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apresenta

CINEMA DE MONTAGEM

2015

10 - 23/9
CAIXA BELAS ARTES
Rua da Consolação, 2.423 - São Paulo
Tel: (11) 2894-5781

6 - 18/10
CAIXA Cultural RJ
Avenida Almirante Barroso, 25 Centro - Rio de Janeiro
Tel.: (21) 3980-3815

www.cinemademontagem.com.br
A CAIXA é uma das principais patrocina-
doras da cultura brasileira e destina, anual-
mente, mais de R$ 60 milhões de seu orça-
mento para patrocínio a projetos culturais,
com foco atualmente voltado para exposições
de artes visuais, peças de teatro, espetáculos
de dança, shows musicais, festivais de teatro e
dança em todo o território nacional.
Os eventos patrocinados são selecionados
via Programa de Seleção Pública de Projetos,
uma opção da CAIXA para tornar mais demo-
crática e acessível a participação de produtores
e artistas de todas as unidades da federação, e
mais transparente para a sociedade o investi-
mento dos recursos da empresa em patrocínio.
O projeto “Cinema de Montagem”, em sua
segunda edição no Rio de Janeiro e exibido
pela primeira vez em São Paulo, constitui um
panorama mundial da produção de filmes em
que a arte da montagem é o principal disposi-
tivo criativo. Além das sessões, que reúnem 21
filmes raros, pouco ou nunca exibidos no Brasil,
serão realizados três debates e duas master
classes, em cada cidade, com o objetivo de
aproximar o público da edição desenvolvida
nas salas de cinema da CAIXA Cultural Rio de
Janeiro e do CAIXA Belas Artes.
Desta maneira, a CAIXA contribui para
promover e difundir a cultura e retribui à socie-
dade brasileira a confiança e o apoio recebidos
ao longo de seus 154 anos de atuação no país.
Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco.
Pede investimento e participação efetiva no
presente, compromisso com o futuro do país e
criatividade para conquistar os melhores resul-
tados para o povo brasileiro.
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
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edt. – Quatro anos e muitos desafios

A Associação de Profissionais de Edição Audiovisual do Rio de


Janeiro está próxima de completar seu quarto aniversário. Nesse
período, dezenas de editores se envolveram neste inovador
projeto de valorização de nossa profissão. Chegamos agora a
um momento fundamental, em que o balanço do que foi conse-
guido e as possibilidades futuras se apresentam de forma realista
para nós.
Muitas expectativas foram criadas com a fundação da edt.
em 2012. A primeira diretoria eleita teve o grande trabalho de
consolidar legalmente a associação, deixando as portas abertas
para que os associados participassem através das comissões e
pudessem agir efetivamente em pontos específicos como na
questão trabalhista, na formação dos profissionais, na busca de
benefícios para os associados e nos mecanismos de comunica-
ção entre os editores.
A primeira assembleia contou com aproximadamente 150
pessoas, com as presenças dos nossos beneméritos Eduardo
Escorel, Ricardo Miranda, João Paulo de Carvalho e Mair Tavares.
Dois anos depois, uma nova diretoria foi eleita.
A segunda diretoria continuou o trabalho de consolidação
legal da associação – o que não é tão simples – e aperfeiçoou
outros mecanismos de funcionamento, como a inscrição de novos
associados, a produção e emissão de carteirinhas, a diversifica-
ção de formas de pagamento, melhorias no site, dentre outros.
Eventos que proporcionam o desenvolvimento técnico dos
editores e a formação em termos de linguagem audiovisual têm
sido realizados. Seminários sobre softwares – com a presença
de finalizadores e representantes das produtoras – e encontros
com vendedores das empresas desenvolvedoras esclareceram
algumas dúvidas sobre o futuro das ferramentas de edição. O já
consagrado cineclube edt. – que conta sempre com um debate
com o montador do filme exibido – e o recém-formado grupo
de estudos de montagem são sempre bons momentos para se
debater questões estéticas. Instituímos em 2014 o 1º Prêmio
Ricardo Miranda de Montagem de Invenção, oferecido a dois
montadores de filmes da Semana dos Realizadores, e partici-
pamos de uma mesa de debates com os montadores dos filmes.
Estamos desenvolvendo o Manual do Freelancer, que será um
guia para editores autônomos melhorarem sua relação com o
mercado de trabalho. Também trabalhamos atualmente na
elaboração de um curso de formação para assistentes de edição.
Sabemos que uma associação como a nossa só faz sentido
se realmente representar os editores e se for construída por
eles através do trabalho voluntário na diretoria e nas comissões,
temos sempre como objetivo estimular a participação de todos.
A edt. segue seu movimento de melhorias internas e de
expansão, interagindo com outros agentes do meio audiovi-
sual. E é com muito prazer que participamos novamente de uma
mesa de debates da Mostra de Cinema de Montagem, festival
idealizado por duas de nossas associadas e que confirma que
todo o trabalho para a melhoria e valorização de nossa profissão
vale a pena.
A diretoria.
(Mariana Sussekind, Célia Freitas, Joana Ventura, Isabel Vidor, Julia Bernstein,
Fernanda Tornaghi, Daniel R. A. Garcia, Vinícius Nascimento e Rogério Frota.)
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Sumário

Apresentação
A cabeça é uma ilha 15

Textos
15 montadores, 15 estilos, 15 textos 19
Montadora anônima 25
Trabalho em progresso

Daniel Rezende 33
Diana Vasconcellos 37
Eduardo Escorel 41
Nem tudo, nem nada

Eduardo Serrano 49
Giba Assis Brasil 53
Montagem e metáforas

Idê Lacreta 61
Joana Collier 67
Pensamentos de papel picado

Jordana Berg 73
A primeira cena a gente nunca esquece

Karen Harley 77
Livia Serpa 83
Marília Moraes 89
Paulo Sacramento 95
Ricardo Miranda 101
Montagem ou pensando bem, apontamentos
sobre a construção de espaços e tempos

Ricardo Pretti 109


notas sobre a montagem cinematográfica

Filmes
狂った一頁 (Kurutta Ippêji) 115
Uma página de loucura
Октябрь – Десять дней, которые потрясли мир 116
Outubro

Limite 117
Je t'aime, je t'aime 118
Eu te amo, eu te amo

Spalovač mrtvol 119


O cremador

Duel 120
Encurralado

Het Leesplankje 121


Lição de leitura

Edvard Munch 122


Grey Gardens 123
Jardins cinzentos

Le fond de l’air est rouge 124


O fundo do ar é vermelho

O som ou tratado de harmonia 125


The Kiss 126
O beijo

71 Fragmente einer Chronologie des Zufalls 127


71 fragmentos de uma cronologia do acaso

Histoire(s) du cinéma 128


História(s) do cinema

Gefängnisbilder 129
Imagens da prisão

Où gît votre sourire enfoui? 130


Onde jaz o teu sorriso?

O signo do caos 131


O dedo 132
Kristall 133
Cristal

Film ist. a girl & a gun 134


Filme é. uma garota e uma arma

Conference Notes on Film 05 135


Conferência

Créditos e agradecimentos 139


Apresentação

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14
A cabeça é uma ilha

A mostra Cinema de Montagem pretende aprofundar e


evidenciar o trabalho de criação na ilha de montagem, seja o
realizado de forma solitária (apenas o diretor) ou o em colabo-
ração estreita (diretor – montador).
Para tal, foram elaboradas duas propostas distintas. Uma
circunscrita a um país – 15 montadores brasileiros escrevem
sobre a sua experiência e/ou perspectiva da montagem e do
cinema. Outra abrangente – 21 filmes independentes de ano,
proveniência, gênero ou duração.
Numa mostra desse porte, em que a esfera de possibili-
dades parece infinita, foram delineados critérios demarcados,
tendo em vista a composição de um painel de obras que tenha
a montagem – seu trabalho e conceito – visível, de forma trans-

15
formadora e recriadora. Critérios demarcados, mas inequivoca-
mente subjetivos, pois proveem de três curadores imbuídos no
seu gosto particular e com uma carga referencial díspar.
Nos filmes agendados para exibição é possível deparar-se
com vários estilos de abordagem do material bruto (importância
histórica ou origem) e de montagem, com uma seleção concen-
trada nos objetos em si, na relevância que supomos terem em
termos de contribuição artística e técnica.
A mostra abre com Limite, um filme brasileiro que a partir de
quase nada inventa quase tudo. Afoito às convenções narrativas,
a sua nervura encontra na montagem o eco de uma visão impres-
sionista, propondo uma viagem perceptiva e imagética. A sua
apresentação será acompanhada por música ao vivo, composta
especificamente para o evento, num ato único e performático.
Ao analisarmos as obras que integram o corpo da mostra,
é evidente o número de trabalhos que têm como seu centro a
capacidade de invenção e/ou experimentação (Kurutta ippêji;
Je t’aime, je t’aime; Spalovač mrtvol; O som ou tratado de
harmonia; The Kiss; 71 Fragmente einer Chronologie des Zufalls;
Histoire(s) du cinéma; O signo do caos; O dedo; Conference), ou
a quantidade de trabalhos que emerge de material de arquivo
(Le fond de l’air est rouge; The Kiss; Histoire(s) du cinéma;
Gefängnisbilder; Kristall; Film ist; Conference), ou a quantidade
de trabalhos que têm na força braçal da montagem e na perse-
verança do visionamento a sua matriz (Октябрь; Duel; Edvard
Munch; Grey Gardens; Le fond de l’air est rouge; Histoire(s) du
cinéma; Gefängnisbilder; Où gît votre sourire enfoui?; Kristall;
Film ist; Conference).
Estas linhas gerais correspondem a um interesse particular
de montagem, a algumas possibilidades de trabalho sobre a
imagem e o som, sendo a sua apresentação mais um passo para
a reflexão e discussão deste lugar fundamental que é a ilha e
sua cabeça.
Deixamos um agradecimento especial a todos os amigos
que indicaram filmes e aos montadores que tão generosamente
contribuíram com as suas impressões escritas.
A Curadoria

16
Textos

17
18
15 montadores,
15 estilos,
15 textos

Quinze montadores brasileiros responderam ao convite da


mostra e redigiram textos inéditos sobre a sua relação com a
montagem. Provenientes de diferentes escolas e com diferentes
estilos de montagem (e de escrita), as suas palavras ampliam
o conhecimento e o acesso a esse lugar secreto que é a ilha
de montagem, a cabeça do montador. A todos agradecemos a
disponibilidade e a dedicação. Para situar cada um dos interve-
nientes, apresentamos alguns títulos de filmes em que colabo-
raram e ajudaram a construir.

19
Anônima é montadora.

Daniel Rezende é montador e diretor. Montou filmes de


Fernando Meirelles (Cidade de Deus, 2002; Ensaio sobre a
cegueira, 2008), de Walter Salles (Diários de motocicleta, 2004;
Água negra, 2005, Na estrada, 2012), de Cao Hamburger (O
ano em que meus pais saíram de férias, 2006), de José Padilha
(Tropa de elite, 2007; Tropa de elite 2, 2010; Robocop, 2013), e
de Terrence Malick (A árvore da vida, 2011), entre outros.

Diana Vasconcellos é montadora. Montou filmes de José


Alvarenga Jr. (Os fantasmas trapalhões, 1987; O casamento
dos trapalhões, 1988; Os heróis trapalhões, 1988; Robin Hood
trapalhão, 1990), de Tizuka Yamasaki (O noviço rebelde, 1997;
Xuxa requebra, 1999; Gaijin – Ama-me como sou, 2005), de
Hugo Carvana (O homem nu, 1997; Apolônio Brasil – O campeão
da alegria, 2003; Casa da mãe Joana, 2008, Não se preocupe,
nada vai dar certo, 2009 e Casa da mãe Joana 2, 2013), de
Miguel Faria Jr. (O Xangô de Baker Street, 2001; Vinícius, 2005
e o documentário ainda inédito Chico, O artista e o tempo,
2015), de Daniel Filho (O primo Basílio, 2007; Se eu fosse você
2, 2009, Tempos de paz, 2009; Chico Xavier, 2010, Confissões de
adolescente, 2013) e de Vicente Amorim (Corações sujos, 2011),
entre outros.

Eduardo Escorel é diretor, produtor, montador, crítico e


professor. Dirigiu, entre outros, Estado Novo 1937-45 (2003-
2015) e Paulo Moura - Alma brasileira, 2013. Montou filmes de
Joaquim Pedro de Andrade (Macunaíma, 1969); Glauber Rocha
(Terra em transe, 1967); Leon Hirszman (São Bernardo, 1971;
Posfácio, 2014); Eduardo Coutinho (Cabra marcado para morrer,
1984) e João Moreira Salles (Santiago, 2007; No intenso agora,
em finalização), entre outros

Eduardo Serrano é montador. Montou filmes de Gabriel Mascaro


(Boi neon, 2015; Ventos de agosto, 2014 - crédito compartilhado
com Ricardo Pretti; Doméstica, 2012; A onda traz, o vento leva,
2012), de Marcelo Lordello (Eles voltam, 2012), de Leonardo
Lacca (Permanência, 2014) e de Kristof Bilsen (Elephant's Dream,
2014), entre outros.

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Giba Assis Brasil é montador e professor. Montou filmes de
Jorge Furtado (Ilha das flores, 1989; Houve uma vez dois verões,
2002; O homem que copiava, 2003; Meu tio matou um cara,
2004; Saneamento básico, o filme, 2007, Real Beleza, 2015),
de Carlos Gerbase (Tolerância, 2000; Sal de prata, 2005; 3 efes,
2007) e de Ana Luiza Azevedo (Antes que o mundo acabe, 2009),
entre outros.

Idê Lacreta é montadora. Montou filmes de Carlos Alberto


Prates Correia (Cabaré mineiro, 1980; Noites do sertão, 1982),
de Ruy Guerra (Ópera do malandro, 1985 – em parceria com
Mair Tavares), de Suzana Amaral (A hora da estrela, 1985; Hotel
Atlântico, 2009), de Tata Amaral (Um céu de estrelas, 1996;
Através da janela, 1998; Antônia, 2006; Hoje, 2011), de Aluízio
Abranches (Um copo de cólera, 1999), de Paulo Sacramento (O
prisioneiro da grade de ferro, 2003; Riocorriente, 2013 – ambos
em parceria com o diretor), e de Joel Pizzini (Glauces – estudos
de um rosto, 2002; 500 almas, 2004), entre outros.

Joana Collier é montadora e professora. Montou filmes de Maria


Augusta Ramos (Justiça, 2004; Juízo, 2007), de Santiago Mitre
(La patota, 2015), de Walter Salles (Jia Zhang-ke, um homem
de Fenyang, 2014), de Marcelo Taranto (Ponto final, 2011), de
Ricardo Miranda (Paixão e virtude, 2014) e de Luiz Rosemberg
Filho (Dois casamentos, 2014), entre outros.

Jordana Berg é montadora. Montou filmes de Daniela Broitman


(Marcelo Yuka no caminho das setas, 2011), de Sérgio Bloch
(Mini Cine Tupy, 2003), de Maria Ribeiro (Domingos, 2011), de
Ricardo Calil e Renato Terra (Uma noite em 67, 2010), de Eduardo
Ades (A dama do Estácio, 2012), de Eduardo Escorel (O tempo
e o lugar, 2008), de Renato Terra (Fla x Flu: 40 minutos antes do
nada, 2013), de Joana Nin (Cativas: presas pelo coração, 2014), e
todos os filmes dirigidos por Eduardo Coutinho a partir de 1998,
até Últimas conversas, 2015.

Karen Harley é montadora e diretora de documentários. Montou


filmes de Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus, 2005; Viajo
porque preciso, volto porque te amo, 2009 – codireção Karim
Aïnouz; Era uma vez eu, Verônica, 2012), de Cláudio Assis (Baixio
das bestas, 2007; Febre do rato, 2011, Big Jato, 2015), de Murilo

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Salles (O fim e os meios, 2013), de Lina Chamie (Os amigos,
2013), de Matheus Nachtergaele (A festa da menina morta, 2008),
de Mika Kaurismäki (Moro no Brasil, 2002; Brasileirinho, 2005;
Miriam Makeba/Mama Africa, 2010), de João Jardim (Janela
da alma, 2001 – codireção Walter Carvalho), de Anna Muylaert
(Que horas ela volta?, 2015) e de Guilherme Coelho (Órfãos do
Eldorado, 2014), entre outros. Atualmente está montando o
próximo longa-metragem de Lucrecia Martel (Zama, 2016).

Livia Serpa é montadora. Montou filmes de Walter Salles (Linha


de passe, 2008; Na estrada, 2012), de João Moreira Salles
(Santiago, 2007), de Daniela Thomas e Felipe Hisch (Insolação,
2009), e de Michael Lennox (Boogaloo and Graham, 2014; A
Patch of Fog, 2016), entre outros.

Marília Morais é montadora. Montou filmes de Selton Mello


(Feliz Natal, 2008; O palhaço, 2011), de Anita Rocha da Silveira
(Mate-me por favor, 2015), de Petra Costa (Elena, 2012), de
David Reeks e Renata Meirelles (Território do brincar, 2015) e de
Marcelo Grabowsky (Testemunha 4, 2011 – crédito compartilhado
com Ricardo Pretti), entre outros.

Paulo Sacramento é montador e diretor. Dirigiu, entre outros,


O prisioneiro da grade de ferro (2003) e Riocorrente (2013).
Montou filmes de Ségio Bianchi (Cronicamente inviável, 2000;
Quanto vale ou é por quilo?, 2004), de Lina Chamie (Tônica
dominante, 2000), de Claudio Assis (Amarelo manga, 2002), de
José Eduardo Belmonte (A concepção, 2006), de Laís Bodanzky
(Chega de saudade, 2008), de Anna Muylaert (É proibido fumar,
2000) e de André Ristum (Meu país, 2011), entre outros.

Ricardo Miranda, falecido em março de 2014, foi montador,


diretor e professor. Montou filmes de Paulo César Saraceni (Amor,
carnaval e sonhos, 1972; Anchieta, José do Brasil, 1978; Ao sul
do meu corpo, 1982; O gerente, 2011), de Arthur Omar (Triste
trópico, 1974; Congo, 1972; O som ou tratado de harmonia,
1985), de Glauber Rocha (A idade da Terra, 1980), de Ivan
Cardoso (O segredo da múmia, 1980), de Joel Pizinni e Paloma
Rocha (Anabazys, 2007) e de Helena Ignez (A canção de Baal,
2008), entre outros.

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Ricardo Pretti é montador e diretor. Dirigiu Estrada para Ythaca
(2010), Os monstros (2011) e No lugar errado (2011, em parceria
com Guto Parente, Luis Pretti e Pedro Diógenes), Com os punhos
cerrados (2014, em parceria com Luís Pretti e Pedro Diógenes)
e O Rio nos pertence (2013). Montou filmes de Gabriel Mascaro
(Ventos de agosto, 2014 – crédito compartilhado com Eduardo
Serrano), Sérgio Borges (O céu sobre os ombros, 2011), de
Allan Ribeiro (Esse amor que nos consome, 2012), de Julia de
Simone (Romance de formação, 2011) e de Marcelo Grabowsky
(Testemunha 4, 2011 – crédito compartilhado com Marilia
Morais), entre outros.

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Montadora anônima
Trabalho em progresso

24 de maio
Fechei o trabalho! Aceitaram exatamente o cachê que eu
pedi, sem nenhuma negociação ou choradeira. Deve ser porque
queriam muito que fosse eu a editar esse filme.
Não. Burra. Provavelmente aceitaram assim tão rápido porque
era muito abaixo do que tinham orçado. Se deram bem. Fecharam
rápido antes que eu mudasse de ideia. Podia ter pedido mais.
Mas como saber? Vou perguntar ao Felipe quanto ele ganha por
semana pra ver se estou cobrando pouco. Ou muito. Pensando
bem, claro que o Felipe não vai querer me falar quanto ganha.
Ninguém fala.
O diretor não pôde ir à reunião porque estava descansando
após o estresse de filmagem. Mas a produtora me passou tudo.

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Ou quase tudo. Me perguntei se a produtora não estava cansada
também, após a filmagem.
Me disseram que eram aproximadamente 70 horas de material
bruto. E que eram duas câmeras.

25 a 29 de maio
Melhor momento do trabalho. Já fechei. Já tenho um job
garantido. Ainda não estou sofrendo por causa disso. É como
um candidato após ter ganho a eleição e que só vai ser empos-
sado em janeiro.

30 de maio
Falo com o diretor no telefone. Tem roteiro? Sim. Não acredito!
Vai ser o primeiro documentário com roteiro que vou pegar. Ô
pessoa de sorte. Setenta horas não é tanta coisa assim.
Me envia o roteiro por e-mail? Claro.

31 de maio
O roteiro na verdade é um argumento feito há dois anos para
um edital. “O filme fala da minha vontade de filmar o cotidiano
de pessoas anônimas.” Ah, entendi.
Não sei por que ainda acredito quando dizem que tem roteiro.

3 de junho
Chegam os HD aqui em casa. Quatro HD de 1 tera USB 2.0?!
Devolve. Sem condições. Eu sei que era mais barato, mas não
vai rolar.
A produtora pode usar esses HD de backup pra alguma coisa.
OK, aceitaram mandar um HD de 4 tera.
As decupagens estão chegando. Dou uma olhada e
imagino que foram contratadas pessoas cursando o 2º ano do
ensino fundamental 1 para esse serviço. Todo tipo de erro, de
compreensão, gramática, grafia. O personagem diz Al PACINO,
o decupador escreve AU CASINO. E coisas piores, impublicá-
veis. Tudo bem, vou corrigindo pelo caminho, se der tempo.

26
Mas peraí, falaram 70 horas de material. Isso aqui tem 140
horas. O porquê de tantos terabytes.
Ah, mas são 70 em cada câmera. E disseram que as câmeras
estavam sempre no mesmo evento. Só não disseram que, apesar
de estarem no mesmo evento, não estavam filmando a mesma
coisa dentro desse mesmo evento.
Já ferrou todo o meu orçamento. Começamos mal.

10 de junho
Momento da minha assistente começar a se ferrar. Importar,
converter, sincar e organizar 140 horas. Ufa, ainda bem que não
sou eu.
Enquanto ela faz isso, ganho um tempo no outro filme que
estou montando.
Não dá pra viver com um filme de cada vez. Vamos de dois em
dois. E uns comerciaizinhos. E uns trailerzinhos.

26 de junho
Começo a ver o material. Caderninho novo, com capa colo-
ridinha. Pedi para organizar por dia de filmagem. Ainda não sei
qual seria o melhor critério, então esse, pra começar, está bom.
Bem, não vai dar tempo de assistir às 140 horas e só depois
começar a selecionar. Vou ter que colocar em prática a minha
intuição ninja e já assistir fazendo alguma seleção. Depois eu
repesco o que tiver ido pro lixo muito cedo.
Não posso chamar esse trabalho de “limpar o material”. O
Eduardo Escorel proibiu, argumentando que o material não
estava sujo.
Já vi que foi filmado com aquela câmera de foto que faz filmes
de 12 minutos. Que bom, em geral o material dessa câmera vem
30% fora de foco. Já é 30% a menos pra escolher.
Começando a ver...hummm
Não sei por que, sempre que estou nessa etapa, o tempo
não anda. Me disperso a cada 10 minutos. Não é que o material
não seja interessante. É que no resto do planeta tem muita coisa

27
acontecendo. Ok, vou desligar o e-mail e o Facebook. E o celular
vou colocar na outra sala.
Entrevistas. Muitas entrevistas. Milhares de entrevistas.

29 de julho
Pronto, tudo visto e reduzido. O Escorel diz que o material não
está sujo porque ele não viu esse aqui. Mas tudo bem. Reduzi o
que consegui assim numa primeira tacada e vamos ao filme.
Filme, qual filme? São muitos filmes. Muitos assuntos, muitos
tudos. Não sei pra onde ir. Ligo pro diretor e digo que já vi tudo,
que podemos conversar.

1º de agosto
Café bonitinho perto de casa. Da casa dele. Muita filosofia.
Muitos desejos, muitas coisas que não encontrei no material.
Aliás, quase nada do que ele falou está lá. Será que faltou
material para ser importado? Ou será que isso que ele sentiu na
filmagem não está impresso? Ou será que vi material de outro
filme e não esse do qual ele está falando?
Num segundo momento, tento levar a conversa para um
caminho mais objetivo. Vamos começar por onde, contar qual
história dentre todas (não, todas não cabem... eu sei que são
incríveis, que são personagens maravilhosos...). Não posso falar
ainda do que acho que não vai ficar, primeiro porque é muito
cedo e posso estar errada, e segundo porque posso já criar
uma resistência desnecessária. Vou ouvindo, tentando ver como
vou sair desse primeiro momento. Na verdade, o diretor ainda
está no momento em que sua vaidade está lhe cegando, sob os
impactos da filmagem.
Proponho montar algumas sequências do filme e que ele
apareça para se integrar a esse processo logo após. Ele acha
ótimo porque, inclusive, precisava fazer um trabalhinho na
Conspira rapidinho e esse tempo vai encaixar perfeitamente.

3 de agosto
Me vejo de novo só com o material e vazia. Com medo.
Aquela velha e conhecida sensação de “desta vez não vou

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conseguir”. Começo a montar as sequências. Começo a inventar
o que poderia ser considerado uma sequência.
Abandono o final cut e vou para a mesa pensar na estrutura
disso tudo. Não, volto pras sequências, pois a partir delas vou
sentir de verdade o filme. Afinal de contas, só estive com o
material uma única vez e no fundo não cheguei a dominar seu
conteúdo como deveria.
Ok, uma olhadinha no Facebook pra relaxar.
Olhou e fez log out.

19 de agosto
Marcamos, o diretor e eu, para vermos algumas sequên-
cias montadas e conversarmos um pouco mais. Ele se decep-
ciona com tudo. Mas e aquele plano da senhora fazendo café
na cozinha tão poético? Match frame. Vamos no bruto checar.
Não existe mesmo. Tem um no final mas o foco está doce, tá
fora de foco demais (a câmera de foto...) Será que se perdeu?
Não, porque os números do planos estão seguidos. É, não
tem mesmo. Desculpe. Me sinto culpada por isso, mas a culpa
não é minha.
Esse é um momento sempre difícil. O diretor se depara com
o seu material. Com o que considera sua própria incompe-
tência. O material é o que é e não o que ele imaginou. Como se
posicionar nesse momento? Nada a fazer. Somos todos assim.
Tratar com carinho tudo isso. Não julgar o diretor nem em
pensamento. Aliás, passei a falar do filme como nosso. E passou
a ser mesmo.

30 de agosto
Depois de muitas conversas com o diretor, a teoria tá toda
lá. Entendi tudo. Li livros a respeito. Pesquisei na internet, estou
expert no assunto. Mas, daí até ter uma ideia de que filme é
este, vai um longo caminho. Mas não tem jeito, preciso seguir.
Pensando, acordando no meio da noite para escrever um pedaço
da estrutura. Experimentando coisas que não estão no lugar
certo para ter a oportunidade de me surpreender.
Assiste, refaz, assiste, refaz.

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Não posso começar a dublar os personagens. Isso será sinal
de que não estou mais vendo de verdade.
Só eu que fico perdida assim, ou tem uma fórmula que
ensinam na universidade e que eu não aprendi? Minha sensação
é que estou sempre começando do zero. Nada do que usei nos
filmes anteriores serve de base pra esse.
Tenho inveja de uma irmã médica, que vê o paciente, pede
o exame, descobre a doença e dá o remédio. E, ainda assim, se
o paciente morrer, pode não ser culpa dela, afinal todo mundo
morre mesmo, e as doenças muitas vezes são incuráveis.

5 de setembro
Vou indo aos trancos e barrancos, como uma cega bêbada
tentando achar alguma parede para se escorar.
E de repente temos um copião! Dizem que tem um anão que
trabalha à noite nas ilhas de edição, consertando cenas, cons-
truindo estruturas. O amigo invisível de adultos editores.
Vamos assistir a esse corte. Muito, mas muito problema. Uuuh!
Tá longe pacas.
Mas pelo menos temos de onde partir as críticas, as possibi-
lidades clareiam.

17 de setembro
Mais duas semanas trabalhando e sonhando com o anão.
Mais perto, já dá pra mostrar pros amigos mais íntimos. Temos
um amigo crítico que vai gostar de ver nesse estágio e pode
ajudar. É um risco, porque se ele não gostar, mesmo sendo
amigo, pode ficar com má vontade no lançamento, mesmo
que o filme mude completamente. Arriscamos, pois estamos já
bastante desesperados.
O crítico gosta. Com ressalvas. Ok, menos mal. Manda suas
críticas por e-mail. Três dias depois manda uma mensagem fofa
dizendo que o filme não sai da sua cabeça. Acreditamos, que
remédio. A autoestima está tão baixa que até acreditamos em
críticos. Começamos a fazer pequenas exibições do filme para
um amigo aqui, um especialista ligado ao tema acolá, pessoas

30
“de outra classe” para ver se o filme é popular... Existe sempre a
fantasia de que o filme vai ser assistido pelas massas.
Alguém, quase por acaso, dá uma ideia que destranca o
problema de como começar o filme. Pronto, demos um passinho
a frente, por favor.
E, de acaso em acaso, de amigo em amigo, vamos chegando
a algo parecido com o que costumamos chamar de filme.

22 de setembro
Exibição no Arteplex, num horário de manhã, com aquele
clima meio clandestino, não sei por quê. As luzes do cinema não
acenderam ainda e não tem o ruído do público no hall. Só nós. E
convidamos também a advogada do clearance, que nos manda
tirar 65% das músicas. Mas o filme sem essas músicas não é nada.
Ouve bem. Vamos começar a mendigar a cessão das músicas,
oferecer todo tipo de crédito pelo qual ninguém se interessa.

30 de setembro
Mais uns ajustes e o filme fica pronto.
Faz aí o omf pro som, os quicktimes de referência etc. etc.
Mas isso não estava incluído no trabalho. A assistente já foi
embora. Não vou estragar a relação agora que o filme já deu
certo, né? Vamolá.
Faz o epk? Faz uns teasers rapidinho? Faz uma legendagem
desse pedacinho aqui pra mandar prum amigo influente do
IDFA? E outro em francês pro Réel... Faz mais um DVD? Um não,
cinco. Faz um com marca d’água pro patrocinador?

5 de outubro
O finalizador reclamou da timeline, da organização das pistas
de áudio. Fez mil perguntas sobre codec que eu não soube
responder. Também avisou que não dá estabilizar toda aquela
sequência, fundamental pro filme, mas muito tremida. Também
disse que aquela imagem escura não tem informação e que vai
ter que ficar aquela bosta mesmo. O fotógrafo propõe passar
o filme todo para preto e branco e o diretor está quase embar-
cando nessa ideia. Socorro.

31
4 de novembro
Noite de estreia. Não vou com uma roupa muito glamorosa
porque afinal isso é documentário. Não pode. Fica fora do
contexto. Um pouco de maquiagem. Bem pouquinho. Penteado
com cara de amarrei o cabelo pra cima sem ligar.
O filme não é mais meu, mas recebo os convidados como se
fosse. Aquele vinho branco na tacinha de plástico que já vem
com a azia do dia seguinte. Finger food, última moda.
A sala lotada. Voltou gente. Que bom, bombou.
Subo no palco com a equipe, num misto de vergonha, timidez
e uma sensação real de que aquilo tudo também me concerne.
Não a festa, mas o filme. A luz se apaga, fujo da sala. Vou comer
um caldo verde num carrinho que vende sopas na rua ao lado.
Não existe a menor hipótese de rever esse filme, nunca mais na
minha vida. Volto para o anonimato da minha ilha. Volto para um
novo material bruto de 200 horas. Volto pra minha agonia, onde
sou feliz.

32
Daniel Rezende

Se é que milagres existem, pode-se dizer que há vários tipos


de pessoas que realizam feitos incríveis que não possuem expli-
cação científica. Curandeiros, feiticeiros e religiosos são apenas
alguns deles. A lista é imensa e varia de acordo com a crença
de cada um. Mas em nenhuma dessas listas você encontrará
montadores.
Esses profissionais, que muito provavelmente passaram a
infância brincando com blocos de montar, lego, quebra-cabeça
e cubo mágico, são, algumas vezes, confundidos com salvadores
que vão encontrar milagrosamente uma narrativa que segure o
espectador em uma poltrona por mais ou menos duas horas. A
frase “A gente salva na montagem” é comumente pronunciada
em muitas produções cinematográficas no país.

33
Se fosse possível resumir o ofício de um montador em apenas
uma frase, poderíamos dizer que ele conta uma história usando
o que de melhor foi filmado pelo diretor. É ele quem decide,
dentre todo o material, o que acabará se tornando parte do
filme. Pois o que não foi montado, não é filme! Ainda que tenha
sido indispensável no processo de filmagem, tudo o que não
entra no corte fica virtualmente em alguma parte da escura sala
de montagem.
Um filme é construído em três etapas principais: o roteiro, a
filmagem e a montagem. Por três vezes, um filme tem a chance
de se reinventar para encontrar sua dramaturgia. Isso se dá com
muita técnica, esforço, talento e, às vezes, acaso.
Eu virei montador por acaso. No final da minha adolescência,
pensava em dirigir filmes, o que parecia uma loucura em meados
dos anos 90, pois naquela época o cinema nacional estava mais
próximo de um sonho distante do que de uma realidade em 24
fotogramas por segundos. Me formei em comunicação social
e comecei a trabalhar com comerciais. Fiz câmera em teste de
elenco, arquivamento de planilhas de produção, até que comecei
a finalizar os comerciais do Fernando Meirelles, que já era um
dos diretores mais conceituados do mercado brasileiro. Depois
de muitas noites sem dormir, resolvi passar mais uma em claro e
editar, mesmo sem saber direito como fazer, um vídeo de “erros
de gravação” de um comercial que havia sido filmado com uma
grande estrela de Hollywood. O Fernando gostou e me convidou
para montar alguns de seus comerciais. Para a minha sorte, ele
é um diretor que entende muito de montagem e acabei apren-
dendo tanto com ele que essa parceria durou alguns anos, e
em 2001 fiz a transição de publicidade para longa-metragem,
com Cidade de Deus. Eu, que nunca havia montado nada mais
longo do que 30 segundos, tinha nas mãos um longa-metragem
inteiro, e não fazia a menor ideia do que estava me esperando.
Cada montador tem o seu método de trabalho, mas pode-se
dizer que os princípios da montagem são os mesmos em todas
as diferentes linguagens e em diferentes plataformas de edição.
O montador assiste ao material filmado, seleciona o que há
de melhor, monta a cena, assiste com o diretor e faz os ajustes
necessários. No longa-metragem o processo é realizado em duas
etapas. A primeira, assim como na publicidade, é exatamente
como descrito. A segunda etapa, que não existe na publicidade,

34
é quando todas as cenas são colocadas na ordem do roteiro e
o montador e o diretor assistem ao primeiro corte do filme. E é
aí que o trabalho do montador realmente começa, no momento
em que ele está trabalhando a narrativa, o ritmo e a dramaturgia.
Entre as escolhas que o montador deve fazer estão: a decisão do
porquê uma cena vem depois da outra, por que cada uma delas
merece estar no filme, a árdua tarefa de balancear os persona-
gens de acordo com o peso de cada cena e costurar todas as
cenas para formar um único filme. Esse é o momento mais bonito
do trabalho do montador. É quando o filme começa a existir!
A ideia de um filme frenético, com muitos cortes, é geral-
mente associada a um filme bem montado. Eu acredito que,
independente do número de cortes ou se eles são perceptíveis,
se você não desviou a atenção da estória, este é um filme bem
montado. Se em nenhum momento você olhou para o relógio,
ou se lembrou da conta que precisa pagar amanhã cedo, ou
da comida do seu animal de estimação que você esqueceu de
deixar naquela manhã, esse filme tem muitas qualidades, e segu-
ramente é um filme extremamente bem montado.
Mas um filme bem montado não depende apenas da quali-
dade ou experiência do montador. O cinema é um trabalho
em conjunto, influenciado por vários fatores: o porquê do filme
existir, o que ele quer dizer, por que o diretor se interessou por
contar essa história e como ele vai fazê-lo. É muito difícil um
filme ser bom se o roteiro é ruim, o diretor não sabe que história
quer contar, os atores não entenderam os personagens, a foto-
grafia é deficiente ou a direção de arte é equivocada. Se todos
esses erros anteriores chegarem nas mãos do montador, não lhe
sobram muitas alternativas. É claro que existem truques que ele
pode utilizar para esclarecer confusões na história ou esconder
furos de roteiros, atuações ruins e cenas mal filmadas. Afinal de
contas, um montador é basicamente um manipulador e, como
todo bom manipulador, ele não pode deixar que o ser manipu-
lado perceba suas manobras.
Ainda que todos os envolvidos no filme tenham acertado
e o material filmado seja excelente, é essencial que haja uma
sintonia muito forte entre o montador e o diretor. O processo de
montagem precisa de tempo de reflexão e desconexão com os
processos anteriores. Depois de filmado, quem manda no filme
é o material. O diretor tem que confiar no seu montador e dizer

35
a ele qual é o filme que gostaria de fazer, o que ele gostaria
de dizer com cada cena. O montador deve então traduzir essa
sensação e essa vontade do diretor usando o material filmado.
O montador tem que enxergar dentro desse material o que
de melhor existe para construir a história que o diretor quer
contar. A relação diretor-montador é muito próxima e delicada.
Quando essa relação é boa, o filme ganha com isso. Se eles
não concordam ou, principalmente, não se respeitam, o filme
acaba sofrendo. O montador deve defender seu ponto de vista e
suas colocações para fazer o melhor filme possível, mas sempre
respeitando o limite de quem tem a palavra final: o diretor.
Na constante arte da escolha que envolve a realização de suas
tarefas, o montador está sempre lutando entre dois caminhos
antagônicos: a racionalização e a intuição. Ele vai precisar
das duas, mas eu, quando tenho que escolher, uso primeiro a
intuição. Ela está ligada à percepção das coisas, algo que às
vezes não se consegue explicação lógica, é o que se sente. E
não é isso que queremos ao criar uma obra de arte, no caso um
filme? Que as pessoas sintam? Ao selecionar o material confio
sempre no que sinto, mesmo que não saiba explicar o porquê.
Depois penso quantas vezes eu quiser sobre o assunto.
Por isso, eu sempre peço ao diretor para assistir ao material e
fazer o primeiro corte de cada cena sozinho. Depois assistimos à
cena montada e prosseguimos juntos até chegar ao corte final.
Acredito que se assistirmos ao material e fizermos o primeiro
corte em conjunto, eu vou fazer, logo de saída, exatamente o
que está na cabeça do diretor. Não que isso seja um problema.
Mas, iniciando sozinho, o montador tem a oportunidade de
trazer coisas que o diretor talvez não tenha pensado. Assim o
diretor estará livre para apenas sentir e pode tornar-se, nem que
seja por uma única vez, um espectador do próprio filme. E, caso
a intuição do montador tenha falhado (e falha muitas vezes),
os dois podem conversar muito e racionalizar quantas vezes
quiserem, chegando ao resultado final. Se estiver no material, o
montador e o diretor vão encontrar a maneira de contar aquela
história. De fazerem a sua arte. Juntos!
Mas só se o filme estiver no material. São muitas as tarefas do
montador, mas fazer milagres não é uma delas.

36
Diana Vasconcellos

Cheguei pela primeira vez em um set de filmagem


através de amigos da faculdade. O interesse foi imediato.
Era 1980, Belo Horizonte, e eu cursava a faculdade de
comunicação social. Além de não conhecer ninguém que tivesse
estudado cinema, eu mesma também não havia considerado
essa possibilidade.
Entrei pela porta da produção, que acolhia muito bem
quem tivesse apaixão, energia e disposição. Eu estava com
20 anos, e tinha tudo isso de sobra. Conheci a sala de montagem
dois anos depois, já no Rio de Janeiro. Por falta de um profis-
sional disponível, eu precisei organizar o material do filme no
qual estava trabalhando: Noites do sertão, de Carlos Alberto
Prates Correia.

37
Na faculdade, cheguei a editar um pequeno filme publicitário
numa moviola 16 mm, o que me deu confiança suficiente para a
tarefa que eu tinha que cumprir por urgência da produção.
A sala era muito pequena, nada confortável, cheia de latas
de filme com cheiro forte, mas vi que tinha chegado onde todo
o trabalho da filmagem fazia sentido. Tive contato com monta-
dores e assistentes e vi outras salas onde outros filmes estavam
sendo montados.
O maior de todos os encantos que o cinema me proporcionou
foi o que eu imaginei antes de conhecer: como acontecia a
montagem do filme. Decidi ficar.
Não foi difícil fazer a curva, havia poucos assistentes de
montagem no mercado. Trabalhei muito, não só como assistente
de montagem mas também de edição de som. Foi uma época
intensa. Além de fazer vários filmes seguidos, decidi tirar o
atraso por ter frequentado pouco os cineclubes. Fui atrás dos
clássicos e lia tudo que conseguia encontrar. Queria aprender
mais, e por isso me preparei, e fiz uma volta ao set, dessa vez
como continuísta. O filme era Banana Split, de Paulo Sérgio
Almeida, e foi o primeiro convite que recebi para montar.
Muitas coisas se transformaram desde que comecei a fazer
filmes – e sei que continuarão a mudar –, mas outras tantas
permanecem e reafirmam o sentido essencial do trabalho de
montagem. As transformações são complexas na mesma medida
em que a nossa relação com imagens, sons e conteúdo estão
sofrendo grandes mudanças e alterando a capacidade de
atenção e aprofundamento, mas não acredito que a necessidade
desse aprofundamento tenha diminuído.
O processo de captação e finalização digital abriu e vem
ampliando sem parar as possibilidades de intervenção na
imagem, impensáveis nos tempos do negativo. Não me refiro
a efeitos mirabolantes claramente identificáveis, mas a interven-
ções que o espectador nem percebe. A simples alteração de um
enquadramento, a colocação ou eliminação de elementos em
cena, a composição de uma imagem usando outras duas ou três,
tudo isso, que encontra solução simples com os recursos digitais,
não para de alterar o olhar do montador, que avalia, escolhe,
descarta e pode recriar uma imagem.

38
Penso nisso apenas como mudanças, sabendo que estamos
perdendo e ganhando o tempo todo. Contar histórias continua
sendo a nossa função. Trabalhar com o tempo que pode ou não
ser medido é o maior desafio da montagem. Quanto dura o dia,
a noite, os anos, os minutos, um sonho, o susto, a dor, a espera,
o medo, o amor? No cinema tudo isso é unidade de tempo
inventada. Sempre foi. É fonte inesgotável.
Refletir sobre montagem é refletir sobre a percepção do tempo.
Ao longo dos anos, vi diminuir a presença do diretor na sala
de montagem. O processo da película permitia que se acompa-
nhasse passo a passo o trabalho do montador, fosse marcando
um corte, buscando material nas sobras ou projetando um rolo.
Nos computadores é impossível, senão irritante, acompanhar a
sucessão de imagens pulando na tela aparentemente de forma
aleatória. Aqui também vejo perdas e ganhos.
Precisei me acostumar a ficar grande parte do tempo sozinha e
a tomar mais decisões. Fui descobrindo processos de elaboração
diferentes, solitários e algumas vezes mais livres. Montagem é
um laboratório permanente, um trabalho de garimpo e também
de construção.
Enfrentar a sala de montagem é estar disposto a experimentar,
ousar, duvidar, mudar de ideia várias vezes por dia e investir
fundo na opção mais sedutora e convincente, sem nenhuma
garantia de que irá funcionar. O trabalho é duro e exigente. O
nosso próprio limite é posto à prova com muita frequência. A
boa relação diretor/montador é determinante. É uma associação,
acolhimento mútuo.
A parceria criativa só se realiza plenamente com confiança e
liberdade para correr riscos. As minhas experiências mais grati-
ficantes foram aquelas em que conquistei uma maior cumplici-
dade com os diretores.
Tenho grande admiração por eles.
Gosto muito de lembrar do meu começo quando, assistente
iniciante, passei longas jornadas de trabalho com uma monta-
dora com quem o diálogo era rico e fluía com facilidade. Um
dia fui surpreendida com uma interrupção quase abrupta. Ela
parou a moviola se virou pro fundo da sala onde eu estava
organizando sobras de copião e me falou com severidade: “Não

39
sei se você sabe, mas o que se fala na sala de montagem não
pode sair daqui.”
Entre assustada e divertida com a atitude dela, assenti, e até
hoje obedeço.

40
Eduardo Escorel
Nem tudo, nem nada1

Os meios disponíveis para montar e finalizar um filme mudaram


muito ao longo da história do cinema, tendo sofrido alterações
marcantes nos últimos 50 anos.
Os recursos técnicos atualmente disponíveis eram inimaginá-
veis até há cerca de 30 anos, tendo levado, inclusive, ao surgi-
mento de um novo especialista, o finalizador, até então inexis-
tente, ao menos com esse nome.
Além dos meios, com o surgimento do registro digital, a
própria natureza da imagem cinematográfica, como também o
que foi chamado de “experiência fílmica”2, passou por mudanças
profundas.
Mas, por maior que tenha sido essa alteração dos recursos
técnicos, da natureza da imagem e da “experiência fílmica”, até

41
que ponto esse processo levou, de fato, a uma alteração dos
procedimentos expressivos e afetou a linguagem do cinema em
si mesma? Houve uma ruptura instaurando uma nova linguagem
como consequência dessas inovações? Em outros termos, as
novas ferramentas disponíveis afetaram a subjetividade do reali-
zador?3 A diferença entre o analógico e o digital, e a progres-
siva substituição de um pelo outro, provocou alguma “perda”4,
afetando a noção de tempo, de duração, de ritmo, de anda-
mento, conforme a diretora e fotógrafa Babette Mangolte5
afirmou há uns dez anos? Há outras “perdas” a computar diante
da substituição da base de prata pelo pixel e do desapareci-
mento do obturador?

O que teria mudado do começo do cinema – quando Frank
Capra6 começou a aprender, em 1920, a ferramenta que ele
chamou, nas palavras dele, de “fundamental, a montagem
cinematográfica”, “(…) uma arte tão nova quanto o próprio
cinema”7 – até os dias atuais?
É verdade que dificilmente alguém terá de novo a mesma
experiência de Capra ao chegar à sala de montagem: “Lá estava
o diretor”, Capra escreveu em sua autobiografia, “a camisa
empapada de suor, película enrolada no pescoço e debaixo dos
pés, blasfemando e pisoteando os pedais da coladeira”8.
De lá para cá, a montagem deixou de ser, de fato, um arte-
sanato pesado e desgastante, para se tornar uma atividade
predominantemente intelectual, lúdica e prazerosa, tendo como
suporte softwares sofisticados, e sendo exercida em salas com
ar-condicionado – não por respeito aos profissionais, mas por
exigência dos equipamentos.
Com o surgimento da computação gráfica e o desenvolvi-
mento das técnicas digitais, a imagem, por sua vez, além da
mudança de suas características físicas e químicas, perdeu sua
natureza de testemunho. À medida que os filmes abstratos da
década de 1920 ficaram em segundo plano, prevalecia a noção
de que a imagem cinematográfica era o testemunho de eventos
reais ou imaginários.
O cinema nascente chegara a ser anunciado e acolhido como
uma testemunha irrefutável. “Pode-se dizer que a fotografia

42
animada tem um caráter de autenticidade, de exatidão, de
precisão que somente ela possui. Ela é por excelência a teste-
munha ocular verídica e infalível”9, escreveu Boleslas Matuszewski
ainda no final do século XIX.
Em retrospecto, salta aos olhos a ingenuidade dessa afir-
mação, e é difícil não sorrir ao menos diante de tamanha creduli-
dade quanto ao dogma da imagem cinematográfica ser conside-
rada uma representação fiel do que a câmera observa.
Entre tantos exemplos possíveis para comprovar a ampliação
do campo de possibilidades do cinema e relativizar a noção da
imagem como testemunho, bastaria lembrar do chamado docu-
mentário de animação Valsa com Bashir10, de 2008.
Mas será que ainda assim essa mudança de natureza da
imagem se reflete nos procedimentos expressivos específicos
da linguagem cinematográfica? O aumento das possibilidades
criativas – proporcionado pela expansão dos recursos técnicos –
propicia uma inovação de linguagem?
Das três mudanças mencionadas – a dos meios, a da natureza
da imagem e a da “experiência fílmica” –, essa última parece ser
a que vem tendo maiores implicações, embora ainda mal assi-
miladas e processadas. A multiplicação de mídias afeta tanto a
forma do filme quanto a maneira do espectador de ter a “expe-
riência fílmica”11. Composição do frame, decupagem e ritmo da
montagem dependem do tamanho da tela e das condições em
que o filme será visto. Isso para não mencionar as possibilidades
de interação que surgiram entre filme e espectador.

Apesar de ter havido períodos da história do cinema em que
“a montagem foi proclamada como sendo ‘tudo’”12, montadores
costumam sofrer de um certo complexo de inferioridade. Talvez
isso se deva, em parte, aos períodos “em que a montagem foi
considerada como sendo ‘nada’”13.
Deixando de lado as raízes psicanalíticas desse sentimento
que persiste em nossos dias, o bom senso recomenda consi-
derar que “a montagem nem é ‘nada’, nem é ‘tudo’”, e como
Eisenstein escreveu é “necessário lembrar que a montagem é um
componente tão essencial da realização de filmes quanto todos
os outros elementos eficazes da cinematografia”14.

43
Durante muito tempo, os historiadores do cinema ignoraram
a contribuição dos montadores15. Isso teria ocorrido porque
“mesmo quando bem-sucedido, [o trabalho do montador] é
imperceptível”, escreveu Kevin Brownlow. Não terá sido à toa
que o livro dedicado ao editor britânico Stewart McAllister
recebeu o título de “Retrato de um homem invisível”16. Daí ao
complexo de inferioridade é um pulo.
Três reflexos desse complexo são mais frequentes: a crença
de que a montagem é toda poderosa, a tendência dos monta-
dores a serem críticos em relação aos diretores e a aspiração dos
montadores de serem reconhecidos como autores do roteiro nos
casos em que o filme é estruturado na montagem.
Mesmo sendo etapa decisiva da feitura de um filme, é ilusório
considerar a montagem como todo-poderosa. A principal tarefa
da montagem é decifrar significações já contidas nas imagens e
nos sons, conforme Andrei Tarkovski preconizou. Ele discordava
dos que “pretendem que a montagem seja o elemento determi-
nante de um filme. Dito de outra forma, que o filme seja criado
na mesa de montagem”17.
Para Tarkovski, “a montagem não é, afinal de contas, senão
a variante ideal de uma colagem de planos contida a priori no
material filmado”. Montar um filme de maneira justa, correta,
significa, para ele, “não romper a ligação orgânica entre certos
planos e certas sequências, como se a montagem já estivesse
contida nelas antecipadamente, como se uma lei interior regesse
essas ligações, e em função da qual nós tivéssemos que cortar
e colar”18.
Ser crítico em relação ao diretor, por sua vez, vai contra algo
essencial da criação cinematográfica – o fato de ser feita em
colaboração. Mesmo que um dê a palavra final, normalmente o
diretor, isso não diminui em nada a importância da contribuição
do montador.
Quanto aos montadores pretenderem ser creditados como
roteiristas, em especial no caso de documentários, a reivindi-
cação remete a um personagem imaginário de Woody Allen,
obsessivo a ponto de fazer o roteiro das suas viagens depois de
ter voltado para casa. Roteiro e montagem, sendo igualmente
importantes, têm pressupostos diferentes. O roteiro supõe algo
que ainda vai acontecer, ou a possibilidade de que algo aconteça

44
– é uma hipótese, enquanto a montagem é feita a partir de regis-
tros visuais e sonoros preexistentes que já trazem em si mesmos
uma significação – ou seja, é um trabalho analítico.

Quanto aos diretores, nenhum é digno do cargo se deixar de
ser responsável pela montagem do filme que dirigiu. Diretores
omissos, que deixam a montagem a cargo do montador, passam
um atestado de incompetência para si mesmos.

Pensando nos decretos apocalípticos que acompanham a
história do cinema, e que põem em dúvida, periodicamente, seu
futuro – cinema sonoro, televisão, videocassete, imagem digital,
para citar apenas algumas dessas sentenças fatais –, vale lembrar
de Quarto 666, de Wim Wenders, filmado durante o Festival de
Cannes de 1982.
Antes dos depoimentos de vários cineastas comentando a
crise do cinema e suas possibilidades de sobrevivência, Wenders
nos oferece o plano geral de um majestoso cedro do Líbano que
fica entre os trilhos do trem e a estrada, na entrada para o aero-
porto de Orly, em Paris. O cedro “deve ter ao menos 150 anos”,
diz Wenders em voz off. E completa: “Ele [o cedro] tinha visto o
início da fotografia e toda a história do cinema, ao qual poderá
muito bem sobreviver”. Assinalava, dessa maneira, o valor do
que se preserva e permanece em face das novidades, muitas
vezes efêmeras. Mas aos entrevistados, entre outras questões,
Wenders pergunta: “[O cinema] em breve será uma forma de
arte defunta?”.

Para o primeiro entrevistado, Jean-Luc Godard, “morrer não
é mau. É um momento. Eu vou morrer. Será que minha arte vai
morrer? […] É preciso partir. Isso é bom. Tanto melhor”, diz ele,
lacônico e objetivo, como de costume.
Mas talvez seja o jovem Michelangelo Antonioni19, aos 70
anos na época, quem dê a resposta mais lúcida e pragmá-
tica à questão de Wenders, dizendo ser “[…] verdade que o
cinema corre perigo de morrer, mas é preciso considerar outras
coisas. […] Nós devemos procurar nos adaptar àquela que será

45
a exigência do espetáculo do futuro […] Provavelmente, todas
essas transformações ocorrerão e não nos restará nada a fazer
senão nos adaptarmos. […] Eu creio que […] não será, afinal, tão
difícil nos transformarmos em homens novos mais bem adap-
tados às novas tecnologias. É isso tudo que eu tinha a dizer”20.
Vinte e cinco anos depois, graças a Gustavo Spolidoro21, no
documentário De volta ao quarto 666, o próprio Wim Wenders
reavaliou seu pessimismo e reafirmou sua crença no valor do que
permanece: “[…] o cinema sobrevive a nós. O filme [Quarto 666]
sobreviveu ao Michelangelo, e agora este filme aqui vai sobre-
viver a mim. […] Na época em que Quarto 666 foi feito [1982]
éramos todos pessimistas. O futuro do cinema não nos parecia
bom. […] De fato, é incrível, quando eu penso o quão pessi-
mista era nossa previsão em 1982, é incrível que o cinema tenha
se mantido tão bem. Ele não só ultrapassou nossas mais altas
expectativas no período posterior, nos anos de 1990 e hoje no
século XXI, mas saiu sozinho do buraco em que se encontrava.
O cinema está mais vivo do que nunca. […] Quanto ao futuro
do cinema, eu não tenho medo algum, muito pelo contrário. Eu
invejo os jovens que hoje podem começar a fazer filmes, sua
liberdade, suas possibilidades ainda não descobertas, advindas
da tecnologia. Acredito que nós apenas arranhamos todo o
potencial da tecnologia digital. […] Eu me alegro com todos os
filmes que me demonstram que o cinema pode ser completa-
mente redescoberto, e sempre pode haver descobertas e redes-
cobertas. Naquela época, nós pensamos que o vídeo, a televisão,
iriam destruir a linguagem do cinema. Aconteceu exatamente o
contrário. […] O cinema está novo, como sempre foi, pois as
pessoas precisam do cinema”.
Sem ser tão otimista, não deixa de ser um consolo saber que
há quem pense assim.

Em um livro publicado em 195622, Roman Jakobson se refere
ao cinema como tendo desenvolvido, “a partir das produções de
D. W. Griffith”, sua capacidade “de variar o ângulo, a perspectiva
e o foco das tomadas”, empregando “uma gama sem prece-
dentes de grandes planos sinedóquicos e de montagens meto-
nímicas em geral, procedimentos que vieram a ser “suplantados
por um novo tipo metafórico de montagem, […]”.

46
O desenvolvimento técnico do cinema – a informatização, o
digital e a terceira dimensão – cria novas possibilidades esté-
ticas, sem dúvida. Minha hipótese é que a linguagem do cinema
permanece fundamentalmente a mesma de sempre.
Quero crer que o cedro do Líbano centenário filmado por
Wim Wenders, em 1982, continua lá, na entrada para o aero-
porto de Paris, com sua folhagem perene e suas raízes profundas.
A espécie é de grande longevidade, podendo viver durante
séculos.

A pergunta final que se impõe é se devemos aceitar o desa-
parecimento da película como uma fatalidade. Há quem resista
a isso. Para a artista britânica Tacita Dean, autora da instalação
Film23, feita com filme 35 mm, “proteger a película tornou-se
uma plataforma [de luta]. Serei acusada de ser nostálgica por não
gostar do digital”, ela diz. “Não há nada de nostálgico [nisso] [...]
O que estou dizendo é que a película é uma mídia linda, uma
mídia diferente, e devemos preservá-la.”

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1 –  Versão resumida da palestra de abertura do simpósio “A pós-produção criativa”, reali-
zado na Cinemateca Brasileira, São Paulo, em 9 de novembro de 2011.
2 – CASETTI, Francesco. The Filmic Experience: An Introduction. Paper resultante do semi-
nário “Experience and Reflexivity”, ocorrido em Yale, no semestre da primavera, em 2007.
3 – MANGOLTE, Babette. Analog versus Digital, the Perennial Question of Shifting
Technology and its Implications for an Experimental Filmmaker’s Odyssey. In ALLEN,
Richard; TURVEY, Malcolm (ed.). Camera Obscura Camera Lucida Essays in Honor of Annette
Michelson. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2003. p. 261-74.
4 – Ibidem, p. 262 e seg.
5 – Babette Mangolte é realizadora e diretora de fotografia experimental, nascida na
França, residente em Nova Iorque.
6 – Frank Capra (1897-1991), diretor, entre outros, de Aconteceu naquela noite (1934), O
galante Mr. Deeds (1936), Do mundo nada se leva (1938), A mulher faz o homem (1939),
Adorável vagabundo (1941) e A felicidade não se compra (1946).
7 – CAPRA, Frank. The Name Above the Title. New York: Bantam Book, 1972. p. 33-34
[Primeira edição: New York, Macmillan, 1971].
8 – Idem, p. 36.
9 – MATUSZEWSKI, Boleslas. Écrits cinématographiques. Paris, Association française de
recherche sur l’histoire di cinéma • La Cinémathèque française, 2006. Une nouvelle Source
de l’histoire (1898), p. 9.
10 – Ari Folman, 2008. Recorrendo à técnica de animação, Valsa com Bashir trata da guerra
do Líbano, em 1982.
11 – CASETTI, Francesco. The Filmic Experience: An Introduction. p. 4.
12 – Eisenstein, volume 2, Towards a Theory of Montage. “Montage 1938” [publicado com
o título “Word and Image” em Film Sense]. Michael Glenny e Richard Taylor (Ed.). London:
British Film Institute, 1991. p. 296.
13 – Idem.
14 – Idem.
15 – BROWNLOW, Kevin. The Parade’s Gone By… .Berkeley: University of California Press,
1968. p. 286.
16 – VAUGHAN, Dai. Portrait of an Invisible Man – The Working Life of Stewart McAllister.
London: British Film Institute, 1983.
17 – TARKOVSKI, Andrei. Le Temps Scelée. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinéma,
1989. p. 109.
18 – Idem.
19 – Michelangelo Antonioni, 29 setembro 1912 – 30 julho 2007.
20 – Menos de dois anos depois, Antonioni sofreu um derrame e perdeu a fala, tendo
conseguido fazer ainda dois filmes antes de morrer aos 95 anos. “É preciso partir”, como
disse Godard.
21 – De volta ao quarto 666 (15’, 2008), direção de Gustavo Spolidoro, concepção de
Gustavo Spolidoro, Vicente Moreno e Alfredo Barros.
22 – Roman Osipovich Jakobson, Essais de Linguistique Générale. Paris: Les Éditions de
Minuit, 1963. Capítulo II – “Deux Aspects du Langage et Deux Types d’Áphasies. Segundo
capítulo de Fundamentals of Language (La Haye, 1956). Linguística e Comunicação. São
Paulo: Editora Cultrix, 2007. p. 58.
23 – The Unilever Series: Tacita Dean, Tate Modern, Turbine Hall, Londres, 11 outubro
2011–11 março 2012. “FILM is an 11-minute silent 35 mm film projected onto a gigantic
white monolith standing 13 metres tall at the end of a darkened Turbine Hall. It is the first
work in The Unilever Series devoted to the moving image, and celebrates the masterful
techniques of analogue film-making as opposed to digital.” [do site do Tate Modern].

48
Eduardo Serrano

Material Bruto.
Hoje tenho que escrever um texto sobre montagem. Fiquei
surpreendido quando me pediram e feliz ao mesmo tempo.
Pessoas que eu admiro tanto me fazerem um pedido desses é
uma lisonja. Disse “hoje” mas eu minto, faz uma semana que
tento escrever isso. Uma semana. Já mudei de lugar várias vezes:
na sala, no quarto, na ilha – essa nossa caverna que já sinto falta –,
tentei dispositivos diferentes, computador grande, laptop, iPad
e até mesmo papel.
Nada.
A mesma coisa acontece quando tenho material bruto novo
pra assistir. Fico enrolando e desenrolando por alguns dias,
pensando na vida, arrumando contratempos, até enfrentá-lo

49
finalmente, suando em bicas. É um processo delicado, esse do
primeiro contato. Bruto até. Mas não do jeito que gostamos de
o chamar – Material Bruto –, a gente bem que podia chamá-lo
de outra coisa, porque ele vem de repente, como um grande
tapa e com tantas emoções, mas não agride, a gente só tem que
se deixar levar. Se jogar assim não é fácil. Eu choro, grito, me
emociono, e deixo as conexões virem à tona.
Alguns podem dizer que é procrastinação. Aprendi essa
palavra em inglês, e foi num curta de animação. Gosto dela até
hoje. Dá um ar de importância à parte do processo que é essen-
cial no que faço. Esperar ou dar razão ao tempo, a esse primeiro
olhar, é importante, porque ele só se faz existir por uma vez.
Igualzinho a ver um filme. E é isso que se pretende, pois nessa
experiência do primeiro contato, se concentra a força do filme.
Tento fixar na memória tudo que sinto ao assistir o material
pela primeira vez, antigamente até anotava tudo com medo de
me esquecer, mas hoje em dia confio na cabeça. Até porque
mesmo que a memória seja obtusa e os sentimentos sejam
lembrados de forma diferente, isso também se faz importante,
como tais emoções foram transformadas no subconsciente e
fizeram outras ligações à minha própria história.
E esse processo é meu, sozinho, solitário… me deparo.
Reservo o tempo e o espaço pra isso.
Mas sou dos que não se importam de ter o diretor traba-
lhando comigo, claro que isso vem depois desse processo mais
recluso. Até às vezes monto a minha versão do filme que vi
nesse material bruto. Esse primeiro contato do diretor com um
corte é tão importante quanto o que eu passo antes. O diretor
depositou muita energia, investiu muito de si, e ele geralmente
está numa posição delicada, pela primeira vez ele será confron-
tado com suas intenções. Importo-me muito com isso, tento ser
sensível com o momento. Não deve ser fácil bater de frente com
tudo que se planejou por meses ou anos e que, às vezes, não se
concretiza da forma idealizada.
E eles normalmente se frustram com esse primeiro corte,
tirando poucas exceções. Acham que o filme não aconteceu. O
meu papel é mais de incentivador do que qualquer outra coisa
nesse momento. Chefe da torcida organizada mesmo. Instigando
o diretor, como dizem aqui em Recife. Afinal, o filme, que já tem

50
um corpo, ainda é muito pequeno, falho e feio. A gente tem
que defender essa promessa acreditando nas emoções sentidas
do primeiro contato, nos romantizarmos e acreditarmos que o
filme existe.
Do confronto das intenções do diretor com o nosso primeiro
corte, saem à tona emoções que estavam maquiadas, escondidas
e que nos aproximam do impacto que o diretor teve quando
pensou naquela ideia pela primeira vez.
Entre esse momento inicial e o fim da montagem, passa-se
muita coisa. Muitas semanas, e até meses, numa sala fechada,
com algumas discussões, alguns abraços e muita emoção.
É um processo de divã mesmo. Desconstruindo a premissa,
com o propósito de chegar na emoção que formou aquela
fagulha inicial.
E o filme fala por si. Ele tenta nos dizer o que é, nos apontar o
caminho, com muitas pistas. Não acredito que possamos recons-
truí-lo, nem o moldar. Se tentarmos, fica aquela sensação de
condução, de induzido, de trapaça. E acho que sentimos isso no
final, no nosso primeiro contato com o filme enquanto audiência.
Por isso, acho importante confiarmos na memória, inventada ou
não, do nosso primeiro encontro com o material.
Mas é importante saber o que fazer com essas emoções fortes
e tão arrebatadoras.
Não defendo a tese da imersão total, ou seja, por termos certo
controle sobre essas primeiras reações, não acho que devemos
construir só um processo de virtualização da audiência. Acho
que o grande desafio é saber controlar essa distância, entre nós,
sentados numa sala escura e a tela em que se projeta o filme.
Alguns anos atrás, assisti a uma palestra do Atom Egoyan,
diretor canadense, que disse que “nenhum outro meio, tão efeti-
vamente, controla o delicado jogo entre o desejo, a fantasia e a
necessidade”. Engraçado… Tirei essa frase meio de contexto,
confesso, já que ele falava sobre o erotismo no cinema.
Mas acho que regular esse desejo de participar da fantasia
de se projetar em outra pessoa, em outro lugar, é também criar
uma experiência mais profunda de transformação. É deixar de
ser uma experiência projetada nos conflitos de um personagem
para se tornar parte do que pensamos como necessário.

51
Então, prefiro deixar as pessoas perceberem que têm cabeça
e corpo, que pensam e que podem ter a consciência da projeção,
do desejo. Esse lado racional, que entende a obra com alguma
distância e certo desapego, termina nos premiando com uma
experiência de real imersão, mais subconsciente, mais profunda,
mais transformadora. Procuro pelos curiosos, os que desprendem
algum esforço em compreender.
Muitos acreditam que tal imersão é devido ao ritmo. Isso é
parte importante da experiência, mas não toda. De onde eu
vejo, o ritmo vem marcado no material bruto, na forma que foi
construída pela mise en scène, pela interpretação e pela estru-
tura do roteiro. O que se pretende, ao meu ver, é perder a noção
da expansão e contração do tempo. É perder-se em relação à
cronologia da estrutura narrativa, é deixar-se levar por ela. Acho
que quando perdermos a noção do que vem antes e depois é
que se entra em um filme de verdade e é mais devido a um
jogo entre a memória, às conexões da nossa própria história com
essas emoções iniciais, à tentativa e à quebra de expectativas do
que devido aos cortes, ao ritmo imposto.
É por isso que dou tanta importância àqueles primeiros flertes
com o material de um filme. São nesses encontros, esbarrões
casuais, nos olhares de lado, que procuramos os nossos desejos
e fantasias.
É nesse momento que penso com muito carinho nas minhas
aflições iniciais e descubro, que na realidade, passava por tudo
aquilo por respeito ao nosso delicado material bruto na tentativa
de perceber onde eu me apaixonaria à primeira vista nesse nosso
primeiro encontro.

52
Giba Assis Brasil
Montagem e metáforas

Pouco tempo atrás, numa lista de discussão de um programa


de montagem digital, eu li uma mensagem que era mais ou
menos assim: "Alô, pessoal, preciso de ajuda. Acabei de
instalar o programa (Final Cut) e já entendi como fazer para
abrir o que eu filmei. Agora só falta aprender a tirar fora o que
não interessa".
A tecnologia digital, embora não tenha alterado os princípios
ou a lógica da montagem, revolucionou os processos pelos quais
a montagem acontece, democratizando e simplificando imensa-
mente o seu uso. Tanto que é possível formular uma ideia como
esta: montar não é mais do que ter acesso ao que foi filmado
e eliminar o que não for necessário. Mesmo sem concordar com
a ideia, eu não tenho nenhuma saudade da moviola.

53
Walter Murch, no livro Num piscar de olhos, relata seu espanto
ao ter sido confrontado pela primeira vez com um raciocínio
semelhante, de um ex-colega de sua esposa, décadas atrás. Na
época, Murch disse que estava estudando montagem de cinema
e o tal colega comentou: "Sei. Montagem é quando se tiram as
partes ruins do filme". Murch conta que protestou, enfurecido,
que montagem seria "muito mais do que isso: a estrutura, a cor,
a dinâmica, a manipulação do tempo". Hoje, 25 anos depois, ele
diz que passou a respeitar essa "ingênua sabedoria”. De certa
forma, montar é tirar as partes ruins; o problema é definir o que
são estas partes ou – nos termos do meu jovem colega de lista
de discussão – "o que não interessa".
As formulações simplistas do espectador inglês dos anos 1970
e do aspirante a montador digital brasileiro recente não são muito
diferentes de uma conhecida anedota, provavelmente apócrifa,
relativa a um ilustre personagem do século XVI: segundo uma
infinidade de fontes pouco confiáveis, ao ser perguntado como
conseguia transformar um bloco de mármore na estátua de um
cavalo (ou de um anjo), Michelangelo teria respondido algo
como; "… fácil, basta tirar do mármore tudo que não for cavalo".
Uma boa frase de efeito para fugir de uma pergunta sem
muito sentido, mas que também revela uma concepção platô-
nica da obra de arte. O cavalo, o anjo, Davi, Moisés e a Pietá já
estariam presentes, potencialmente, no bloco de mármore. Ao
artista caberia apenas usar seus instrumentos para revelá-los aos
nossos olhos. É claro que saber utilizar um martelo e um cinzel
não é o suficiente para um escultor ser Michelangelo, assim como
aprender a cortar, esticar, encolher e deslocar pedaços virtuais
de filme numa linha de tempo não transforma qualquer operador
de Final Cut num montador como Walter Murch. O limite dessa
comparação não está no talento, na experiência, na pré-visuali-
zação, no detalhismo – capacidades necessárias em ambos os
casos –, mas no fato de que o material filmado, por mais caótico
que seja, sempre contém em si uma quantidade enorme de
decisões humanas tomadas antes e durante a filmagem, muito
diferente de um bloco de mármore.
Ainda assim: a montagem pode ser pensada como um
processo semelhante ao de esculpir em mármore?
Acredito que sim, em alguns casos. Em vídeos de casamento,

54
de aniversário, de formatura, certamente. Em reportagens,
quase sempre. Muitas vezes também em documentários, quando
o objeto principal é um evento com duração determinada –
uma competição esportiva, um ritual religioso, um dia na vida
de alguém. Do ponto de vista da montagem, direct cinema ou
cinéma vérité são um pouco como o mármore: a principal tarefa
do montador é enxergar o cavalo que está no material filmado e
eliminar o que não interessa, o que não é cavalo.
Em outros casos, montar pode se parecer mais com uma
técnica de escultura bem mais antiga do que o mármore: a
argila, o barro.
Aqui não se trata tanto de tirar, mas de moldar, juntar, justapor.
Documentários que seguem um único personagem em situações
diferentes, ou vários personagens numa situação única, ou uma
série de depoimentos sobre um tema, ou tudo isso combinado
em diversas proporções, são argila: a montagem parece mais
"manual" do que "por instrumentos", os blocos de sentido vão
se formando aos poucos, a estrutura final é mais inventada do
que descoberta, a pré-visualização do todo não é tão importante
quanto o processo quase infinito de tentativa e erro na combi-
nação das partes.
Somam-se a esse caso filmes de compilação, ou filmes que
usam muito material de arquivo misturado às imagens produ-
zidas pela equipe. Filmes experimentais, por definição (embora,
no universo do audiovisual, haja poucas coisas mais difíceis de
definir do que um filme experimental).
Filmes que trabalham com atores improvisando falas e situa-
ções são, talvez, argila grossa, menos moldável, mas ainda
assim argila. Filmes de animação podem parecer argila, mas são
montados quase sempre como mármore. Videoclipes (se é que
vale a pena levar esta metáfora tão longe) são argila modelada
no torno: a mão do montador conduz o material, mas é a música,
girando, que lhe dá forma.
Já filmes de ficção, na maioria dos casos e na maior parte do
tempo, não são argila nem mármore: são lego.
Ou, mudando o ponto de aplicação da metáfora anterior: o
processo de moldagem da argila (a criação da história original)
ou de entalhe do mármore (a ficção baseada em fatos reais,

55
a adaptação literária) se dá fundamentalmente na etapa de
roteiro, e a maior parte do material chega ao montador como
um conjunto de placas pré-moldadas, com formatos e encaixes
previstos. Peças diferentes entre si, com infinitas possibilidades
de combinação, mas cada uma delas já com uma forma prede-
finida, ou talvez com uma gama de formas possíveis, limitada
pelas decisões tomadas na filmagem ou antes. Cada uma das
peças, um pequeno bloco de mármore, talvez.
Não que o trabalho do montador seja ou "artístico" ou uma
simples "brincadeira de criança", dependendo do tipo de produto
audiovisual envolvido. Mas é evidente que a tese do "filme cons-
truído na mesa de montagem” já foi há décadas colocada no
seu devido lugar, ao menos para quem faz ou entende como se
faz filmes e programas de televisão: ninguém monta o que não
foi filmado, embora o tempo todo se filme o que não estava
planejado. Muitas vezes sem seguir o roteiro, montar um filme é
descobrir o que realmente está no material filmado, aquilo que
o diretor ou a equipe talvez não tenham enxergado, por conti-
nuarem acreditando que haviam apenas filmado o previsto.
Cenas de diálogo, cômicas ou dramáticas, são, quase sempre,
jogos de lego extremamente complexos, em que o ajuste fino de
cada peça (de imagem, de som) gera ou coloca em xeque aquilo
que Murch reclamava como os componentes da montagem: a
estrutura, a cor, a dinâmica, a manipulação do tempo. Ou, na
formulação clássica de Reisz e Millar: a ordenação dos planos
(a narrativa do filme), a escolha dos planos (a ênfase do filme), a
duração dos planos (o ritmo do filme), o raccord entre os planos
(a fluência do filme).
Cenas de diálogo filmadas com mais de uma câmera e
montadas simultaneamente numa mesa de corte – o caso de
telenovelas, programas de entrevistas e muitos sitcoms – são
jogos de lego acrescidos da pressão do tempo – ou seja: são
tetris. Como no jogo de encaixar (de acordo com uma piada
popular na internet), os problemas vão se acumulando e os even-
tuais acertos simplesmente desaparecem.
Cenas de ação, por não serem conduzidas pelo diálogo, dão
ao montador ainda mais opções a cada instante – as peças do
lego são menores, mais maleáveis, quase podem ser moldadas,
como argila. Cenas de luta, tiroteios, cenas de sexo, etc., são

56
formas específicas de cenas de ação. Sequências de perseguição
são cenas de ação com seu cenário expandido. Suspense, como
ensinou Hitchcock, consiste apenas em criar uma expectativa de
ação e adiar ao máximo o momento em que ela acontece. Vale o
mesmo raciocínio para todos os outros casos.
(Antes da invenção do som sincronizado, todas as cenas eram
de ação. O conceito eisensteiniano de montagem, pensado basi-
camente para o cinema mudo, era pura argila. Para Eisenstein, a
montagem começava antes da filmagem.)
Um extremo da montagem de ficção se dá no caso da cena
de um plano só: seja ele um plano fixo ou um verdadeiro plano-
sequência, o trabalho do montador passa a ser apenas cortar as
pontas de uma única peça de lego, definindo seu ritmo e fluência
pela relação com as cenas anterior e posterior. Ou, mais ainda,
no filme de um plano só (A arca russa, dir. Aleksandr Sokurov,
2002; Ainda orangotangos, dir. Gustavo Spolidoro, 2007; etc.),
a montagem se reduz ao seu "grau zero" – se não incluirmos no
conceito de montagem algumas trucagens, manipulações de cor
e todo o trabalho com o som.
O extremo oposto seria o da montage sequence, termo anglo-
saxão para definir um estilo específico de montagem, diferente
do editing hollywodiano e aparentado à montage francesa –
originalmente, soviética: "uma sucessão rápida de imagens inde-
pendentes umas das outras (...) utilizada para sugerir a passagem
do tempo, mudança de local da ação ou qualquer outro tipo de
transição". No caso, argila.
Barry Malkin, montador de vários filmes de Coppola e Arthur
Penn, chama atenção que “é muito mais fácil montar cenas de
ação, quando você pode ir de qualquer lugar para qualquer outro
lugar, e as opções são muito mais numerosas a cada momento,
do que uma cena de diálogo com quatro ou cinco persona-
gens sentados em volta de uma mesa”. Mas, apesar disso, “as
cenas de ação são as que normalmente ganham prêmios”. “Eu
mesmo”, admite Malkin, “sempre que fui nomeado para algum
prêmio [duas vezes no Oscar e uma no BAFTA], foi por cenas de
ação, pela coisa rápida”.
Há muitos filmes sobre cinema, mas não tantos em que
apareça o processo da montagem. Em Verdades e mentiras
(1973), é o próprio Orson Welles quem opera a moviola,

57
cortando e colando pedaços de seu filme. Em A noite americana
(dir. François Truffaut, 1973) e All That Jazz (dir. Bob Fosse, 1979),
os montadores Martine Barraqué e Alan Heim desempenham
seus próprios papéis, contudo parecem meros operadores do
equipamento: quem pensa a montagem são apenas os diretores
Ferrand (o próprio Truffaut) e Gideon (Roy Scheider).
O último magnata (dir. Elia Kazan, 1976) é um dos raros filmes
em que o montador aparece como personagem, ainda que
por poucos segundos, e de uma forma muito particular. Após
a projeção de um copião problemático, acendem-se as luzes
e o produtor Brady (Robert Mitchum), já saindo da sala, diz
que realmente é preciso cortar 20 minutos do filme. Como o
montador não responde, ele comenta: “Que droga de filme! Até
o montador pegou no sono”. Só então vemos o montador Eddie
(ator não creditado), ainda sentado em sua poltrona, os olhos
fixos na tela, morto. “Como assim, morto?”, reclama o produtor.
“Eu não ouvi nada.” E seu assistente explica: “Acho que ele não
quis atrapalhar a projeção”.
No documentário norte-americano The Cutting Edge: The
Magic of Film Editing (dir. Wendy Apple, 2004), o montador
Richard Marks aponta esta cena de O último magnata, que ele
próprio havia montado, como “uma maravilhosa metáfora para o
processo de montagem: silencioso e anônimo”.
Mas talvez o cinema europeu recente tenha criado uma
metáfora ainda melhor. Em Abraços partidos (dir. Pedro
Almodóvar, 2009), a trama que inicia a fábula, mas que só é
revelada bem adiante no filme, envolve um triângulo amoroso
cinematográfico, digamos, clássico: o diretor Mateo Blanco (Lluís
Homar) abandona o filme que acabou de rodar para fugir com
a atriz Lena (Penélope Cruz), que era casada com o produtor
Ernesto Martel (José Luis Gómez). Quinze anos depois, já cego,
Mateo descobre por que sua obra, afinal, foi um fracasso: para
se vingar da dupla traição, Martel instruiu o montador a montar o
filme inteiro usando sempre a pior tomada de cada plano.
A metáfora aqui é dupla: sobre a importância da montagem,
que arruinou um filme e uma carreira; e sobre a irrelevância do
montador, que fez apenas o que lhe ordenaram. [aviso de incor-
reção política] Pior que isso só a piada da ambiciosa e inescrupu-
losa atriz portuguesa, que queria ganhar um papel e deu para o

58
montador. [fim do trecho politicamente incorreto]
“Montadores são pessoas socialmente desabilitadas”, diz
o polonês Michal Leszczylowski, que montou para Tarkovski e
Lukas Moodysson. “Não é normal passar muito tempo sozinho
em uma sala, com pessoas que parecem estar vivas, mas que
na verdade não estão. (…) uma disfunção que os montadores
têm: eles conseguem se relacionar com pessoas que não são
realmente pessoas.”
É possível que a montadora Thelma Schoonmaker, nascida
na Argélia e parceira de Martin Scorsese em mais de 15 filmes,
concorde com seu colega polonês. De todas as formas, ela
estende a discussão:
“Eu tenho a impressão de que a montagem é uma
das melhores ocupações do mundo. Nós recebemos um
material que foi elaborado por muitas pessoas, a partir
de muito trabalho duro e criativo. Nós tomamos centenas
de decisões por dia para transformar este material em
um filme que vai ser visto por milhares de pessoas. A
responsabilidade é enorme, mas a recompensa é ainda
maior. Não há nada melhor do que sentar em uma sala de
cinema e observar o público reagindo ao filme que a gente
ajudou a colocar na tela.”

59
1 – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 22.
2 – REISZ, Kerel; MILLAR, Gavin. A técnica da montagem cinematográfica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978. p. 37-40.
3 – HITCHCOCK, Alfred; TRUFFAUT, François. Entrevistas. Brasiliense, 1986. p. 47.
4 – AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas/
SP: Papirus, 2003. p. 231.
5 – REISZ, Kerel; MILLAR, Gavin: op. cit., p. 109.
6 – MALKIN, Barry (entrevista). In: OLDHAM, Gabriela: First Cut: Conversations with Film
Editors. University of California Press, 1992. pp. 330-331.
7 – LESZCZYLOWSKI, Michal (entrevista). In: CRITTENDEN, Roger. Fine Cuts: The Art of
European Film Editing. Focal Press, 2006. p. 201.
8 – SCHOONMAKER, Thelma (entrevista). In: The Art and Craft of Film Editing: A Critical
Symposium, edição especial da revista Cineaste, abril de 2009. Disponível em http://
en.convdocs.org/docs/index-6028.html

60
Idê Lacreta

Como vim parar nessa vida de montadora


O primeiro contato que tive com a montagem foi num projeto
pessoal destinado a crianças cursando o primeiro grau. Na época
eu buscava novas formas de abordagem para as aulas que dava
numa escola de arte. Eu havia acabado de me formar em ciências
sociais, mas o contato com a arte sempre foi presente na família
e despertava nessa época todo o meu interesse.
Uma de minhas irmãs morava no Rio de Janeiro e traba-
lhava com cinema. Resolvi me mudar para lá e começar a fazer
pesquisas – de conteúdo e de realização – para um curta-
metragem piloto que serviria para os meus trabalhos. Reuni
irmãs, amigos e filhos de amigos para me ajudarem a realizá-lo.
Tudo corria bem, até que o amigo que me ajudaria a editá-lo

61
precisou viajar e, pior, sem data de retorno. Fiquei apenas eu,
com vários pequenos rolos de filme S-8 mm, o equipamento
para montá-los e uma enorme vontade de ir adiante e terminar
o processo.
Foi a minha sorte.
Depois de dias trancada num quarto, com um pequeno editor
cuja velocidade era dada manualmente, uma coladeira e vários
pedacinhos de durex já perfurados, alcanço o produto final.
Descubro o que é a montagem e fico tão fascinada pelo processo
que decido nesse momento não fazer outra coisa.
Fui atrás de conhecimento. Assim, tive o privilégio de traba-
lhar com montadores excelentes, entre eles Eduardo Escorel,
que – ao meu ver – desenvolveu um método de organização do
material e de técnica de montagem muito lógico e funcional.
Como trabalhávamos em moviolas Steenbeck, que eram mesas
de trabalho horizontais, a reprodução em rolos distintos de som
e imagem exigia todo um cuidado para que o sincronismo fosse
mantido ao longo da edição.
Era finalzinho dos anos 70, e as máquinas de pietagem ainda
não haviam chegado no Brasil.

O que me fascina
Construir uma história a partir de fragmentos de imagens e
sons que – num jogo contínuo de combinações – vão ganhando
ritmo, unidade e clareza.
O que fica? O que sai? Quais as escolhas que favorecem a
construção da narrativa? Quais as escolhas que favorecem a
construção de um personagem, que expressam melhor suas
intenções, suas emoções?
Tudo entra nessa avaliação: a fotografia com sua luz e posicio-
namento de câmera, a qualidade da captação de som, a inter-
pretação dos atores, a cenografia. Sendo assim, a montagem é
o momento em que – junto com o diretor – pensa-se novamente
o filme por inteiro.
Claro que dependemos do que foi elaborado antes, mas
mesmo em filmes com decupagens mais fechadas não é raro
descobrir novos significados e articulações; decidir a duração

62
dos planos, sua justaposição, a supressão ou acréscimo de falas,
a inclusão de música ou novos sons. Tudo isso acaba por revelar
aspectos da história e da construção dos personagens que
muitas vezes não foram previstos.
É o momento de se verificar o acerto de determinadas
escolhas, minimizar eventuais falhas – do roteiro ou de filmagem.
Ainda que não haja uma autonomia completa, é o momento em
que existe de fato a possibilidade de se reescrever o roteiro.
Lembro que quando montei o filme Um céu de estrelas,
dirigido por Tata Amaral, a preocupação inicial era encontrar as
nuances de interpretação que pudessem dar conta do perfil dos
seus personagens centrais, Vitor e Dalva. A ideia era equilibrar e
fortalecer as atuações: valorizar as reações, as mudanças repen-
tinas de comportamento, fossem os desequilíbrios de Vitor, ou o
escapismo de Dalva, e – a partir disso – ir encontrando o tempo
necessário para que a tensão entre os personagens crescesse até
atingir o seu clímax.
O roteiro já previa toda uma construção sonora extracampo
para narrar, principalmente, o cerco policial. A câmera permane-
ceria dentro da casa, junto aos dois personagens, e – a partir do
som – se perceberia a ação dos policiais desde sua chegada até
a invasão final.
Aqui a montagem deveria encontrar e estabelecer o tempo
necessário para o futuro (e excepcional) trabalho de edição de
som. No entanto, a construção sonora da saída de uma vizinha
que nunca chegamos a conhecer foi uma decisão tomada
durante o trabalho de montagem: um carro se aproxima, buzina,
ouve-se uma porta abrindo e fechando, uma menina se despede
e o mesmo carro parte. Isto para citar apenas um exemplo.
Já em Antônia, filme também dirigido por Tata Amaral, as
questões principais eram de outra ordem. O filme se passa na
periferia de São Paulo e mostra o cotidiano de quatro amigas
que querem viver do rap. O desejo de imprimir verdade e
naturalismo ao filme leva Tata a escolher um elenco de atores
não profissionais, oriundos desse universo, e isto determina
toda a forma de realização. Em vez do roteiro clássico, havia o
que Tata chamou de “uma partitura de ações cotidianas”, que
ela foi retrabalhando ao longo de vários ensaios. Com a ideia
de deixar os atores o mais à vontade possível, não havia

63
marcações rígidas, nem diálogos definidos. A câmera e o som
deveriam ir atrás dos atores e não o inverso.
Por conta dessa abordagem, rodados com a câmera na mão,
os planos duravam mais, e conjugavam várias ações e diálogos
que, na maior parte das vezes, variavam de lugar nas diferentes
tomadas. Além disso, quase todas as cenas continham início,
meio e fim, resultando num vasto material que deveria ser nova-
mente decupado no espaço da montagem. Muitas cenas caíram,
outras foram criadas, outras ainda viraram flashback, e a voz
over não estava prevista desde o início. O trabalho de edição,
que – num primeiro momento – foi simultâneo às filmagens,
pôde inclusive intervir na forma de captação: alguns planos com
câmera fixa, mais curtos e com ângulo mais fechado, surgiram
por conta desse processo.

O que me incomoda
Os novos formatos de produção, salvo raras exceções,
destinam pouco tempo para a realização de um bom trabalho de
montagem. Hoje em dia, na maioria das vezes, os filmes chegam
com excesso de material e carentes de elementos necessários
para o desenvolvimento da narrativa.
Se falarmos em documentário, então, a falta de tempo se torna
ainda mais grave. Sabemos que sua narrativa e sua linguagem
se constituem, quase sempre, no espaço de montagem. O que
fazer então se temos um excesso de material e não há tempo
suficiente para sequer conhecê-lo, que dirá para refletir sobre
ele e explorá-lo?
É certo que a tecnologia facilitou o acesso e manipulação do
material, mas o tempo de construção da narrativa permanece o
mesmo e depende de muitos fatores que vão além da habilidade
ou agilidade do montador. Hoje em dia mal temos tempo de ver
projetado o resultado final de uma montagem, menos ainda para
aperfeiçoá-la!
Outra coisa que me incomoda é a impossibilidade de termos
o diretor mais presente durante a montagem; não o tempo todo,
evidentemente, eu adoro trabalhar sozinha; fico mais à vontade
nas minhas tentativas e experimentações, mas sinto falta da sua
contribuição para além das indicações de suas intenções. É como
um jogo de complementações, no qual um dos jogadores lança

64
uma ideia, que desperta no outro outra ideia e assim sucessiva-
mente, até que o melhor resultado se apresente, principalmente
em se tratando de documentário.
Outro contrassenso, para mim, diz respeito à finalização:
trabalhamos o corte final, com a precisão de um fotograma, e
nossa edição offline segue para uma casa de finalização, onde
toda uma equipe vai reeditá-la através de várias indexações que,
muitas vezes trazem pequenas diferenças de corte; é verdade
que as finalizadoras têm evoluído enormemente, mas ainda
encontro diferenças e cada vez menos espaço para checá-las e
corrigi-las, se necessário.

O meu processo de criação


Eu gosto de trabalhar explorando ao máximo o material
existente. Extrair o melhor do que foi filmado é, para mim, a
função principal da montagem; por essa razão preciso de tempo,
para conhecer o material, para entendê-lo, para explorar suas
possibilidades.
Num primeiro momento selecionar o que vai ser usado é
o meu foco principal. Escolher os planos fortes em relação ao
enquadramento, à luz, à composição dos elementos dentro do
quadro; me preocupo muito com a interpretação dos atores,
seus ângulos, sua continuidade dramática.
Depois, encontrar a melhor estrutura dentro de cada cena
e das cenas na estrutura geral, primeiro seguindo a ordem
indicada pelo roteiro, para depois questioná-la, confirmá-la ou
propor alterações.
Claro que com a tecnologia disponível os tempos mortos já
vão sendo eliminados, os diálogos vão sendo ajustados, mas
a tendência é primeiro definir o desenho da narrativa antes de
buscar o ritmo ideal.
Se é uma cena com estrutura dramática, eu prefiro inicial-
mente trabalhá-la apoiada apenas nos diálogos e na mise en
scène, porque sinto que a música pode disfarçar pontos fracos,
esconder falhas e deficiências de construção, seja pelo ritmo
que se ganha, ou pelos climas e sentimentos que ela intensifica
ou desperta. Evito trabalhar com músicas de referência, porque
sempre me frustro com o resultado final.

65
A intuição é o que me guia desde o início, e depois a reflexão,
a razão. Acredito que um diálogo vai se estabelecendo entre o
filme e o montador, que é onde o filme vai se revelando, indi-
cando caminhos, e, nessa medida, o distanciamento é sempre
benéfico, para validar o que vai sendo construído.
Também, para mim, é importante criar algum grau de convi-
vência com o diretor, sentir sua confiança, conhecer suas prefe-
rências, seus sentimentos em relação ao filme, para ir ajustan-
do-os aos meus; é como se uma terceira pessoa surgisse, fruto
da nossa identificação em relação ao material.
Claro que nem tudo é assim fluido nessa relação; por vezes
acontecem brigas, discussões, negociações, mas sendo a
montagem o espaço onde novamente se pensa o filme por
inteiro, é o filme quem fala mais alto, ou ao menos, quem
deveria falar!

66
Joana Collier
Pensamentos de papel picado

Alice, minha filha de 4 anos, tem uma mania. Faz dois anos
que ela aprendeu a usar a tesoura e não existe um dia sequer
que ela não cubra o chão de papel picado. Hoje, cansada de ver,
mais uma vez, a minha área de trabalho em clima de fim de festa
de carnaval, cheguei no meu escritório decidida a acabar de uma
vez por todas com esse hábito incompreensível. Disse a ela que
já era uma menina grande e que devia parar de sair cortando
tudo que via pela frente. Ela me olhou com um sorriso meio sem
graça e respondeu: "Mas, mãe, é que eu adoro cortar." Foi aí
que a montadora se desmontou.
Lembro que a primeira vez que entrei em conexão com o
universo cinematográfico foi aos 5 anos em Paris. Minha mãe
tinha me levado para assistir A bela e a fera de Jean Cocteau,
num cineclube que ficava pertinho da minha casa. O meu amigo

67
Pierre, que me acompanhava, ficou apavorado com a figura da
besta e saiu da sala chorando com a minha mãe. Mas eu me
senti imediatamente arrebatada por aquela atmosfera em preto
e branco tão instigante quanto amedrontadora. Minha mãe disse
que, quando voltou, eu estava de boca aberta e olhos arrega-
lados. Logo depois veio a explosão de cores com Pele de asno
de Jacques Demy, e tive a sensação de ser, mais uma vez, captu-
rada para dentro de um espaço estimulante, o da fantasia.
Em 1985, após 9 anos morando na França, meus pais resolvem
voltar ao Brasil. E com 7 anos e um português bem capenga,
chego no Rio de Janeiro. Aí começo a ouvir fragmentos de histó-
rias sobre o meu tio Eduardo, sobre o seu desaparecimento,
sobre os militares, e aos poucos, percebo o grande incômodo
dos meus pais em responder às minhas questões ligadas a esse
assunto. Mesmo assim, com uma certa insistência, fui tentando
estruturar uma narrativa que pudesse dar sentido a todas essas
informações, que pareciam peças impossíveis de encaixar.
Uma década mais tarde, flanando entre livros antigos numa
estante do sítio, encontro o livro Cinema Moderno, Cinema
Novo. Edição de 1966, já de páginas meio soltas, com prefácio
de Paulo Emílio Sales Gomes apresentando textos de vários
cineastas brasileiros discorrendo sobre o papel político, as
responsabilidades e o valor da arte cinematográfica num país
subdesenvolvido. Esse foi o primeiro livro que eu li sobre cinema.
E meu pai, me vendo transitar com ele debaixo do braço, disse:
"Esse livro era do seu tio Duda". Fiquei satisfeita em saber que
esse personagem ainda tão misterioso e eu tínhamos algo em
comum: nós dois nos interessávamos por cinema.
Quando investigo os meus 15 anos de montagem, acho que
essas memórias foram balizas importantes no meu percurso. Na
faculdade de jornalismo, professores como João Moreira Salles
abriram meus olhos para o documentário. E acabei entrando
nesse mundo pela porta da montagem, através de Jordana Berg,
que me aceitou como assistente num projeto na Videofilmes. Foi
com ela que eu aprendi a ter método de trabalho, a visualizar e
decupar um material bruto. Durante um ano, observei a maneira
como ela articulava suas ideias, apresentava suas propostas e
negociava com os diretores. Jordana me deu o meu primeiro
caderno de montagem, que guardo até hoje.

68
Foi também através dela que eu conheci o grande cineasta
Eduardo Coutinho, que acabou se tornando consultor dos dois
primeiros documentários que eu montei. Lembro que durante
as reuniões, ele abria a caderneta dele e ia comentando passo a
passo o meu trabalho. Elogiava quando eu acertava, mas também
arrasava todos os tropeços estruturais cometidos, mantendo
sempre um tom irônico e muito carinhoso diante da minha inex-
periência. Com Coutinho, aprendi a investigar o valor de cada
sequência dentro da macroestrutura e a pensar os personagens
a partir de sua complexidade.
Posteriormente, Eduardo Escorel, primeiramente como
professor e ao longo dos últimos 10 anos como mestre e conse-
lheiro cinematográfico, me levou a questionamentos essen-
ciais em relação a planos e pontos de corte, exigindo de mim
sempre uma depuração do discurso através de cada escolha na
montagem. Em Juízo, documentário de Maria Augusta Ramos,
depois de assistir ao primeiro corte, ele comentou: “A montagem
está no enfoque de ‘Deus’. Parecem cortes de ‘BigBrother’. Tudo
que é dito, é visto. A narrativa só vai ganhar forma quando essas
imagens fizerem parte de um ponto de vista, como um corpo
presente na situação”. Juízo foi um longo processo, que desafiou
a montagem a investigar uma proporção ideal entre o conceito
de quarta parede, estética da não intervenção e a prática da
encenação. O cinema de Guta foi o meu primeiro contato com
a ficção.
Um bom corte não é um valor absoluto. Depende tanto do
material bruto quanto de uma coerência específica dentro da
montagem. Por isso, encontrar a linguagem de corte para um
filme é muito menos evidente do que parece. Às vezes, ele é
fluido, segundo Walter Murch, "como uma faca na manteiga",
deixando a cesura invisível e não interferindo na continuidade.
Corta-se com o objetivo de conduzir o olhar, definindo o rastrea-
mento feito pelo espectador em cada plano. Existem também
cortes que, ao esgarçarem o tempo do plano para além da
necessidade de leitura da imagem, provocam a atenção flutuante
do espectador. E, nessa superfície desfiada, é que ele passa a
buscar novos caminhos de exploração visual e sentido.
Em outros casos, o corte precisa ser brutal. Criando um talho
que se apresenta como ruído. Uma ruptura que serve para limpar
os olhos do espectador. Um golpe que redefine a expectativa dos

69
rumos da montagem. Ricardo Miranda, mestre e amigo funda-
mental, chamava esse corte de "Açougue Santa Teresinha". Ele
explicava que era um tipo de rasgo, que diferente da delica-
deza de uma faca de açougue francês, separava as carnes na
base da machadada. Para mim, o último fotograma, antes do
corte, funciona como a memória do plano anterior e o primeiro
fotograma depois do corte, serve para criar uma determinada
expectativa em relação ao plano seguinte. E é nessa fricção
entre palavras, sons, volumes, cores e movimentos que tanto o
ritmo quanto o discurso se constituem. Existem cortes que são
tão impactantes que seguem reverberando ao longo de toda a
estrutura. Ao longo de uma vida.
Como uma projeção que precisa de luz e sombra para revelar
os contornos da imagem, o meu processo de montagem é a
busca de equilíbrio na interação entre esses dois elementos. A luz
é a consciência da curva dramática que o filme precisa percorrer.
É a clareza narrativa, que muitas vezes, surge do entendimento
de uma pequena intuição. É o sentido do filme que vai sendo
adquirido para além do argumento, são também as descobertas
que vão ampliando a própria relação do diretor com seu filme.
A partir do meu encontro com Ricardo Miranda, as sombras
foram ganhando cada vez mais presença no meu pensamento
narrativo. Pois ele me ajudou a perceber o quanto a montagem
também precisa de mistérios, num provocar constante de senti-
mentos, memórias e ideias.
Ricardo, que articulava seu pensamento cinematográfico
como uma caixinha de enigmas, guardando seus planos como
joias e segredos, me incentivou a pensar sobre os caminhos
subterrâneos que levavam uma imagem à outra, numa linha
tênue entre público e privado. Através dele, fui entendendo a
necessidade e importância das fendas e frestas nos encadea-
mentos narrativos, a força sugestiva do extracampo e de certos
planos, em contraponto a uma contextualização excessiva-
mente decupada das ações. Glauber Rocha falava da imagem
signo-símbolo, que seria um plano, que dentro de si, conti-
vesse toda a potência metafórica do discurso fílmico. Ricardo
sempre começava percorrendo o material bruto em busca dessa
imagem reveladora. Muitas vezes, dentro da montagem interna
de um plano como esse, é que encontro o ritmo e a fluidez, que
pretendo desenvolver na narrativa.

70
E assim, vou transitando à meia-luz em busca de interpreta-
ções que facilitem a minha aproximação e apropriação desse
jogo de encaixe sempre muito desafiador e sensorial. Para
mim, o momento mais impressionante da montagem é quando
tanto o diretor quanto o montador se surpreendem com a vida
própria que o filme adquire. A partir desse momento, o desafio
será saber conduzir as decisões para não desviar do trajeto que
se impõe.
No documentário de Walter Salles sobre o cineasta Jia
Zhang-ke, depois de uma discussão meticulosa de todo material
bruto e de uma visualização compartilhada e entusiasmada de
todos os filmes desse fascinante diretor chinês, Walter pediu
que, antes de começar a trabalhar a montagem, eu apresen-
tasse uma proposta escrita plano a plano. Depois de três dias,
quatro embalagens de post it e uma parede toda coberta de
papéis picados, apresento minha ideia. Walter faz perguntas e
observações, e só depois de alguns ajustes é que eu começo a
colocar a mão na massa. Desde então, isso passou a fazer parte
do meu método, pois através dele consigo visualizar melhor o
filme e organizar o pensamento de forma mais estrutural. Tenho
a impressão de que meu processo está cada vez mais "linear".
Trabalho cada sequência pela ordem cronológica, a partir do
valor e do peso que ela tem numa macroestrutura que esbocei
anteriormente. Mesmo que ela seja deslocada posteriormente,
essa linha me serve sempre de guia, um norte.
Com a ficção argentina, La patota de Santiago Mitre, vivi uma
experiência completamente nova: entrar num filme apenas para
dar o corte final. Eu já tinha assistido ao seu primeiro longa El
estudiante, seis meses antes nos cinemas e ficado impressio-
nada com o vigor do trabalho de direção e montagem. E só
muito tempo depois, soube que Walter estava coproduzindo
o segundo longa dele. Foi aí que surgiu a proposta para que
Santiago viesse ao Brasil e trabalhássemos juntos. Segundo
Walter, o filme ainda estava com questões na montagem e talvez
um olhar novo pudesse ajudar. Assim, numa segunda-feira, após
ter assistido a duas versões anteriores da montagem e com um
caderno repleto de ideias, chego na Videofilmes para encontrar
pela primeira vez Santiago. Seis horas de conversa mais tarde,
proponho passar dois dias trabalhando sozinha para que ele
visualizasse melhor as minhas propostas e pudesse criar uma

71
certa distância da montagem. Foram dias enriquecedores em
que, pela primeira vez, trabalhei com um diretor mais novo que
eu e, ao mesmo tempo, com um pensamento cinematográfico
tão maduro. O filme estreou em Cannes na Semana da Crítica,
ganhou o prêmio de melhor filme, e eu me senti orgulhosa de ter
feito parte desse processo.
Geralmente, quando digo que trabalho com montagem,
muitas pessoas perguntam: “Mas por que a montagem?”. E eu
penso que talvez seja porque ao entrar em contato com o material
bruto de outra pessoa, me vejo num exercício profundo de deslo-
camento. Cada filme exigirá sempre uma maneira singular de
assimilar e articular um tema, assim como, de desvendar novos
parâmetros e outras facetas do meu próprio olhar.

72
Jordana Berg
A primeira cena a gente nunca esquece

Hoje editei minha primeira cena de sexo. Cenas de sexo em


geral pertencem à ficção, mas essa era uma cena de um docu-
mentário. Cenas de sexo em documentários são roubadas ou
então ficção. Essa era uma cena de amor num lugar inóspito.
Árido, frio, barulhento, incômodo. Esse lugar é uma cadeia.
Essa cena não existia no material bruto a princípio. Nasceu das
conversas com a diretora durante a edição. Um filme que fala do
amor e de como vivenciá-lo em situações-limite.
Em determinado momento do filme se entende que os casais
têm direito a um encontro reservado, em quartos numa ala da
cadeia chamada de “motel”. Nesse motel não há câmeras de
vigilância e as portas têm chave. Mas como o barulho é insu-
portável, não se esquece onde se está. A visita íntima é uma
etapa da visita que fazem as mulheres aos seus maridos presos

73
nas penitenciárias e que dura algumas poucas horas. Em geral
ela ocorre no final. Após esse momento, os casais ficam mais
40 minutos juntos aproximadamente, e as mulheres vão embora,
para só voltar dali a uma semana.
A proposta de filmar esse momento íntimo foi feita a um casal
(ele preso) e aceita. Não foi roubada. E é feita de insinuações.
Não existe um desejo de maximizar a cena ao nível do obsceno.
Não se busca a pornografia, e não se chega nisso. Nem na
filmagem, nem na edição. A cena é consentida, mas isso não
impediu que se desse de verdade. O casal foi esquecendo a
filmagem lentamente, à medida que a temperatura do romance
foi subindo e o desejo foi ficando incontrolável. Mas a câmera
não esqueceu seu limite. Permaneceu sóbria e dentro do que
foi combinado. As partes dos corpos que seriam mostradas, por
exemplo. Então, era preciso ter esses dois elementos na cena:
o amor e o desconforto. O tesão e a pressão. A intimidade e a
distância. Optei por colocar o amor na imagem e o desconforto
no som.
Nesse lugar, o casal só tem direito a 30 minutos de privaci-
dade. Portanto não é uma relação sexual normal. As preliminares
são rápidas e eficientes, às vezes já aconteceram nos abraços e
segredinhos trocados no pátio da penitenciária, onde ocorre o
resto da visita, ou às vezes até inexistentes. O possível prazer
que emana dessa cena vem carregado de desconforto. O ruído
externo se faz presente e incomoda. Desfaz até certo ponto o
clima romântico que o casal luta para manter. Optamos por não
colocar nenhuma música, pois nesse lugar é proibida e também
porque decidimos não potencializar nada com artifícios externos
à cena, que tem seus próprios elementos sonoros muito fortes.
Monto a cena começando com as preliminares e deixo que a
cena vá "esquentando" lentamente com o tempo. Porém me
dou conta de que a montagem, mais do que nunca, tem que
reproduzir o tempo real em escala reduzida, nesse caso, sendo
importante manter a proporcionalidade de cada momento em
relação ao todo: preliminares rápidas e o ato em si ocupando
a maior parte do tempo. A cena é curta e parece incompleta,
inacabada. A cena inteira acaba se passando praticamente
durante o momento do clímax.
Após a filmagem com a câmera, a diretora se retira do
aposento para que a intimidade finalmente reencontre seu lugar

74
e propõe deixar o gravador de som gravando dentro do espaço.
O casal aceita. Esse som foi usado na cena. O ato foi mais ou
menos dublado com esse som, que era “roubado”. A cena é
basicamente montada com insinuações, em que o espectador
tem que completá-la sozinho, na imaginação, se puder. Ao
mesmo tempo em que se sente a opressão do lugar, a falta de
tempo para que as coisas se dessem naturalmente, era preciso
tentar fazer com que o espectador, no meio do caos, entre sons
de gritos de presos de outras alas, portas de ferro batendo, sons
típicos de walkie talkie de cadeia, e também de outros casais
nos quartos ao lado, pudesse se abstrair, como fazem os casais
nessas situações. Porém, não havia recursos explícitos para tal
empreitada. Sem música e um barulho estridente e desagra-
dável. Os corpos imperfeitos. A luz possível. O espaço mínimo.
O ruidoso silêncio dessa cena vai se encarregar das explicações.
Nesse momento em que escrevo, o filme está em montagem
e nem sei se a cena permanecerá no corte final.

75
Karen Harley

Tornei-me montadora por acaso e aos poucos. Tinha um


desejo de ser fotógrafa e uma paixão por cinema. Morava em
Olinda, numa época em que os filmes de arte passavam sábado
de manhã num cinema no centro do Recife, o Trianon. Nos
outros dias da semana, era um cinema pornô. Foi lá que assisti
pela primeira vez os filmes de Fellini, Kurosawa, Truffaut, Pasolini.
Fiquei com gosto de quero mais.
Vim morar no Rio de Janeiro, virei cineclubista na faculdade de
jornalismo da Puc e rata de outros cineclubes da cidade. Comprei
uma câmera VHS e fui trabalhar na Magnetoscópio, produtora e
sala de exibição de videoarte e performance. Na Magneto, fazia
desde programação da sala de vídeo a carregar cabo de micro-
câmera em externa de gravação. Foi a minha escola. Lembro-me
da sensação de espanto que tive ao entrar numa ilha de edição

77
pela primeira vez. Uma ilha U-matic, linear, imprecisa, escura e
gelada. Mas que dava sentido e vida a um material caótico que
eu mesma tinha gravado.
O meu primeiro trabalho num set de filmagem foi como fotó-
grafa still num documentário ficcional sobre Arthur Bispo do
Rosário. Rubens Corrêa era o Bispo. João Paulo de Carvalho, o
montador. Fui ser assistente de João Paulo. Foi aí que comecei
a entender o que era de fato montagem ou edição. Achei dificí-
limo! Como nunca fui de gostar de coisas fáceis, me apaixonei.
Passava madrugadas assistindo ao João Paulo, que me ensinou
a ver, a descobrir a potência de uma imagem e a juntá-la com
outra. E a ouvir. João Paulo dizia que edição é som. Depois
trabalhei com Mair Tavares em longas de ficção. Mair me ensinou
a ver o ator, prestar atenção em seus olhos e em sua voz, encon-
trar o seu ritmo. Aos poucos, fui me dando conta que era numa
sala escura e fechada que iria passar grande parte da minha vida.
Sempre que começo a montar um filme me dá um certo
pânico se realmente vou conseguir fazê-lo da melhor forma
possível. A isso soma-se uma incerteza se vou me entender bem
com o diretor, quando é alguém com quem eu nunca trabalhei.
A relação diretor/montador é determinante para o trabalho de
montagem. É uma relação longa, talvez o montador seja a pessoa
da equipe com quem o diretor passe mais tempo junto, e uma
relação na qual deve haver confiança e cumplicidade. Eu preciso
me sentir livre quando estou montando. Livre para escolher,
propor e criar, e preciso que o diretor me dê esse espaço. Não
consigo me concentrar, nem sentir o ritmo de uma cena quando
tem alguém ao meu lado me dizendo o tempo todo o que fazer.
Preciso de um tempo sozinha na ilha de edição para poder criar
intimidade com o material, ouvir os atores e os silêncios, sentir
o ritmo que o filme pede. Com cada diretor que trabalho existe
uma dinâmica diferente. Uns gostam de ficar na ilha, sentados no
sofá observando ou trabalhando em seu laptop, disponíveis para
qualquer ajuda que eu possa precisar. Com outros assistimos
ao material juntos, conversamos sobre o seu potencial, daí me
deixam trabalhar e voltam um tempo depois. Alguns só entram
na ilha depois de um primeiro corte feito. Já montei filmes com
o diretor morando em outro país, que tinha um assistente que
lincava o corte que eu enviava por e-mail, e conversávamos por
Skype. Às vezes me sinto como uma psicanalista ouvindo relatos

78
de frustração, dificuldades ou êxtase. Às vezes sou diplomata,
para poder falar sobre o material sem constrangimentos e geren-
ciar crises, às vezes advogada do diabo. Às vezes sou xingada,
às vezes amada. Mas sempre aprendo com todos os diretores e
tenho consciência de que estou ali para ajudar o diretor a fazer o
melhor para o filme. A última decisão é sempre do diretor. Para
isso é preciso ter a capacidade de ser flexível e poder ver as
coisas por outra perspectiva.
Tenho a sorte de trabalhar com diretores que pensam o cinema
de forma mais autoral. E todos bastante diferentes entre si.
Quando comecei a trabalhar com Cláudio Assis, o primeiro
desafio era conquistar uma cumplicidade, falar a mesma língua,
já que os nossos encontros anteriores tinham sempre um certo
atrito. Depois de algumas semanas juntos, trabalhando na
montagem do Baixio das bestas, ele fala: “Esse filme agora é
teu. Tome e receba!”. Claudão faz isso com toda a equipe. Traz
as pessoas ao filme de forma visceral e, mesmo sabendo exata-
mente o que quer, faz questão de ouvir e de entender o que
o outro tem a propor. Durante a filmagem de Febre do rato,
Cláudio criou 34 novas cenas (além das que estavam no roteiro),
que eram nomeadas de “Epiderme” na claquete e não tinham
lugar determinado na estrutura narrativa. Todas as cenas eram
epidermes profundas, lindas e tinham que entrar no filme. O
comentário de Cláudio: “Pensei em você durante a filmagem e
não quis facilitar. Achou que ia ser fácil? Te vira!”.
E ria.
Cinema, aspirinas e urubus foi o primeiro filme que recebi o
roteiro em processo e tive que comentar e escrever sobre ele.
Foi muito bom poder refletir sobre o filme antes de ser rodado
e começar a criar uma intimidade com ele antes mesmo de
ver qualquer imagem concreta. Durante a filmagem, Marcelo
Gomes me chamou para a locação, no interior do sertão parai-
bano, me trancou num quarto de hotel e me fez assistir a 28
horas de material bruto. Depois de algumas horas, nas quais
eu só tinha visto cenas de interior do caminhão, ele queria
saber se o filme montava. Fiquei insegura, mas disse que sim,
o filme montava. Algum jeito havia de ter. Lembro que, na ilha
de edição, ficamos procurando o início do filme durante muito
tempo. Experimentamos várias coisas. Quando o início final-

79
mente apareceu, junto com a música, a impressão era de que ele
sempre esteve ali, que não podia ser de outra forma, era parte
orgânica do filme. Mas, por algumas semanas, o plano inicial
tinha sido descartado e o filme o chamou de volta.
Viajo porque preciso, volto porque te amo, filme dirigido por
Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, tem uma particularidade em
relação a outros filmes que montei. Ele foi filmado para ser um
documentário. Acabou virando uma ficção por meio do relato
em primeira pessoa de um personagem que nunca vemos,
só ouvimos. O relato em off foi escrito em cima das imagens
captadas 10 anos antes e se transformava, era reescrito, ao longo
da montagem. O filme tem uma relação de extensão do diário
de viagem do personagem Zé Renato. Era como se ele próprio
tivesse captado aquelas imagens. Nosso trabalho foi imaginar
como seria o filme montado pelo Zé Renato. Não deveria ser
uma montagem precisa e sim uma investigação vinda do senti-
mento e precariedade do personagem. Um filme que se consti-
tuísse também de erros e imprecisões.
Em Era uma vez eu, Verônica, também dirigido por Marcelo
Gomes, a preocupação foi estar sempre próximo da perso-
nagem, Verônica, contrabalançando sua intimidade com sua vida
pública, seus pensamentos em off com o que é dito explicita-
mente. Uma outra camada é a que o espectador preenche nos
momentos de silêncio da personagem, construindo significado e
emoção através do não dito. Tínhamos que construir o equilíbrio
emocional entre as múltiplas linhas narrativas centradas em torno
da personagem. O filme tem também um forte tom de crônica e
assim foi possível trabalhar a ordem dos acontecimentos numa
linha narrativa de sensações, nos libertando assim de uma estru-
tura preestabelecida no roteiro.
A montagem é a terceira e última escritura de um filme, sendo
a primeira o roteiro e a segunda a filmagem. Montar é muito
mais trabalhar o filme em sua estrutura geral do que o corte de
planos em si. Às vezes as cenas estão ótimas separadas, mas não
funcionam juntas, ordenadas como um todo. Nem sempre o que
era eficiente no roteiro funciona na montagem. Eu leio o roteiro,
de preferência antes da filmagem, mas na hora de montar eu o
esqueço. O que me conduz é o material que foi filmado e, prin-
cipalmente, os atores. Gosto de prestar atenção aos detalhes
e sutilezas da interpretação dos atores e tento fazer com que

80
a narrativa do filme venha mais por meio da emoção do que
por informações concretas. O ritmo dos atores e das imagens,
os ruídos e silêncios vão determinar a cadência do filme. Gosto
muito de trabalhar com música e, em geral, as coloco depois das
cenas montadas. Dependendo da cena, monto já com a música
ou com a referência para a trilha sonora. Mas não são todos os
filmes que pedem música. Não acho que tudo deva ser expli-
cado para o espectador, ele deve poder dar sentido às entreli-
nhas da narrativa.
O filme deve se sustentar numa lógica emocional: tento
desconstruir cenas que teriam originalmente uma função mera-
mente burocrática. Isto serve para documentários também.
Os personagens mais interessantes têm camadas e conflitos
que muitas vezes se percebem mais no silêncio e nos "erros"
do que em seu discurso objetivo. Em geral, os documentários
demandam mais tempo de imersão no material bruto para poder
se achar a estrutura. O filme é, de fato, escrito na montagem,
já que o roteiro é uma indicação do que poderá acontecer na
filmagem e que nem sempre acontece, para o bem e para o mal.
Lembro-me do que Murch, montador, descreveu ao assistir a
enorme quantidade de material bruto (230 horas) de Apocalipse
Now. Transitar por um universo enorme de material é como
avançar lentamente por uma floresta tropical, encontrar algumas
clareiras, parar, e entrar novamente na mata fechada. A essa
imagem eu acrescentaria o facão na mão para abrir as picadas
que poderiam, com muita sorte, levar a um rio que ajudasse a
conduzir o documentário.
Quando me perguntam qual o meu estilo, eu não sei
responder. Acho que não tenho estilo. Tenho preferências. Cada
filme tem algo de novo e diferente do anterior e procuro sempre
estar em sintonia com ele. Preciso criar intimidade com o filme
para me sentir parceira. Preciso mergulhar e investigar o material
bruto para descobrir a singularidade daquele filme e perceber o
seu ritmo. É um processo intuitivo. Penso em Tarkovski quando
ele diz que a duração dos planos e o ritmo do filme já estão
contidos no material filmado. Cabe ao montador achar esse
tempo intrínseco ao filme e permitir que os planos se juntem
espontaneamente.

81
Livia Serpa

Meu primeiro encontro com uma sala de montagem foi na


faculdade de cinema da UFF, no curso de edição da Virginia
Flores. O curso começava com um exercício em que os alunos
selecionavam restos de filme descartados previamente e
tentavam criar um curta usando a moviola. Lembro bem de ter
olhado pra aquela máquina, para aqueles rolos de filme espa-
lhados pelo chão e pensado: isso com certeza não é para mim.
Eu sou ansiosa por natureza, sempre fui inquieta e estabanada,
e as minhas mãos estão sempre suadas. Sem contar que eu sou
canhota, o que eu não tinha certeza se atrapalharia ou não a
operação, mas achei que também não iria ajudar. Os meus
primeiros dias de exercício foram bem caóticos como eu já
esperava, mas para minha surpresa eu gostei de passar horas no
escuro selecionando aqueles fragmentos de filmes. As possibili-

83
dades de combinação daquele material rejeitado eram infinitas
e foi uma descoberta para mim entender na prática o quanto o
trabalho de montagem é divertido e criativo.
Passada a primeira experiência com a moviola, meu
segundo encontro com uma ilha de edição foi na Videofilmes. Eu
fazia a decupagem do material bruto do Peões, documentário
do Eduardo Coutinho. Fazer decupagem significa transformar
em texto tudo o que se passa na imagem e quem já fez sabe
que esse é um dos trabalhos mais cansativos e intermináveis que
existe. Mas, para minha sorte, o material bruto que eu assistia
era do Eduardo Coutinho, e muitas vezes eu me deixava levar
pelos personagens e suas histórias, e tinha que voltar a fita no
VHS pra fazer a transcrição. Estraguei os dois videocassetes da
familia nessas semanas de tanto ter que voltar a fita. Quando
eu ia à Videofilmes entregar as transcrições, escutava os sons
que vinham do final do corredor, e não era raro ouvir as risadas
da Jordana Berg e do Eduardo Coutinho vindas daquela sala
ensolarada. Na Videofilmes, a ilha de edição nunca era uma sala
escura, e por mais que a gente tentasse, o sol sempre teimava
em entrar na sala.
A primeira assistência de montagem aconteceu alguns
meses depois. Por sorte, a Jordana ficou sem assistente e me
perguntou se eu sabia operar o Avid. Eu queria tanto o trabalho
que disse que sabia e levei o manual para estudar. No dia
seguinte, a Jordana começou a me mostrar o projeto do novo
filme e, claro, ela já tinha percebido meu nervosismo quando
perguntou: “- Livia, onde fica o match frame no seu teclado?”.
Eu não tinha ideia do que ela estava falando, mas ainda tentei
disfarçar e disse: “- Não, eu não uso o match frame”. A Jordana
entendeu na hora que eu não sabia nada, mas para minha
imensa sorte, resolveu me dar uma chance e foi com ela que eu
aprendi praticamente tudo o que eu sei hoje sobre edição no
Avid. Aprendi com a Jordana também que editar dá muita fome,
e que é sempre uma boa ideia ter comida por perto.
A segunda assistência foi com a Isabela Monteiro de
Castro, que trabalhava na ilha ao lado editando o Cidade baixa,
do Sergio Machado. Ainda me lembro dos caderninhos minús-
culos e das canetas coloridas que ela usava para fazer as anota-
ções. Os cadernos da Isabela são quase uma obra de arte e
apesar de ter ficado encantada com a precisão nas anotações,

84
nunca consegui ter o mesmo capricho. O que eu consegui adotar
foi o quadradinho do lado da anotação do que tem que se
consertar no corte. É uma delicia resolver a questão e colocar um
X no meio do quadradinho. O Cidade baixa foi o primeiro filme
que eu vi tomando forma. Acompanhei desde o material bruto
chegando na ilha até o corte final, edição de som, mixagem,
música. Se eu já era encantada com a edição antes, foi nesse
trabalho que eu me apaixonei de vez.
Lembrar de Santiago, filme do João Moreira Salles, me traz
uma enorme felicidade. Foi sem dúvida o trabalho mais incrível
que eu já participei. Tenho que ter cuidado para não soar nostál-
gica demais e já até levei alguns puxões de orelha do João por
causa disso, mas ainda acho difícil eu conseguir repetir uma
experiência tão prazerosa quanto aquela. Era uma delícia encon-
trar o João e o Eduardo Escorel na ilha todos os dias. Lembro
que ia dormir tensa, checando o despertador várias vezes, meu
maior medo era perder a hora de manhã, porque o Eduardo e
o João são as pessoas mais pontuais que eu já conheci, e olha
que eu moro em Londres há cinco anos. Dez da manhã estavam
os dois na porta da ilha, nem um minuto a mais nem um minuto
a menos. Eu aprendi tanta coisa com Santiago que não saberia
nem por onde começar a descrever. Lembro que a gente se
divertia pensando nos cortes. Em Santiago existiam quatro tipos:
o corte bom, mas ruim; o corte ruim, mas bom; o corte bom,
bom e o corte ruim, ruim. A ideia de Santiago era que ele deveria
ter menos uma cara de filme e polir os cortes não faria muito
sentido. Lembro do João brincando com o Eduardo na ilha:
“Pronto, terminamos a faixa comentada do DVD, agora a gente
tem que começar a fazer o filme”. Com o Eduardo eu aprendi
a ser mais delicada com os cortes. Ele sempre falava pra mim:
“Livia você faz o corte muito rápido. Respira antes de apertar a
tecla. Coloca mais oito frames, por favor”.
Linha de passe foi, sem dúvida, o maior desafio. Lembro do
dia em que o Walter Salles e a Daniela Thomas me chamaram pra
editar o filme. Por um lado, fiquei sem acreditar na chance que
tinha aparecido, por outro, eu fiquei completamente apavorada.
Apesar de ter feito assistência para Isabela em Cidade baixa, eu
nunca tinha editado nenhuma ficção antes. E apesar de saber na
teoria o método que eu deveria seguir, na prática eu fiquei bem
perdida nos primeiros dias. Lembro-me que a primeira sequência

85
que eu abri para editar era uma sequência em que o Reginaldo,
personagem do Kaique Jesus Santos, jogava futebol na escola
e depois arrumava uma briga e batia em um garoto. Abri o bin
da sequência e fiquei sem fôlego quando eu vi a quantidade de
material bruto e takes diferentes. Lembrei na hora do Eduardo
Escorel me dizendo que em todo o material bruto tem sempre
um bom filme, ou sequência, e é trabalho do montador achar
essa sequência. Há outras possíveis, mas só uma opção certa
para o filme. Fiquei dias tentando achar a tal opção certa. Eu
trabalhava em uma sala em São Paulo e do outro lado estava o
Gustavo Giani, começando a editar o Linha de passe também.
Ficava ouvindo os sons que vinham da ilha dele e ele já estava
na quinta ou sexta sequência enquanto eu ainda tentava montar
a minha primeira.
A sequência que eu tentava montar foi filmada de forma
documental, então todos os takes eram diferentes, sem contar
que em São Paulo o tempo muda a toda hora, então não existia
nenhuma continuidade de luz. E, para dificultar ainda mais, o
Kaique usava um casaco de escolar – na primeira metade do
material o casaco estava aberto e na segunda metade, fechado.
Passei horas tentando organizar o material procurando preservar
alguma continuidade e perdi um tempo enorme na tentativa de
criar uma lógica para o jogo de futebol. No final, já estava imagi-
nando vários cenários na minha cabeça em que eu sairia do filme
de forma honrosa. Achei que uma doença na família poderia ser
uma boa ideia…
Foi quando, meio que no desespero, eu resolvi ignorar toda a
continuidade: inverti o plano que deveria ser o inicial e coloquei
no final e montei minha primeira versão da sequência, depois de
quase duas semanas de trabalho. Mandamos a sequência para
o Walter e a Daniela assistirem no set, e fiquei ansiosa espe-
rando a resposta. Até hoje eu ainda não sei como eu consegui
chegar nessa versão. Eles gostaram e acabei não mexendo mais
nessa sequência. A versão que está no filme é essa primeira que
eu montei. A reação dos diretores me deu fôlego para conti-
nuar montando o filme, e ainda tive a ajuda de um dos editores
mais talentosos que eu já conheci. A paciência do Gustavo Giani
comigo nesse filme foi gigantesca, e foi muito bom poder cola-
borar com ele. Descobri que o trabalho de edição não precisa
ser tão solitário. Apesar de ter “acertado” na primeira sequência,

86
todo o bin que eu abria, me questionava: “Tá, por onde eu
começo?”. Percebi que eu precisava de uma maior segurança no
meu trabalho, a edição que começou, para mim, sendo um jogo
extremamente divertido, tinha virado uma fonte de angústia. Foi
quando eu decidi parar por um tempo e me aperfeiçoar: assistir
a mais filmes e fazer um mestrado de montagem na Inglaterra.
O que eu aprendi de mais importante nos dois anos de
mestrado foi ter um método que funciona quando a minha
intuição não está tão aguçada. O trabalho de montagem é intui-
tivo, mas também extremamente racional e intelectual. Ainda
que eu continue achando a intuição a melhor ferramenta do
editor, foi importante entender mais a fundo os mecanismos da
narrativa, do roteiro e desenvolver um método que me ajude
a entender por onde começar a pensar o filme. Claro que
ainda fico perdida e continuo achando o trabalho de montagem
extremamente difícil, mas o pânico inicial ficou sob controle,
por enquanto.

87
Marília Moraes

Lembro sempre de quando eu era criança e minha mãe lia o


livro da Cecília Meireles cujo o título era Ou isto ou aquilo. Ela lia
aquela poesia repetidas vezes pra mim e eu adorava as estrofes
que davam cambalhotas na minha cabeça e em seguida faziam
um certo sentido.
Desde muito cedo aprendi que na vida é necessário fazer
escolhas, e que nem sempre elas são fáceis ou óbvias, mas que
são sim inevitáveis.
"Ou se tem chuva e não tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva"...
Na montagem me deparo com essas escolhas a cada corte. A
cada corte penso que se fizesse uma outra opção, o caminho a
trilhar seria diferente e, em consequência disso, o filme seria outro.

89
"Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo....
e vivo escolhendo o dia inteiro!"
Assim vou tomando as minhas solitárias decisões, uma a uma,
e muitas vezes preciso compartilhá-las. Ora priorizo a impecável
interpretação do ator, ora o belo plano, ora o respiro entre as
cenas, ora a trilha, ora o ambiente. Dilato o tempo, brinco com
a falta de diálogos, de músicas, sobreponho sons. Coloco artifí-
cios para tentar passar a sensação de realidade; altero as veloci-
dades, inverto quadros para buscar a ilusão, o sonho.
Parece que tudo pode, que tudo está ali ao alcance das mãos.
Mas existe uma história que precisa ser contada. Qual será a
melhor forma?
Destruo, recomeço, mas nunca do mesmo ponto. Algo mudou
de lugar.
Tudo faz diferença e cada detalhe contribui para a linha que
eu desejo traçar.
Ultimamente tenho me deparado com situações que parecem
mais complexas. Às vezes nem isto, nem aquilo... Opto pelo
silêncio, tenho gostado muito dele. Mas aí me pego pensando
novamente – mas isso já não é alguma coisa?
Tenho gostado do pouco, do quase nada. Ele diz muita coisa.
Pode parecer irônico, mas quando recebo o material bruto
de um filme com todo seu exagero de volume e imensidão de
opções, gosto de analisá-lo com muito cuidado e selecioná-lo
parte por parte, e sempre chego à mesma conclusão: estar na
ilha de edição muitas vezes também é lidar com a falta. O plano
que não foi feito, a palavra que foi dita, mas que não funcionou;
a mensagem que não ficou clara ou até mesmo a vontade de
contar a história por outro ponto de vista que não está no
material que foi filmado.
O desafio está dado: é preciso lidar com um universo que já
te foi fornecido, que de antemão já vem com uma história ou
mensagem a ser passada. Mais do que inventividade ou criati-
vidade, a sensibilidade de extrair dali a melhor forma de contar
essa história é a missão, nem mais nem menos do que a busca
pela combinação mais adequada dos fatores para um resul-
tado que ainda é desconhecido, mas que que aos poucos toma

90
forma e vai revelando o porquê de cada plano, cada cena, cada
sequência, cada virada de ato deve estar naquele determinado
lugar, com aquela duração e com aquela intensidade.
Ao meu ver, a linha entre ficção e documentário está cada
vez mais tênue, os limites estão se extinguindo e a busca pela
emoção e intensidade da história se sobrepõe à divisão entre
o real e o imaginário. E é exatamente na ilha de edição que
elevamos essa busca à sua mais alta potência. Pude perceber
claramente isso no processo de montagem do filme Elena,
dirigido por Petra Costa, por exemplo. Esse foi um filme cons-
truído essencialmente nesse lugar, no qual as imagens filmadas
foram pensadas através do estudo das imagens de arquivo, a
voz off foi idealizada, escrita, reescrita e exaustivamente testada,
entrevistas se fizeram necessárias não para fazer parte do filme
final, mas para aprofundar as camadas. E no meio de tudo isso,
as encenações se tornaram essenciais e a estrutura foi pensada
como um roteiro clássico de ficção.
A mistura de todos os elementos estava a favor da expe-
riência. É ela que deve prevalecer, não só através das narrativas,
mas das sensações que o filme pode provocar.
Os processos de criação de um filme são especialmente múlti-
plos e surpreendentes.
O filme sempre manda no meu processo de montagem, que
varia e tenta se encaixar nas necessidades de cada obra.
Ao conjugar todas as escolhas, sendo elas intuitivas ou racio-
nais, procuro não me afastar de um objetivo claro: a tentativa
de prever a emoção do outro, sim, o outro. Ele é muito impor-
tante nesse processo todo. O espectador é o elemento que vai
completar a experiência, sem o seu envolvimento e compreensão
nada faz sentido. Tento pensar sempre que apesar de conhecer
muito a fundo a matéria-prima que vai compor a obra final devo
estar também nesse lugar. E através de uma tentativa dificílima e
quase contraditória de não perder o olhar de espectador, tento
manter algum frescor e às vezes quem sabe me surpreender ou
me emocionar com cenas que já foram vistas uma centena de
milhares de vezes.
Hoje estou muito conectada com a criança que fui um dia e
por isso lembrei da poesia. Isso se deve à montagem de um

91
documentário que me fez olhar o mundo de forma diferente.
Em trezentas horas de material bruto, observei diversas crianças
brincando. Durante bastante tempo manipulei as imagens
atenta aos gestos, aos silêncios, aos movimentos corporais. Vi a
potência, o exercício do desejo, a simplicidade e objetividade de
cada ação infantil. Num processo longo de aprendizado e análise
vi a complexidade do ser humano na sua essência mais crua e
escancarada. Foi transformador perceber que não olhamos mais
para a infância, que estamos cegos em relação ao que existe de
mais pulsante e verdadeiro por estarmos presos a memórias do
passado e projeções de futuro. O exercício do olhar me trouxe a
clareza do quão importante é o estado presente, onde a criança
está, natural e sábia, vivendo a intensidade de cada momento.
A infância carrega em si o novo. Me dei conta de que enquanto
houver crianças nascendo seremos relembrados de quem real-
mente somos, da nossa humanidade.
Se eu não fosse montadora, provavelmente eu nunca teria
tido essa experiência. Essa é mais uma das coisas que me
encanta neste ofício, lidar com um universo mais amplo do que
o que vai ser mostrado, poder me aprofundar verdadeiramente
na matéria, apalpar suas entranhas e a partir disso fazer escolhas
que, querendo ou não, carregam um pouco da minha forma de
olhar o mundo.
A montagem do filme o Território do brincar, dirigido por
Renata Meirelles e David Reeks, foi um processo único, e como
já disse anteriormente, cada processo é mesmo único. São
universos que vivenciamos sem termos a menor propriedade ou
autoria. São histórias alheias, dramas que muitas vezes nunca
experimentamos na pele, fatos que desconhecemos, ou com
os quais nos identificamos imediatamente, histórias de vida que
admiramos mas que não sabemos detalhes e que, do dia pra
noite, é necessário falar sobre com propriedade. Achar na história
do outro a melhor forma de expressá-la e torná-la pública é o
que tento sempre buscar.
Se o meu papel foi desempenhado de maneira satisfatória, o
filme que daqui a pouco estará nos cinemas vai fazer com que
o espectador visite pelo menos por um instante esse lugar que
tanto me arrebatou e me gerou profundos questionamentos em
relação ao cinema e à vida.

92
"Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo...”
Quando o trabalho acaba e o filme está na tela grande, me
esqueço de todas as decisões que precisaram ser raciocinadas,
discutidas e questionadas tantas vezes antes de serem definitiva-
mente tomadas, e o sentimento que perdura é de fluidez. Parece
que o filme nasceu daquele jeito e não tinha como ser diferente.
E assim, começo então o mergulho em outro universo...
"Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo."

93
Paulo Sacramento

Ovelhas ao sol. Inúmeras, por todos os lados. Paradas ou


em lento movimento. Ovelhas em um amplo campo verde sem
árvores, sob um infindável céu azul. Sumariamente, foi isso. A
primeira coisa que montei: ovelhas. Nada além de ovelhas.
O ano era 1991 e eu frequentava as aulas do curso de cinema
na Escola de Comunicações e Artes da USP. Tinha aprendido
recentemente os rudimentos da operação de uma moviola, e
tinha à minha disposição centenas de latas enferrujadas repletas
de copiões antigos com sobras de publicidade. No ar, um ines-
quecível cheiro de vinagre que emanava de pistas magnéticas
reutilizadas ao limite de sua capacidade física. Com o prazer
de um desbravador, nessa sala eu procurava diamantes entre a
sucata publicitária, deparando-me por vezes com pedaços de
filmes finalizados. Encontrei ali, por exemplo, alguns poucos

95
planos de O cão andaluz e rolos inteiros de Oh! Rebuceteio
intercalados a muitos, muitos detergentes, carros, sanduíches e
eletrodomésticos.
Passei alguns dias nessa atividade lúdica de procurar, separar,
catalogar o que via. E então deparei-me com uma grande
surpresa, um pequeno tesouro, ao menos foi o que senti quando
encontrei dentro de uma dessas grandes latas enferrujadas um
copião intocado, sem cortes, com aproximadamente 11 minutos
de... ovelhas.
Não se tratava de restos de outros montadores, como eu
tinha visto tantas vezes nas outras latas que estavam em cima e
à frente dessa. Não era mais aquele material retalhado e preca-
riamente colado com uma fita durex vagabunda e melada com o
qual eu me debatia, sobras de trabalhos que eu poderia refazer
sem roteiro, sem diretor e sem cliente, movido unicamente pelo
exercício formal do aprendizado.
Não, aquela lata me colocava em outro estágio. Eu sentia
que havia finalmente encontrado um material apropriado para
adentrar um terreno mágico e poderoso, onde através de
alguma alquimia eu poderia ir além da mera soma, e multiplicar
significados. Semelhança ou contraste, continuidade ou ruptura.
Tese, antítese, síntese: a dialética ou quem sabe a poesia ao
meu alcance. Meus primeiros passos rumo à descoberta de uma
expressão mais íntima. Aquela sala de montagem tornava-se ao
mesmo tempo a antiga sala de brinquedos e minha despedida
dela rumo ao rigor que em breve me transformaria em artista –
ou ao menos senhor de um ofício.
Logo comecei também a escrever roteiros, a posicionar
câmeras e refletores, a escolher lentes, seguindo as aulas e o
currículo estabelecido pela universidade. E foi tateando diversas
funções que passei a discernir os elementos com maior clareza,
entendi o quanto os filmes são feitos da estrita colaboração de
diversas pessoas e talentos. Mas eu, assim como todos meus
colegas, não queria ser “apenas” um técnico cinematográfico.
Eu queria ser o diretor, o artista, o visionário que através de sua
linguagem se expressa com tal intensidade que constitui um
discurso e uma obra a ser apreciada pelos outros.
Apesar de estarmos todos iludidos de maneira muito seme-
lhante, logo percebi que minhas futuras obras de arte depen-

96
deriam de uma habilidade que nenhum de nós ainda tinha. E
entre as diversas aulas e possibilidades que se abriam à minha
frente, percebi o quanto a montagem poderia ser minha verda-
deira escola.
Dessa maneira, na prática diária na moviola, com tempo e
dedicação, pude aprender a reconhecer os erros e acertos de
meus colegas em suas primeiras experiências audiovisuais. Mais
do que isso, aprendi que poderia valorizar os acertos e minimizar
eventuais erros, quando não fosse possível extirpá-los. Aprendi o
poder da precisão e a dedicar tempo a momentos-chave, como
a apresentação de personagens. Aprendi rapidamente que o
montador pode e deve ser o melhor amigo do ator. Conforme
aprimorava meu olhar, ajudei muitos novos diretores a chegar
o mais próximo possível de suas ideias originais, superando as
dificuldades comuns à filmagem, às restrições de produção,
reencontrando o caminho do ímpeto inicial que os levou a
dedicar suas forças àquele filme específico e não a inúmeras
outras possibilidades.
De maneira muito intuitiva, através de erros e acertos,
comecei a construir a minha compreensão da montagem, minha
maneira particular de me posicionar frente ao trabalho prático.
Conversando com outros montadores e diretores em festivais,
entendi também o que há de diferente e semelhante nos diversos
projetos, nos diversos estilos e procedimentos. E a diferença que
pode haver também nos resultados. Entendi que cada filme é
como se fosse o primeiro, descobri que acertos passados não
garantem acertos futuros. Nesse fluxo de descobertas acabei
aproximando-me de pessoas com projetos mais experimentais
(ou não comerciais), que despertavam em mim maior interesse
ou identificação. Depois tive vontade de aprender mais da narra-
tiva clássica, o que aumentou meu repertório, alargou horizontes
e ampliou minha envergadura. Conhecer para subverter, essa era
uma ideia que não saía de minha cabeça.
Nos anos seguintes, tive a inestimável oportunidade de traba-
lhar com diretores muito distintos, em curta e longa-metragem.
E aprender com cada um deles a maneira de responder aos
desafios sempre novos que os filmes apresentavam. Nunca
encontrei (nem desejei isto) um procedimento padrão que
pudesse atender a todas as questões e problemas com que me
deparava. Colocar-me de maneira curiosa e disponível a experi-

97
mentar novas soluções, esta sempre me pareceu a única resposta
que pude aplicar com sucesso nos meus trabalhos. Afinal, não há
uma maneira única de fazer filmes e muito menos uma maneira
“certa” de responder aos dilemas que se apresentam.
Nesse sentido, sempre busquei agradar primordialmente a
duas pessoas, ao diretor do filme e a mim mesmo. Enquanto
não estivermos ambos satisfeitos, a cena não estará pronta. É
como gosto de trabalhar até hoje. Atualmente, porém, temos
que agradar também a coprodutores, distribuidores, parceiros
da televisão, exibidores. E na ânsia de conciliar tantas visões,
filmes se pasteurizam. Quando não resta em um filme nenhuma
aresta proposital, nenhum estranhamento, nenhuma aposta
pessoal, é sinal que ele poderia ter sido realizado por qualquer
bom artesão. Não é o cinema que me agrada, pois busco sempre
reconhecer o diretor por trás dos projetos. E tive possibilidade
de trabalhar com diretores de forte escritura. Minhas decisões
de montagem muitas vezes foram diretamente influenciadas pela
visão que eu tinha da sua personalidade, de sua compreensão de
mundo e cinematografia, e não de uma ideia genérica de como
deveria ser o cinema. O que seria nivelar por baixo suas poten-
cialidades, minimizá-lo.
Com esses diretores aprendi inúmeras outras coisas. Como
me relacionar com eles, como respeitar e estar aberto às suas
opiniões. E como respeitar, sobretudo, o material, saber ouvi-lo.
Pois é preciso sempre ouvir a ambos, e ao mesmo tempo. Não é
função do diretor oferecer soluções pontuais para os problemas
que sentem na montagem. Uma aparente solução frequente-
mente gera dois novos problemas. Por isso o montador depois
de ouvir o diretor deve interpretar. Pois se uma sequência parece
lenta o problema pode estar na sequência anterior, por exemplo.
A presença do diretor é essencial para os diagnósticos, mas nem
sempre para a prescrição.
Carlos Reichenbach, um de meus maiores mestres e amigos
no cinema, dizia que a função do cineasta é aprimorar o olhar
do espectador. E que a função do profeta é profetizar, não
acertar... Em cinema, um erro pode se transformar em acerto
(e vice-versa), pois a linguagem e o mercado estão em perma-
nente transformação. Nosso único compromisso deve ser com
nossa sensibilidade, moldada por nossa experiência pessoal,
seja ela audiovisual ou não. Muitas vezes a literatura ou a música

98
determinam decisões importantes em meus trabalhos. Gosto de
buscar referências que não serão necessariamente decodificadas
pelo espectador, mas que dão coerência interna aos trabalhos.
Acredito que o trabalho do montador é análogo ao do afinador
de instrumentos. É preciso que as cordas toquem dentro de um
padrão. É preciso escolher o tom, a referência, que é a base do
trabalho conjunto. Penso que acima de tudo é preciso perseguir
a coerência dos elementos. Ao longo do trabalho de montagem
de um filme deve-se manter constantemente afinada a interpre-
tação de um ator. E ele deve estar afinado com os outros. E com
a fotografia e a arte. E com o ritmo do filme, com os cortes,
com o som. E com a música, que normalmente chega depois.
Quando todos esses elementos estão coerentes, temos a chance
de um grande filme. Mas como definir coerência? Eu não sei.
Mas sem ela não há trabalho de montagem.
Boa parte do que fazemos é invisível aos espectadores, que
entregam-se à mágica do cinema e mergulham na narrativa
como se a vivenciassem in loco. É curioso, mas parte do trabalho
de montagem pode ser invisível até mesmo aos próprios dire-
tores do filme. Quantas vezes não me debati porque uma cena
não encontrava a sua respiração, quando todos já se davam por
satisfeitos? Algo me agredia, como um compasso atravessado
no meio de uma música. O ritmo e as pausas dão-se na imagem,
mas a respiração dá-se quando esses elementos se humanizam
nos personagens. Como a coerência, a respiração é também
indefinível, mas ela é sempre o meu guia. Começo pela ideia,
materializada no roteiro. Depois me entrego aos atores. E por fim
me debato com a respiração. Já fiz filmes bons que poderiam ser
ótimos se eu tivesse tempo ou maturidade para trabalhar essa
respiração no momento final da montagem. E fiz filmes talvez
ruins, mas que penso que ficaram equilibrados e atingiram o
máximo que eu poderia dar a eles. Quem sabe, o máximo que
eles poderiam dar a nós.
Montar é buscar esse outro conceito abstrato. O que é a
plenitude de uma ideia? O máximo de um filme? Certamente um
ideal, uma luz que nos guia no horizonte enquanto remamos no
escuro. Não existem duas pessoas que veem da mesma forma um
filme. Por isso não existe uma maneira precisa de prever o tempo
necessário a qualquer montagem, nem ter certeza absoluta de
que um trabalho está realmente terminado. De minha parte, sei

99
apenas quando adentro um momento de relaxamento e equilí-
brio entre os meus anseios e os do diretor do filme. Então consi-
dero a missão cumprida.
Em tempo, voltando às ovelhas... Que critérios eu deveria
usar para montar aquele material sem diretor, sem roteiro, sem
início, meio ou fim? Após dias tateando de maneira praticamente
aleatória, depois de assistir dezenas de vezes ao copião, veio-me
a simples ideia de que as ovelhas deveriam andar sempre para
o mesmo lado. E então, guiado apenas pelos “deuses da
montagem”, soube o que fazer. E vi materializar-se à minha
frente o poder da linguagem. Mesmo aplicado a um material
branco, neutro, brotava ali uma possível metáfora, um resultado
perigoso que para meu espanto beirava a ideologia.

100
Ricardo Miranda
Montagem ou pensando bem, apontamentos sobre a
construção de espaços e tempos

“A história não é somente uma ciência,


mas também uma forma de memória.”
Walter Benjamin

Matinal momento da escrita. A Montagem, um caso para se


pensar, depois de 40 anos nesta atividade de construir filmes.
Pensar a forma. Experimentar o inesperado e vomitar ideias que
procurem a transgressão desta forma.
De dentro do pequeno carro observo o passar da história
pelas circunvoluções da Serra de Conservatória, Serra da Beleza,
Quilombo Santa Izabel, Valença. Vou para fazer um pequeno
filme. Vou como um still, um observador fotográfico, um apon-
tador de urgências, acompanho a equipe que ali vai realizar
um filme sobre o Quilombo, a terra e a cultura, com direção
de Clarissa Ramalho. Maio. Faz frio, chuva fina e tenho que
pensar num artigo, crônica, texto acadêmico ou teórico sobre
montagem. O carro avança e a experiência sensorial imagética
desses dias me fez rever um pouco esta ideia de falar pura e

101
simplesmente de CINEMA. Faço cinema, penso cinema, mas
penso e faço cinema, quando penso a História.
Ao viajar por curvas sinuosas, radicais, na contemplação das
casas de fazenda, dos pátios de café, das capelas com seus
santos barrocos, perdidos pelos altares, das senzalas da casa,
dos ambientes de estar e receber, e dos Mercados, deparo-me
com representações dos nossos dias. Fico com uma ideia muito
clara de como o passado interfere no nosso agora, e de como
a historia irá possibilitar a compreensão do que faço agora e do
meu entorno.
Vamos remexer o passado, o presente, a pontualidade signi-
ficativa do ato de trabalhar o cinema por olhares diversos e da
criação. Do trabalhar com as realidades, com o pensamento,
com a história, estórias e personagens do real. Personagens da
mentira. Nos locomover no tempo e nos encontrar na Estação da
Ciotat ou na saída da Fábrica Lumière em Lyon, ou com algum
esquimó perdido no gelo singular do extremo da Terra. Rever a
Baía de Guanabara, pelo olhar de Afonso Segreto, em 1898. Ver
a lua ferida por Méliès. Observar a realidade, ver o movimento
das coisas, dos animais e dos homens. “Sociologizar” ou não.
Pegar de cada momento o seu mais sutil ou diabólico instante e
fabricar, transpassado de seu olhar, a sua observação do mundo:
“cinematizar” as ideias.
O céu negro. A terra roxa. Um carro que explode, ou uma
mulher sendo sufocada por policiais, ou ainda o remexer no
espaço do toque de um tambor de maracatu. O montador,
emocionado, não grita em nenhum momento... ele corta. Esta
visualidade, este trabalhar a arte de conjugar conflitos, ideo-
gramas, organizando pensamentos ou o desejo de transmitir
emoção, raiva, alegria e consciência, para quem vê o mundo.
A montagem no cinema, na TV, da película para o digital, da
moviola para o computador, apreende realidades, verdades e
mentiras, axiomas e dores da vida.
Nesses dias, entre viagens, filmagens, filmes e textos,
encontro uma observação de Glauber sobre Engenhos e usinas
de Humberto Mauro, em artigo de Umbelino Brasil. Nesse docu-
mentário, o cineasta pioneiro do cinema brasileiro estabelece
uma relação orgânica entre a evolução econômica e industrial
das usinas em comparação com os engenhos de cana-de-açúcar,

102
usando a narrativa dramática dos poemas de Ascenso Ferreira.
O filme penetra nos problemas sociais, tentando evidenciar
as causas da tensão na relação homem-máquina, motivando
Glauber Rocha a fazer a seguinte análise: “Este seria um docu-
mentário de três planos, inclusive, caso Mauro quisesse: após a
força do plano inicial, tendo montado uma roda de engenho e
logo uma turbina de usina, toda a história da economia açuca-
reira do Brasil, que marcou a agricultura no primeiro período
colonial, estaria levantada. Aí nesse plano inicial está a raiz do
enquadramento do filme brasileiro...”
Voltando, percebo nessa afirmação de Glauber uma intenção
perdida no tempo, já que agora não sinto na maioria dos docu-
mentários ou mesmo em filmes não documentais tentativas de
que com um plano, uma sequência ou até mesmo um filme
inteiro, se chegue à História, se chegue a uma estética, a uma
ideia de um cinema brasileiro, de uma cinematografia nacional.
Observo um mesmo procedimento quanto à montagem.
Muitos poucos montadores/diretores procuram e chegam através
do corte, da observação do plano, da observação plena do foto-
grama a cortar dando articulação aos planos, uma proposta real,
para que o espectador seja levado à consciência total do filme
que está assistindo e de sua potência estética, sua potência
de ideias, como parte de um pensamento único de cinemato-
grafia nacional.
Claro que devemos recordar sempre que ainda existem dire-
tores, montadores que pensam o cinema e a montagem como
os que teceram as teorias primeiras para as articulações entre
planos, pensaram o cinema e as estruturas fundamentais do
inconsciente, da história e do pensamento.
Minha trajetória começa no mar de Icaraí, Niterói, nos anos
60, mais precisamente 68. Ali estava eu, de 17 para 18 anos.
Tinha descoberto o cinema assistindo O corvo de Roger Corman
alguns anos antes. De lá pra cá foram pulos em tempos negros
do espaço. Melancolias e descobertas. Amigos – Marco Bottino,
Arthur Omar, Tunico Amâncio, Sérgio Vilela, Imara Reis, Antonio
Luiz Mendes, Cacá Diniz, Luiz Alberto Sanz, Eduardo Imbassay,
João Luiz Vieira, Glaucia Camargo, Fabio Inneco, Manfredo
Caldas, Ronaldo Miranda, Sérgio Santos, Ana Caillaux, Alex
Varela, Tonico Pereira, Ivo Campos, Marcio Medalha, Cristina

103
Flores e muitos outros que me guiaram amorosamente no
afeto, nos desejos, nas vontades, desesperos, e tudo mais que
completa a vida.
Nesses tempos primeiros aprendi a ideia do fazer CINEMA
e nesse momento, iniciei a ideia de que queria construir filmes.
Montar. Conjugar planos e vontades.
No segundo momento, penso ter resolvido me aproximar de
um cinema que falasse com meus desejos de trabalhar com essa
arte como arte.... e de lá em diante preguei ser um montador
-autor. Descobri cinemas: Godard, Straub, Antonioni, Pasolini,
Rossellini, Ford, Kobayashi, Oshima, Marguerite Duras, Resnais...
E ao estar envolvido emocionalmente, fisicamente, amorosa-
mente a um cinema da invenção, do risco, vou apostando no
trabalho de montador e monto filmes para Arthur Omar; Omar,
que com suas ideias e seu trabalho, varre o espaço/tempo
fílmico como um Anúbis implodindo as telas dos anos 70 com
Triste trópico, que, no dizer de Ismail Xavier – “Configura-se aí
uma nova variante do cinema brasileiro em seu esforço de pensar
o todo a partir da atenção às questões ardilosas, como os fenô-
menos de consciência e o estatuto das formações imaginárias no
tecido social. Combinando o tema da viagem, o senso rigoroso
da experimentação e a rara capacidade de articular um imagi-
nário de ramificações seculares, Triste trópico é um dos filmes
mais instigantes que emergiram do cinema brasileiro moderno”.
Arthur Omar e eu somos amigos e iniciamos praticamente juntos
no cinema. Sendo provocadores e nos provocando. Estamos
juntos no trabalho e na vida desenvolvendo ideias distintas mas,
ao mesmo tempo, tendo estado juntos em dezenas de filmes, eu,
como montador: Congo, Triste trópico, Tesouro da juventude,
Música barroca mineira, O som, e tantos outros; e ele, como ator
e músico, em experimentos fílmicos meus.
Paulo César Saraceni, com carreira marcada pela singula-
ridade e a invenção, possuidor de uma filmografia de exube-
rante autoria – O desafio ou Amor, carnaval e sonhos – os quais
Saraceni, possuído da coragem da experimentação, afronta o
tempo. Ou de filmes fundamentais como O viajante. Um cinema
ungido de significados, para se pensar, estudar, ver e rever.
Apreender. Ou lembrando Glauber em Revolução do Cinema
Novo: “Aprendi de tudo com meus amigos, mas Saraceni me

104
conduziu ao fogo do Cinema e do Amor".
Com Sarra desenvolvi amizade. Fomos confidentes das
mazelas do mundo, da vida, do trabalho, da merda. Fui seu
assistente de direção e montador em Anchieta, José do Brasil.
Montei também Amor, carnaval e sonhos, O cinema, Encontro
das águas, Quadro a quadro, Newton Cavalcanti, Ao sul do meu
corpo, O gerente – em parceria total e afetiva com Joana Collier
– e Casimiro – com Litza Godoy – filme do Sarra e do Mario
Carneiro. Sobre o Paulo realizei um filme, um longa documental:
A etnografia da amizade.
Com Luiz Rosemberg Filho, que do seu lugar na história,
vergasta com a invenção o cinema pobre que rodeia nós todos.
Autor de filmes belíssimos, extraordinários, austeros, como
A$suntina das Amérikas, Crônica de um industrial, O jardim das
espumas e vídeos didáticos na tradução das relações do Capital,
do Homem e da imagem. Rosemberg não desanima na sua luta
diária pelo cinema. Resiste. Ou relendo Jairo Ferreira, “Luiz/
luz gênio muito especial: generoso na definição godardiana da
cinevida. Antes de amar o cinema, o cinema o adora!”. Somos
amigos e montei Crônica de um industrial, foi meu ator por duas
vezes e realizei um filme sobre ele e o seu cinema, Bricolage.
Fui um dos montadores do Idade da Terra do Glauber, trabalho
fundamental para quem lá esteve. Mudou meu pensamento de
montagem. Mudou meu pensamento sobre cinema, modo de
produção. Filme extraordinário que lançou novos olhares sobre o
mundo, e quem lá esteve nunca mais olhou o cinema da mesma
maneira. Experiência fundamental aos meus 27 anos.
Montei ainda filmes de Ivan Cardoso e entre eles o funda-
mental HO sobre o Helio Oiticica. Com Helena Ignez, trabalhos
inspiradores como a coordenação da montagem de Feio eu? seu
último filme e A canção de Baal – montagem em parceria criativa
com a Julia Martins com quem também trabalhei em Romance
do vaqueiro voador – do Manfredo Caldas e que me permitiu
experimentações na ordem da imagem e do som em um docu-
mentário contundente e possante.
A partir de documentários sobre os filmes do Glauber para a
edição em DVD, montamos o fundamental Anabazys, de Paloma
Rocha e Joel Pizzini. O filme expõe uma história, uma vida, um
pensamento e onde pude me deixar ser guiado na montagem

105
pelo fluxo do inconsciente em companhia de Marina Meliande e
Alexandre Gwaz. No Anabazys ainda tive como parceiro Carlos
Cox, e sua edição de som construtiva e autoral, e a constatação
final de como andamos em muitas coisas, mas na hora de mixar
os que deveriam arrematar criativamente o filme são primários
ainda na ideia de autoria, invenção no trato final do som. Uma
luta campal para fazermos filmes com a invenção sonora dentro
de parâmetros técnicos corretos.
Nos anos que morei em São Paulo, um amigo, irmão,
Goffredo Telles. Um experimentar diário de ideias, visualidades,
pensamentos e rompimentos radicais com o óbvio do cinema.
Experiências sem limites na busca de um transpassar constante
das emoções e dos princípios teóricos da montagem nos deram
vários trabalhos juntos como Narrarte, Samboxum – edição em
parceria com Samantha Ribeiro e Walter Rogério –, Sambaxé,
Brasilíndia, Mautner/Rimbaud, Mautner/Gonçalves Dias e um
filme em codireção de Saraceni, Goffredo Telles e eu – O presi-
dente do mundo, sobre Almeida Sales.
E com muitos outros trabalhei: David Neves, Vladimir Carvalho,
Mario Carneiro, Walter Carvalho, Ana Maria Magalhães, João
Carlos Horta, Breno Kuperman, Toca Seabra, Tizuka Yamasaki,
Edgar Moura. Norma Bengell, José Walter Lima, Teresa Trautman,
Olney São Paulo, Antônio Manuel, José Mariani, Cacá Diniz,
Roberto Mader, Neville d´Almeida, Paula Azugaray, Ricardo Van
Stein... muitos outros.
Minha viagem acabou desembocando na escola, nas
propostas de formação de novos autores-montadores. Com essa
ideia trabalho há oito anos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro,
que me provoca interiormente para sempre estar provocando o
aluno. De Méliès até o final dos anos 30, descobrindo os russos,
franceses, Vanguardas Históricas com suas experimentações e
novos desenhos teóricos da montagem... e dos “modernos”,
desconhecidos dos alunos. Das turmas vejo sempre muitos se
formarem para a aventura do fazer.
Nessa trajetória de diretores, amigos com que trabalhei,
pensando com eles a forma autoral e as montagens de seus
filmes, já que considero o MONTADOR um autor, reflito e vejo o
cinema do Brasil atualmente como um cinema pequeno, com um
grande desamor para com os inventores. Donos de uma força

106
monumental, de uma vontade de jogar para as plateias filmes de
significação, aposta, sentido, emoção, beleza, audácia, coragem
e generosidade. Cineastas de gerações diversas, que procuram
manter através de vários modos de produção as ideias vivas e
circulantes, envolventes e redondas. Cinema deve ser sempre
um provocador, instigador de plateias, cunha perfurante para
cérebros mortos. Cinema não é negócio.

107
Ricardo Pretti
notas sobre a montagem cinematográfica

a montagem não se resume a uma manipulação de imagens


e sons, ela é antes uma educação com imagens e sons em cons-
tante fluxo, onde nunca se sabe exatamente o ponto de partida
e nem o ponto de chegada. assim como mais pode ser menos e
menos pode ser mais.

um bom jogador de sinuca poderia ser um bom montador,
mas não o contrário. a sinuca é mais veloz que a montagem.
uma boa partida de sinuca alia, instantaneamente, a precisão
de certas leis físicas e matemáticas com a imprevisibilidade de
suas ferramentas: jogador, mesa, taco, giz, etc. (mise en scène?).
(numa nota mais pessoal, lembro dos dois anos que passei
jogando sinuca na minha adolescência tardia, foi onde aprendi

109
o real sentido de humildade: o jogo será sempre maior que o
jogador. em outras palavras: o filme, ruim ou bom, será sempre
maior que o montador).
em compensação, um bom montador poderia ser um bom
poeta. isso prova que quase não existem bons montadores, do
mesmo jeito que é raro encontrar um bom poeta em qualquer
canto do planeta.

imagine mudar de casa todos os dias… esse é o trabalho do
montador enquanto monta um filme. quando muda de filme é
como mudar de cidade, ou seja, o montador pode dizer: “mudo
de casa quase todos os dias e mudo de cidade de três a quatro
vezes por ano”. mas de país o montador nunca se muda porque
não existe esse conceito no cinema.

imagine não envelhecer, viver todos os dias como se fosse o
primeiro e o último… esse é o trabalho do montador enquanto
não monta um filme. ezra pound formulou: curiosidade / um
conselho aos jovens / curiosidade.

a montagem é uma nobre profissão que exige amadores ao
invés de profissionais.

dizem que o bom montador sabe contar bem histórias, porém,
depois de ter visto milhares de filmes hollywoodianos da sua era
de ouro, posso dizer que isso não é verdade. a história de um
filme nunca será contada na sala de montagem. se não contou
na filmagem, já era. a montagem pode ressaltar, condensar e
evidenciar a beleza da história sendo contada, a montagem pode
se apaixonar pelos elementos do filme, e a montagem pode
até dar uma personalidade única à história, mas ela não pode
contar uma história. no final das contas, quem conta a história
é o próprio espectador e sua imaginação. um espectador sem
imaginação é a morte do cinema.

110
como seria uma escola pra formar montadores? 1º ano:
assistir a filmes e mais nada. 2º ano (pros que ficaram): assistir ao
material bruto de um filme, pensar um pouco sobre o que fazer,
tentar fazer e fracassar algumas vezes até chegar no corte final.
3º ano (pros três gatos pingados que permaneceram): remontar
o filme quatro vezes exatamente do mesmo jeito que ele estava
montado no corte final (pra isso acontecer da melhor forma é
necessário não fazer backup de nada e quebrar acidentalmente,
porém com firme propósito, os HD. durante uma bebedeira pode
ser bem eficaz a conclusão dessa etapa). o montador precisa
lembrar de todos os takes usados e pontos de corte (ou quase
todos, se ele convencer a si mesmo que são todos). Ao fim de
tudo isso, o ideal é que ele perceba que o mesmo filme nunca é
o mesmo filme, e assim ele perceberá que um plano nunca é um
mesmo plano etc. mas pra isso funcionar é preciso que o filme
seja o mesmo filme e o plano seja o mesmo plano etc.

alternate take era bastante comum nos discos de jazz dos anos
50. uma mesma música era gravada mais de uma vez no mesmo
disco (essa prática só foi possível porque os músicos tocavam
todos juntos, permitindo que cada gravação fosse diferente).
straub e huillet usaram diferentes takes de um mesmo plano em
alguns filmes (visita ao louvre é o mesmo filme montado duas
vezes com diferentes takes). um plano equivale a uma canção
e cada take é uma versão diferente da mesma canção. quando
chegou o free improv não precisou-se mais da ideia de take, pois
também já não havia canção. no cinema de ficção isso equivaleria
a filmar de forma sempre diferente um conjunto de ideias (uma
sequência ou um plano). consequentemente, isso seria trans-
formar toda noção de unidade contida numa duração em take,
em vez de plano (ideia que evoluiu numa conversa que tive com
meu irmão luiz). ou seja: “quantos takes vamos filmar hoje?”. Isso
pro montador significaria uma libertação de certo sofrimento e
exaustão causado pelo visionamento vazio de inúmeros takes
que dizem a mesma coisa, no melhor dos casos.

muita gente acredita que intuição é ausência de pensamento
ou de método para o pensamento. pra mim intuição é a conci-
liação do pensamento com o mundo, da sala de montagem com

111
o universo do filme. ou seja, não importa quantas regras a gente
se impõe, deverá sempre permanecer um espaço pra intuição.
(a intuição pode ser exercitada diariamente com jogos de asso-
ciação livre, escrita automática e sessões de hipnose.)

quando um filme acaba é importante deixar ele ir embora,
esquecê-lo de vez. um montador possessivo é muito chato, já
basta o pobre do diretor.

o controle ou a vontade de controlar destrói o filme e/ou o
montador. montagem é desejo e jogo de sedução, não é uma
relação entre pais e filhos. por isso é bom fechar a porta ao entrar
na ilha.

112
Filmes

113
114
狂った一頁 (Kurutta Ippêji) 60’ 1926
Uma página de loucura

diretor Teinosuke Kinugasa


montador Umeko Numazaki

Sinopse Um homem trabalha como voluntário num


manicômio onde a sua mulher é uma das internas.

“A narrativa era menos relevante que a experimentação técnica:


travellings, closes, montagem rápida, flashbacks, dissolves, fade
com iris. Nesse filme, usei quase todas as técnicas avant garde.”
Teinosuke Kinugasa

Classificação indicativa 12 anos

115
Октябрь – Десять дней, которые
потрясли мир 102’ 1928
Outubro

diretor Sergei Eisenstein, Grigori Aleksandrov


montador Esfir Tobak

Sinopse Versão metafórica, simbólica e comemorativa dos


dez dias da Revolução Soviética de 1917.

“Os montadores atravessaram com os olhos uma estrada de 49


quilômetros de imagens.”
Sergei Eisenstein

Classificação indicativa 18 anos

116
Limite 120’ 1931

diretor, montador Mario Peixoto

Sinopse Num barco à deriva, duas mulheres e um homem


relembram seu passado recente.

“Um esboço aproveitado assim de uma espécie de visão, de


inspiração (...) uma coisa não provocada que aconteceu. (...) Foi
instantâneo. Limite, o título (...) só podia ser Limite.”
Mario Peixoto

Classificação indicativa 14 anos

117
Je t'aime, je t'aime 89’ 1968
Eu te amo, eu te amo

diretor Alain Resnais


montador Albert Jurgenson, Colette Leloup

Sinopse Durante uma experiência científica, apenas


testada em ratos, um suicida fracassado revive o seu
passado de forma paranoica e desordenada.

“Dizem que um diretor sempre faz o mesmo filme. Eu tento


– como François Truffaut dizia – fazer sempre o próximo
filme em oposição ao anterior.”
Alain Resnais

Classificação indicativa 16 anos

118
Spalovač mrtvol 95’ 1969
O cremador

diretor Juraj Herz


montador Jaromír Janáček

Sinopse Um cremador na Tchecoslováquia, no final dos


anos 1930, é gradualmente convencido de que deveria
privilegiar as suas origens germânicas para ter mais êxito
em sua vida e trabalho.

“Em Praga as pessoas ficavam deprimidas; na Eslováquia,


riam; na Holanda, era uma comédia do início ao fim; na Itália,
os espectadores iam direto do cinema para o bar porque a
cremação era simplesmente impossível, horrível e inaceitável no
seu país.”
Juraj Herz

Classificação indicativa 18 anos

119
Duel 90’ 1971
Encurralado

diretor Steven Spielberg


montador Frank Morriss

Sinopse “– Aquele caminhoneiro está maluco, está


tentando me matar, eu juro!” “– Bom, se eu tivesse que
escolher quem está louco aqui, eu apostaria no senhor.”

“O que aprendi com Hitchcock é nunca deixar o público relaxar.


Tome seu tempo e prolongue o suspense o máximo possível.”
Steven Spielberg

Classificação indicativa 12 anos

120
Het Leesplankje 10’ 1973
Lição de leitura

diretor Johan van der Keuken


montador Johan van der Keuken, Jacques Verheul

Sinopse Gerações de holandeses aprenderam a ler com


um quadro onde são impressas imagens e as palavras que
elas ilustram. Uma escola primária de Amsterdã conjuga
esse método tradicional com informação sobre o mundo
atual. Van der Keuken aprofunda o sistema de substituição
com imagens de acontecimentos políticos e sociais.

“Sou um cineasta que improvisa. Improvisar também existe para


as imagens. Para mim, improvisar e não improvisar constitui
uma oposição muito mais importante do que, por exemplo,
entre documentário e ficção. Para mim, essa segunda ordem
de oposição não funciona. Mas improvisar, isso é uma categoria
real.”
Johan van der Keuken

Classificação indicativa 16 anos

121
Edvard Munch 174’ 1974

diretor, montador Peter Watkins

Sinopse Retrato biográfico e íntimo do pintor norueguês


Edvard Munch.

"Este filme foi uma das experiências criativas ‘mágicas’ da


minha vida – e eu lamento, com tristeza, não ter sido permitido,
durante todos estes anos, continuar a desenvolver esse método
de trabalho."
Peter Watkins

Classificação indicativa 16 anos

122
Grey Gardens 95’ 1975
Jardins cinzentos

diretor Albert Maysles, David Maysles, Ellen Hovde,


Muffie Meyer
montador Ellen Hovde, Muffie Meyer, Susan Froemke

Sinopse Mãe e filha vivem há 20 anos em condições


insalubres numa mansão decadente.

“Estão em paz com a vida e com a morte, com a juventude e a


idade. Elas são destemidas, porque sentem que não têm nada
para esconder. Ambas defendem o filme, que elas veem como
sua própria obra de arte”.
Albert Maysles

Classificação indicativa 16 anos

123
Le fond de l’air est rouge 180’ 1977
O fundo do ar é vermelho

diretor, montador Chris Marker

Sinopse “Durante os últimos dez anos, um certo número


de homens e de forças (por vezes mais instintivos que
organizados) tentaram jogar o seu próprio jogo, revertendo
as peças. Todos falharam. No entanto, sua existência tem
sido responsável pelas mais profundas transformações
políticas do nosso tempo. Este filme pretende mostrar
alguns passos dessa transformação.“ Chris Marker

“Não me vanglorio de ter feito um filme dialético. Mas tentei dar


ao espectador, através da montagem, o ‘seu’ ponto de vista, ou
seja, o seu poder.”
Chris Marker

Classificação indicativa 16 anos

124
O som ou tratado de harmonia 18’ 1984

diretor Arthur Omar


montador Ricardo Miranda

Sinopse Ensaio visual sobre a natureza do som.

“Sem ele (o som), a imagem é um dejeto abstrato, feito de


ritmos sem sentido.”
Arthur Omar

Classificação indicativa 16 anos

125
The Kiss 6’ 1985
O beijo

diretor, montador Raphael Montañez Ortiz

Sinopse Um beijo de sete segundos é reconstruído, por


desconstrução, num processo de atração e repulsa durante
seis minutos.

“Destruição não tem lugar na sociedade – ela pertence aos


nossos sonhos, ela pertence à arte.”
Raphael Montañez Ortiz

Classificação indicativa 16 anos

126
71 Fragmente einer Chronologie
des Zufalls 95’ 1994
71 fragmentos de uma cronologia do acaso

diretor Michael Haneke


montador Marie Homolkova

Sinopse Na noite de Natal de 1993, um estudante de 19


anos, sem motivo aparente, mata várias pessoas.

“Os meus filmes não seriam possíveis ou mesmo necessários se


o cinema atual fosse diferente. Todos os meus filmes são uma
reação ao cinema que conhecemos.”
Michael Haneke

Classificação indicativa 16 anos

127
Histoire(s) du cinéma 264’ 1988-1998
História(s) do cinema

diretor, montador Jean-Luc Godard

Sinopse Realizado entre 1988 e 1998, e dividido em


quatro partes, cada uma composta por dois episódios,
as História(s) são um ensaio pessoal e épico sobre o
Cinema feito com os meios do Cinema, a sua História e
interpretação, sua elegia e crítica.

“Acho que a melhor forma de olhar para estes programas é


entrar na imagem sem um único nome ou referência na cabeça.
Quanto menos você souber, melhor.”
Jean-Luc Godard

Classificação indicativa 16 anos

128
Gefängnisbilder 60’ 2000
Imagens da prisão

diretor Harun Farocki


montador Max Reimann

Sinopse O estabelecimento penal visto pelo olho da


câmera ao longo de 100 anos.

“Eu quero conseguir ver tudo por uma perspectiva diferente,


outra e outra vez, do mesmo modo que alguém refraseia uma
ideia depois de conversar com pessoas diferentes, na esperança
de que essa ideia possa crescer em profundidade e forma. Eu
não preciso, para isso, de máquinas rápidas, e raramente uso
qualquer efeito.”
Harun Farocki

Classificação indicativa 16 anos

129
Où gît votre sourire enfoui? 104’ 2001
Onde jaz o teu sorriso?

diretor Pedro Costa


montador Dominique Auvray, Patrícia Saramago

Sinopse Jean-Marie Straub e Danièle Huillet montam a


terceira versão do seu filme Sicilia!

“Mesmo no caso de Onde jaz o teu sorriso? é polêmico se ele


pode ser considerado documentário ou ficção. Eu acho que é
ficção e com o tempo será cada vez mais ficcional. Quase ciência
ficção.”
Pedro Costa

Classificação indicativa 12 anos

130
O signo do caos 80’ 2005

diretor Rogério Sganzerla


montador Sylvio Renoldi e Rogério Sganzerla

Sinopse Chega na alfândega do Rio de Janeiro uma carga


cinematográfica que precisa ser analisada pelo serviço de
censura do governo. O responsável pela análise é o Dr.
Amnésio, que impõe sua falta de ideias aos funcionários do
local, que se divertem mutilando um material considerado
realista demais.

“O novo cinema deverá ser imoral na forma para ganhar


coerência nas ideias, porque, diante desta realidade
insuportável, somos antiestéticos para sermos éticos.”
Rogério Sganzerla

Classificação indicativa 16 anos

131
O dedo 6’ 2005

diretor, montador Luís Miguel Correia

Sinopse Na ilha de montagem, a montadora apropria-se


do filme. O diretor, destituído do filme, quer um fragmento
da montadora.

“Por que o dedo mindinho? É o mais bonito e também o


mais exterior no sentido do corpo para fora: ele (diretor)
pode aproximar-se à volta, quase sem incomodá-la. Mas há
aqui também uma dimensão absurda: o dedo mindinho, em
montagem, nem sequer serve para trabalhar.”
Luís Miguel Correia

Classificação indicativa 16 anos

132
Kristall 14’ 2006
Cristal

diretor, montador Matthias Müller, Christoph Girardet


Sinopse “Cristal cria um melodrama dentro de ambientes
espelhados e claustrofóbicos. Como um espectador anônimo,
o espelho observa cenas de intimidade. Ele cria uma
imagem dentro da imagem, fornecendo um quadro para
os personagens. Ao mesmo tempo faz com que apareçam
desconexos e fragmentados. Este instrumento de autoconfiança
e apresentação narcisista torna-se um poderoso adversário,
aumentando a sensação de fragilidade, dúvida e perda.”
Matthias Müller, Christoph Girardet

“Ao trabalhar nesse filme, observamos que na maior parte das


vezes em que uma mulher surge diante de um espelho no cinema
mainstream o seu reflexo evidencia o fato de que está faltando
alguém. Nas narrativas convencionais, usualmente falta a figura
masculina inerente à protagonista feminina. A representação
das personagens masculinas que enfrentam um espelho é
completamente diferente: aí, alguém está enfrentando o seu eu
psicológico, o seu temor de desaparecimento, a sua mortalidade.”
Christoph Girardet
Classificação indicativa 16 anos

133
Film ist. a girl & a gun 93’ 2009
Filme é. uma garota e uma arma

diretor, montador Gustav Deutsch

Sinopse Fragmentos de filmes, da primeira metade da


história do cinema, foram pesquisados e reagrupados em
sequências de imagens e histórias para resignificar o seu
conteúdo original.

“Comecei o Projeto Film ist em 1995, quando o mundo


celebrava 100 anos de cinema, e eu pensei em desenvolver um
projeto que falasse do filme a partir dos seu próprio material,
sem mais explicações, subtítulos ou vozes, deixando o material
falar de si próprio.”
Gustav Deutsch

Classificação indicativa 16 anos

134
Conference Notes on Film 05 8’ 2011
Conferência

diretor, montador Norbert Pfaffenbichler

Sinopse Adolf Hitler representado por 65 atores.

“Quando jovem, eu era muito sério com relação à arte. Mas


quanto mais velho fico, maior é a dificuldade em levar alguma
coisa a sério. Acho que é possível ver isso no meu trabalho.”
Norbert Pfaffenbichler

Classificação indicativa 16 anos

135
137
138
Créditos e agradecimentos

Patrocínio
Caixa Econômica Federal
Governo Federal
Realização e Produção
JURUBEBA PRODUÇÕES
Idealização e Curadoria
EVA RANDOLPH
KAREN AKERMAN
MIGUEL SEABRA LOPES
Coordenação geral e executiva
ALESSANDRA CASTAÑEDA
Produção e Produção executiva
CAROLINE MOREIRA
Coordenação editorial e Produção de cópias
JOÃO CÂNDIDO ZACHARIAS
Assistência de produção
DANIEL ARAUJO
Assistência de produção de base
PATRICIA RACHEL FERREIRA
ROSÂNGELA REAL
Produção local – São Paulo
DANIELLE ALMEIDA
Assistência de Produção local – São Paulo
JULIANA BRITO
Monitoria – São Paulo
LUCIANA RIBEIRO
Produção local – Rio de Janeiro
AMANDA CASTRO
Monitoria - Rio de Janeiro
THIAGO TAVARES
Identidade visual
DOUGLAS SOARES
MIGUEL SEABRA LOPES

139
Projeto gráfico
DANIEL REAL
RICARDO PREMA
Programação site
LUCAS MARTINS
Revisão de textos
RACHEL ADES
Produção de textos
DANIEL REZENDE
DIANA VASCONCELLOS
EDUARDO ESCOREL
EDUARDO SERRANO
GIBA ASSIS BRASIL
IDÊ LACRETA
JOANA COLLIER
JORDANA BERG
KAREN HARLEY
LIVIA SERPA
MARÍLIA MORAES
PAULO SACRAMENTO
RICARDO MIRANDA
RICARDO PRETTI
Vinheta
ARTHUR FRAZÃO
Assessoria de imprensa – São Paulo
THIAGO MATTAR
Assessoria de imprensa – Rio de Janeiro
PEDRO DE LUNA
Fotografia – São Paulo
BELLA TOZINI
Fotografia – Rio de Janeiro
RODRIGO GOROSITO
Vídeo - Rio de Janeiro
LUKA MELERO
Tradução e Legendagem eletrônica
4 ESTAÇÕES

140
Agradecimentos
Aaron Gerow Project X Distribution
Allan Ribeiro Raphael Montañez Ortiz
Ana Alice de Moraes Raquel Rocha
André Dias Renato Cafuzo
André Naus Ricardo Pretti
Antje Ehmann Rodrigo Lima
Arthur Omar Rodrigo Maia
Ava Rocha Rosângela Sodré
Barbara Rangel Sergio Silva
CTAv Tatiana Altberg
Daniel Bish Tatiana Tabak
Daniel Paiva Thomas Sparfel
Daniel Queiroz Vania Debs
Fernanda Shcolnik
Fernando Coimbra
Francisco Algarín Navarro (Paco)
Fred Benevides
Gloria Vilches
Gonçalo Alegria
Gonzalo de Lucas
Gustavo Beck
Hernani Heffner
Ilana Feldman
Isabelle Piechaczyk
Ivana Bentes
Ives Rosenfeld
Juliana Rojas
Leandro Pardi
Luís Miguel Correia
Markus Nornes
Matthias Rajmann
Maya Da-Rin
Noshka van der Lely
Nuno Lisboa
Oliver Groom
Paule Maillet
Pedro Costa

141
Presidenta da Republica
Dilma Vana Rousseff

Ministro da Fazenda
Joaquim Levy

Presidenta da CAIXA
Miriam Belchior

apoio institucional

apoio

Este material foi composto com a família tipográfica Avenir.


Capa em papel Supremo LD 300g/m2 e miolo em Pólen Bold LD 70g/m2 .
Impresso na gráfica Stamppa
Setembro de 2015

142
143
Distribuição gratuita. Comercialização proibida.

144
produção
patrocínio

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