1 • l 72
3 - F o rma çã o da consciência •

objetos, isto é, através de outros conceitos previamente


elaborados (VYGOTSKI, 1 993 , p. 1 99).

Várias pesquisas de Vygotski tiveram como objetivo principal


aclarar as relações existentes entre instrução e desenvolvimento.
Para isso ele estudou o desenvolvimento da escrita e da leitura, dos
conceitos matemáticos, ligando-os ao desenvolvimento de outras
funções, como a percepção, a memória, a atenção, o pensamento, a
linguagem etc. Em todos os seus escritos ele postula a importância
do ensino como motor do desenvolvimento infantil:

Temos visto que a instrução e o desenvolvimento não


coincidem de forma direta, senão que constituem dois
processos que se encontram em algumas relações mútuas
muito complexas. A instrttção unicamente é válida quando
precede o desenvolvimento. Então desperta e engendra toda
uma série de funções que se encontram em estado de maturação
e permaneciam na zona de desenvolvimento próximo. Nisto
consiste precisamente o papel principal da instrução
no desenvolvimento. Nisto se diferencia a instrução da
criança do adestramento dos animais. [ . . . } A instrução
seria totalmente inútil se somente pudesse utilizar o que
já amadureceu no desenvolvimento, se não constituísse
ela mesmo uma fonte de desenvolvimento, uma fonte
de aparição de algo novo (VYGOTSKI, 1993, p. 243,
grifo nosso).

A educação, portanto, tem o papel de operar a transformação,


de criar esta "nova" linha de desenvolvimento, acelerando-o e
promovendo-o. O processo de desenvolvimento cultural e psíquico
da criança é revolucionário.

O próprio tipo de desenvolvimento cultural da


candura humana, produto da complexa interação da
maturidade orgânica da criança com o meio culrural,
necessariamente deve oferecer-nos a cada passo
um modelo desse desenvolvimento revolucionário
(VYGOTSKI, 1993, p. 185).

Sendo o desenvolvimento cultural da conduta humana


revolucionário e produto do meio, ele demonstra quanto a escola
1 73 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

pode ser capaz de gerar esta revolução interna, de promover a


superação das funções elementares e orgânicas pela formação das
funções psíquicas superiores e culturais.
A linguagem escrita pertence à primeira e mais evidente
linha do desenvolvimento cultural, que conduz a criança ao
domínio e internalização do sistema externo de meios elaborados e
estruturados pela humanidade que dependem, fundamentalmente,
da educação sistematizada. Para que se possa compreender como a
criança é capaz de dominar esta linguagem, que é um procedimento
complexo da conduta cultural, faz-se necessário conhecer a pré­
história da escrita infantil.
Os estudos de Vygotski estão relacionados à batalha travada
pelo governo soviético para erradicar o analfabetismo. Durante o
início da NEP, Lênin deixava claro que a adesão ao socialismo pelo
campesinato deveria ser conduzida pelo proletariado através da
educação ideológica e política. Para empreender esta transformação,
onde não deveriam ser utilizados métodos coercitivos, atribuiu-se
ao sistema educacional amplo papel neste sentido, o que explica a
grande ampliação do número de escolas durante a fase inicial da
NEP. Ocorreu um impulso sem precedentes dos efetivos escolares,
dobrando o número de alunos integrados ao sistema de ensino
primário e secundário durante sua vigência, aliado a esforços
reais para estabelecer um sistema de ensino ligado à prática da
produção. No domínio da leitura pública também ocorre um
acréscimo notável de livros nas bibliotecas abertas à população, de
43,5 milhões em 1 927 contra 4,7 milhões em 1 9 1 3, nas cidades, e
25,7 milhões, nos campos, contra 4,2 milhões em 1 9 1 3 .
Diante destes dados pode-se perceber quanto eram necessários
o fortalecimento da aliança operário-camponesa e a mudança de
"espírito" do campesinato, no sentido de abandonar as práticas
burguesas e aderir a práticas socialistas, como as cooperativas, as
quais, se não fossem realizadas por coerção, seriam construídas,
principalmente, por força da educação nas cidades e nos campos.
Compreende-se a preocupação de Vygotski em relação à
linguagem como uma tentativa de sistematizar uma psicologia
S I LV A N A C A L V O T U L E S K I • 1 74
3 - F o rma ção da c onsciência •

comunista capaz de operar uma revolução pedagógica no interior


do sistema educacional soviético. Compreender a aquisição da
linguagem, desde sua formação na história da huma�idade e na
criança, permitiria a organização de métodos de ensino compatíveis
com as necessidades de desenvolvimento da sociedade.
Vygotski expõe com detalhes, em alguns de seus textos,
a importância do gesto, do desenho e do jogo infantil para o
desenvolvimento posterior da linguagem escrita, a qual é uma
conduta complexa e não pode ser ensinada de forma mecânica,
como uma mera aquisição de hábitos:

Nós não negamos que seja possível ensinar a ler


e escrever crianças de idade pré-escolar, inclusive
consideramos conveniente que a criança saiba ler
e escrever ao ingressar na escola. Mas o ensino deve
organizar-se de forma que a leitura e a escrita sejam
necessárias de algum modo para a criança. Se esse saber
é utilizado somente para escrever felicitações oficiais
aos superiores - e as primeiras que temos examinado
são palavras ditadas evidentemente pela professora -,
fica evidente que semelhante atividade é puramente
mecânica, que não tardará a aborrecer a criança, já
que ela não atua por si mesma, nem se desenvolve sua
personalidade. A criança tem que sentir a necessidade
de ler e escrever. Aqui é onde se revela com a máxima
clareza a contradição fundamental que não só
caracteriza a experiência de Montessori, mas também
o ensino da escrita escolar: às crianças lhes ensinam a
escrever como um hábito motor determinado e não como uma
complexa atividade cultural. Por isso, ao mesmo tempo em que
se fala que é preciso ensinar a escrever em idade pré-escolar,
coloca-se a necessidade de que a escrita seja tão vital como a
aritmética. Isso significa que a escrita deve ter sentido para
a criança, que deve ser provocada por necessidade natural,
como uma tarefa vital que lhe é imprescindível. Unicamente
assim estaremos seguros de que se desenvolverá na criança não
como um hábito de suas mãos e dedos, senão como uma forma
realmente nova e complexa de linguagem (VYGOTSKI,
1995, p. 2 0 1 , grifo nosso).
1 75 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

O mesmo afirma-se em relação às operações aritmencas. A


transição da matemática natural à mediada deve dar-se a partir da
necessidade, ou seja, quando a primeira for incapaz de resolver os
problemas postos pela vida prática. O momento mais importante
no desenvolvimento aritmético da criança apresenta-se quando
esta, ao invés da reação a olho, passa a utilizar-se de objetos para
quantificar. Tal transição dá-se através da impossibilidade prática
de se utilizar a matemática natural, pois as tarefas passam a exigir
uma conduta mais complexa, um momento conflitivo que produz
novo nível de desenvolvimento.

A criança passa da percepção direta da quantidade para


a mediada pela experiência, ou seja, passa a dominar os
signos, as cifras, as regras de sua designação, regras
que nós utilizamos e que consistem em substituir as
operações com objetos por operações com sistemas
numéricos. [ ... } O período em que a criança passa da
reação direta em relação à quantidade para as operações
abstratas com signos é conflitiva. Este período produz
uma colisão entre a linha anterior de desenvolvimento
e a que se inicia com a aprendizagem dos signos
escolares (VYGOTSK.l, 1995, p. 209).

A escola seria a responsável por produzir tal conflito, gerador


de níveis superiores de desenvolvimento, dando tarefas cada vez
mais complexas para a criança e, ao mesmo tempo, oferecendo os
recursos culturais necessários à resolução destas. Assim, a transição
das funções elementares às superiores se dá através da aquisição de
meios, signos, que passam a agir como mediadores para a ação.
Tais mediadores são os responsáveis pelo desenvolvimento de todas
as funções psicológicas:

O desenvolvimento cultural de qualquer função,


incluída a atenção, consiste em que o ser social, no
processo de sua vida e atividade, elabora uma série de
estímulos e signos artificiais. Graças a eles orienta-se a
conduta social da personalidade; os estímulos e signos,
assim formados, se convertem em meios fundamentais
que permitem ao indivíduo dominar seus próprios
S I LV A N A C A LV O T U L E S K J • 1 76
3 - F o rm a ção da c onsciência •

processos de comportamento (VYGOTSKI, 1995, p.


2 1 5).

Os estudos realizados sobre a possibilidade de o indivíduo


dominar seu próprio comportamento, fundamentam Vygotsky na
proposta de uma nova forma de se educar os deficientes, integrando­
os à educação geral e ao processo produtivo. Para ele, as crianças
deficientes (visuais, auditivas, mentais etc.), podem integrar-se
e tornar-se produtivas em sociedade, desde que a educação crie
vias colaterais que substituam as perdas biológicas, que permitam
o desenvolvimento das funções psicológicas supenores, o que
permitiria a compensação da deficiência.

O desenvolvimenro das funções psíquicas superiores


da criança só é possível pelo caminho de seu
desenvolvimento cultural, tanto que se trata de dominar
os meios externos da cultura, tais como a linguagem, a
escrita, a aritmética, como do aperfeiçoamento interno
das próprias funções psíquicas, isto é, a formação da
atenção voluntária, da memória lógica, do pensamento
abstrato, da formação de conceitos, do livre arbítrio etc.
As investigações demonstram que o desenvolvimento
da criança anormal está retido precisamente nesse
sentido e neste desenvolvimento, não depende
diretamente do defeito orgânico da criança.
Eis aqui por que a história do desenvolvimento cultural
da criança nos permite formular a seguinte tese: O
desenvolvimento mltttral é a esfera mais importante de onde é
possível compensar a insuficiência. Ali onde o desenvolvimento
orgânico se torna impossível, há infinitas possibilidades para
o desenvolvimento cultural (VYGOTSKI, 1995, p. 3 1 3,
grifo nosso).

O socialismo propiciaria amplas oportunidades para que se


desenvolvesse a "arte do operário" , fomentando uma racional
concentração social do processo produtivo, o qual estaria relacionado
com a especialização e a cooperação no processo produtivo. A
domínio da propriedade social garantiria o desenvolvimento da
ciência, a utilização de uma tecnologia mais eficaz e um melhor
emprego dos meios de produção:
1 77 • S I L V A N A C A L V O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

O desenvolvimento da técnica implica no aumento


da qualificação dos trabalhadores. Este último incide
em sua atividade criadora, elevando-a. A técnica e o
nível de qualificação dos trabalhadores determinam a
organização do trabalho e da produção (RUMIÁNTSEV,
1982, p. 470).

O desenvolvimento técnico-científico e cultural seria uma das


principais condições para que o socialismo eliminasse os resquícios
da sociedade burguesa ainda presentes. A automação deveria
abarcar todos os setores da produção e a ciência deveria desenvolver
novos materiais para que o desenvolvimento da sociedade socialista
se libertasse cada vez mais dos materiais encontrados na natureza.
Este esforço científico seria necessário para que a URSS pudesse
libertar-se, cada vez mais, das importações de matéria-prima de
outros países, tornando-se auto-suficiente e, ao mesmo tempo,
este nível de desenvolvimento exigiria cada vez mais uma mão­
de-obra altamente qualificada. O desenvolvimento integral das
capacidades humanas passa a ser considerado, então, a principal
força produtiva da sociedade:

Ter conhecimentos espec1a1s, uma alta formação


profissional e uma cultura geral está sendo uma condição
obrigatória para o bom avanço da produção. Com a
construção da base material e técnica do comunismo,
a atividade da imensa maioria se concentra na esfera
em que impera o trabalho complexo por seu nível
de qualificação: primeiro para manter a capacidade
de funcionamento das máquinas automáticas, seu
ajuste e sintonização, e logo na supervisão e controle
de maquinas automáticas que se auto-sintonizam
(RUMIÁNTSEV, 1982, p. 662).

A criação da base material e técnica do comunismo (etapa


avançada do socialismo) implicaria, portanto, em impulsionar a
ciência como força produtiva da sociedade e reforçar sua conexão
com a produção. Para alcançar tais objetivos, tanto no que diz
respeito ao desenvolvimento científico, quanto em relação ao
trabalho nas indústrias e nos campos, seria necessária uma ampla
formação dos trabalhadores, pois o processo de trabalho tornar-
s 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 78
3 - F o rma ção da consciência •

se-ia cada vez mais complexo, requerendo dos trabalhadores o


domínio dos fundamentos politécnicos da produção, profundos
conhecimentos científicos e técnicos, bem como um elevado nível
cultural.
Além disso, a produção nas grandes empresas automatizadas
e o trabalho conjunto de um grande número de pessoas seria
inconcebível sem um elevado grau de organização e disciplina:

A tendência a elevar a produtividade do trabalho,


própria também dos homens sob o socialismo,
acentuar-se-á; o desenvolvimento integral das
pessoas e o progresso da técnica criarão as condições
para que essa tendência tenha reflexo concreto no
constante incremento da atividade laboral criativa e no
surgimento e difusão dos exemplos de avanço. Educar
o homem para aspirar a sublimes objetivos sociais, para a
convicção ideológica e uma atitude verdadeiramente criativa
ante o trabalho é uma tarefa primordial. Por aqui passa
uma frente muito importante de luta pelo comunismo, e as
vitórias nesta frente dependerão cada vez mais da marcha
da construção econômica e desenvolvimento sociopolítico
(RUMIÁNTSEV, 1982, p. 670, grifo nosso).

O desenvolvimento cultural da sociedade e dos indivíduos


era considerado um dos fatores mais importantes para a superação
dos problemas encontrados na sociedade soviética, perspectiva
também adotada por Vygotski.
Como o biológico não determinava totalmente o
desenvolvimento, a conduta e o comportamento humano, a
sociedade poderia desenvolver métodos culturais eficazes para
a superação da maioria das deficiências individuais e coletivas
(da sociedade). Na perspectiva vygotskiana, o objetivo não era
selecionar os mais capazes dos menos capazes, excluindo estes
últimos da vida social e da produção, e sim promover a capacitação
de todos para as tarefas que a sociedade exigia. Todos os indivíduos
deveriam ser aproveitados em suas potencialidades e inseridos
na sociedade como membros produtivos. Não havendo mais a
psicologia das diferenças individuais para explicar as desigualdades
1 79 • S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

sociais, a prioridade do coletivo sobre o individual se encarrega de


desenvolver no indivíduo a consciência do seu papel na sociedade.
Em seus estudos sobre defectologia, Vygotski propõe um novo
papel à escola especial, que é resumido na citação abaixo:

Com outras palavras, a escola deve não só adaptar-se


às deficiências da criança, lutar contra elas e vencê­
las. Nisto consiste o terceiro ponto fundamental do
problema prático da defectologia; à parte do comum
dos objetivos que tem ante si a educação geral e a
especial, à parte da particularidade e da peculiaridade
dos meios aplicados na escola especial, é seu caráter
criador que faz desta uma escola de compensação social,
de educação social e não "uma escola de atrasados
mentais", que impõe não se adaptar à deficiência, mas
vencê-la, se apresenta como o ponto necessário do
problema da defectologia prática.
Na esfera prática, na esfera da educação, exige o
trabalho criador e a criação de formas especiais. Para
solucionar estes e outros problemas da defectologia
é necessário encontrar um fundamento sólido, tanto
para a teoria como para a prática (VIGOTSKI, 1989,
p. 26).

No quinto volume das Obras Escolhidas, intitulado Fundamentos


de Defectologia, Vygotski aborda as várias deficiências, propondo
métodos diferenciados para que fosse possível a superação da
deficiência física, visual, auditiva, mental etc., através da integração
da escola especial à escola geral e da aplicação dos princípios da
escola do trabalho também ao ensino especial. Ele questiona a
formação para o trabalho dada aos deficientes, no Ocidente, pela
sociedade burguesa, dizendo que os ensinam a fazer artesanato e
a mendigar pelas ruas, tentando vender seus produtos. Para ele, a
formação dada nas escolas especiais ocidentais está imbuída de uma
prática assistencialista que não se compromete com a verdadeira
inserção dos deficientes na sociedade como membros capazes e
produtivos. Enquanto em sua sociedade buscava-se a integração
deles à produção coletiva, a sociedade burguesa realizava a seleção
dos mais aptos e menos aptos ao trabalho.
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 80
3 - F o rma ção da c o nsciência •

Faz a crítica também à educação especial em seu país, dizendo


que esta não se transformou, mantendo ainda características
burguesas:

A Revolução, que tem reorganizado nossa escola de cima


a baixo, quase não tem tocado na escola especial para
crianças com defeitos. Nas escolas que educam cegos,
surdos-mudos e atrasados mentais, tudo caminha,
atualmente, da mesma forma que antes da Revolução,
só se têm feito algumas mudanças não essenciais,
estas realizadas mecanicamente. O trabalho, desta
maneira e até o momento, segue sem estar vinculado,
nem no aspecto teórico e nem no aspecto prático,
com os fundamentos gerais da educação social e com
o sistema de instrução pública de nossa República.
A tarefa consiste em vincular a pedagogia da criança
com defeito (a surdopedagogia, tiplopedagogia e
oligofrenopedagogia etc.) com os princípios gerais e os
métodos da educação social, e encontrar uma maneira
de entrelaçar a pedagogia especial com a pedagogia
da infância normal. Temos adiante um grande
trabalho criador dirigido para a reorganização de nossa
escola sobre novos princípios (VIGOTSKI, 1989,
p. 4 1).

Denunciava a não-transformação da escola especial, pois para


ele a revolução deveria abranger todos os aspectos e instituições
da sociedade. O desenvolvimento da criança normal deveria servir
de parâmetro para entender o que inexiste na criança anormal
e que precisaria ser desenvolvido através da educação. Também
em educação especial dever-se-ia romper com a visão puramente
organicista:

Em resumo, a questão, tanto no aspecto pedagógico


como psicológico, tem se colocado geralmente do
ponto de vista estritamente físico, médico; o defeito
físico é estudado e compensado como tal; a cegueira
tem significado simplesmente falra de visão; a surdez,
de audição, como se se trarasse de um pombo cego
ou de um chacal surdo. Neste caso perde-se de vista
que, diferente do animal, o defeito orgânico da pessoa
nunca pode influir direramente na personalidade,
1 81 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

porque o olho e o ouvido do homem não são só seus órgãos


físicos, mas também órgãos sociais; porque entre o mundo e o
homem se encontra também o meio social que reflete e dirige
tudo o que parte do homem para o mundo e do mundo para
o homem. No homem não existe a relaÇ,ão direta, associa!,
para com o mundo. A falta de visão ou da audiÇ,ão significa,
por isso, antes de tudo, o desaparecimento de funÇ,ões sociais
muito importantes, a trans/ormaÇ,ão das relaÇ,Ões sociais e a
destruiÇ,ão de todos os sistemas de conduta. O problema da
deficiência infantil na psicologia e na pedagogia tem que ser
colocado e compreendido como um problema social, porque seu
momento social não detectado anteriormente, que tem
sido considerado geralmente secundário, na realidade
torna-se primário, principal. É necessário considerá-lo
o mais importante. É preciso considerar este problema
como um problema social. Em seu aspecto psicológico
a deficiência corporal significa um desvio social, então
no aspecto pedagógico, educar esta criança significa
incorpora-la à vida, como se cura um órgão enfermo
infectado (VIGOTSKI, 1989, p. 54, grifo nosso).

Recuperar as funções sociais do indivíduo deficiente era


mister para a sociedade socialista. Sendo o homem um ser social,
as incapacidades deveriam ser tratadas como problemas sociais a
serem resolvidos, no sentido de que a sociedade deveria oferecer
formas diferenciadas de desenvolvimento e de integração dos
indivíduos à coletividade, como membros produtivos.

A educação da criança com defeito (do cego, do surdo


etc.) é exatamente o mesmo processo de criação das
novas formas de conduta e de estabelecimento das
reações condicionadas que na criança normal. As questões
da educaÇ,ão das crianÇ,aS com defeito, portanto, podem ser
solucionadas só como um problema para a pedagogia social.
A educação social da criança com defeito, baseada nos
métodos da compensação social de seu defeito inato,
é o único caminho cientificamente fundamentado e
correto em seu aspecto ideológico. A educaÇ,ão especial
deve ser subordinada à social, deve estar coordenada com o
social, e mais ainda, deve estar fundida organicamente com o
social epenetrar no social comoparte integrante (VIGOTSKI,
1989, p. 60, grifo nosso).
S 1 LV A N A C A L V O T U L E S K 1 • 1 82
3 - F orma ção da c onsciência •

A educação social é capaz de vencer as deficiências e a


desorganização da sociedade, formando o homem comunista em
todos os aspectos. Para isso, basta que se organizem e se definam
os princípios da educação social, que deveriam integrar tanto a
escola geral como a especial:

O trabalho é o centro ao redor do qual se organiza e se


estrutura a vida da sociedade; com a atividade laboral
está vinculada a vida social do homem e o estudo, por
ele, da natureza. O trabalho, a sociedade e a natureza
são os três canais fundamentais para os quais se dirige o
trabalho educativo e instrutivo na escola. [ .. } a educação
.

laboral é o melhor caminho para a vida, é a garantia


da participação ativa na vida desde os primeiros anos;
por isso a educação laboral garante ao surdo-mudo
tudo o que está relacionado com isro: a comunicação,
a linguagem e a consciência. [ .. } Como um aparato
.

de trabalho, como uma máquina humana, o corpo do


surdo-mudo se diferencia pouco do corpo da pessoa
normal e, portanto, para o surdo se conserva toda a
plenitude de possibilidades de desenvolvimento físico
e de aquisição dos hábitos e habilidades de trabalho.
Todos os tipos de atividade laboral podem ser acessíveis
a ele, com excessão de poucas esferas relacionadas
diretamente com o som. [ . . . } Com o enfoque correto
aqui se abre a porta para a vida, a possibilidade de
participar no trabalho conjunto com a pessoa normal
e a possibilidade de praticar as formas superiores de
colaboração (VIGOTSKI, 1989, p. 98-99, grifo
nosso).

Os pressupostos educacionais postulados na citação acima, em


relação aos surdos-mudos, são estendidos a todos os demais tipos
de deficiência. A educação para o trabalho e em conjunto com o
trabalho é o centro de toda a proposta educativa comunista (de
Krupskaia), a qual Vygotski apóia e acredita ser o caminho eficaz
para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Esta
forma de educação promoveria o desenvolvimento dos indivíduos
em sociedade:
1 83 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Sobre a base da educação politécnica e laboral se


organiza o ensino profissional, que proporciona
um domínio total e completo de algum outro tipo
de trabalho que garanta a incorporação à vida e a
participação laboral nela. Sobre a base da educação
laboral se desenvolve e se organiza o coletivo infantil.
As tarefas de semelhante organização não estão
limitadas pelo desejo de organizar a vida das crianças,
mas que se estendam mais além. A organização
do coletivo infantil se transforma em um processo
educativo que ajuda as crianças a ter consciência de
si mesmas como uma parte orgânica da sociedade dos
adultos. [ ..} As crianças criam a autodireção escolar,
.

que tem comissões sanitária, administrativa, cultural


etc., as quais abarcam toda a vida das crianças. Os
hábitos sociais, as manifestações sociais, a iniciativa,
as capacidades de organização e a responsabilidade
coletiva se desenvolvem e se fortalecerão neste sistema.
E por último, o movimento comunista infantil, a
participação nos destacamentos dos pioneiros que
incorporam as crianças à vida da classe operária, às
vivências e à luta dos adultos, coroam este sistema. No
movimento pioneiro palpita a vida, a criança aprende a
ter consciência de si mesma como participante da vida.
E neste jogo infantil se desenvolvem as importantes
sementes dos pensamentos e das ações que darão a
última palavra sobre esta vida. O novo consiste em
que, pela primeira vez, a vida da criança se atualiza; e
ainda, sua vida está dirigida para o futuro, mesmo que
se tenha baseado geralmente na experiência histórica
passada da humanidade.
O movimento pioneiro nos níveis superiores se
converte em movimento comunista juvenil, em
uma educação político-social mais ampla e a criança
surda-muda vive e respira como vive e respira todo
o país; seus pensamentos, suas aspirações e seu pulso
marcham em uníssono com o pensamento e o pulso
das enormes massas populares (VIGOTSKI, 1989,
p. 99-1 00).

Os princípios educativos expostos acima eram os norteadores


da educação geral e que, para ele, deveriam ser estendidos também
à educação especial, não somente aos surdos-mudos, mas a todas as
S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 84
3 - F o rm a çã o da consciência •

deficiências. A educação deveria priorizar a formação para o trabalho


e para o desenvolvimento da concepção de mundo comunista. As
funções psicológicas superiores, culturais, desenvolver-se-iam no
coletivo e seriam incorporadas individualmente à personalidade da
criança, ( . . . ] a pedagogia comunista é a pedagogia do coletivo"
"

(VIGOTSKI, 1989, p. 1 93).

A perspectiva psicológica do futuro é a possibilidade


teórica da educação. A criança, por sua própria
natureza, sempre se torna deficiente na sociedade
dos adultos; sua posição social desde o início dá
motivo para o desenvolvimento dos sentimentos de
debilidade, de insegurança e de dificuldade. Durante
vários anos a criança continua inadaptada a uma
existência independente, e nesta inadaptação e falta
de comodidade da infância se encontra a raiz de seu
desenvolvimento. A infância é, principalmente, o período
da deficiência e da compensação, isto é, da conquista de uma
posição com respeito ao todo social. No processo dessa
conquista, o homem com um biótipo determinado
se transforma em um homem com um sociótipo e o
organismo humano se converte em uma personalidade
humana. O domínio social deste processo natural denomina­
se educação. Este seria impossível sem o processo mais natural
do desenvolvimento e da formação da criança, mas estará,
na perspectiva futura, determinado pelas exigências do ser
social. A própria possibilidade do plano único na educação
e sua orientação para o futuro provam a presença deste
plano no processo de desenvolvimento, no qual a educação
tende a dominar. Em essência, isto significa só uma questão:
o desenvolvimento e a formação da criança é um processo
socialmente dirigido (VIGOTSKI, 1989, p. 144, grifo
nosso).

Em todos os seus escritos Vygotski enfatiza a importância de


se desenvolverem as funções superiores que, como foi visto, são
aquelas que permitem o autocontrole e o autodomínio. Vê-se agora
a importância da educação como edificadora, como dirigente do
processo de desenvolvimento de todos os indivíduos em sociedade,
capaz de efetivar o homem comunista em sua plenitude.
1 85 • S 1 LV A N A C A LV O T U L E S K 1
• V Y G O T S K I

Este homem, movido pela razão e não pelos instintos, não


necessitaria de disciplina externa para produzir; da autoridade de
outras pessoas; de punições e coerções para trabalhar, ou estímulos
e incentivos individuais; pois teria consciência da importância de
sua participação em sociedade. Sua vontade seria dirigida para o
coletivo, para o bem comum e não para satisfações individuais
e imediatas, historicamente satisfeitas. Este homem, capaz de
dominar e disciplinar sua própria vontade e conduta, seria o
verdadeiro homem comunista, sabedor e cumpridor de seus direitos
e deveres enquanto cidadão, construtor e mantenedor desta nova
ordem social.
O pensamento de Vygotski produz-se no interior de uma
sociedade que necessitava saltar etapas para efetivar seu projeto
revolucionário. O Estado socialista concedia grande importância à
atitude consciente e criadora de seus cidadãos perante o trabalho,
inculcando-lhes o sentido de que eram donos da produção e tinham
a responsabilidade pelo estado geral da economia socialista:

Uma característica essencial do homem integralmente


desenvolvido é sua consciência comunista. No futuro
desaparecerão por completo da consciência das pessoas
os resros da mentalidade de pequenos proprietários
herdados do capitalismo e a atitude ante o trabalho
como meio de obtenção de produtos e nada mais. A
consciência comunista se configura em processo de atividade
criativa dos homens sob a incidência do sistema de ensino
e educação. Neste sentido é fundamental a teoría
marxista-leninista, que mostra as leis objetivas da
evolução social e ajuda deste modo os homens a ser
conscientes de sua condição no sistema de relações
sociais (RUMIÁNTSEV, 1982, p. 670, grifo nosso).

A nova psicologia e educação comunistas, tenazmente buscadas


por Vygotski, assumem um papel na luta de classes existente na
sociedade soviética, tendo como objetivo; transformar consciências
burguesas em consciências comunistas, por não terem conseguido
superar a primeira etapa do socialismo. Enquanto, no interior das
fábricas, e das fazendas coletivas e no próprio partido, as relações
hierárquicas se reproduziam, as relações políticas e econômicas da
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 86
3 - F o rma ção da c onsciência •

União Soviética com outros países constituíam-se, cada vez mais,


em relações capitalistas; concepções capitalistas na indústria e no
campo, ligadas à produtividade, ao desenvolvimento tecnológico
e ao desenvolvimento acelerado, ganhavam terreno. Coube à
psicologia, nesta luta, desenvolver uma concepção de homem
comunista que fosse possível ser aplicada à educação, no sentido
de combater as tendências burguesas, cada vez mais presentes nas
relações sociais.
O autocontrole individual, ou seja, o autodomínio para a gestão
coletiva, tão frisado por Vygotski, parecia ser o único mecanismo
capaz de eliminar a existência das relações burguesas, permitindo
aos homens conter seus impulsos egoístas, voltados à satisfação
individual e imediata, em prol da execução de um projeto coletivo
de distribuição igualitária da produção. Ao mesmo tempo, através
da autodisciplina, seria possível suprir as necessidades práticas de
desenvolvimento da sociedade, as quais exigiriam dos homens
grande sacrifício, cujo retorno e benefício só seriam alcançados a
longo prazo. Para Vygotski, esta era a diretriz para substituir a
coerção externa cada vez mais presente na sociedade soviética e,
ao mesmo, facilitar o caminho para o verdadeiro comunismo. O
homem deveria ser capaz de controlar suas funções psicológicas
tanto quanto fora capaz de controlar a natureza desenvolvendo a
ciência e a tecnologia.
Sua perplexidade e suas críticas contundentes aos teóricos
da "velha psicologia" encontraram seu limite na luta de classes
existente na sociedade. Sua teoria é importante por mostrar teórica
e praticamente quanto as funções psicológicas são resultado
das relações sociais concretas. Teoricamente, porque resgata as
etapas históricas que o homem passou até o momento presente, e
praticamente porque demonstrou ser impossível que se efetivassem
as perspectivas de desenvolvimento igualitário em todos os
indivíduos, de autocontrole das funções psicológicas, sem que se
transformem radicalmente as relações entre os homens. Não é
possível um desenvolvimento igual sob relações desiguais.
Mais do que isso, mostrou em seus postulados quanto a essência
e a aparência não coincidem e quanto é preciso atingir a primeira
1 87 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

para que se possa ter uma visão integral e não fragmentada da


realidade. Desta forma, as classificações são perigosas, pois não dão
conta das contradições, cristalizam conceitos, retiram o movimento
e a historicidade. O que seria capitalismo e comunismo senão
formas historicamente determinadas de relações sociais? Se as
relações são praticamente as mesmas, com poucas variações, o que
justifica a denominação diferente? Esta é a crítica que Vygotski faz
à "velha psicologia" e que pode ser estendida a outros campos do
conhecimento, como a política e a economia.
Neste sentido podem ser entendidas as duras críticas sofridas
pela Teoria Histórico-Cultural nos últimos anos de vida de Vygotski,
especificamente após 1 9 3 0, que culminou com a proibição da
veiculação de seus escritos na sociedade soviética após sua morte.
Este período foi marcado pelo endurecimento do Partido, pela
utilização indiscriminada da coerção externa e início dos expurgos,
como forma de conter a contra-revolução pelo governo Stalinista.
O próprio Vygotski mostra a íntima relação existente entre
pensamento, linguagem e consciência:

A investigação nos conduz de cheio ao umbral de outro


problema, quanto mais amplo, mais profundo, ainda
mais ambicioso que o problema do pensamento: o
problema da consciência. ( ... } Temos tentado estudar
experimentalmente a transição dialética da sensação
ao pensamento e mostrar que a realidade se reflete no
pensamento de forma distinta da das sensações, que o traço
diferenciador fundamental da palavra constitui o reflexo
generalizado da realidade. Mas com ele temos tocado
uma faceta da natureza da palavra cujo significado
ultrapassa os limites do pensamento como tal e só pode
ser estudado em toda a sua plenitude dentro de um
problema mais geral: a palavra e a consciência.
A percepção e o pensamento dispõem de diferentes
procedimentos para refletir a realidade na consciência.
Estes distintos procedimentos supõem diferentes tipos
de consciência. Por isso, o pensamento e a linguagem são a
chave para compreender a natureza da consciência humana.
Se a linguagem é tão antíga como a consciência, se a
linguagem é a consciência que existe na prática para os
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3 - F o rma ção da consciên cia •

demais e, por conseguinte, para um mesmo, é evidente


que a palavra tem um papel destacado, não só no
desenvolvimento do pensamento, mas também no da
consciência em seu conjunto. As invesrigações empíricas
mostran a cada passo que a palavra desempenha esse
papel central no conjunto da consciência e não só nas
suas funções isoladas (VYGOTSKI, 1993, p. 346,
grifo nosso).

O jogo da linguagem é por demais complexo e, por ser


histórico e social, reproduz as relações existentes. Descolando os
significados de sua concretude, o que passa a existir é um mero
jogo de palavras, pura abstração, onde as mesmas coisas podem ter
nomes diferentes e aparentemente serem diferentes ; como coisas
diferentes podem possuir o mesmo nome, para aparentemente
serem iguais. Como diz Vygotski, "[ . . . ] a consciência se reflete
na palavra da mesma forma que o sol em uma pequena gota de
água. [. . ] A palavra significativa é um microcosmo da consciência
.

humana" (VYGOTSKI, 1993, p. 46-47).


Mas, como o próprio Vygotski diz, mesmo a maior abstração,
não deixa de ter sua ligação com a realidade, com a concretude,
contraditoriamente, pois o homem é incapaz de criar idéias
totalmente desligadas da realidade, por mais que se distanciem
aparentemente desta. O complexo jogo de palavras, portanto,
ao refletir o máximo da abstração, retrata o complexo jogo das
relações sociais.

1 89 • S 1 L V A N A C A L V O T U L E S K 1
Considerações finais

A idéia inicial de tomar a teoria revolucionária de Vygotski


como objeto de estudo foi estimulada pela sua ampla aceitação na
atualidade, em plena vigência da doutrina neoliberal. A princípio
parecera instigante compreender por que uma teoria gestada em
pleno processo revolucionário de uma sociedade que se pretendia
comunista e que hoje despiu-se daquela pretensão, podia estar
sendo amplamente difundida e aplicada no sistema educacional
que se sabe gerenciado por uma instituição internacional privada,
como é o Banco Mundial. A dúvida implícita nessa idéia, de que a
teoria de Vygotski, tal como vem sendo divulgada, não contraria
a ordem das coisas, foi responsável pelo impulso inicial, mas o
trabalho final, tal como se apresenta, submeteu aquela suposição
à direção dada pelos recorrentes estudos às fontes. Considera-se,
no entanto, pelas razões que se seguem, que as teses conclusivas,
para efeito dessas "considerações finais", devem ser entendidas
mais como premissas estimuladoras da investigação histórica do
que com o verdades acabadas.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o exercício
de historicizar Vygotski e sua Teoria Histórico-Cultural, que na
maioria das traduções e interpretações contemporâneas, mesmo as
mais recentes, aparecem desestoricizados, implica na difícil tarefa
• V Y G O T S K I

de romper com a prática científica estabelecida - que classifica cada


ciência segundo seu campo de conhecimento e define, para cada
grupo de especialistas, seu objeto de estudos e sua metodologia
própria. Esta tarefa impõe ao pesquisador um duplo desafio: o de
estar atento à traição de sua própria consciência, formada pela visão
parcelarizada do mundo, com a qual se quer romper, e de duvidar
dos conhecimentos emprestados de outras áreas, sobretudo das
ciências humanas, que permanecem sob suspeita desde a Revolução
Russa. A historiografia russa, um dos poucos caminhos existentes
para se adentrar nos intramuros da sociedade que produziu a teoria
de Vygotski, encontra-se marcada pelo mesmo antagonismo que
bipolarizou o mundo entre favoráveis e contrários à Revolução.
Reconhecem-se nela duas tendências dominantes: a dos opositores
do marxismo, que escrevem a história da Rússia como produto
das idéias de Marx, Engels, Lênin e Stálin, e a de seus apologistas,
que a consideram um produto do partido revolucionário, e o
partido revolucionário a encarnação da verdade. Ora, para uma
concepção de história que secundariza as boas ou as más intenções
de indivíduos e instituições que se destacaram - por considerá­
los como expressão do coletivo dos homens e de suas lutas - tais
interpretações pesam negativamente.
Em segundo lugar, é importante considerar que a falta de
controle sobre essas duas variáveis - no processo de apreensão do
movimento descrito pelo objeto de estudos na totalidade viva das
lutas - tem conseqüências imprevisíveis sobre o resultado final,
mas o esperado e o inesperado que nele se misturam, conferindo­
lhe simultaneamente mérito e demérito, não são incompatíveis
com a tentativa de se aproximar daquilo que se entende por
investigação histórica. Por outro lado, ignorar as lutas concretas
enfrentadas pelo povo soviético, logo após a Revolução de 1 9 1 7 ,
e que dão sentido aos postulados de Vygotski, é o mesmo que
desprezar importantes lições de uma experiência ímpar na história
dos homens, na qual Vygotski se preocupou com a consciência de
um povo que, com mais ou menos clareza, havia interrompido o
curso da história para criar uma nova humanidade.
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C onsidera ções finais •

Esta única lição já abre um amplo campo de reflexão para os


estudiosos da Teoria Histórico-Cultural, no qual a teoria cederá
lugar à história e perderá muito da importância que lhe é atribuída
de forma isolada. Permite, por exemplo, ver a difícil batalha
que é construir uma nova sociedade, mesmo em circunstâncias
favoráveis. O vaivém de Vygotski, da prática revolucionária para
a teoria revolucionária e da teoria revolucionária para a prática
revolucionária, mostra que o processo de construção de sua teoria
não obedece a um fluxo linear, por ser afetado pela dinâmica da
história. O que significa dizer que, apesar do projeto coletivo
para o qual todos concorrem, o processo de construção de uma
nova sociedade vem entranhado de elementos revolucionários e
contra-revolucionários que a consciência de Vygotski, assim como
a consciência revolucionária em geral, deve discriminar. Essa
lição dialética entre teoria e prática, vivida na luta entre forças
antagônicas e sob condições favoráveis de mudança, é fundamental
para se avaliar o potencial dessa teoria quando aplicada em
circunstâncias não só diferentes como adversas, a exemplo das que
compõem o quadro dos mercados globalizados.
Quando tudo parece conspirar para que o fenômeno da
globalização avance, submetendo as forças mais diversas e
provocando uma desagregação social jamais vista, a simples idéia de
um movimento coordenado de reação à ordem vigente não encontra
correspondente na prática social. O coletivo da humanidade,
constituído na sua grande maioria de empregados, subempregados,
desempregados e "inempregáveis", ou seja, de não-proprietários,
encontra-se submetido a este acordo, aparentemente tácito, que,
em última instância, favorece as grandes corporações financeiras,
industriais e de serviços que estão no comando do processo. Na
base dessa decomposição social, permanece a crença no livre jogo
das forças individuais, numa época em que poucos têm as condições
para jogar, enquanto a grande maioria, ou fica à margem do jogo,
ou simplesmente não joga, porque para muitos o jogo acabou. A
desagregação social, que resulta da instituição dessa competição
desmedida, aparece representada no grande contingente de
indivíduos fracassados, incompetentes ou vivendo em estado de
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• V Y G O T S K I

penúria absoluta: terreno fértil para reforçar e reeditar explicações


biológicas e genéticas individualizantes, bem como a proliferação
de crenças sobrenaturais. O que parece identificável com o caos é
apenas expressão da mesma sociedade, que se originou das relações
de troca, e que por isso está condenada a favorecer o interesse
privado como valor supremo e cooptar a opinião pública para esse
mesmo fim, mesmo em situações extremas - tarefa que não parece
difícil, tendo-se em vista a fragmentação das consciências.
Se há, portanto, uma questão que aproxima Vygotski de
circunstâncias tão adversas, como a descrita acima, é a questão da
consciência. Esta questão, no entanto, paradoxalmente, tanto pode
encaminhar estudos sobre como a consciência vem se produzindo
no processo da globalização da economia, como pode obscurecer o
entendimento da consciência, quando tratada de maneira abstrata,
como se existisse uma "consciência universal'', independente de
tempo e lugar, ou, dito de outra forma, independente da história
humana. Nesse sentido, a luta não é só diferente nas circunstâncias
atuais, como tende a ser mais difícil. A tese defendida por este
trabalho, de que Vygotski pôde se limitar a conhecer o processo social
de formação da consciência individual, dando-lhe um tratamento
de natureza epistêmica, tem como pressuposto a existência de uma
consciência revolucionária coletiva e destinada a ser comunista.
Em condições adversas, como o processo de globalização em que se
vive, não basta estudar a teoria de uma consciência revolucionária,
mas sim a consciência tal como vem se produzindo na atualidade,
sem referência a um projeto coletivo revolucionário. Assim, pensar
a consciência, hoje, significa pensar o impacto da fragmentação ou
da desagregação social sobre a consciência individual. Ignorar este
estado geral e as circunstâncias que o condicionam, significa ignorar
a possibilidade de alteração desta consciência e das circunstâncias
que a produzem, fazendo a teoria perder sua destinação numa
interminável discussão epistêmica e abstrata.
Dito de outra forma, discutir o estado geral da consciência, nas
circunstâncias atuais, é o mesmo que discutir sua fragmentação e/
ou desagregação historicamente condicionada à produção da vida
material, uma das teses centrais da investigação histórica, mas que
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C onsidera ções finais •

tem merecido poucos estudos. Os mais conseqüentes são aqueles


que estabelecem uma estreita relação entre a fragmentação da
consciência e a divisão social do trabalho, colocando o problema
como inerente às relações sociais de produção e não como intenção
maquiavélica de uma determinada classe para exercer seu domínio.
No âmbito educacional, estes estudos estimularam discussões
sobre temáticas referentes ao processo de trabalho como princípio
educativo, à formação do homem omnilateral e à educação
polivalente. No entanto, estes estudos parecem não responder mais
ao conflito entre forças produtivas e relações sociais de produção,
que está na raiz do processo de desagregação social da atualidade
e da fragmentação ou decomposição das consciências. É certo
que a divisão do trabalho limita o desenvolvimento individual à
repetição de uma só tarefa, embotando seu raciocínio; mas não
deixa de ser uma categoria agregadora do social, uma vez que
pressupõe a existência do trabalho, da troca da força de trabalho
pelo salário, da troca do salário por mercadorias, que por sua vez
garantem a existência dos homens. Ora, a competição instalada
pela globalização da economia abandonou o conceito taylorista
de eficiência, que cronometrava o movimento dos músculos dos
operários para reduzir o tempo e aumentar a produtividade,
em favor de uma abordagem de equipe cooperativa, onde
todos participam com poder de decisão e que se expressa sob a
forma de reengenharia, qualidade total, produção enxuta. Mas,
concomitantemente, abandona também o homem enquanto
força de trabalho e transforma, gradativamente, as máquinas
no novo proletariado, processo de desagregação social que vem
inviabilizando a sobrevivência de camadas cada vez maiores da
população, instituindo um processo competitivo absolutamente
destruidor.
A leitura histórica, portanto, é fundamental para sugerir ao
leitor um conjunto de questões, entre as quais este estudo destaca
as seguintes: Nas condições atuais, que consciência os homens têm
de si mesmos e do mundo que se globaliza à sua volta? O que os
impede de pensar que tudo pode ser diferente do que é? Que peso
pode ser atribuído à materialidade e à cultura (crenças, hábitos e
1 95 • S I L V A N A C A LV O T U L E S K I
• V Y G O T S K I

costumes) em relação à fragmentação da consciência? As reflexões


que estas e outras questões estimulam podem abrir o caminho para
se entender a ampla aceitação dessa teoria revolucionária, utilizada
como referencial teórico, inclusive, nas diretrizes curriculares
oficiais.
Para avançar um pouco mais nessa direção, instaurando já
o debate, este trabalho formula a seguinte hipótese: a ampla
aceitação dessa teoria, tal como vem sendo divulgada, não
apresenta nenhuma ameaça aos poderes constituídos, seja porque
a adesão quase unânime à doutrina neoliberal, que sustenta as
exigências de desregulamentação do mercado, tem enfraquecido a
classe potencialmente revolucionária, seja porque a maioria de seus
tradutores e intérpretes, eliminando seu potencial reflexivo pelo
distanciamento das condições objetivas que a produziram, têm-se
limitado aos aspectos epistemológicos, o que lhe dá uma feição
abstrata e próxima dos chamados paradigmas da atualidade, razão
pela qual se justifica sua absorção pelo Estado. Divulga-se, assim, a
teoria pela decomposição de sua estrutura interna, sem reconhecer,
nas suas linhas e entrelinhas, a luta que a sociedade russa travava
para completar a subversão da ordem, na qual Vygotski se envolveu
no sentido de fortalecer essa luta pela consciência que os homens
deveriam ter dela.
Esta hipótese, geradora de novos estudos, insere-se numa
questão maior, que é a de estimular a reflexão crítica sobre
a divulgação ampla de teorias educacionais que se sucedem,
umas às outras, de modo que a última põe sua antecessora no
esquecimento, para logo em seguida ser também abandonada.
Essa alta rotatividade de teorias é prova de que elas não vêm sendo
analisadas nas suas determinações históricas.
Essa crítica não desmerece a importância dos estudos
realizados sobre a Teoria Histórico-Cultural, pois entende que
eles instauram uma discussão sobre questões fundamentais da
atualidade, que precisam ser enfrentadas com a seriedade que
merecem. Por outro lado, não os livra da crítica de tê-la hasteado
como bandeira revolucionária, no reduto educacional, para
transformar consciências burguesas em comunistas - o que seria
S 1 L V A N A C A LV O T U L E S K 1 • 1 96
C onsidera ções fina is •

não mais do que uma reedição da tese idealista de que as idéias


transformam o mundo - sem perscrutar, como perscrutou Vygotski
sua época, a realidade atual, em busca do entendimento de como
vem sendo formada a consciência individual, tendo clareza de que
as alterações no comportamento humano estão intrinsecamente
ligadas às alterações da forma como os homens produzem e se
organizam em sociedade. É a partir daí que a escola e/ou as teorias
educacionais começam a ser pensadas.
Sem respostas para aplacar todas as dúvidas levantadas e/ou
sugeridas por este trabalho, não se pode dizer que a tarefa não
foi cumprida se o leitor, lançando seu olhar perscrutador sobre a
desintegração social levada a efeito pela globalização da economia,
for levado a pensar que as coisas podem ser diferentes do que são
porque ·apreendeu que as construções humanas são transitórias
e que, portanto, esta ruptura desagregadora não é eterna, como
não são eternas as relações econômicas que a sustentam; e se, na
dúvida, chegar à certeza de que não existem soluções individuais
para questões coletivas e que somente o coletivo consciente de seu
poder, e que não se submete ao comando da minoria, poderia ser
a negação dessa forma de organização da vida, o germe de sua
destruição. Tais reflexões colocam-se como fundamentais, tanto
para o entendimento da investigação exposta neste trabalho, como
para quaisquer estudos que tenham como centro de interesse as
possibilidades ou perspectivas que se colocam ao desenvolvimento
do homem e da humanidade.

1 97 • S I LV A N A C A LV O T U L E S K I
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