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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Escola de Belas Artes - EBA


Artes Visuais - Escultura
Crítica da Arte I
Professor: Paulo Venancio Filho
Aluno: João Carlos dos Santos Dantas

Crítica: Yorùbáiano, de Ayrson Heráclito - Museu de Arte do Rio (MAR)

Do Fundão ao MAR. Domingo, sol, ônibus, máscaras e um entusiasmo fora


do comum para percorrer os caminhos da exibição que viria. A Praça Mauá
fervilhava ao sol de um domingo tipicamente liderado pelo hábito da folga. A folga,
podia-se ver, era a folga dos últimos meses de impossibilidades e reclusão. Sendo
assim interessante como somos domados por um instinto de pertencimento a um
coletivo, a uma sociedade que evitamos, mas sentimos falta, pelo menos enquanto
tratamos da necessidade de estar com o outro. Mesmo um outro que oprime e,ou é
oprimido.
Todo entusiasmo provocado por essa flanelagem se incubiu de tomar como
premissa a proposta de exposição de Ayrson Heráclito como reveladora. Não sei se
pela sensação de ir a um museu depois de meses de espaços limitados ou se pelo
tema proposto pelo artista. Yorùbáiano é o título dado ao trabalho do artista visual
baiano que, antes de milhares de outros, presenciou em sua cultura um sincretismo
compulsório pelas lideranças que ligavam as cortes portuguesas e a sua ira em
fazer uso da escravidão. O catecismo compulsório aos indígenas e negros
escravizados é um exemplo desse método.
É no século XIX que os povos da África Subsaariana chega ao Brasil com a
cultura Yorùbá prestes a tomar conta da cultura brasileira com todo seu
conhecimento, arte e religiosidade. Em um país onde a república era o sistema
desenhado, os povos africanos trouxeram uma valiosa espiritualidade e
conhecimento, mesmo que ainda não tivesse se encerrado o movimento
escravagista em linhas indiretas pós Lei Áurea.
Na entrada do MAR se pedia um comprovante de vacinação que, mesmo
não de forma justa, pegou muitos visitantes de surpresa. Todos tiveram a paciência
de baixar o app e encontrar o passaporte sem problematizar, apesar de terem um

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espírito carioca ranzinza em locais fechados. Havia um bar de frente ao museu
onde uma cerveja foi calorosamente degustada aos ventos da Baía. Os olhos
permaneceram no MAR. Ora dava atenção aos procedimentos burocráticos da
vacina, ora olhava para o outro mar. Ainda assim, até qu o pudesse ver, de fato, a
perambulação era de espantar e recortava a paisagem natural obrigando os olhos a
virarem o MAR ou para o chão, já que para o céu era de inflamar as córneas.
O museu estava enchendo. A maré. Gente existia em sua multiplicidade do
lado de fora do MAR, mas dentro, um carácter de uma escravidão neo, era
camuflado com certo estilo. Um uniforme bem moderno que figurava os funcionários
do museu percorria as ruas também. Todos sabiam de onde vinham aquelas
roupas, tinha o mesmo tipo de conceito no MC Donalds. Sintoma de modernidade e
do contemporâneo. Segregação moderada. Os costumes se caracterizavam por
calças pescantes e camisetas com a logo do MAR banhando o tecido em
repetições. A arte, parênteses à parte, continua encontrando seus corpos e espaços
porque aprendeu a falar, não sem luta, e aprendeu. Está aprendendo. Fala do lugar
que a põe nesse mesmo pódio de subjugação.
E lá se foi, em um tempo de cinco copos, o crítico. Ao adquirir os bilhetes
percebi o quanto as coisas, aquelas que nos davam acesso e informação tinham
mudado. As máquinas davam lugar aos caixas-gente. Só havia uma de nossa
espécie e o que ela fazia, basicamente, era nos instruir a utilizar a máquina. além
disso, as máquinas só aceitavam débito ou crédito, dinheiro não se via por ali.
Até que se pudesse chegar à exposição de Heráclito era possível passar por
diversas outras. No entanto, tive a impressão de correr entre essas até chegar ao
fundo apesar de ter interesse nos outros temas propostos pelo museu. Exemplo
está em Crônicas Cariocas que mantinha em seu excesso o tema proposto. Um
corredor com pacotes de papel de padaria e mercado sustentava suas paredes de
entrada. Um áudio era exibido com uma conversa sobre fofocas. Parei para ouvir.
E desci, desci, desci, até o Ayrson. E vou descrever o que vi, o que senti, o
que experenciei com as obras do artista. Yorùbaiano era o fundo do mar. MAR. Era
o fundo ainda assim. Do fundo, negro, escuro, era possível estimar estereótipos, e
desses advir o medo do conhecimento. Quais figuras existem alí e quais formas
essas formas do fundo negro têm? Que medo do escuro é esse que se figura em
seu aprisionamento.”Não cruze tal rua!”, “Não vá àquele lugar”, “Não diga isso!”.

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Essa negativa é imperiosamente calcada a partir do que não se conhece, ou do que
enganosamente se pensa sobre o que é o saber.
Saber é Yorùbáiano. Saber é o que nos é “revelado” em fotografias,
instalações e vídeoperformances que o artista gentilmente pensou para refletir o nós
brasileiro. A exposição, além de exibir arte, exibe também objetos ritualísticos da
cultura Iorubá traduzidos pelo candomblé. É uma demonstração de um coletivo de
peças que remontam tanto o passado cultural, filosófico e religioso do continente
africano quanto o passado de tortura.
Para cada vídeo assistido, uma linguagem. Ali, naquele espaço expositivo,
estava também presente uma performatividade dada pelo ambiente. O que se
trataria por ambientação, por exemplo. Uma aura de pertencimento dentro de uma
linguagem que é o Brasil contemporâneo pensado por e entre uma matriz africana.
O Brasil só não é África porque era pseudônimo de Portugal. Trazia-se a luz
possibilidades múltiplas do aproveitamento das camadas da arte. As fotografias, no
entanto, chamavam mais a atenção que o barco estraçalhado no núcleo do espaço.
Estavam nelas representações da filosofia pelo candomblé sincretizado pelo o que
se transformava por cultura do Brasil.
Um tição de ferro quente pressiona a carne de um artista coberta por couro
de boi. Aquele tição marca a ferro todo o gado, que de tão semelhantes deve ser
carimbado a fogo para o abate. É carne para ser digerida, o que difere da carne
preta, que além de ser a mais barata da cidade, é torcida e sacudida, posta ao sol e
pendurada em pregos, para o abate mesmo.
Além de todas as imagens ali vivenciadas e apreendidas como conhecimento
da cultura Yorùbá, é possível perceber um ar, daquela mesma aurea, um tanto
literal. Um acervo rico para o conhecimento desprovido, aqui e ali, de artifícios
artísticos, mesmo que nos fizessem pensar em Duchamp. Ou Beuys. Como é
possível? Talvez a arte contemporânea não seja o único artifício de retirada de
referências. Talvez ela necessite de referências de uma vanguarda clássica para
que assim se contemporaneie. No entanto, a própria cultura exposta demonstra um
“já arte” a partir da incorporação do que é mais ligado ao conhecimento de uma
história. Peças antropológicas, ricas.
Essa literalidade, apesar de incômoda, é um tanto que necessária para a
exposição a um público brasileiro que vive mais um internacionalismo de tudo que
advém como garantia do movimento econômico. Acontece que para a arte faltou

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estar naqueles tantos rituais, vídeos e fotografias no MAR expostos e recortados.
Ela esteve lá, mas sua presença foi ofuscada pelo imediatismo xamânico das “já
imagens”. Coisa linda de se ver com os olhos, mas com um tom insosso de
manipulação visual, até mesmo com fotografias que se esvaziam rapidamente.
Paradoxo.
As fotografias expostas fazem lembrar os trabalhos fotográficos realizados
pelo artista brasileiro Mario Cravo Neto enquanto trabalhava as culturas africanas no
Brasil, principalmente pela temática e, também, os enquadramentos dos corpos.
Nas fotografias de Heráclito, contudo, se perde o tom da imagem facilmente, apesar
de serem bem iluminados e conter contrastes importantes, além, claro, de receber
uma técnica também muito importante.
Ainda assim, as imagens passam a mensagem, deixam dúvidas- o que
devem-, mas perdem o sabor durante o caminho do olhar. Não há dúvida de que se
queira experimentar novamente todos os trabalhos, talvez esse seja o caminho para
o encontro de novas perspectivas da exposição completa. Nas fotografias de Cravo
Neto a potência do transe nos corpos arrepia os poros de quem as olha. A
artificialidade, por outro lado, incomoda nos trabalhos de Heráclito, mesmo que
mostrem uma riqueza de símbolos da cultura Yorùbá capaz de emocionar, mas
somente se o olhar focar nesses detalhes.
O barco partido ao meio no meio do MAR não afunda porque suas peças se
prendem aos expostos em outros cantos. Uma instalação que leva o pensamento
junto com ela. É esse pensamento que esmaga o barco. As diversas
representações dadas por Ayrson Heráclito em Yorùbáiano são enriquecedoras
para o saber de todos. O que talvez entre em debate com as informações passadas
são as escolhas feitas pelo artista. Sua literalidade é aproveitada lindamente como
substância do conhecimento ao mesmo tempo que passa a mensagem e se vai.
Esse fenômeno acontece na relação de dois corpos no espaço expositivo: o
trabalho e o observador que para, olha e se vai contente com o que aprendeu e
incerto sobre os veículos encontrados.

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