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Introdução À Análise Do Texto de Teatro - Ryngaert
Introdução À Análise Do Texto de Teatro - Ryngaert
Introdução à análise
1 . do teatro
I .. i
Jean-Pierre Ryngaert
~ Traduçã o
PAULO NEVES .
-Ó :
I Rev isã o d a tradu ção
MONICA STAHEL
r
f
i
Martins Fontes
J São Paulo 1996
Coleção
Eudinvr Fraga
./ .' Esta obra foi publicada o,:iginalmellle •
em franc ês com o títul o INTRODUCTION A L'ANALYSE DU THÉÂTRE,
por Bordas, Paris, em 1991
Copyright © Bordas, Paris, 1991
Copyr ight © Livraria Martins Font es Editora Ltda.,
São Paulo, 1995. para a presente edição
Índice
1~ edição
março de 1996
Tradução
Paulo Neves
Revisão da tradução
Monica Stahel
Revisão gráfica
Maria da Penha Far ia
Andr éaStahel M. da Silva
Produção gráfica Prefácio .. IX
Geraldo Alves
Paginação
Studio 3 Desen volvimento Editorial
o Q UE É UM TEXTO DE TEATRO?
Capa
Kat ia H. Terasaka Introdução . 3
. ","' ~:
111. O teatro pode dispensar o texto? : .. 27
1. O corpo contra '0 texto '..; .. 27
Todos OS direitos para o Brasil . 2" A nostalgia de um teatro popular ~ .. 28
reservados ir Livraria Martins Fontes Ed itora Lida. 3. O ator e o poeta ; : : . 30
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 Leituras recomendadas ; : ,
São .Pau/o SP Brasil Telefone 239·3677
31
.,;
I'
foi interpretada de outra maneira: fazer teatro de tudo é ção por catharsis) para que todas as glosas sejam permiti-
poder fazer teatro de nada, ou de pouca coisa. Quando a das. Autores e críticos apaixonam-se pelos debates teóri-
encenação se afirma todo-poderosa, a natureza do texto cos sempre que uma obra se afasta das normas fixadas.
perde em importância. Durante duas décadas, grosso mo- sobretudo quando elas permitema interpretação. Lem-
do dos anos 60 aos 80, o espetáculo prevaleceu sobre o bramo-nos da Querela do Cid e, por exemplo, da justifi-
texto; a teatralidade foi buscada fora da escrita teatral. cação de Racine no prefácio de Berenice.
Não havl"ã" mais necessidade de responder a esta, já quea
encenação declarava-se capaz de dissimular as carências Não é necessário que haja sangue e mortes numa
do texto e os diretores de transformar em espetáculo tragédia: basta que sua ação seja grandiosa, que seus ato-
qualquer escrita, fosse qual fosse sua origem. res sejam heróicos, que as paixões sejam excitadas, e que
Sem dúvida era saudável, já que a idéia de perfeição, tudo nela reflita essa tristeza majestosa que constitui todo
ou mesmo de normas referentes ao texto dramático, nada o prazer da tragédia. .
mais produzia de vivo. No entanto, o desejo ele definir de
um ponto de vista teórico uma espécie de princípio do Os grandes autores aparentemente respeitam os gê-
texto teatral retoma com a nostalgia dos textos "à antiga". neros, mas gostam de explorar seus limites, como se a ca-
Não se escapa à perspectiva histórica, as definiçôes da. vez reinventassem formas mais sutis ou jogassem com
do texto de teatro se estabelecendo em contextos estétí- a liberdade da escrita. Um dos prazeres do classicismo
cos diferentes, em função de novas idéias que fazemos consiste em ordenar O mundo nomeando-o e depois se
de sua prática. Aqui nos limitaremos a colocar alguns . interrogar se são bem fundamentadas as categorias adota-
grandes eixos de reflexão que continuam a alimentar os' das. Corneille escreve em seu Premier discours [Primeiro
debates, uma vez que, como foi dito, não daremos defini- discurso], referindo-se à tragédia e à comédia, e nisto per-
ção normativa do texto de teatro. feitamente de acordo com Aristóteles:
e , em menor medida, à pastoral, importada da Itália. Co- Não se poderia e xprim ir m ais ambi ção em matéria
mo o seu nome indica, a tragicomédia autoriza urna .esp é- de teatro, nem m anifest ar a que ponto os gêneros exis-
cie de "m is tura dos gêneros " a vant la lettre, ao reunir 'te n tes limita v am a in spira ção d o e scrit or em todos os
personagens nobres e personagens inferiores na mesma campos.
açã o ou em a ções paralelas. A pastoral desenvolve num Por esses poucos exem p los , vê-se que os debates so-
modo lírico motivos amoroso s, encontros e contendas de bre os gêneros ultrapassam de longe as discussões exclu-
p astoras e pastores demasiado ocupados em desenvolver sivamen te formais a qu e são por vezes ass imilad os. O que
seus e stados de alma amorosos para se preocuparem com se questiona não é ap e na s como o te atro fala , massobre-
seus carneiros. Na-realídade, no que se refere estritamen- rnUo --du-que se' permite fa la r, q ue ternas 'ábordà.Tto teatro
te à 'd ram atu rg ia , l1ãQ..é..certo..que..os autores clássicos íntimo ao grande teatro do mundo , d o , teatro de câmara
~c.~~<::~d~.rt:l a o s g~!1_~r?~\J.~<l .~IEpo~tânciatãogrande as- ao teatro histórico , as mudanças de "fo rmato", as o rige ns
sim , pelo menos do ponto de vi,sta._c1,i técnica .d a escrita . .', das personagens, a o rga n ização da narrati va e a natureza
Aliás, é difícil entender as razões da classificação de da escritacorrespondern a projetos dos au to res, inevitav e l-
determinadas obras. Por que, por exemplo, O Cid intírula- mente atravessados pela história e pelas Ideologtas. "
se tragicomédia e Dom juan comédia? A menos que seja , O te atro co nt e m porâneo, em sua maior parte, ignora
para proteger seu tema, em certos casos, atrás de um ró- os gêne ros. Os auto res escrevem "textos", raramente rotula-
tulo aparentemente menos ambicioso. dos co mo cô micos, trágicos o u dram át icos . Pode-se ve r nis-
A Idade Média não se preocupava com esses proble- so a lib ertação do teatro qu e entende falar de tudo livre-
mas e não distinguia os gê n eros. Mistérios, milagres, far- mente nas forma s que lhe convêm , herança do direito ao
sa s, sotias, moralidades conviviam lado a lado e não era "sub lim e e grotesco" advindo do sé culo XIX. Mas pode-se
raro que um drama religioso contivesse cenas de farsa . No. também detectar nisso uma perturba ção da escrita, uma in-
pulular do teatro em plena expansão, todos os temas e to- certeza quanto à sua natureza, como se o gênero teatral, ca-
das as personagens se cruzavam. Num mistério, o público da vez menos específico, doravante abrigasse todos os tex-
podia rir das facécias dos diabos do Inferno e comover-se tos passados pelo palco, foss em ou não a ele destinados.
alguns quadros depois com as palavras de Cristo.
A estética romântica do drama , tal como a concebe
V~ctor Hugo, manifesta uma ambição totalizante, em rea- 3. Imitar pessoas que fazem alguma coisa
ça o contra o mundo demasiado bem organizado dos clás-
sicos e contra o ostracismo que pesava sobre certos te- . Tudo começa com a noção de ação. Aristóteles ado-
mas. Tratava-se de colocar tudo no teatro, sem se limitar ta esse critério para distinguir a tragédia da epopéia e de-
à verdade histórica, ultrapassando-a e sublimando-a. Hu- fine que é possível imitar: "Seja contando (quer adotando
go escreve no prefácio de Maria Tudor em 1833: uma outra identidade [. 001, quer permanecendo a mesma'
.p esso a) seja imitando, imitam todos as pessoas que estão
°
Seria a mistura, no palco, de tudo que na vida está agindo e realizando alguma co isa. "
°
misturado ( 00.), seria riso, as lágrimas , o bem, o mal, ° Chama-se portanto drama a uma obra que "imita
° °
alto , baixo, a fatalidade, a providência, gênio, o aca- pessoas que fazem alguma coisa" e.epopéia à que imita por
°
so , a sociedade, mundo, a natureza, a vida; e por cima meiode uma "n arrativa".
de tudo isso sentiríamos pairar algo de grande! Essa diferença não é tão simples como parece, uma
vez que, se a maior parte dos textos de te atro prevêem
10 INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO TEA TRO O QUE É UM TEXTO DE TEA TRO? 11
nas didascálias, quando necessário, ' ações executadas pe- em cena, mas ela não decorre de uma necessidade evi-
las personagens presentemente em cena , narrativas se en- dente inscrita no texto. . ~: - /) :. . . ,~{'':' o,." b- \ ~. ,~,~;
carregam das ações passadas ou que devem se desenrolar A voga do teatro-narrativa dos anos 70 contribuiu pa-
fora do palco. Desde as origens, a noção de ação nem . ra diminuir a importância da adaptação específica de um
sempre é facilmente identificável, mesmo que se admita texto para o teatro. Com muita freqüência, trechos de ro-
de um .ponto de vista teórico que o teatro narra por meio mances eram diretamente encenados, sem que houvesse
da ação. Roland Barthes, ao analisar a estrutura da tragé- uma adaptação, quer dizer, sem que marcas escriturais par-
dia grega , sublinha essa dificuldade: ticulares fossem previstas. Foi assim que Vitez encenou Ca-
tberine, fragmento de Clocbes de Bâle [Sinos de Basiléia],
...Esta estrutura tem uma constante, ou seja, um sen- de Aragon, utilizado tal e qual, em volta de uma mesa onde
tido: a alternância regular do falado e dó cantado, da nar- decorria uma refeição. Interferências criavam-se entre o
rativa e do coment ário. Com efeito, talvez seja melhor di- texto do romance e a atividade dos atores que utilizavam
zer "narrativa" do que "ação "; na tragédia (pelo menos), o desenrolar da refeição para se entregarem à representação.
os episódios (nossos atos) estão longe de representar
Essa dissociação entre o "dize r" e o "fazer", e a des-
ações, ou seja, modificações imediatas de situa ções , na
a
. maioria das vezes ação é refratadaatrav és dos modos confiança para com qualquer redundância, confirma que
intermediários de exposição que , ao narrá-la, a distanciam; o -"faze r" é sentido como pertencente ao palco, e que é
relatos (de batalhas ou de assassinatos) C..) ou cenas de cada vez menos importante que o texto considere ou pro-
contestação verbal (...). Vemos aparecer aqui o princípio grame ações, sobretudo se estas não criam nenhuma fra-
da dialética formal que funda esse teatro: a fala exprime a tura entre o texto e a representação.
ação mas serve-lhe também de anteparo: "o que se pas- O critério da ação continua sendo pertinente de um
sa" tende sempre a "o que se passou ". ' ponto de vista teórico. Ele não permite distinguir com cla-
reza um texto de teatro de um outro texto nas práticas
(Le théatre grec, Histoire des spectacles)
modernas da escrita e a preeminência da ação cênica tor-
.na ultrapassada a eventual boa vontade de um autor preo-
Veremos o interesse e a ambigüidade desse duplo cupado em prever,' antes da representação, as ações de
estatuto da fala a propósito da enunciação no teatro. Mes- suas personagens. p-Q<:Ie-se. dizer que a maneira como seu
mo se distinguimos o mensageiro-personagem que age texto será "atuado" 'deixo u de lhe pertencer, eque.trnes-
ao narrar, transmitindo sua mensagem, do recitante sem
estatutode personagem que se limita a dizer, sem "agir"
.mo que escreva diretamente para o teatro; oqüeseespe-
ra dele'-ê a'fites uÍTI "texto", sem outras especifi~?ções: ' .
no interior de uma ficção, a fronteira entre os dois é às
vezes frág il.
A encenação moderna tem cada vez mais assumido
o que pertence à ordem do "agir", fazendo com que a
4. Origens de 'alas diversificadas e nomeadas
personagem execute várias tarefas na representação, mes- Entre as origens reais ou míticas do teatro consta a '
mo que estas não tenham ligação direta com o que é dito. gue se atribui a Téspis, que introduziu, ? ditir~m~o na
Não é raro vermos espetáculos nos quais uma persona- Atica por v.olta de 550 a.C. Esse poeta lírico ter ía Sido o
gem se entrega a um longo monólogo ao mesmo tempo criador da tragédia ao acrescentar um primeiro ator à an-
que executa trabalhos de limpeza ou de cozinha, sem tiga estrutura exclusivamente coral, "inventando", portan-
relação visível com o discurso. É certo que há uma "ação" to , o diálogo entre o ator e o coro. .
12 INTRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO TEA mo O QUE É UM TEXTO DE TEATRO? 13
Os hi storiadores situam as origens do teatro medie- _ 0O diálogo é sobretudo menos considerado como in-
val francês na inclusão de, trop as, textos que se inseriam dispensável ao texto dramát ico desde que B;echt teorizou
na liturgia desenvolvendo a passagem primitiva de acor- ás" form as ép icas da escrita nas quais as personagens e os
d o com uma melodia própria. O mais a ntigo seria de mea- ato res se di rigem regularmente ao p úblico sob a forma de
dos d o século X e teria se juntado ao introito da missa da "songs", de sinais, de avisos, de narrações. Brecht queria
Páscoa . Ao ver as santas mulheres se aproximarem do se- clarificar a oposição do dramático e do épico pela intro-
pulcro d e Cristo , o anj o dirigia-se a elas: "Q u e procu- du ção de uma linha divi sóri a. Na forma épic a, é comu m
rais?". Elas re spondiam : "Jesus de Naz aré"; o anjo retor- tomar diretamente a sala p or testemunha sem pa ssar pelo
q uia : "Ele não está aqui, ressuscitou como havia profeti- simulac ro de um diálogo , se m fingir igno rar a p resença
za d o ." Há um cons e ns o em ver nesse tropo dialogado o do público .
sinal de uma primeira dramatização. Naquilo que poderíamos designar por "d ramático pu-
Esses dois exemplos são confirmados pela idéia de ' ro ", a presença do público é esquecida e negada, tudo o
q ue o tea tro é a ntes de tudo diálogo, ou seja, de que nele que é dito e representado diz respeito apenas 'às persona-
a palavra do autor é mascaradaepartílhada entre vários
gens e só a elas, sem a m enor preocupação de uma infor-
emissores . Essas pal avras e m ação assumidas p ela s perso-
mação mínima ao público. Essa forma n ão é concebível
nagens co nstitue m o essencial da ficção .
tal e qual no teatro, ma s podemos su rp ree nder exemplos
Vere mos; a propósito da enunciaçã o , que d e fato é
q uase se mp re ass im , e que o teatro as sume a falsa apa- del a na vida. Assim , uma discussão violen ta que num res-
rência de conversação. No entanto, o diálogo não é um taurante o p u n ha duas mulheres e duas g arçonetes nada
crité rio abso lu to do caráter "dramático" de um texto. Em nos deixava ignorar do diálogo, mas este não nos fornecia
toda a história do teatro, os autores utilizam o monólogo nenhuma espécie de informação sobre as origens do con-
com abundância , e , examinando algumas tragédias "d õ flito, os interesses em jogo e as responsabilidades de cada
Renascimento ou determinadas obras clássicas, podemos um. Para as protagonistas, estávamos de fato ausentes.
no s p erguntar, diante da extensão das falas, s~ é possível A forma épica pura escolhe como interlocutor único
ain d a falar de intercâ mbio verbal entre personagens cuj as e pri vilegiado o espectador. Os recitais, os espetáculos de
"ré p licas" chegam a quase uma centena de ve rsos, monologuistas como Raymond Devos ou Gu y Bedos, ten-
- Na realidade, todo o jogo do diálogo é afetado peili. dem para esse modelo . No entanto, eles introduzem o
presença de um interlocutor considerável, o público, ao' dramático por efeitos de desdobramento daquele que fala
qual é muito tentador atribuir um lugar fundamental de e que acaba, assim, por nos tomar por testemunhas de
parceiro mudo para quem, em última instância e como um diálogo, mesmo que tenha começado por nos relatar .
ve re m os a propósito da dupla enunciação, todos os dis- suas circunstâncias; ou então o ator escolhe como parcei-
cu rsos se dirigem. ro um espectador, permanecendo os demais como espec-
D iversas fo rmas te atrais a n tigas comprovam que , tadores de um falso di álogo totalmente conduzido por
com freqüência, os autores deixam de dirigir-se ao públi- um protagonista.
co indiretamente, privilegiando-o como interlocutor dire- Na maior parte dos casos, O teatro oscila, e m pro-
to . É o caso de tOâas-ãs 'TormásmÓnotogaâas""dildade porções variáveis, entre o dramático e o épico, conforme
Média e das tradições populares das p antomimas, de to- o estatuto do espectador. Ele jamais pode abster-se total-
d as as es critas que utilizam um recitador, dos usos diver- mente de narrar, mesmo por intermédio do diálogo.
so s dos apartes e outras confidências insinuadas mais ou As formas de escrita p ós-brechtianas abalam a antiga
menos discretamente para o público. .
fj
certeza que fazia do diálogo uma das chaves do teatro.
.. . !
14 IfvTROD UÇÃO À ANÁLISE DO TEA mo O Q UE É UM TEXTO DE TEA mo? 15
Mesmo os auto res cuja ideologia nada tem a ver com a de 5. Agir sobre o espectador
Brecht devem-lhe uma herança. Ao impor radicalmente a
presença do espectador, dirigindo-se a ele' sem comple- Os grandes períodos da}listélri.? do te atro .d isti ng u i-
rarn-se p or um projeto ídeológíco defíriido pelo s au to re s
xos, Brecht reabria a porta a todos aqueles que eram ten-
tad os pelo te atro sem quererem se submeter completa- o u pelo s teóricos. J?;§?_~ J?Eoj ~to tem como fonte .a escrita ,
mente à e scrita dialogada . .e m bo ra a seguir o paJco..sejase u retransmissor, Aristóteles
A escrita moderna se interessa pelos limites. Do lado insiste nesse ponto a propósito da catha rsis egeralm ente
cio épico, o s autores acolheram ou redescobriram a arte traduzida por "p u rgação das p a ixões") q ue nasce do te-
do conta d o r, as amigas tradições o rais que faziam do a u - mor e d a piedade:
tor um recitador, as influências orientais. Do lado do dra-
o temor e a piedade p o d em , é claro, nascer do espe-
mático, o s autores exploraram diálogos que mantinham o táculo, mas pod em também nascer da própria orga nização
espectador em situ ação d e su binfo rm a ção, fingindo igno- dos fatos consumados , o qu e é preferível e de um melhor
rar s ua presença, d eixando-lhe a responsabil id ade de poet a. Com efeito , é preciso o rganizar a história de tal
rei nventar seu estatuto a o lhe fornecer uma parte de in - mod o que , mesm o sem os ver , aquele que pretende nar-
venção no imaginário. rar os atos que se realizam estremeça e seja tomado de
Ain da a respeito dos limites, a e scrita inte rroga a an- piedade diante dos aco ntecimentos que sobrevêm C,.).
tiga rotina daquele que fala e daquele que escuta, perver- Produzir esse efeito através do espet áculo não perten ce
tendo os esquemas tradicionais da enunciaç ão. inteiramente à arte e requer apenas meios de encenação.
Acrescentemos a isso as condições econômicas que
fizeram os textos para um só ator se multiplicarem nos úl- Aristóteles, que pormenoriza a seguir o' que pode
timos anos, a tal ponto que, em termos de criação con- ser narrado para "a g ra d a r", sublinha os acontecimentos
temporânea, quase se trata de uma estética, de um "te atro do enredo e sua organização tal como é premeditada pe-
a uma voz" no qual uma personagem não cessa de confiar- lo poeta na maneira de agir sobre o espectador. Os meios
se a todos os que querem ouvi-Ia. sIe encenação em questão traduzem a q u i literalmente
É difícil , portanto, fazer do diálogo o critério absolu- uma "co regia" , o u se ja, as despesas que o corego 'assum iu
to da escrita teatral. Isso é verdade em teoria, mas é im- p ara montar a peça .
possível excluir do campo do teatro um texto não dialo- Em termos modernos, a dramaturgia' do texto inclui
gado. Nesse domínio, como no d a ação, certos autores as técnicas da escrita e a qu ilo que é contado, assim como
tal vez tenham deixado ao diretor, mesmo que inconscien- o efeito esperado sobre o espectador. .
temente, a decisão de distribuir a palavra entre os prota- A identificação, indispensável na catarse, enraíza-se
gonistas ou de dirigi-la ao espectador, pensando que a na escrita e principia com a credibilidade da obra teatral.
cena, em última instância, sempre daria um jeito de fazer Nenhuma imperfeição da "imi ta ção" deveria impedir o es-
o texto falar a alguém. É uma responsabilidade exorbitan- pectador de acreditar no que é representado diante dele.
te, como veremos, a de decidir definitivamente "q u e m fa- A doutrina clássica refere-se a Aristóteles. É necessá-
la a quem e por que" , num sistema de escrita no qual to- rio 'ifrlstru~r <:. cJivertir" e convencer o 'espectador pela imi-
iaç ão da "natureza", e para isso respeitar as regras da ve -
da palavra está sempre em busca de destinatário.
"ro ss ím ílh a n ça e da conveniência.
Um célebre contra-exemplo basta para confirmar de
que modo a relaçã? com o espectador já é visada na es-
16 INTROD UÇÃO Ã ANÁLISE DO TEATRO O QUE É UM TEXTO DE TEA mor 17
crita . Ao desenvolver a teoria do teatro épico, Brecht con- rica . Mesmo assim, os critérios que abordamos permane-
cede uni amplo lugar à transformação das técnicas cêni- cem úteis para avaliar as evoluções dos textos e situá-los
cas e ao trabalho do ator, em e special p ara obter o efeito numa perspectiva histórica. O teatro atual aceita todos os
de d istanciamento. É difícil se pa rar com rigor o qu e é d a text os, qualquer que seja sua proveniência , e deixa ao pal-
o rd e m d o texto e o que é do d omínio cênico no pro jet o co a responsabilidade de re velar sua te atralidade e , na
brechtiano . No entanto, nas grandes opo si ções entre a maior parte do tempo, ao espectador a tarefa de encontrar
forma dramática e a forma épica do te atro, algum as d i- aí seu alimento. A escrita teatral ganhou em liberdade e
zem respeito diretamente à escrita. em flexibilidade o que ela perde, por vezes, em identidade.
Assim, a forma é p ica é "n arraç ão", procede p or "ar-
gumeritação" m ais d o que por "s uges tã o". Na conduçã o
d a narrativa, Brecht procura "o. i n te ress e ap aix o n ado pel o
desenrolar" mais do que pelo "d e sfecho ". Çada c e na é
trabalhada isoladamente, o efeito de montagem, o "d e -
senrolar sinuoso " do enredo que se processa por "saltos"
. têm por o b je to co lo car o e spectador p erante a lgo e fazê-
lo reagir, mais do que deixá -lo à mercê dos sentim e ntos.
A dramaturgia brechtiana busca a m aior coe rê nci a
p o ssível entre o texto e sua p assagem ao palco , de tal
maneira que a rela ção com o es p ectador, que é o objetivo
essencial, jamais se perca d e vis ta .
Em contrapartida, a escrita teatral co n te m p orâ nea ex-
prime uma desconfiança de todo e qualquer projeto didá-
tico, d e toda e qualquer intenção declarada de ação sobre
o espectador. A tendência para as obras "abertas", ·a refle-
xão sobre a liberdade do espectador e sobre seu processo
de recepção tornam os autores avaros de declarações fir-
mes sobre suas intenções. Praticamente nã o há mais es co-
lá s";'-i'íem mesmo "p an elas", e raros são os m anifesto s.
As ideologias se exprimem menos e poucas pessoas
de teatro, em nossos dias, pensam no público como um
todo homogêneo. Aliás, de preferência fal a-se de públi-
cos, no plural. .De resto, não existem m ais vastas audiên-
cias comparáveis às que o teatro grego e mesmo os m is-
térios medievais reuniam. A escrita está demasiado sub-
metida às vicissitudes da produção para que, de uma ma-
neira geral , o auto r intente escrever para um público de-
terminad o e exercer sobre ele uma açã o qualquer.
Portanto, parece impossível hoje definir característi-
cas absolu tas d a escrita teatral , pelo menos d e maneira te ó- .
11. Q texto pode dispensar
a representação?
9 0S diversos de e xperimentar o texto a ser interpretado. j ab ês, apesar de não serem considerados dramaturgos,
A mai or difi culdade ela encenação está no aprendizado foram recentemente alvo de belos espetáculos encenados
da s escolhas e sobretudo das renúncias. por P. A. Villemaine.
" Ne nh um a encenação, por mais bem-sucedida que seja , O palco deixou de impor normas à escrita ; pelo con-
esgota o texto , e não é raro encontrarmos atores que prefe- trário, como veremos, qualquer escrita pod e tornar-se
rem os ensaios à representação, como se esta última impli- pretexto de representação, a mais resistente ou imprevista
casse a perda ele toda uma gama de possíveis. Um diretor de não se n d o a menos procurada.
te atro abandona direções na medida em que as escolhe.
Precisa renunciar a pistas encontradas durante o trabalho,
fecha r cante iros de obras por muito tempo abertos, renunciar 4. O autor e a edição
a filõe s que o levam para muito longe de suas bases.
É possível conhecer um texto teatral não a p e nas pe-
la leítura., epor. isso sua edição e difusão (quando é edita-
3. O teatro numa poltrona do) nem sempre seguem os circuitos comuns do livro.
Pela mesma razão, e talvez também por causa de sua his-
Por essa fórmula pro vocadora designamos um teatro t ória-o estatuto do autor dramático ainda hoje continua
qu e não se dest inaria à representação mas à leitura, e que send o especial.
de ant emão se resigna a ser privado de qualquer prolon- Durante muito tempo, a au sência de impress ão e a
gamento no palco. tradição oral do texto fazem do autor uma entidade cole-
A expressão, que vem do teatro de Musset CSpectacle tiva e indeterminada. Não sabemos de fonte segura quem
dans u n fauteuil [Espetáculo numa poltrona], de 1832), são os autores dos mistérios medievais nem de muitas das
aplica-se historicamente a obras românticas e, por exten- farsas que chegaram até nós . Revistas sérias até se interro-
são, a todo teatro considerado "írrepresentável", ou seja, gam periodicamente se Shakespeare era mesmo Shakes-
cuja escrita não corresponde às normas de representação peare, ou se Moliêre não teria subcontratado Corneille.
de sua época. Uma obra longa , complexa, com muitas Para além d as .polêmicas que não nos interessam, há nís- .
personagens, co ns ta nte s mudanças de cenário e escrita so um sintoma de crise de identidade do dramaturgo,
num "estilo poético" é assim remetida à leitura e como personagem tanto mais equívoca quando desenvolve, co-
que proibida de representação. ino Moli êre, várias aptidões: as de autor, de at or e de. di-
'- ., , Páradoxalmente, obras em ruptura com O códígo cê- retor de cornparihia.iTeria ele tempo, perguntam hipocri-
nico de"seu tempo, nunca representadas, ou representa- tarnente, para escrever obras-primas quando era obrigado
'd as de modo insatisfatório, são muitas vezes aquelas cujas a representar com regularidade e a garantir a subsistência
encenações são hoje. as mais interessantes. Como se esses de sua trupe? Em outras palavras, podia ocupar-se seria-
"monstros" que resistiam ao palco ou o desprezavam fos- mente do texto sendo ao mesmo tempo responsável pela
sem o objeto de uma espécie de desafio. Lorenzaccio de representação?
Musset , Le soulier de satin [A sapatilha de cetim) de Clau- d Um outro estatuto da época é o de "poeta assalaria-
l
del , obras profusas e complexas, são hoje objeto de ence- do", como foi por exemplo o caso de Jean Rotrou nos
nações apaixonantes -ou de redescobertas. anos 1630 no Hôtel de Bourgogne. Nesse caso, o autor
A noção de teatro "p a ra ler" em razão de impossibili- trabalha em grande parte por encomenda e com exclusi-
dade cênica não mais existe. Maurice Blanchot, Edrnond vidade p~ra uma companhia que paga por peça . Escreve
I
24 /lVTROD l 'çÀ O À ANÁLISE DO TEA TRO O QUE É U\1. TEXTO DE TEATRO? 25
diretamente para o palco e muitas vezes às pressas, o que do circuito da edição, mas ela o é ainda menos por não
ihe garante O fato de ser .rep res e n tado , ma s não lhe dá mui- terem sido representados.
ta autoridade sobre a duração e a pertinência das represen- As relações complicadas entre o texto e o palco se
tações nem qualquer p oder sobre ;1 edição de sua obra . fazem sentir também no domínio da edição . Será preciso
Os textos só eram impressos depois de a companhia lembrar que o teatro é uma prática social?
ter obtido ganhos co m as primeiras sé ries de representa-
ções, às vezes vários anos mais tarde. O diretor da com-
panhia protelava ao m áximo o prazo, pois então perdia o 5. O texto como potencial de representação'
estatuto da exclusividade e a peça podia ser representada
por 'quem estivesse interessado. Um bom texto de teatro é um formidável potencial
A obra não dispunha portant o de muitas o po rtunid a- de representação . Esse potencial existe independente-
des para ser revelada independentemente de uma repre- mente"da representação e antes dela . Portanto, esta não
sentação. O manuscrito era transmitido diretamente aos vem completar o que estava incompleto, tornar inteligível
atores pelo autor. Compreende-se melhor por que flores- o que não o era. Trata-se antes de lima operação de outra
ceram na é p oca as ed iç ões piratas, impressas no estran- ordem, de um salto radical numa dimensão artística dife-
geiro e às vezes com e rros , estabelecidas a partir do texto rente, que por vezes ilumina o texto com uma nova luz,
ouvido na representa ção . Ao menos as peças publicadas por vezes o amputa ou o encerra cruelmente. Uma ence-
tinham leitores, as pessoas cu ltas da época que se regozi- nação ruim de um texto contemporâneo prejudica-o por
javam por ter acesso ao texto no cas o de n ão terem podi- longo tempo, senão para sempre, por ele não gozar da
do ver o es petáculo. reputação de obra-prima que o protegeria e por ser difícil
Esse desvio pela história le vanta alg u ns problemas deslindar as responsabilidades de um fracasso.
ainda atuais . Ainda se distingue o ato de escrever para ó Fixemo-nos em dois modos de abordagem do texto,
palco do a to de escrev e r simplesmente, como se o autor nenhum deles totalmente satisfatório. A representação
dramático tivesse um estatuto diferente . A edição do texto imediata do texto no espaço revela dimensões que esca-
teatral continua sendo um circuito especial, com divulga- pam à abordagem analítica, mais sistemática e menos in-
ção irregular, apesar dos recentes progressos e dos esfor- ventiva . Esta, em contrapartida, revela redes de sentidos e
ços dos autores e de alguns editores. particularidades que não serão todas ativadas pela repre-
- Por vezes, textos contemporâneos não eram edita- seritação, seja porque esta não as escolheu, seja porque
dos por já terem sido representados, e porque a prática não teve meios de percebê-las, pois às vezes o texto tam-
francesa os considera "gasto s" por muito tempo no mer- bém foge ao palco. Essas duas abordagens se completam
cado profissional. A prática contrária consiste hoje em ou se contradizem, e não obedecem forçosamente a uma
editar sobretudo os textos por ocasião de sua representa- ordem cronológica exemplar.
ção, o que garante um mínimo de vendas. Quanto à im- Ler o texto de teatro é uma operação que se basta a
prensa, ela se interessa pouco pela edição teatral e reser- si mesma, fora de qualquer representação efetiva, estando
va as resenhas para os espetáculos. entendido que ela' não se realiza independentemente da
A situação para os autores de teatro é muitas vez.es construção de um palco imaginário e da ativação de pro-
paradoxal , especialmente para aqueles que ainda não fo- cessos mentais como em qualquer prática de leitura, mas
ram representados porque sua obra não é conhecida . Eles aqui ordenados num movimento que apreende o texto "a
gostariam, é óbvio, que sua obra fosse divulgada através caminho" do palco.
Ill. O teatro pode dispensar
o texto?
1. o corpocontra o texto
Qs anos 60 assistiram ao regresso de uma utopia , a
da preeminência de uma teatral ídade ancorada no corpo
e na imaginação do ator. O "teatro de texto" é então sus-
peito de propagar uma cultura morta e inerte, na linha di-
reta de valores denominados ora literários, ora burgueses.
° questionamento radical do teatro de repertório e dos
"clássicos" que constituem seu esqueleto tornou suspeito,
ent ão , qualquer texto de teatro, mesmo contemporâneo,
a tal ponto que os autores vivos conheceram ainda maio-
res ' dificuldades para ter su as peças representadas nesse
período. São o corpo e suas forças secretas e profundas
que devem governar o teatro, pensava-se. O_L.ipi11g]7;Jea-
tre, nos Estados Unidos e depois na Europa, Grotowski na
Polônia , e na este ira deles muitos dos partidários da cria -
ção coletiva, entregam-se à vertigem da improvisação,
apelando por vezes a Antonín Artaud. Este ~ã sé:inhado
com uma ressacralização do teatrô, com uma eliminação
do texto em favor do gesto e do movimento, com um
contato direto entre o criador demiurgo e o palco:
proi b i ção em 1719 dos teatros de feira . A partir desses além das palavras" mais poderoso que as palavras, ao se
exemplos, compreende-se melhor como o teatro sem texto enraizar no indizível, readqu íre vigor sempre que o teatro
às vezes foi considerado reduto do teatro vivole, em conse- perde o fôlego e se empoeira , sempre que o texto se limi-
qüência, da suspeita que continua pesando sobre o texto. ta a ser o refúgio de uma representação mecânica que
perpetua rituais esvaziados de sentido, ou o álib i de uma
cultura que deixou de ser indispensável.
3. O ator e o poeta
:L Tentativa de descrição
cursos, lidamos, precisamente, com a organização da fic- próprio uma dinâmica, um embrião de narrativa (A mãe
ção. Não é fácil permanecer à superfície, tanto mais que culpada: Arlequim, seruidor de dois amos), o .esboço de
as relações entre as diferentes estruturas, entre enredo, uma moral ou o anúncio de um desfecho: As falsas confi-
intriga e discurso são difíceis de deslindar. O interesse fu- dências, A dupla inconstância. Por vezes o título designa
turo está na confrontação dos diferentes estudos. ironicamente um perfeito desconhecido como um herói
Onde nos deter naquilo que foi definido como um trágico: Tu rcaret, O senhor de Pourceaugnac, apelando
sobrevôo, quando nos sentimos já tentados a lhe dar um assim à cultura teatral do espectador. Uma tradição dura-
sentido? Interessemo-nos de início unicamente pelos tra- doura se estabeleceu, e encontramos como títulos, no sé-
ços mais exteriores e mais evidentes do texto, cujo cresci- culo XIX, tanto Os caprichos de Mariana como Ruy Blas,
mento Michel Vinaver descreveu nos seguintes termos: tanto Não se brinca com o amor como Os burgraves.
O título anuncia um projeto de acordo com a tradi-
No início de uma peça não há qualquer sentido. ção cultural ou, pelo contrário, manifesta uma ruptura:
Mas, uma vez começada a escrita da peça, há um impul- em A cantora careca, como se sabe, não há nenhuma
so para o sentido, para a criação de situações, de temas, cantora, calva ou cabeluda, o que permite a Ionesco des-
de personagens. A partir de um núcleo indeterminado re- montar os hábitos e expectativas. O título também pode,
sultante da explosão inicial, a peça não cessa de se cons- numa facécia inicial, manifestar de saída uma intenção de
truir. Ao final, se bem-sucedida, ela se apresenta como
bom humor: Ocupa-te de Arnélia, Limpa-se bebê, Um pija-
um objeto tão rigorosamete construído como se tivesse
havido um plano prévio. ma para dois. Pode ainda jogar com vários registros e
deixar-nos indecisos: Fim de jogo remete-nos literalmente
(Écrits sur le théâtre) , para o final de um jogo e metaforicamente para a morte.
O caso da rua de Lourcine poderia designar uma intriga
policial ou um acontecimento devasso. Mas Esperando
2. Organização, estruturação Godot revela-se, depois de conhecido, de uma tremenda
objetividade ,descritiva.
O título e o gênero: rótulos verdadeiros e falsos anúncios Os contemporâneos exploram às vezes a extensão
do título (As pessoas insensatas estão em via de extinção)
Dar um título a uma peça é, para o autor, uma forma ou a sua ambigüidade fonética (Nina c'est autre chose, ou
de anunciar ou de confundir seu sentido. Para o leitor, o Nina é outra coisa'), Demonstram uma aparente objetivi-
título é uma primeira referência. Muitas vezes, a peça tem dade (Combate de negro e cães) ou apostam na metáfora
o nome de uma heroína ou de um herói, de uma perso- (A solidão nos campos de algodão). O respeito pelos gê-
nagem principal. É o caso da maior parte das tragédias neros impunha uma espécie de tradição dos títulos. Hoje
antigas ou clássicas, francesas ou estrangeiras: Hamlet, é mais difícil adivinhar o que a denominação oculta, de
Júlio Cesar, Andrômaca, Berenice, Polieuto. Nada mais é tal maneira as paródias e as piscadelas, que apelam à cul-
dito e é como se isso bastasse. O laconismo do título cor- tura do espectador, modificaram seu uso.
responde à celebridade ou à grandeza do herói. Na prática, o título nos interessa como "primeiro si-
Os títulos das comédias são um pouco mais elo- nal" de uma obra, intenção de obedecer ou não às tradi-
qüentes. Quando se referem a um "tipo" (O avarento) ou
a uma condição social, adjetivos podem esclarecê-los: O • Foneticamente, pode ser confurkÚdo com Nina sai! autre cbose,
burguês fidalgo, O médico força. O título possui em si
ã
(Nina sabe outra coisa).
38 INTRODUÇÃ o À ANÃLISE DO TEATRO ABORDAGENS METÓDICAS 39
çõ es históricas , jogo inicial com um conteúdo a ser reve- A prática moderna hesita entre o s costumes tradicio-
lado do qual ele é a vitrine ou o anúncio, o chamariz ou nais e a instauração de um vocabulário inspirado n o cine-
o selo de qu alidade". As informações que eie fornece , por ma ou lança mão de tudo o que há . Os autores falam de
mais frágeis que sejam, merecem ser consideradas. seqüências, fragmentos, movimentos (em referência a
O mesmo se passa com o gênero da obra, cuja indi- uma construção musical) , pedaços , jornadas , partes ; o u
ca çã o segue-se em geral ao título. Vimos que se trata hi s- então as divisões eventuais não sã o nomeadas, as "ce nas"
toricamente de uma indicaçã o ambígua , já que abrange sucedendo-se , às ve zes numeradas e com títulos , como
indiferentemente uma forma de ficção, uma técnica de na prática brechtiana, outras vezes sem números. Para Vi-
escrita ou o efeito esperado sobre o espectador. Portanto naver, Iphig értie Hôtel é uma peça em três jornadas; La
não podemos esperar muito dela, tanto mais que pratic á- Demande d'emploi [O pedido de emprego), uma peça em
mente desapareceu. No máximo, quando reaparece a in- trinta fragmentos , devidamente numerado s ; Nin a, c 'est
dica ção d o g ê n e ro , podemos deduzir que é urn a forma alare chose, uma peça em doze fragmentos numerados e
que o auto r tem de colocar-se sob uma bandeira cultural com títulos (A abertura do pacote de tâmaras , O assad o
o u de manifestar com ironia que n ão se deixou enganar de vitela com espinafres, etc.) . Em Tête d 'or [Cabeça d e
pela sua rela ção com a tradição . Um autor que se preocu- ourol, Claudel distingue três partes; Jean Genet, em Les
pa e m a nu ncia r bufonaria no início de se u texto deseja Nêg res [Os negros), não indica qualquer int errupção; Ha-
evitar qualquer equívoco ou , pelo contrário, provoca-o. rold Pinter, em O amante, não nomeia as partes e só in -
Lembremo-nos de que O jardim das cerejeiras intitula-se troduz como corte um sinal tipográfico e a referência c ê-
com é d ia, Tio Vânia tem como subtítulo "ce n as da vida no -n íc a a um "escuro". Quase clássico, Beckett separa Espe-
cam p o" , e Um pedido d e casamento, "b rinca d e iras em um ' rando Godot em dois 'atos.
ato". É pouco, no entanto são pistas iniciais que entram Esses diferentes sistemas de organização classificam-
em nossa rela ção com o texto. se quer segundo uma estética da continuidade (o desen-
rolar é previsto sem nenhum corte) , quer segundo um
princípio de descontinuidade (cortes freqüentes, por vezes
As grandes partes sistemáticos). Alguns desses cortes pertencem mais à Or-
dem do texto, como por exemplo os números e os títulos
A maioria dos textos são organizados em diferentes quando não são feitos para serem anunciados pelos ato-
partes. A maneira como estas são designadas remete já a res e utilizados em cena. Outras vezes remetem à prática
uma estética . Na prática tradicional fala-se em atos, ritual- cênica, como por exemplo a indicação de um escuro, em-
mente cinco para a tragédia e a tragicomédia, três para a bora essas marcações de interrupção tenham um estatuto
comédia, mas há exceções. Os atos são, por sua vez,divi- duplo e sejam também destinadas ao leitor.
didos em cenas, de acordo com as entradas e saídas das O que podemos esperar'desse levantamento? As es-
, personagens. A partir do século XVIII os dramaturgos fa- colhas dos autores indicam que eles se colocam implicita-
lam às vezes de quadros, referindo-se assim a uma con- mente numa tendência da escrita, que organizam seu uni-
cepção pictórica da cena , a uma unidade obtida pela cria- verso mental e o estruturam em função de ritmos que
ção de uma atmosfera diferente a cada vez. lhes são próprios, que se referem a outras artes (como à
pintura ou à música) no seu modo de pensar o texto por
• Em franc ês , appellation contrôlée. Designação atribuída aos vinhos quadros, fragmentos ou seqüências, que sua escrita já é
q ue ind ica sua origem e ca racterísticas de fab ricação , rígídarnente controlada s. determinada em funç ão do palco ou que a ignoram deli- '
40 INTRODUÇà o à ANÁLISE DO TEA mo ABORDAGENS METÓDICAS 41
beradamente. A decupagem é uma maneira de apreender uma outra que sai), ligação pelo ruído (a personagem é
o real, organizando-o. Essas escolhas também nos interes- atraída por um ruído), ligação pelo tempo (quando não
sam, enquanto marcadores temporais, para o nosso pró- 'há outra justificação a não ser uma necessidade horária).
ximo estudo sobre a organização da duração na ficção e Exemplos podem ser vistos no livro de Jacques Scherer,
na representação. La dramaturgie classique en France.
Sem precisarmos entrar em pormenores, observe-
mos os blocos textuais e sua organização. A decupagem
Encadeamentos e rupturas, vazios e cheios do texto raramente é independente de uma concepção do
tempo e do espaço. As regras de unidade de tempo e
Examinemos agora como essas partes se seguem, se unidade de lugar dependem, assim como a continuidade
encadeiam ou se chocam, se distinguimos princípios uni- da ação, da verossimilhança.
ficadores ou rupturas significativas no tecido textual. Reservando para mais tarde (capítulos 2 e 3) um exa-
me detalhado, interessemo-nos sobretudo pelos vazios,
pelos momentos em que o texto se detém, e observemos
A continuidade linear da ação se são providos de marcadores de tempo ou de espaço,
de informações precisas sobre o modo de encadeamento.
A continuidade de ação era uma preocupação tão No. Dom juan de Moliere, cada novo ato indica um
grande entre os clássicos, que o abade d'Aubignac escre- salto no tempo e no espaço: o Ato II abre-se com uma ce-
via em La pratique du tbéâtre (1657} na entre Carlota e Pierrô; o Ato III apresenta Dom Juan
"em trajes de campo" e Esganarelo "como médico"; o Ato
É por essa razão (a não-interrupção da ação) que os IV só indica as presenças de Dom juan e Esganarelo e o
excelentes Dramaturgos sempre se acostumaram a fazer Ato V começa por uma mensagem de Dom Luís a seu fi-
os Atores dizerem onde vão, qual seu destino ao saírem lho. Nada de muito surpreendente, a não ser algumas
do Palco, a fim de que se saiba que não ficarão ociosos e elipses imediatamente comentadas (de que modo o se-
não deixarão de representar suas personagens mesmo nhor e o criado encontraram seus. trajes), e sobretudo a
que os percamos de vista. entrada dos camponeses no Ato lI, que denota uma mu-
dança de ponto de vista e o aparecimento de um segun-
Isso significa que não só a ação, em nome da veros- do fio da história. O que d'Aubignac admite, com a con-
similhança, deve ser contínua no palco, como o especta- dição de que essas histórias secundárias estejam "de tal
dor deve encontrar no texto elementos suficientes para modo incorporadas ao tema principal que não se possam
imaginar como ela prossegue quando a personagem não separar sem destruir toda a obra".
está mais em cena. A decupagem em atos e em cenas que Entre os dois atos de Esperando Godot indicações
organiza a ação e dá ritmo ao texto corresponde ao que é cênicas aparentemente contraditórias: "Dia seguinte. Mes-
dado a ver. O que se passa alhures (fora do texto e fora ma hora. Mesmo lugar", e um pouco mais adiante: "A ár-
do palco) ou em outros momentos (intervalos) é conside- vore tem algumas folhas". Beckett "pensou" na ligação
rado como fazendo parte da ação. A verossimilhança de- entre os dois' atos e dá uma informação muito clássica so-
cide também sobre as ligações entre as cenas, justificadas bre seu encadeamento. Depois cria a confusão, servindo-
como "ligação de presença" (saídas ou entradas), "ligação se de um velho truque teatral, a simbolização de uma
de procura" (a personagem que entra em cena procura mudança de estação através das folhas da única árvore.
,' -
Impecavelmente "clássico" na aparência , ele confunde no Essa oposição contínuo/descontínuo nem se mpre é
entanto todas as pistas. Toda reflexão sobre Esperando tão radical e não corresponde de maneira absoluta a uma '
Godot se detém nessa curiosa articula ção e 'determina tu- evolução histórica. Os dramaturgos elisabetanos e os dra-
do o que ela implica do ponto de vista dramatúrgico. maturgos franceses da primeira metade do século XVII
Impossível ir mais longe sem entrar nos detalhes do (incluindo o jovem Corneille em algumas de suas primei-
enredo, na organização da narração, nas escolhas narrati- ras o bras) utilizam o princípio de descontinuidade. Asce-
vas , nos vazios e nas lacunas. nas e os atos não se encadeiam, as histórias comportam
vá rios "fios ", a ação e as personagens saltam de um lugar
para' outro. O mundo que nos é dado a ver não obedece
A descontinuidade afirmada a uma construção harmoniosa e eq u ilibrada .
Nem todas as escritas contínuas ou descontínuas
Completamente diferente é a organiza ção de uma opõem-sede maneira sistemática e se relacionam de ma-
pe ça como Santa Joa na dos Ma ta do u ros de Bertold neira absoluta 'a duas visões de mundo. No entanto, o
Brecht. Ela compreende treze partes numeradas e subpar- nosso objetivo, ao captar os princípios de construção de
tes que em geral correspondem a uma mudança de lugar. uma obra , é aproximar-nos de se u ritmo próprio e ir além
Uma frase resume a cada vez o desenro lar da açã o . Assim , do simples princípio descritivo. .Existem muitos textos, pu-
( I) "O rei da carne, Piermont Maule r, recebe uma carta de ramente formais , que imitam princípios organizadores sem
seus amigos de Nova York", e uma outra determina os lu- produzir grande coisa do ponto de vista do sentido e do
gares: Chicago, os matadouros. A segu ir OI) , "Derrocada . sensível. Nosso trabalho sobre as formas não poderia ser
das grandes fábricas de conservas de carne" e "Diante da ' peremptório, pode apenas ajudar a formular hipóteses.
fábrica de conservas de Lennox", depois, "Uma rua " e "Dian-
te da casa dos chapéus escuros". A ação salta de um lugar
a outro. Estamos num outro sistema dramatúrgico baseado 3. O material textual
na descontinuidade e na elipse. A organização estrutural
não mais repousa sobre a interdependência das p artes Ao folhearmos uma obra de teatro "p a ra ter uma
mas, pelo contrário, sobre sua autonomia , cada parte de- idéia dela", observamos muitas vezes uma organização ti-
ve ndo ser tratada "em si mesma". pográfica diferente daquela de uma obra romanesca, por
Desde Woyzeck de Büchner, e sem seguirem necessa- exemplo. O texto teatral apresenta mais "brancos" quan-
riamente 'todos os princípios da dramaturgia épica, alguns do é dialogado e, geralmente, contém os nomes das per-
autores adotam uma escrita baseada na alternância dos va- sonagens encarregadas de dizer o texto. Ao primeiro
zios e dos cheios que pode se tornar, na prática contempo- olhar notamos os equilíbrios e as distribuições das massas
rânea, utilização sistemática do fragmento. Descontínua, textuais. Um diálogo pode encadear-se de maneira cerra-
elíptica, aberta, ou seja, deixando ao leitor m~it? para da, segundo um princípio de falas alternadas (Woyzeck,
construir e imaginar, essa escrita, geralmente lacônica, or- Esperando Godot) ou manifestar uma evidente desigual-
ganiza o mundo segundo um princípio de falta. Nunca ~ dade na extensão dos discursos. Os enormes "blocos" de
dito tudo, nem tudo é para dizer, jamais tudo pode ser di- textos assinalam as tiradas (longos discursos de uma per-
to . É o caso de um autor alemão como Heiner Müller e , em sonagem sem que nenhuma outra reaja) ou os monólo-
diversos graus, de muitos dramaturgos franceses contem- gos. Em casos excepcionais, o texto é constituído apenas
porâneos. por vários monólogos alternados, e mesmo por um único
44 IN7RODUÇÃO À A NÁLISE DO TEA mo ABORDAGENS METÓDICAS 45
monólogo (por exemplo, Discours aux animaux [Discur- Inversamente, certos autores atribuem um lugar con-
so aos animais], de Valere Novarina). siderável às indicações cênicas, como se definissem ante-
O texto propriamente dito se apresenta em forma de cipadamente a forma da representação ou como se não
ve rso ou prosa, pontuado ou não de maneira ordinária . pudessem imaginar o texto das personagens independen-
Por fim, alguns textos de teatro incluem , al ém do te xto temente do contexto no qual este seria produzido. Escri-
destinado a ser pronunciado pelas personagens, um me- tores tão diferentes como Feydeau , Jean Vauthier ou ain-
ta texto (ou texto so b re o texto), conjunto das didascálias da Samuel Beckett, por exemplo, redigem suas indicações
fornecidas pelo autor, em alguns casos diferenciadas por cênicas com um cuidado quase maníaco. Fim de jogo, de
uma tipografia especial. Beckett, começa por três p áginas de indicações cênicas
que pormenorizam o espaço e depois a representação,
como se pode ver neste trecho:
Didascálías
Ele (Clov) vai colocar-se sob a janela da esquerda.
Originalmente, no teatro grego, as didascálias eram Andar ereto e vacilante . Olha a janela à esquerda, a cabe-
d estinadas aos intérpretes . No teatro moderno , em que ça jogada para trás. Vira a cabe ça, olha a janela à direita.
falamos de indicações cênicas, trata-se dos textos que não Vai colocar-se sob a janela à direita. Olha a janela à direi-
se destinam a ser pronunciados no palco , m as que aju- ta, a cabe ça jogada para trás. Vira a cabe ça e olha a jane-
dam o leitor a compreender e a im agin ar a ação e as per- la à esquerda. Sai, volta em seguida com um banco , ins-
sonagens. Esses textos são igualmente úteis ao diretor e tala-o sob a janela da esquerda, sobe nele , puxa a corti-
aos atores durante os ensaios,mesino que eles não os na . Desce do banco, dá seis passos na direção da janela à
respe item . Distinguimos as indicações que concernem direita , volta para pegar o banco, instala-o sob a janela
à direita, sobe nele , puxa a cortina. Desce do banco , dá
apenas à condução da narrativa (do enredo, como vere-
três passos na direção da janela à esquerda, volta para
mos) daquelas que seriam estritamente cênicas. pegar o banco, instala-o sob a janela à direita , sobe , olha
Inscritas geralmente à margem do texto destinado a pela janela. Riso breve. C .)
ser representado, as didascálias são às vezes muito raras
(o que acontece geralmente no teatro clássico) ou mesmo Essas indicações concernern à ação. Embora sejam
inexistentes. Os comenta dores interessam-se especial- casos excepcionais, existem obras, até, em que todo o
mente por essas notações, como, por exemplo, quando texto é constituído por ind icaçõ es cênicas que descrevem
Racine determina que "Be re n ice deixa-se cair numa ca -
com, exatidão as ações que as personagens devem execu-
deira" (Berenice, v. 5) . tar. E o caso de Actes sans paroles [Atos sem palavras], de
Quando o autor não fornece nenhuma indicação é
Beckett, de Concert à la carte, de F. X. Kroetz, de O pupi-
porque deseja se abster. de dar outras pistas para a inter-
pretação além daquelas incluídas no texto das persona-
lo quer ser tutor, de Peter Handke. Esses textos, que não
gens. Ele mantém a abertura, até mesmo a ambigüidade, se destinam a ser ditos, constituem o principal material da
de seu texto, e deixa o campo livre ao leitor, não impon- representação.
do de antemão qualquer interpretação que sirva de mo- As pesquisas cênicas atuais confundem as pistas de-
delo à representação. Com isso também mostra a impor- masiado simples de uma primeira distinção sobre a natu-
tância que atribui às palavras pronunciadas pelos atores, reza dos textos . Voltaremos ao assunto a propósito da
mais que a qualquer quadro figurativo ou a qualquer sis- enunciação, mas, assim como às vezes as indicações cêni-
tema de desempenho. cas ocupam todo o texto , às vezes 'ta m b ém diretores fa-
46 INTRODUÇÁ o Á ANÁLISE DO re« TRO ABORDAGENS Jt1ETÓDICAS 47
zem com que elas sejam pronunciadas no palco, criando ceses arredondando a boca para formar as vo ga is. Michel
interferências entre a palavra e a ação. Mais .uma razão pa- de Ghelderode é um flamengo que escreve num francês
ra introduzir distinções claras ao nível da análise do texto. á s p e ro e flamejante, de sintaxe entrecortada e ritmo im-
previsível. Valere Novarina alcançou verdadeiro êxito
com um Discours aux animaux cuja e scrita lan ça m ão da
Escrita falada ou fala escrita? oralidade. O que nada tem a ve r com a harmonia racinia -
na ora apreciada (a musicalidade no teatro) , ora temida
O texto de teatro tem o bizarro estatuto de uma es- (como dizer e representar Racinei'):
crita destinada a ser falada, de uma fala escrita que espera
uma voz, um sopro, um ritmo. Devido às suas origens, reais Num mês , num ano , com o suportaremos.
ou míticas , à transmissão oral , a uma tradição da decla- Senhor, que tantos mares me separem de vós)
mação, buscam-se nele ou ' atribuem-se a ele as virtudes Que o dia renas ça e que o dia acabe
particulares das palavras a d e q uad as à boca . Serã que há Sem que jamais Tito possa ver Berenice ,
vestígios desse estatuto nas escritas que imitam mais ou Sem que lodo dia eu possa ver Tiro!"
menos a oralidade?
Todos entram em acordo quando se tratado te atro . Afirmar que a língua , no teatro, e xiste p ara se r dita
em versos. Comentam-se os ritmos , as transposições, as pouco adianta , pois cada um coloca nesse "d ize r" quali-
assonâncias e a qualidade das rimas, e no estudo literário dades contraditórias , segundo critérios estéticos e precon-
usual há um empenho em entender seu sentido. No en- ceitos evidentes. Foi assim que o teatro por muito tempo
tanto, antes do sentido, o que nossa memória retém é ' viveu n a França sob a ditadura da "bela linguagem" . Posi-
muitas vezes "como as coisas são ditas". O À moi, Comte, ções extremas em favor da linguagem rude, brutal o u em
deux mots, de Corneille , uma tirada brilhante de Hugo, gí ria criam outras exclusões.
versos de Cyrano de Bergerac ou os ritmos estranhos de Examinemos portanto os textos com o mínimo possí-
Claudel: o teatro extrai disso uma imagem sonora e inclu- vel de preconceitos culturais e estéticos. Interessemo-nos
sive um pouco tonitroante que às vezes encobre as mus í- pelo "como soa", pela qualidade da tess ítura lexical e pela
qu ínhas .de outros textos. organização do diálogo. A "lacun a" da personagem de Len-
Tudo começa , porém, com o silêncio, e, como vere- glumé de Labiche pontua um texto aparentemente banal:
mos a propósito da enunciação (capítulo 4) , quando "não
.se fala " (ou não mais) às vezes é tão interessante como Será que comi salada? Ora, vejamos! Não! Há uma
lacuna em minha existência! Ora essa! Como diabos vol-
quando "se fala". Mas isso tem mais a ver com os discursos
tei para cá? Tenho uma vaga lembrança de ter ido passear
das personagens do que com a linguagem dos autores. pelos lados do Odéon... e moro na rua de Proven ce! Era
O teatro recorre tanto às metáforas do estilo grandio- mesmo o Odéon? Impossível lemb rar! Minha lacuna ! Sem-
so quanto à gíria, tanto ao léxico rigoroso de Giraudoux pre minha lacuna!
quanto às linguagens mais rudes das regiões e dos diale- ( O caso da rua de Lourcin e)
tos, reais ou imaginários. Antes de triunfar, Michel Trem-
blay escandalizou parte do Quebec ao escrever em joual • Dans un rno ís, dans un :10 , co rnm ent souffrírons-nous,
Seigneur, que Iam de mers me s êpa re nt de vo us?
(língua popular do Quebec), enquanto as cenas passadas Que le [our recommence el que le [our finisse,
.em Montreal eram escritas geralmente em françâ tão cas- Sans que jamais Titus puisse vo ir Bêr énice,
tiço como a imagem que os canadenses fazem dos fran- Sans que de IOtIl le [ou r je r uís se voi r Titusl
]V Enunciados e enunciação
1. O estatuto da fala
Diálogo e monólogo
Sua repetição n ão é m eno s intere ssante , tanto d o oral" calcada na respiraçã o . O texto pontuado pelo au tor
p onto de vista lingüístico com o do teatral , que a de "Ro- fecharia portas d emais quanto à m aneira d e dizer, o que
m a " na fala d e Camila ( Ho rácio, de Co rn eille) , que emba- explica essa delegação ao at or. Lemahieu sublinha em sua s
lou cl asses inteiras e tirou o fôleg o d os candidato s a o an otações de trabalho a rel a ção que se estabelece entre o
conservatório! ritmo íntimo da escrita e o ritmo íntim o vo ca l do ato r que
Portanto nos importa que Fim de jogo, de Beckett, elabora a personagem:
c o m e ce por "Aca bou -s e, ac ab ou , vai a c a ba r, tal vez vá
a ca bar", e qu e o Jean Genet de Les Nêgres fa ça su a p e rso- °
Oposi ção entre dito proferido, a fala da persona gem
e sua colocação na boca (posição, voz, respiração) do ator.
ru gem Ne ige dizer:
O texto de teatro é falado-escrito ou escrito-falado? Ao qu e
se acrescenta o problema dos ritmos próprios, da voz inte-
Se eu tivesse ce rteza de que Víllagé liqu idou essa rior do escritor que percebe muitas vezes .díferen ternente a
mulher pa ra se torn ar com maior esta rdalhaço um negro escansão do texto que ele próprio propôs, ao mesmo tem-
marcado, fedorento , beiçudo , de nariz chato, comil ão ,
glutão, empanturrado, comedor de brancos e de tod as as
°
po que deixa aos artistas dramáticos cuidado de comple-
tar o que começ ou, do escrito à imagem espetacular.
cores , baba ndo-se, suando, arrotando, escarrando , forni-
cado r de bo des, tossindo , peidando , lam bedor de pés (Prélu des et f igures, notas para Usinage)
brancos , mandri ão, doente, go tejando . óle o e suor, flácido
e sub misso, se tivesse a certeza de qu e a matou para se É curioso notar, no caso de um autor como Serge Valle -
co nfundir co m a noite ... Mas sei que ele a amava . ni que durante muito tempo interpretou seus textos , as sur-
preendentes diferenças rítmicas que surgem na representa-
Não decidamos de ante mão o que deve se r a lin gua- ção quando são desempenhadas por outros. Tais fenôme-
ge m teatral: Tomemos nos a u tores as p articularidades ta is ' nos n ão podem realmente ser analisados com exat idão,
como elas aparecem, .tanto a a cu m ulação dos ad jetivos e . eles são próprios do .encontro entre o texto e os atores nos
das m et áforas como as réplicas curtas , tanto o texto s u pe- . primeiros fenômenos de interpretação vocal. É uma b oa
ra b undante como o texto com brechas. razão para darmos um espaço às leituras so no ras.
Entre as particularidades con tem p o râ neas observá-
veis, vários autores renunciam em seus textos à pontua-
ção corrente e, limitam-se a o s p ontos d e interroga ção e d e Leituras em voz alta e leituras silenciosas
exclamação . E o _ca so , p or exem p lo, d e P ierre. Guyotat,
Mic he l Vinave r, Daniel Lernahieu Va lere Nova rin a de A Ieitura em voz alta é uma abordagem do te xto ne-
mane iras diferentes m as com inte~ções pr óx imas, Mais gligenciada nos hábitos universitários, seja porque pensa-
como uma "to rre n te verbal" em Gu yotat, uma avala n c ha mos não ser capazes disso e nos sentimos desarmados,
de p alavras perfurando o silêncio, mais como uma orga- seja porque a abordagem intelectual é privilegiada em de-
níza ção do ín dí fere n c ía do em Vinaver, que permite à ré- trimento de experimentações concretas. Trata-se no en-
p lica entrar e m co nfron to com rép licas vizin has. tanto de um exercício precioso, mesmo que não nos con-
O te xto e scrito a p rese nta -se assim a o ator numa re- sideremos em absoluto atores, sob a condição deque al-
lati va indíferencia ção , sem que a sintax e decida o sentid o gumas regras sejam seguidas.
de man eira d efinitiva. É a vo z d o ator, seus ritmos pessoais O que está em jogo nada tem a ver com o sentido, a
qu e o rie nta m o texto escrito e decide m uma "pontuação entonação, o "to m correto", a maneira certa de d izer o .
50 J,\TRODUÇÃOÀ ANÁLISE DO TEA77?O ABORDAGENS METÓDICAS 51
autor ou qualquer preocupação de êxito. Essas leituras frente. Demos instruções a nós mesmos, como por exem-
constituem urna série de tentativas de dizer, que privile- plo ler o texto de uma só personagem em continuidade.
giam a materialidade do texto durante os primeiros conta- Interessemo-nos exclusivamente pelas didascálias que, li-
tos, em que convém ser sério sem se levar a sério e , por das de ponta a ponta, constituam de fato um "outro tex-
que não, encontrar prazer no que se faz. to ". Encadeemos os inícios e os finais de a to. Leiamos
. Esses jogos e exercícios de "colocação na boca " par- num mesmo movimento o início e o fim , a exposição e o
tem seja de instru ções mecânicas, seja do desejo de expe- desfecho. Detenhamo-nos para imaginar, ou seja, para so-
rimentar particularidades evidentes do texto. nhar, e visualizemos o que é descrito. Essas leituras erra-
Entre as instruções mecânicas , experimentam-se to- dias são ilimitadas, constituem "entradas" no texto e criam
das as oposições de ritmo, de articulação, de nível sono- uma familiaridade com a escrita. Diz-se com freqüência
ro : lê-se muito depressa ou muito devagar, berra-se, sus- que o ato de leitura não obedece a uma continuidade
surra-se ou salmodia-se, procura-se terminar o mais rápi- . obrigatória, tiremos então o melhor proveito disso.
do possível ou, pelo contrário, saborear todas asharrno- As proposições de descoberta do texto constituem,
nias e asperezas; tentam-se acentos e acentuações; lê-se em seu conjunto, uma relação com a "su p erfície" do tex-
sozinho ou com várias pessoas, passando o texto de uma to . A identidade do texto tal como ele se apresenta à lei-
para outra; variam-se os leitores e os enunciadores, com tura na sua materialidade é privilegiada. Levemos em
o mínimo de a prioripüssível. Até se parodia , talvez che- conta nossa "ino cência" de leitores, dispostos a tudo ob-
gando ao exagero. servar porque dispostos a se espantar com tudo . Trate-
Quando um texto apresenta particularidades, ata- mos cada obra como um território estrangeiro que se
quemo-las de frente. Procuremos as variantes rítmicas de apresenta de forma original, com sua geografia, seus cos-
um texto não pontuado abrindo a cada vez caminhos di- tumes, sua língua. Seja como for não escaparemos aos
ferentes entre as palavras; banalizemos o alexandrino ao problemas de sentido, nem talvez à profundidade: ela já
máximo, como se fosse uma conversa comum; ou tente- está na superfície.
mos caminhar para o canto, escutando como os versos
resistem a esses tratamentos. Se se trata de Claudel, lance-
mo-nos nos versos até o fôlego nos faltar, para vermos LEITIJRAS RECOMENDADAS
como "falam". Encadeemos rapidamente diálogos frag-
mentadosque talvez já se respondam. Façamos de todas BARTHES, Roland, Essais critiques, Paris, Seuil, 1984, em
essas leituras exercícios físicos." especial o capítulo "Le bruissement de la langue".
Escapemos à leitura cinzenta, triste e convencional, LEMAHIEU, Daniel, "Préludes et figures", notas sobre Usi-
escolhida por receio de fracasso ou de não pegar o senti- nage, Paris, Th. Ouvert/Enjeux, 1984.
do. Não há fracasso possível, já que o único projeto é MILNER, ]ean-Claude, REGNAULT, François, Dire te vers,
"embocar" o texto e fazer com que seja ouvido. Paris, Seuil, 1987.
A leitura silenciosa nos é mais familiar. Mas estare- MONOD , Richard, Les textes de tbéâtre, Paris, Cedic,
mos seguros de que é proveitosa se também estivermos 1977.
obcecados pela urgência de proceder a uma análise e de RYNGAERT, jean-Píerre, foer, représenter, Paris, Cedic,
captar seu sentido? . 1985.
Experimentemos portanto leituras desordenadas e SARRAZAC, jean-Pterre, L 'a uen ir du Drame, Lausanne,
imaginativas, que se intert:ompem, voltam atrás, correm à L'Aire Thêâtrale, 1981.
52 INTRODCÇ'Â o À ANÀLl5E DO TEA TRO
desses autores, isol and o o m at eri al narrat ivo das orige ns,
1. A noção de enredo ou fábula
despojado de qu alquer a rra njo dramáti co . No e n ta n to es-
se material não se co n fu nd e co m as fontes da obra . Nesse
Um reserva tório de mitos e in ven ções
se n tid o, diz Pavis , a fábula o u o e nre d o s e ria:
A fabula latina é uma narrativa mít ica o u in ventada . o estabelecimento cron ológico e lógico dos aconte -
Podemos conceber uma fábula que existia an te s da peça cime ntos que constitue m o esq ue leto da história repre-
de te atro , como um m aterial de qu e o poeta s e apossou sentada, .
para co nstru ir a sua o bra . Nesse caso, a fáb ula faz p arte
de uma e s pécie de reservatório de histórias inventadas , Um projeto como e sse dificilmente se realiza, pois
in scritas n a m emória c o le tiv a . Na prática dramatúrg ica su be n te n d e uma e spécie de neutralidade d a a n á lis e , um
d os a n tig os co mo na d o sé culo XVII , os autores com fre- trabalho cirúrgico de se p a raçã o e n tre o narrativo e o dra-
qüência fazem alusã o às suas fo n tes, a um materialhistó- mático . Esse trabalho revela-se ainda mais difícil quando
rico à d ispo s ição d e todos e no qu al el es se inspi ram li- não se conhece a f onte do enredo , e n ão obstante é pre-
vre men te. O s clássicos, p or e xemplo , recorrem à hi stóri a ciso reconstruir e sse estado primeiro d a narrativa com o
romana , a Virgílio, a Plutarco . Fal am d eles tanto mais li- s im p les a u x ílio d o texto dramático .
vre m e n te qu anto é ce rto que suas noções de propriedade .Mas esse projeto releva -se apaixonante e útil à práti-
literária e de or iginalidade n ão s ão de m aneira nenhuma ca , pois, como escreve Richard Monod, o enredo nos che-
iguais às n o ssas . A in ventividade dos p oetas dramáticos ga "em muito mau estado ", já que nos é comunicado por
manife st a-se na recriaçã o do material fabular. intermédio das palavras e dos ges to s das personagens , sen-
No segundo prefácio de Andr ômaca, Racine cita o~ do necessário reconstrui-lo num sistema narrativo diferente
verso s de Virgíli o do terceiro livro da Eneida, refere-se a daquele do texto d ram ático, necessariamente lacunar.
Andrômaca de Eurípides e conclui:
Não creio que eu precisasse desse exemplo de EUIÍpi- o ey!redo como seqüência de ações
des para j ústifícar a pequena liberdade que tomei. Pois há
uma grand e diferença entre destruir a base principal de uma Como constituir uma narrativa a partir do que, no
fábula e alterar alguns de seus incidentes que praticamente teatro, é na maioria das vezes mostrado por atuações? Para
mudam de rosto em cada uma das mãos por que passam. Aristóteles, o enredo, "ju n ção de a ções consumadas", si-
tua-se no próprio texto mais do que em suas fontes ou
. Termina citando um comentador de Sófocles , que em uma anterioridade qualquer. Ele se constrói a partir
observa : da a ção dramática vista como a soma das ações e dos
acontecimentos . Esse ponto de vista integra a noção de
Não devemos divertir-nos em escarnecer dos poetas origem à ação propriamente dita e confirma a presença
por causa de algumas alterações que tenham introduzido de uma narrativa ao mesmo tempo no jogo teatral. e "por
na fábula ; mas devemos dedicar-nos a considerar o exce- trás" dele. O teatro conta imitando a ação, portanto mos-
lente uso que fizeram dessas alterações e a maneira enge- trando ações destinadas a ser executadas no palco por
nhosa com que souberam acom odar a fábula a seu tema.
atores. Essas ações estão previstasnas didascálias (o que
os atores devem fazer) e naquilo que têm a dizer, pois,
Assim, poderíamos dizer que, se buscamos a fábula
como veremos no capítulo 4, em teatro dizer é fazer.
o u o e n re d o de uma peça , fazemo s o trabalho inverso
56 ll\lTRODUÇÀO À ANÁliSE DO TEATRO I ABORDAGENS METÓDICAS 57
A dificuldade consiste em isolar apenas ações e dis-
tingui-ias dos sentimentos e dos discursos. O ideal seria Claro que só devemos nos apoiar no texto dramático
só reter os sentimentos quando são expressos por causa e não esquecer nenhuma das ações, A se gu ir, é preciso
das ações e só considerar os discursos na medida em que organizá-las na ordem cronológica , que rarame nte corres-
arrastam à ação quem os profere e quem os escuta. As- ponde à ordem proposta pel o texto, e sim u lta neam e nt e
s im, ser ciumento, e mesmo proclamar o ciúme, teorica- tomar consciência de suas dura ções e d o tempo q ue as
mente não pode ser retido no enredo enquanto a perso- separa . Pode também ser útil distinguir o que está previs-
nagem não o exprime por ações. Aristóteles su blin h a is- to p ara acontecer no palco e o que acontece fora do p al-
so, uma vez que coloca os "caracte res" depois do enredo, co mas que deve se r integrado ao enredo .
por ordem de importância. Para ele , o enredo está pri- O primeiro interesse d o exercício é q ue ele faz to-
mordial e estreitamente ligado à ação. mar consciência da dificuldade de isolar as a ções dos dis-
Diretores como Stanislavski retomam esse ponto de cursos e dos se n tim e nto s , sem negligenciar ao mesmo
vista a seu modo quando, nos ensaios, pedem aos atores tempo os discursos que levam à ação . O segundo é que
tendemos a interpretar o texto e as ações no momento em
que constituam o percurso de suas personagens unica-
que o s apreendemos , e que o projet o de neutralidade
mente a partir de suas a çõ es . Uma vez libertas do jugo
em rela ção aos fatos exige uma vigilâ ncia permanente . É
dos sentimentos e dos d iscursos, tão difíceis de circuns-
igualmente difícil ser exaust ivo . O estabelecimento d o en-
crever, as ações, quando conseguimos defini-Ias e iso lá-
redo é um trabalho muito longo que não se deve confun-
las, constituem uma só lida armação para a construção do dir com os "resum o s da ação" que figuram às vezes nos
enredo. Mas será possível identificá-las sem manifestar- aparatos críticos das peças. .
mos ao mesmo tempo uma opinião sobre tais ações, nem Como exemplo, eis uma citação de Suetônio que ex-
que seja nomeando-as com precisão? . põe o "assunto" de Berenice de Racine:
Outras dificuldades se apresentam, portanto, com
essa noção de ponto de vista. Procedemos até agora co- Tito, que amava Berenice com p arxao, e que até,
mo se o enredo pudesse ser estabelecido de maneira ob- acreditava-se, havia prometido desposá-la, mandou -a em-
jetiva e como se fosse possível efetuar todas essas extra- bora de Roma, COntra a vontade ~Iele e dela , logo nos pri-
ç õ es sem dificuldades nem dúvidas. No entanto, diante meiros dias de seu império.
do enredo, s empre existe um leitor que não distingue
bem o que se passou ou não quer distingui-lo. Vê apenas Aqui está, agora, o início do enredo, tal como tenta-
o assunto da peça, ' ou seja , aquilo que o interessa, aca- mos estabelecê-lo:
bando por contar o enredo de seu ponto de vista.
Havia cinco anos, Antíoco, rei de Comagena, estava
secretamente apaixonado por Berenice, rainha da Palesti-
na. Esta lhe impusera o silêncio e, .estando em Roma ha-
Construir o enredo via três anos, ele lhe obedecia. Vespasiano, imperador de
Roma e pai de Tito, acabara de morrer. Roma. preparava- .
Trata-se de identificar e de enunciar da maneira mais se para coroar Tito imperador. Antíoco havia acompanha-
neutra possível as ações sucessivas das personagens. Ri- do Tito na guerra da Judéia e portara-se com heroísmo, a
chard Monod recomenda fazê-lo no passado, tempo da ponto de -arriscar a vida pela causa romana.
narrativa , e evitar todo efeito de estilo. · . Acompanhado de seu confidente Ãrsaces, Antíoco
dirigiu-se ao palácio, onde se deteve no gabinete de Tito,
58 I/,TRODUÇÃO À ANÁLISE DO TEA mo ABORDAGENS METÓDICAS 59
mandando Ársaces solicitar uma entrevista com a rainha Ter um ponto de uista sobre o enredo
Berenice. ~le dera ordens para que preparassem seus na-
vios em Ostia , prontos a zarpar para Comagena assim O enredo é uma pura abstração que perseguimos.
que a entrevista terminasse. Ársaces aproximou-se da rai- Ao procurar estabelecê-lo, saímos do teatro e nos encami- .
nha com dificuldade , tantos eram os admiradores ao re- nhamos para a narrativa . Nessa tentativa de nivelar os
dor dela . Dizia-se que antes do anoitecer Tito a desposa- acontecimentos, não deixamos de tomar consciência da
ria e que ela se tornaria imperatriz de Roma. Com um enorme importância do arranjo deles. O enredo é tam-
olhar, Berenice deu a entender a Ârsaces que concederia
a Antíoco a entrevista privada que ele desejava , e final- bém uma estrutura da peça, sua construção traz já a mar-
mente ela escapou de seus admiradores para encontrar-se ca do autor, na própria maneira como ele dispõe os epi-
com Antíoco. sódios e considera a intriga .
Todo trabalho sobre o enredo traz em si sua contra-
o jogo dos tempos pretéritos (mais-que-perfeito, im- dição. Ao isolá-lo , tomamos mais consciência do modo
p erfeito, perfeito) opera a distinção entre uma situação como ele pertence a um sistema de estruturas narrativas e
estabelecida e acontecimentos que se acrescentam a ela. como é organizado. Ao procurar estabelecê-lo de maneira
Acontecimentos antigos, mas úteis à narrativa , integram- tão neutra quanto possível , compreendemos que dificil-
se assim ao enredo . Cumpre decidir se escolhemos ou mente podemos escapar a um ponto de vista.
n ão dar importância às "pe q u e n as a ções" (por exemplo, Na prática, o estabelecimento do enredo ajuda todos
Antíoco deteve-se no gabinete de Tito). É difícil saber o os colaboradores de uma encenação a chegarem a um acor-
que fazer dos projetos das personagens, e se devem ser do sobre o que deve ser representado. Pode-se pensar que
retidos apenas aqueles que são executados. Por isso decí- se trata de algo insignificante. No entanto, muitas vezes,
dimos mencionar os preparativos da partida, pois se trata I quanto mais se conhece o texto e quanto mais ele é ensaia-
de uma ordem que Antíoco dera a Ársaces e cuja execu- I do, mais se perde de vista a tal "narrativa primeira" que ten-
ção ele verifica; mas sabemos também o que esses navios tamos aqui circunscrever. Estabelecer o enredo equivale
pror;tos a zarpar representam do ponto de vista dramáti- portanto a definir o que o conjunto dos praticantes pretende
co! E muito difícil manter a neutralidade. representar, a partir daquilo que é para ser representado.
Observemos pelo menos que esse trabalho (apenas Para Brecht, o enredo objetivo não existe. (Ver mais
iniciado, pois só se refere ao início da peça) clarifica a adiante o enredo de Brecht para o Hamlet.) Ele precisa
importância da relação entre a palavra e a ação para as ser construído:
personagens. Ele permite tomar consciência da mudança
de regime de escrita quando passamos assim do dramáti- o enredo em sua totalidade dá (ao ator) a possibili-
co ao narrativo. Poderíamos facilmente extrapolar, fazen- dade de uma .montagern dos elementos contraditórios;
do o percurso inverso e examinando como Racine trans- pois o enredo oferece , enquanto acontecimento delimita-
do, um sentido determinado, o que significa que, entre
mite todas essas informações ao leitor e como as ações numerosos interesses possíveis, ele satisfaz apenas inte-
são traduzidas nos discursos das personagens. resses determinados.
Trabalhar na reconstituição do enredo, ou, se prefe-
rirem, .d e um enredo, não implica uma oposição entre ob- (Pequeno Organon, parágrafo 64)
jetividade e subjetividade. A dramaturgia apóia-se na ten-
são entre a leitura mais rigorosa do texto e as escolhas Não nos situamos mais na perspectiva da análise do
necessárias que intervêm a seguir. texto, ~as numa dinâmica da passagem ao palco, e é no
ABORDAGENS METóDICAS 61
60 INTRODUÇÃO Ã ANÃLJSE DO TEA TRO
No plural, peripécias são "golpes teatrais" ou "mu- 3. Apreender as estruturas profundas: o modelo
danças de sorte" que alteram subitamente a' situação, sur- atancial
preendem por uma inversão da ação. Elas sublinham que
no interior de uma intriga a situação do herói não poderia Em busca de um modelo
ser invariável.
Desfecho: "Uma inversão das últimas d isposições o modelo atancial desenvolveu-se nos ano s 7 0 a
do espetáculo, a derradeira peripécia, e um regresso de partir dos trabalhos de V. Propp (Morfolog ia do conto) e
acontecimentos que modificam todas as aparências das de Étienne Souriau (l es deux cent mille situ a tio ns drama-
intrigas. " (Abade d 'Aub ígna c, Pratique du tbéâtre) tiques [As duzentas mil situações dramáticas)) que tenta-
"O desfecho de uma peça de teatro compreende a vam constituir uma gramática da narrativa. Os semantícís-
eliminação do último . obstáculo ou da derradeira peripé- tas , principalmente A. J. Gre írn as , definiram o modelo
cia e os acontecimentos que podem resultar disso; esses que uma especialista como Anne Ubersfeld empenhou-se
acontecimentos são por vezes designados pelo ' termo ca- em modificar, .aplic:ando-o ao campo teatral.
tástrofe." (J. Schere r, La dramatu rg ie classtque en Franc e)
- Comparar com as notas de trabalho de um autor . Sob a infinita diversidade das narrativas '(dramáticas e
contemporâneo como Michel Vinaver: .: outras) pode ser identificado um pequeno número de rela-
ções entre termo s muito mais gerais do que as pe rsonagen s
Abrupto: "Im possível não ser abrupto nas arranca- e as ações, e que denominamos atantes . (Lire le théâtre)
das. Não pode haver exposição. O nascimento de uma
peça é como urnapequena explosão atômica. As palavras Anne Ubersfeldquestiona o estudo dramatúrgico
disparam quase em qualquer sentido. É que justamente',
no início de uma pe ça, não há nenhum sentido." (Écrits clássico, pois ele não pode se aplicar a todos os textos co-
sur le tb éâtre) nhecidos. Prefere, ao que se convencionou chamar traba-
lho sobre a "superfície" do texto, a pesquisa das estruturas
Fricção: "Sendo o cotidiano o lugar do mal defini- p rofundas através da determinação do esquema at ancial,
do, do indefinido, os acontecimentos produzem-se nele verdadeira sintaxe da ação dramática, a única capaz de fa-
por deslizamentos. Os grandes choques, os confrontos zer aparecer seus elementos invisíveis e suas relações .
evidentes, as peripécias decisivas são pouco freqüentes ,
Patrice Davis, por sua vez, em seu Dictionnaire du
pouco típicos. Há fricções através do corpo, do olhar e da
palavra , das opiniões e das idéias, dos sentimentos e tbéâtre, ordena esses conceitos e distingue intriga , ação e
mesmo das paixões. A fricção é o modo privilegiado de 'modelo atanc íal, indo do menos abstrato ao mais abstra-
contato na vida cotidiana. Como as superfícies nunca são to, da estrutura superficial à estrutura profunda, do uni-
totalmente lisas, a fricção provoca um aquecimento que verso das personagens à análise da dinâmica das forças
ocasiona fenômenos de m ín ífusão, de alteração da maté- interiores que regem toda a obra . .
ria. A alteração não é nomeada, designada. Ela tende a Os teóricos da narratividade estavam em busca de
ser constatada a posteriori... Se quer investir nesse cam- um instrumentO de análise que explicasse de maneira ab-
po, a própria escrita teatral adota o modo da fricção. In- soluta a ação de qualquer peça de teatro, de qualquer
troduz-se nas cavidades, acompanha as anfractuosidades época, sem que fosse necessário examinar suas determi-
das relações, insinua-se nas pequenas fissuras e nas aspe- nações visíveis. Isso exige um modelo suficientemente
rezas do que se apresenta como uma ausência de histó-
ria. É a esse preço que ela faz surgir a história. " (Écrits abstrato para que não dependa da consideração de per-
sur le tb éâtre) sonagens particulares no interior de uma determinada es-
68 IN1RODUÇÀ o À A NÀLlSE DO TEA mo
ABORDAGENS METóDICAS 69
tética , suficientemente completo para que explique a
Um segundo par opõe adju vante e oponente, e é bas-
aç-ão de maneira satisfatória em diferentes níveis .
tante fácil de identificar, já que se trata de forças antagôni-
cas que ajudam o sujeito a realizar sua busca ou, ao contrá-
rio, que tentam impedi-la. Tradicionalmente, na busca
o esquema de seis casas amorosa, por exemplo, os confidentes e servidores estão
do lado dos adjuvantes, os pais ou a sociedade do lado
O modelo ata nc ial combina um jogo d e for ças (s im- dos oponentes. Mas pode haver figuras mais complexas,
b o liza do por um sistem a de flech as) que não se confun- conforme os momentos da ação e as mudanças de campo,
d em necessariamente com as personagens e que explica assim como falsos adjuvantes ou adjuvantes momentâneos.
as estruturas p rofundas d a o b ra. Ele se a p res e n ta d a se- O terceiro par, o que opõe destinador e destinatário,
g uin te maneira: é o mais difícil de identificar por ser o mais abstrato e por
Des tina dor Dl De stinatário D2 raramente ser representado por personagens; é também o
. mais interessante, porque faz entrar no esq uema as impli-
-----.. Su jei to S --------- caçõ es ideoló gicas. A casa d o d estinador é o cu pada por
~ tudo o que faz ag ir o sujeito, a do destinatário por aquilo
a que ele atribui sua busca. Para preencher a casa Dl,
~ Objeto O ~
cumpre responder à questão "Por causa de quem ou de
A d juvan te A O pone nte Op que o sujeito age?", e , para preenchera ca sa D2 , "Pa ra
quem ou para que o sujeito age?" . Nos dois casos pode-
Trata -se em primeiro lugar de identificar o eixo p rin- . mos falar de "m otivaçõ es" , com a condição de não se dar
cip al que traduz a dinâmica da obra, literalmente seu mo- a esse termo um sentido psicológico, mas antes uma di-
tor, isolando o suje ito e o o b je to da ação e aquilo que os mensão social ou metafísica.
reú ne, a flecha da busc a , da von tad e , d o desejo. Assim, Podemos traduzir a totalidade do esquema por uma
escre ve mos que : S - O . Temos qu e determinar ai d e n ti- frase gramaticalmente construída na qual a ação principal
d ade do su jeito no texto, mas é impossível separá-lo da- (a flecha do desejo, que reúne sujeito e objeto, sendo lite-
q uilo que o liga ao o bje to e que constitui sua busca. O ralrnenteo verbo) é cercada de circunstâncias que a mo-
su je ito p ode portanto confundir-se com o herói , embora dificam e a governam. É possível portanto falar de uma
nem se m p re seja e sse o ca so . A identificação d es se par s in ta xe dramática em que os d iferentes elementos da
ce n tral é determinante, mas el a é feita fora de toda psi co- ação encontram seu lugar.
lo gia , o sujeito e o objeto estando necessariamente ligados A título de exemplo, eis o modelo proposto por Anne
e o acen to sendo colo cado nessa dinâmica que os une. Ubersfeld na hipótese de todo romance de amor, de toda
Não é ne cessári o porém nomeá-la, dando-lhe um sentido . busca amorosa :
Essa flecha exprime literalmente um "m o vim e n to " que Dl: Eros D2 : O próprio su je ito
passa do sujeito para o objeto e que pode tomar formas ~
tão di versas como o amor, a apropriação, a destruição. O s
su je ito (q ue pode ser tanto um indivíduo quanto um gru-
p o) é necessariamente animado, enquanto o o bje to pode ~
se r uma abstja ção (o poder), mas re p rese n tado em cena .i-> O
~
A: Ami gos ali serv idores Op: p ais , socied ad e
p or uma personagem ou um grup o .
70 INTRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO TEA TRO ABORDAGENS METÓDICAS 71
LEITIJRAS RECOMENDADAS
estéticas, estes serão precisos e detalhados ou, ao contrá- A ponte: duas constru ções simétrica s, bran cas e gi-
rio, muito vagos e mesmo totalmente ausentes. gantescas, de concreto e com cabos, saídas de cada mar-
Em Tio Vânia, de Tchecov, encontramos assim uma gem da areia vermelha e que não se juntam , num grande
indicação geral: "a ação se passa na propriedade de Sere- vazio de céu, acima ele um riacho ele lama.
briakov", depois, para o primeiro ato:
Por suadiversidade, esses poucos exemplos são su-
Um jardim. Percebe-se uma parte da casa, com o ter- ficientes para mostrar que n ão existe um regime absoluto
raço. Na aléia, sob um velho álamo , uma mesa está servi- de indicações com que possamos contar. Estas devem ser
da para o chá . Bancos, cadeiras, um violão sobre um manejadas com certa prudência no caso dos textos anti-
banco. Um pouco afastado da mesa, um balanço, gos cujas edições convém cotejar, algumas indicações po-
dendo ser apócrifas.
Cada um dos quatro atos é precedido de indíca ções O que se pode concluir, procedendo por compara-
precisas e detalhadas co nce rn e ntes ao lugar e previstas ção? Tchecov .não sente necessidade de determinar que
para que a representação possa desenrolar-se nele. No Tio Vânia se passa na Rús sia; a Roma de Racine é tão evi- .
Dom fuan de Moliêre , uma única indica ção precede o dentemente a Roma imperial que a indicação nem é feita.
texto: "A cena se passa na Sicília." Esse laconismo é co- Será que a Sicília de Dom [uan interessa a Moli êre en-
mum entre os clá ssicos. Em Berenice, Racine determina quanto ilha, enquanto região mediterrânea, enquanto lu-
que "a cena é em Roma, num gabinete situado entre os gar mítico e um pouco indeterminado caro às pastorais
a posentos de Tito e o de Berenice". Shakespeare não é da época? Não terá essa Sicília por primeiro mérito evitar
muito mais prolixo em Hamlet, em que ficamos sabendo ' nomear a França? Quanto a Koltes, sua minúcia chega a
apenas que "a cena é em Elsinor". Para Marivaux, em A definir a cor vermelha da terra, mas ele nos deixa a esco-
dupla inconstância, "a cena situa-se dentro do palácio do lha do país da África, contanto que seja ocidental.
príncipe". Nenhuma indicação em Nathalie Sarraute, cujo Primeira conseqüência , portanto: uma indicação ,
texto de Pour un oui ou pour un non [Por um sim ou por mesmo precisa, pode ocultar muitas outras, e um silêncio
um não] começa abruptamente. Lemahieu intitula a pri- pode significar tanto que o lugar não tem importância co-
meira cena de Usinage "A mesa de casamento". Mas Ber- mo que tem importância demais. Quanto à concepção
nard-Marie Koltês dá uma página de indicações antes de que um autor faz do país onde situa sua ação, ela depen-
de evidentement~ da época (o que é a Roma imperial do
Combat de nêgre et de cbiens [Combate de negro e de
século XVII, a Africa ocidental contemporânea?), mas
cães], sendo que as seguintes dizem respeito aos lugares:
também das mitologias coletivas ou pessoais.
Num país da África ocidental, do Senegal à Nigéria, Quando esperávamos talvez dados exatos, depara-
um canteiro de obras de uma empresa estrangeira. C..) mo-nos na verdade com um texto que deixa ampla mar-
Lugares: a sede, cercada de paliçadas e mirantes, onde vi- gem à interpretação. Nada diz que Kolt ês se prenda abso-
vem os funcionários e onde é depositado o material: lutamente a cada detalhe de sua enumeração, apesar de
- um monte de buganvílias; uma caminhonete esta- propor um espaço detalhado que sugere uma atmosfera.
cionada sob uma árvore; Nem todas as indicações são operatórias; elas po-
- uma varanda, mesa e cadeira de balanço, uísque; dem pertencer ao campo do poético, procedendo por in-
- a porta entreaberta de um dos barracôes. dução e dando lugar à imaginação do leitor que constrói
O canteiro de obras: um rio o atravessa,' uma ponte sua encenação. Por outro lado, outros tipos de indicações,
inacabada; a? longe, um lago. C..) que não são propriamente didascálias, acompanham por
ABORDAGENS METÓDICAS 85
84 INTRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO TEA TRO
No segundo momento do trabalho, confrontemos as Sim, como agora, quando paraste aí, em frente à jane-
indicações de que dispomos com o texto destinado a ser la C,.)' Compreendes por que me apego tanto a este lugar?
pronunciado pelos atores e tentemos, cena por cena, ]le_pode parecer um pouco sórdido... mas seria duro para
compreender onde se passa, muito concretamente, cada 0,° o~ 7/ . .
.~.mu dar... Ha'neIe...'e difí
I ICI'1'expI'rcar.;
' mas perce bes,
uma delas. Quando as indicações existem, verifiquemos não é mesmo? como que uma força que irradia daí. .. dessa
cuidadosamente seu uso previsto no texto, inclusive ruazinha, desse pequeno muro, aí, à direita, desse telha-
quando elas dizem respeito a móveis ou objetos previstos do... algo de confortador, de vívificante... (p. 39)
no espaço, por exemplo o banco indicado mais acima
por Tchecov, o uísque, por Koltes. Existe de fato um espaço, o apartamento de H2, que
Logo no início de Berenice, é feita alusão por Antío- Hl vai visitar e que parece nascer progressivamente da
co ao gabinete de Tito. A linguagem instala uma relação linguagem. Ele é concreto (há uma janela com vista para
com o espaço, a ação lhe dá sentido: um pequeno muro, um telhado, vizinhos) e muito abstra-
to apesar dos demonstrativos (essa ruazinha, esse peque-
Detenhamo-nos um momento. A pompa desses lugares, no muro, esse telhado). Sarraute prefere não lhe dar im-
vejo bem, Ársaces, que é nova a teus olhos. portância excessiva, evita toda Interpretação realista ao
Com freqüência este gabinete, soberbo e solitário,
não fornecer qualquer indicação. Poderíamos dizer que
Dos segredos de Tito é o depositário.
É aqui, às vezes, que de sua corte ele se oculta esse apartamento só existe na medida em que as perso-
Quando vem à Rainha explicar seu amor. nagens o nomeiam e lhe atribuem interesse afetivo, e que
De seu aposento esta porta é vizinha tudo se passa como se ele não preexistisse à ação, mas se
E esta outra conduz ao da Rainha. .concretizasse progressivamente em função dela.
. (Ato I, cena I)
86 Ill/TROD UÇÃ O À ANÁLISE DO TEA TRO ABORDA Gl:.lVS iv!E TÓDICA S 87
Aqui , a quest ão da passagem ao palco é complicada : Mas ele encontra a morte numa paisagem su rpreendente:
qu alquer lugar demasiado realista esmagaria;um texto fei-
to ele nuances, mas abster-se inteiramente de lugar con- Entretanto no dorso da planície líquida
creto não é , provavelmente , a melhor so lu ção . Quando a Eleva-se em borbotões lima montanha úmida .
pesquisa espacial está resolvida em sua parte artesanal, a A onda vem, se quebra e a no ssos olhos vomita,
contin u ação depende de escolhas artísticas. Entre torrentes de espuma , um monstro furioso .
(Ato V, cen a 6)
( "aq u e la tempestade imprevista fez tombar com nosso Um lugar pode ser freqüentemente falado pelas per-
barco o projeto que alírnent ávamos" - II, 2). Os historia- sonagens a partir do lugar em que se encontram e servir
dores informam-nos que outros Dom [uan eram represen- de exutório a seus fantasmas . É o caso, por exemplo, de
tados na época , especialmente pelos comediantes italia- muitas personagens deslocadas , vivendo um exílio real
nos, e que a cena do barco era pretexto para uma sé rie de ou imaginário. Em Combat de nêgre et de chiens, a África
acrobacias burlescas . Moli êre não a mostra, nào por ser de Léone define-se por oposição ao que ela levou consi-
impossível mostrá-Ia , mas porque é assim seu projeto de go da França , odores:
escrita . Compete a nós compreender por que ele prefere
mostrar a a ld e ia à beira-mar e Dom Juan e Esganarelo se- LÉONE - Sabe o que acabo de descobrir ao abrir a
cando-se e nã o lutando contra a tempestade. Pode-se di - mala? O che iro dos parisienses é muito forte, eu sabia; já
zer, mas isso nada explica , que é p orque ele é "clássico" havia percebido seu cheiro no metrô , na ma, com toda
ou, por exemplo, porque prefere n ão expor suas persona- aquela gente que é preciso roçar, sentia esse cheiro pe-
gens numa ce n a demasiado ane~ótica. No entanto, ~sse rambular e apodrecer nos cantos. Pois bem, ainda o sin-
"fora de cena " é suficientemente importante para ter ínte- to, aquí, na minha mala; não o suporto mais, C..) VOU
precisar de tempo para arejar toda essa roupa. Como es-
ressado todos os diretores que se ocuparam com a peça . tou contente de estar aqui. A África, enfim!
O "fora d e cena " pode também ass u mir a forma de HORNE - Mas você ainda não viu nada, e nem mes-
um "alh u res" que intervém menos dir.etamente no enredo mo quer sair do quarto.
m as que , p or o p o siçã o, evidencia os lugares concret~ LÉONE - Oh , já vi o suficiente e vejo daqui o sufi-
m ente mostrados . Em A dupla inconstância, de Mari- ciente para adora-lá. Não sou uma visitante. C.')
vaux, Arlequim e Sílvia evocam mu ito a "alde iazin}1a" de
onde vêm e de onde foram separados. O texto opoe esse Visitante imóvel, Léone define o espaço onde chega
alhures campestre e idílico (que não vemos jamais) ao lu- e que ela não conhece como o único capaz de "are jar"
xo inútil da Corte do Príncipe, o passado aldeão apare- aquele de onde vem e que ainda a acompanha por inter-
cendo como uma Idade de ouro. A oposição .e n tre os médio da mala.
dois espaços , um idealizado, o outro real, estrutura o en- O espaço é também .um dado interior que as perso-
redo até o desfecho , quando os encantos dos a m o re s nagens trazem 'consigo. Por isso n ão nos podemos limitar
campestres mudam d e se n tid o . à an álise dos lugares e dos espaços "úte is" ao desenrolar
Um "a lh ures" muito célebre é o do Misantropo de do enredo e à sua representação. Em sua tese sobre Vic-
Moliere , em que o deserto evocado por Alceste no final tor Hugo, Le Roi et te bou.ffon [O rei e o bufão], Anne
da peça intriga os comentadores. Ele é interessante en- Ubersfeld mostroucorno o espaço textual revelava tensôes
quanto espa ço do "n ad a ", lugar de quase-sonho que se e engendrava uma dinâmica ligada à ação. O espaço de-
opõe ao espaço da corte e à vida cotidiana nos saloes tal ve ser sempre ocupado ou defendido, assemelha-se com
como Alceste não a quer mais viver. Deserto "te rra de freqüência a um território, revela as Implicações e os fan-
ninguém" ou deserto metáfora da morte (a partida de AI- tasmas das personagens e, como tal, pode ser uma das
ceste poderia parecer um suicídio), seria interessante para metáforas que dão sentido a uma obra.
um cenógrafo instalar nele Versalhes . Mes~o sendo de-
ma siado radical, a proposição exprime o universo de uma
personagem para a qual parece só haver es sa alte rnativa
ao salão de Celimena.
90 jj'vTRODUÇÃO À ANÁLISE DO 7EA TRO ABORDAGENS lVJE TÓDl CA S 91
outr(). Fica claro também que Sarraute não cessa de jogar sa", mais difícil ainda fazer sentir o que não passa, e
com a linguagem e com suas derrapagens. O lugar da pa- transmitir, por exemplo, o tédio sem entediar, ou a dura-
lavra é, talvez, o verdadeiro espaço do confronto, pois ir ção sem cansar. Apreender o tempo como metáfora é
à casa do outro, na peça, é entabular a conversação. Para ,Portanto uma operação ainda mais preciosa.
Sarraute, se existe um território perigoso no qual um indi-
víduo não pode se lançar sem riscos, é o da troca verbal,
com todas as suas armadilhas e incertezas. É também o Sobre algumas marcas do tempo no texto
lugar onde nos arriscamos literalmente a estar "na mão"
do outro. . A marca comum da passagem do tempo no texto é a
O trabalho sobre o espaço revela redes de sentido parada, a interrupção, literalmente o intervalo, às vezes
que não dizem respeito necessariamente ao espaço cêni- sublinhado pela indicação cênica de um "escurecimento".
co, mas que fazem avançar na compreensão do texto. Esses vazios da ação em que o tempo se perde são trata-
dos diferentemente do ponto de vista dramatúrgico. Para
os clássicos, é preciso justificar e portanto preencher de
3. Análise das estruturas temporais maneira coerente os espaços entre os intervalos, e, como
vimos, ocupar as personagens mesmo quando não estão
Como chegamos a "pensar" o tempo no texto, quan- em cena. Isso equivale a estabelecer uma espécie de "co-
do esse é um dado ainda mais abstrato? Como vimos, o bertura" temporal. A prática moderna, que joga muito
tempo intervém em vários níveis. Em primeiro lugar, no mais com a elipse, não se preocupa com 'a fratura, pas-
enredo, quando estabelecemos uma cronologia que re- sando ao leitor ou ao espectador a tarefa de ocupar men-
constitui o desenrolar dos acontecimentos, sua sucessão, talmente esse tempo.
a maneira como eles são longamente desenvolvidos ou, Outras marcas textuais remetem explicitamente ao
ao contrário, comprimidos e como que concentrados, e palco e a procedimentos que acabaram por constituir uma
mesmo evitados por elipses, remetendo aformas contínuas tradição. Ao desregular o relógio de pêndulo que marca o
(dramáticas) ou descontínuas (épicas). Não voltaremos a tempo do casal Smith em A cantora careca, Ionesco ironi-
essas análises, esboçadas de uma outra forma no capítulo za um velho truque utilizado com fteqüência pelos drama-
2 a propósito do enredo e da intriga. turgos realistas e que consiste em dar a hora em cena fa-
Num terceiro nível, o tempo tem uma dimensão me- zendo soar um relógio ou um sino ao longe. Por um pro-
tafórica equivalente àquela do espaço. Pode assim existir cedimento semelhante, Beckett marca uma curiosa passa-
um tempo próprio a cada personagem, que traduz suas gem de estação em Gado! ao fazer crescer as folhas da ár-
preocupações e os choques das diferentes subjetividades. vore única do cenário aparentemente em apenas uma noi-
Todos esses dados temporais passam para a repre- te. Em ambos os casos, os dramaturgos jogam com a con-
sentação. Tais questões não nos interessam diretamente venção teatral muito artesanal que consiste em deixar as
aqui, mas constatamos que, se o espaço cênico adotado marcas do tempo a cargo da trilha sonora ou de um sinal
na representação concretiza todas. as escolhas espaciais visual explícito. Os autores são donos do tempo, a ponto
operadas anteriormente, o mesmo não acontece em rela- de poderem fazer soar os relógios de pêndulo quantas ve-
ção ao tempo, cujas marcas estão como que diluídas no zes quiserem. ou fazer as estações se sucederem como por
texto, no espaço, nas personagens, no ritmo do espetácu- magia. Mas eles dão a entender que esse domínio é ridí-
lo. É e~identement~ difícil fazer sentir "o tempo que pas- culo se apenas fornece à cena sinais grosseiramente esta-
94 INTRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO mATRO ABORDAGENS METÓDICAS 95
belecidos, renunciando de antemão a uma tradução fina onde nos encontramos . Depois chegamos a uma com-
ou mais su b je tiva da temporalidade. , p reensão do tempo tal como ele estrutura a obra e lhe dá
Essas alegres caricaturas das convenções cênicas não sentido. A primavera de O jardim das cerejeiras é uma
devem impedir que se leve a sério um teatro para o qual primavera qualquer que podemos ter vivid ? ou i~agina
o estabelecimento preciso da temporalidade é essencial. do. Além disso, é essa primavera , a que faz reflorir as ce-
Assim, no início de O jardim das cerejeirtÇls, de Tchecov, rejeiras ameaçadas no exato momento em que Liubov
a repetição de informações dá a medida d a questão tem- volta de viagem, uma primavera que é o p onto de partida
poral para uma obra que fala precisamente darpassa- do enredo. .
gem" do tempo e de suas conseqüências. Em primeirolu- . O di álogo fornece indicações que inscrevem a a ção
ga r nas indicações cênicas que precedem o ato I: num tempo real , ou melhor, universal , e que dão também
sentido a esse tempo. Assim, n o início de Fedra, os se is
Amanhece; o so l 'logO irá nascer. No m ês de maio,
meses de ociosidade de que fala Hipólito, impaciente por
as cerejeiras já est ão em flor, mas fora faz frio; geada
branca. As janelas estão fechadas. Entram Duníacha, tra- deixar Trezena e ir em busca de Teseu, marcam o fim de
zendo uma vela, e Lopakhine, com um livro na mão. um equilíbrio precário e dão uma espessura a essa dura-
ção, São se is meses especiais, primeiro enunciados:
Depois, no início do diálogo:
Na dú vid a mortal que me agit a ,
LOPAKHI NE: O trem chegou , gr aç as a Deus. Que Começo a envergonhar-me de minha ociosidade.
horas são? Há seis me ses afastado de meu pai ,
DUNIACHA: Quase duas horas . (Soprando a vela): Já Ignoro o destino de t ão querida pessoa.
é dia.
Depo is , coloridos de maneira diferente:
O que está em jogo é menos a abundância e a preci-
são dessas indica çõe s que o grau de sutileza com que Esse tempo feliz acabo u. Tudo mudou de rosto,
De sde que a essas praias os Deuses enviaram
elas irão intervir em cena de maneira a combinar com o
A filha de Minas e de Pasífae.
conjunto da obra . É preciso assim ir além da anedota e (Ato I, cena 1)
não se apegar a um referente exclusivamente realista. A
temporalidade teatral que se inscreve de saída é a de uma Cada obra instala portanto seu próprio sistema tem-
expectativa , a do amanhecer, a de uma primavera ainda poral, do qual podemos investigar a coerência do ponto
incerta, a do trem cuja chegada marca o fim de uma épo- de vista da ficção e também, como fizemos com o espa-
ca a estada de cinco anos no estrangeiro de Liubov. Es- ço, o interesse metafórico. .
sas informações são concretas (a hora, a estação) mas são
também portadoras de uma outra dimensão, própria da
peça. Uma época termina e outra começa, como que por- O tempo metafórico
tadora de uma esperança. Assim como para o espaço, a
leitura do tempo se faz em vários níveis. Não devemos Tal como o propusemos em relação ao espaço em
negligenciar o tempo da narrativa que a inscreve numa Pour u n oui ou pour un non, podemos fazer o mesmo
duração real, a da história , aquela que podemos medir de trabalho em relação ao léxico e a gramática do tempo em
96 INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO TEA mo ABORDAGENS METÓDICAS 97
A dupla inconstância, de Marivaux. Desta vez dispensa- replica Lisette, que permanece no tempo real da intriga .
mos as cit ações do levantamento sistemático no texto e Pois todos os esforços de Flamínia e de Trivelin consis-
passamos imediatamente à análise dos dados temporais. tem em fazer o Príncipe esquecer esse interminável pre-
Por comodidade, consideramos dois eixos temporais sente da espera , reunir o passado e o futuro , não dar im-
principais, o do Príncipe e o do casal Sílvia /Arlequim, na portância aos tempos da conjugação e ao tempo real. O
m edida .em que as questões em jogo referem-se sobretu- Príncipe não deve esperar quando seu desejo, a Lei e as
d o a essas três personagens. predições dos astrólogos coincidem . Cumpre portanto
O tempo do Príncipe articula-se e m torno de um da- oferecer-lhe um tempo sem presente. "Aca b o u -se, aca-
bou , vai acabar", escreverá Beckett a propósito de um ou-
d o n ão habitual para este , a espera . Ele espera que Sílvia
tro tempo em que o presente dura demais.
ace ite casar com ele. Essa espera começou no momento
O tempo de Sílvia e de Arlequim pertence a um ou-
d o encontro , e n u n ciad o na melhor tradição pastoral:
tro mundo e pode-se dizer que eles fazem na peça a
aprendizagem do tempo. Seu amor estava situado fora do
Eu vos disse que um dia, na caça, afastado de meu
tempo, na felicidade pastoral de uma idade de ouro na
grupo, en contrei-a perto da casa del a; estava sedento. ela
foi bu scar-me o que beber; fiquei encantado com sua' be- qual os juramentos eram desnecessário s. Depois Sílv ia
leza e sua simplicida de e confessei isso a ela , Tornei a p ede para ser tranqüilizada :
vê-Ia cinco ou seis vezes ela mesma maneira c...).
(Ato 1, cena 2) Mas prometa-me também que sempre me amará.
.i
98 INTRODUÇÁ o Á ANÁLISE DO TEATRO ABORDAGENS METÓDICAS 99
LEITIJRAS RECOMENDADAS
1. O estatuto da fala
Diálogo e monólogo
de um ve rda deiro intercâmbio. Assim, no teatro cláss ico , exte nsão , que fa ze m pensa r num duelo ve rb a l quando
o diálogo assemelha-se às vezes a uma série de monólo- cresce a ten sã o dramática .
go s emendados pelas pontas, a tal ponto é importante a As escritas dramáticas dos últimos an os contribuíram
extensão da intervenção de cada uma das personagens. para confundir as pistas. Assistimos a um grande retorno
Pode até ser necessário um certo esforço para compreen- do monólogo em todas as suas formas, quando ele pare-
der e m que medida as personagens realmente dialogam, cia definitivamente classificado no rol d as convenções
quando as relações entre os d iferentes enunciados não em po eiradas . Assim, há textos constituídos de monólogos
estão claramente estabelecidas. Por outro lado, o monólo- su cessivos (Berna rd Chartreu x , Marguerite Duras) . Outros
go nem sempre corre sponde a esta definição de Goff- alternam diálogos cerrados e longos monólogos. Quanto
man, para quem . ao diálogo, ele foi como que renovado por experiências
de entran çarnento e entrecru zarnento (Mic he l Vin a ve r)
um ator vai até o centro do palco e dirige a si mesmo um q ue se afastam muito do estrito diálogo alternado em que
discurso c...) que revela, de maneira audível, seus pensa- as réplicas se assemelham a jogadas de pingue-pongue.
mentos íntimos sobre uma questão importante. (Façons Essas construções complexas tornam ainda mais útil um
de parler) trabalho sobre a enunciação, cujo primeiro objetivo é
identificar emissores e dest inatários.
Pois um monólogo pode ser analisado como um diá-
logo consigo mesmo, ma s também com o Céu , com uma
personagem imag inária , com um objeto, com o público, A fala e a ação
na medida em que o ator define seus a po ios de represen-
tação e que toda fala, no teatro, busca seu destinatário, Por uma convenção tácita, admite-se no teatro que
co mo assinala Anne Ubersfeld em Lire te théâtre. todo discurso das personagens é "ação falada " (Pirandello)
O diálogo nem sempre é fruto de dois discursos ou, em outros termos, que "falar é fazer". No entanto, as
contraditórios , de duas consciências que se enfrentam. relações entre as situações de fala e as situações dramáti-
Em certos diál ogos líricos, em particular, em que as répli- cas variam consideravelmente. Uma personagem fala para
cas se alternam, os enunciadores na verdade colaboram agir so b re a outra , para comentar uma ação realizada ,
na produção de um mesmo texto que a parece dividido a n u nciar uma outra , lamentá-la , enaltecê-la . A fal a de
apenas por razões arbitrári as , e que portanto se asseme- uma personagem organiza sua relação com o mundo no
lha ao monólogo. . uso que ela faz da linguagem. Distinguem-se geralmente
Além do mais, às ve zes é difícil identificar uma fala dois casos mais importantes:
própria a cada personagem, que a caracterize. Essa iden- - a fala é ação: o próprio fato de falar constitui a
tificação ocorre no teatro naturalista, em que uma perso- ação da peça (exemplo típico: Beckett):
nagem se define por sua linguagem, mas raramente ocor- - a fala é instrumento da ação: ela desencadeia ou
re no teatro clássico, no qual as réplicas e as tiradas de comenta a ação (exemplo típico: o teatro clássico).
todos obedecem às mesmas regras retóricas e utilizam o Algumas obras combinam esses dois estatutos dafa-
mesmo léxico . Mas o diálogo clássico também pode se la ou os alternam. Quando a fala se limita a dizer o que
assemelhar a uma troca verbal cerrada, quando a estico- est á sendo ou poderia ser representado, o resultado é um
metria faz alternar réplicas breves (um ou alguns versos, diálogo monótono, Como nas improvisações em que os
is ve zes duas ou três palavras) , em princípio de mesma atores fazem a p e n as o comentário ve rba l daquilo que
104 IIVTRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO TEA TRO ABORDAGENS JHETÓDICAS 105
mostram: A menos que seja escolhida e afirmada , a redun- de uma natureza e uma extensão excepcionais. Quando
dância sistemática raramente é interessante. Em contrapar- escapam ao tédio da "re citação" ou da proferição obriga-
tida, o teatro explora as oposições que existem entre a per- tória , elas ampliam de maneira notável o território co-
sonagem e seu discurso, entre a fala e o contexto de sua mum do texto de teatro.
enunciação. Em Dom ]uan, o herói obriga Esganarelo a Ao longo deste estudo , utilizaremos o termo fala pa-
servir o jantar quando a visita do fantasma do comendador ra designar os textos pronunciados peJas personagens ,
é anunciada. Daniel Lemahieu, em Usinage, faz com que a embora isso seja abusivo de um ponto de vista teórico.
operação do cão ensangüentado seja comentada pela noi- Com efeito, esse termo design a a n te s um uso individual
va à mesa do banquete de núpcias. Esses desvios e essas da língua numa situação de com un icaç ão real. Mas o ter-
rupturas trazem à tona as incongruências do real e expõem mo discurso, se é teoricamente mais satisfatório, também
os conflitos ocultos. Cabe-nos portanto assinalar também permanece ambíguo, devido a suas acepções correntes.
se o que é dito corresponde sempre ao que é esperado ou Digamos desde já que a personagem de teatro não faz se-
antecipado, e como se combinam a palavra e a ação. não simular a fala.
O conjunto do estudo desses enunciados de superfí-
cie deve ser confrontado ao estudo das estruturas profun-
E as didascâlias? das de uma obra, especialmente as e struturas narrativas.
enunciados, ou seja, pelo que é dito, trata-se .d e levar em duos devem ter um do outro para estabelecerem a rela-
conta tudo o que, numa troca verbal , é portador de senti- ção . Goffmann escreve:
do em si mesmo. Embora estejamos habituados a consi-
derar a fala como algo óbvio, o sócio-lingüista E. Goff- Afirmarei portanto que a vida social é lima cena, não
mann sublinha que em nossa sociedade , ao contrário, como uma grande proclamaç ão literária, mas de forma
constata-se que simplesmente técnica , a saber: que as necessidades fun-
damentais da teatralidade acham-se profundamente incor-
de maneira geral (e, em particular, entre desconhecidos), poradas à natureza da fala. Uaçons de parlen
o silêncio é a norma e a fala algo que deve poder ser jus-
tificado. (Façons de parler) . Se tomarmos as coisas na perspectiva inversa, pode-
mos afirmar que o estudo de um texto conversacional
A análise dos dados 'e x tralin gü fsticos da interação permite formular hipóteses sobre a teatralidade mínima
permite compreender por que e como os enunciados se indispens ável para que as trocas possam se efetuar de
formaram. Sem entrar aqui nos detalhes das pesquisas so- maneira satisfat ória . Se é preciso um contexto para que a
bre o assunto, retenhamos que em toda comunicação ver- conversa ção exista , é esse contexto mínimo que se deve
balas sujeitos fundam sua comunicação sobre pressupos- construir no momento da passagem ao palco de um diá -
to s de dois tipos . Enquanto ritual social , a conversa ção logo de teatro, pelo menos se admitirmos que a fala de
estabelece suas trocas em fun ção do quadro social acerca uma personagem jamais é arbitrária .
do qual os indivíduos já têm um conhecimento apropriado.
Em segundo lugar, uma conversação se desenvolve se-'
gundo um código de relações já estabelecido entre os in- o diálogo de teatro como conversação
divíduos que falam. Assim, o simples fato de fazer uma
pergunta denota um poder que o locutor se atribui e que Para além do sentido ordinário de "conversação", fa-
portanto , geralmente, ele se permite manifestar. Confor- la que se manifesta quando um pequeno número de par-
me o contexto, a pergunta "O que você fez ontem à noi- ticipantes se reúne e se comunica numa situação percebi-
te?" pode ser compreendida como simples curiosidade da como um momento de lazer, na prática sociolingüístí-
amistosa ou como o começo de um verdadeiro interroga- ca a palavra é utilizada de maneira menos restrita, como
tório, na medida em que o enuncíador penetra na intimi- equivalente de fala ínte rcarnb íad a , de encontro no qual se
dade daquele a quem se dirige. Além disso, não fazemos fala. Esse intercâmbio de falas, sejam quais forem as cir-
tal pergunta sem nos acharmos com direito e sem espe- cunstâncias consideradas, é o que nos interessa aqui. Pier-
rarmos uma resposta a ela . re Larthornas observava similitudes entre o diálogo de te-
Toda manifestação da fala apóia-se em pressupos- atro e o diálogo comum:
tos, leis não escritas que regulam as relações verbais en-
tre os indivíduos e por vezes se assemelham a verdadei- E o diálogo propriamente dito? Como progride? Há vá-
ros 'ritu a is . A manifestação dessas regras, o modo como rios meios de encadear réplicas; quais o autor escolheu? E
por quê? Quase nunca se responde a essas perguntas. Ou
são respeitadas ou infringidas, informa-nos sobre as rela- melhor, elas jamais são colocadas... Esquecemos, ignoramos
ções que se estabelecem entre os sujeitos falantes. Toda ou fingimos ignorar que nos encontramos diante de obras
conversação pode, então , ser analisada como um texto cuja característica essencial é serem escritas em forma de
num contexto, o do conhecimento mútuo que os indiví- conversa ção a ser representada. ( Le langage dramatique)
lüR INTRODUÇÃO À ANÃLISE DO TEA mo ABORDAGENS METÓDICAS 109
Catherine Kerbrat-Orecchioní, por sua vez, assinala bém - ou principalmente - no eixo externo, entre o Au-
que um texto teatral (com exceção das didascálias) é tor e o Leitor ou o Público , através de uma cadeia de
emissores. O que é chamado de dupla enunciação no tea-
lima seqüência estruturada de réplicas a cargo de diferen- tro explica essa particularidade. Na comunicação mais
tes personagens que entram em intera ção , ou seja, como imediata, um ator fala a um ator, assim como na vida or-
lima espécie de "co nve rsa ção ". (Pour une approcbe prag-
matique du dialogue théâtrale)
dinária um emissor conversa com um receptor. Mas esses
atores são apenas a expressão de uma outra troca situada
o interesse de alguns pela "transmutação" do mate- desta vez ao nível da ficção, em que uma personagem
conversa com outra personagem. Por trás das persona-
rial conversacional em teatro é tal que um lingüista ameri-
gens encontra-se o verdadeiro emissor de todas essas fa-
cano, Bryan K. Crow, entregou-se a uma interessante ex-
las, o autor, que se dirige a um público. O público tem
periência. Após ter coletado umas sessenta horas de con-
portanto o estatuto de destinatário indireto, pois é a ele,
versas entre casais para estudá-las em seu doutorado, ele
em última instância, que todos os discursos são dirigidos,
acab o u tentado, diante do interesse humorístico e dramá-
ainda que raramente o sejam de maneira explícita.
tico desse material , a escrever uma peça de teatro, organi-
za nd o em forma de montagem algumas delas. Todas as outras combinações são concebíveis, por. .
exemplo que uma personagem reconheça explicitamente
Para esses pesquisadores, o material teatral permite
a presença do público e lhe destine seu discurso, ou mes-
verificar a pertinência de seus instrumentos de análise e
mo que um ator, abandonando sua personagem, dirija-se
o p e ra r um movimento de vaivém entre o campo teatral e
ele próprio ao público, ou aos outros atores, ou às perso.~
o campo conversacional, a fim de melhor avaliar seus '
nagens. Essas variações resultam de dramaturgias diferen-
desvios. Todos, aliás, sublinham a diferença de organiza~
tes, do épico "puro" ao dramático "puro". Também são o
ção do material , já que por trás do diálogo teatral existe
índ ice das estratégias de informação do autor, que decide
um autor cuja função é preordenar as seqüências dialoga-
o que o público deve saber e como deve sabê-lo. Recep-
das, manifestar intenções, organizar o discursodaspe~so
tor extracênico, o público encontra-se na maior parte do
nagens em função de um objetivo supremo, a comunica-
tempo na situação estranha daquele que surpreende uma
ção com os espectadores. conversa que não lhe é destinada, ainda que seja, decidi-
damente, o alvo de todas as informações veiculadas pelos
diferentes discursos.
Desvios - O 'q ue é escrito no teatro é falso, deliberadamente
maquinado, destinado a produzir sentido, seja qual for a
Há desvios evidentes entre o falar comum e o uso maneira como esse sentido se elabore. Temos de analisar
da fala no teatro, onde acontece de se falar, por exemplo, como os diálogos são construídos pelos diferentes auto-
em alexandrinos. O caso particular do. teatro na literatura res, e o que estes esperam deles. Assim, o teatro contem-
deriva do fato de que, na representação, são geralmente porâneo trabalha muito a linguagem cotidina. C. Kerbrat-
emissores humanos que fazem um uso incomum da lín- Orecchioni declara a esse respeito que
gua comum. São essas diferenças entre dois tipos de situa-
ção de fala que nos interessam. . o discurso teatral elimina muitas escórias que atravancam
- A comunicação teatral não opera exclusivamente a conversação ordinária (defeitos de pronúncia, ínacab à-
no eixo interno da relação entre os indivíduos, mas tam- mentos, vacilações , lapsos e reformulaç ões, elementos de
A BORDA GENS METóDICAS 111
110 INTROD UÇÃO Ã ANÃ LlSE DO TEA mo
pu ra função fática, co mpreensão mal-sucedida ou retar- si m p les mas essenciais, consistem em perguntar quem fa -
damento) e apresenta-se como muito edulcorad o em re- la a quem e p or quê. O te cido rel acional que se estabele-
lação à vida co tidiana. Cart . ci ta d o) ., ce em ce na entre as personagens resulta da ate nção dada
às trocas verbais que o texto propõe. Esse tecido relacio-
Ora , um autor contemporâneo como Daniel Lema- nal justifica e produz a fala .
hieu p arece pensar o contrário quando escreve, nas notas Isso não quer dizer que o te atro é "co mo " a co nv e r-
de trabalho que acompanham Usinage, que busca "ter um sa ção ou que ele decalca a vida, mas que, através da lin-
te at ro so b re a linguagem", isto é, lev ar em co nta g u a g e m, ele dá conta das rel a çõe s humana s mesmo
quando as critica o u as parodia. O te atro do silêncio, que
as hesit ações, imprecisões, titubeios, repetições, embara- se estabelece portanto em ruptura com a fala humana , in-
ços, perturbações, em suma , 'perseguir a lingu agem em terroga igualmente esta últ ima , através de sua ausência .
tod os os seus me and ros: Precisamos identificar o s desvios, implícitos ou ex-
plí citos, entre .a conversação e o diálogo, ana lisa r as rela-
Em outros termos, mesmo o teatro não sendo con- çõ e s entre C?S emissores, compreender as estratégias de
versaçã o , é im p o rta nte para muitos autores buscar nela informação d o autor e constru ir a lg u mas h ipóteses sobre
se us m ateria is sem filtr á-los nem edulcor á-Ios em dema- se umo do d e escrita .
sia, mas antes "co m b iná -los", como e sc re ve Michel Vina-
ve r. Claro que o teat ro n ão registra todas as vicissitudes
da fala viva . proferida por sujeitos ativamente envolvidos 3. Para um estudo do diálogo
na conversação, mas ele encontra nesta se u alimento. O '
projeto artístico existe quando os cruzamentos, sobrepo- Os temas do diálogo
s ições e entrelaçamentos de Michel Vin aver ou os "emba-
ra ço s" de Lemahieu não são uma simples ordenação, mas Numa primeira abordagem de um fragmento de diá-
conduzem a efeitos de se nt id o , àquela "inte rm itê n cia" de logo, trata-se deid~r.g.inç~[çOm precisão sobreoque.fa-
que fala Vinaver, que não existe nos m ateriais informes Iam a~ pe~sonag~I1s. Duas dificuldades se a p rese ntam.
que ele pescou no fluxo do cotidiano. Tudo é permitido E tentador limitarmo-nos aos grandes temas , ao que
no diálogo teatral , tanto mais que no diálogo a fala está pressentimos como im p o rta n te para um conhecimento
sempre em busca de seu destinatário. global da peça, ou, quando é uma obra conhecida , ao
que é tradicionalmente apresentado como essencial. Nes-
se caso, ao classificarmos depressa demais os temas da
fala nos quadros pré-fabricados do sentido, deixamos de
Interesse prático desse modo de análise
fazer um verdadeiro levantamento.
Em segundo lugar, é difícil às vezes separar os con-
A partir da a n á lise textual é possível inventar uma
teúdos dos enunciados das im p lica çõ es da fala , das rela-
encenação imaginária, baseada nas interações da fala e
ções de força entre as personagens. 'Ora, nesse trabalho
nas interações das personagens, que não parta de idéias
de identificação, precisamos também perseguir os temas
prontas sobre estas nem de decisões a rb itrá rias . Na p assa-
a p a re n te m e n te marginais, reservando para mais tarde a
gem à cena , escolhas a rtísticas são indispensáveis , mas
classificação e evitando qualquer decisão apressada sobre
estas se fundam , entre outros dados, sobre a análise das as origens das réplicas.
s itua ções de fala . As primeiras decisões da representa ção.
112 INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO TEA mo ABOR DA GJ:NS ME TÓDICA S 113
Mantenhamos pelo maior tempo possível um estatuto assunto? Começamos a ter uma idéia das relações de força
de leitor "ingênuo", sem sucumbir ao encanto simplificador e da maneira como os diálogos são estruturados pelo autor.
das idéias gerais. Para tanto, nomeemos os temas com pre-
cisão. Ao redigi-los identificamos distinções, ao passo que
uma síntese antecipada anularia as diferenças. A questão Os pressupostos da fala
da organização e da hierarquização dos temas coloca-se
apenas num segundo momento . Combinemo-la com o A questão que sempre retoma é saber por que a per-
exame das relações de força entre as personagens (co m sonagem se autoriza a falar como fala , lembrando-nos que
que objetivo elas abordam um tema, mudam de tema?) e o o silêncio é a norma e que nenhuma fala é espontânea.
estudo das questões ligadas à estratégia de informação do Estabeleçamos os dois quadros principais, já evocados.
autor (era indispensável que certos temas fossem levanta- - o. quadro social: O código social é ou não respeita-
dos pelas personagens dentro do enredo?). Esse trabalho do? Assim, em Britannicus, de Racine, o discurso de Albina
revela-se muito frutífero no teatro contemporâneo, em que a Agripina, sua patroa, surpreende por sua extrema firmeza
os temas podem apresentar um caráter anódino, sem vín- (perguntas, admoestações, dureza do imperativo final):
culo aparente com a evolução da situação. Mas ele é igual-
mente útil no teatro clá ssico, por exemplo, no Dom juan o quê! Enquanto Nero se entrega ao sono,
de Moliere (ato 1, cena 1) em que Esganarelo começa a É preciso que verihais esperar seu despertar?
peça evocando Aristóteles, a filosofia, o ' uso do tabaco, as Que vagando no palácio sem séquito e sem escolta
grandes leis morais, a arte de ser um homem educado, os A mãe de César vigie sozinha à sua porta?
princípios que regem a v id a em so cie d ad e, sem aludir a ' Senhora, regressa i a vossos aposentos.
se u patrão nem ao que o leva a conversar com Gussman. (Ato 1, cena 1)
Essa abertura "ao lado", além de seu caráter de exposição
original, fornece informações sobre a personagem, sobre Notemos o poder da confidente, mas sobretudo o
alguns de seus temas favoritos e sobre seu gosto pela dis- caráter pouco habitual da situação, na qual a fala, que de-
sertação moral a propósito de tudo e de nada. veria ser mais respeitosa , infringe o código social e deixa
transparecer um estado de crise. Em toda análise, obser-
vemos se a fala vai no sentido do que é esperado ou, ao
o. que está em jogo no diálogo o
contrário, rompe com código previsível.
- o. quadro relacionaI: as falas íntercarnbíadas pres-
o respeito às regras conversacionais supõem que um tipo de relação existe entre as .p e rso na-
gens, que lhes permite falarem-se como falam. Seus dis-
cursos fundam-se num implícito, em elementos relacío-
Embora não se trate de verdadeira conversação, é
nais que elas conhecem e dos quais o autor tira conse-
útil observar se as regras elementares da conversação são
qüências e decide revelar ou não ao leitor. Assim, em Lo-
respeitadas (há alternância, cooperação?) ou, ao contrá-
rio, infringidas (as personagens escutam-se, respondem-
renzaccio, de Musset (ato 2, cena 2), o implícito é forte
se, cortam-se a palavra?). Assinalemos também se 'el as de- neste fragmento de diálogo:
monstram brevidade ou se fazem longos discursos , di- - LORENZO: És coxo d~ nascença ou por acidente? .
gre ssõ es, retrocessos. ' Elas deixam que se instale um in- - TEBALDEO: Não sou 'coxo; que quereis dizer com isso?
tercâmbio ou , ao contrário, mudam freqüentemente de - LORENZO: És coxo aLI és louco. .
114 INmODUÇÀO À ANÁLISE DO TEAmo ABORDAGENS METÓDICAS 115
tudo se move e tudo flutua. Nada jama is está totalmente No grande jogo teatral do enunc íador-dest ínat árío, a
exposto (...) e os equilíbrios que ali se realizam sempre força da réplica pode até ser a resposta a uma pergunta
s ão precári os e provisórios. (C. Kerbrat-Orecchioni , art. que não figura no diálogo mas à qual a personagem re s-
citado) ponde como 's e respondesse a si mesma . Realmente tudo
pode ser cogitado quando lemos o texto com a idéia de
A dinâmica das trocas, a maneira como um movimen- que "ne nh um a fala é evidente, de que ela entra no quebra-
to se efetuou entre a .p osição que a personagem ocupa e a cabeça d as enunciações e de que , ao trabalharmos p ara
p osição seguinte, sã o pistas. Isso supõe que o destinatário resolver tais questões, trabalhamos no se nt ido do texto.
d a fala é sempre claramente identificado, o que est á longe
de se r o caso. Toda fala, no teatro, bu sca seu destinatário,'
o que é verdade p ara o diálogo, quando vári as persona- Estratégia d e informação
gens estão em cena, quando algumas estão ocultas (desti-
Conforme aludimos a propósito da dupla enuncia-
n atários indiretos co mo Orgon debaixo da mesa em Tartu-
ção, a fala das personagens tem também por função for-
/ 0) , qu ando o utras, embora au sentes, são convocadas pela
necer ao leitor, e posteriormente ao espectado~, informa-
fala. Isso também é verdade para o monólogo, do qual já ções sobre o que se passa , sobre o desenvolvimento d a
dissemos que tinha necessariamente um destinatário. Seja intriga. Portanto os enunciados devem também ser consi-
como for , a escolha final do destinatário muitas vezes só derados desse ponto de vista. Fala -se de estratégia na me-
a contece nos ensaios, por uma decisão do diretor. dida em que o modo como a informação é transmitida
a texto de teatro 're vel a-se assim, em últ ima análise, corresponde , p ara um autor, a uma vontade .declarada ,
comÕüm a pã'íXõiiân te jogõ "cfe'Tarisêm busca de destina- em função de uma época, de uma estética ou , pelome-
'tá"tíbS," c'o m Ó ' fragrriénios dé Tíãgüagem â'êamÍnh'o'de "um nos, do caráter específico de uma escrita. Para os clássi-
'd estino , tal como é sublinhado por r éplicas famosas: ,uÉ a cos, e para um teórico como o abade d'Aubignac, por
mim que ,esse ,d iscu rso se dirige?"nui1~~~t]1ài,s'éúi~:,a fOf- exemplo; a informação deve ser completa, nada deve fi-
ma nobre de uÉ comigo que você está falando?", que tra- car na sombra, nem nas cenas de exposição nem no des-
duz, na vida cotidiana, ' ó espanto real ou fingido de ser fecho, no qual a sorte de cada uma das personagens ?eve
aquele a quem se destina um discurso em que tudo, no ser definida. Em contrapartida , o teatro contemporaneo
enunciado, fazia supor o contrário. Do mesmo modo, os serve-se amplamente de resumos narrativos, da elipse. A
discursos retóricos abundam em "falsos" enunciadores (o ambigüidade que é por vezes nele cultivada deixa uma
enunciaclor faz falar um outro em seu ll!gar, por exemplo participação mais importante ao trabalho do leitor.
ABORDAGENS METÓDICAS 117
116 INlRODUÇÀO À ANÁUSE DO TEA mo
d a a rte . Essas considerações sã o e videntes para o teatro s ua prática , a distribuição d a fala entre os a to res como
escrito em versos, m as tais ca sos p art icu lares n ão d evem o utros tantos enunciadores e d estinatários p a rticularmen-
faz er esque cer que e xistem em tod o texto de te atro rela- te sen síve is a ess a estranha situação de comunicação, ao
çõe s entre os elementos materiais d o discurso, indepen- mesmo tempo verdadeira e ardilosa, comum e artística .
dentemente de se u s enunciadores. Existe em todo teatro
d igno desse nome um trabalho sobre a língua qu e faz
com que haja um uso não co mu m da linguagem com um , 4. Exemplo de análise
se m que apareçam sempre as marcas d eurna p oesia devi-
d amente repertoriada . Devemos p ortanto levar em co nta Ma riua u x, A dupla inconstância.
a. qualidade da tessitura léxic a e d a disposição do diálo- Ato 2 , cena 2.
go, tanto m ais que o texto de teatro -é fe ito - o u tra ev i-
d ência que às veze s se perde de vista no estu do un iversi-
(As réplicas são numeradas por nós)
tário - para ser "p os to na b oca '"' ; gritad o , s ussurrado o u
salmodiado, em suma, p ara se r dito. '. O príncipe, di sfarçado com o oficial do palácio; Liset-
te, disfarçada como dama da corte; Sílvia; Flamínia.
HIpóteses sobre a escrita de um autor · 0 príncipe, ao ver Sílvia, saúda-a com muito respeito.
1. Sílvia - Oh! estais aí,senho r? Então sabíeis que eu
estava aqui?
O estudo a o m icrosc ópio de um fragm e nto de texto 2. O príncipe - Sim, senhorita, eu o sab ia; mas me
de te atro leva a perceber melhor as características de uma havíeis dito para não mais vos ver, e eu não teria ousado
escrita, pelo meno s na peça em questão. É difícil falar de aparecer sem essa dam a, que desejou que eu a acompa-
uma escrita a não se r p or generalidades . Por isso as aná li- nhasse , e que obteve do príncipe a honra de vos fazer a
se s minuciosa s concernentes ao re gime da fala , ao modo reverênci a.
de informação, ao sistema de enuncia ção, ao próprio A dama não diz nada e apenas olha Sílvia com
grão da linguagem, são preciosas p ara apreender as ca- atenção; ela e Flamínia trocam sinais de conluio.
racterísticas de uma escrita. A passagem pela análise de 3. Sílvia, suavemente - Não estou aborrecida por vos
detalhe facilita o acesso à totalidade do texto. Esse traba- tornar a ver e me encontrais bastante triste. Em' relação a
lho artesanal de descida ao núcleo do texto encontra seu essa dama, agradeço-lhe por me ter feito uma reverência ,
prolongamentonatural na passagem a o palco. O at or e o não a mereço; mas que ela me faça se for seu de sejo; re-
d iretor não têm necessidade de considerações gerais ou tribuir-Ihe-ei como puder; ela há de me desculpar, se fa-
das impressões balbuciantes. A abordagem drarnat úrgica ço mal.
n ão tem por objeto rotular um texto que só se teria , en- . 4, Lisette _ .Sim, minha amiga, desculpar-vos -e í de
tão, de dispor na respectiva prateleira da biblioteca, nem bom grado ; não vos peço o impossível.
'0 esgotamento do sentido que seria fixado para toda a
5. Sílvia, repetindo com ar aborrecido e à parte, e fa-
zendo uma reverência - Não vos peço o impossível!
eternidade. Compreenderurna escrita. é ser capaz..d efor- Que maneira de falar!
mular hipótesessobre seu funcionamento e sobre sua ne-
cessidade. A análise do ponto de vista da enunciação é
1 6. Lisette - Qual a sua idade, minha filha?
7. Sílvia, irritada - Esqueci , minha mãe .
.ürn trabalho teórico que imediatamente se depara com 8. Flamínia, a Sílvia - Muito bem.
Surge O príncipe, fingindo surpresa.
• Mis ett boucbe no origin al. . 9. Lísette - Ela ficou zangada, parece-me.
120 INTRODUÇÃ O Ã ANÁLISE DO TEA77?O A B ORDA GENS M ETÓDICAS 121
10. O príncipe - Senhora , que significam esses discur- palácio ordena ( 4) e am e aç a (6), emb ora tenha come-
sos? Sob pretexto de vir saudar Sílvia, faze ís-lhe um insulto? çad o a falar com estatuto de intermediário discreto (2). O
11. Lisette - Não foi minha intenç ão . Tinha a curiosi- diálogo alterna as réplicas abundantes e circunstanciadas
dade de conhecer essa mo cinha tão querida , qu e desper- (2, 3 , 11) e as réplicas diretas e elípticas, no momento do
ta uma paixão tão forte; e tento saber o que tem de tão confronto (5 a 8 e 12 a 17) .
amável. Dizem que é ingênua, é um encanto camponês
que deve torn á-la divertida ; peça-lhe para no s dar alguns
Posições das personagens, destinatários:
sinais de ingenuidade; vejamos seu espírito.
12. Sílvia - Oh não , senhora, não vale a pena; ele - São ne cessários dois ataques claros d e Lísette (4 e
. não é tão divertido quanto o vosso . 6) p ara que Sílvia responda (7). Ao ataq u e indireto de Li-
13. Lisette, rindo- Ah! Ah! Pedia ingenu idade; aí está. sette ( 11) corresponde a re sposta direta de Sílvia (12) .
14. O príncipe, a Lisette- Retirai-vos, senhora. - Enorme importância dos destinatários indiretos: Síl-
15. Sílvia - Estou perdendo a paciência ; se ela n ão via dirige-se ao oficial do palácio para fal ar a Lisette (3,
sair, zangar-me-ei para valer. "e la"). Lisette dirige-se igualmente a este, mesmo que se ja
16. O príncipe, a Lisette - Haveis de vos arrepe nder
aos b astidores, p ara falar de Sílvia e a Sílvia ( 9 e 11, "ela",
de vosso procedimento.
17. Li sette , retira n do-se, com ar desden hoso - Adeus . "essa mocinha "). Lisette d irige uma parte de seu d iscurso a
Tal objeto me vinga o bastante daquele que o escolh e. um grande ausente, o príncipe (11 e 17, "dize m", "daq u e-
le") e/ou a toda a corte (11 , "dizem que é ingênua") . O ofi-
Sobre esse exemplo, nossas observa ções, não deta- cial do palácio é o enviado do príncipe e seu representante
lhadas, se limitarão ao modo como a fala desvenda as re - 04 e 16), mas não se sabe mais se ele fala em seu próprio
lações entre as personagens. nome, esquecendo ou fingindo esquecer seu disfarce.
O oficial tem ' um estatuto particular na conversação,
Quadro social: já que serve de intérprete às duas mulheres, como se e/as
Quatro enunciadores , sendo que d ois ( o prínc_i ~e, não falassem a mesma língua. O confronto é assim inse-
Lisette) se dissimulam sob uma falsa identidade . Flarnín ia, rido entre as preliminares indiretas e as ameaças finais ,
que faz p arte do estratagema , tem um estatut<:> ~mbíguo. i como se fosse perigoso desenvolver-se um ve rd a d e iro
Espera-se do príncipe que ele fale como um of~clal d~ pa: frente-a-frente. Ainda que breve, esse confronto adquire
lácio e não como o detentor do poder. De L ísette (Irma grande importância.
de Flarninia e filha de um criado do príncipe), que fale O que a fala desvenda-
como uma "d a m a da corte ". Flamínia, aliada e fe tiva do
príncipe, finge estar do lado de Sílvia . Como falará a - Do ponto de vista da ação, o príncipe alcança o
"ca m p o nesa", di ante .d o mundo da corte? que buscava : tornar-se , no d iscurso, o defensor de Sílvia
contra sua própria corte, sob suas duas máscaras. Na fala
Conversação: dos outros, Sílvia passa do estatuto de mulher respeitada
Observam-se primeiramente grandes marcas de cor-
tesia e de polidez ( 2 e 3) , seguidas dos sinais de um con-
1 . (2) ao de encanto rústico (11). Aqui, a fala é ação.
- O príncipe é que é o verdadeiro destinatário de to-
fronto quando Lisette se imiscui brutalmente na conversa
(4) e começa um interrogatório (6). Flamínia tem ~ ~statu
to a p agado de testemunha atenta (8). O falso oficial do
I
,!
das as falas, sob sua dupla identidade: uma cOlnédia é re-
presentada para ele; diante dele, e ele é uma das perso-
nagens. Sílvia recorda o encontro com ele (1). Lisette e
1
122 INTRODUÇÃO À ANÃLJSE DO TEATRO ABORDAGENS METÓDICAS 123
Sílvia o instalam na posição de árbitro de seu confronto. LEMA~IEU, Daniel, "Préludes et figures", notas a Usinage,
O verdadeiro príncipe é finalmente o destinatário último Paris, Th. Ouvert/Enjeux, 1984.
dessa cena que evidentemente lhe será relatada pelas duas MAINGUENEAU, Dominique, Éléments de linguistique
facções. Sob suas diferentes máscaras, ele é de fato o úni- pour le texte littéraire, Bordas, 1988.
co verdadeiro destinatário de tudo o que é dito. SEARLE, ]ohn, Sens et expression, Paris, Minuit, 1982.
- Sílvia e Lisette são, na verdade, as representantes RYNGAERT, ]ean-Pierre, "Le destina ta ire flottant et la ré-
de dois grandes enunciadores, pois o confronto opõe a ponse à retardernent dans le dialogue théâtrale" Mé-
camponesa à dama da corte: cada uma fala por si mesma, tanges offerts àj. Scberer, Paris, Nizet, 1986. '
mas finalmente em nome de todas. Aos dois primeiros ní- UBERSFELD, Anne, Lire te théâtre Paris Éd. Sociales
veis de teatro dentro do teatro, facilmente discerníveis, 1977. '"
acrescenta-se um terceiro, Q dos destinatários sociais. Éaí VINAVER, Michel, Êcrits sur te tbéâtre, Lausanne L'Aire
que ocorre O verdadeiro conflito. O júbilo do leitor/es- théâtrale, 1982. . ,
pectador provém de que ele sabe do segredo e está devi-
damente informado pelo autor do que está verdadeira-
mente em jogo.
O que aconteceria se uma camponesa obtivesse o
estatuto exorbitante de favorita do príncipe, se se instalas-
I
se na corte como sua esposa, e se afirmasse, tanto por suas !
LEITI.1RAS RECOMENDADAS I~
I
DUCROT, Oswald, Dire et ne pas dire, Herrnann, 1972.
GOFFMANN, Erving, Les rites d'interaction, Paris, Minuit, ~
1984; Façons de parler, Paris, Minuit, 1987.
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine, "Le dialogue théâtra-
Iri
d
le", Mélanges offerts à P. Lartbornas, Paris, 1985; "Pour ;e
une approche pragmatique du dialogue théâtrale", c
Pratiques, n Q 41, 1984. m
LARTHOMAS, Pierre , Le langage dram atique, Paris, e
P.u.P., 1980.
~r
"
A ambigüidade, presente já no texto, é reforçada pe- perspectiva histórica , o são menos quando nos debruça-
la representa ção e p el o s di scursos feitos sobre ela. A p er- mos so b re exemplos contemporâneos. Entretanto, n ão é
so na ge m é representada por um at or vivo que lhe em- m ais evidente assimilar Clov , de Samuel Beckett (Fim de
presta seu c o rpo , se us tra ços , su a vo z, sua energia . O ' jogo) , a Hoederer, de Jean-Paul Sartre (As mãos sujas),
efeito de im ita ção, a mim esis, é in evitáv e l. O ator rei vin- Antígona , de Anouilh , a Hl , de Nathalie Sarraute (Por um
dica legitimamente uma relação sensível com a persona- sim ou por um não). Se admitimos as diferenças que exis-
gem que surge como o cadinho de emoções comuns ao in- tem entre uma alegoria medieval (a caridade) e um tipo
térprete e ao público , a ponto de este confundir~s vezes da commedia dell 'arte (Arlequim), n ão podemos de re-
os d o is no mesmo a m o r ou na mesma recusa. Eo caso pente confundi-los sob o mesmo rótulo de personagem.
daquele int érprete de Bouleuard Du rand, de Armand Sa- Ou melhor, podemos fazê-lo desde que tomemos a pala-
lacrou , vaiado tod as as n oites durante uma turnê numa vra pelo servi ço c ômodo que ela nos prest a , sem nos
regi ão mine ira da Fran ça ; certa m e n te porque desempe- obrigar a a d o tar um ponto de vista unificador definit ivo.
nhava muito bem o p apel de um furador de greves . Os As diferentes estéticas teatrais fazem da personagem uma
exemplos de atores que dizem encontrar seus modelos concepção e um uso particulares. Num texto, podemos
na vida, observando transeuntes desde um terraço de ca- ter a.impressão de lidar com uma pessoa, com sua lingua-
fé, contribuem para semear a dúvida . "-- gem, sua identidade completa , seu estado civil , m as isso
No entanto, a personagem no texto adquire formas n ão é ' suficiente para pensar toda s as p erso~agens do
muito diversas, às vezes muito abstrat as, às vezes inscritas mesmo modo, sejam elas de origem mitológica, hi stórica
de maneira mu ítodiscreta na s entrelinhas. Atribuir-lhe de ou terrivelmente abstratas, simp les extensões de palavras
saída a condição de um ser de carne e osso em nome d a reunidas sob a mesma sigla ou o mesmo travessão.
representação é precipitar as coisas.
filha de .Min os e de Pasífae, esquecendo ao mesmo tem- fizeram recuar a tradição da identificação absoluta , per-
po que ela se exprime apenas em alexandrinos. Depois manecem marginais. .
disso, só restaria remetê-la à seção de crônicas policiais De fato , parece que a ficção teatral tem necessidade
dos jornais. da personagem na escrita, como uma marca unificadora
Tal concepção não leva muito em conta a dimensão dos procedimentos de enunciação, como um vetor essen-
artística da personagem, construção voluntária de um au- cial da ação, como uma encruzilhada do sentido. No mo-
tor, soma de discursos reunidos em torno de uma mesma mento da passagem ao palco, o ator geralmente continua ,
identidade útil à ficção. Ela faz pouco caso do contexto em seu trabalho sobre o sensível , a pensar na unidade de
sócio-histórico da escrita , uma vez que assimila e julga os seu papel atravé s do conceito de personagem , mesmo
valores transmitidos no discurso de uma personagem que não se prenda a uma estética da identificação. O pú-
apenas em função de nossos valores ocidentais, definidos blico, enfim, receptor sem o qual a representação teatral
como universais. Na verdade , assimila a personagem a não pode ocorrer, sempre se apóia na personagem para
uma pessoa , e todas as pessoas a um modelo implícito re- entrar na ficção .
conhecido por todos . Falamos hoje de personagens cada vez mais abertas,
deixando zonas de sombra em sua construção, incomple-
tas do ponto de vista da ficção, alternadamente encarna-
2. Apreender a personagem entre otexto e o palco das e distanciadas pelo ator. "Uma soma de significantes
cujo significado deve ser construído pelo espectador", diz
Pode-se dispensar a personagem? Robert Abirached . O contrário d a personagem "co m as
chaves na mão", acrescentaremos, pré-construída, perfei-
Regularmente, teóricos anunciam a morte da perso-: tamente fechada e que não deixa mais nada para ser ima-
nagern, escritores remetem-na aos tempos idos, diretores ginado por ninguém. A verdadeira batalha teórica certa-
de teatro denUnciam a rotina da abordagem psicologi- mente já não é em torno da vida ou da morte da persona-
zante. Nos textos, o grau de realidade de uma persona- .gem, mas em torno da maneira como se pretende cons-
gem pode diminuir até se reduzir ao estatuto de enuncia- truí -la, partindo de uma leitura atenta do texto e não de
dor anônimo, esvaziado ao máximo de características hu- um referente pescado às pressas na realidade , fonte de
manas e de sentimentos. No oratório,.ela não é mais que mal-entendidos e de clichês . A personagem não existe
uma voz. Pode ser previsto partilhar o papel entre vários verdadeiramente no texto, ela só se realiza no palco, mas
atores ou, inversamente, dar ao mesmo ator vários pa- ainda assim é preciso partir do potencial textual e· ativá-lo
péis, ou senão várias personagens, a fim de melhor con- >.
para chegar ao palco. ,.;.. .
fundir as pistas e romper o velho confronto do ator e de
sua personagem. Falou-se então de "estruturas de pa-
péis"; acostumamo-nos com todo o tipo de divisões e va- Personagem a montante, personagem ajusante
riações da história e a não mais fazer da personagem
uma substância, a não mais ligá-la de maneira tão defini- Quando assimilamos a personagem a uma pessoa,
tiva ao texto e o texto ao ator, a acabar com a .trilogia julgamos poder explicar uma pela outra, saltar ao referen-
texto-personagem-ator. Por mais apaixonantes que te- te para justificar a construção artística, encontrar o mode-
nham sido, essas tentativas de transformação da persona- lo na vida para justificar seú retrato. Também aqui, toda
gem, no texto ou no' palco, jamais foram. completas e , se uma tradição oriunda do teatro clássico apóia-se na no-
",
ção de caráter, .ou de essência, e acabou por estender-se 3. Para um estudo da personagem
a todas as formas de teatro. Pois, se é verdade que a per-
sonagem tem referentes no mundo, que ela tem a ver Princípios
com a vida, por outro lado ela se constrói no texto e atra-
vés dele. Se começarmos a leitura de um texto sabendo já Procedamos a levantamentos precisos das indicações
como será a personagem, nada tiraremos do texto a não cênicas concernentes às personagens, dos discursos que
ser justificativas mai s ou menos úteis ao que já queríamos elas pronunciam umas sobre as outras , dos discursos
construir desde o início. Preferimos portanto a hipótese que pronunciam sobre si mesmas, das ações que realizam
a
de um trabalho em que a personagem se constrói jusan- ou que dizem querer realizar no interior do enredo.
te, elabora-se progressivamente a partir do que é assina- " Durante esse trabalho , procuremos permanecer o
lado no texto e só se molda aos poucos. , ' mais perto possível do texto. Para tanto, evitemos as hi-
Na prática, a relação entre o montante e ajusante é póteses psicológicas, os julgamentos morais ou estéticos
mais complexa, sobretudo para a leitura de um texto já que viriam 'de nossas opiniões prévias ou do que ouvi-
muitas vezes representado e enriquecido de toda uma mos a crítica dizer. De qualquer modo, sabemos (ver aci-
memória que se constitui, assim, como meta texto. Daniel ma) que interferências culturais são inevitáveis e que elas
Mesguish é o diretor de teatro que mais amplamente tirou podem ser úteis, o que é um motivo a mais para adiá-las.
conseqüências disso para a representaç ão, não hesitando Os elementos de síntese serão estabelecidos depois que
em pôr no tablado vários atores para interpretar, por os resultados dos levantamentos tiverem sido confronta-
exemplo, o papel de Harnlet, com isso fazendo atuar ao dos uns com os outros, no interior do sistema do texto e
mesmo tempo a personagem e as aquisições da cultura do universo que ele propõe. O recurso a referentes (a
teatral, o texto e uma parte do comentário sobre este, a pessoas, a realidades sociais) só intervém em última ins-
fim de torná-lo mais denso e complexo. Saímos então da tância, como outras tantas hipóteses para a passagem ao
problemática da personagem/espelho psicológico para palco. O essencial é dar conta dos dados textuais estritos
entrar em formas de representação mais elaboradas. e do momento em que eles entram numa construção ar-
Nem por isso o leitor deixa de ter desde o início tística que dá lugar então a escolhas individuais. '
uma imagem da personagem (caso contrário" poderia A personagem é uma encruzilhada do sentido. Há ne-
realmente Ierr) , mas uma imagem que ele deve poder cessariamente trocas entre a personagem analisada como
modificar e sobretudo questionar à medida que refina sua uma identidade ou até como uma substância, a persona-
leitura . Para mim é difícil imaginar O Cid de Corneille gem vetor da ação e a personagem sujeito de discurso. São
sem um Rodrigo enriquecido (ou confundido) por suas essas troc:.as que lhe conferem toda a sua complexidade.
imagens precedentes, sem aquela, brilhante, de Gérard
Philipe. No entanto, entre o interior e o exterior, entre o
montante e a jusante, minha leitura avançará se eu tiver Carteira de identidade
digerido os modelos culturais de que disponho, se não
teimar em buscar Rodrigos em todas as esquinas e, por- Os discursos das personagens são reunidos sob a
tanto, se for capaz de trabalhar numa recuperação com- mesma sigla, que constitui a primeira pista de sua identi-
pleta do texto sem me pretender totalmente ingênuo ou dade. Os nomes atribuídos às personagens são uma indi-
totalmente ignorante. cação importante, a ponto de alguns dramaturgos as pri-
varem de nomes, certamente para que não fiquem muito
132 n\TTRODuçÃO à ANÁLISE DO TEATRO ABORDAGENS METÓDICAS 133
marcadas socialmente e para que a ênfase se coloque no precisa necessariamente fazer uma investigação concentra-
que elas dizem. Em Por 'JAm sim ou por um não, Nathalie da sobre os capitães-porteiros de Falaise para desempe-
Sarraute denomina-as Hl, H2, FI, H3, limitando-as a se- nhar o papel de Turcaret, mas para quem a informação po-
rem enuncia dores sexuados. Henri Mainié concede-lhes de assumir um caráter adequado a estimular a imaginação.
um simples travessão que anuncia a mudança de réplica. O simples exame da identidade remete a pistas mui-
Já na lista das personagens tomamos consciência de to diversas: à mitologia (Orestes), à História (Júlio César),
uma constelação de nomes que constituem um conjunto à tradição teatral (Arlequim) ou mesmo à pura abstração
coerente e carregado de diversas conotações. Labiche (O no caso de uma alegoria (a morte). Quando concebemos
caso da rua de Lourcine) chama-as Lenglumé, Mistingue, portanto um levantamento de identidade para uma perso-
Potard, ]ustin e Norine. Elas não têm prenome, exceto tal- nagem, esta só adquire realmente sentido no contexto da
vez Justin, o empregado, que por sua vez não teria sobre- peça considerada como uma estrutura fechada. As infor-
nome. Além das ressonâncias divertidas ou prosaicas des- mações exteriores muitas vezes acabam sendo uma faca
ses nomes, facilmente identificáveis, podemos relacioná- de dois gumes, já que saber muito sobre uma persona-
los com o enredo. Lenglumé e Mistingue, dois ex-colegas gem no texto pode tornar ainda mais difícil a passagem
de pensão, dormiram juntos após uma noite de bebedeira ao palco, se nos deixamos levar por pistas falsas ou por
durante a qual teriam cometido um crime de que não se clichês. Como representar Napoleão, por exemplo, mes-
lembram! Quanto a Norine (mulher de Lenglumé), dimi- mo depois de ter consultado todos os textos e toda a ico-
nutivo provável de Honorine cujo nome completo jamais nografia sobre a personagem histórica? Como representar
aparece, será por ela não ser honrosa ou por não ser a morte, e como representar Arlequim atualmente, mes-
honrada? O jogo das identidades, aqui, logo deixa de ser mo sabendo tudo de todos os arlequins?
objetivo e propõe uma série de pistas que dizem respeito Com razão, Anne Ubersfeld recusa toda análise indi-
à ação e ao sentido. Uma personagem não se constrói vidual, em proveito de uma reflexão sobre o sistema das
apenas a partir de seu nome, mas não podemos ignorar o personagens numa determinada peça. O levantamento
modo como os autores as nomeiam. dos traços pertinentes para cada personagem torna-se as-
Raramente dispomos da biografia completa de uma sim indispensável, já que permite, reconhecer oposições e
personagem, mesmo que procedamos por cruzamento de semelhanças. O fato de a personagem ser rei só tem real-
dados. Será preciso esperar o século XVIII para que infor- mente sentido se a considerarmos em relação às outras,
mações mais completas sejam fornecidas. Assim, em Tur- que não .são reis. Richard Monod, por sua vez, fala de
caret, de Lesage (1709), ficamos sabendo que o herói é fi- constelações de personagens, do microcosmo estruturado
lho de um ferreiro de Domfront, que foi capitão-porteiro no qual elas são totalmente interdependentes. Evidências
em Falaise após ter sido criado de um marquês, e que ca- visíveis que permitem escapar ao labirinto dos referentes
sou com a filha de um pasteleiro, antes de tornar-se o ho- históricos. No exemplo dado acima, de Turcaret, não é
mem de muitos negócios que é no início do enredo. Mes- indiferente que o sr. Turcaret esteja cercado de persona-
mo assim, a questão para Lesage é mais sócio-histórica do gens que se chamam a baronesa, o cavaleiro, O marquês
que estritamente biográfica. R. Abirached compara justa- (sem nomes próprios, o título sendo suficiente), e outras
mente Turcaret ao Monsieur ]ourdain e ao Georges Dan- que se chamam Lisette, Frontin, Marine, ou ainda Flarn-
din de Moliere, sublinhando que, se Molíêre não fornece mando Os eternos monsieur que todos empregam para
tantas informações, temos muitos elementos para imagi- designar Turcaret adquirem importância. Só eleé desig-
ná-los. Essa é uma questão essencial para o ator, que não nado por seu nome, juntamente com o sr. Rafle. Quanto à
INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO 1EA TRO ABORDAGENS METÓDICAS 135
presença de nomes como Lisette ou Frontln. vela mostra de que eles não cessam de evocar suas dores e suas doen-
claramente o projeto de Lesage, que fala do mundo que o ças, mas sua idade para o estado .civil (e portanto para a
cerca com algumas personagens oriundas diretamente da escolha de um ator) não é fundamental. Eles são literal-
tradição teatral. A individualidade de cada personagem mente "sem idade", ou melhor, "fora de idade", a relação
constrói-se apenas no interior do grupo de protagonistas, que mantêm com o tempo, a duração e a morte sendo
e nesse contexto apenas as semelhanças e as oposições muito mais interessante do que informações anedóticas
se mostram pertinentes. sobre quanto lhes restaria de vida.
Num outro registro, as personagens de Esperando Nessa busca de informações, de qualquer modo ne-
Godot, de Beckett, o famoso quarteto Vladimir, Estragou, cessária, vemos desenhar-se a figura em pontilhado das
Pozzo e Luckv, têm nomes com consonâncias que reme- personagens no texto, sem podermos afirmar que sejam es-
tem a nacion;lidades diversas. Essas personagens são or- sas as figuras corretas ou as figuras indispensáveis. As esco-
ganizadas em dois pares, utilizam às vezes diminutivos lhas intervêm no momento da passagem ao palco, quando
(Didi e Gogo para Vladimir e Estragou), falsos nomes (Al- uma constelação de atores substitui uma constelação de
berto e Catulo para os mesmos), têm nomes que podem fantasmas. Embora na análise buscássemos saber tudo des-
ser traduzidos (Lucky, ironicamente "so rtudo") ou permi- ses fantasmas, nem todas as informações se mostram úteis e
tem variações fonéticas (Pozzo, Bozzo, Gozzo). A quinta nem todas devem ser tomadas como dinheiro à vista. Por
personagem, que só aparece furtivamente , não tem outro mais precisa que seja, nossa investigação não resulta num
nome a não ser "rapaz", o que a coloca imediatamente, documento de registro civil. As informações do texto são
por oposição, num outro mundo, o de Godot, em cujo sujeitas a caução e deixam uma margem de interpretação
nome pode-se reconhecer o God inglês e ao mesmo tem- importante, a do trabalho artístico. Além do mais, no teatro
po consonâncias bem francesas. A ironia de Beckett ma- contemporâneo os autores gostam muitas vezes de alternar
nifesta-se plenamente desde a designação das persona- certezas e incertezas, detalhes biográficos e vazios enormes.
gens, e podemos pensar que não se trata de uma indica- Nada sabemos dos H1 e dos H2 de Nathalie Sarraute, mas
ção desprezível representar Gago frente a Didi quando se depois, numa das réplicas, ficamos sabendo que a mãe de
espera Godot e se encontra Pozzo, cujo nome não se sa- H1 está morta e que ela os considerava bons amigos. A in-
be se é Bozzo ou Gozzo! formação é precisa, não é decisiva, tanto quanto a de Lesa-
É útil trabalhar do mesmo modo com todas as indi- ge que diz que Turcaret casou com a filha de um pasteleiro.
cações concernentes às personagens. Em que medida sa- A personagem textual jaz entre essas referências; compete
ber a idade exata de Arnolfo (A escola de mulheres), gen- ao palco ativá-las, dando-lhes ou não importância.
tilmente fornecida por Moliêre, ajuda-nos a apreender a
personagem, se não está em oposição às outras? Pois os
historiadores bem sabem que os quarenta e dois anos de A personagem, força atuante
Arnolfo fazem dele um homem. relativamente velho no
século XVII, o que a peça não cessa de sugerir. Essa indi- . Diante da concepção tradicional de uma personagem-
cação de idade, rara em Moliêre, só é o sintoma do mal- núcleo, definida por seu ser, elaborou-se a imagem de uma
estar de Arnolfo (ou de sua obsessão), ela não é muito personagem definida pelas ações que realiza, pela maneira
útil do ponto de vista biográfico. Quanto à idade real de como se inscreve no enredo tornando-se o suporte e o ve-
Vladimir e Estragon em Godot, devemos acreditar em tor de forças atuantes. Aristóteles já especifica isso: .."
Pozzo quando lhes dá sessenta ou setenta anos? É verda-
136 INTROD UÇÃO À ANÃLJSE DO TEA TRO ABORDAGENS METÓDI CAS 137
· As person agen s n ão agem para imitar seu caráter, xar sua cidade natal p ara se cas ar com uma p a risiense . O
mas recebem seu carát er por acréscimo , em virtude de que pesa sobre Pourceaugnac não está re almente no que
sua açã o, ele mod o que os atos e o enredo são a finalida- ele faz , m as no complô de que é vítima. O estudo da ação
de ela tragédia, e em todas as coisas a finalidade é o prin - levanta uma lebre de bom tamanho, já que Pourceaugnac
ci pa l. ( Poét ica)
"nada fez de mal" e o que lhe fizeram, em com p e nsação,
tem a ve r diretamente com sua identidade e co lo ca o pro-
As p esqu isas recentes sob re a narrativid ade, sobre as
blema do ponto de vista so bre a p e ça . Seu ú nico defeito
estru turas do relato , levam a analisar as personagens como seria se r limusino e chamar-se Pourceaugnac?
forças, co m o at antes, Po d emos responder a perguntas co-
Definir o que a personagem faz nem sem p re é sim-
m o : o que faz a personagem? o que quer faz er a persona-
ples, pois também aí é preciso levar em conta idéias fei-
gem?, sem nos embaraçarmos com uma relação de causa e tas, avaliar as rela ções entre a fala e a açã o, as diferenças
efeito, com aquilo que poderíamos chamar suas motivações entre a vontade ou o desejo de a ção e o que é realmente
- evitando todo ponto de vista moral que procure justificar efetuado (Po u rce aug n a c não desposa Júlia " embora seja
as açõ es da personagem e todo ponto de vista psicológico isso o que o faz agir). Portanto é útil fazer a lista das ações
qu e leve a considerar crit éri os de coerência o u de ve rossi- sucessivas seguindo a ordem da narrat iva , m esmo que al-
m ilhança. Os trabalhos d e Propp e de Greimas, já mencio- gu m as delas não p are çam fundamentais o u q u e seja ten-
nad os a p ropós ito do enredo, devem portanto ser aq u i le- tador reinterpretá-las . ("Esca pa r aos cliste res" corre o ris-
va dos e m co n ta d o ponto de vista da personagem. co de se r prontamente class ificado n a ordem d o "côm i-
Essa análise p e rmit e e scapar a o s entrel a çamentos co ", quando pode sim p le sm ent e tratar-se de uma ação de
d os com e ntá rios e dos p ontos de vista, considerando-se bom senso!) As grandes ações o u o motor p rincipal de
apenas o que é estritamente a participação da persona- , . uma personagem podem ser determinados a partir do es -
gem na aç ão. tudo minucioso de suas ações sucessivas.
Tomemos como e xemplo a personagem do sr. de Não se exclui a possibilidade de uma personagem
Pourceaugnac , na peça de Mo liê re de mesmo nome. O levar a cabo, ao mesmo tempo o u uma após o u tra, ações
q ue ele faz ? Vem de Limoges a Paris para desposar Júlia contraditórias ou que o pareçam. Arle q uim, em A dupla
a pós um acordo e pistola r com Oronte, p a i de Júlia. Ele in constâ n cia, de Mari vaux, não tem outro objetivo senão
encontra Era sto e aceita su a hospitalidade. Escapa de mé- recuperar Sílvia , quede ama si n ce ra m e n te. O fato de
d icos que lhe d izem estar doente e querem aplicar-lhe al- mudar de objeto amoroso no final da peça não tem inte-
guns clisteres. Vai ao encontro de Oronte . Nega ter des- resse psicológico ou moral, pois o que e stá em questão é
posado várias mulheres. É seduzido por júlía, e assim por saber como outras personagens o fizeram mudar. Um es-
diante. Ao definirmos estritamente a personagem do pon- tudo da personagem no interior da constelação mostra
to de vista da ação e sem qualquer idéia preconcebida, que esse Arlequim se envolve em ações pouco comuns
constatamo s que nela não há nada de realmente ridículo. mas que, como personagem codificada , obedece à tradi-
Sua motivação principal é vir desposar uma jovem, suas ção e é sempre sensível tanto ao cheiro de carne assada
d emais ações consistindo principalmente em escapar a como à qualidade de um vinho.
tudo o que os outros querem fazer com que padeça. O Nas dramaturgias em que "falar é fazer" (v e r o capí-
que se conve n cio n o u ch amar o ridículo de Pourceaugnac tulo sobre a enunciação), por exemplo na trag édia ou em
n ão está portanto na ação , a menos que se considere es- uma parte do te atro contemporâneo, é muito delicado
câ n d a lo e loucu ra um homem de Lirnoges pretender dei - d iscernir o que a personagem faz . "Ama r" pode revel ar-se
. ,I
138 INTRODUÇÃO À ANÀLISE DO TEA TRO ABORDAGENS METÓDICAS 139
a atividade principal de uma personagem raciruana , em concebê-Ia apenas como uma força abstra ta intercambiá-
contradição talvez com "go ve rn a r". O motivo do príncipe vel em várias situações dramáticas típicas, conforrnepo-
apaixonado constitui então o embrião da personagem , deria nos sugerir, por exemplo, o livro de Étienne Sou-
completado pelo estudo de seus discursos e por seu lugar riau , Les deux cent mílle situations dramatiques [As du-
na constelação da peça. zentas mil situações dramáticas] . .
Assimila-se às vezes, erradamente, a ação ao conflito,
o que é um modo de só levar em consideração uma forma
de dramaturgia. É difícil definir as ações das personagens o sujeito do discurso, o objeto do discurso
em Esperando Godot, pelo menos se buscamos urna que
pareça evidente e importante. Com freqüência se disse Cada personagem está à frente de um conjunto de ré-
que elas só fazem esperar, e conclui-se um pouco precipi- plicas, de monólogos ou de apartes que constituem "seu
tadamente que são vazias de desejo: Um exam~. atento texto". No limite, esse é a única marca concreta de sua exis-
mostra que uma série de microações ocupa as persona- tência textual; e continua a existir uma tradição, em alguns
gens, tais como tirar os sapatos, contar histórias, espreitar teatros, do ator que recebe um papel e ao mesmo tempo é
os restos da refeição de Lucky. O fato de não serem "gran- informado (e por vezes pago) em função do número de li-
des ações" nem por isso as anula e ajuda a construir a per- nh às que terá de "d ize r" ao representar a personagem.
so nagem se admitimos, excluído todo idealismo, que tirar No interior de cada peça, podemos medir a importân-
os sapatos pode ser tão importante para uma personagem cia quantitativa do discurso de uma personagem e fazer
quanto entrar em guerra é para uma outra. disso um primeiro índice de sua existência . Assim, há per-
Impossível determinar um macroconflito em relação sonagens prolixas, 'outras que falam pouco. A extensão do
às três personagens de Nina c 'est autre cbose, de Michel discurso de uma personagem é comparada também à fre-
Vinaver. Definir o que Nina quer e o que Nina faz é pos- qüência e à duração de suas aparições. Há personagens
sível desde que nos limitemos a seqüências curtas e, mes- que aparecem raramente e não obstante são "tagarelas",
mo assim, consideremos todas as ações das personagens, outras que têm uma presença contínua acompanhada ape-
por mínimas que sejam. Entre as ações relatadas e as que nas por falas lacônicas. O sr. de Pourceaugnac, papel-título
acontecem no palco, sabemos que ela deixa revistas pelo da peça de mesmo nome, é uma personagem que fala
chão, que não tranca a porta dos banheiros. Nina arranca pouco e padece muito. Esses índices matemáticos não le-
os papéis de parede do apartamento, traz uma banheira vam muito longe mas permitem ao menos comparações,
antiga que instala no meio da. sala, senta-se nos joelhos por vezes surpreendentes, no interior de uma mesma peça.
de Sébastien, pede-lhe um beijo, convida seus amigos pa- Do ponto de vista qualitativo, uma personagem fala
ra irem ao cinema, cuida do ferimento de Sébastien. Ne- de si mesma e dos outros. Outras fazem um discurso so-
nhum "grande propósito", certamente, mas uma soma de bre si mesmas. Portanto é possível jogar o jogo dos retra-
microações que também constroem uma identidade. tos, mas sem grandes ilusões, pois todas as personagens
Quando constatamos literalmente o que a persona- mentem ou, mais precisamente, têm um discurso sobre .o
gem faz (e, é claro, ao mesmo tempo o que ela não faz), mundo e sobre os outros que não é objetivo. O exemplo
começamos a entrever que seu estatuto faz dela um agen- mais famoso é o de Ta rtufo, "go rd o e grandalhão, a tez
te da ação, um vetor que írnanta desejos esparsos no tex- viçosa e a boca vermelha ", segundo Dorine . De Louis
to uma identidade fictícia por vezes apenas esboçada e ]ouvet a Gérard Depardíeu, as encarnações sucessivas de
, , I
sob a qual se reúnem discursos. Não nos parece possive Tartufo estão longe de obedecerem sempre a esse retrato.
140 INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO TEATRO ABORDAGENS M ETÓDICAS 141
Afinal de, contas, essa é a maneira como Dorírie vê Tartu- ./\ personagem de teatro é, no texto, um fantasma
fo , seu sentimento em relação a ele. Talvez ela esteja sen- _em busca de encarnação e , na representação, um corpo
do irônica , talvez o imagine demasiado gordo e demasia- sempre usurpado, porque a imagem que nos é dada não
do vermelho, pois ocupa-se literalmente em "alim e nta r- é a única possível e jamais é completamente satisfatória.
se" da família de Orgon. O seio de Dorine ("Esconda esse Em nossas leituras, sucede de nos abandonarmos a essa
seio que não posso ver") talvez não seja mais exposto do parte do sonho e construirmos ao mesmo tempo um in-
que as bochechas de Tartufo são vermelhas, [rata-se no vólucro sólido para apreendê-Ia .
caso do modo de percepção das personagens, da indivi-
dualidade que a linguagem exprime.
Também não se pode confiar muito nos discursos LEITIJRAS RECOMENDADAS
que as personagens fazem sobre si mesmas, quando se
analisam, se explicam , se queixam. Quando muito é pos- ABlRACHED, Robert, La crise du persohnage dans te tbéâ-
sível avaliar e apreciar a complexidade de discursos, que tre moderne, Paris, Grasset, 1978.
variam conforme os interlocutores. Por isso a linguagem MONOD, Richard , Les textes de tbé âtre, Paris, Cedic, 1977
de cada um , tomada isoladamente, só tem um interesse li- (ver, em particular, "as constelações", p. 74 ss.).
mirado quando não verificamos a quem ela se dirige e por
PAVIS, Patrice, Dictionnaire du théâtre, Paris, Éd. Socia-
les,1980.
que se constrói desse modo . Tratamos m-ais amplamente
UBERSFELD, Anne, Lire le tbéâtre, Paris, Éd. Sociales,
desse assunto no capítulo 4, dedicado à enunciação. O~
1977 (ver, em particular, o capítulo III sobre a persona-
servernos, porém, que toda concepção global ou muito
gem); Dictiortnaire des personnages de tous les temps et
--a p ress ad a da personagem produz ' apenas caricaturas. É
de tous les pays (Laffont-Bompiani), Laffont, Bouquins
. maisInteressante avaliar as contradições de Orgon confor- 1984. '
me ele se dirija à sua mulher, a seus filhos, a Dorine ou a
Tartufo, do que rotulá-lo unilateralmente como tolo ou co-
mo vil egoísta.
Enfim, e como veremos a propósito da dupla enuncia-
ção, o discurso da personagem não é verdadeiramente de-
la, mas do autor que a faz falar. Entretanto, o autor não se
.identifica necessariamente com a personagem, colT).o suge-:
rem às vezes certos trabalhos em que a crítica busca encon-
trar a biografia do autor por trás dos diferentes discursos.
Uma vez mais, estamos entre um e outro, ou melhor,
nas sutilezas do eu-tu-ele, em que o autor faz falar perso-
nagens que têm necessidade do corpo de um ator para
nascerem e da presença do público para existirem plena-
mente. Compreendemos melhor as dificuldades teóricas li-
gadas à}5ersÓnãgem'êfúâridóa consideramos corno urna
've rd ad e ira encruzilhada. de diferentes discursos, como ' . ' 1
", "
continua a falar do Misantropo, de uma forma divertida e Ele lembra que um autor organiza sua estratégia tex-
seguramente muito pessoal, lembrando, por exemplo, tual prevendo um "leitor modelo", não esperando que ele
que todos os "lugares distantes " já estão "alugados", e re- exista, mas "agindo sobre o texto de modoa construí-lo".
metendo o herói à ridícula impossibilidade de encontrar a O leitor real decifra o texto utilizando um código, um sis-
solidão num mundo "da moda " no qual todos os espaços tema complexo de regras implícitas que comandam a es-
livres estão reservados . crita em uma determinada época. Há portanto um "d ire i-
Esse exemplo coloca à sua maneira o problema dos to " do leitor à interpretação, ou seja, à ativação de pistas
limites da recepção de um texto . O esquema tradicional que ele identifica no texto e que foram "previstas" pelo
da comunicação que analisa os processos de "co d ifica - autor. Nem todas essas pistas são ativadas do mesmo mo-
ção" e "decodificação" de uma mensagem não leva muito do pelos diferentes leitores em diferentes épocas. Mesmo
em conta o fato de que os códigos do destinatário podem que traduzam do mesmo modo (o que está longe de ser
diferir, totalmente ou em parte, dos códigos do emissor. seguro) o que o signo gráfico veicula comumente, eles di-
Aqui, a canção se baseia deliberadamente na suposta dis- ferem diante do "interpretante", isto é, diante da idéia que
tância entre os códigos da peça do século XVII e um lei- o signo faz surgir. Quando Boby Lapointe assimila "artífi-
tor im aginário, acima de tudo jovial, e disposto a operar ce " e "contorções" e os interpreta como "dançarino .de
uma "co lo ca ção em tropos'" original de uma história de jerk", ele finge ignorar o código, aqui o vocabulário do sé-
amor em que "Ce lim e na não diz sempre amém", e que culo XVII, e inscreve a expressão no universo mental de
em nenhum momento se coloca a questão do "respeito" sua personagem, freqüentadora das discotecas dos anos
do texto quando ele o lê a seu modo. 70 . Essa distância e o equívoco voluntário que ela implica
Esse é um velho problema que sempre surge na aná- não são absurdos, já que a metáfora de .Moli êre é tomada
lise de texto. "Nã o há verdadeiro sentido de um texto", ao pé da letra pelo leitor e os pequenos marqueses são
disse Paul Valéry. Mas, uma vez liberado da obsessão do transpostos em dançarinos mundanos. A interpretação se-
"verdadeiro sentido" que não é mais obrigado a encontrar, ria banal se não mostrasse a menor conivência com o tex-
o leitor nem sempre sabe o que fazer de sua liberdade, so- to e se não estivesse ligada a um sistema de decifração
bretudo diante de um texto de teatro. Certas encenações que acaba por constituir um universo coerente.
são assim qualificadas de "d e lira n te s" por espectadores Um outro exemplo de interpretação diz respeito,
que não obstante aceitam o princípio de uma "leitura" do desta vez, à representação, mas poderíamos assimilá-lo à
te xto, mas que reclamam limites ou anteparos às interpre- leitura se sua manifestação não tivesse sido pública. Após
tações que lhes são propostas. Diante dos excessos, retor- ter encenado O Amante, de Harold Pinter, eu assistia de
namos assim a argumentos tradicionais baseados no "re s- tempos em tempos ao espetáculo. Numa réplica aparen-
peito" ou nas "verd a de iras intenções" do autor. . . temente anódina, Sarah, a heroína, anunciava a seu mari-
Umberto Eco recoloca o problema do leitor em Lec- do que esquecera por completo do jantar, mas que "havia
tor in labuta, situando-se estritamente no terreno dos dis- restado algo frio na geladeira", Nos ensaios, havíamos fa-
cursos e não no das subjetividades: lado da distância irônica que Piriter tomava em rela ção à
sua dona de casa da burguesia inglesa. Consideramos que
. A ' cooperaçâo textual é um fenômeno que se realiza
a ausência de jantar tinha algo a ver com a visita de seu
entre duas estratégias discursivas, e não entre dois sujei-
"am ante " à tarde, e que esse "frio " que restava era devido
tos individuais.
portanto às horas "quentes" que haviam precedido, e as-
• No francês , mise en trepes, trocadilho com Misantbrope. (N . do T. )
sim por di~nte.
,',
A cada representação, uma ou várias espectadoras re- relação contorções/jerk continue a existir, mas de uma
agiam com exclamações, virando-se para seus maridos ou maneira mais sutil que aquela inicialmente considerada ,
comentando a réplica, Todas as interpretações tinham a Essa distinção entre as duas abordagens é artificial ,
ver, parece, com a ausência de jantar e com a leviandade pois muitas vezes as duas leituras se superpõem ou ope-
com que Sarah tratava o marido, não lhe preparando comi- ram no mesmo movimento . O estabelecimento de um
da . Evidentemente, eu não havia considerado essa leitura modelo de análise não impede a manifestação da subjeti-
imediata do texto, de dona de casa despreocupada para vidade. Talvez a refine, evitando um jogo de equivalências
dona de casa invejosa ou adrnirativa, do gênero: "ela tem demasiado evidente ou sua invasão por lugares-comuns
sorte de poder se esquecer de preparar o jantar!". Tal leitu- int erpretativos. Assim como existe um vaivém entre o tex-
ra entra nas interpretações do texto, pois é claro que tam- to e o palco, existe uma relação do mesmo tipo entre o
bém lemos com nossa subjetividade, e sobretudo com as leitor e o texto. Uma pista de leitura pede para ser desen-
preocupações imediatas que constituem nossos universos. volvida , amplificada, imaginada , e , no entanto, revisitada
Há uma diferença considerável entre: "pode-se fazer e verificada" 'Oleitor não passa acima do texto, expõe-se
o uso que se quiser de um texto" (todas as suas utilizações nele.
são possíveis) e "po de-se dar numerosas interpretações a
um texto", Talvez esteja aí a origem 'd e um equívoco. Al-
gumas encenações servem-se do texto sobretudo como
um "pretexto" (não emitimos julgamento sobre esse 'po n-
to de vista) e o utilizam assim de maneira sutil , revolucio-
riária ou perniciosa. Outras procuram ativar redes de sen-
tido do texto no interior de um sistema interpretativo. Os
trabalhos que propusemos inscrevem-se antes nessa últi-
ma lógica . Mas a distinção não é tão simples. Uma vez
' q u e o trabalho artístico mobiliza o imaginário, pode-se
também considerar que um texto estimula a imaginação e
abre portas que não são estritamente as da interpretação.
Por isso tendemos a distinguir duas etapas de trabalho. A
primeira tem por objeto a identificação e a interpretação
de redes de sentido, através de uma série de análises arti-
ficialmente separadas que é importante combinar a se-
guir. A segunda, mais imaginativa, desenvolve hipóteses
voltadas sobretudo para o trabalho cênico.
Parece necessário distinguir uma abordagem global,
que funciona mais por associações livres (os pequenos
marqueses do Misantropo me fazem pensar, por suas
contorções, em dançarinos de [erk), e uma abordagem
mais sistemática da letra do texto (quem são os pequenos
marqueses no século XVII?), sem necessariamente recusar
uma opção final ousada. É possível que, ria chegada, a
COMENTÁRIOS DE TEXTOS
I. Uma cena do Dom juan,
de Moliere
29. D O N ] U A N , l êue la main paul' donner un soufflet de Carl ot a . Seu discurso é m at izado, conservando si nais
à Pierrot,qui ba isse la t ête, et Sganarelle reçoit le souffle t. ex te rio res de polidez convencional ("Cavalheiro" e o tra -
Ah! je vaus apprendrai. tamento por vós). O imperativo C'refrea í-vos") é um pou-
30. SGANARELLE, rega rdant Pierrot, qu i s'est baissé co atenu ad o pelo "por fav or". O conjunto do, discurso é
pou r éoiter le soufflet. Pe ste soit du ma roufle! feito de uma série de recomendações, como se Dom juan
31. D ON JUAN . Te voil à pay é ele la charité .
32 . PIERROT. ] arni! je va s d ire à sa tante tout ce
precisasse cuidar de si. A pleurisia talvez seja uma a lusã o
ménage-cí . , a o rece nte b anho forçado de Dom juan e s ublinha de for-
33. D O N ] UAN . En fi o , je me n vais ê tre le plus m a in jurio sa s u a fragilidade. A menos qu e , Dom j ua n
heureux de tous le s hom rnes . e t je ne ch an gerai s pa s se n d o mais ve lh o que Pierrô, seja outra fo rma in juriosa
mon b onheur à toutes Jes choses du monde. Que de de p edir-lhe calma no estado de excitaçã o a morosa em
p la isirs q ua nd vous se rez ma Iemme! et qu e ... q u e se en co ntra .
Pierrô coloca-se acima de Dom juan fisic am en te (el e
o e mp u rra) e a través do di scurso, os su cess ivos conselhos
Nu m primeiro momento , procedemos a uma análise fazendo do adversário alguém que deve se cuidar, que
réplica por réplica , privilegiando o estudo do discurso poderia se expor a coisas desagradáveis. O efeito retórico
das personage ns e seus dest inat ários. Num segu n d o mo- inverte a solicitude em ameaça .
m ento , reunimo s o s re sulta d o s da análise e m to rn o de , Será que P ierrô se lembra de que est á fa lando a um
g randes eixos d e re flexão q ue ajuda m a formular hi p ótc - fid a lgo da corte? O encontrão co lo ca-os no mesm o nível ,
ses d e sen tid o . ainda que a linguagem insinue um respeito superficial
Evitamos as referências ao conjunto da p e ça , que aca- que joga em favor do camponês transformado em conse-
bariam p or afogar o estudo em generalidades, assim como lheiro. O ataque físico e ve rbal é rude e repentino, sur-
o co m e ntá rio erudito que sobrecarregaria aq ui as intenções. p reendente: Mas Pierrô está em seu território.
Situação de partida: Dom Juan tenta seduzir Carlo- 2. Dom Juan não responde a Pierrô. Este não pode
ta prometendo-lhe casamento, sob o olha: de Esgan~rel<;?, ser um interlocutor possível para o grande fidalgo, SÓ po-
obrigado a testemunhar em favor do patrao. Entra P íerrô, de ter sido enviado por alguém, não tem existência pró-
noivo de Carlota, que há pouco evitara que Dom juan e pria e portanto n ão pode ter agido como tal. A falsa per-
, Esganarelo morressem afogados. gunta não se dirige a ninguém, é apenas a Ocasião de ex-
p rim ir surpresa, de anular a p resença do camponês redu-
zindo sua identidade à sua atitu d e: a impertinência.
1. Análise réplica por réplica
Entretanto, o corpo de Pierrô está de fato ali e Dom
1. A intervenção súbita de Pierrô é sem dúvida mui-
Juan n ão se engana, empurra-o com brutalidade. A briga
to física, talvez brutal. Ele se apresenta como rival, dono de rua - ou melhor, a briga de aldeia - continua. Anulan-
do seu adversário pela linguagem, Dom juan recusa levar
30. ESGANARELO, olhando para Pierrô, que se abaixou para e:ritar a
em consideração a ofensa, mas a urgência física existe:
bofetada. Maldito seja o desgraçado! ele foi empurrado, ele reage.
31. DOM ]UAN. Eis o que recebes por tua caridade, 3. Mensagem direta. Pierrô sublinha de saída que é
32. PIERRÔ. farn ii Vou cont ar tia dela toda essa manobra.
â
realmente ele que fala a Dom juanC'eu lhe disse") ; o "di -
33. DOM ]UAN. Enfim , vou se r o mais feliz de todos os homens, e
não tro ca ria minha felicid ad e por tod as as coisas do mundo. Qu ant os pra- zer" com uso fático (a linguagem serve para verificar que
zeres q uando for minha mulher! F. qu e.., ' se foi ouvido) indica que Dom Juan ta~vez não te nha ou-
156 INTRODUÇÁ o À A NÀLlSE D O TEA mo
COME'VTÁ RJOS DE TEXTOS 157
vido bem. A interdição é claramente anunciada sob forma
torna a seu rival , apoiando-se na interjeição lançada por
de o rd e m (o modo não está distante do imperativo) e a
este, que de qualquer forma participa do diálogo. Desta
identidade de Carlota proclamada. Curiosamente, o plural
vez seu discurso se organiza e ele argumenta. Novamen-
eleva o sujeito acima da relação interpessoal ou , se quise-
te, a oposição é dita no plural , é nós contra o senhor. n os-
rem, da anedota. A lei vale para todas as prometidas da
sas mulheres contra as suas, e a refutação cio direito d o fi-
aldeia , das quais Pierrô se faz o defensor.
4. Dom juan continua não falando a Pierr ô, e mais: dalgo. Sem o apoio de CarIota , portanto sem legitimidade
não o escuta . Assimilando seu discurso a "a m o lação", re- pessoal e a m o ro sa, Pierrô muda de terreno e instala-se no
cusa conceder-lhe o menor sentido. O tom -exclamativo da legitimidade social. A violência com que se refere a
denota uma irritação geral, mas Dom juan não responde, seu próprio território toma a forma de uma ordem. Ela é
e assim recusa entrar no terreno da lei anunciada por Pier- um pouco contrabalançada pela divertida extravagância
rôo Nesse meio tempo, ele .re to m o u a iniciativa do comba- da expressão "acariciar nossas mulheres sob nossas bar-
te físico, que ele prossegue. O adversário existe apenas bas". A imprecação, no francês, significa literalmente "pe-
por seu corpo incômodo e ruidoso que separa Dom Juan la cabeça de Deus' .
de Carlota e bloqueia o discurso da sedução. 10. Mesma estratégia do laconismo em Dom juan.
5. Pelo tom impessoal , Pierrô anula igualmente Dom Ele não se dirige a Pierrô a não ser p or interjeições. Esta ,
]uan. Insiste num discurso ético geral que se aplica desta em forma de pergunta , pode ser entendida como uma
vez ao combate . A imprecação, no francês , significa lite- ameaça , como um desafio a repetir a ordem. O corpo cer-
ralmente "eu renego Deus" . Há regras quanto ao modo de tamente substituiu o discurso, ele está pronto para b ater.
empurrar as pessoas. A maior parte das réplicas de Pierrô 11. Pierrô responde literalmente, taco a taco, a uma
são coloridas por imprecações que traduzem sua cólera e interjeição com uma interjeição. Coloca-se em igualdade
caracterizam seu discurso de indivíduo não polido. com Dom juán. É o que lhe vale uma série de bofetadas,
6. Carlota entra na conversa fisicamente , segurando forma de violência física que marca mais claramente as
Pierrô, e no discurso, no modo imperativo. Ela marca seu distâncias entre os dois homens que os "em p urrõ es" pre-
poder sobre Pierrô , restabelece as identidades e, através cedentes. Ao entrecortá-las com imprecações campone-
de seu discurso, lembra que ela existe, que está na origem sas, Moliêre mecaniza os golpes é as reações, reduz uma
da disputa e que tem uma opinião sobre o que lhe aconte- parte de sua violência ao teatralizâ-las. Desde a interven-
ce. O agressor é Pierrô, é a Pierrô que ela se dirige. ção de Carlota, Dom juan retomou o poder e agora não
7. A surpresa de Píerrô é marcada por duas falsas fala, bate-Pierrô não se engana quanto a isso quando in -
questões. Ele não fornece nenhum argumento, mas a re- voca a moral, novamente no plural C'não se bate assim
petição do pronome dá à sua réplica o caráter de um ca- nas pessoas"), e ratifica sua inferioridade ao recordar o
pricho. A expressão de sua vontade é reforçada, mas sua serviço prestado ao senhor. Ele não ameaça mais, pede
autoridade é incapaz de provar sua legitimidade diante da para ser poupado, em nome da retribuição.
intervenção de CarIota, que o desequilibra. 12. A réplica é totalmente ilógica. Tudo se passa co-
8. Dom ]uan já não precisa falar. A interjeição marca mo se ninguém tivesse ouvido Pierrô, ninguém o tivesse
a satisfação ou o desafio, o discurso de Carlota lhe basta. visto apanhar, sobretudo Carlota, que registra apenas o
Ele se abstém do diálogo, mostra-se curiosamente discre- humor dePierrô, separando-o de suas origens, de sua in-
to, como se Carlota servisse de porta-voz ou muralha. fidelidade e das ' bofetadas que ele acaba de receber. Ela
9. Pierrô não prossegue a disputa' com Carlota e .re - lhe dá um conselho ou uma ordem.
158 INTROD UÇÃ O Ã AA'Á Ll5E D O TEA mo CQjy!ENTÃRJOS DE TEXTOS 159
Essa cegueira geral (Esganarelo também está presen- com o remo n a cabeça "). Quando o léxico se torna con-
te ) só se explica se nã o há nada para ve r. É "normal" que creto (a m anteiga , o queijo , o remo) , a mudança de nível
Dom Ju an bata em P íerr ô, em todo caso as testemunhas de língua provoca um efei to cô m ico. Ainda assi m a pul-
nã o confirmam os golpes p ela fala. Quanto a Dom ]uan, são é aq u i uma vo nta de de matar.
continua se m fal ar e jama is considera o que d iz Pierrô , 20. A ameaça, ex p ressa no p assad o di ant e de um
que só existe na medida em que é golpeado. Dom Juan mais presente elo qu e apa re nta , prov o ca o re-
13. O campo nês é infantilizado no o lhar dos outros , torno des te à cena e lhe res titui a fala , co mo se n ão supor-
como se su a o bs tinação fos se deslocad a e sua linguagem tasse essa transformação , p uramente m ental, do e p isódio
rid ícul a. As p ala vras p arecem minimizar o erro de Carl ot a , do salvamento . Ninguém to ca em s u a imagem, mesmo
no entanto é a ela qu e Pierr ô se volt a , é a .ela que destina verbalmente e a posteriori, Ele perm anece po rém lacô ni-
suas cens uras. Ele deixa de atacar Dom ]uan. co, sU,a falsa quest ão acompa nhando-se de um a a meaça fí-
14 a 19. O diálogo prossegue ap enas entre o casal s ica . E a primeira ve z, n o enta nto , que co ncede a Pierrô
de camponeses, Dom Ju an e Esganarelo ficando p ro va- uma id entidade na linguagem, talvez p orque este ja tot al-
velmente à distância. O s primeiros mostram assim suas mente seguro da conquista de Carlo ta e de su a domina ção
di scordâncias e suas espe ranças àquele que vem da corte física . Ele acab a de testemunh ar a confissão amorosa de
e a seu lacaio , tran sformad os em esp ec tado res. Carlota e so bretudo a m an eira como ela abandonou Pier-
O so nho ingênuo de Carlota é aqu i desenvolvid o pela rô oPrecisaria dessa certeza para voltar a se manifestar?
fal a . Se ela abandona Pie rr ô, é por uma boa causa, para 21 a 26. Tem in ício uma co re o g rafia de am eaças e
tornar-se senhora. Essa situação é atu alizada de maneira esquiva s, na qual, segundo as indicações cênicas , Carlota ,
cômica pela aceleraç ão do tempo, pela imagem do casal o utra ve z muda, serve de p ivô. A cena havia com eçad o
Dom juan-Carlota C'para nós") acolhendo um Pierrô leitei - por um ataque de Pierrô, prosseguira com bofetad as,
ro. Este entra no jogo da atualização ao recusar de ante- continua com desafios verbais. Pierrô não quer mais bri-
mão seus serviços futuros e o dinheiro que poderia ganhar. gar, mas esforça-se por sa lva r a ca ra ve rba lmente . Quanto
Permanecem num terreno concretamente imaginado. a Dom juan, não teme expor-se numa contradança de ga -
Esse cômico não é isento de crueldade. Pierrô é ime- los de aldeia em que as b ravatas se multiplicam. Ha verá
diatamente rebaixado da condição de noivo à de campo- mais uma vez relação de causa e efeito, precisando ele
nês que recebe alguns vinténs daquela que ele amava, à ser testemunha do abandono de Pierrô para se animar e
condição de pobre su stentado. Mas ele prefere ver Carlo- participar com prazer do jogo de esconde-esconde em .
ta "mo rta " a v ê-la sen ho ra. A crueldade geral é reforçada torno de Carlota?
pelo olhar de Dom ]uan, que deixa desenvolver-se o Como na réplica 11 , assistimos a uma espécie de
equívoco do projeto de casamento, em que Carlota des- mecanização da atividade físic a , a uma série de réplicas
preza seus amores antigos em troca do sonho de êxito paralelas, que poderiam não ter fim já que o combate não
so cial. O essencial talvez esteja nesse olhar. Foi Dom Juan acontece, já que se trata apenas de uma exibição dos cor-
que desencadeou tudo através da fala, e agora, mudo, ele pos até a intervenção de Esganarelo.
contempla as conseqüências de seus discursos. 27. É a primeira vez que Esganarelo intervém ·desde
A réplica 19 reintroduz a violência com o motivo do o início da cena. Seu papel de observador mudo é por-
salvam ento abordado n a 11 . Desta vez, Pierrô deseja a tanto inteiramente construído no espetáculo. Ignoramos
morte de Dom ]uan, embora o faça no passado e expri- se ele se coloca à dist ância , como reage, se se entristece
míndo-se novamente de man~ira figurada C'tería-Ihe dado ou se diverte corno que vê, por exemplo.
160 lI'v7RODUÇÃ o À ANÁLISE D O TEA TRO COMENTÁ RIOS DE TEXTOS 161
Suas poucas palavras a d q u irem aqui ai n da m ais im- efeito mecânico é m ais surpreendente p el o fato de D om
p ortân cia. Ele ocu p a a posição de árbitro , de homem pru- juan, e m toda a cena, jamais ter se dirigido a Carlota e ja-
d ente que se dirige a lte rn a da m e nte aos d oi s adversários e mais ter falado dela; fez como se ela não exi stisse . A ré-
assum e todo o poder. Os impe rativos e o to m impessoal plica é ge ra l, pouco inventiva C'to dos os homens ", "por
C'a consciê ncia im p e d e ...") sublinham isso. Ele manifesta todas as coi sas do mundo"), segue uma tradição ret ó rica
sua superio rida de diante de Pierrô (re ite ração de "pob re") do discurso amoroso convencional. O essencial é re intro-
e a pela à moral para fal ar a Dom juan . Esganarelo fala duzir o tema do casamento futuro e da felicidade partilha-
como um fidalgo virtuo so que teria princípios. da. Dom juan n ão recorda o qu e acaba d e acontece r.
28. Ret orno m ecânico d a situação. Acreditando agir Uma ve z afastados os dois desmancha-prazeres, a urgên-
bem, o árbitro lançou lenha na fogueira e Pierrô vo lta a cia é re torna r o texto da sedução. Mas este, mal se inicia ,
a taca r. Sempre que o aconselham, el e a dota a posi ção volta a ser bruscamente interrompido, como se Dom juan
c ontrária (cf. 13 e aqui também a dupli ca ção de prono- jamais pudesse ir at é o fim de seu s projetos amo ro so s.
m es) . A julgar pelas didascáli a s, Esganarelo é fisicamente
ignorad o , Píerr ô não lhe atribui grande importância so cial
a pesar da eleva ção do discurso! 2. Repartição da fala
29. A indica ção de gestos perten ce à trad ição d o s
l a z zi que encontram os ainda h oje no te atro burlesco (a s Dom juan é mu ito pouco loquaz . Tem 11 réplicas
tortas de creme que atingem um destinat á rio inocente) e em 33, mas na maior parte breve s. As primeiras nã o se di-
à tradição cl ownesca. · Quem nada tinha a ver com o as - rigem a ninguêm em especial ; as seguintes , qu ando a
sunto é que receb e os golpes. Isso é tanto mais divertido presença de Pierrô é homologada , const ituem so b re tud o
aqui por ser a primeira vez que Esganarelo sai de sua re- , ameaças. Uma única réplica encontra um destinatário di-
serva , e porque sua posição elevada de á rb itro fracassa. A reto, Esganarelo (31), e é para repreendê-lo. Nenhuma se
réplica de Dom juan não tem outro interesse a não ser o dirige a CarIota enquanto Pierrô está presente, como se
de sublinhar a bofetada. .' ela não mais existisse. .
30. A linguagem de Esganarelo muda totalmente . Carlotatarnbérn não se dirige a Dom ]uan . Fala cin-
Ele de ixa de fal ar de cátedra e parte imediatamente para co ve zes precisamente a Pierrô, e a' cada ve z o nome do
a injú ria. O golpe o re colocou no jogo e O fez volta r a ser destinatário figura na réplica.
el e mesmo. Pierrô intervém 15 vezes, ata can d o Dom juan e de-
31. Dom juan situa ironicamente a intervenção de pois defendendo-se dele ou provocando-o à dist ância . Só
Esganarelo no contexto da moral cristã. A réplica lacônica dialoga com Carlota por iniciativa dela .
faz desviar a cena para um outro acerto de contas, o que A intervenção única e tardia de Esganarelo lhe é
opõe o senhor e o criado. Dom juan rapidamente se re- fatal.
cupera e não deixa de tirar uma lição do acontecimento. É portanto Pierrô quem mais intervém na lógica da
32. A réplica justifica a saída de Pierrô e repõe as ação. A repartição verbal favorece os homens, quando se
coisa s no contexto aldeão. A verdadeira autoridade, a da poderia imaginar que Carlota re agisse mais ou buscasse
"tia", encontra-se talvez em outro lugar. Paradoxalmente, um apoio por parte de Domjuan. Tudo se passa como se
Pierrô recorre a uma autoridade feminina . eles não se conhecessem, e aliás não se conhe cem.
33. Sem nenhuma transição, Dom juan retoma sua
d eclaração, como se fosse um texto ap ren d ido de <:;or. O
162 INTRODUÇÃO Ã ANÃLISE DO TEATRO COMENTÁRIOS DE TEXTOS 163
Que implicação erótica Dom juan encontra nessa bri- Foi esse o pagamento por sua caridade através da mão
ga que ele poderia interromper quando quisesse, qual a ra- divina ou por sua estupidez através de um golpe desvia-
zão desse inútil "dispêndio" no jogo das perseguições, a do? A moral da história é que teria sido melhor ele ficar
não ser uma espécie de prazer gratuito de enfrentar o rival, calado, e que o lacaio não deve tomar partido em defesa
socialmente negado, fisicamente tolerado? Durante a inter- de um camponês quando seu senhor o espanca.
rupção do discurso da sedução a mulher não existe mais e
o corpo do outro homem é, portanto, bom para bater?
7. Implicações e hipóteses
6. Os efeitos de mecanização . O que quer Pierrô? Exercer seu direito amoroso legí-
rimo sobre Carlota. Sua reivindicação honrosa muda re-
Em vários momentos, um sistema de repetições ins- pentinamente. Carlota não quer mais saber dele. Não lhe
taura-se na cena, pela simetria das réplicas ou das ações;' resta senão "querer se zangar", ridicularizar-se por seu ex-
pela retomada em eco de uma palavra. É o jogo das bofe- ~.esso de ra~va. Carlota só pensa em ser senhora, e para
tadas (11), a perseguição (20 a 25), a esquiva (28). Esses ISS? pou:o Importa c?m quem irá se casar, contanto que
procedimentos rompem com uma continuidade lógica da o título figure nos anuncios de casamento.
ação, como se ela patinasse no lugar e se repetisse ou Dom juan decerto queria Carlota. Terá Pierrô nesse
derrapasse, provocando um efeito cômico. Geralmente meio tempo. Esganarelo quer ostentar sua sabedoria e
são identificados como pertencentes à farsa. sua bondade, e acaba esbofeteado. .
Essas seqüências prestam-se a uma dupla leitura. A Moliêre não trata nenhuma personagem de maneira
repetição dos golpes é um redobramento puro da violên- unívoca. Não há herói nem vítima nesta cena, nenhuma
cia. Quando a cada bofetada corresponde uma impreca- personagem claramente mais maltratada que as outras.
ção sonora, o efeito burlesco de "encaixamento" funcio- Trata-se de uma cena farsesca? Decerto, se nos atíverrnos
na. O ser humano Pierrô torna-se literalmente um saco de à análise: de certos procedimentos, ao uso do linguajar
pancadas. campones e a alguns mecanismos conhecidos e facilmen-
Os repetidos desafios seguem o mesmo esquema. te identificáveis. Muito menos se levarmos em conta a vi-
Quando Pierrô, em vários momentos, provoca à distância, olência real que reina entre as personagens.
ele se mostra como um covarde. Quanto mais fala e me- Resumamos o enredo da cena: um camponês trata
nos age, mais sua imagem de covardia se afirma com a ~om aspereza um fidalgo ocupado em seduzir sua noiva
mesma conseqüência burlesca. Ele entrou no jogo como o mesmo fidalgo a quem ele salvara de um afogamento.
amante ciumento, torna-se saco de pancadas ou espanta- Este esbofeteia várias vezes o camponês impertinente.
lho, que Dom Juan se diverte em humilhar, até sair em Sua noiva informa-lhe que o fidalgo irá desposá-la, mas
busca de socorro. que em compensação ela fará seu antigo prometido ga-
A bofetada que Dom Juan erra e atinge Esganarelo é nhar algum dinheiro. O camponês deseja vê-la morta.e
um efeito 'cômico certo. O que fala demais e protege o lamenta não ter matado o fidalgo a golpes de remo em
fraco é punido por uma espécie de acaso infeliz. Não é vez de tê-lo salvo. '
culpa de ninguém Esganarelo levar um soco, trata-se de Ouvindo isso, o fidalgo o ameaça de novo e os dois
um "acidente" que atinge precisamente a única persona- homens se provocam. O criado do fidalgo intervém para
ostentar sua sabedoria, recebe uma bofetada que não lhe
.zem
'"
que sustentou brevemente um discurso "caridoso" .
166 INTRODUC4 O A ANÁLISE D O TEATRO COMENTÁRIOS DE TEXTOS
167
era destinada . Tendo p artido o cam ponês, o fida lgo ret o- sentá-Ias muito ligeiramente ou muito ingenuamente
ma sua co nquista am orosa . .
equivaleria a mascará-Ias. Mas é impossível representar
Golpes, provocações, ameaça s de m orte, arranjos fi- todo o potencial do texto. Na atuação, haveria outras des-
nanceiros, zombarias d iversas. Nã o há nada d e cômico cobertas, mas também renúncia a estruturas de sentido
propriamente, é o tratamento teatral que torna burlescas que não seriam ativadas . A aná lis e do texto não é um
as vo ntad es das personagens. Em q u e co ns iste p ortanto projeto de encenação, mas nenhuma encenação ilumina a
esse tratamento? totalidade de um grande texto.
- O d ialeto dos camponeses deform a de rnaneira cô-
mica os horrores que eles proferem e lhes. retirauma par-
te de sua crueza". Mat ar alguém q u e est á se afogando
trans for ma-se em dar uma boa rem ad a na cabeça dele'" .
Segura me nte é mais engraçado.
- A situação insólit a faz as personagens pisarem em
falso. O grande fidalgo torna-se um ga lo de aldeia , seu ri-
val é um camponês, Carlota uma sonhado ra ing ênua , Es-
gan arelo um árbitro untuoso.
- A v io lên cia. vm e ca n ízad a , re p etitiva, em parte esv a-
ziad a pela linguagem, nã o ch ega a ser d ireta .
- Os elementos em jogo são pervertidos e marcados
pela irrealidade, como se nada tivesse importância. Dom
juan é demasiado caprich oso, Carlot a demasiado ingênua ,
Pierrô demasiado colérico, Esgan arelo demasiado bajulador.
O que de fato está em jogo (a sedução de Carlota por um a
falsa promessa e sua ruptura com Pierrô) é em parte ma s-
carado pela multiplicação dos detalhes cômicos.
A escrita de Molí êre deixa a interpretação aberta. To-
das as implicações expostas podem ser tomadas a sério , e
nesse caso a cena pende para a perfídia cínica. Mas se le-
varmos em conta apen as os procedimentos farsescos , es-
vaziaremos a cena de seu interesse , reduzindo-a a uma
arlequinada ligeira.
A tradição da análise literária leva a sério O que é d i-
to , raramente as ações e os objetivos das personagens.
Ora, há na cena implicações eróticas e ideológicas que
precisam ser representadas, mas não em excesso. Repre-
• Obviamente, no texto portu guês perd e-se essa cara cterística, por
não haver uma correspon dência com o dialeto em qu estão.
•• No franc ês, em pato â: "l?/i hailler u n bou n coup d 'auiron sur la t êu!' .
11. Fim de jogo 1 , de Samuel Beckett
1. Descrição
Nada de muito especial nesse ponto. Quando muito que ele havia deixado sozinho, a três dias de caminhada .
observamos o cuidado com que Beckett dá suas informa- Eram os dois últimos habitantes do lugar. Hamm propu-
ções, como se quisesse fazer partilhar imagens que acom- sera que o homem trabalhasse para ele e este havia pedi-
panhariam seu texto e que disso devesse ser deduzido do que a criança também fosse aceita.
um modelo de representação. Beckett teve vários confli- Clov cuidava de Hamm, que estava cego. Tirava-o e
tos com diretores cujas escolhas não eram de seu agrado. colocava-o na cama , informava-o do que se passava no
O texto destinado às personagens é distribuído de exterior, onde tudo era vazio e cinzento . Em troca
maneira aparentemente igual entre Hamm e Clov; Nagg e Hamm, que dizia a Clov que lhe servira de pai, alimenta-
Nell fazem no entanto uma longa cena. Na maioria' das ve- va-o com biscoitos. Clov também cuidava dos pais de
zes trata-se de um diálogo lacônico, de réplicas sobretudo Hamm, quando saíam de suas latas de lixo para se beijar
breves, com exceções: alguns "blocos" de texto aqui ou ali, ou reclamar sua papa. Nagg contava mais uma vez a NelI
monólogos, relatos, "histórias"; Assim, Hamm tem um lon- a história do alfaiate e ela dava risadas agudas.
go monólogo já na segunda réplica e um outro rio final da , Clov, que não podia sentar-se, empurrava Hamm em
peça, ambos começando por "E minha vez de representar". sua cadeira de rodas pelo quarto e voltava com ele ao
A partir desse primeiro olhar sobre o texto, percebe- e
cen~ro. Depois, olhava mais uma vez a terra o mar com
mos que a forma é relativamente "clássica". Claro que o auxílio de uma luneta, mas não havia nada. Quando
não há decupagem tradicional do texto, mas há persona- ~cho~ .uma 'pulga ou um piolho em suas calças despejou
gens que entram e saem de cena, um diálogo, ações es- msetl~lda ate que 'ela ficasse quieta.
pecificadas pelas' indicações cênicas. A fisiologia do texto As vezes, Hamm queria partir de jangada pelo' mar e
não chega realmente a surpreender. perguntava se haveria tubarões. Ele urinava e reclamava
seu calmante.
Hamm dizia a Clov que este queria deixá-lo mas não
2. Enredo podia. Aliás, ele não tinha o segredo do aparador. Às ve-
zes Clov ia à cozinha olhar na parede a luz morrendo ou
Tempos atrás, Nagg e Nell tinham ficado noivos e lo- ver suas sementes que não germinavam.
go depois foram passear pelo lago de Côme, numa tarde Hamm tinha um cão de pelúcia que Clov lhe trazia ,
de abril. Nagg contara pela primeira vez à sua noiva a e era como se o cão,quisesse sair para passear. Às vezes
história do alfaiate. Ela tinha rido tanto que fizera virar o rezavam a Deus, mas não funcionava . Às vezes Clov bo-
barco e por pouco eles não se afogaram. O fundo do la- tava as coisas em ordem ou calçava suas botinas.
go era branco e limpo. ' . Um dia, Nell morreu e Nagg chorou.
Mais tarde eles tiveram um filho, Hamm. Naggnão Hamm quis sentir o sol e o mar em seu rosto e Clov
sabia o que ele viria a ser e parecia lamentar o tempo em levou-o até a janela, Mas recusou-se a abraçá-lo e foi ma-
que o menino era pequeno e o chamava de noite. tar um rato na cozinha. Hamm recomeçava sua história
Mais tarde ainda, eles tiveram um acidente de cabriolé para levá-la mais adiante: Quando pediu seu calmante
nas Arderias, perto de Sedan, e perderam suas pernas. Des- não havia mais, e não havia mais ataúdes. '
de então, viviam em duas latas de lixo na casa de Hamm.
'H á muito tempo, na véspera de Natal, Hamm rece-
I . Quando Clov olhou de novo para fora, viu uma
criança a setenta e quatro metros de distância que parecia
bera a visita de um homem vindo de Kov , do outro lado I olhar seu umbigo, mas Hammnão deixou que ele saísse.
do estreito. Esse homem viera pedir pão para seu filho I Clov decidiu partir e Hamm quis que ele cantasse al-
II
172 INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO TEATRO
COMEJ\TÁRJOS DE TEXTOS 173
Hamm espera inclusive queClov o mate, ou ameaça pósito da intriga , as ações se detêm tão logo esboçadas
deixá-lo morrer de fome. Mas trata-se de falsas pistas; ou projetadas.
Beckett sugere até uma espécie de roteiro policial em tor- Pode-se explorar um eixo no qual se trataria de aca-
no da posse do "segredo do aparador", onde não sabe- bar, eventualidade à qual as personagens aludem com
mos o que está escondido mas adivinhamos ser muito im- freqüência . Acabar equivale para Clov a partir, com todas
portante para estar trancado a chave e co nfe rir poder. Di- as conotações da palavra, especialmente morrer. Mas não
nheiro? Armas? A alusão anedótica não vai mais longe, se pode dizer que Clov e Hamm manifestem muita ativi-
como se as personagens a esquecessem. A situação per- dade para acabar, ou para acabar de vez, a menos que se
manece imutável. Se eles se detestam (mas será que se considere que querem acabar de jogar, terminar a repre-
detestarni), estão inexoravelmente ligados . Ignoramos sentação. Mas trata-se nesse caso de personagens, ou de
mesmo se o final é um verdadeiro desfecho. Nesse caso, atores-personagens condenados a repetir o mesmo texto,
a peça' terminaria com a morte imediata ou pr?xima de noite após noite? De resto, os dois estariam de aco rd o ,
todos os protagonistas, o que era previsível desde o iní- nessa hipótese, em caminhar no mesmo sen tid o , e por-
cio! Se esse não for ainda o verdadeiro desfecho, será pa- tamo em ajudar-se a acabar.
ra uma outra vez, um outro dia . Partir é uma outra hipótese . Clov fala disso (sendo
Beckett coloca de início uma situação imóvel e a lembrado por Hamm de vez em quando) e , como disse-
mantém como tal até o fim. Mas essa imobilidade só tem mos, pode-se considerar o final como a partida de Clov.
interesse se for sugerido ao leitor e aos espectadores que Impossível saber para que ou para onde, e portanto que
irão se produzir ou poderiam se produzir acontecimentos valores estariam em jogo, se considerarmos uma partida
que dariam fim ao vazio da situação. Tudo é jogado de . concreta, realista. Partida definitiva ou provisória, partida
antemão e anunciado como tal sem equívoco; assim , "mo rtal"? Hamm também fala dela, como uma fuga, uma
qualquer intriga é inconcebível, e no entanto chegamos a partida para lugares idílicos que conheceu outrora, onde
acreditar, como fazem as personagens , que algo final- haveria mar e vegetação.
mente vai acontecer. A construção da peça se fundamenta Ninguém quer realmente nada de ninguém, salvo
na impossibilidade total de movimento e de evolução, e na por alguns instantes, e ninguém pode nada por ninguém,
inscrição, em filigrana, de maneira contraditória, de todos salvo de maneira muito parcial e provisória.
os tipos de evoluções, que acabam se revelando como Em ruptura com uma tradição da ação no teatro, es-
becos sem saída e pistas malogradas. A ilusão do movi- sas personagens poderiam apenas ter por desejo o sim-
mento é dada por um uso em falsa perspectiva da drama- ples fato de agir. Hamm é talvez quem mais se manifesta
turgia tradicional, indispensável para que a peça chegue nessa direção. Literalmente sem desejos, e sem possibili-
aos limites dessa marcha imóvel. dade de desejos, já que se encontram num mundo fecha-
do e se'm vida aparente, o esforço das personagens se
concentraria inteiramente no fato de agir, seja qual for es-
4. Esquema ataocial sa atividade e as formas que ela assume. Na maioria das
vezes, trata-se na verdade de reações 'esporád icas e mecâ-
É muito difícil determinar o eixo principal, a flecha nicas que dificilmente podemos identificar como uma
que passaria do sujeito para o objeto e mesmo decidir vontade, as personagens sendo muito mais "agidas" do
quem seria sujeito e objeto. Os desejos das personagens que agentes. Propomos o seguinte esquema muito geral:
são pouco caracterizados e , como a~abamos de ver a pro-
176 INlRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO TEA mo COMENTÁRIOS DE TEXTOS 177
ras oHamm e Clov escutam um despertador que toca lon- é o desfecho que interess a mai s às p ersonagens. Na histó-
gamente. O presente "segue seu curso" debulhando len- ria de Hamm, é o final que é "extraordinário ", mas Clov
tamente seus segundos , "O s grãos juntáin-se aos grãos, prefere o "meio". Quando Clov pergunta se "o final não
um a um, e um dia, de súbito, há um monte, um peque- está próximo", Hamm responde : "Tenho medo dele." O
no monte, o impossível monte ." É hora de meu calmante, alarme do despertador é "digno do juízo final ". Quando
de meu biscoito, de minha história, de deitar-me ou de Clov pergunta: "Você acredita n a vida futura?", Hamm res-
levantar-me. ("Acabei de levantá-lo .") Ocupações indis- ponde: "A minha sempre o foi ."
pensáveis que deveriam marcar o tempo, agarrá-lo, retê- Difícil saber de antemão. Nagg lamenta ter gerado
lo ou acelerá-lo. C'Não posso levantar e deitar você a ca- Hamm, não podia saber o que ele seria.
da Cinco minutos, tenho o que fazer. ") O problema é que Hamm aprecia as histórias que acabam mal para
"nã o passa depressa" e , mesmo quando se decreta que CIo", então ele "p rof etiz a com volúp ia". "O infinito do va-
"não há pressa", "é dern àsíado cedo". O essencial é pre- zio estará a seu redor (. ..) e vo cê será como o cascalho
se rva r "a rotina. Nunca se sabe". miúdo no meio da estepe." Qu ando Clov decide "d e ixare i
Decididamente, "algo segue seu curso" sobre o qual vocês", ouve-se "você não pode nos deixar" .
as personagens , apesar de seus esforços , não têm ne- . Hamm inventa às vezes soluções otimistas. "E atrás
nhum poder. "Você não acha que isso já durou o suficien- dá montanha , hein? E se ainda estivesse verde , hein?" Par-
te?" Às vezes, "a coisa anda ". tidas, viagens, finais felizes , mas no condicional: "Dir-se -
ia um raio de sol. (um tempo) Não é?"
Ab, ontem!
Centro
Ontem havia tudo o que hoje não há mais. Havia bi-
cicletas, também havia velhos, biscoitos e ataúdes. Nagg e Ao final de seu passeio, o cego Hamm exige ser re -
NelI tinham pernas, a mãe Pegg era bonita C'nós também colocado "bem no centro". Busca um lugar que não reco-
éramos bonitos outrora"); Clov gostava de Hamm, Ou en- nhece "p elo faro", nem muito à esquerda nem muito à di-
tão Clov ainda não era deste mundo ("<1 belle époque"). reita, nem muito à frente' nem muito atrás. O centro de
Ontem Nagg tinha um dente. Outrora havia areia no fun- seu mundo e do mundo.
do das latas de lixo, agora é serragem. Ontem existiam Se-
dan, as Arderias e o lago de Côme. Ontem fazia "um tem-
po próprio da estação". "O ntem! o que isso quer dizer?" Gerações
"ap onta -a para a platéia". Harnm decreta que é sua vez da cabana e vou embora . Estou tão curvado que só vejo
de "re p rese nta r" e anuncia seu último solilóqu io . Estamos meus pés, se abro os olhos, e entre minhas pernas um
no teatro. pouco de poeira enegrecida."
Em todo caso, figuras de partidas, nem verdadeira-
mente desejadas nem verdadeiramente realizadas, mas
Viagens tentadas porque "há mudança".
Imobilidade dos seres nesse espaço fixo. Clov, que
anda com dificuldade, é o único a se deslocar de sua co- Hipóteses
zinha para o tablado. Ele empurra Hamm na cadeira de
rodas em sua viagem ao redor do quarto. Ritual preciso
Entre o mundo exterior e o mundo interior, o tempo
em que margeiam as paredes e voltam exatamente ao
exterior e o tempo interior, sobreposições.
centro do quarto. "Pequeno passeio" ou "volta ao mun-
do", Hamm não percebe mais a diferença . Beckett não fornece referências geográficas ou tem-
Sair de novo. O cão de pelúcia comporta-se como se porais. As coisas se passam em lugar nenhum e num tem-
pedisse para "passea r". po qualquer, embora os mais velhos evoquem Sedan e as
Hamm serve-se da gafa para tentar uma viagem solitá- Ardenas (nomes de batalhast).
ria, mas ele não avança, mesmo com rodinhas lubrificadas. A imobilidade do mundo. As person agens imóveis
Restam os projetos de viagem: "Vamos nós dois para por motivo de invalidez ocupam como podem o espaço
o sul." Ou ainda: "Se pudesse arrastar-me até O mar! Faria' que lhes cabe, às custas de trajetos da cozinha ao quarto.
para mim um travesseiro de areia e a maré viria." O so- As viagens imóveis em cadeira de rodas improvisada aca-
nho do movimento: "Entraria nos bosques. Veria ... o céu, bam do mesmo modo, pelo retorno ao centro. Dão uma
a terra . Correria. Me perseguiriam. Eu fugiria :" voltinha, pelo quarto, pelo palco ou pelo mundo , é a
As recordações de viagens, o acidente de cabriolé mesma coisa, pois retornam a seu ponto de partida. Si-
de Nagg e Nell nas Ardenas, cuja lembrança os faz rir. Pe- mulam a atividade e o movimento, servindo-se de uma
lo menos algo se movia. As histórias: "o homem aproxi- gafa, se preciso, não existe nada, não vão a parte alguma
mou-se lentamente arrastando-se de barriga no chão". e no entanto se movem. Clov multiplica as idas e vindas
Imagens do movimento, sempre, lembranças de distâncias entre as duas janelas; Nagg e Nell aparecem fora de suas
percorridas, como "vir de Kov ", "uma boa meia jornada a latas de lixo. Ao chegar à cozinha, Clov contempla a pa-
cavalo". rede ou sua luz que morre . Ele tem o que fazer.
. Clov e Hamm evocam a partida de Clov . O dia em Essa "casa vazia" talvez seja o universo inteiro ou o
que este irá partir é sempre projetado e sempre anulado universo inteiro essa casa vazia, intercambiáveis como a
C'você não pode me deixar" , "não posso ir longe"). Res- serragem e a areia que guarnecem as latas de lixo . Ne-
tam as falsas partidas cotidianas para a cozinha, da única nhum deles leva a parte alguma. Os dois espaços vão dar
persona~em em pé e que caminha, já que não pode sen- em limites cinzentos, uma parede ou o horizonte, e o ter-
tar-se. "E o que chamamos procurar a saída." Saída dura- ceiro espaço. :o do palco, detém-se na linha de "uma mul-
mente conquistada pelo ator no término da peça, no fim tidão 'em delírio", um horizonte de espectadores pouco
do jogo, ou saída finalmente bem-sucedida da persona- mais real que o "fanal do canal ", espaço construído fone- ' ;;)
gem que realiza enfim uma a ção c~)ncreta? "Abro a porta ricamente e que talvez só exista pela' linguagem.
]82 INTRODUÇÃO À ANÁliSE DO TEA 1RO COMENTÁRIOS DE TEXTOS 183
o tempo imóvel. Será que há avanço? É a verdadeira mas aplicamos os instrumentos de análise anteriormente
questão da peça. O tempo passa e não passa, e sempre é descritos a um trecho muito curto. Outras passagens po-
possível ler a peça como um círculo sem fim, que começa deriam justificar outros comentários, mas acreditamos que
com o despertar de Hamm e termina quando ele se deita, o trabalho sobre uma amostra, escolhida praticamente ao
enquadrada pelos mesmos rituais. As "velhas perguntas e acaso, dá uma idéia bastante justa das principais pistas re-
as velhas respostas" tão apreciadas por Hamm são uma lativas ao funcionamento do diálogo. As réplicas são nu-
das chaves desse tempo da repetição. Mistura de recorda- meradas por nós.
ções, falsas esperanças e evocação lírica do passado
constroem um presente imóvel e repetitivo. 1. HAMM. Mesmo assim você está me deixando.
Quanto à passagem ao palco, o espaço a construir é 2. CLüV. Estou tentando.
caracterizado de maneira simples. Espaço fechado, mura- 3..HAMM. Você não gosta de mim.
do, vazio do qual se procura sairsabendo-se.de início 4. CLüV. Não.
que é impossível e que já acabou. O espaço-tempo da ce- 5.HAMM. Antigamente você gostava.
na e o da ficção se confundem. O espaço fechado do ta- 6. CLüV. Antigamente.
blado oferece como exterior apenas urna "cozinha" de 7. HAMM. Eu fiz você sofrer muito. (Um tempo) Não é?
8. CLOV. Não é isso.
três metros por três que se assemelha a um camarote. Ca-
9. HAMM (indignado). Não fiz você sofrer muito?
da representação como que acaba no momento em que 10. CLüV. Fez.
começa (nada se passará de novo), e no entanto é preci- 11. HAMM (aliviado). Ah! Ainda bem! (Um tempo. Fria-
so ir até o final, jogando o jogo e esperando que as coisas mente) Perdão. (Um tempo. Mais/arte) Eu disse per-
sigam seu curso. Cada dia como que acaba no momento' dão.
em que começa, e para isso segue o mesmo ritual. Cada 12. CLüV. Estou ouvindo. (Um tempo). Você sangrou?
vida contém seu término em seu começo. Encaixamento 13. HAMM. Menos. (Um tempo) Não está na hora do
e espiral são as figuras dominantes de Fim de jogo. meu calmante?
Espaço vazio e tempo suspenso, são essas as dificul- 14. CLOV. Não.
dades da representação. Mostrar um espaço carcerário e ..(Um tempo)
um mundo a partir do fim são tentações que se oferecem 15. HAMM. Como vão seus olhos?
16. CLüV. Mal.
a uma encenação. Mas isso não será fazer surgir o sentido 17. HAMM. Como vão suas pernas?
de maneira muito direta e sem nenhum humor, e assim 18. CLüV. Mal.
perdero contato com o texto? Não há outra coisa a repre- 19. HAMM. Mas você pode andar.
sentar senão a imobilidade e o atolamento, no tempo real 20. CLüV. Posso.
de uma representação que, por sua vez, deve seguir seu 21. HAMM (com violência). Então ande! (Clov vai até
curso sem se atolar no tédio pontificante da explicação a parede do fundo, apóia-se nela com a testa e as
de texto metafísica. Eis a força e a dificuldade desse texto. mãos) Onde você está?
22. CLOV. Aqui.
23. HAMM. Volte! (Clov retoma a seu lugar do lado
6. Estudo de um trecho de diálogo da poltrona) Onde você está?
24. CLüV. Aqui.
25. HAMM. Por que não me mata?
Não fazemos observações de conjunto sobre o "esti- 26. CLüV. Não conheço o segredo do aparador.
lo" de Beckett - já existem estudos sobre o assunto -, (Um tempo)
184 1l\77?ODUÇÃOÃ ANÁLISE DO TEATRO COMENTÁRIOS DE TEXTOS 185
Impressões gerais Isso jamais acontece aqui, onde uma nova réplica é lan-
çada sem que haja o menor sinal de registro do que foi
As réplicas são muito lacônicas, freqüentemente dito anteriormente. Tudo se passa como se eles não se
compostas de uma única palavra. Numerosas perguntas escutassem (entretanto, um ouve o que o outro diz) ou
de Hamm, seguidas de respostas mínimas de Clov. (Em como se o sentido da resposta de cada um fosse indife-
26 réplicas, 9 perguntas, 8 delas feitas por Hamm, e 3 ex- rente ao outro.
clarna ções .) Há, porém, insistência da parte de um dos dois
Do ponto de v is ta das regras da conversação , é enunciadores, no caso Hamm, quando a reação de seu
Hamm quem lança os temas, numerosos e disparatados, e parceiro não lhe convém, como se um esquema conver-
quem conduz a conversa. As perguntas encadeiam-se sacíonal estivesse previsto e Clov não o tivesse seguido C7
sem nenhuma transição. Dizem respeito tanto a saber. as a 11). Como sua frase "eu fiz você sofrer muito" não pro-
horas quanto à freqüência cios sangramentos de Hamm . voca a resposta positiva que ele espera (e não a negação,
ou ao eventual projeto de assassinato de Hamm por Clov, como no esquema normal), Hamm reitera até obter satis-
como se tudo estivesse no mesmo plano. Clov quase não fação. O mesmo ocorre com os "p e rdão" sucessivos, que
colabora e n ão toma nenhuma iniciativa em matéria ele não provocam em Clov mais que um sinal de boa recep-
discurso. Nenhuma regra de cortesia , nenhuma precau- ção e um encadeamento num outro assunto (2) . Hamm
ção oratória nos dois interlocutores. Mesmo quando é afeito às posições patéticas, enquanto Clov mostra -se
Hamm pede perdão, é para fazer Clov reagir, já que repe- ainda mais discreto nesse terreno 00).
te a palavra e com mais força .
A informação
o implícito como regra
A conseqüência do implícito entre as personagens é
As personagens parecem conhecer-se perfeitamente, a subinformação do leitor. Não ficamos sabendo nada do
pois procedem sempre por alusão e sua conversa repou- passado .deiês, de suas relações .afetivas, desse antiga-
sa sobre o implícito. Cada um sabe das doenças que o mente marcado por um ponto de exclamação, dos sofri-
outro sofre e jamais dão esclarecimentos sobre qualquer mentos de Clov. Através do laconismo das personagens,
assunto. Isso resulta num diálogo muito aberto do ponto Beckett faz a escolha de uma informação rara e destilada
de vista do sentido, já que nenhum dos dois locutores se gota a gota>Podemos deduzir ou que essas informações
dá ao trabalho de explicitar seu pensamento pelo discur- não têm muita "importância, ou que a escrita aberta convi-
so. Sempre pressupõem que o contexto seja conhecido. da às conjeturas.
Também nenhum dos dois manifesta surpresa ou es- O diálogo tem tantas brechas que solicita do leitor
panto diante das asserções do outro, de modo que as ré- uma grande cooperação, uma vez que lhe é apresentado
plicas raramente ultrapassam o par adjacente, a ausência sem comentários. Assim, as réplicas 25 e 26 requerem,
de retorno provocando um efeito imediato de fechamen- por si sós, uma série de glosas. Por que Hamm espera
to, próximo da mecanização 05 a 20, por exemplo). As- que Clov o mate? Por que Clov não nega, como se achas-
sim, é comum na prática corrente, após se pedir notícias se normal a pergunta? Ao responder, ele não se coloca
da saúde do interlocutor, reagir à sua resposta, para mani- nem no terreno da moral nem no da afetividade, mas no
festar compadecimento ou dar algum sinal de interesse. ela pragmática . Obviamente, nada sabemos e nada .sabe-
186 INTRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO TEA TRO COMEIVTÁRIaS DE TEXTOS 187
remos do aparador e de seu segredo, que o impedem de renunciamos a buscar nos enunciados explicações psico-
praticar o assassinato. Uma vez mais, Hamm não reage, lógicas atribuídas às personagens antes de terem pronun-
como se esperasse essa resposta ou como se sua própria ciado lima palavra.
evidência tornasse inútil qualquer comentário. O assunto
dramático do assassinato de Hamm detém-se abrupta-
mente como havia começado, a resposta de Clov engen- Cadafala é conquistada ao silêncio
dra o silêncio. Não sabemos o suficiente para inventar o
resto, para seguirmos sozinhos essa pista "d ramático-p o li- Numerosas indicações cênicas marcando "um tem-
ciai " ou para a abandonarmos igualmente. po" pontuam o texto. A fala demora a surgir e interrom-
Esse diálogo não é absurdo, como foi dito às vezes, pe-se com freqüência, o que dá ao texto, quando se res-
porque não é tradicional. e porque não possuímos todas peitam essas pausas, o ritmo um pouco soluçante de uma
as chaves do sentido. Ele se caracteriza por uma lógica conversa que jamais se desenvolve, como uma série de
implacável. O "Então ande!" (21) de Hamm encerra impe- impulsos frustrados tão logo iniciados.
cavelmente as trocas precedentes (15 a 20). A ignorância O laconismo já assinalado assume várias formas . Em
do segredo do aparador como obstáculo ao assassinato primeiro lugar, as respostas raramente são desenvolvidas,
pertence ao mesmo registro lógico, à mesmàfranqueza como se, diante de várias opções possíveis, a solução mí-
das personagens despidas de toda civilidade e conse- nima fosse sempre adotada . Várias réplicas de Clov não
qüentemente de toda hipocrisia verbal. A resposta só pa- ultrapassam uma palavra (4, 6, 10, 14, 16, 18, 20, 22, 24),
recerá absurda se pensarmos que faltam elos explicativos, e geralmente uma palavra muito breve C'não", "sim"). No
ou se raciocinarmos no interior de um sistema psícológí- entanto, certas asserções de Hamm (3) exigiriam explica-
co convencionado. ções ou comentários. As réplicas de Clov, em sua brevi-
Nesse caso, tudo parece espantoso, tanto a pergunta dade, são categóricas C'não") ou alusivas C'antigamen-
de Hamm como a resposta de Clov, se as lemos com os te!"). Elas também podem dar a entender que ser mais ex-
. pressupostos dos que se instalaram num relato policial tenso seria inútil , e que a informação já é conhecida e
(Clov descobrirá o segredo do aparador, no qual se en- não houve nenhuma mudança C'mal"). Por vezes, elas não
contram, a escolher, as armas, a herança, a chave da ca- reproduzem a imagem, a despeito do fato de Hamm estar
sa?) ou patético (o filho adotivo mata o pai, de quem já cego. "Aq u i" é suficiente para precisar as posições de
não gostava havia muito tempo e que o fazia sofrer) . Clov, dadas pelas indicações cênicas. A voz de Clov serve
No interior da obra, esse diálogo é uma espécie de de referencial a Hamm e seus deslocamentos não têm ne-
concentrado de réplicas no qual se encaixam as que se re- cessidade de outros comentários. Como sabemos que
ferem à partida de Clov (l e 2), à ausência de amor (3 a 6), Clov raramente toma a iniciativa da fala (exceto em 12,
ao sadismo de Hamm C7 a 11, 15 a 21). São razões -tradicio- mas então é como que forçado a isso), se se tratasse ape-
nalmente plausíveis para um assassinato, mas não são es- nas dele não haveria diálogo e tudo seria silêncio.
sas as enunciadas por Clov, talvez porque são demasiado Diante de um parceiro tão poucó cooperativo,
evidentes ou porque Hamm as espera, e sim aquela, bem Hamm é um pouco mais falador, mas mesmo assim eco-
mais lógica e implacável (um fechamento perfeito da pas- nomiza nas construções sintáticas, que ele prefere (pelo
sagem), que fornece apenas uma razão material. ,. menos nessa passagem) simples, diretas. e repetitivas.
Não há incoerência no encadeamento dessas rêpli- Aqui ele fala a partir de algumas fórmulas básicas que du-
casoquando as inscrevemos no interior da obra e quando plica ou. modifica ligeiramente C7 e 9, 11, 15 e 17, 21 e
188 INTRODUÇÃO Ã A NÃLISE DO TEA TRO COMEN7ÃRIOS DE TEXTOS
189
gue sobre. o rosto), tomar o caminho do patético, numa _ Nagg ~em necessidade de Nell para escutá-lo , para
galeria de retratos de monstros sofredores. .coça-lo, pOIS a transa se acabou , embora ainda tentem se
Na verdade, cada um sofre de uma' deficiência que beijar. Nagg lamenta ser o pai de Hamm.
ele compensa ou à qual se acomoda, como se fosse natu- tt
Clov dá "risos breves" para uns e outros, a quem ele
ral ser incompleto. Essas deficiências criam relações de
se_rve - mas sem saber por quê - e que dependem dele.
dependência . Nagg e Nell não comem sem a intervenção
Nao gosta (mais) de Hamm, mas não é fácil deixá-lo.
de Clov , Hamm tem necessidade de Clov para seu pas-
A sexualidade e o amor, se existiram, datam de anti-
seio mas também para ter uma visão do mundo exterior,
onde, aliás, não há nada para ver (daí a inutilidade da ri- gamente. As relações permanecem reguladas por rituais
dícula "luneta"). Clov, a serviço de todos, não tem neces- que se assemelham a sentimentos que eles imitam de vez
em quando.
sidade de ninguém, embora Hamm o domine ' pela pala-
vra. Ninguém , em todo caso, tem piedade de ninguém, e
suas relações são desprovidas de qualquer sentimento.
Humanos é inumanos
Às enfermidades juntam-se a penúria e a sujeira.
Mas, também aí, sem traço de comoção. Por exemplo, a
caça aos piolhos dá ensejo a jogos de palavras com cono- . . ' Ao aludirem em vários momentos à representação,
tação sexual Ccoite/coite-: colchão de penas/coito). as personagens se reconhecem no palco, ocupadas em se
Poderíamos dizer que as enfermidades servem de oferecer como espetáculo. Essa dimensão de teatralidade
pretexto ao espetáculo e que todo dado realista é imedia- é decisiva na abordagem delas, ainda que seja confundi-
tamente teatralizado. Clov é um enfermo campeão de da por outras alusões, metafísicas desta vez , ao "palco do
acrobacia em escadinha, Hamm viaja como cego em sua mundo".
cadeira com o auxílio de uma gafa , as latas de lixo de ~or suas enfermidades, suas faltas, seus pedidos de
Nagg e Nell, embora assinalando-os como personagens- a~ençao ou de amor e seus discursos, pode-se dizer que
dejetos, são pretexto de aparecimentos e desaparecimen- s:o personagens muito humanas, ou pelo menos que
tos que os assemelham a marionetes. tem a ver com a condição humana. Pelo caráter sistemáti-
co dos traços que acumulam, o burlesco de seus perfis ou
algumas de suas ações próximas da gag, pertencem ao
Relações mundo do teatro ou mesmo ao do music-hall.
Essa dupla pertença faz o interesse e a complexida-
Hamm detém a comida, e com isso o direito de vida de delas. Mecanizadas em excesso, perderiam a dimensão
e de morte sobre os demais, que ele pode racionar ou sensível .cujos vestígios encontramos no texto, os momen-
que poderia fechar definitivamente em suas latas de lixo- tos de inquíetude e a memória das pequenas felicidades
caixões. Portanto ele sustenta seus genitores e seu filho que as humanizam, mesmo de forma ridícula. Mas , dema-
adotivo, a quem lembra que deu um " b om e", Pede-lhes siado patéticas, elas já não teriam vínculos com a família '
em troca que o sirvam e que lhe obedeçam sempre dos c/owns de quem conservam as calças .largas ou o an-
(Clov), que o escutem se ele o desejar (Nagg). Tudo lhe dar est~nho, o riso breve ou a infernal lógica do díscur-
pertence, o aparador, o cão, a gafa, mas ele não consegue so. Sena redutor fazer delas os porta-vozes simbólicos de
fazer nada sozinho. Pede beijos e amor a Clov, mas pro- um discurso metafísico, ou puros duetistas da "rotina" do
voca-o para partir ou para o assassinato ao interrogá-lo music-hall. Cabe à representação construir esse estranho
acerca de seus verdadeiros sentimentos. coquetel , partindo não do sentido a produzir, mas de ca-
IN7RODUÇÃOÀ ANÁLISE DO 7EA7RO
COLEÇÃO LEITURA E CRíTICA
192
da uma das facetas sucessivas ou contraditórias que o Elementos para a leitura dos textos filosóficos Frédéric Cossutta
texto oferece.
O contexto da obra literária Dominique Maingueneau
Introdução à análise do romance Yves Reuter
8. Continua Introdução à análise do teatro Jean-Pierre Ryngaert
o comentário não esgota um texto de tal importân-
cia, apenas oferece pistas de reflexão. Evitamos toda alu-
são às outras obras de Beckett como também ao contexto
teatral da época, a obras gerais ou a representações passa-
das. Nosso projeto era partir do texto e nunca o imobilizar
em certezas muito absolutas. O que não impede, a seguir,
quaisquer outras abordagens convergentes ou contraditó-
rias, contanto que o comentário não preceda o texto, que
o rótulo padronizado, do tipo "é teatro do absurdo ou de
vanguarda dos anos 50", não oculte o diálogo atento com
a escrita, a tentativa de "cooperação textual".