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Há um mundo onde as mulheres não são seres humanos, mas objetos

de consumo. Frequentado por todos os tipos de homens, muitos


casados e com boa posição, os prostíbulos escondem uma realidade
social tão antiga quanto invisível.
O que está por trás das portas dessas casas noturnas? As verdadeiras
donas desses corpos que ficam nuas por dinheiro estão cheias de
sentimentos e sofrimentos, de pesadelos e sonhos, desejos e amores...
Anne Smith abre uma janela para esse drama social tão real e
marginalizado. Nos revela os segredos do coração de uma mulher da
noite, em um ambiente onde todos usam máscaras, onde elas estão
sozinhas e onde não existem, onde o amor é proibido. É um mundo fácil
de entrar, mas difícil de sair. Acaso existe saída? Baseado em fatos
reais.


PRÓLOGO I

Ler Memórias de uma prostituta é como sentar-se frente à autora e escutá-
la falar das vicissitudes de Anastásia, tal e como se ouvisse uma amiga
fazendo uma narração das anedotas de sua vida. Com semelhante soltura se
expressa sobre situações que a alguns daria prurido vocalizar, pintando as
misérias de uma profissão que estamos acostumados a estigmatizar em
dois extremos: o infernal e o glamoroso. Dando-nos ela uma visão em
escala de cinza, de pontos intermediários e, talvez, matizes até pendulares,
sobre uma experiência real, usando para isso um discurso simples, frontal,
cuidadoso, que jamais cairá na malícia que algum leitor espera nem na
autocompaixão que esperariam outros.
Usando a voz de Anastásia, Anne assenta juízos próprios, inevitáveis
na exposição de uma história real que deixa impressões, não coração. Sem
embargo, apesar dos juízos que faz, Anastásia se mostra cheia de
compaixão ao mundo que habitou durante tantos anos.
Desde fora, um pode fazer muitas perguntas para si mesmo. Nosso
instinto julgador pode fazer planejamentos sobre as decisões que toma a
protagonista. Mas ela mesma se encarrega de dar explicações que podem
ou não bastar a seus expectadores, mas nos deixa claro que foram decisões
pesadas à consciência, das consequências que trariam.
Anne intercala a um jogo narrativo suas ideias sobre o processo de
cura do karma. O Caminho de Santiago é o que reflete seu verdadeiro
trânsito, um caminho feito com interrupções e em companhia de crédulos e
incrédulos, de seres queridos e seres que se aprendem a querer; uma senda
que reflete em sua descrição quase como um fiel espelho o traço do seu
crescimento, suas dores, sua solidão, suas alegrias, com uma chegada a
porto em gozo que pressagia que sua história terá um final de paz e que, no
entanto, não é mais que outro peregrino. O caminho de Santiago é outro
feito fidedigno dentro do livro, é a plena metáfora do seu crescimento, da
sua busca e sua cura.
O livro é em geral uma demanda. Um pedido, não de socorro. Se não
mais bem um clamor de observação sobre uma realidade que a uma parte
de nós nos resulta transparente, e a outra repulsiva. Um grito que diz que
somos algo mais do que aquilo que fazemos para ganharmos o pão e que
põe em evidência a ignorância, a desídia, o abandono que estão submetidas
as mulheres que exercem a prostituição. E, ao mesmo tempo, é um sussurro
de compaixão e esperança, um murmúrio de serenidade que prevê que
sempre se pode triunfar sobre as adversidades.
Através da leitura, acompanharemos a Anastásia, cruzando suas
dores, suas emoções, suas feridas, suas investigações sobre a desproteção e
seus temores. Sentiremo-nos como ela: submetida, abatida, saudosa,
desgastada. Mas também nos sentiremos lúcidos, recuperados, renascidos
esperançados e, até quiçá, confundidos em nossos prévios conceitos sobre
este ofício e seus avatares. Será então tempo de replantarem-se os juízos,
de sentir compaixão e imaginar o mundo em que Anastásia viveu e do qual
Anne tenha sido testemunha. Muitos gostariam de um final distinto, quiçá
estupendamente feliz. Destes que deixam a consciência tranquila. Mas, ao
contrário, o livro acaba com a ideia ambígua de que poderia não ser assim,
ou talvez sim, mas não deixa claro. O que faz com que voltemos às
mensagens das mortes, da violência e adições aos vícios, sobre os finais das
companheiras de Anastásia, mencionadas no decorrer do livro e, portanto,
nos deixa com a consciência intranquila.
Memórias de uma prostituta é a história de uma mulher e suas
circunstâncias. Nenhuma vida é fácil. Todas as vidas exigem luta e cura,
todas. Nem a de Anastásia, nem a minha, nem a sua serão a exceção a essa
regra que Anne Smith nos mostra com tanta crueza.
Isabel Ali
Escritora Argentina
PRÓLOGO II
Memórias de uma prostituta é uma obra crua, dura, mas com esperança,
força e ternura. A autora relata toda a obra de forma contínua, devido a
isso, te prende, faz você vestir a pele dela e faz de você
protagonista.Através de Memórias de uma prostituta se pode captar uma
mensagem clara, forte, contundente e próxima. A experiência que emerge
de toda a leitura nos faz refletir sobre o que isso supõe entrar em um
mundo real, duro, sincero e surpreendente por sua paisagem.
É fácil entrar em um abismo cheio de miséria, drogas, sexo, violência e
morte... mas é muito difícil de sair, eu diria, quase impossível.

Ela, a protagonista, conseguiu pela sua grande fé, sua crença, sua
personalidade e porque ela pôde ver o lado positivo e apreciou tudo que se
aproximou dela, como se fosse uma tábua de salvação. Tudo, tudo sempre a
fez sentir-se mulher e pessoa.
Em Memórias de uma prostituta, podemos viver cenas em diferentes
lugares e países. Também dentro dessa dureza se pode ver que é um
trabalho simples e bonito, porque abriga, entre outros, o Caminho de
Santiago, paisagens e rotas e o que isso significava para a protagonista.

Há uma mensagem de apoio e compromisso em Memórias de uma
prostituta, a sociedade deve acordar para esse fenômeno social, muitas
mulheres são assassinadas e suas esperanças mutiladas, deixando um
vazio.
Obrigada, Anne Smith, por ajudar com toda sua força outras mulheres que
não passem pelo mesmo. Sua coragem, simplicidade e generosidade faz
você bonita por dentro e por fora.

Miren E. Palacios Villanueva
Escritora e poetisa Vasca
Bilbao Espanha

EQUILÍBRIO

Sou luz, sou escuridão. Sou vida e morte...
Sou o sopro de esperança...
Sou a mãe, a irmã, sou a filha…
Sou a navalha que corta, sou aquela que dá a vida…
Sou a bruxa, a pagã... Sou a santa...
Sou aquela que ama…
Sou a dona de toda ternura...
Sou a senhora de toda a sedução...
Sou a deusa da beleza…
Sou aquela que te abraça...
Sou aquela que te saca de juízo...
Sou aquela que te dá o céu...
Sou a prostituta...
Sou o profano e o sagrado...
Sou os milhares de Marias, sou os milhares de Madalenas...
Sou aquela que seca tuas lágrimas... Sou compreensão...
Sou a doçura e o equilíbrio do mundo…
Sou um porto seguro...
Sou a força da natureza...
Sou uma mulher...


19 de setembro de 2000


Quando era criança, desejava ser a Mulher Maravilha para salvar as
pessoas, depois desejei ser uma boa advogada para poder fazer justiça,
desejei poder seguir dançando, quis estudar teatro e sonhei com
Hollywood, desejei ser a noiva do Super-homem. Sonhei com uma vida
tranquila e normal, uma infância feliz e uma adolescência mágica, um
marido e filhos... Sonhei ser uma mãe maravilhosa... Sonhos normais, de
meninas normais.
Esses sonhos eram tão reais, tinham sentimentos, odores, cores,
sons e sensações tão fortes que parecia impossível que meus desejos não se
realizassem... Mas, na vida, ocorrem coisas que não estão em nosso poder,
controlar é impossível, são fatores externos e não sei como chamar: se de
casualidade ou destino. Temos muitos caminhos para escolher no longo
percurso da vida, mas sempre chega um ponto em que só existe uma
escolha, e o que é voltar atrás é impossível porque já não existe mais nada
ali, e seguir em frente, ir ao encontro do desconhecido, já não nos dá mais
medo, já não nos assusta, é quando já não temos nada que perder...
Era um dia chuvoso, cinza e frio, mas eu não sabia o que era mais
frio: se o tempo ou minha alma, que se perdia na incerteza de um futuro
escuro e desconhecido. Não pensava, apenas agia. Era tudo tão confuso e
tão claro ao mesmo tempo, um vazio, uma sensação de existir e não existir.
Um respirar profundo sem olhar para trás. Era assim como me sentia...
Naquela manhã despertei, comi o que havia sobrado do dia anterior,
deixei as chaves com Lia — a garota com quem eu dividia a quitinete. Tinha
que sair correndo, ir ao banco para pagar as taxas e levá-las à polícia para a
confecção do passaporte. O banco abria às 10h, e às 11h30 comeria com
meus filhos para despedir-me deles. O passaporte estaria pronto às 13h, e o
avião sairia às 14h30. O aeroporto ficava longe, na outra ponta da cidade.
A mala já estava pronta, pois não tinha muito que arrumar. Não
tinha muito que levar. O que eu mais tinha para levar eram minhas
lembranças, mas as lembranças não ocupam espaço. Fiz tudo o que devia e
fui em direção ao centro comercial para encontrar-me com meus filhos.
Yuri tinha sete anos, e Johann apenas cinco. Esta é a parte mais difícil, a
despedida, eu não sabia bem o que estava acontecendo e imagino que eles
menos ainda. Também é a parte mais dolorosa de evocar e de descrever,
jamais me esquecerei desse dia. Não podia dizer para eles quando voltaria:
não sabia nem para onde estava indo e muito menos quando iria voltar! Era
um tiro no escuro, um ato de desespero... Estava completamente sozinha
naquele momento da minha vida... mas não imaginava que essa solidão me
acompanharia ainda por muitos anos...
Comprei um balão para cada um, me lembro de que a cor do cordão
que atava o balão ao braço de Johann era lilás, era muito comprido; o cortei
e o amarrei em seu pequeno pulso, o pedaço do cordão que sobrou amarrei
na minha bolsa e até hoje tenho comigo. Passeamos um pouco pelo centro
comercial e nos sentamos para comer, comprei um lanche para cada um,
umas batatas fritas e um refrigerante...
— Tudo bem?
— Sim, mamãe.
— E tu, Johann, meu amor?
— Sim, mamãe.
— E o lanche está gostoso?
— Sim, muito. O Johann gosta das batatas fritas, mamãe!
— Sim, se nota que ele come com gosto.
— E tu, mamãe, não comes nada?
— Não, não tenho fome — Yuri me estendeu a mão com algumas
batatas e me ofereceu...
— Mamãe, pega, experimenta; as batatas estão boas.
— Não, obrigada, Yuri. Come você, meu amor, que necessita para
crescer forte, bonito e inteligente.
A verdade é que fome eu tinha, o que eu não tinha era dinheiro nem
para comprar um lanche que custava cinco reais, nem para os ônibus para
ir em casa pegar a mala e ir para o aeroporto. Eu não tinha escolha, eu
havia perdido tudo e o mais importante também: meus filhos já viviam com
o pai fazia uns cinco meses.
— Eu gostaria de dizer algo muito importante.
— Sim, mamãe, é sobre a viagem, não?
— Sim, é a respeito da viagem. Quero explicar porque tenho que ir
tão longe e quero deixar bem claro para vocês que não estou os
abandonando, que jamais o faria e jamais farei, porque os amo muito,
porque sois a razão da minha existência, da minha vida, sem vocês não sou
nada. Que nada tem sentido sem vocês, nada... As coisas aqui estão muito
difíceis para mim, não tenho uma casa para dar a vocês, não tenho nada que
oferecer. Somente o meu amor, mas isso não é suficiente para dois meninos
que estão crescendo. Vocês precisam comer, beber, estudar, vestir,
assistência médica… e eu aqui não consegui nada e não vejo que as coisas
melhorem. É por isso que vou para Espanha para trabalhar e tentar dar a
vocês tudo o que necessitam. Sei que é longe e que não sei quando vou
poder vir, mas lhes digo que assim que eu puder eu venho, e lhes prometo
que vou ligar todas as semanas... Eu os amo mais que tudo...
— Nós também te amamos, mamãe, muito...
— Muito quanto?
— Mais que todas as estrelas juntas do universo...
— Eu também... Mas quero pedir uma coisa.
— Sim, mamãe, fala...
— Por favor, cuidem um do outro, se amem e se respeitem sempre...
Porque eu estarei longe e não poderei cuidar de vocês como eu gostaria e
como uma mãe deve cuidar de seus filhos. Quero que escutem e respeitem
o seu pai, seus avós e seus tios, que não esqueçam tudo o que lhes ensinei;
amar e respeitar as pessoas. Que sempre ganhamos quando somos bons;
por mais que pareça que os maus ganhem, o bem sempre prevalece; não
tenham vergonha de demonstrar seus sentimentos, não tenham vergonha
de abraçar e de dizer “te amo”. Não tenham vergonha de dizer “não sei”, a
humildade é uma das coisas mais bonitas que existe. Sejam valentes de
admitir que cometeram um erro e de tentar outra vez, não tenham
vergonha de pedir perdão ou de pedir desculpas. Estudem, aprendam,
porque o que sabemos, o que está dentro das nossas cabeças, ninguém nos
pode tirar...
— Eu gosto de estudar — disse Yuri.
Olhei para eles com toda ternura, com uma expressão de orgulho e
contentamento, e continuei:
— Fiquem atentos porque nem todas as pessoas são como nós, nem
pensam como nós, também existe gente má no mundo; infelizmente é
assim. Rezem todas as noites antes de dormir, Deus sempre os escutará e
os protegerá, rezem para seus anjos da guarda e agradeçam, porque eles
são como as mães: estão sempre cuidando dos seus filhos. Eu quero que
vocês sejam nobres, justos e corretos... Jamais se esqueçam de agradecer
por cada dia, seja bom ou ruim, porque sempre se aprende algo. Escutem
sempre seus corações: o coração jamais se equivoca... Estarei longe, mas
quero que saibam que a distancia separa dois corpos, mas não separa duas
almas; por isso saibam que minha alma e meu coração sempre estarão aqui
com vocês.
A maioria das pessoas subestima a inteligência das crianças e creem
que elas não são capazes de compreender as coisas, mas se enganam. As
crianças são tão sensíveis e tão capazes como nós e muitas vezes quanto
nós. Sempre tive diálogos maduros com eles, dando-lhes exemplos
adaptados a seus níveis de compreensão, sempre amei e respeitei meus
filhos, sempre fui contra a educação impositiva, controladora e
intimidadora... Eu aprendi muito com eles e minha maior preocupação era
o dano que minha ausência poderia provocar em suas vidas, tinha medo de
falhar como mãe...
— Nós também estaremos contigo, mamãe, e sempre te amaremos...
— Eu sei...
—E não te preocupes, mamãe, eu cuidarei do Johann e ele de mim,
eu não vou me esquecer de tudo o que nos ensinou.
—Já é tarde, papai já chegou e temos que ir; os fins de semana que
passavam comigo passarão agora com tio Ricardo. Está bem assim?
—Sim, mamãe, boa ideia.
Yuri sempre foi mais falador, muito maduro para sua idade. Johann
era mais calado: tinha o caráter do meu avô, falava pouco, mas quando
falava... Era inteligente, direto e rígido. Recordo seus olhares, os quais me
diziam que seus corações sabiam o que estava passando e o duro que seria
para nós essa separação, eu tinha um nó na garganta. Depois de dez anos,
ao escrever esta história ainda sinto o mesmo nó afogando-me... Não queria
que meus filhos perdessem o contato e o calor humano da minha família,
isso para mim era muito importante, porque a família do meu ex-marido é
alemã e eles são frios, calculistas. Não queria que meus filhos fossem
educados por gente assim. Que parecem viver em outro planeta bem
distante da humildade, do calor humano, da solidariedade, do amor e da
simplicidade brasileira, que só compreende quem já esteve lá. Eram boas
pessoas, responsáveis, trabalhadoras e estudiosas, mas lhes faltava o
principal: calor humano e sensibilidade. Entramos no carro, pedi ao meu
ex-marido que me levasse até a casa da minha mãe porque já estava
atrasada.
— Obrigada, Hans, por me trazer e por cuidar dos meninos, assim
que eu puder eu ligo para eles.
— Está bem, boa viagem.
— Obrigada; e, vocês, não se esqueçam de escutar o papai, de
obedecer, de escovar os dentes e de rezar todas as noites antes de dormir.
Os amo.
Abracei os dois e lhes disse que os amava, como sempre fazia, mas
aquele momento era distinto. Enquanto lhes abraçava, parecia estar em
outra dimensão, era como se naquele momento não existisse nada mais,
somente nós, e os três... Nos convertemos em um. Fiquei olhando o carro
até que desapareceu, as lágrimas corriam por meu rosto
involuntariamente. Agora era tudo ou nada. Peguei o celular e liguei para
Val, eu havia deixado umas coisas com ela para lavar, pois onde estava
vivendo não havia lugar para lavar nem cozinhar: a verdade é que não
havia nada, dormia no chão sobre um colchão velho, que era a única
comodidade existente nas duas peças em que vivia, não havia nem luz. Lia,
a outra garota, havia levado as chaves, por se acaso chegasse a casa antes
que eu, mas não chegou, eu não podia entrar para mudar de roupa.
— Val, onde estás?
— Em casa, é que as tuas roupas não se secaram bem.
— Mas já não posso esperar, devo pegar as minhas coisas, passar
para pegar o passaporte e ir para o aeroporto.
— Não sei se chegarei a tempo.
— Vou ter que quebrar a janela para pegar a mala; deixarei o
telefone dentro, me faz o favor de entregar as chaves e o celular para minha
mãe.
— Sim, eu faço, tranquila, mas quem vai te levar ao aeroporto?
— Walmor, o marido da Silvia, não tenho a quem mais chamar e não
tenho dinheiro para o táxi.
— Sim, mas liga para ele já!
— Sim, vou ligar agora... Fica com Deus.
— Se cuida muito e não te esqueças de dar notícias.
Silvia era a dona da boate que eu atuava como stripper e onde vivi
um tempo porque não tinha para onde ir. Eram muito bons comigo; quando
não tive um lugar onde viver, me deixaram dormir e comer ali. Eu atuava
todas as noites exceto nos domingos, que fechava a boate, ali foi onde me
reencontrei com Val e conheci a Lia, e também a Sabrina. A Lia
chamávamos de “mãe natureza”, porque ela gostava muito de animais. Um
dia apareceu com um gato que estava doente e, outra vez, com um
hamster... Silvia era muito boa, deixava Lia ficar com os bichinhos ali;
aquilo parecia mais uma casa de caridade. Val havia sido minha aluna, dei
aulas de educação física em 1994. Penso que muitas das garotas acabam na
prostituição por não terem aonde ir: a maioria não tem família e, as que
possuem, é como se não tivessem. Não sei... É que muitas vezes penso que
existem umas comunidades naturais que não se pode chamar de família, é
uma lástima que seja assim. As que não sabem dançar como eu, não têm
outra alternativa. Eu deixei duas universidades por não ter dinheiro para
pagar. Isso é muito triste, e a maioria dessas mulheres que trabalham na
noite mal sabiam ler e escrever... É que tendo estudos já é difícil, imagina
sem eles o duro que é. Em um país com duzentos milhões de habitantes,
onde vinte e nove por cento da população é analfabeta, em que os políticos
recebem salários mais altos que os recebidos pelos parlamentares da União
Europeia e de dezesseis países pesquisados, incluindo os do G8 (EUA,
Japão, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Canadá e Rússia), isso, de
verdade, é uma vergonha. Um país que tem tantos recursos naturais vive
uma desigualdade social bestial, onde o salário base dos trabalhadores é
um dos mais baixos do mundo.
— Olá, Silvia, sou eu: Anastásia.
— Sim, me diga, como estás? Preparada?
— Sim, mas necessito de ajuda. Teu marido pode me fazer o favor de
me levar ao aeroporto? É que não tenho como ir e ainda devo parar na
polícia para pegar o passaporte.
— A que horas sai o teu voo?
— Às 14h30.
— Estás atrasada, já são 13h10 e o aeroporto fica longe.
— Sim, eu sei...
— Se prepara que ele sai agora para te buscar.
— Obrigada, muito obrigada.
— Não tem de quê. Se cuida muito e faz uma boa viagem. Se
precisares de algo, sabes que estaremos aqui, que Deus te acompanhe.
— Obrigada, muito obrigada de verdade, que Deus te bendiga.
Rompi a janela, entrei e troquei de roupa, peguei a mala: minha
amiga não havia chegado a tempo. Só Deus sabia quando ia voltar a ver
meus filhos, minha família e minhas amigas. Paramos na polícia, peguei o
passaporte, fomos para o aeroporto, cheguei em cima da hora. Me despedi
de Walmor e lhe agradeci o favor. Ali conheci a garota que ia viajar comigo,
se chamava Karina e estava com Sonia, que era a que captava as garotas e
logo mandava para Espanha.
— Olá, Sonia? Sou Anastásia.
— Sim, sou eu, pensava que não vinha mais, já estava preocupada.
— É que as coisas se complicaram um pouco, acabo de pegar o
passaporte.
— Bem, aqui estão os dólares para poder passar. Esta é Karina, ela
vai viajar contigo.
— Olá, como vai? Eu sou Anastásia.
— Encantada. Apenas um pouco nervosa pelo avião, nunca subi em
um antes, me dá um pouco de medo.
— Karina tem os números para chamar quando chegarem a
Barcelona. Não fiquem muito tempo no aeroporto; quando chegarem lá,
estará um homem esperando vocês, liguem para o número que eu dei: se o
primeiro não der certo, liguem para o outro, o de Sabrina, se a polícia
perguntar algo, digam que vão visitar uma amiga que acaba de ter um bebê.
Passem separadas na polícia, cada uma em um guichê diferente, para que
não desconfiem de nada.
— De acordo. E aonde vamos ir? — perguntou Karina.
— Não sei, pois eles têm muitos clubes.
— É porque eu quero ir onde está Sabrina. E tu, Anastásia?
— Eu também.
— Sonia, como está Sabrina?
— Está bem, ela está ganhando dinheiro, está contente. Agora
andem, porque o voo vai sair dentro de pouco tempo. Não se esqueçam:
vocês terão que fazer duas conexões: primeiro em São Paulo e depois em
Paris.
— Em Paris?
— Sim, porque é mais fácil passar por lá, a polícia francesa não
controla muito.
— Adeus, Sonia.
— Adeus, se cuidem muito e muita sorte.
— Obrigada.
Karina e eu embarcamos no avião, ocupamos nossos assentos; ela
estava muito nervosa e eu estava anestesiada... A polícia francesa tinha
fama de ser mais branda com os que passavam por lá unicamente para uma
conexão com destino a outros países. Esse era o truque, sendo que os
portugueses, ingleses e alemães eram mais severos. Ainda não havia tido
tempo para pensar em tudo aquilo que estava ocorrendo, não sabia nem o
nome da cidade para onde ia, nem sequer se era verdade que Sabrina
estava bem. Ela havia partido fazia mais ou menos uns quatro meses para
Espanha, eu a conhecia desde uns poucos meses antes, dois quiçá. Antes de
ir, falou comigo e me disse que se eu quisesse um lugar bom para trabalhar
me recomendaria para uma amiga sua e me deu o número de Sonia. E
nunca mais tive notícias dela. Um dia liguei para esta mulher, Sonia, para
saber notícias de Sabrina, e ela comentou que Sabrina estava bem e
ganhando muito dinheiro. Então me perguntou quem eu era e lhe respondi
que era amiga de Sabrina, me perguntou se era eu quem havia dito a
Sabrina que queria ir para Espanha e eu disse que sim. Me perguntou
quando eu gostaria de ir e eu lhe disse que o quanto antes possível, me
pediu meu nome completo, disse que ligaria em uma semana e assim eu fiz.
Mas quando liguei para averiguar para quando iria comprar a passagem
aérea, já estava comprada e era para dois dias depois. Eu pensava que
tardaria um pouco mais, um mês mais ou menos, eu não imaginava que
tudo ia sair assim, ao voo, tão depressa. Não tive tempo nem para pensar...
Me joguei de cabeça, não tinha nada a perder naquele momento...
— Olá, Sonia, sou Anastásia, como estás?
— Bem, já liguei e falei com eles. Já tenho a passagem aérea nas
mãos, é para dentro de dois dias...
— Mas como assim? Ainda não fiz o passaporte! Não tenho nem
dinheiro para fazer!
— Não tens como conseguir?
— Não sei, creio que não... Você poderia mudar a data da passagem
para segunda-feira?
— Penso que sim.
— Assim terei tempo para falar com minha família e para fazer o
passaporte.
— Me liga amanhã para confirmar a data nova.
— Está bem, amanhã eu te ligo, obrigada.
Eu não ganhava muito dançando; nos dias em que não havia gente
não se dançava e, consequentemente, não me pagavam. E a única coisa que
me atrevia a fazer, além de dançar, era tomar um drink com um cliente. Fiz
amizade com um senhor muito gentil, por casualidade. Ele trabalhava na
Secretaria da Educação do estado e era ex-marido da diretora de uma
escola na qual minha mãe havia dado aula. Minha mãe foi afastada do
trabalho por ser considerada inapta psicologicamente e a aposentaram, era
uma grande educadora e orientadora educacional. Preocupava-se muito
com seus alunos. Tive muitos irmãos que não eram de sangue: eram os
alunos que minha mãe trazia para casa porque seus pais eram
demasiadamente pobres e não podiam lhes cuidar; nós não éramos ricos,
mas com o pouco que podíamos, ajudávamos aos demais. Minha mãe
sempre disse que “ninguém é tão pobre que não tenha nada para dar”. Tive
que contar porque fui parar ali: ele conhecia a minha família, sabia que eu
tinha estudos. Combinamos que ele viria naquela semana para irmos jantar
juntos; Havia lhe comentado sobre a possibilidade da viagem e me disse
que me ajudaria com o passaporte, pois era caro. E quanto a minha família,
não pensava falar com eles porque sabia que tampouco tinham dinheiro
para ajudar-me… Já não tinha ninguém, só rezar e esperar que Sergio
voltasse. Ele me ligou e me avisou que naquela noite não poderia vir e que
chegaria de viajem justo no dia anterior a minha partida.
Aqueles dias foram muito estranhos, tentei passar a maior parte do
tempo com meus filhos, mas era difícil, sendo que onde eu vivia não havia
luz, fogão nem geladeira, era impossível estar ali com duas crianças
pequenas. Tive que pedir a uma tia que me deixasse ficar na sua casa com
eles durante o fim de semana. Andava a pé para economizar. Minha mãe
não queria me ver depois de saber que eu fazia striptease. Meus irmãos
estavam jogados cada um para um lado. Meu irmão foi viver com a sua
namorada. Minha irmã, na casa da sua avó, com a filha que tinha apenas
quatro anos. Não tinha para onde ir porque meu pai não era meu pai
biológico e, apesar de me criar desde que eu tinha dois anos, no fundo
nunca me aceitou como se fosse da família; é que os laços de sangue
contam muito mais que os anos de convivência e, em momentos como esse,
não importa se os ajudei e se são minha única família. Me sentia só, me
sentia uma estranha dentro da minha própria família.
— Anastásia.
— Sim, mamãe.
— Ontem te vi caminhando pela rua, no centro.
—Sim? Por onde?
— Quando você ia para a aula de informática.
— Sim, depois do trabalho.
— Caminhavas pela rua como se não tiveras ninguém no mundo.
— É assim que eu me sinto, aqui em casa e a aonde quer que eu vá.
Minha mãe sabia do que eu estava falando, mas ela nunca fez algo
para mudar essa situação ou para ajudar-me a sair daquela prisão em que
eu estava metida. Jamais me senti parte da família, sempre me senti só e
suportei muitas coisas sem contar com alguém em quem apoiar-me ou que
me pudera escutar. E é por isso que até hoje é difícil falar dos meus
sentimentos ou pedir ajuda, me acostumei a estar sozinha e a fazer tudo
por mim mesma. Tive poucas amigas e nunca falei para elas dos meus
problemas. Antes de entrar na prostituição, se podia contar nos dedos de
uma mão os homens com os quais fui pra cama. A família havia se partido
com a separação dos meus pais, estávamos todos destroçados
psicologicamente e também economicamente, porque meu pai havia
deixado a minha mãe com dívidas terríveis. Foi duro para nós, mais duro
porque foi diferente de qualquer outra separação normal, pela forma
desastrosa em que se separou da minha mãe: ele a trocou pela ex-
namorada do meu irmão, do seu próprio filho. Não sei o que pode haver
passado na cabeça e no coração do meu irmão, mas imagino seu sofrimento
e seu desgosto, porque minha mãe, minha irmã e eu estávamos
destroçadas; ele seguramente estaria mil vezes pior. Eram vinte e cinco
anos de matrimônio... Tudo se partiu... a família, os corações, os bens, tudo...
A casa em que crescemos já não nos pertencia, mas nossas lembranças sim;
isto ninguém nos poderia tirar. Reabrimos a floricultura da minha mãe para
tentarmos sair dos problemas econômicos, mas as coisas não foram bem:
como as flores são produtos perecíveis, de curta vida, é fácil ter perdas. A
única coisa que conseguimos foi adquirir mais dívidas. Trabalhei de
empregada doméstica, de cozinheira em um restaurante, de instrutora de
musculação em uma academia e dava aulas de dança. Fiz de tudo e não
logrei encontrar vaga como professora, todas as portas se fecharam e a
única saída que me restava era dançar como stripper... Isso foi a minha
passagem para a Espanha... Assim vim parar dentro daquele avião.
— Karina, como estás?
— Mal, Anastásia, meu estômago está dando voltas.
— Fiques tranquila, vai passar...
— Vou pedir um vinho, assim me acalmo um pouco...
— Acalmar… não sei não, mas embriagar sim.
— Com uma ou duas destas garrafinhas de vinho, não acredito...
— Eu sim acredito, pois não sei se você sabe, consumir duas
garrafinhas aqui no avião equivalem a quatro, por isso deves estar atenta...
— É verdade?
— Sim, é.
— Isso eu não sabia.
— Pois agora já sabe; creio que estamos quase chegando a São
Paulo.
— Sim, é verdade, faz uns quarenta e cinco minutos que estamos
voando.
— Este foi rápido, mas penso que o outro nos parecerá uma
eternidade...
Aterrissamos em São Paulo para fazer a conexão, estávamos
nervosas por ter que passar pela polícia; Karina me atormentava com a
preocupação de perder as malas. Fizemos o checking, passamos pela Polícia
Federal do Brasil sem maiores problemas, graças a Deus embarcamos e nos
sentamos. Procurávamos não falar muito no avião, porque havia muitos
compatriotas; quando falávamos dos temas relacionados com os clubes,
falávamos em um tom muito baixo...
— Karina, alguma vez você falou com Sabrina?
— Sim, duas vezes. Ela me disse que ela e Natalia, aquela loira que
foi com ela, estavam bem.
— Ah, sim, eu me lembro de ter visto Natalia.
— Ela me disse que estão em um clube perto da praia e que é muito
bonito. Anastásia, você vai para dançar, não?
— Sim, eu gosto de dançar, em Blumenau já não tem nada o que
fazer...
— Te entendo perfeitamente... desespero...
— Sim, desespero. Deixar nossos filhos é a última coisa que se possa
fazer...
— Eu tenho um menino e uma menina, mas meu filho já não é meu
filho.
— Como?
— Minha irmã o cria desde muito pequeno, ele a chama de “mãe”...
— Sinto muito, Karina... de verdade...
— Não te preocupes, já estou acostumada...
Eu não sabia o que acontecia com Karina, mas senti na sua voz que o
pequeno não lhe importava muito, e isso era muito triste. Eu não poderia
ter um filho comigo e o outro com quem quer que fosse, me doeria muito,
não dormiria em paz, meus filhos são o mais importante para mim e o mais
bonito da minha vida, dois filhos maravilhosos de caráter doce, educados,
amáveis e bons de coração. Apesar de suas idades, já tinham noção de
justiça dentro dos seus mundos, dentro dos seus níveis de compreensão,
que eram muito grandes. Temos o mau costume de subestimar a
capacidade das crianças quando se trata da faculdade de raciocínio,
analisar e tirar conclusões. Sempre me preocupei em dar-lhes uma boa
educação, mas não com intenção de escutar das pessoas: ai, olha, que
lindos! São tão educados! Não: os eduquei por amor a eles, para que
aprendessem a conviver em sociedade, para que não sofressem as
consequências de uma má educação que déramos seu pai e eu. Ao menos,
em termos de educação, Hans e eu tínhamos a mesma visão, graças a Deus!
Caso contrário, poderíamos deixar os meninos loucos e não queríamos isso.
Primeiro eles e depois nossas diferenças. Sempre respeitei crianças,
sempre apreciei escutá-las... são incríveis, um universo muito particular,
especial, pedras preciosas a lapidar com todo amor, respeito e carinho...
educar é sinônimo de amar...
— Anastásia, você gosta de crianças?
— Sim, muito, trabalhei muitos anos com eles e aprendi muito sobre
eles e com eles.
— Você é professora?
— Sim, de Educação Especial, comecei aos dezesseis anos, fiz um
concurso e passei. Meus pais tiveram que assinar uma autorização para que
eu pudesse trabalhar.
— Por quê?
— Era com crianças com problemas psicológicos, crianças de
periferia, delinquentes infantis e juvenis.
— Mas isso é muito duro...
— Sim, é duro e difícil. Acabei fazendo terapias, tomando
antidepressivos e ansiolíticos.
— Nossa, eu não trabalharia jamais com isso. Para acabar assim?
— Tem que ter dom, e amor... Se não, não vale de nada nem para ti
nem para as crianças.
— Estou preocupada...
— Quê?
— Estou preocupada com as minhas malas, se as perdem?
— Não creio. Se bem que em uma das viagens do meu pai perderam
uma e justo aquela que tinha os presentes.
— Vês? Não te falei...?
— Fiques tranquila, chegaremos bem e as malas estarão ali
esperando-nos.
Jantamos, falamos sobre algumas coisas e dormimos. Eu não tinha
expectativa de nada, era como se estivera suspensa no tempo; uma
sensação que revivo neste momento, mas, assim, é difícil descrever; para
quem não tinha nada a perder era normal se sentir assim... Era a única
porta naquele momento, a única esperança de uma vida melhor para poder
conseguir progredir e estar junto aos meus filhos outra vez e ter algo que
lhes oferecer. No passado, minha família e eu tivemos problemas
econômicos, mas nunca imaginei chegar ao ponto de não ter absolutamente
nada. A única coisa que tinha era roupas velhas e a minha fé, que não me
deixava entregar o jogo: nem meus filhos eu tinha... isso era muito triste,
um verdadeiro pesadelo, não ter nem para comer. Hoje vejo que o que eu
fiz foi um ato desesperado, não sabia nem o nome da cidade aonde ia, não
conhecia ninguém para dizer “tenho uma amiga ali me esperando”, não
sabia nada, era como entrar em um quarto escuro sem conhecer.
Finalmente, chegamos a Paris, anunciaram que faltavam apenas alguns
minutos para aterrissar...
— Anastásia, você sentiu a turbulência?
— Não, não senti nada...
— Por Deus, você dormiu como uma pedra...
— Estava muito cansada, fazia dias que quase não dormia. E que vou
fazer? Se o avião cai, cai e ponto.
— Tens razão, mas eu quase morro de medo... quase me dá um
infarto...
— Já passou. Agora temos apenas uma conexão; por isso procure
estar tranquila... ha, ha, ha.
— Você ri, eu te juro que só volto para o Brasil daqui a cinco anos.
— Estás brincando? E teus filhos?
— Não, não estou... Eles não vão morrer por não me ver durante
cinco anos.
— Por favor, Karina, eu sim que morro por estar longe dos meus.
Até agora não acredito que os deixei lá. Mas te juro que na primeira
oportunidade que eu tenha vou ver eles.
Tomamos o café da manhã, aterrissamos em Paris com atraso de
uma hora, mais ou menos. Perdemos o avião de conexão com Barcelona. O
aeroporto Charles de Gaulle é enorme; não sabia nem uma palavra em
francês e Karina tampouco, mas, quando chegamos, havia um funcionário
que falava português e levava um pin com a bandeira do Brasil. Fiquei
impressionada com a boa organização da Air France. Voltaram a programar
nosso voo para às oito da noite. Passamos praticamente todo o dia no
aeroporto, andando e olhando as lojas. Tudo era muito bonito. Estávamos
cansadas da viagem. Finalmente, pegamos o voo para Barcelona. Quanto
mais passava o tempo e conforme ia se aproximando a hora de chegada, eu
ficava mais nervosa. Por fim, o avião aterrissou em Barcelona e tocamos
terra. Fomos pegar as malas.
— Ah! Olha, Anastásia, minha mala! Obrigado, meu Deus.
— Sim, mas eu não vejo a minha. Tu que estavas tão preocupada!
Tua mala está aí e parece que a minha se perdeu.
— O que você vai fazer agora?
— Bom, falar com o pessoal responsável.
Falei com eles com um pouco de dificuldade, mas eles me
compreenderam. Dei-lhes o número de telefone de Sabrina para que me
localizassem. Fiz a descrição da mala e a queixa oficial. Fiquei só com a
roupa que levava no corpo e sem dinheiro; bom… dinheiro sim tinha: um
real no bolso, que era o mesmo que nada. Sentia-me triste porque ali estava
a única foto que havia trazido dos meus filhos e da minha sobrinha, era a
única lembrança: uma foto que eu havia feito em sépia e que era preciosa,
dos três juntos, sem camisa, com uma câmera fotográfica réflex da marca
Zenit; vendi uma geladeira para comprar e fazer meu primeiro curso de
fotografia. Tinha uma lente muito boa. Quando tínhamos a floricultura na
cidade de Blumenau, fazíamos a decoração das igrejas para os casamentos
e eu fotografava a cerimônia e a festa; não era conhecida como fotógrafa,
mas sacava um dinheirinho razoável e fazia um bom trabalho. Sem
embargo, era difícil competir com os profissionais que tinham fama, com os
que estudaram e tinham melhor equipamento. Tive que parar quando
estragou a minha câmara e não tive dinheiro para substituir: estava na
praia fotografando Johann sentado na beira do mar, veio uma onda e jogou
ele, fui em sua ajuda e a câmara molhou; levei para um técnico, mas não
havia nada que fazer.
Karina e eu nos dirigimos para a saída.
— Karina, não vejo ninguém aqui que tenha cara de estar esperando
a gente.
— Eu tampouco.
— A polícia começa a nos observar, é melhor agir com
naturalidade...
— Mas como? Com que naturalidade? Não sabemos nem para onde
ir...!
— E como é o homem que te disse Sabrina? Ela descreveu como é
ele?
— Sim, magro, velho com cabelo grisalho e alto...
— Boa descrição, Karina. Aqui até aquele policial tem a mesma
descrição que te deu ela... Vamos ligar.
— Sim, olha, tem um telefone público ali.
— Mas como funciona isso? Me parece que com moedas ou fichas,
eu que sei.
— Não sei como funciona isso, Anastásia, pergunta para alguém...
— Espera, pergunto para aquele senhor que está na outra cabine, já
volto.
Era uma confusão. Tivemos que trocar uns dólares por pesetas, para
logo trocar por moedas e poder ligar. Pois não usavam fichas e sim a
mesma moeda... Ao final, conseguimos.
— Este é o número do tal Juan que tinha que vir buscar a gente.
Tenta você, Anastásia, porque eu sou muito torpe.
— Está bem, eu tento... Ninguém responde.
— Tenta uma vez mais.
— O.k. Nada. Me dá o outro número, o de Sabrina...
— Sim, toma, é este...
— Olá.
— Olá, sou eu, Sabrina: Anastásia, a garota que veio com Karina.
Você se lembra de mim?
— Sim, me lembro... Mas eu não sabia que você vinha com ela!
— Nós viemos juntas. Estamos no aeroporto e não tem ninguém
aqui nos esperando... No número desse tal Juan, não responde ninguém…
— Ai! Espera um pouco que vou falar com Wlad, o encarregado...
— Espera! Sabrina, como se chama a cidade que você está?
— Benicassim, é uma praia muito bonita.
— Mas está perto de onde?
— Penso que de Portugal.
— Portugal? Bom, deixa para lá, vai falar com ele, a polícia já está
nos olhando...
— Está bem, não desligue o telefone.
— Está bem, esperamos...
Aguardamos um pouco e a ligação caiu. Liguei outra vez:
— Sabrina, falou com ele?
— Sim, sim, é que esqueceram que vocês chegavam hoje. Wlad está
tentando resolver, disse para me ligarem dentro de dez minutos.
— De acordo, te ligo, até logo. Karina, temos que ligar dentro de dez
minutos. Estou preocupada, os guardas nos observam. Este homem que não
veio nos pegar... Sozinhas aqui, sem conhecer ninguém e sem dinheiro...
— Temos os dólares...
— Sim, mas temos que devolver...
— Eu não vou devolver nada.
— Estás louca! Com esta gente não se pode jogar...
— Eu não tenho medo deles.
— Eu sim e, ademais, posso imaginar quanto nos vão cobrar pela
passagem... mais do que o normal.
— Sim, você tem razão.
— Bom, vamos ligar, e ver o que passa.
— Olá, Sabrina, o que ele disse?
— Disse que vão ter que dormir em Barcelona, na casa de uma
garota russa. Peguem um táxi, você tem algo para anotar o endereço?
— Sim, espera... Karina, me dá uma caneta e um papel...
— Aqui, toma.
— Vai, me diz, Sabrina.
— Rua da Primavera nº 37, 3º, 1.
— 3º, 1?
— Significa: terceiro andar, porta um.
— E como se chama a garota?
— Olga. Ela estará esperando embaixo. Agora, peguem um táxi e
saiam logo do aeroporto.
— O.k., vamos agora mesmo. Mas diz ao encarregado que queremos
ficar aí contigo. Que não nos mande a outro lugar.
— Falarei com ele, se cuidem...
— Beijos, até amanhã.
— Até amanhã, estou feliz porque vocês chegaram.
— Nós também. Amanhã conversaremos melhor, beijos.
Pegamos o táxi e fomos ao encontro de Olga. Barcelona parecia
cinematográfica, com suas luzes amarelas e cálidas, os edifícios antigos.
Não tardamos muito em chegar, Olga estava nos esperando em frente do
edifício. Era alta, magra, loira de cabelo curto e olhos azuis, tinha um
sorriso amável. Pagamos o táxi e descemos.
— Olá, sou Anastásia, encantada. E esta é Karina.
— Eu sou Olga, encantada.
Nos fez um gesto para que entrássemos, pegamos o elevador; o
apartamento era agradável, não muito grande, mas tinha dois quartos, sala
de jantar, cozinha e banheiro.
— Olga, onde deixamos as malas?
Ela nos levou até o quarto...
— Você não fala espanhol? — perguntei.
— Não.
— Nem nós. Inglês?
— Não.
— Apenas russo?
— Sim.
— Karina de Deus, ela não fala nada e nós tampouco!
— Bom, nos entenderemos através de mímica.
— Sim, é o que nos resta...
Imaginem. Duas brasileiras que não falavam espanhol com uma
russa que não falava mais que seu idioma. Depois, fiquei sabendo que fazia
apenas dois meses que Olga havia chegado à Espanha, mas ela não se
adaptou ao trabalho. Tiveram que tirá-la do clube, se converteu em
namorada de Juan. Vivia naquele apartamento, era muito meiga, educada e
gentil, se via que ela não servia para ser uma prostituta, era frágil... Sofreria
muito nesse trabalho. Preparou-nos tudo, a cama, a comida e, inclusive,
quando nos despertamos, ela nos esperava com o café da manhã e um
sorriso maravilhoso. Nossa comunicação era boa, não é necessário falar o
mesmo idioma para ser gentil, amável e ajudar o próximo, ela tentou me
dizer que o meu nome era russo e eu compreendi; ela não entendia como
uma brasileira poderia ter um nome russo, estava admirada e feliz.
— Anastásia...
— Quê?
— Saímos um pouco?
— Sim, tentamos ligar para Sabrina para saber quando eles vêm nos
buscar.
— Mas você presta atenção, porque eu me perco até dentro de um
quarto.
— Que exagerada você é…
— É verdade...
— Fiques tranquila, tampouco vamos longe, vamos aqui perto,
necessito ir a uma farmácia para comprar produtos de higiene pessoal. Ao
menos isso, já que estou sem roupas, sem nada...
— Sim, é verdade... Como vai fazer?
— Não sei, quando chegar lá, vou falar com alguém para que me
ajude...
— Anastásia, aqui tudo é velho!
— Não é velho, é antigo.
— Não vejo diferença alguma... Olha, ali tem um telefone!
— Bom, vou ligar e ver o que nos dizem...
— Olá, Sabrina, como vai?
— Cansada... E vocês?
— Bem, apesar de tudo. Eu fiquei sem malas, agora vamos comprar
algumas coisas que necessitamos.
— Mas não gastem muito, está bem?
— Sim, eu sei... A que horas disseram que vinham nos buscar?
— Me disseram que às 14h.
— Estaremos prontas.
— Bom, pela tarde nos vemos. Estou ansiosa para ver vocês. Tenho
muitas coisas que contar.
—Nós também. Um beijo, se cuida.
— Outro, e vocês também.
Encontramos uma farmácia e comprei xampu e uma escova de
dente. Fomos a uma perfumaria e Karina ficou louca com a variedade de
perfumes que ali havia. Logo entramos em uma confeitaria, porque Karina
queria comer algo e ficou boquiaberta ao ver que somente vendiam coisas
doces, como croissants, bombas… No Brasil, nas confeitarias, encontramos
produtos doces e salgados. Ela comeu algo e comprou um perfume bastante
caro, mesmo lhe advertindo que era algo desnecessário e que estávamos
usando os dólares que logo teríamos que repor, mas ela me respondeu que
não ia repor o dinheiro, nem muito menos devolver o que sobraria. Notei
que era um pouco irresponsável e mais tarde acabei comprovando. Muitas
vezes bastam poucas horas com uma pessoa para poder conhecer como ela
é.
Voltamos ao apartamento, já que não tínhamos nada para fazer,
apenas esperar. Olga nos preparou uma comida russa, não lembro como se
chamava o prato, mas sim que estava muito gostosa. Eram duas da tarde e
ninguém havia vindo nos buscar.
Eram seis da tarde quando chamaram ao celular de Olga para dizer
que vinham à noite, depois das nove; eu estava impaciente e preocupada.
Não tinha roupa, não sabia onde ia parar... Já não sabia nem se realmente ia
ser stripper. O fantasma da dúvida começava a rondar pelas esquinas da
minha mente. Sem dinheiro e sem saber o montante da dívida que havia
contraído, era tarde demais para arrepender-me. Por fim, chegou o senhor
Juan.
— Olá, que tal?
— Bem!
— Bom, eu sou Juan.
— Eu Anastásia, e esta é Karina.
— Bom, peguem as coisas e nos vamos.
— Aonde vamos?
— Para Benicassim, está em Castellón de la Plana.
— Fica muito longe daqui?
— Não, umas três horas de carro.
Nos despedimos de Olga, jamais voltamos a vê-la e a saber notícias
dela. Pegamos as coisas, entramos no carro e partimos em direção a
Benicassim.
— E vocês, não falam espanhol?
— Não, mas eu quero aprender. Posso entender quando você fala
devagar. Você me entende?
— Sim, já estou acostumado ao sotaque brasileiro, não te preocupes.
— Obrigado.
— Muito bem! E você, Karina?
— Eu não. Não sou obrigada a aprender um idioma que eu não
gosto; só vim aqui para ganhar meu dinheiro.
— Mas é muito importante saber para comunicar-se com os clientes,
para que eles te entendam melhor.
— Pois eles que se esforcem para compreenderem a mim; porque eu
somente estou de passagem por aqui.
— Karina, você quis vir aqui e tem a obrigação de aprender.
Ninguém te tirou de casa e te trouxe aqui— disse.
— Não, Anastásia, não estou de acordo contigo.
— Mas você não pode impor a tua cultura. Isso é uma besteira, é
insensato! O que você tem que fazer é aproveitar e aprender o que puder
com eles.
— Karina, eu estou de acordo com Anastásia, aparte de que vocês
são brasileiras e o português se assemelha muito ao espanhol, eu as
compreendo perfeitamente e vocês estão compreendendo a mim.
— Juan, crês que demoraremos muito em aprender?
— Não, Anastásia, creio que não. Com um pouco de vontade,
aprenderão rápido.
A viagem demorou umas três horas mais ou menos, mas para mim
pareceu uma eternidade. Juan era uma espécie de encarregado geral que
levava as garotas de um clube ao outro e resolvia os problemas.
Finalmente, chegamos e nos deixou diretamente no clube onde estava
Sabrina. Se chamava Lambada, de fato ali havia apenas oito brasileiras e
três colombianas. O clube tinha uma entrada discreta, estava justo debaixo
de um edifício residencial, e havia um porteiro de terno na entrada.
— Olá, estas são as novas garotas — disse Juan ao porteiro.
Entramos no clube. Era bonito, decorado com bom gosto.
As garotas estavam muito bem arrumadas, com vestidos longos e
elegantes, não era o típico bordel, o que todos nós temos em mente, com
mulheres vulgares e de mau gosto. Procurei Sabrina com o olhar e não a
encontrei. Ao nosso encontro vieram um homem e uma mulher.
— Olá, eu sou Lilian, a encarregada, e este é Wlad, o encarregado.
Vocês, como se chamam?
— Karina.
— Anastásia, encantada.
— Bom, venham comigo e lhes explicarei, mais ou menos, como
funcionam as coisas.
Acompanhamos a Lilian e ela nos convidou para sentar em uns puffs
que estavam no cenário e a beber algo. Ela era brasileira, havia se casado
com o proprietário do clube, que se chamava Paco, tinha dois filhos com
ele: um menino e uma menina. Não era uma mulher muito alta; era bonita,
magra, de cabelo negro e liso, tinha uns olhos muito expressivos, e era
muito amável e simpática. Havia também um garçom, que se chamava
Javier; que também era agradável e parecia respeitar as garotas.
— Lilian, eu gostaria de saber quanto temos que pagar pela
passagem.
— Fique tranquila, Anastásia, não sei te dizer quanto, pois foi Wlad
quem comprou as passagens aéreas. Tenho que perguntar para ele.
— Não é por nada... É que a primeira coisa que eu quero fazer é
pagar a passagem e começar a mandar dinheiro para casa.
— Esperem um momento que vou perguntar, já volto.
— Karina, que te parece?
— Não sei, Anastásia. Sabrina me disse que aqui se ganha muito
dinheiro.
— Sim, mas vejo pouca gente.
— É verdade.
— Garotas, já falei com o Wlad, ele me disse que tem que falar
primeiro com o proprietário.
— Lilian, onde está Sabrina?
— Não os inquieteis, está ocupada com um cliente, logo estará aqui.
Estão cansadas da viagem?
— Sim, muito.
— Vocês têm filhos?
— Sim, eu tenho dois meninos.
— E eu uma menina.
— Vão sentir muita falta deles.
— Sim, é verdade.
— Bom, Lilian, como pagaremos a passagem?
— Estás muito ansiosa, Anastásia! Não os preocupeis, podeis ir
pagando pouco a pouco. Como aqui se cobra ao final da noite, as garotas
normalmente vão deixando o dinheiro. Nós vamos marcando, elas pegam o
que necessitam para os gastos diários e deixam uma parte para ir pagando
a passagem.
— Ah! Bem, melhor assim. E demora muito terminar de pagar?
— Não, se paga rápido. Têm garotas que pagam em duas semanas.
— Que bom. E quanto pagam pelas atuações?
— São vinte mil pesetas, aqui quase não se dança.
— Então, vou demorar muito em pagar a passagem.
— Mas, Anastásia, tu podes entrar com os clientes e assim pagarás
mais rápido.
— É que eu nunca fiz isso! Nunca trabalhei como prostituta.
— Mas se queres sair disso, tens que aprender.
Aquilo me ecoou nos ouvidos como uma bomba que me destruiu por
dentro. Naquele momento, minha alma se fundiu e minha mente silenciou,
mas já estava ali. Não via claro o meu futuro. Não podia pensar em nada,
somente sentia um vazio que me consumia, esse vazio me acompanhou
durante muitos anos.
— Karina, e tu já trabalhastes?
— Eu sim, faz tempo que venho trabalhando. Não tenho problemas.
— Lhes digo: o passe de trinta minutos vale dez mil pesetas, seis mil
são para a casa e quatro mil para vocês. Quarenta e cinco minutos são
quatorze mil, oito mil para a garota. Uma hora é vinte mil, quatorze mil
para a garota. E a suíte é vinte e seis mil, dezoito mil para a garota. Os
drinks, o normal, cinco mil; o champanhe pequeno vale doze mil e a garrafa
de champanhe vale vinte e cinco mil; de todas as copas, é cinquenta por
cento para a casa, têm drinks sem álcool para as garotas que não bebem.
— Eu quero com álcool, se não, não suportarei trabalhar...
— Bom, Karina, para você que gosta de beber, te digo que a casa dá
dois drinks de álcool para cada garota e se ela quer mais tem que tirar dos
clientes. O suco, o refrigerante e a água são livres, podem beber à vontade.
— É muita coisa para aprender...
— Não te preocupes, Anastásia, aprenderás rápido, logo te
habituarás.
— Espero que sim — mas jamais me acostumei…
— Bom, aí vem Sabrina. Deixo vocês, assim estão mais à vontade
para falar. Ou querem ir ao apartamento para dormir?
— Não, Lilian, quero ficar aqui e observar. Iremos quando as outras
se forem.
— Como queiram, Anastásia.
— Que te parece, Karina?
— Por mim, ficamos.
— Pois então ficamos.
— Olá, Sabrina, como estás bonita!
— Que nada! Engordei um pouco.
— Não! Anastásia tem razão, estás bonita de verdade.
— Obrigado, Karina. E como foi a viagem?
— Estressante e, para ajudar, fiquei sem as minhas malas: não tenho
nada de roupa para usar.
— Não te angusties, nós te daremos o que necessites até que possas
comprar algo e encontrem tua mala.
— Pois muito obrigado, de verdade.
— Sabrina, você vai ter que nos ensinar, porque eu não sei nada e
Karina tampouco.
— Não os preocupeis, porque é fácil aprender o espanhol, é só
perguntar se eles querem subir ou se te pagam um drink.
— Subir?
— Sim, aqui se diz subir ou “follar”. Nós aqui não tocamos o dinheiro
até que se acabe a noite. Eles pagam para o encarregado, que te dá um
papel com o tempo marcado e esse papel entregamos para a Mami que
controla o tempo.
— Mami?
— Sim, é a garota que se ocupa de limpar os quartos e controlar o
tempo. Quando este se acaba, ela bate na porta e se o cliente quer ficar mais
tempo, tem que pagar mais.
— E como são os homens aqui?
— Ai, Karina, tem um pouco de tudo. Gente educada e mal-educada;
eles são frios, são europeus, e em higiene pessoal deixam um pouco a
desejar...
— Que estás me dizendo?
— Sim, Anastásia, é verdade... Já verás o que eu te digo; têm uns que
não têm o hábito ou não sabem lavar o próprio pênis.
— Por favor!
— E a boca e o sovaco… nem te conto...
— É verdade que se trabalha bem?
— Se ganha igual ao que se ganha no Brasil, mas aqui tem muito
trabalho e, ao final, ganhas mais pela quantidade de passes, porque o
câmbio das pesetas é um por um.
— Como?
— Dez mil pesetas são cem reais. Aqui a comida é caríssima. Carne,
frutas, verduras… tudo é caro! O aluguel, a luz, a água... Se deve economizar
muito.
— Em quanto tempo você pagou a passagem, Sabrina?
— Em duas semanas, mas o trabalho estava muito bem, está um
pouco fraco agora, mas vai melhorar.
— E quanto pagaste?
— Quinhentas mil pesetas.
— Sim?
— Sim, é verdade...
— Então se trabalha bem aqui.
— Claro, e eles têm outros clubes onde também se trabalha muito
bem.
— Sim, mas queremos trabalhar aqui contigo.
— Eu vou dizer para o Wlad. Não os preocupeis.
— E onde vamos dormir?
— Vocês vão dormir conosco no apartamento, vou falar com Wlad.
— Obrigado, assim é melhor.
— No apartamento vivemos em três, mas Marcia vai embora dentro
de poucos dias; Karina dormirá comigo, e tu, Anastásia, com Luana; ela é
uma boa garota, ela é de Curitiba, você vai gostar dela.
— O.k., não tem problema. Quero ver quem de vocês pode me
emprestar algo para dormir.
— Não te preocupes. E amanhã falaremos com Wlad sobre a mala
para que te ajude a recuperar.
— Obrigado.
— Agora vou, porque chegou um cliente meu, depois nos falamos.
— Está bem, boa sorte.
— Obrigado.
Sabrina se afastou de nós, foi em direção ao cliente e o
cumprimentou; ele não demorou muito em oferecer uma bebida. Havia
umas garotas que nos olhavam com cara feia, nos mediam dos pés à cabeça.
Fiquei observando como trabalhavam as garotas: um homem chegava, logo
uma delas o cercava e falava qualquer coisa. Se ele não queria estar com
ela, a garota saía e logo vinha outra, e assim até que ao homem lhe
agradasse uma delas. O ambiente era agradável, tranquilo, parecia um bar
normal, mas com o passar dos dias fui assimilando melhor o que me
rodeava e vi coisas absurdas e indignantes. A noite finalmente chegou ao
fim. Naquele dia, fecharam às quatro, pois não havia muito movimento.
Segundo Sabrina, fechavam às cinco ou às seis da manhã, e inclusive às oito.
O encarregado levava todas para casa no final da noite e no outro dia as
pegava para transladar de novo ao clube.
— Anastásia e Karina, vocês hoje vão dormir aqui, e amanhã
veremos onde irão morar.
— Não, Wlad. Elas podem dormir conosco perfeitamente.
— Está bem, Sabrina. Se elas querem dormir com vocês, tudo bem.
— Tem outra coisa, Wlad...
— Fala, Sabrina...
— Elas querem trabalhar aqui, não querem ir a outro clube...
— Mas isso tenho que falar primeiro com Paco.
— Sim, explica para Paco, ele compreenderá.
— Não te preocupes. Agora vou levar vocês para casa.
— Luana, vem aqui.
— Estas são Karina e Anastásia, minhas amigas.
— Encantada! Elas vão para o apartamento conosco?
— Sim, Anastásia vai dormir contigo, Luana. Está bem?
— Não tem nenhum problema, sejam bem-vindas.
— Obrigada!
Luana era toda sorriso, alegre, espontânea, muito simpática,
irradiava uma bonita energia, era simples e amável. Wlad nos meteu às
cinco em seu carro baixinho e vermelho, o típico carro de cafetão.
O apartamento estava no primeiro andar, tinha três quartos, uma
sala grande, um banheiro e uma pequena cozinha. Sabrina me contou que
elas iam mudar para outro mais perto do clube e nos propôs irmos viver as
quatro juntas: ela, Karina, Luana e eu. Sabrina me deixou uma camiseta sua
para dormir, nos arrumamos e fomos deitar. Foi difícil dormir, pois estava
ali, mas era como se não estivesse, era difícil de acreditar.
Quando despertei eram dez da manhã, fui para a sala. Havia umas
gavetas onde Sabrina me disse que eu encontraria uns mapas, peguei-os e
olhei; um era um planisfério e o outro era da Espanha. Localizei Benicassim
e, logo me dei conta de que não ficava ao lado de Portugal como me disse
Sabrina, se não que do lado oposto! Era banhada pelo mediterrâneo. Não
foi difícil notar que minha amiga não sabia nem onde estava, fazia cinco
meses que ela vivia em Benicassim e sua vida já havia se convertido em um
círculo vicioso de trabalho, sexo, drogas e álcool: esse era o seu mundo e o
de tantas outras garotas. Com o tempo, fui me dando conta de muitas coisas
tristes...
Me vesti, bebi um copo de leite e saí para fazer um reconhecimento
de campo. Estavam todas dormindo ainda, eu estava nervosa por estar ali,
sem ter nada para fazer, sem saber o que fazer. A praia era preciosa, fiquei
encantada com a cor da água, era de um tom azul, mais puxado para o
turquesa. Encontrei uma oficina de turismo e peguei uns folhetos
informativos da praia, me sentei na areia e comecei a ler sua história. Ali
dizia que, antes da reconquista, o Castelo de Montornés constituiu um dos
mais importantes feudos árabes nesses territórios. Se carece de notícias
sobre sua destruição e as causas que a motivaram. Não obstante, sabe-se
que o castelo foi habitado até finais do século XV. Como se deduz por seu
nome, pertenceria à tribo dos Beni Qásim (“filhos de Qásim”), que
ocupavam o Castelo de Montornés antes da conquista cristã, primeiro por
El Cid Campeador e depois pelo rei Jaime I de Aragón. Quando terminei de
ler me dei conta de que estar na Espanha era como tocar a história com as
mãos... Eu conhecia El Cid e Jaime I de Aragón através dos livros; mas no
Brasil isso parecia muito longe e intocável, mas ali naquele momento nunca
estive tão perto... Eles haviam estado ali! Haviam passado por ali! Isso era o
mais importante! Me apaixonei pela Espanha naquele exato momento.
Quando voltei para casa, as garotas já estavam despertas, não sabia falar o
castelhano, mas podia ler e compreender muito bem.
— Onde estavas, Anastásia?
— Tranquila, Sabrina, despertei-me cedo e fui caminhar e dar uma
olhada na praia, que é muito bonita.
— Por Deus! Mas que ânimo tens!
— Sim, encontrei uma oficina de turismo e ali me deram um mapa
de Benicassim, que, a propósito, não está ao lado de Portugal.
— O que você está dizendo? Que passei cinco meses de minha vida
acreditando que estava ao lado de Portugal e não estou?
— Sim.
— Que vergonha!
— Estamos na chamada Costa de Azahar, que está banhada pelo Mar
Mediterrâneo.
— E tu? Não faz nem vinte e quatro horas que chegou e já sabe tudo
isso!
— É que eu tenho que saber onde estou; necessito me localizar no
mapa. Se me acontece algo, ao menos sei dizer onde estou.
— Tens toda a razão... Já tomou café?
— Tomei um copo de leite.
— Mas isso não é tomar café da manhã, vem aqui e come uns
biscoitos.
— Obrigado. Quando eu trabalhar, comprarei algo para comer.
— Nós, normalmente, fazemos juntas as compras daquilo que todas
comemos e se tem alguma coisa em especial que você goste, isso se compra
separado.
— Me parece muito bem. Podemos seguir fazendo o mesmo.
— E cada dia, uma de nós cozinha e limpa a casa. A mim me parece
justo dividir as tarefas e os gastos entre todas.
— Sabrina, e como é o novo apartamento?
— Me parece que tem dois quartos, eu fico com Karina em um e você
no outro com Luana. Está bem assim?
— Bem, ela me parece boa pessoa.
— Sim, ela é.
Chegou a hora de se arrumar para ir trabalhar, Sabrina me deu uma
blusa dela e Karina uma calça, já que era mais “cheinha”.
— Karina, não abra o chuveiro. Tens que esquentar água na cozinha
para tomar banho.
— Que estás me dizendo, Luana?
— Sim, é que acabou o gás e Wlad ainda não nos trouxe outro.
— Vê, Anastásia? Não acredito que saí do Brasil para tomar banho
de caneca... Te juro que não acredito...
— Estamos no primeiro mundo, não te esqueças.
— Sim, mas... aqui não conhecem o chuveiro elétrico?
— Creio que não... ha, ha, ha...
Karina estava indignada por ter que tomar banho em um balde, nós
ríamos da situação, pois saímos do Brasil para melhorar de vida e, ao
chegar aqui, nos encontramos numas situações similares às que
passávamos em nosso país. Com uma diferença, no entanto, no Brasil era
por necessidade e aqui era por descuido ou por ilógica. Pouco a pouco fui
vendo que nós não valíamos nada para ninguém, éramos somente uma
mercadoria. Jantamos, terminamos de nos arrumar, às dez horas veio Wlad
para nos pegar. Chegamos no clube, havia poucas pessoas e já estavam
acompanhadas de outras garotas. Me sentia um pouco deslocada, em
verdade bem deslocada, não sabia o que fazer. Fiquei observando os
homens, a aparência de alguns não era nada boa: feios, gordos, um pouco
embriagados e com aspecto de sujos; o panorama era desesperador. Mas já
estava ali e não podia voltar atrás, tinha que respirar fundo, fechar os olhos
e ir em frente.
Duas semanas mais tarde, mudamos de apartamento. O contrato foi
feito no meu nome porque eu ainda estava legal no país e porque caí bem à
proprietária. Ela havia sido dona de um clube e sabia o trabalho que
fazíamos, era muito difícil alugar um apartamento na Espanha e mais ainda
trabalhando como prostituta. Quando saíamos na rua, as pessoas nos
olhavam com olhares estranhos: mulher estrangeira igual à puta, era assim.
Saíamos para fazer qualquer coisa, comprar, tomar um café... Nos lançavam
olhares de condenação e repúdio! Não estava acostumada a ser tratada
assim e aquilo me fazia muito mal, chegavam até a dar-nos as costas e
negar-nos a fala. Me sentia como uma leprosa. As garotas e eu éramos
muito discretas no vestir, sempre muito simples, jeans, uma camiseta e
nada de pintura; sempre nos dirigíamos às pessoas muito educadamente,
com um sorriso na cara… O comportamento das pessoas me chocava...
— Anastásia, vem...
— Sim, Lilian, diga...
— Que tal mudarmos a cor de seu cabelo?
— Por quê? Não está bem assim? Eu gosto desse tom avermelhado
que tenho.
— Mas penso que ficarás muito bem loira, uma mudança de look te
cairá bem.
— E, por que não?
— Conheço uma cabeleireira muito boa, depois te dou o cartão de
visitas.
— Obrigada.
— Agora vem, que vou te apresentar a um homem. Ele paga um
drink e paga meia hora.
— Quem é? É aquele?
— Sim... Sei que não é nada animador, mas estás aqui para ganhar
dinheiro, não te esqueças disso...
— Sim, eu sei...
Respirei e fui em direção ao homem, ele não parecia muito
simpático. E como nunca me equivoco em minhas apreciações a simples
vista, de simpático não tinha nada...
— Olá, como estás?
— Por que queres saber como estou?
— Me desculpe, mas não falo bem espanhol.
— E que caralho vens fazer aqui se não falas espanhol?
— Só tentava ser educada e cordial...
— Pois agora não quero nada, só quero beber um drink...
— Desculpa, não queria molestar...
Saí decepcionada, triste e sem compreender. Por que aquele homem
me tratou tão mal? A única coisa que fiz foi cumprimentá-lo! Nunca havia
visto uma pessoa tão mal-educada e jamais nenhuma pessoa havia me
tratado daquela maneira. Mas o que eu não sabia era que ainda teria que
suportar outras situações como essa, inclusive piores. Não queria acreditar
que iria ser sempre assim. Não imaginava que naquele momento estava
entrando em um campo de batalha de onde sairia com a alma forjada a
ferro e fogo, e que tudo aquilo, com o passar do tempo, ia destruir-me, que
me transformaria em uma pessoa triste e distante, tinha medo de ficar igual
às outras garotas.
— Que aconteceu, Anastásia?
— Esse homem, com quem você me mandou falar, me tratou muito
mal...
— É bom você ir acostumando, os europeus têm outra educação.
— Para mim isso não é educação, e sim falta dela...
— Tranquila, nem todos são assim, encontrarás gente boa também...
— Isso espero...
Fiquei ali sentada, preocupada, porque tinha que pagar um milhão de
pesetas da passagem aérea, equivalente hoje a seis mil euros. Um absurdo.
Eles pagavam pelas passagens não mais de duzentas mil pesetas. Prometi
mandar dinheiro para casa para pagar as contas e os gastos dos meninos.
Sempre fui uma pessoa de palavra e jamais prometi algo que não pudera
cumprir.
— Anastásia, vem aqui que tem um moço que quer entrar contigo.
— Quem é, Sabrina?
— É aquele, está um pouco bêbado, mas te pagará uma bebida e
subirá quarenta e cinco minutos...
— Está bem...
— Eu subirei com o amigo dele. Vem, vamos.
— Olá, esta é minha amiga Anastásia, ela não fala espanhol, mas é
muito agradável e simpática.
— Olá, Anastásia, sou Javier...
— Olá...
— Tua amiga me disse que acabas de chegar...
— Sim, é verdade, por favor, te peço que me fales devagar, se não
fica difícil de te entender...
— Está bem, não te preocupes. Pede um drink e subimos.
— Obrigada.
Pedi o drink. Ele estava muito bêbado, quase não podia caminhar,
tinha as pupilas dilatadas. Ademais, estava drogado, mas como eu não
estava acostumada a isso, não me dei conta de que estavam de cocaína até
os olhos, inclusive Sabrina. Não demorei muito para conhecer e reconhecer
os drogados e para dar conta de que aquilo para muitos era normal e que a
maioria das garotas que trabalhava nos clubes era alcoólica ou estava
enganchada na cocaína e usava todo tipo de droga. Com o passar do tempo,
se convertiam em umas mortas-vivas. Dormiam, se drogavam e
trabalhavam quando suas paranoias as deixavam. Em muitos clubes, nos
que se pagava o dinheiro diretamente para a garota, havia algumas que
subiam a troco de drogas: cocaína, haxixe, ou maconha. Era deprimente,
decadente… e muito mais, muito triste.
Era meu primeiro cliente, jamais me havia prostituído antes... Era
feio, baixo e gordo. Sem contar o mau hálito que tinha e o mau cheiro nos
sovacos, mas o desespero era tanto que tudo eu via, sentia e suportava.
Entramos no quarto e ele começou a me tocar com suas mãos sujas, tentava
me abraçar e beijar. Me afastei e comecei a me desnudar, me virei, pois me
dava vergonha. Ao tirar o vestido, o homem apagou seu cigarro nas minhas
costas. Dei a volta, e fiquei olhando pra ele sem saber o que fazer nem o que
pensar, simplesmente não acreditava no que acabava de acontecer. As
lágrimas corriam pelo meu rosto lentamente, senti minha alma cair por
terra. Saí chorando do quarto e corri para onde estavam Cristina, Mami, Lê
e contei o que havia acontecido. Ela chamou Wlad e lhe contou o que
ocorria. Perguntaram para o homem por que ele havia feito aquilo, e ele
simplesmente disse que lhe havia dado vontade, que ele havia pagado e que
podia fazer o que quisera. Sua frieza era assombrosa. Wlad lhe disse de
tudo, poucas e boas:
—Serás filho da puta? Cretino, por que não tratas a tua mãe assim?
A ti te gostaria, não? Que te queimem os putos ovos com cigarros, filho da
grande puta!
Wlad lhe deu uns murros e o jogou na rua...
— Minha menina, está tudo bem, calma.
— Como podem as pessoas fazer essas coisas?
— Tranquila, que isto passará... Não chores, Anastásia.
Cristina tentou me consolar, mas foi inútil. Não sei o que era pior, se
a dor que sentia ou a inconformidade com a situação. Não podia aceitar que
as pessoas fossem tão cruéis, estive seis meses no Brasil dentro de um
clube e jamais havia visto algo desse estilo. Esta foi minha primeira grande
lição: não dar as costas jamais a ninguém dentro de um clube. Fiquei toda a
noite sentada, sem me mover, observando como se comportavam as
pessoas. Deu-me tristeza e arrependimento de ter vindo para Espanha, a
única coisa que desejava naquele momento era abraçar os meus filhos e
sair dali.
No final da noite, fecharam o clube e fomos para casa. Entrei debaixo do
chuveiro, me doía as costas, mas a dor que sentia na alma era ainda maior.
Embora eu estivesse me lavando, parecia que o odor daquele homem não
saía de minha pele; chorava e me esfregava com toda a força que podia em
um intento desesperado de tirar tudo o que sentia. Minhas lágrimas se
misturavam com a água. Sentia asco de mim mesma, raiva de tudo, da vida,
de Deus… Me perguntava por que Ele havia deixado que aquele homem me
fizesse aquilo. Por que tinha que estar ali e não em casa com meus filhos?
Que havia feito eu para merecer tudo isso? Estava totalmente sozinha, não
conhecia ninguém, não falava o idioma deles, estava em terras estranhas,
sem ter um lugar aonde ir, aonde me esconder, sem eleição, sem opção, sem
dinheiro, sem esperança… Até a minha fé já estava se perdendo.
Os dias ali eram sempre iguais. Wlad nos pegava todos os dias e ao
final da noite nos levava para casa. Nos controlava todo o tempo, com quem
falávamos, o que falávamos… Tudo se controlava, mas tudo. Nossa rotina
era trabalhar e dormir. Éramos como vegetais, já estava ficando louca. Nos
domingos ligava para os meus filhos, era o momento mais esperado da
semana. Ligar para eles fazia o domingo diferente; ainda que para nós fosse
um dia de trabalho como outro qualquer. Num domingo nos deixaram ir
jantar em um restaurante brasileiro que havia no centro, nos
encontrávamos bem... pedimos umas caipirinhas, Wlad nos ia buscar
depois do jantar, mas teve um imprevisto: Lilian não pode ir para o
trabalho, então ele nos disse para pegar um táxi, mas já não havia táxis, e
nós ficamos no restaurante, pois na parte de trás havia umas mesas de
bilhar e tiro al alvo que ali chamam de Diana. Começamos a jogar e ele ligou
outra vez... Lhe dissemos que não havia táxis e ele nos disse para esperar
ali; mas àquela altura já estávamos todas muito alegres com a caipirinha e a
música brasileira que nos transportava de volta ao nosso país, até Luana
que era a mais séria estava já dando saltos.
— Já desligando os telefones! Assim Wlad não nos molestará, esta
noite é nossa!
— Mas que te passa Luana? Te vejo muito alegre. Wlad nos cortará o
pescoço, aparte da multa que não sabemos de quanto será — Luana saiu
correndo e foi falar com o garçom.
— Escuta, se você vir um homem assim de cabelo negro, não muito
alto, com uma camisa vermelha de seda e com uma corrente grossa de ouro
parecendo um cigano, perguntando por nós, diga que já fomos embora.
O garçom ria muito, disse para nós ficarmos tranquilas que ele não
ia dizer que estávamos ali. Bom... nos divertimos muito! Fomos
caminhando para casa, e no outro dia, como se era de esperar, cada uma
levou uma multa de cinquenta mil pesetas… Wlad nos disse que nos
comportamos como crianças, seguramente ele jamais se esquecerá de nós,
assim como nós não nos esqueceremos dele.

— Luana, vê os três que estão no balcão?
— Sim, Anastásia. Vamos antes que as demais se aproximem.
— Valeu, vamos, mas fala você.
— Não te preocupes.
— Olá, eu sou Luana e esta é Anastásia, faz duas semanas que ela
chegou do Brasil, ela não fala muito bem espanhol...
— Não te preocupes, Luana. Eu sou Pepe, este é Rafa e este é Carlos.
— Encantada.
— De onde vocês são?
— Nós somos de Tarragona, mas trabalhamos aqui, em Castellón...
— Anastásia e eu podemos beber algo?
— Sim, sim, pode pedir o que quiserem.
— Obrigada.
— Luana, não tem uma amiga para mim?
— Sim, tenho. Espera que eu vou chamar. Sabrina, vem que vou te
apresentar a Pepe. Pepe, esta é Sabrina.
— Olá, como estás?
— Bem. E você?
— Muito bem, obrigado. Sabrina, pede um drink.
— Obrigada, Pepe. Bom, subimos todos?
— Sim, pagamos e agora subimos.
Luana ficou com Carlos, que era o mais jovem, eu com Rafa e Sabrina
com Pepe. Menos mal, porque Rafa era gentil e me tratou bem. Lhes
contamos o que aconteceu com as minhas malas e eles se ofereceram para
nos levar a Valência para pegá-las. Eu havia pedido a Wlad para ligar para
companhia aérea, mas ninguém me ajudou. Então, no outro dia liguei para
o número que me haviam dado em Barcelona e me disseram que mandasse
por fax uma lista com as coisas que havia dentro e a descrição da mala
junto com um número de contato. Peguei um dicionário, fiz a lista e enviei o
fax, fiz tudo sozinha. E, mesmo sabendo que eu havia chegado fazia duas
semanas e das dificuldades que eu tinha com o idioma, ninguém me ajudou.
Lhes dei o número do celular de Sabrina. Depois de duas semanas, me
chamaram, me disseram que já haviam encontrado e que deveria ir pegar
as malas em Valência. Pepe e seus amigos vinham de uma a duas vezes na
semana para nos ver, o que para nós era muito bom, pois não havia tanto
trabalho como nos diziam. Ao contrário: não havia trabalho.
— Olá, Pepe.
— Olá, Anastásia! Como estás?
— Bem, obrigada. E vocês?
— Muito bem.
— Luana já vem... Já encontraram a minha mala.
— Que bom. E onde tens que ir buscar a mala?
— Tal e como vocês disseram, vão mandar para o aeroporto mais
próximo... Em Valência.
— Nós te levamos a Valência para pegar a mala, não te preocupes.
— E quando podemos ir?
— Quando tu quiseres.
— Podemos ir na terça pela manhã, comemos algo no caminho e
voltamos.
— Me parece muito bom.
— E a ti, Luana?
— Por mim, tudo bem, mas temos que ter cuidado para que Wlad
não fique sabendo de nada.
— Por quê? — perguntou Rafa.
— Porque nos controla, ele não gosta que tenhamos contato com os
clientes fora daqui.
— Mas, Luana, isso não está bem.
— Sim, sabemos, mas não se pode fazer nada para mudar.
— Anastásia, me deixa teu número do celular.
— Eu não tenho, Rafa, mas Luana sim.
— Eu dou o número para Carlos no quarto.
— Está bem, agora subimos.
Fomos a Valência às escondidas. Entramos no carro com sumo
cuidado. Nos agachamos para assegurar de que ninguém nos ia ver. Rafa
me acompanhou até o balcão de informações para pegar a mala. A primeira
coisa que fiz ao tê-la em meu poder foi ver se a foto dos meus filhos estava
dentro dela.
— Olha, Luana, esses são meus filhos e esta é minha sobrinha.
— Que lindos! Olhem...
— Sim, são realmente lindos.
— Obrigada, Rafa, e muito obrigada por me trazer aqui.
— Não tens que agradecer nada, fizemos porque queríamos ajudar.
— Agora estou mais tranquila...
A fotografia era muito importante para mim, a guardava como se
guardasse um tesouro. Fazia um mês que não via os meus filhos, e poder
ver eles mesmo em uma foto foi como tocar o céu. O resto de objetos que
havia na mala não me importava, pois existem coisas que o dinheiro não
pode comprar, e aquela foto era uma delas.
Voltamos para Castellón, nos deixaram em casa com muito cuidado
para que ninguém nos visse. Arrumei minhas coisas, pois já estava feio
trabalhar sempre com o mesmo vestido branco que havia comprado, que
custou duas mil e quinhentas pesetas, foi o mais barato que encontrei, mas
era muito bonito, estilo anos 50, tinha as costas descobertas, justo, sem
mangas; era muito clássico, sensual e elegante. Já me dava vergonha usar a
roupa das minhas amigas, não gostava de gastar dinheiro e não podia
gastar, pois quase não havia trabalho e o pouco que ganhava dividia entre
os gastos.
Tinha que me livrar da dívida o quanto antes. Pegava somente o
justo para comprar comida, pagar o aluguel e cigarros, todo o demais era
para pagar a passagem e enviar algo ao Brasil, para pagar contas e para os
meus filhos.
Um dia mais, nos banhamos, jantamos, nos arrumamos: pintamos a
cara para a guerra... Todos os dias, era o mesmo: suportar gente mal-
educada, que cheirava mal; homens que não sabiam tocar nem respeitar
uma mulher, homens que te viam como uma mercadoria e não como um ser
humano. Te acercavas a cumprimentar e muitos te olhavam a cara e te
davam as costas, na minha cultura isso é uma grande falta de educação, é
uma ofensa imperdoável. Isso, quando não te faziam dar a volta para ver
teu corpo e te tocavam a bunda e os seios para ver se estavam em “bom
estado”. Entrei em depressão. Comecei a beber para suportar o trabalho e o
dia a dia. No aniversário do meu filho mais velho, Yuri, 21 de outubro, bebi
duas garrafas de uísque. Liguei para Yuri para lhe felicitar e dizer quanto o
amava, o quanto tinha saudades e também o quanto me doía não poder
estar com ele nesse dia tão especial. Usei todas minhas forças para não
chorar ao telefone, porque não queria que ele soubesse que sua mãe sofria
e aumentar a dor que minha ausência lhe provocava. Mas quando desliguei
o telefone, meu mundo veio abaixo... Chorava e bebia, era o primeiro
aniversário de Yuri que eu passava longe, sem vê-lo, sem poder abraçá-lo,
sem poder dar-lhe um beijo. Naquele dia, o encarregado sentiu pena de
mim e me deixou ficar em casa: não estava em condições de trabalhar.
Karina chorava abraçada a mim. Uma tentava consolar a outra, mas nada
nem ninguém no mundo seriam capazes de aliviar nossa dor naquele
momento. Chorei desconsoladamente até que já não podia mais... Entre
minhas lágrimas, adormeci.
Cada dia que passava, o vazio me consumia mais e mais, não me
acostumava com aquela nova vida, se é que a isso se podia chamar “vida”.
Todos os dias, quando chegava do trabalho, entrava debaixo do chuveiro,
esfregava meu corpo desesperadamente para tirar de cima o odor dos
homens com os quais havia me deitado, desejava apagar as lembranças de
cada noite, as lágrimas já eram parte do meu cotidiano, como o uísque.
Escondíamos a garrafa no armário, mas Wlad tinha cópias das chaves, nos
controlava e nos tirava as garrafas. Encontramos uma solução:
escondíamos no armário de Luana, porque ela não bebia, mas era nossa
cúmplice e amiga. Perdi a conta de quantas vezes me deitava com os
clientes e tentava dissimular o asco que sentia e esconder as lágrimas
enquanto clamava a Deus para que me mandasse um anjo que me tirasse
dali; mas Deus parecia não me escutar. E por que ia escutar uma prostituta?
Uma pecadora? Mas antes de ser uma prostituta era sua filha, pedia-lhe
perdão por tudo, me ajoelhava ante Ele. Pedia-Lhe desesperadamente que
me ajudasse, que me escutasse. Porque eu não compreendia o que estava
fazendo ali. Por que minha vida tomou caminhos que me levaram para
aquele lugar? Por que as coisas não eram diferentes? Que havia feito de mal
para merecer esta vida, suportando humilhações, violando minha alma e
meu corpo cada vez que tinha que ir para a cama com um homem? “Nossos
corpos são sagrados, são o templo das nossas almas.”
Cheguei ao clube e vi um homem alto, grisalho, no balcão. Fui mudar
de roupa e me sentei no mesmo lugar de sempre. Aquele homem me olhava
e eu a ele. Era elegante, tinha certo carisma, era diferente dos demais
homens que normalmente frequentavam o clube.
— Luana, e aquele homem? Ninguém vai falar com ele?
— Esse é Luís, sempre vem aqui, mas não sobe e não paga drinks,
mesmo assim, se queres tentar...
— Sim, creio que vou tentar; além disso, aqui não tem ninguém mais
além dele.
— Boa sorte.
— Obrigada...
Me aproximei dele com timidez, como fazia normalmente, sempre
fui muito meiga, nobre e tímida; me lembro de que minha mãe me disse
uma vez muito seriamente: “Anastásia, sois demasiada meiga, nobre,
humilde, vás sofrer muito se não mudas; você é uma pessoa maravilhosa,
mas se continuar assim sofrerás muito, te vão fazer muito dano, acabarás
sem cabeça”. Ela tinha toda razão...
— Olá, boa noite.
— Boa noite.
— Perdão, mas eu não falo bem o castelhano.
— Fique tranquila, não te preocupes, de onde és?
— Do Brasil...
— Que maravilha! Eu tive uma amiga brasileira, a queria muito, mas
já não vive na Espanha.
— E você? É de Castellón?
— Não, sou de Madrid, mas vivo aqui faz muitos anos.
— Desculpa que te pergunte, mas o que você faz?
— Sou arquiteto.
— Que belo! Eu gosto de arquitetura.
— Não me digas!
— Sim, é verdade.
— Quer beber algo?
— Sim, obrigada.
— Pede o que você quiser. Que te parece se sentarmos ali?
— Bem, muito bem.
As garotas ficaram admiradas porque ele me ofereceu um drink, elas
não acreditavam no que estavam vendo. Sentamos em um lugar mais
reservado e mais cômodo.
— Então você gosta de arquitetura...
— Sim, é verdade, não sei como, mas quero ver as construções
romanas, eu gosto do estilo gótico e do surrealismo de Gaudí...
— Você gosta de ler?
— Sim.
— Perdão, mas não me apresentei, sou Luís.
— Anastásia. Encantada.
— Mas é um nome russo!
— Sim, eu sei, a minha mãe gosta desse nome.
— Você é muito bonita.
— Obrigada, você é muito amável e gentil.
— Não tem que me dizer obrigado, é a verdade. Vocês, brasileiros,
têm a mania de dizer sempre obrigado por tudo.
— É a nossa educação, é uma forma de demonstrar nossa gratidão
pelas coisas. Para nós é sinônimo de educação.
— Quanto tempo faz que estás na Espanha?
— Seis semanas.
— E já fala assim?
— Sim.
— Você estudou castelhano?
— Não. Aprendo falando com as pessoas e lendo, faço associação de
palavras.
— Você é muito inteligente!
— Obrigada.
— E que tipo de livros você gosta de ler?
— Bom, muitos, mas geralmente livros que possam me aportar
conhecimentos. Os romances não me interessam muito, prefiro os livros de
psicologia, parapsicologia, filosofia, sociologia, os que falam de culturas e
religiões, sobre metafísica...
— Mas o que você está fazendo aqui?
— Como?
— Você tem muita cultura e um vocabulário rico. Você não é a típica
garota de clube. Você é diferente, educada, tem classe e muita elegância...
Não enquadras aqui. Tem nome e cara de princesa.
— Mas é o que me toca fazer. Me desculpe, um momento, vou ao
toalete.
— Te esperarei aqui.
Me dirigi ao toalete e, quando saí, Wlad me abordou e me perguntou
de que falávamos, eu lhe disse que falávamos de coisas normais e de livros;
ele me olhou de forma estranha, com ar de desconfiança e se foi. Que
haveria ocorrido? O que sabia Wlad, que estava tão preocupado porque eu
falava com Luís? Duas semanas depois, descobri a razão de tanta
preocupação.
— Bom, aqui estou.
— Bem-vinda...
— Tem algum livro em particular que você goste?
— Sim, Eram os deuses e astronautas, de Erich von Däniken.
— Por Deus! Você leu este livro?
— Sim, A Religião de Platão, A analogia do bem e do mal de
Immanuel Kant...
— Me fascinas... Você é bonita, inteligente, doce e sensual... Tudo o
que um homem deseja. Não compreendo os animais que se dizem homens e
não sabem apreciar e venerar uma mulher...
— Obrigada, me deixas sem chão... Você sim é diferente. Aqui vem o
pior. É que não estou acostumada a escutar coisas assim, não neste lugar.
— Pede outro drink, te ofereço porque não me pedes nada. Não
suporto as garotas que te dizem “olá” e te pedem um drink em seguida,
mesmo sabendo para que estás aqui.
— Obrigada; sim, é um sistema um pouco cruel...
— Anastásia é teu nome de verdade?
— Sim, eu não mudo meu nome para trabalhar como as outras,
porque mudar o meu nome não mudará quem sou, e muito menos minha
cara. Eu gosto de estar conectada com a realidade, aqui é muito fácil se
perder no caminho...
— Tens toda a razão.
— E, além do mais, aqui não sou ninguém, e não conheço ninguém...
— Como que não és ninguém?
— Aqui, nem aos clientes nem ao pessoal do clube importa uma só
das garotas, estamos sozinhas...
— Já pagou tua passagem?
— Como sabes que pago minha passagem?
— Conheço este clube faz muitos anos e sei como funcionam as
coisas aqui.
— Pois não, ainda não terminei de pagar, quase não tem trabalho.
Jamais havia feito este trabalho antes...
— Deve ser muito duro...
— Sim, é...
— Amanhã venho para ver-te, sempre que tu me permitas, claro.
— Sim, por suposto que sim.
— Agora devo ir, tenho uma reunião amanhã cedo. Virei mais ou
menos às dez da noite para ver-te, e não te preocupes, se estiveres ocupada,
esperarei.
— Está bem, até amanhã, e obrigada pelos drinks.
Ele pegou minha mão e, discretamente, me deu vinte mil pesetas, e
me disse: “Isto é para ti, não digas nada a ninguém”, me deu um beijo no
rosto e se foi.
Ele era diferente, tinha um olhar intrigante, forte, vivaz, capaz de
penetrar a alma e te tocar. Desde que havia chegado à Espanha era a
primeira vez que me sentia uma pessoa de verdade, me sentia viva. Ele não
tentou me tocar, era um homem sedutor, tinha um carisma que não se
explicava; não era bonito, possuía uma beleza como de um ator de filmes
do velho oeste, era alto, de olhos verdes e cabelos grisalhos. Algo nele me
atraía. Poder falar de coisas normais, de livros, música, problemas sociais,
política... Me senti viva durante o tempo que estive falando com ele. Fiquei
encantada com aquele homem, ele me fazia sentir-me em paz. Seria meu
anjo?
— Anastásia, vem aqui...
— Sim, fala, Luana...
— Como é que ele te ofereceu os drinks? Não posso acreditar!
— Eu não pedi nada...
— Ele sempre vem aqui e fica horas e horas bebendo, sempre põe as
mesmas canções... Jamais vi oferecer drinks para ninguém. Do que haveis
falado?
— De livros e coisas normais... Ele é muito educado, muito
inteligente e culto.
— Joane o conhece muito bem, ela está aqui há mais de seis anos.
Em seguida, Joane se acercou para saber do que havíamos falado e
para me dizer que ele era um homem importante e com muito dinheiro,
que havia tirado uma brasileira do clube e lhe deu de tudo. Que ele era uma
boa pessoa e muito nobre, por suposto não era verdade que ele havia tirado
uma garota assim exatamente como disse Joane.
Quando cheguei em casa e me deitei, perguntei a mim mesma se
aquele homem era o anjo que pedi a Deus que me enviasse.
Na noite seguinte, estava ansiosa por ver ele outra vez, estive todo o
tempo controlando a porta com a esperança e a ilusão de vê-lo entrar.
Lilian me mandou ir falar com um homem, ao menos seu aspecto
parecia ser normal. Era baixo, um pouco gordinho, mas tinha cara de boa
pessoa e o olhar como perdido no tempo...
— Olá! Sou Anastásia... Qual é o teu nome?
— Juanjo... Apenas vim tomar um drink, nada mais...
— Nada mais, apenas vim te cumprimentar e conversar um pouco...
— Sobre o quê? Sobre que coisas vai falar com uma garota de
programa? De pênis?
— Sim, tem razão. Mas se queres, podemos falar de outras coisas...
— Por exemplo?
— Podemos começar pela Analogia do bem e do mal, de Immanuel
Kant, ou a teoria da relatividade de Albert Einstein ou, melhor, as leis de
Mendel, que preferes, a primeira ou a segunda? A hibridação é muito
interessante, penso que foi esta porta que me fez apaixonar-me pela
genética e conhecer esse mundo maravilhoso...
— Mas de onde você vem?
— Isso não importa. Mas a primeira coisa que temos que aprender
na vida é a não subestimar os demais, independentemente da posição em
que esteja em um momento concreto. Boa noite, cavalheiro.
— Escuta, perdão, quero te oferecer um drink...
— Obrigada.
Conversei com ele durante muito tempo, me pagou muitos drinks; o
rapaz mudou seu comportamento apartado e austero por outro gentil e
educado. Subimos por uma hora, ainda que não fizesse nada, apenas
pretendia estar comigo e ajudar. Esse senhor se tornou meu cliente e vinha
frequentemente, não se conformava com me ver naquele clube.
Quando desci, estava Luís me esperando na jukebox, colocava
sempre as mesmas músicas, uma era “Llamando a la tierra”, de M Clan e
outra “Ojos así”, de Shakira. Depois, quando conheci melhor Luís e sua vida,
me dei conta de que a primeira canção o descrevia perfeitamente e ele se
sentia assim: um homem solitário que ia pelo mundo levando dentro de si
suas dores, seus sonhos e suas paixões.
— Olá, como estás?
— Bem, muito bem. E minha princesa?
— Agora melhor...
— Vem, nos sentaremos ali e tomaremos algo.
— Está bem...
— Tal e como te prometi, voltei para ver-te.
— Pois muito obrigada por cumprir.
— Fiquei pensando no que você me disse ontem...
— Sobre o quê?
— De que não sois ninguém...
— Sim, é verdade...
— Por que pensas assim?
— Pela maneira como nos tratam, nos olham… é horrível.
— Mas não deves ver desta forma, senão, não suportarás muito
tempo.
— Eu sei, mas é impossível ver e não pensar, não sentir. Muitos
homens, quando vás cumprimentá-los, te olham de cima a baixo como se
você fosse uma mercadoria, te tocam a bunda porque querem constatar se
está dura, te apertam os seios como se fosse uma vaca... E eles não se olham
no espelho, e muitos estão tão acabados que estão no ponto de mandar
para o ferro velho. A maioria dos que vem aqui é para subir seu ego, muitos
nos tratam assim pela necessidade de autoafirmação para seu ego
machista.
— Caralho! Tens toda a razão do mundo. Se tem que ver como
somos nós homens de imbecis... Uns animais, egoístas e mesquinhos,
desprovidos de sensibilidade.
— É que não veem as garotas de clube como seres humanos, somos
como umas bonecas, uns brinquedos... Sei para que estamos aqui, mas um
mínimo de respeito e de consideração deve existir.
— Estou de acordo contigo, Anastásia. Uma mulher para mim é um
presente de Deus, é a coisa mais bonita e perfeita que existe na face da
Terra, uma mulher deve ser amada, cuidada e mimada. A maioria dos
homens não admite quão grande é uma mulher... e o quanto necessitam
delas.
— Temos o dom divino do primeiro milagre, o milagre da vida que é
dar à luz: temos o poder de decidir se vão nascer ou não...
— Infelizmente, vivemos em uma sociedade machista.
— Sim, nós próprias, as mulheres, temos grande parte da culpa.
— Como assim?
— Bom, a educação. Eu tenho dois filhos pequenos, mas desde já
lhes ensino a respeitar uma mulher sem importar o que ela faça para viver.
Se deve respeitar uma mulher simplesmente pelo simples feito de que
geramos em nosso ventre um ser humano, alimentamos uma vida com
nosso próprio sangue... Penso que isso é uma boa razão para respeitar as
mulheres, um parto não é brincadeira, nele ainda morrem muitas mulheres.
— De verdade, Anastásia, você é fascinante... Insisto em que você
não enquadra aqui.
— Já sei, mas é o que toca...
— Quer jantar comigo? Eu não tenho o costume de convidar as
garotas, mas é que você é muito intrigante, muito diferente, educada,
inteligente, sensível…, e tens muito caráter. Isso me fascina...
— Eu gostaria, mas não creio que possa: aqui nos controlam muito...
— Mas você é uma pessoa livre, não?
— Não exatamente... nos vigiam a cada passo...
— Não tens um dia de folga?
— Sim, tenho e jamais peguei, pois o trabalho está muito fraco e
quero terminar de pagar a passagem.
— Quanto tempo estás trabalhando aqui sem parar?
— Desde que cheguei.
— Deverias descansar, senão, não aguentarás. Quantas horas você
faz por dia?
— Depende, de doze a quatorze...
— Mas isso é sobre-humano!
— Sim. É que a vontade de pagar a passagem, as contas que deixei
no Brasil e enviar dinheiro para meus filhos são muito maiores que
qualquer outra coisa. Tenho um compromisso com meus filhos.
— As admiro muito, vocês deixam suas casas sem saber nem aonde
vão parar, deixam filhos e famílias para enfrentar um mundo desconhecido
e para lutar por garantir um futuro melhor para eles... Sois umas
guerreiras! Um homem não suportaria um dia sequer na pele de vocês...
— Pois você é uma das poucas pessoas que nos vê assim...
— Escuta, quando puder, pegue um dia de folga e te levarei para
jantar, passear um pouco… Não podes estar vinte e quatro horas ao dia
nisto... ficarás louca.
— É verdade. Vejo que a grande maioria das garotas dorme e
trabalha. Eu, ao menos, pelas manhãs vou caminhar na praia, para sentir o
cheiro que vem do mar, tento buscar um pouco de refúgio olhando para o
infinito. Isso me ajuda a viver, me renova a alma... e agora mesmo é tudo o
que tenho, aparte do que vês aqui...
— És muito sentimental e romântica, existem muito amor e vida
dentro de ti...
— Sim, mas isso aqui não é bom.
— Te deixo meu número, te darei discretamente para que não
vejam...
— Está bem.
— Mas tens que me prometer uma coisa...
— Claro, me diz...
— Se tiver qualquer problema, me promete que vai me ligar.
— Te prometo, muito obrigada...
— Não estarei aqui. Dirijo um projeto em Túnez para o governo, mas
conheço gente aqui e posso acionar para ajudar, gente de minha confiança...
— Mas por que você está fazendo isso?
— Porque conheço este clube faz quinze anos e sei como vão pela
vida esses cretinos. Eles também me conhecem muito bem...
— Entendo...
— Bom, vou indo, que já é tarde e te observam com cara feia...
Dentro de duas semanas voltarei, e uma vez mais, se me permites, venho
ver-te...
— Sim, por suposto que sim, te esperarei...
— Se cuida muito.
— E você também. Boa viagem.
— Obrigado. Fique atenta, não deixe que esta gente te faça mal ou te
intimidem: aí tens meu número.
Luís se foi. Eu gostava de falar com ele, me fazia esquecer o lugar em
que eu me encontrava. Já fazia meses que havia chegado e todas as noites
ainda chorava debaixo do chuveiro; esfregava meu corpo com toda força,
com asco dos homens e de mim mesma. Era horrível aquela sensação,
chorava de desespero, desgosto, tristeza e raiva. Era uma mescla de
sentimentos que me afogava, que me agoniava, e cada dia que passava eu
bebia mais e mais. Chegou o dia do aniversário do meu pequeno e, uma vez
mais, se repetiu a história. Me embriaguei, chorei sem parar, dormi caída
pelo chão, não estava em condições psicológicas para fazer nada. Estar
longe dos meus filhos me provocava uma dor insuportável; eu queria
abraçá-los, beijá-los, preparar a comida para eles, pôr eles na cama para
dormir. Estar com eles: vendo-os crescer, aprender e descobrir a vida. Jogar
com eles, estar ao lado deles quando se machucassem para secar suas
lágrimas, curar suas feridas e abraçá-los para que se sentissem protegidos.
Ajudar com os deveres do colégio… E eu ali sem poder fazer nada…
sentindo-me impotente e sozinha. Meus filhos sempre foram a minha
debilidade e a minha força ao mesmo tempo. Os amo com loucura. São o
melhor da minha vida e agradeço a Deus cada dia por tê-los, são uma
bendição e com eles aprendi muito. Os amo e os respeito, peço a Deus a
cada dia que os proteja. Um dia estava preparando a comida e escutei Yuri
me chamar, escutei sua voz como se houvesse saído de dentro da alma —
Mamãe! — saí correndo e fui telefonar, Yuri havia caído de patins, e havia
me chamado enquanto caía. O mesmo aconteceu com Johan... lhe escutei
chorar e, quando liguei, ele respondeu ao telefone chorando — mamãe,
você me escutou, eu sabia! —, essa foi a frase que me disse, a conexão que
existe entre uma mãe e seus filhos é incrível… é o mais forte que possa
existir quando se trata de amor.
As duas semanas seguintes se passaram lentamente: clientes
embriagados, drogados; as garotas brigando entre si para entrar com os
drogados, porque esses lhes pagavam muitas horas e também lhes davam
drogas... Era deprimente. Quando esses clientes não vinham e tinham pouca
cocaína, discutiam por um puto “tiro” de coca. Era sempre a mesma
história: “por que você não me ofereceu?”, “porque aquele dia eu te
ofereci”... Era decadente e humilhante, se matavam com lentidão. Perdiam
de vista o objetivo com o qual vinham, esquecendo-se de suas famílias, de
seus filhos, se esquecendo de si mesmas. Sem tomar verdadeira consciência
do quão difícil era ganhar aquele dinheiro que jogavam fora com drogas e
com álcool. Acabavam tontas, com as pupilas dilatadas e estáticas. Havia
algumas que tremiam os lábios e as mãos, perdiam totalmente o controle
sobre si mesmas, se convertiam em umas “mortas-vivas”... Era horrível o
nível de dependência ao que ficavam submetidas. Jamais as discriminei,
mas nunca estive de acordo com aquele comportamento e com o consumo
de droga. Me dava pena... Assim foi como me dei conta de que estava me
convertendo em uma alcoólica. Numa manhã despertei e disse a mim
mesma:
— Por Deus! Que me está passando? Eu não sou assim! Se tive a
coragem de atravessar o oceano Atlântico e deixar os meus filhos, privando,
a eles e a mim, da nossa convivência, de nossas vidas, para tentar dar a eles
uma vida melhor: eu sou capaz de enfrentar a estes degenerados de caras
limpas.
E assim deixei de beber para trabalhar, emagreci seis quilos, que em
realidade não eram gordura, senão líquido retido pelo consumo de álcool.
Noventa e oito por cento das garotas acabam com depressão, ansiosas,
alcoólicas ou drogadas. O consumo não se limitava à cocaína, consumiam
também haxixe, maconha, speedy, pastilhas, crack, cristal, e o que se
apresentava diante delas; como se não bastasse, quando lhes entrava a
paranoia e a insônia, se metiam soníferos. Por desgraça, esse coquetel é
uma passagem só de ida, um convite para a morte.
Um dia, cheguei em casa e encontrei Sabrina totalmente drogada e
embriagada: sentada na cama, havia jogado sobre as cobertas tudo o que
tinha dentro da bolsa buscando os restos de cigarro que caem e ficam no
fundo, para fazer um cigarro de haxixe. Ela estava em outra dimensão, não
formava uma frase com lógica... Estava transformada... Era deprimente e
humilhante seu estado e situação, despenteada, com olheiras, parecia um
zumbi, eu e Luana lhe demos um banho e a colocamos na cama.
— Bom dia, Sabrina, como estás?
— Não me sinto muito bem...
— É normal que não te sintas bem...
— Sinto vergonha...
— Posso dizer uma coisa? Mas não quero que leves mal e espero que
compreendas que, se te o digo, é pelo teu bem.
— Sim, Anastásia, pode falar.
— Sabrina, você veio aqui para ganhar dinheiro, não?
— Sim.
— Por favor, deixa já de usar drogas, te estás matando, e poderias
estar mandando ao teu filho todo este dinheiro que gastas em se
envenenar, isto é um suicídio. Ele está longe de você, te ama e sente
saudades, sofre com a tua ausência. Estou segura de que ele não gostaria
nada de te ver assim... Você sabe que as coisas no Brasil não estão nada
fáceis...
— Sim, eu sei...
— Pois... sei que não é simples deixar, mas tenta. Tenta pelo teu
filho, por você; não quero ver-te mais como te vi à noite. É muito triste ver-
te assim, tenho muito carinho por você e quero ver você bem. Joane não é
tua amiga: uma amiga não te oferece drogas. Uma amiga tenta te tirar das
drogas... E quando discuto contigo pelas drogas não é por preconceito, é
porque te quero de verdade...
— Tens toda a razão, eres como uma mãe para nós...
— Sou assim... Quero ver bem e felizes as pessoas que eu gosto.
Graças a você, Sabrina, eu estou aqui e tenho a possibilidade de lutar por
uma vida melhor, tu não me conhecias e poderias não ter me dado o
número de Sonia...
— É que me caíste bem desde o princípio.
— Pois, por favor, te peço que penses um pouco nas coisas que eu te
disse...
— Eu vou pensar. Obrigada por se preocupar comigo.
— Não tens que me agradecer por isto.
Sabrina e eu discutimos várias vezes por culpa das drogas, mas eu
gostava muito dela e me entristecia vendo como se autodestruía, e também
Karina. Me lembro de um dia em que Luana e eu fomos ao centro para
comprar umas coisas na loja de produtos de salão de beleza, compramos
água oxigenada e pó descolorante. Chegamos em casa muito nervosas,
tínhamos pressa, pois estávamos atrasadas e Wlad estava a ponto de
chegar e, com a pressa, nos esquecemos do pó em cima da mesa. Havíamos
comprado a granel e haviam colocado dentro de um saquinho de plástico
transparente. Estávamos no trabalho quando me lembrei:
— Luana...
— Quê?
— Creio que deixamos o pó descolorante em cima da mesa...
— Sim, sim, deixamos.
— Por Deus, é que estas duas vão chegar em casa antes de nós...
— Oh, não! Anastásia, eu creio que sim… vão comer todo o pó.
— Bom, vou ligar para elas.
— Sim, é melhor.
Liguei para Sabrina e também para Karina: nenhuma das duas
atendeu, mas o que temíamos ocorreu: tinham cheirado o descolorante
pensando que era cocaína, seus narizes estavam em carne viva. Menos mal
que se deram conta no terceiro tiro. Penso que, de verdade, tem uma hora
para tudo nesta vida. Poderia lhes ter acontecido qualquer coisa, até
morrer. É patético e muito triste até a que ponto um ser humano pode
chegar. A degradação humana a que te levam as drogas é um caminho que
muitas vezes não tem retorno; me dói falar disso porque vi muitas garotas
morrerem de overdoses. Encontram seus corpos sem vida, sem alma,
atirados em um quarto de um clube ou de um hotel, porque foram
abandonadas por todos, por aqueles que dizem ser sua família, seus
amigos, seus namorados. Cada vez que recebia a notícia de que alguma
garota que eu tinha conhecido havia morrido, se ia com elas um pouco de
mim; hoje ainda, quando as recordo, vejo seus olhares, seus sorrisos. Me
dói mais ainda porque conheço suas dores e os motivos que as levaram a se
refugiar nas drogas. A maioria não é consciente do que lhe está
acontecendo. Inconscientemente se desarrolha um processo de isolamento
e autodestruição provocado por sentimentos de rejeição, humilhação e
marginalização. Algumas se supunham fortes e pensavam que podiam
controlar o consumo de drogas, mas isto não existe: é utópico! Como se
sentiam culpadas, sempre estavam buscando justificativas para seu uso.
Também existe o caso de umas poucas que dizem: “tudo o que quero hoje é
um homem bonito que me pague bem e um quilo de coca”. A garota que
disse essa frase morreu dois meses depois. Nós a chamávamos “de hóstias”
porque esta era sua palavra preferida... Em cada frase que pronunciava,
sempre aparecia a palavra “hóstias” ao final. Era muito bonita, tinha o
cabelo longo e loiro acinzentado, era alta, sempre trabalhava com botas e
biquíni e sempre com um sorriso na cara... Tinha um coração muito terno,
era cheia de vida.
Karina tinha um temperamento terrível, queria ser dona da verdade,
era muito conflitiva, sempre discutia com Wlad, dava escândalos, quebrava
as coisas, brigava com quem fosse; nem Sabrina, que era sua melhor amiga,
ela escutava. Se foi sem pagar a passagem, creio que por causa do país, dos
costumes e do trabalho que fazíamos, lhe fizeram muito dano. Ela estava
irreconhecível, agressiva com todos, sempre nervosa, já não tinha quase
nada da garota que conheci três meses antes, nunca mais tive notícias de
Karina, a última vez que a vi não me quis contar o que lhe havia passado,
tinha hematomas por todas as partes, inclusive na cara; isso me deixou
muito que pensar.
O tempo ia passando e não se ganhava dinheiro como me haviam
dito, estávamos a ponto de ficarmos ilegais na Espanha e isso não era nada
bom. Uma vez, estive uma semana escondida, pois em épocas de redadas a
polícia te parava até nos supermercados. Eu passava horas sentada na
sacada escutando música e observando o mar, contemplando o crepúsculo,
vinham lembranças do passado na minha mente, se apresentavam diante
dos meus olhos como um filme. Perdida entre as imagens do passado e dos
sentimentos que me evocavam, submergia em uma profunda nostalgia de
um passado duro e um futuro incerto.
— Olá! Como estás, Luís?
— Bem, muito bem, e você? Vejo que estavas trabalhando.
— Bem, se vai levando... Sim. Quase não tem trabalho e se tem que
aproveitar o pouco que aparece...
— Aqui se trabalhava muito antes.
— É o que dizem... Mas agora não.
— Te falta muito da passagem?
— Um pouco. Penso que em uma semana, se tudo vai bem,
terminarei de pagar.
— E já estarás livre da tua dívida.
— Sim, para mim é a coisa mais importante neste momento.
Necessito acabar com isto. Além do mais, o que se ouve sobre o que fazem
com as garotas que não pagam me dá muito medo, porque sei que o que se
ouve não é lenda.
— Eu sei, por isso quero que tenhas muito cuidado e, se necessitas
de algo, me liga.
— Não te preocupes. Se necessito, te chamo.
— Quais são os dias de folga aqui?
— Domingo e segunda. Uma vez que tenha pagado a passagem,
começarei a pegar folga.
— Me parece muito bem, tens que te distrair e relaxar um pouco.
— Eu sei... Não suporto que me toquem, não suporto este trabalho.
— Olha, tens que trocar o chip... Faça o que tem que fazer, pega o
dinheiro e fora, e os homens aos quintos do inferno.
— Assim falando, parece fácil, mas, para mim, cada homem que me
toca é uma tortura e cada minuto uma eternidade...
Não sei por que Luís me inspirava confiança. Ele tinha razão, devia
entrar com os homens no quarto, ganhar meu dinheiro e fora, mas eu não
tinha essa frieza. Comprovei que uma mulher com cultura, valores e
princípios não estava feita para esse trabalho, quanto mais tonta fosse,
melhor; quanto menos pensasse, melhor... Minha cabeça não parava um só
minuto e a ambição desenfreada jamais foi parte da minha vida, de mim.
— Anastásia, você é forte e inteligente, e pode fazer isso.
— Vou tentar, mas será como se estivera me autoviolando a cada
dia…
— Diz a ti mesma que isto não é para sempre, que quando consigas
o que queres, poderás ir para junto dos teus filhos.
— Tens razão, Luís.
— Devo ir, tenho que sair cedo para Madrid, depois vou para Túnez,
regresso depois das festas. Virei ver-te.
— Seguramente estarei aqui.
— Se cuida muito, bonita.
— Obrigada, tu também se cuide, até a próxima.
Quando Luís saiu, Wlad se aproximou de mim para saber de que
coisas falávamos e averiguar o que sucedia:
— Anastásia, vem, quero falar com você.
— Sim, Wlad, me diga.
— Já vi que você é muito diferente das demais garotas e que me vás
escutar...
— Sim, me diga.
— De que coisas você fala com Luís?
— Como já te disse o outro dia, falamos de muitas coisas, nada de
mais e ele sempre me paga muitos drinks...
— Te vou dizer uma coisa: Todos os homens que entram por aquela
porta são vossos inimigos e não tem nenhum homem bom que frequente
bordéis. Tu deves aproveitar o máximo e sacar tudo o que possas, não
acredite em ninguém; eu sou espanhol e sou homem, os conheço. Somos
uns mentirosos e aqui vás encontrar de tudo: aqueles que se dizem
apaixonados para se aproveitar de ti e tirar o teu dinheiro, outros que farão
somente para foder pela puta cara, ou seja, de graça. Porque os homens
para foder grátis são capazes de cruzar toda a Espanha. Tu, Anastásia, é
inteligente, não caias em nenhum conto, não creias, nem confies em
ninguém que cruze aquela porta e tampouco nas mulheres que aqui estão.
Te digo pelo teu bem: que trabalhes e não gastes o teu dinheiro em
besteiras, guarde para uma vida melhor junto a teus filhos.
— Obrigada, Wlad, vou ter em conta.
— Ponha-te a trabalhar e saca tudo o que podes sem pena, porque
eles não te veem como a uma pessoa.
— Sim, já me dei conta, uma vez mais te agradeço.
Me fui e me sentei para observar, não havia nenhum homem
disponível e, literalmente, o clube estava vazio. Wlad tinha razão, concluí
que tudo o que ele me disse era verdade e hoje agradeço que tenha sido
meu primeiro encarregado, apesar de tudo. Nos controlava porque era seu
trabalho, mas ele não era uma má pessoa, ele também tinha que suportar
muitas coisas por parte das garotas, dos clientes e dos seus chefes. Não
podíamos chegar tarde, porque nos multavam, não podíamos estar muito
tempo falando com os clientes sem um drink, se saíamos com o cliente fora
do clube…, tudo era motivo para nos multar. As multas eram de dez a vinte
mil pesetas ou mais, dependendo do humor do encarregado, podendo
chegar até a cinquenta mil.
O Natal estava chegando, para mim sempre foi uma data para estar
com a família, era o primeiro Natal que passaria fora de casa, longe dos
meus filhos e da minha família, eu não gostava de pensar nestas datas,
eram muito duras para mim... Chegou meu aniversário e fizeram uma festa
surpresa no clube depois do trabalho, fiquei emocionada, pois não
esperava. Por um lado, estava feliz porque se lembraram e tiveram o
detalhe de festejar. Mas, por outro lado, não; pois um clube não é o melhor
lugar para passar o seu aniversário. Os dias se arrastavam, era uma rotina
interminável... Naquela semana pude terminar de pagar minha passagem e
sobrou algo que mandei para meus filhos. Para celebrar, peguei meu
primeiro dia de festa e comprei um par de patins que estavam em
promoção e todas as manhãs ia patinar por Benicassim. Assim me distraía,
praticava um pouco de esporte e saía da rotina em que estavam metidas as
garotas que se limitavam a dormir, trabalhar, comer, beber e se drogar. Um
círculo pobre e vicioso que as consumia pouco a pouco. Muitas não viam a
luz do sol durante muitos dias. Na minha primeira folga me dediquei a
escutar música, ler um pouco e descansar... Eu gostava de ler, pois assim
mantinha meu cérebro ativo; porque, se não estás atenta, te convertes em
um vegetal, tu mente se aniquila e vás perdendo potência. O cérebro é
como os músculos, tem-se que exercitá-lo.
Aquela semana chegaram duas garotas, mas eram do norte do
Brasil. Kelly e Cacau. Eram muito simpáticas, Kelly teve muitos problemas
de adaptação e também provocou muitos problemas dentro do clube,
inclusive bebia muito, começou a fazer uso das drogas, chorava por causa
da falta que sentia dos seus filhos… Ela havia deixado no Brasil um bebê de
apenas sete meses. Colocaram-na para trabalhar como Mami, tentando
assim amenizar a situação, mas nada era capaz de aliviar sua dor... Mais
adiante tentou suicídio e, ao final, nos reunimos e cada uma deu um pouco
de dinheiro para comprar uma passagem e a colocamos em um avião de
volta para o Brasil, caso contrário acabaria morta.
As pessoas chamam as garotas de programa de garotas de vida fácil
ou garotas da casa das alegrias. Pois de fácil não tem nada e a única alegria
é a dos homens. As pessoas não fazem ideia do que é ser uma prostituta. O
que é a vida de uma prostituta. Digo que de alegrias tem quase nada; de
prazer nenhum; a felicidade não se sabe o que é, o amor é proibido. A vida
de uma prostituta não é mais que amarguras, tristeza e humilhações. O pior
de tudo é o isolamento e a marginalização da sociedade. Tudo isso, pouco a
pouco, te vai corroendo por dentro até que não resta nada daquela mulher,
daquela menina que vivia antes naquele corpo. Sem contar que, com o
boom da cirurgia estética, tudo o que lhes faltava efetivamente pretendiam
compensar transformando seus corpos em verdadeiras esculturas. Em um
intento de autoafirmação através da matéria, muitas caem na trama do
consumismo, comprando marcas, esbanjando dinheiro em supérfluos,
roupas, bolsas e sapatos; é a forma que têm de se sentir melhor, pois é a
única forma que conhecem, do fútil e do inútil. O olho por olho e dente por
dente fica muito latente dentro delas. Se dão conta de que o único que as
fazem sentir melhor é o dinheiro; o poder de comprar lhes deslumbra, mas
é uma sensação de saciedade passageira. O resultado: corpos perfeitos com
mentes vazias, sem alma, sem caráter, sem personalidade, a maioria não
pensa em um futuro. Penso que já lhe é difícil ter uma perspectiva de uma
vida diferente. Existem as que se acostumaram e outras que não sabem
fazer mais que aquilo ou que não se sentem capacitadas para fazer outra
coisa, casos em que compram apartamentos e carros caros e depois não
têm como manter tudo isso e acabam tendo que vender seus bens. O mais
comum são as que ficam porque ali tem à mão o álcool e a droga. É um
dinheiro que não vem fácil, mas sim rápido; esse é outro motivo que as leva
a se enganchar neste círculo vicioso da prostituição.
Faltavam duas semanas para o Natal, Pepe, Rafa e Carlos nos
convidaram para passar com eles. Luana e eu aceitamos o convite.
— Bom dia, Luana.
— Bom dia, Anastásia... Bom, hoje é Natal...
— Sim, é verdade, tenho que ligar para os meus filhos, minha mãe e
meus irmãos. Bom, para toda a família.
— Eu também. Temos que comprar as coisas para fazer a sobremesa
para esta noite.
— Tomamos café e vamos antes que fechem o mercado.
— Sabe que até hoje não me acostumei ao horário que eles têm para
o comércio?
— Sim, eu tampouco, é porque estamos acostumadas a ter as coisas
no Brasil sempre abertas...
Tomamos o café da manhã e fomos ao mercado, compramos tudo o
que necessitávamos. Eles comprariam as outras coisas para a ceia, nós
íamos ajudar a preparar. Fomos para casa, comemos e nos banhamos.
Estávamos tranquilas, falando, quando alguém tocou a campainha:
— Olá, dona Mari! Entre, por favor.
— Olá, Anastásia.
— Aconteceu alguma coisa?
— Sim, é algo desagradável, me perdoe pelo dia… sei que não é um
dia para estas coisas, mas os vizinhos me ligaram e me disseram que as
duas garotas, a loira de cabelo curto e a de cabelo encaracolado, fazem
escândalos e chegam bêbadas todos os dias... Por isso vim pedir que as duas
deixem o apartamento.
— Que vergonha...
— Sim, mas não falaram mal de ti nem da pequena, não tem que se
sentir envergonhada.
— Mas é igual, já é suficiente com que todos saibam a que nos
dedicamos e nos olhem como bichos raros, e agora acontece isso... Eu
também deixarei o apartamento.
— Não, você e a pequena podem ficar.
— Eu sei, dona Mari, mas não me sentirei bem aqui depois disso, o
apartamento para pagar entre duas é muito caro, e Luana assegurou que
tampouco quer ficar aqui.
— Sim, dona Mari, Anastásia tem razão. Já buscaremos algo que
custe menos.
— Claro, pequena, desculpa, mas não sei como é o teu nome.
— Luana.
— Luana, não os preocupeis, que lhes darei um tempo para procurar
um apartamento e, além do mais, o mês de janeiro já está pago.
Karina e Sabrina não sabiam aonde meter a cara, foi uma situação
horrível, me fez sentir mal. Aprendi que pessoas tão diferentes não podem
viver juntas e por mais que as queiras bem, se te trazem problemas não
podes estar ao lado delas e menos quando não se esforçam para mudar.
Luana e eu éramos muito parecidas, não consumíamos drogas, não
gostávamos de ir a discotecas, essas que abrem às seis da manhã, as “after
hours”, nas quais somente tem gente que se droga e se alcooliza até perder
os sentidos. Ademais, nesses lugares tínhamos que estar cuidando do copo
todo o tempo, pois se te descuidavas colocavam drogas dentro. Isso
aconteceu com uma garota russa que teve uma convulsão. No Brasil
quando dava aulas de educação física tive um caso de um pré-adolescente
que havia sido forçado a usar drogas para se prostituir e assim levar
dinheiro para casa. Aquilo ficou marcado na minha memória, conheci desde
muito cedo o dano que fazem as drogas, jamais me atrevi nem sequer a
provar. Tudo o que eu vi quando era professora e logo trabalhando nos
clubes foi suficiente para não despertar em mim nem uma ponta de
curiosidade.
— Pois não os preocupeis que vou embora... Na rua não vou ficar;
Sabrina, você e eu alugaremos um apartamento.
— Sim, Karina, mas temos que pedir a Wlad que nos busque um
apartamento, porque nós sozinhas não conseguiremos nada. Anastásia,
Luana, perdoem a vergonha que as estamos fazendo passar.
— Deixa, Sabrina, não passa nada. Luana e eu também nos vamos,
pois eu não ficarei aqui. Não sei com que cara olhar para os vizinhos.
— Bom, meninas, tenho que ir... Anastásia, quando souberes algo,
me comunicas.
— Dona Mari, nos perdoe por tudo e feliz Natal.
— Não te preocupes. Feliz Natal, adeus.
— Adeus.
Ser mandada para rua em pleno Natal não era um presente muito
agradável. Dona Mari sempre me pareceu uma boa pessoa, mas poderia
haver esperado ao menos que passassem estas datas que normalmente são
tão sentidas e ainda mais quando se está longe da família, em um país que
não é o teu e em nossas condições. Ela havia sido educada, mas a
insensibilidade daquela mulher me deixou sem palavras... Cada dia que
passava me surpreendia mais o caráter europeu, sabia que se tratava de
gente fria, mas não tanto. Antes de irmos à casa dos rapazes, ligamos para
nossas famílias. Pegamos as compras e fomos para a casa de Pepe e Carlos.
Preparamos a ceia de Natal, que era uma mescla de sabores de pratos
brasileiros e espanhóis. Confesso que foi muito interessante o contraste ao
compartilhar os costumes de dois mundos tão diferentes, mas eu sentia
falta de estar com minha família e a forma em que normalmente
celebrávamos estas datas… não pude reprimir as lágrimas. Contamos tudo
para os rapazes, e eles nos ofereceram o apartamento para ficarmos uns
dias até que resolvêssemos a situação, mas eu não quis ficar ali.
No Ano Novo, fomos a “Torre la sal”, uma discoteca destas ao ar livre
onde também havia uma pequena praça de touros na qual estavam
soltando os novilhos e, aquele que queria, podia entrar na praça para
brincar de toureiro. Eu fui a única mulher que entrou na praça com o
novilho. Foi emocionante, joguei com ele, tive seus cornos muito perto do
meu nariz e, quando me escondi detrás da proteção, ele saltou em minha
direção. Não entendo como fui capaz de olhar nos seus olhos e não sentir
medo… Havia um novilheiro com um capote de toureiro que me ensinou
alguns movimentos e me explicou que o novilho atende pelo som, e não
pela cor do capote, e sim pelo movimento deste. Todos perguntavam quem
era a garota na praça e diziam: “Caraí, vaia como toureia o novilho, e isso
que não é espanhola!”. Chamam de novilhos, mas de pequenos eles têm
muito pouco e com uns chifres que dão medo. Sempre gostei dos animais e
jamais me deram medo. A primeira vez que fui ver uma corrida de touros
de verdade não pude suportar, tive que ir embora, pois é desumano o que
fazem com os touros, não posso aceitar, ainda que se trate de parte de uma
cultura muito antiga. O tempo está para evoluir com ele, porque está em
constante movimento, e não para parar nele.
Depois do Ano Novo, Luís veio para Benicassim, contei tudo o que
havia passado e ele me ajudou a alugar um apartamento barato, era
pequeno e o suficiente para mim. A verdade é que já no primeiro dia
descobrimos por que não era caro. Luana foi viver com Kelly, e Sabrina e
Karina seguiriam juntas. Eu fui viver sozinha.
— Obrigada, Luís, por ajudar-me.
— Não é nada, assim, ao menos, já é um passo a mais para que te
liberes deles, para que não sejas tão dependente e controlada.
— Sim, eu sei, e muito obrigada porque sozinha não seria capaz.
— Bom, pois agora pegamos as chaves e você já pode se mudar.
Vem, vamos.
Pegamos as chaves e fomos para o novo apartamento. Ele me ajudou
com o dinheiro para completar o valor, pois eu não tinha tudo — a
imobiliária me pedia o aluguel do mês e dois de caução. O contrato estava
no meu nome, o que era bom, porque assim poderia fazer a inscrição na
prefeitura. Na Espanha, esse é um documento essencial para a
regularização dos estrangeiros.
— Bom, Anastásia, estás na tua casa e aqui ninguém pode te dizer
nada.
— Obrigada.
— Mas quer parar de agradecer-me?
— É que a minha educação é essa…
— Sim, é muito bonito, mas já basta. Olha estas paredes, necessitam
uma mão de pintura.
— Certo, Luís, é verdade. Este apartamento cheira muito mal...
— O moço da imobiliária me disse que a pessoa que antes vivia aqui
tinha animais.
— Sim, se nota.
— Bom, a ver, se funcionam as torneiras e a luz? Tem até uma
televisão!
— Anastásia, se a televisão funcionar será um milagre porque deve
ter, ao menos, cem anos…
— Ha, ha, ha! Sim, é verdade.
Quando abri a torneira para ver se havia água, se quebrou e inundou
tudo: a cozinha, a sala... O apartamento estava feito uma lástima, totalmente
destruído. Ao ligar a televisão, houve uma pequena explosão... e se foi a luz.
Me lembrei do filme que em inglês se chama The Moneepit, de 1986, (Um
dia a casa cai) uma comédia romântica. Era a história de um casal que
compra uma casa muito bonita por fora e quando se mudaram, pois tudo
foi uma surpresa, porque nada funcionava, tudo se quebrava com somente
tocar… Pois a mesma situação eu estava vivendo naquele momento. Luís e
eu não podíamos parar de rir.
— Caralho! Mas isto não é um apartamento, Anastásia, é uma
armadilha! Vem, vamos a um hotel, não podemos ficar aqui. Pela manhã
ligarei para o moço da imobiliária para que arrume estes pequenos
problemas.
— Pequenos? Isso contamos e ninguém nos crê.
— Sim, é verdade, comigo acontece de tudo...
— Comigo também, sempre pedi a Deus uma vida normal e Ele
jamais me deu...
— Bom, fica tranquila, que tudo vai se ajeitar, inclusive o
apartamento.
Fomos para um hotel, ele me levou ao porto de Castellón, onde se
comia muito bem, e depois fomos a um pub jogar bilhar, me diverti muito.
Passamos a noite juntos. Eu estava me apaixonando por Luís, mas ele era
um homem que não queria compromissos.
— Luís, você jamais pensou em se casar de novo ou viver com
alguém?
— Não.
— Por quê? Você é uma pessoa encantadora.
— Eu gosto de estar sozinho. Quero estar sozinho.
— Não pode estar sozinho toda a vida...
— Sim, eu sei, mas não é o momento, não quero complicar a vida, os
sentimentos apenas complicam a vida.
— Mas você não pode pensar assim, o amor também traz alegrias.
Amar faz com que você se sinta vivo...
— E também te faz sofrer e morres pouco a pouco.
— É que não importa se você sofre ou está bem, o importante é
sentir que estás vivo... sofrer por amor também tem seu encanto.
— Anastásia, és uma sonhadora...
— Eu sei e não vou mudar, insisto em crer no bem, no amor, para
tudo tem uma solução e tudo se pode mudar, basta querer...
— Eu tive uma mulher e esperávamos uma filha; eu as amava
muito... Minha filha morreu no parto, minha mulher entrou em depressão e
não superou isso. Nos separamos, ela voltou para França e fizemos um
pacto: quando estivéssemos recuperados do trauma, voltaríamos a estar
juntos. Somos muito amigos ainda.
— Não posso acreditar. Por que não haveis enfrentado juntos a
situação, se apoiando mutuamente? Houvera sido mais fácil de superar.
— Não, não creio, estávamos cegos de dor e cheios de problemas.
Meu sócio me havia roubado, ficamos sem nada, sem a construtora, sem a
casa, sem carro, sem nada… Tudo aconteceu ao mesmo tempo.
— Eu sinto muito, de verdade.
— Por isso já não creio nas pessoas e nem no amor. O amor não
existe para mim... Existem a atração, o desejo e o respeito...
Luís gostava de mulheres no bom sentido. Sempre me dizia que uma
mulher deveria ser venerada como uma deusa. Mas era um homem que
levava uma dor incrível dentro de si, provocada pela morte da sua filha e a
separação da sua mulher. Algo ali não ia bem, se via claramente que tinha
medo de sofrer desilusões, se escondia detrás da sua dor; era impossível
que um homem tão sensível e sincero tivera o coração tão convencido de
não querer se envolver sentimentalmente com ninguém. Era sua defesa e
eu a respeitava.
A imobiliária enviou um eletricista e um pedreiro para que
arrumassem tudo e, finalmente, entrei no apartamento. A rotina me
entediava cada vez mais, todos os dias o mesmo: dormir, trabalhar e ser
vigiada. Me lembro de um dia em que Wlad me deixou em casa e, depois,
voltei a descer para ligar para minha mãe. Eram quatro da manhã e Wlad
estava embaixo, esperando pra ver se eu não saía com ninguém depois do
trabalho, tinha seu carro parado detrás dos lixeiros... e, ao ver-me, me
chamou:
— Anastásia, vem aqui.
— Fala, Wlad.
— Para quem você vai ligar a estas horas?
— Para minha mãe...
— Mas não é um pouco tarde para ligar para ela?
— Não, não é, pois se você não lembra são cinco horas de diferença.
— Tua mãe dorme tarde, não?
— Sim, ela é boemia, e mesmo que ela dormisse cedo, eu desperto
ela e ponto. Agora, se não te incomoda, vou ligar para ela, porque tenho
muita saudade.
Peguei o telefone e liguei para saber como estavam meus filhos e
dizer a ela que ia tudo bem. Eu ligava duas vezes por semana no mínimo,
porque sabia que se preocupava muito e, aparte, queria ouvir sua voz e dos
meus filhos, isso me dava forças para seguir suportando. Tinha necessidade
de escutar a voz deles. Para mim era como um elixir da vida, renovava a
minha alma... Eu desejava escutar as suas vozes, quando os escutava,
parecia tocar o céu.
O controle que exerciam sobre nós era terrível e sufocante. Sempre
fui uma pessoa responsável e correta, jamais gostei de dever para ninguém
ou que me controlassem. Jamais suportei nenhuma classe de pressão; ser
pressionada para mim é um inferno. Sempre procurei fazer as coisas bem
para não ter problemas e aquilo de ser vigiada vinte e quatro horas era
espantoso; sempre tendo que buscar uma forma para que não
descobrissem o que fazia, e o pior é que não fazíamos nada de mal, não
podíamos falar com as pessoas na rua, com ninguém, mas ninguém. Ele
entrava no nosso apartamento buscando coisas, nos buscando para ver se
era verdade que estávamos doentes ou se tínhamos o ciclo menstrual,
porque quando tínhamos o ciclo não trabalhávamos, ficávamos em casa e
ele, muitas vezes, pensava que estávamos mentindo. Um dia, Karina meteu
a mão dentro da calcinha e tirou o absorvente cheio de sangue mostrando
para Wlad que ela tinha o ciclo... Nós, ao final, ríamos. Apesar de que
saldássemos a dívida da passagem, eles nos mantinham ali... Joane, que já
levava ali muitos anos, me disse que Paco, o proprietário do clube, tinha
proibido a sua entrada no Brasil porque havia mandado matar duas garotas
que se foram sem pagar a passagem e porque sabiam demasiadas coisas.
Uma das garotas sobreviveu ao tiro e fez a denúncia na Polícia Federal do
Brasil; desde então, ele estava sendo buscado por assassinato e tráfico de
mulheres, pois era proprietário de um total de oito clubes na Espanha e
tinha captadores de mulheres no Brasil e na Colômbia. Lilian, a
encarregada, era sua ex-mulher, vivia em umas condições péssimas tendo
em conta que era a ex-mulher de um proprietário de clubes que tem muito
dinheiro. Ela tinha dois filhos com ele, Francesco e Karina. Vivia de aluguel
e tinha um carro velho. Ele não a respeitava para nada. Os proprietários de
clubes e os encarregados tratam as mulheres como mercadoria, máquinas
sexuais e de fazer dinheiro. Nós éramos muito discretas quando falávamos
desses temas, pois sabíamos o perigoso que era tocar no assunto. Quando
havia redadas da polícia de estrangeria e levavam todas as mulheres, a
chefia de polícia as detinham e deportavam as que estavam ilegais e, muitas
vezes as deportavam em condições humilhantes, com a mesma roupa que
vestiam no momento, que quase sempre era a roupa de trabalho. Os
proprietários dos clubes desapareciam, não eram capazes nem mesmo de
enviar um advogado ou uma pessoa que constatasse que estavam bem. Em
uma ocasião, fiquei sabendo que Luís uma vez havia ajudado a tirar as
garotas da cadeia, mais tarde ele mesmo me contou toda a história. Eu
andava dentro da linha e sabia que todo cuidado era pouco, pois estava nas
mãos da máfia e para sair dali tem que ter um par de ovos muito bem
colocados e as costas muito bem cobertas por alguém com poder.
Na época da feira da cerâmica de Castellón vinham garotas de outras
partes para trabalhar, garotas que já não estavam controladas por eles...
Elas falavam de clubes onde as garotas iam e vinham quando queriam. Mas
não nos davam os números, tinham medo de que eles descobrissem que
haviam sido elas, ou provavelmente era uma desculpa para não dar os
contatos. Ainda havendo mudado de apartamento continuavam me
controlando e eu já não suportava mais. Ali não havia trabalho, cheguei a
levar para o clube cartas de póker e ensinei as garotas a jogarem, um dia
Wlad nos flagrou e tomou o baralho de mim. Me disse que parecia uma
criança que não podia estar quieta. Ia trabalhar de patins...
Lambada era conhecido por ser um clube de nível, ali conheci Jaime
e Moisés, jogadores do Villareal, Moisés era cliente meu e Jaime de Luciana,
eles gostavam de fazer festas na suíte, eram homens como os demais, não
se pode classificar os clientes de clube por sua classe social ou posição, pois
as debilidades e instintos humanos são os mesmos em todos os seres
humanos.
Uma vez fiquei duas noites seguidas sem ganhar um só centavo,
estava indignada, via garotas que faziam por luxo, que já não tinham
necessidade de estarem ali, outras pela droga. Essa noite tinha a Luana e a
Lara dormindo em casa. Lara era uma garota que vinha somente no período
de férias, pois ela estava cursando a universidade na Alemanha. Eu tinha
uma Bíblia que sempre me acompanhava. Cheguei tão nervosa, tão
estressada, que comecei a falar com Deus; bom, a gritar com Ele: “Mas onde
estás Tu que não me cuidas, que não me escutas? Eu não sou tão má. Por
que me faz isto? Por que não me ajudas a ganhar dinheiro? Sei que não é
um trabalho digno e que é feio pedir ajuda, mas se não peço a Ti, a quem
vou pedir? Que classe de Deus eres Tu que deixas teus filhos sofrerem
tanto?”. Enquanto gritava, rasguei a Bíblia em mil pedacinhos, joguei escada
abaixo, as garotas estavam escondidas debaixo das cobertas, nenhuma se
atreveu a dizer nada. Sempre tive muita fé, mas estava a ponto de perdê-la.
Minha relação com Deus sempre esteve cheia de conflitos, uma relação
muito forte e intensa, com um profundo amor e respeito para com Ele, mas
tiveram momentos em que minhas pernas tremeram, pois as provas que
me havia submetido em numerosas ocasiões me haviam feito perder o
juízo. Hoje já não discuto com Deus porque sei que por mais que tudo
pareça estar mal e fora de lugar, em realidade não está. Desde esse dia, não
teve outro que não ganhara menos de cinco mil pesetas. Ainda quando
discutia com Ele, tinha um sentimento profundo de respeito e humildade.
Não sou católica, meu Deus não é um Deus que educa e ensina através do
medo.
— Olá, Luís!
— Olá, princesa, que bem te vejo! Como estás?
— Bem...
— Que te passa?
— Quero ir embora e não me deixam, tenho medo.
— Eu posso te ajudar...
— Sim? Mas onde vou trabalhar? Não conheço nada mais que isto, e
as garotas não te dão números de outros clubes.
— Conheço um no centro de Castellón e ali você não vai ter
problemas. Conheço o encarregado, ele é muito simpático e sério, te posso
levar ali e, se queres, podes sair daqui agora mesmo.
— Sim, quero, já não posso continuar assim.
— Vem, vamos, que vou falar com Wlad.
Ele me pegou pela mão e foi em direção ao balcão onde estava Wlad.
— Wlad, por favor, quero falar contigo.
— Sim, diga, Luís.
— Anastásia deve algo a ti ou ao clube?
—Não, nada.
— Pois ela vai sair daqui agora comigo e não quero que ninguém a
moleste ou a vigie, porque se isso ocorrer, venho aqui e fecho este clube e
ponho na cadeia quem seja, tu já me conheces.
— Sim, não te preocupes, ela é livre para fazer o que quiser.
— Lembranças a José de minha parte.
Peguei minhas coisas e fui com ele, senti um peso sair de cima de
mim... Foi tremendo o tom que usou Luís para falar com Wlad. Ele e as
garotas ficaram olhando enquanto saía pela porta com Luís.
— Que passa aqui? Por que ele aceitou sem problemas minha saída?
— Porque meu irmão é um dos promotores de justiça mais
importantes da Espanha.
— Agora entendo... A lei do mais forte.
— Sim, assim é... Te apetece beber algo para celebrar?
— Sim, por suposto.
Demos uma volta por Castellón, me sentia como o vento... livre. No
outro dia me levou ao BBS para me apresentar para o encarregado, logo
comecei a trabalhar. Depois de um mês veio também Luana para trabalhar
ali. Conheci a Gabriela, uma garota brasileira de trinta e sete anos com
quem fiz amizade. Ela vivia em um dos apartamentos do BBS e também era
controlada, eles cobravam por dia o apartamento e não por mês, assim eles
ganhavam o triplo. Mais tarde, veio para o meu apartamento viver comigo;
ela também metia cocaína, mas era uma mulher tranquila e me prometeu
que jamais levaria droga para casa. Era uma boa amiga, se podia contar
com ela para tudo. Tinha quatro filhos no Brasil, era ela o chefe da casa
assim como muitas mulheres que jogavam suas vidas no perigoso jogo da
prostituição para que suas famílias tivessem uma vida mais digna. O BBS
abria às seis da tarde, tinha o mesmo sistema do Lambada, se descontava
nos passes e as copas ao cinquenta por cento. Sempre, antes de entrar para
trabalhar, tomava um café na cafeteria ao lado e lia o jornal. Minha forma
de ser mudou depois de ler uma notícia que denunciava que um cliente
havia matado uma garota colombiana, a havia estrangulado no quarto de
um clube na pequena cidade de Barracas. Me dei conta de que aquele
trabalho era muito perigoso, mais do que eu pensava.
Havia andado tudo bem naquela noite. No outro dia, antes de ir ao
clube, fui a um cibercafé, me conectei na internet e comecei a recorrer
todas as notícias que falavam de assassinatos de prostitutas e, para minha
surpresa e terror, o número de casos era muito grande. Não esperava
encontrar números tão altos, supondo que a Espanha é um país de Primeiro
Mundo. Mas também encontrei dados altíssimos de violência contra a
mulher. Não podia acreditar que em um país em que a economia era
equilibrada, com o nível de vida mais alto, existira um caos social. Nos
países mais desarrolhados se tem mais fácil o acesso à educação, à cultura e
à informação e, portanto, o nível de violência deveria ser mais baixo. As
estatísticas dizem que cada semana uma mulher é assassinada, apunhalada,
golpeada, queimada viva, disparada, estrangulada. Isso ocorre em um país
que se denomina democrático e que, portanto, se supõe que, como mínimo,
deveria contar com certo bem-estar que impeça essas barbaridades, ou leis
que as evitem. Mas não é assim. Todos esses feitos estão denunciados nos
fóruns. Algumas vítimas denunciaram e anunciaram seus próprios crimes
na televisão e outros meios e haviam acertado desgraçadamente sem que
nada nem ninguém pudesse ou quisesse evitar, assim tem ocorrido em
infinidade de ocasiões. Os juízes, ante a gravidade do assunto, normalmente
impõem ordens de afastamento de até quinhentos metros para os alegados
criminais, mas na maioria dos casos tem-se mostrado que isso não dá
resultado. Continuam havendo mortes e continuam havendo assassinos nas
ruas, nas casas, nas famílias… Continuam havendo vítimas. A oitava
potência do mundo não tem meios para proteger suas mulheres, por isso
estamos falando de um perigo real ao que parece que não se pode dar
solução. Me chama a atenção uma questão: ninguém, nenhum meio de
comunicação havia chamado este feito — o de matar mulheres — como
“ato de terrorismo”, como muitos gostam de chamar quando se dá o mesmo
caso, mas em outras circunstâncias. Seria diferente se essas mulheres
tivessem ou exercessem um cargo público e a ameaça mortal viesse de
alguma organização com ideais políticos e que ao mesmo tempo ameaçasse
a ordem estabelecida, seria muito diferente, e de feito ocorre assim. O que
passa é que essas pobres vítimas não ameaçam a ninguém, não contam
para a sociedade do poder desse país, Espanha. Visto assim: essas mulheres
não importam, não são vítimas “rentáveis” e somente seus familiares mais
próximos sofrerão a dor. Assim é ainda que pareça incrível. E tudo isso,
sem contar as prostitutas que aparecem mortas, porque as prostitutas não
são humanas, não são mulheres, porque as prostitutas vivem à margem da
sociedade, estão, mas não existem. Em uma sociedade “hipócrita”. Não
somente a espanhola, o mesmo ocorre em muitas outras nações: os
mesmos que dizem estar contra a prostituição são os primeiros em
contratar os serviços das prostitutas. Muitas são sepultadas sem
identificação, não têm família ou amigos e ninguém as conhece porque não
é conveniente conhecer uma prostituta, mas sim é conveniente deitar-se
com elas...
Coincidindo com o “dia internacional contra a exploração sexual e o
tráfico de mulheres, e crianças”, a Federação das Mulheres Progressistas
(FMP) denuncia que o número de estrangeiras vítimas da exploração
sexual a cada ano na Espanha ultrapassa dezoito mil. O número de
mulheres que foram identificadas e que estão cativas no negócio da
prostituição “não representa a metade dos existentes”, segundo se afirma
no informe Luta contra a Trata de Mulheres da FMP. Ademais, sua situação
irregular e a necessidade de enviar dinheiro a seus familiares “lhes
impedem de sair da prostituição, apesar de ficarem livres”, uma vez que
tenham pagado a dívida para as redes que as trouxeram à Espanha, afirma
o informe. Hoje na Espanha se soma um total de trezentas mil prostitutas
entre legais e ilegais.
O índice de suicídio entre prostitutas é muito alto, noventa e nove
por cento dessas mulheres se convertem em alcoólatras ou se viciam em
drogas para enfrentar o duro trabalho de doze a quatorze horas diárias em
saltos altos. Existem clubes que não têm banquetas, para que os clientes
não tardem em ir para o quarto com uma garota; e têm outros que sim as
têm, mas as garotas são terminantemente proibidas de sentar.
Normalmente, começam a trabalhar às cinco da tarde e estão até as cinco
da madrugada ou mais, as chamam para jantar por ordem de chegada, ou
seja, a que desce primeiro janta primeiro. Às cinco da tarde devem estar
todas abaixo no salão e se não estão, as multam. Se uma garota está doente
deve pagar igualmente a casa, normalmente se trata de cinquenta ou
setenta euros diários. As prostitutas não têm direito nem de ficarem
doentes, vi algumas morrerem sozinhas sem assistência.
No antigo clube La rosa, em San Sebastián, havia um encarregado
que, às duas da tarde, saía com um pau batendo nas portas dos quartos e
aos gritos despertava as garotas, dizendo: “Putas, levantem, é hora de
comer. Andem, vamos, que isto não é um hotel. Putas têm que se foder”.
Certamente, ele tinha algum trauma de infância relacionado com sua mãe
ou alguma outra figura feminina. Às quatro e meia da tarde, ele voltava com
o pau batendo nas portas e outra vez mais a ofender e humilhar todas essas
mulheres. A comida que serviam para as garotas dava nojo, o clube era
sujo, se dormiam nos mesmos quartos em que se trabalhavam, as garotas
eram obrigadas a limpar depois do trabalho. Havia quartos que pareciam
umas cavernas, verdadeiros buracos escuros e sem janelas; caso se
produzisse um incêndio morreriam todos. Não posso entender como o
governo permite que esses lugares funcionem e que haja pessoas nessas
condições sub-humanas. Com razão se drogam e se embriagam, como se
não fora suficiente suportar os clientes com suas exigências raras e
estranhas, com má educação e grosseria, ainda serem tratadas como uma
mercadoria vinte e quatro horas ao dia… é inconcebível. Em Blanes está o
clube Erótica, ali ficam com a metade de cada programa que faz a garota,
eles mantêm as garotas em condições absurdas, a comida dá asco, ali
tiveram casos de intoxicação alimentar.
Os apartamentos são piores ainda. Os clientes chegam e os colocam
em uma sala, as garotas entram uma detrás da outra, giram para “exibir o
material” e dizem seus nomes, os clientes as olham de cima a baixo e
apontam com o dedo elegendo sua aquisição do dia. Nos apartamentos, os
clientes sempre têm razão; fazem o que querem com as garotas porque as
donas e proprietários têm medo de perder seus clientes, já que ali o
movimento da clientela é mais limitado e, consequentemente, a ganância é
menor. Nos apartamentos, as garotas não pagam diária, é todo ao cinquenta
por cento, não têm direito de dormir e tampouco à comida, isso sim
considero uma verdadeira exploração, existem apartamentos que
funcionam 24 horas e tiram as garotas da cama a qualquer hora. Segurança
zero. Ao menos, em alguns clubes têm seguranças e câmaras de vídeo para
controlar, mas ainda assim violam e matam muitas garotas nos quartos dos
inumeráveis clubes que existem por toda Espanha, ao longo das estradas e
nas cidades. Trabalhei em dois apartamentos em Barcelona, todos os dois
estavam perto da parada do metrô de Urquinaona. No primeiro em que
trabalhei a dona era uma espanhola de nome Olimpia, ela era dominadora,
trabalhava somente com sadomasoquismo, tinha uma seleção de clientes
pessoais. O segundo ficava em um edifício comercial e estava camuflado
como centro de massagens, ali levávamos uniformes: umas batas brancas
curtas e, por debaixo, roupa íntima sexy, ali foi onde tive como cliente o
ator Jordi Rebellón Lopéz, o doutor Vilches do Hospital Central: uma série da
televisão espanhola.
Mas que mundo é este em que a Organização dos Direitos Humanos
está preocupada com o bem-estar de terroristas e assassinos e não fazem
nada por estas mulheres que pagam com suas próprias vidas um alto preço
para poder dar uma vida melhor a seus filhos e aos seus familiares? Elas
não matam, não roubam, estão trabalhando ali; os homens as buscam
porque querem, ninguém vai buscá-los em suas casas e os obriga a se
deitarem com elas. E eu me pergunto por que os países não regularizam e
reconhecem a prostituição de uma vez? Assim, ao menos, essas mulheres
terão direito a uma assistência médica e legal, deixarão de estar à margem
da sociedade, terão direitos e não somente obrigações, porque elas não têm
direitos e sim obrigações. Afirmo que noventa e nove por cento das garotas,
quando deixam esse trabalho, necessitarão de assistência psicológica pelo
dano que provoca na alma exercer esse ofício. Que fique claro, não estou
defendendo a prostituição, seria melhor que não existisse. Mas já que existe
e temos que conviver com ela, ao menos façamos de uma forma mais
humana e civilizada.
O Brasil é considerado um país de Terceiro Mundo, mas tenho
minhas dúvidas quanto a isso. Com respeito à infraestrutura, em algumas
zonas, de verdade, é muito precária, mas não falo disso e não faço
comparações econômicas. Falo das leis e de desenvolvimento social
humano, nisso sim estamos muito avançados quando se trata de direitos
humanos. A polícia de defesa e direitos da mulher surgiu em 1985 com o
governo de Franco Montoro, criada por um decreto do qual o autor é o
deputado Michel Temer. A primeira delegacia da mulher nasceu no centro
da capital paulista e, até hoje, é a única unidade do gênero que funciona
vinte e quatro horas ao dia atendendo mulheres vítimas da violência
doméstica e de outras formas de discriminação. Rapidamente se
expandiram por todo Brasil e para o exterior. O estado de São Paulo conta
com cento e vinte e seis delegacias específicas. No que se refere aos direitos
da mulher, se crê que a criação das delegacias constituiu a maior conquista
das mulheres neste século. Uma inovação em um país de Terceiro Mundo,
retratando a realidade e invejado por aqueles do Primeiro Mundo. A
violência contra a mulher não escolhe cor, raça, idade, nível social,
econômico ou cultural, e não tem hora, dia ou lugar para ocorrer.
Geralmente, vem acompanhada de aliados como a calada da noite, ou
alcoolismo e outras drogas. Refletem, em verdade, a triste realidade dos
desajustes de homens que não possuem estrutura emocional para
compreender a afetividade inata da mulher, que exige delicadeza no trato.
Estava sentada no bar quando veio Gabriela e me chamou para
ajudá-la com uma garota que estava quebrando tudo no quarto.
— Anastásia, vem.
— Que foi?
— É Patrícia, a garota que ajudei a vir para Espanha.
— Mas o que está acontecendo?
— Ela está quebrando tudo. Diz que está com uma pombagira.
Pombagira é uma entidade feminina de um rito de origem afro-
brasileira, da linha de esquerda dentro da “umbanda”. Dizem que as
pombagira eram mulheres que gostavam de fumar, beber, sexo, luxúria e
dinheiro. Na umbanda, os médiuns incorporam essas entidades e através
delas tentam ajudar aos outros para poder encontrar a luz e assim
descansar. Com o passar do tempo, conheci muitas garotas que acendiam
cigarros e deixavam uma taça de champagne como uma oferenda pedindo
em troca que lhes trouxessem homens e trabalho, muitas também faziam
outras classes de rituais da umbanda, mas o que me dava medo é que a
maioria não sabia o que estava fazendo e provocavam verdadeiras
catástrofes energéticas em suas vidas. Quando era pequena, nos sábados
assistia aos trabalhos no Centro Espírita do meu avô. Havia conhecido a
umbanda desde muito pequena, jamais participei das cerimônias, conhecia
muito bem e as respeitava, mas esse não era o meu caminho.
— Onde está ela?
— No quarto de descanso.
Quando a vi, soube que não havia entidade alguma: ela estava
fazendo um teatro, embriagada e drogada, peguei ela pela cintura e a joguei
na cama contra a parede.
— Escuta, deixa de palhaçada, porque aqui não tem nada e se você
não parar com isso te parto em quatro! Estás jogando com coisas que não
conheces. Se escondendo detrás de uma mentira para depois dizer que não
se lembra de nada. Assim não tens que assumir a responsabilidade dos teus
atos. Pois agora acorda e começa a afrontar a vida!
Ela me olhava com a cabeça baixa, se colocou em posição fetal e
começou a chorar compulsivamente, chamava pela sua mãe. Me deu pena
vê-la daquela maneira, a abracei e lhe disse que tinha que ser forte, e que se
não podia mais com aquilo, fosse embora para sua casa antes que lhe
acontecesse algo mais grave. Mas ela estava totalmente desequilibrada e
era dessas pessoas que não querem ajudar a si mesmas ou já não têm
forças para tal. A depressão, o círculo vicioso das drogas, do dinheiro que
vem rápido e medo de voltar à pobreza extrema faziam com que as garotas
perdessem sua dignidade e seu amor próprio. Fascinadas com carros caros,
roupas e acessórios de marca, saíam da realidade e não se davam conta de
que estavam morrendo pouco a pouco; e que estavam se destruindo.
Aquele dia fui para casa com uma tristeza profunda, a única coisa que pedia
a Deus era não acabar daquela maneira, e que cuidasse daquela mulher. Em
outra ocasião, Patrícia foi encontrada pela polícia, caída na calçada,
inconsciente e desnuda, suja e cheia de hematomas. Ela não soube dizer o
que lhe havia acontecido. Segundo algumas testemunhas, dois moços em
um carro depois de abusar dela e bater, a jogaram na calçada como quem
descarrega um saco de batatas.
Dois dias depois veio Luís. Me senti feliz por me reencontrar com
ele. Me fazia sentir uma pessoa normal e isso era muito importante para
mim; me fazia sentir bem comigo mesma, de alguma forma ele havia
contribuído muito para que eu mantivesse meu equilíbrio e o contato com a
realidade.
— Olá, como está a garota mais bonita da Espanha?
— Você é um exagerado, de verdade.
— Não. Não sou e você sabe muito bem, eres inteligente e preciosa,
boa pessoa… você vale muito.
— Obrigada, mas me deixas envergonhada...
— Como você passou estes dias?
— Bem.
— Wlad não te procurou?
— Não, e se ele me procurasse eu te diria.
— Bem, já sabes que pode contar comigo para qualquer coisa.
— Sim, eu sei, obrigada.
— O que você fez esta semana?
— Estive na internet fazendo umas pesquisas...
— E que coisas pesquisava?
— Sobre assassinatos de prostitutas.
— Por quê?
— Estava lendo um jornal enquanto tomava um café e vi uma
reportagem onde falavam sobre um assassinato de uma garota em um
quarto de um clube, em um povoado que fica perto daqui.
— E você começou investigar...
— Sim, tive uma intuição... Fiquei aterrada com a quantidade de
garotas que são assassinadas na Espanha e também com o número de casos
de violência doméstica.
— Aqui ainda existe muita ignorância, as pessoas estão loucas.
— Mas não quero falar disso agora, Luís.
— Bem, e que mais você me conta?
— Bom, também li sobre o Caminho de Santiago.
— O Caminho de Santiago?
— Sim, quero fazê-lo.
— Estás louca!
— Não, ainda não. Sinto que eu tenho que fazê-lo.
— Por quê?
— Em 1988, um amigo me presenteou com um livro, O peregrino de
Compostela, que em português se chama Diário de um Mago, do Paulo
Coelho, quando terminei o livro disse a mim mesma que faria o caminho.
Mas quando eu disse, não tinha nenhuma possibilidade econômica de vir
aqui, e agora estou na Espanha, me entende?
— É casualidade.
— Não, não é, não creio em casualidades.
— Anastásia, crês que de verdade que existe um destino?
— Sim, creio que temos que chegar a um determinado lugar e que,
entre o ponto de saída e de chegada, têm coisas que devemos passar, outras
que podemos mudar… mas também creio que nós decidimos a forma como
vamos chegar naquele lugar, creio que estamos aqui por algo.
— Então, crês na reencarnação...
— Sim, e você?
— Não, prefiro pensar que somos pura energia e que, quando
morremos, tudo se acaba.
— Eu também creio que somos pura energia, mas não se acaba,
apenas se transforma; a energia é inteligente, tem vida e memória... Não
teria sentido vir aqui por vir... Em cada pessoa que conhecemos existe uma
razão para que esteja em nosso caminho ou nós no caminho dela. Em tudo,
em cada acontecimento sempre tem algo, uma mensagem, uma lição...
— De verdade, você é fantástica.
— Um exemplo: quando tinha dezessete anos ganhei uma bolsa de
estudos para vir a Barcelona para estudar dança. Naquela época trabalhava
no INSS no Brasil, era uma administrativa, nada importante. Comigo
trabalhava uma senhora que estava casada com um espanhol de Barcelona
e ela me ofereceu apoio, me disse que falaria com sua sogra para ver se eu
poderia ficar ali com eles. Desde muito pequena meu sonho era vir para
Espanha e aprender o flamenco, porque minha avó era espanhola. Sempre
tive esta paixão pela Espanha. Mas minha mãe não me deixou vir. Eu era
menor de idade e não podia discutir. Depois, Maia, meu amigo que era Rosa
Cruz, me presenteou com o livro do Caminho de Santiago. Eu lia e me via no
caminho; e dos apóstolos de Jesus, o que eu sempre mais gostei é Santiago.
Quando já pensava que jamais pisaria em terras espanholas, como por arte
de magia vim parar aqui de um dia para o outro. Aqui estou... não é da
maneira que imaginei chegar, mas aqui estou. Me compreende, Luís?
— Sim, perfeitamente, mas você atraiu com a tua mente...
— Pode ser que eu tenha contribuído, mas sinto que tinha que ser
assim. O poder mental e a fé são a mesma coisa. A igreja chama fé e a
ciência poder mental; são dois modos diferentes de ver uma coisa, a mesma
coisa.
— Anastásia, de verdade, conheci muitas, mas muitas garotas, mas
jamais alguém como você.
— O saber não ocupa espaço, me dizia meu pai, e também dizia que
pensar não dói.
— Um homem inteligente era teu pai.
— Não tanto. Ele é uma dessas pessoas que têm inteligência
direcionada, a dele é para as ciências exatas.
— De verdade, vais fazer o caminho?
— Na primeira oportunidade que eu tenha, vou fazê-lo.
— São 817 ou 823 quilômetros desde a França.
— Eu sei...
— Você é valente.
Luís sempre estava entre Benicassim e Túnez. A primeira coisa que
fazia, quando chegava à Espanha, era ligar para mim e eu sempre lhe
esperava ansiosa, lhe queria muito, mas ele não queria um compromisso.
Era um homem educado, muito culto e importante e ao mesmo tempo era
muito simples, tinha passaporte diplomático. De certa forma, ele tinha um
compromisso comigo, eu via que ele se sentia responsável por mim, sempre
estava pendente de tudo. Aquilo era muito bonito, pois me fazia sentir
segura e meu coração sabia que podia contar com ele.
Chegou o verão e o BBS fechou. Wlad nos chamou para trabalhar no
Lambada, pois necessitava de garotas. Já não nos controlava, porque sabia
que já não podia conosco; ali, naquela noite, Luana conheceu a quem hoje é
seu marido. Luís e eu éramos apenas amigos, porque ele queria assim e eu
o respeitava. Luana se envolveu com Pedro e eu saía com seu chefe, Javier.
Entre Luana e Pedro as coisas andavam bem, mas o meu relacionamento
com Javier não. Ele mentiu para mim, me disse que era solteiro e logo veio
com a típica história de que estava casado, mas que não era feliz e que ia se
separar. Depois de algum tempo saindo juntos me disse que sua mulher
havia tentado se suicidar porque ele pediu a separação e que já não podia
estar comigo: me afastei. Três anos mais tarde, Pedro me contou que era
um grande mentiroso e que tudo o que me disse, inclusive a tentativa de
suicídio, havia sido mentira.
Luana e eu tínhamos o costume de, antes de ir trabalhar, tomar um
café em uma cafeteria que estava perto da minha casa. Sempre fomos muito
discretas no vestir: calça jeans, camisa negra, botas negras, sem
maquilagem e cabelo preso; falávamos em um tom de voz normal e sempre
com um amável sorriso estampado na cara, porque era nosso estado
natural. Nesse dia, veio Pedro nos buscar na cafeteria. Tudo normal.
Estávamos apenas nós e o proprietário até que chegou o porteiro do
edifício em que vivíamos antes e disse algo ao proprietário; quando este se
foi, o proprietário veio falar conosco:
— Ofereço o café, mas quero que saiam daqui.
— Por quê? Que estamos fazendo de mal? — perguntei.
— Este é um lugar familiar e não quero vocês aqui.
— Mas não estamos fazendo nada, apenas falamos e tomamos um
café e, aparte, não tem ninguém mais aqui além de nós.
— Não importa. Já disse que ofereço o café, mas quero que saiam
daqui.
— Eu trabalho para pagar minhas contas, oferta de gente como você
não aceito, e quem não quer voltar a pôr os pés aqui sou eu.
— Deixa, Anastásia, este é só um miserável ignorante racista de
merda.
— Pedro, vem, vamos.
— Sim, Luana, vamos antes que eu parta a cara deste cretino.
— Anastásia, estou segura de que foi o porteiro.
— Sim, Luana, eu também.
— Que filho da puta! Por que não vai cuidar da sua vida?
— Porque seguramente não tem vida, é um parasita.
Estava indignada com o ocorrido. O preconceito pode ser um veneno
mortal para uma sociedade. Me sentia repudiada, como se fosse uma
aberração. Manifestações racistas e de preconceito como essas me fizeram
tanto dano que já não queria sair na rua, evitávamos falar para que as
pessoas não notassem que éramos estrangeiras. Senti uma dor profunda
cheia de tristeza e incompreensão. Estávamos acostumadas à gente
simpática, amável, doce… Ainda que faça sol ou chuva, sempre tem um
sorriso na cara, e nos lábios palavras de amabilidade, e muito calor humano
para dar. Um sorriso não custa nada e te traz tantos benefícios. Um sorriso
ou um gesto de gentileza de um desconhecido pela manhã podem salvar o
teu dia, podem salvar a tua vida. Nós não conhecíamos a frieza humana, o
racismo, a indiferença, a humilhação. Quando se vem de um país como
Brasil, multirracial e multicultural, é difícil compreender essa pobreza
espiritual europeia, esse preconceito. Primeiro Mundo? Uhmmm! Pois se
preocuparam muito em desarrolhar tecnologias, em construir centrais
nucleares em armar a seus exércitos até os dentes e se esqueceram de
desarrolhar a alma e o coração.
Falam mal do Brasil, dizem que só fazemos festa: samba, futebol e
fazer amor. Mas podem falar o que queiram. Uma, o que dizem não é a
verdade. E tem mais, enquanto dançamos, cantamos e fazemos amor, não
temos tempo para fazer guerra, e se tenho que escolher entre ser parte do
Primeiro Mundo em essas condições, pois prefiro ser parte do Terceiro. O
mais interessante é a pouca memória que têm as pessoas. Na história, tanto
espanhóis como italianos, holandeses, franceses, portugueses no passado
emigraram para outros países. Para que se tenha uma ideia, no Brasil
somos duzentos milhões de habitantes, dos quais uns cinquenta e cinco
milhões são descendentes de italianos. “O mundo não tem fronteiras,
somos nós que as colocamos.” Na Espanha, conheci os neonazistas, e os
skinheads e seus atos de vandalismo e ataques racistas frequentes contra a
vida humana. Nos livros do escritor Antonio Salas, Diario de um skin e El
año en que trafiqué con mujeres, o autor nos faz ver e conhecer a verdade
detrás desses loucos que se autojulgam inteligentes e melhores que os
demais. Essa gente, se é que se pode chamar de “gente”, não é mais que um
grupo de pessoas doentes, frustradas e insanas. As pessoas que se dizem
neonazistas ou skinheads não são mais que fantoches na mão de políticos e
empresários que, hipocritamente, usam os estrangeiros sexualmente e
lucram com seu tráfico sem piedade. Brancos, negros, asiáticos, de todas as
idades, meninas e meninos que são arrancados das suas casas; lhes roubam
suas vidas, seus sonhos, suas infâncias, suas adolescências, convertendo
suas vidas em uma tortura infinita. Querem expulsar os imigrantes, mas
querem lucrar com a exploração sexual dos imigrantes. No Brasil, fazer
apologia ao nazismo ou ao racismo é um crime sem direito a fiança. Este
enquadramento está dado pelo artigo 20, parágrafos 1 e 2, da lei 7.716 de 5
de janeiro de 1989. Este marco legal também criminaliza a discriminação
ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional e
condição social. As penas incluem prisão e multa. A pena para a apologia ao
nazismo inclui prisão de dois a cinco anos e existem casos recentes de
condenação pela justiça brasileira por crime de apologia ao nazismo. O
artigo 140, ponto 3º, do Código Penal, estabelece uma pena de um a três
anos de prisão (“reclusão”), também de multa, para as injúrias motivadas
por “elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem, ou condição
de pessoas maiores ou pessoas com incapacidade”. Essas leis foram criadas
para promover a igualdade entre todos, para evitar um caos social que
futuramente pode ser provocado por manifestações xenófobas que são
alimentadas por mentes conturbadas gerando violência, dor, lágrimas e
almas despedaçadas. O dano psicológico e emocional, que podem provocar
o preconceito e a discriminação, pode ser irreparável e profundo, podendo
levar à tentativa de suicídio. Existe gente boa e má em todos os lugares, “a
ignorância envenena a alma, o egoísmo é a porta de entrada para todos os
males”... a mente desocupada e pobre é oficina do diabo.
Luana já não podia trabalhar, estava apaixonada e não ganhava
dinheiro; sempre estava nervosa e triste, cheia de suportar as humilhações
dos clientes. Cada dia que passava era mais duro para ela. Pedro a levou
para Barcelona para que conhecesse os pais dele, ele pediu a ela para irem
viver juntos.
— Anastásia, posso falar contigo?
— Sim, o que aconteceu?
— Necessito de um conselho.
— Que conselho?
— Pedro me pediu para ir viver com ele e eu não sei o que fazer.
— Você ama ele?
— Sim, mas tenho medo.
— O que você tem a perder? Nada. Não tem filhos no Brasil, não tem
dívidas.
— Não.
— Luana, você já não pode trabalhar porque pensa nele, não ganha
dinheiro, vai, tenta fazer uma vida normal, com filhos, uma família; ao
menos tenta... Eu sempre estarei aqui por perto, se acaso necessitas de algo,
esta vida que levamos é uma merda. É o pior que existe! Isto não é viver, é
morrer pouco a pouco.
— Você tem razão, Anastásia.
— Vai com ele, tenta, e se não vai bem, paciência; mas é melhor do
que passar uma vida perguntando-se como seria tua vida se tivesse
tentado...
— Obrigada, eu gosto muito de você.
— Eu também gosto de você.
— Vou agora mesmo ligar para ele.
— Vai e deixa-te levar.
Dois dias depois Luana se foi com Pedro. Eu sabia que estava
perdendo uma amiga, ou melhor, uma irmã. Mas estava muito feliz por ela.
A maioria das garotas, quando deixa este trabalho, muda o número de
telefone. Muda de vida, muda de tudo, inclusive de amizades. Mas eu
entendo o porquê.
Naquele verão conheci Beth. Ela vivia em Pamplona, era amiga de
Joane e tinha um filho, Mateus, que era um encanto de menino. Fiz amizade
com ela, era uma boa pessoa, um pouco nervosa, tinha que beber para
trabalhar e algumas vezes também se pegava uns tiros de coca. De trinta
garotas que trabalhavam ali, somente uma não usava drogas e não bebia:
eu.
Foi Beth quem me levou para Pamplona e me fez conhecer o
primeiro clube de estrada em que trabalhei, o Huracán, ficava no povoado
de Campanas, a dez quilômetros de Pamplona.
— Anastásia, queres vir comigo a Pamplona? Você pode ficar na
minha casa.
— Sim, quero ir, Beth, te agradeço pela ajuda.
— Aqui se ganha pouco dinheiro e ficam com uma porcentagem
muito grande, mas este ainda não está tão mal, têm outros que ficam com a
metade. Nos clubes de estradas sim se ganha; das classes de clubes que
existem, é o que me parece mais justo com nós. Você paga cinco mil pesetas
todos os dias como se fosse um hotel e o demais é tudo o que você fizer
depois e para você, se dorme e come ali.
— E de quanto são os passes?
— O mínimo é de cinco mil pesetas, mas deves tentar conseguir
mais, deves negociar, ali se pode ganhar até um milhão de pesetas em vinte
e um dias — que hoje equivalem a seis mil euros.
— Me parece muito melhor que aqui. Faz tempo que quero ir-me,
mas as garotas não te dão os números dos clubes.
— Eu sei. A maioria é muito egoísta, penso que você já se deu conta
disso.
— Sim, já. E não posso entender isso, pois estamos todas no mesmo
barco.
— Mas Wlad não pode saber que eu levei você. Senão, não me dará
mais praças aqui.
— Te entendo, não te preocupes, ele não vai saber de nada. Eu fico
em casa uns três dias antes de você partir, assim não saberá que fui contigo.
— É boa ideia, ademais em julho é a festa de San Fermín e se
trabalha muito bem em essas datas.
— É aquela festa famosa dos touros, não?
— Sim, é essa, as pessoas se vestem toda de branco com um lenço
vermelho no pescoço, é muito bonito, a feira, as barracas de comidas... O
único que é triste são as pessoas que se embriagam e se põem na frente dos
touros e acabam morrendo, normalmente são estrangeiros que cometem
essa loucura, a maioria ingleses.
— Por Deus...
Cinco dias depois, estava em um trem junto com Beth e o pequeno
Mateus, em direção a Pamplona. A terra que se fez famosa graças a Ernest
Hemingway, escritor estadunidense, com sua obra Fiesta. Minha sede de
conhecer e de aprender foi minha grande aliada para sobreviver à rotina
dura dos clubes e às mentes sujas e doentes dos clientes. Era a única forma
que eu tinha de manter-me em contato com a realidade, também sabia que
o caminho de Santiago passava por Pamplona, a rota conhecida como o
caminho francês, que é também a mais popular.
Umas duas semanas antes de partir para Pamplona conheci um
homem que se chamava Román, um construtor de Bilbao, me ofereceu uns
drinks e não quis ir para o quarto; me pediu que fosse pela manhã ao hotel
no qual se alojava, me disse que não queria fazer nada, que só queria minha
companhia e que me pagaria bem, me deixou o seu número do celular.
Pensei muito antes de decidir ligar, deixei uma das garotas avisada onde eu
ia estar. Pela manhã liguei e fui ao seu encontro. Realmente não fez nada
comigo, me deu sessenta mil pesetas por estar falando com ele durante
algumas horas, me contou que estava separado da sua mulher, não se
falavam, mas repartiam a mesma casa. Isso foi uma de muitas outras coisas
que me chamaram a atenção no comportamento das pessoas, pois
encontrei e conheci muita gente na mesma situação que ele, para mim era e
é um absurdo. Eu venho de uma sociedade onde caso um matrimônio não
ande bem, cada um segue seu caminho para recomeçar uma vida sem
maiores problemas, ninguém fica convivendo por conveniência, por
dinheiro, ou por aparência. Me disse que, qualquer coisa que eu
necessitara, deveria chamar-lhe. Román partiu para Bilbao, mas continuou
ligando-me todos os dias para ver se eu estava bem. Jamais passou pela
minha cabeça a ideia de que aquele homem no futuro ia ter um papel
importante na minha vida.
— Já estamos chegando.
— Menos mal, já estou cansada.
— Sim, Mateus e eu também estamos, é uma viagem longa.
— Teu namorado não vai ficar brabo porque me estás levando para
tua casa?
— Não... Tutín é muito boa gente. Falei com ele e você é uma garota
muito educada e tranquila, nem se queira parece que faz este trabalho.
— Obrigada.
— Não tenho o costume de levar garotas para minha casa, a maioria
está louca.
— Sim, e isso é muito triste... Só peço a Deus que eu não fique assim
também.
— Não te ocorrerá isso, você é diferente e forte.
À simples vista, gostei de Pamplona, não era grande, nem pequena,
estava feita na medida. Fomos à casa de Beth, ali jantamos, falamos um
pouco e dormimos. No dia seguinte me levou a dois clubes. Primeiro fomos
ao Latino: estava cheio de garotas, já que faltava apenas uma semana para
iniciar a festa de San Fermín. Depois me levou ao outro, que se chamava
Carioca, mas ali tampouco havia lugar, então foi quando decidiu levar-me
ao Huracán. Ali nos aceitaram. Beth ficou uns dias comigo para que eu me
habituasse ao novo sistema. Também estava o inconveniente de que eu
estava em situação ilegal e muitos clubes não aceitam garotas ilegais, e
esses clubes normalmente eram os maiores e os melhores para trabalhar. A
polícia de estrangeria fazia redadas periódicas, a garota que tinha algum
amigo na polícia tinha sorte, pois eles as avisavam e, assim, naquele dia,
não trabalhavam, iam a uma pensão ou hotel. Eles levavam todas as garotas
e as ilegais as detinham na delegacia. Lhes davam uma carta de expulsão
com um prazo para deixar o território espanhol e, quando haviam meios, as
deportavam diretamente. Nas cidades que existem cárceres para
imigrantes, que são chamados de Centros de Internamento de Estrangeiros
(CIE), as deixam retidas até quarenta dias esperando a deportação, com um
horário de visitas restrito: um dia na semana, uma hora estrita. Em
realidade, o feito é que não necessitam mais que isso, pois a maioria não
tem parentes ou amigos, e no caso de ter amigos, quando ocorrem essas
coisas, desaparecem. Os encarregados e proprietários dos clubes são os
primeiros em ausentar-se em situação dessas, ganham rios de dinheiro à
custa das garotas, mas quando elas têm qualquer problema, desde a doença
até a deportação ou maus-tratos, ninguém se molesta em ajudá-las. É como
se nada ocorrera. “Somos meras mercadorias, não somos humanas a seus
olhos, com documentos ou sem documentos somos nada.” Havia policiais
que destruíam as permissões de residência: a verdade é que uma prostituta
é apenas um corpo sem rosto, não tem para onde correr. De um lado, a
sociedade hipócrita; do outro, a máfia, os proprietários de clubes, os juízes
e os policiais. Muitas vezes não podem contar nem com sua própria família,
todos se esquecem de que somos mulheres e humanas e de que também
estamos sob a proteção da Lei de violência e maltrato contra a mulher e dos
direitos humanos... em realidade, estamos sozinhas.
No Huracán havia umas quarenta e cinco mulheres, jamais havia
trabalhado em um lugar tão grande. Meu primeiro dia ali não foi tão mal,
paguei as cinco mil pesetas diária e fiquei com dezessete mil, nada mal para
alguém que jamais havia trabalhado em um clube de estrada. Vi que as
garotas ali se vestiam de outra forma, usavam lingerie, biquínis e
minissaias, eram muito vulgares e muitas não sabiam nem comer. É que
olhando e observando algumas garotas, você chega à conclusão de que se
não fora pelas mãos das máfias, jamais chegariam ali. Eu não mudei meu
modo de vestir e de trabalhar, continuei com meus vestidos longos com
decotes sensuais e aberturas, é que eu não sabia ser de outra maneira.
Muitas me olhavam com cara feia, me tachavam de metida, porque falava
pouco com as garotas, a maior parte do tempo eu passava sozinha ou
falando com os clientes. Algumas tinham ética e respeitavam o trabalho das
demais, mas havia umas poucas que eram terríveis, que provocavam os
clientes acompanhados, e isso gerava brigas e discussões. Ali não se podia
dar as costas para ninguém e é por isso que quando conhecia uma boa
garota tentava manter o contato e a amizade. Tínhamos que estar na sala às
cinco da tarde, o clube fechava às quatro e meia da madrugada, te davam
um café da manhã quando fechavam, a comida era servida às duas da tarde
até as três, também era racionada depois desse horário, ninguém poderia
comer até a hora do jantar, que serviam às oito. Parecia um quartel general,
era fatigante falar com um e outro cliente, toda a noite em pé com salto alto
de até 30 centímetros, verdadeiras plataformas, que com muito gosto
queimei quando deixei os clubes. Os navarros eram muito simpáticos e
nobres. Estava uma manhã na sacada do meu quarto observando os
campos de girassóis e respirando um pouco de ar puro, quando, de repente,
vi uma placa do caminho de Santiago. Meus olhos quase saltaram de tanta
alegria e emoção, não podia crer no que estava vendo, eu estava no
caminho de Santiago! Não podia crer, a situação não era exatamente como
eu havia sonhado, mas não importava, eu estava no caminho e não podia
imaginar aonde iria levar-me, minha emoção foi tão grande que tive que
ligar para minha mãe e contar.
Román seguia ligando-me todos os dias, ele sentia uma espécie de
amor platônico por mim. Também meu amigo Luís me ligava quando ele
estava na Espanha. Eu não tinha nenhum vínculo sentimental com
ninguém, só desejava trabalhar e ganhar o suficiente para comprar uma
casa e voltar a estar com meus filhos. Antes de entrar na prostituição,
minha vida sexual sempre foi muito tranquila, meu ex-marido foi o terceiro
homem que eu me havia deitado. Mas cada dia era mais difícil trabalhar, já
não suportava que me tocassem, tinha um nível de estresse muito alto. Essa
noite levava um vestido curto, negro, de renda e botas até o joelho,
raramente trabalhava assim. Um homem que estava no balcão me chamou
e me acerquei dele:
— Olá, como estás?
Ele me respondeu em russo.
— Perdão, mas não compreendo.
— Como te chamas?
— Anastásia, e você?
— Dimitri. Mas você é russa, por isso eu te chamei!
— Desculpa, mas não sou russa. Meu nome sim, mas eu nasci no
Brasil.
— Estás mentindo.
— Te juro que não, não sei nem uma só palavra em russo aparte do
meu nome.
— Mas você tem cara, corpo e nome de russa, você é muito bonita.
— É que meu pai era austríaco.
— Bem, agora sim. E que tal se subirmos?
— Sim, mas são sete mil pesetas, meia hora.
— Não tem problema.
Ele era muito gentil e educado. Peguei a chave e o lençol na recepção
e subimos, era a primeira vez que trabalhava com um estrangeiro. Quando
entramos no quarto notei algo estranho: sua fisionomia havia mudado, não
gostei nada disso. Fiquei atenta, ele começou a tirar a roupa e eu também,
mas não sei por que não podia tirar os olhos de cima dele. Vi que tinha
várias tatuagens, entre elas a cruz suástica e outra que me deixou mais
intrigada ainda, pois eu conhecia, sabia que representava algo terrível, mas
não vinha na minha mente o que era. Meu coração começou a bater forte e
algo parecia asfixiar-me, eu me conhecia e pressentia algo muito ruim,
aquela tatuagem me produziu um processo de ansiedade e colocou meu
corpo e a minha mente em estado de alerta. Dissimuladamente, lhe disse:
— Que bonitas essas tatuagens.
— Obrigado.
— Eu gosto muito dessa grande no teu braço esquerdo, eu já vi
antes, mas não lembro bem onde. Me pode dizer o que significa?
—É o símbolo da ku kux klán. Eu sou da ku kux klán.
Minha alma caiu por terra. Se ele se dava conta de que meu cabelo
era pintado e minha pele era bronzeada eu estava morta. O cabelo loiro
fazia com que minha pele se visse mais pálida, eu usava lentes de contato
azuis. Quando escutei sua resposta, vieram na minha mente as imagens dos
documentais que falavam dessa organização de extrema direita que nasceu
nos Estados Unidos, no século XIX, imediatamente depois da Guerra de
Secessão. Eles promovem principalmente a xenofobia, assim como a
supremacia da raça branca, a homofobia, o antissemitismo, o racismo, o
anticomunismo e o anticatolicismo. Com frequência, essas organizações
recorreram ao terrorismo, à violência e aos atos intimadores, como a
queima de cruzes e, para oprimir suas vítimas, lhes queimavam vivas.
— Mas por que vocês fazem o que fazem?
— Porque os negros, os índios, os católicos não são humanos, não
têm sangue, são inferiores.
Estava aterrada, vi nos filmes a frieza, a maldade e a ignorância
humana, mas jamais senti na pele o que senti naquele dia: não era possível
que nos anos 2001 houvera pessoas que pensavam assim, pessoas com
uma frieza incalculável. Aquele homem não estava brincando, suas pupilas
estavam dilatadas, as veias lhe saltavam, seu batimento cardíaco estava
acelerado. Vi no seu olhar que ele era assim, ele era seus ideais, era aquilo
em que acreditava. Ele era sua seita, sua filosofia, e a vivia intensamente
como se fosse a única verdade absoluta no mundo. Senti o perigo e a morte
muito perto de mim, eu não sabia exatamente o que fazer para sair daquela
situação sem problemas. Então pensei em fazer meu trabalho com muito
cuidado e rápido, pois não sabia como dizer que não queria estar com ele.
Estávamos no segundo andar e ninguém me escutaria gritar... peguei o
preservativo e quando fui colocá-lo... senti o calor da sua mão vir na direção
da minha cabeça, intuitivamente relaxei o pescoço e a tirei para trás, por
pouco não me acerta um tapa.
— Não me vais a chupar com preservativo.
— Sempre faço assim, é para evitar doenças.
— Mas hoje vai ser diferente.
Notei que ele tinha uma pedra grande entre o pênis e a pele.
— O que é isso? Uma pedra?
— Sim.
— E para que é?
— As mulheres não têm direito de sentir prazer.
— Desculpa, eu te dou o teu dinheiro e você vai e sobe com outra.
— Eu escolhi você e é você que eu quero — ele gritava, seu olhar era
gélido, tinha muita raiva dentro, suava, estava nervoso.
— Mas eu não quero estar aqui.
Não tirei meus olhos dos seus nem só um minuto, estava preparada
para o que fosse suceder, algo me dizia que, se eu dissesse uma só palavra
equivocada, acabaria morta. Tentei manter certa distância.
— No meu trabalho, se me dizem que eu tenho que pôr uma caixa
aqui, é aqui e não é nem um centímetro a mais de menos, o lugar é aqui —
gesticulava com a mão.
— Mas eu não sou uma caixa.
— Você é uma mulher.
Peguei o dinheiro e coloquei na sua mão, me afastei dele enquanto
me vestia. Não lhe dei as costas em nenhum momento. Naquele instante
senti que havia alguém mais no quarto, uma presença muito forte, como de
um anjo que estava ali para cuidar de mim... Consegui que ele saísse do
quarto na minha frente, para não correr o risco de ser surpreendida pelas
costas. Ele gritava em russo, dizia que eu era russa e que me envergonhava
da nossa pátria e por isso mentia dizendo que eu era de outro país, e
repetia: “Fala-me, fala-me em russo, não negues tua língua, negar tua terra
é como negar a tua própria mãe”. Naquele momento encontramos uma
garota russa no corredor, Olga. Ela parou e disse para ele, que ele estava
equivocado, que eu não era russa e que ele deveria se comportar bem.
Quando desci as escadas o encarregado me parou e me perguntou:
— Anastásia, o que aconteceu?
— Este homem é um doente.
— Como? Você nunca teve problemas com clientes.
— Sim, eu sei, mas este está doente, é russo e afirma ser da ku kux
klán.
— Quê?
— Sim. E te digo mais! Jesus, ele vai subir com outra garota e a coisa
não vai sair bem.
— Estaremos atentos.
Normalmente, os clientes, quando tinham um problema com uma
garota, iam embora, mas esse ficou. Vi ele falando com uma garota
argentina, chamei a sua amiga para que lhe advertisse que esse homem era
perigoso. Ela não me fez caso e se foi com ele. E como eu já havia previsto,
as coisas foram muito mal: ele a espancou, até que rompeu a sua
mandíbula, conseguiu escapar e a garota teve que ser assistida em um
hospital. Como era de esperar, ela não fez a denúncia, pois estava ilegal e
tinha medo de que a polícia a detivesse. O medo e a falta de conhecimento
de seus direitos e das leis contribuem para a impunidade dos agressores.
A prima de uma garota que conheci em Pamplona a assassinaram
dentro do quarto no clube 7 de julho. Aquilo foi um crime premeditado. O
homem a acercou e ofereceu quinhentos euros para passar duas horas com
ela, com a condição de que enquanto tinham relação, ela deveria gritar, pois
lhe excitava. Então, quando a garota começou a gritar veio o segurança ver
o que estava acontecendo. O cliente disse para ela que explicara a situação
e assim ela fez: ela afirmou ao segurança que estava tudo bem e que não se
preocupara, que era apenas um jogo sexual. O segurança se foi; o cliente
assim esteve livre para atuar: apunhalou brutalmente a garota, desferiu
sete facadas. A garota foi encontrada porque conseguiu se arrastar até a
porta e o sangue saiu por debaixo, acumulando-se no corredor, formando
uma poça, mas já era demasiadamente tarde. Quando a encontraram, já
estava morta e o assassino havia saído sem problemas.
Já fazia dez meses que não via os meus filhos e estava desesperada,
sentia saudades, me faziam muita falta, lembro o dia em que meu ex-
marido me enviou um e-mail com uma foto deles. Chorei de emoção,
estavam grandes e bonitos; Johann havia engordado um pouco e também
Yuri, creio que minha ausência provocou o aumento de peso, talvez por
ansiedade e angústia. Sentia muito medo das consequências da minha
ausência em suas vidas, me pesava a consciência e tinha um sentimento de
culpa muito grande. Não tinha expectativas de quando voltaria a vê-los, não
tinha documentos e não era tão fácil arrumar minha situação. Somente em
Huracán comecei a ganhar dinheiro, ali aprendi a trabalhar. Já não
trabalhava com meu corpo e sim com a minha mente, não deixava que
ninguém me tocasse antes de irmos para o quarto, falava de tudo com os
clientes, vi que muitos não buscavam sexo, se não companhia. Deve ser
muito triste ter que ir a um clube em busca de alguém que te escute, com
quem possa falar. A solidão é algo terrível e é pior ainda quando te sentes
só mesmo tendo pessoas ao redor. Naquele mês saiu uma lei extraordinária
para a regularização dos imigrantes, o que eu necessitava era uma proposta
de trabalho, a inscrição da prefeitura, que é um documento que chamam de
“empadronamiento”, e comprovar que havia chegado na Espanha antes de
11 de janeiro de 2001; eu tinha tudo, menos a proposta.
— Olá, Román, como estás?
— Bem, e você?
— Bem, saiu uma nova lei de regularização de estrangeiros.
— Que bom, agora você já pode arrumar teus documentos.
— Sim, mas me falta uma proposta de trabalho.
— Isso eu posso fazer.
— De verdade?
— Claro, me traz a proposta, eu preencho e assino.
— Pois muito obrigada. Onde nos podemos ver? O prazo acaba em
uma semana.
— Podes vir até San Sebastián?
— Sim, claro que sim.
— Pois então nos vemos amanhã.
Pedi permissão no clube ao encarregado e no outro dia fui a San Sebastián.
Me enamorei dessa cidade, a praia la Concha, o Gros, era tudo perfeito e tão
lindo. Aquele homem que eu havia visto apenas uma vez, que me ligava
praticamente todos os dias para saber como eu estava e que jamais havia se
deitado comigo, estava me fazendo um favor muito grande, muito
importante. Creio que ele foi um desses anjos que Deus nos envia para
ajudar-nos nos momentos cruciais das nossas vidas, agora já poderia ir a
casa para ver os meus filhos.
Trabalhando no Huracán consegui comprar um pequeno terreno no
Brasil, também comprei um Jeep Willys 68, ambos estavam com meu
padrasto. O Jeep era da minha mãe, ela deu de presente para meu primeiro
filho no dia do seu nascimento. Na separação, meu padrasto ficou com ele,
passando por cima da vontade da minha mãe, e eu o recuperei. O terreno
ele havia me dado para construir uma casa para viver com meus filhos, mas
o que ele fez com o Jeep fez com o terreno. Quando eles se separaram, eu já
havia começado a construir uma pequena casa de madeira, porque era mais
barato. Trabalhava de segunda a sexta pelas tardes em uma academia, dava
aulas de dança e também era instrutora de musculação e, nos fins de
semana, trabalhava de cozinheira em um restaurante. Pelas manhãs,
ajudava o pedreiro na construção, pois não me sobrava dinheiro para pagar
um servente, aprendi a tirar o nível do solo, a levantar paredes, a fazer a
armação de ferro para as colunas de concreto que sustentavam a casa e
também a instalar a parte hidráulica e elétrica. Tinha as mãos cheias de
calos, mas não importava, estava orgulhosa de estar ajudando a construir a
casa dos meus filhos. Faltava pouco para terminar quando meu padrasto
deu ordens para que eu tirasse toda aquela merda do seu terreno, assim se
referiu ele a minha casa (merda), foi inevitável chorar... Me ajoelhei no chão
abraçada a um dos pilares, chorei... A dor e a tristeza eram muito grandes,
não estava destruindo só a casa dos meus filhos, se não que estava
destruindo meus sonhos, meus esforços, minhas esperanças. Minha mãe
sentia a mesma dor ou mais, eu podia ver em seus olhos, pois se sentia
culpada de tudo aquilo, de todo meu sofrimento desde pequena. Ela era
uma mulher forte, inteligente, mas cometeu muitos erros e isso teve sérias
consequências. Ela tinha apenas doze anos quando perdeu a sua mãe e
dezoito quando conheceu o meu pai biológico e se apaixonou por ele, mas
meu avô não estava de acordo, pois minha família descende de nobres de
Portugal, um sobrenome de origem geográfica, tomado na quinta da Coelha
junto ao Douro, onde a família veio a chamar-se Coelho (NASCENTES,
Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro, 1932,
829 págs. - II, 77).
A origem da minha família é antiguíssima e descende de D. Egas
Moniz (aio do 1° rei de Portugal - 1129), por seu bisneto Viegas Coelho.
Este adotou o sobrenome de Coelho do seu avô materno, João Vasques
Coelho, que era senhor da quinta da Coelha. Nicolau Coelho, famoso capitão
da Índia, companheiro de Vasco da Gama e membro dessa família Coelho,
recebeu de D. Manuel, rei de Portugal em 1495, mercê de armas novas
(Sanches Baena, II, 50). Felgueiras Gayo na genealogia dessa família foi
buscar suas origens nos mais remotos em D. Ramiro II (898 - 951), Rei de
León em 931 chamado de “El Grande” e seus inimigos muçulmanos o
chamaram El Diablo por sua ferocidade e energia. Gayo o coloca na
qualidade de quinto avô de D. Egas Moniz (1108 - 1146), O Bem
Aventurado, Aio de Afonso Henriques, 1° Rei de Portugal. Este Egas Moniz,
por sua vez, foi bisavô de D. Soeiro Viegas Coelho, que foi o primeiro que
assumiu o sobrenome Coelho, perpetuado em seus filhos e demais
descendentes, tomado das terras de Coelho, no tempo de D. Sancho II, Rei
de Portugal em 1185. Seu pai, D. Egas Lourenço, foi senhor da Quinta da
Coelha (Gayo, Coelho, Tomo XI, 1, 168). Minha mãe tem o mesmo nome de
sua tia-avó, a Condessa Laura de Mello Coelho, que estava casada com o
conde italiano Alessandro Vincenzo Siciliano, que receberam a confirmação
do título pelas mãos do Papa Pio XI.
Minha mãe estudava em um colégio de freiras junto com a pequena
Eleonora de Orleans e Bragança, e meu bisavô era Major do exército
brasileiro, fundou uma cidade onde praticamente todas as terras eram dele,
ele fez parte do Tratado de Sesmarias. Era um tratado em que se
distribuíam as terras para determinadas pessoas e elas seriam
responsáveis pela sua colonização e produção agrícola, pois havia muita
terra despovoada e sem uso, e o governo necessitava produzir. Minha
família teve uma fortuna grande, que com o passar do tempo e de mãos em
mãos, somado aos confiscos que sofreram por parte do governo, se perdeu.
Meu pai era cigano, gente de circo, era o filho do proprietário do circo, mas
isso dava igual. Minha mãe o conheceu porque meu avô emprestava um de
seus terrenos para que eles montassem o circo e ela se apaixonou por ele e
teve que fugir para se casar às escondidas. Meu avô jamais aceitou este
matrimônio e, ademais, não durou muito tempo. As diferenças culturais
eram muito grandes, eram dois mundos muito longe um do outro. Ainda
depois da separação, meu avô continuava sem aceitar a minha mãe. Ela
voltou para casa, mas mediante as condições que lhe impôs. Meu avô a
tratava como uma empregada. Meu pai não a deixava em paz, e já não
suportando como lhe tratava meu avô e as pressões do meu pai, ela fugiu
para o sul do Brasil, deixando tudo. Estando ali, conheceu meu padrasto, eu
tinha apenas dois anos. Ela trabalhou de camareira para me manter e logo
foram viver juntos. Ele era um estudante de engenheira mecânica, vinha de
uma família normal, de origem alemã, não eram ricos. Me lembro de
quando nasceu meu irmão Ricardo: eu tinha apenas cinco anos, foi quando
me levaram para viver com eles, pois até então vivia na casa de uma mulher
que se chamava Mercedes, que tinha seis ou sete filhos, minha mãe lhe
pagava para que me cuidasse. Desde muito pequena minha vida esteve
marcada pelos abusos sexuais, dois dos filhos de dona Mercedes abusavam
de mim, me violavam. Quase todas as tardes, ou pelas noites, quando eu
queria ir ao banheiro, sempre era um dos dois quem queria me levar.
Quando Agnes nasceu eu tinha oito anos. Minha vida desde pequena foi
muito dura. Tinha nove anos e vivíamos na garagem da casa de meus avós,
as coisas estavam muito difíceis, eu vendia nas ruas garrafas e potes de
vidro, também abobrinhas, pois haviam crescido muitas no jardim detrás
da casa, e também velas artesanais que fazia minha mãe, ela tinha a mão
toda negra do calor da parafina. Eu caminhava horas e horas indo de porta
em porta tentando vender as coisas. A família do meu padrasto, apesar de
ter-me na família desde muito pequena, jamais me aceitou totalmente. Meu
avô Jacob abusava de mim sexualmente, me lembro das suas mãos
asquerosas tocando-me e de sua boca suja com aquela barba beijando meus
seios, que começavam a crescer, era repugnante…, inclusive hoje em dia
sigo odiando os homens com barba. Ainda que dissesse a verdade, ninguém
ia acreditar em mim, porque, para todos eles, eu era a negra mentirosa que
ia ficar grávida aos quinze anos, eu era a filha do palhaço de circo... Cresci
escutando o pior. Me chamaram de negra, ladra, puta, sem vergonha e
mentirosa. Uma tia nos havia presenteado com um álbum de fotos, meu avô
o havia deixado na sala em cima de um balcão, minha mãe chegou do
trabalho, eu peguei o álbum e fui correndo ao seu encontro para mostrar
para ela, estava feliz pelas fotos que eram minhas e de meus irmãos. O
velho Jacob saiu de dentro da casa com um fio de luz e começou a bater-me
fortemente e a insultar-me. Fiquei com as pernas cortadas, tiveram que me
colocar dentro de uma bacia com água e sal. Ainda com nove anos, meu
padrasto começou a abusar sexualmente de mim e eu parecia mais um
brinquedo de todos que uma criança. Meu avô Jacob me batia muito; minha
mãe, já cansada de ver o meu sofrimento, me mandou para a casa de uma
tia em outra cidade, a duas horas dali, foi o único período normal da minha
infância. Ali ninguém abusava de mim, ia para a escola, meus primos eram
adultos e eu era a pequena da casa. Quero muito bem a essa tia, que por um
tempo foi minha mãe, me cuidou e me amou. Lhe agradeço muito, mas foi
um espaço de tempo que durou muito pouco, depois de um ano minha mãe
veio me buscar. Aquele ano conheci o meu pai biológico, ele veio porque
minha mãe necessitava do divórcio para poder se casar com meu padrasto,
ela não só conseguiu o divórcio, como também tirar do meu pai a pátria
potestade. Mudaram meu sobrenome, agora tinha duas certidões de
nascimento, cada uma com sobrenome diferente e pais diferentes. Apenas
vi o meu pai por alguns momentos, não mais. Ele me abraçou, mas para
mim era o mesmo que abraçar um estranho, não senti nada. Minha irmã era
muito pequena e sentia a minha falta, pelas manhãs ia para a escola,
quando chegava em casa preparava a comida para meus irmãos, na época
tinha onze anos; pelas tardes lhes cuidava, limpava a casa. Minha mãe dava
aulas pela manhã e pelas tardes e à noite ia para a Universidade. Nós
vivíamos na garagem ainda, aquilo não era viver: era um inferno. Mais
tarde nos mudamos para um apartamento que tinha só um quarto. Ali
dormíamos meus irmãos e eu, meu padrasto e minha mãe dormiam na sala.
Ele trabalhava das duas da tarde às doze da noite, e minha mãe fazia ainda
os mesmos horários. Agnes ficava no jardim de infância pelas tardes e eu
levava o meu irmão para a escola e depois ia estudar. Um dia, já havia
tomado banho e estava pronta para ir à escola, o uniforme era azul e
branco, meu padrasto estava com raiva porque eu havia me esquecido de
lavar a leiteira que estava dentro do forno com água, para que fosse mais
fácil de lavar, ele derramou tudo em cima de mim, afundando a leiteira na
minha cabeça com aquela água velha e suja que cheirava mal com sobras de
comida.
— Você é uma porca suja. Não te disse que a lavaras?
— Desculpa, por favor, não me bate, eu esqueci dentro do forno —
as lágrimas se mesclavam com a água suja.
O terror que senti, a agonia, enquanto me dizia tudo aquilo, me
pegava e afundava na minha cabeça, não podem medir. Não lembro se
aquele dia fui para a escola. Tem coisas que quero recordar e não posso;
penso que é um mecanismo de defesa do meu cérebro, que tenta me
proteger. E cada palavra que escrevo é sinônimo de dor e lágrimas. Se faz
cada vez mais difícil terminar este livro, mas eu conseguirei.
— Você é uma imprestável. Jamais vai ser alguém na vida, você é
uma porca, suja, você me dá asco.
Eu era somente uma menina sem infância e com muitas
responsabilidades.
O tempo passava lentamente e as coisas para mim não mudavam,
seguiam os abusos e, para ajudar, minha mãe estava se convertendo em
uma alcoólatra. Meu padrasto era tão pouco escrupuloso que quando
minha mãe bebia demasiadamente e dormia, ali mesmo, com ela estando
na mesma cama que eu, vinha me buscar e eu não podia dormir em paz.
Sempre com medo, as noites para mim eram de amargura e agonia. Nos
mudamos de casa, graças a minha mãe compramos uma casa através do
financiamento do governo federal e, pouco a pouco, íamos fazendo por
partes. Um dia meu padrasto chegou em casa com um cartaz de publicidade
de um baile de fim de ano que a empresa onde ele trabalhava fazia todos os
anos. Eles contratavam uma banda para o baile e, para minha surpresa, a
banda daquele ano era a do meu pai. Os papéis haviam se invertido. Ele que
era pobre, mas pobre de verdade, havia ficado rico, e minha mãe que era
rica, mas muito rica, havia ficado pobre. Eu já tinha quatorze anos. Ali, vi a
oportunidade de conhecê-lo melhor e também de escapar do pesadelo.
Fomos ao baile, minha mãe me apresentou ao meu pai e aos meus tios.
Todos nos receberam muito bem, e quando acabou o baile vieram todos à
casa da minha mãe para tomar o café da manhã, e nesse dia pedi a minha
mãe que me deixasse ir com eles:
— Mamãe, por favor, me deixa ir com meu pai, quero conhecê-lo.
— Não, você quer ir porque viu que eles são ricos.
— Não, mamãe, te juro que não.
— Eu sei que você quer ser cantora e gosta de dançar.
— Sim, eu gosto, mas não quero ir por isso, só quero conhecer o meu
pai, por favor, deixa-me ir.
Não podia dizer-lhe a verdade, porque meu coração sabia que ela
não ia acreditar e eu jamais me equivoquei com minhas intuições... jamais.
Depois de tantas discussões, já desesperada, lhe contei a verdade no meio
de lágrimas. Como já pressentia, ela não acreditou, eles partiram e eu fiquei
com um pesadelo pior ainda. Na manhã seguinte, meu padrasto me levou
para escola de carro. Confesso que esse dia cheguei a pensar que ele ia me
matar.
— Estás louca? Como você foi capaz de contar tudo para a sua mãe?
Você sabe que ela está doente, que tem depressão. Você sabe que ela bebe.
Que você quer fazer? Quer matá-la? Se eu sei que você gosta do que eu te
faço.
Ele me batia enquanto gritava, dirigia como um louco, era um
monstro, estava me violando psicologicamente, me coagindo, me
manipulando, tentando fazer-me sentir culpada; aquilo foi horrível, uma
tortura. Ele tinha uma mente pérfida e manipuladora. Eu chorava
desesperadamente, já não tinha para onde ir, minha mãe não acreditava em
mim, ela estava completamente cega, apaixonada, tinha dois filhos com ele
e isso pesava muito. Mas minha mãe começou a sondá-lo pelas noites e uma
semana depois ela flagrou ele no meu quarto quando ele ia pôr as mãos em
cima de mim. Confesso que senti sair um peso das costas, quiçá da alma...
Por um lado, estava feliz porque ia acabar esse pesadelo e, por outro, triste
por meus irmãos, porque para eles seu pai era perfeito. Desejei ser sua filha
de sangue para que ele me tratasse igual aos meus irmãos. Eu sabia o triste
que era não ter um pai e não queria que meus irmãos sofressem, e também
estava angustiada por minha mãe, que teria que começar tudo outra vez.
Mas me equivoquei:
— Anastásia, quero falar contigo.
— Sim, diga-me, mamãe.
— Sei que o que teu padrasto fez é uma coisa terrível, mas eu tenho
dois filhos com ele e tenho que pensar neles.
— Que a senhora vai fazer, mãe?
— Te vou levar para São Paulo para casa do meu irmão, para que
vivas com ele e com sua família.
— E por que não me manda para a casa do meu pai?
— Porque não te acostumarias a estar com eles.
— Mas posso tentar, quero conhecer o meu pai, e meus parentes.
— Já está decidido, você vai para São Paulo, para casa dos teus tios.
Uma vez mais, minha mãe não lutou por mim, não me defendeu, me
colocava aqui e ali como uma peça de xadrez, por não dizer como um objeto
que está molestando; passei toda minha vida, desde os dois anos, jogada de
um lado para outro. Foi uma fase difícil. Meu tio tinha três filhos e minha tia
era uma mulher fria e estranha, era normal que tratasse melhor os seus
filhos que a mim. Meu pai, uma vez ou outra, me enviou algo de dinheiro
para ajudar os meus tios com meus gastos. Adaptar-me à nova escola, aos
novos amigos… Eu não era menina, não era mulher, estava totalmente fora
de lugar, psicológica e fisicamente, naquele caminho quase me perdi... Me
sentia só, usada, abandonada, depreciada. Tentava não pensar na atitude da
minha mãe, jamais a julguei, antes de qualquer coisa, ela era minha mãe, a
amava, a respeitava, mas para mim jamais foi uma mãe de verdade; porque
uma mãe de verdade defende os seus filhos de qualquer forma custe o que
custar. Depois de um ano e meio veio me buscar e me disse que tinha
saudades e que se eu podia perdoar meu padrasto. Ali me dei conta que de
verdade minha mãe estava doente:
— Como estás, Anastásia?
— Bem, mamãe, e a senhora?
— Bem, vim te buscar, tenho saudades.
— Eu também tenho saudades, da senhora e dos meus irmãos.
— Sabe? Penso que você deve perdoar teu padrasto, pois sabe como
é; eu sou seis anos mais velha que ele e você é igual a mim quando eu era
jovem e penso que ele me viu em você.
Não disse nada, não tive palavras, ela estava muito mal, estava
totalmente desequilibrada. Peguei minhas coisas para voltar para casa, ao
menos tinha o consolo de que ele não me molestaria mais.
Me equivoquei outra vez. Os abusos não pararam até que, quando já
estava com dezessete anos, um dia saltei da cama e lhe ameacei denunciá-lo
para a polícia. Jamais contei para meus irmãos, não queria que eles
soubessem que o pai que eles tanto amavam era um grande filho da puta.
Eles souberam mais tarde, quando meus pais se separaram, mas souberam
da boca da minha mãe. Eu amava muito os meus irmãos e tentei protegê-
los de todas as maneiras. Mais tarde, quando fiz 18 anos, fui passar as férias
com meu pai, mas as coisas não foram bem. A cultura machista dos ciganos
é opressora. Entendo por que minha mãe o deixou e, depois de tantos anos,
recuperar o afeto e o tempo perdido é impossível. Depois, mais tarde,
quando me separei, busquei a ajuda do meu pai e ele negou a mim e aos
meus filhos. Faz treze anos que não falo com ele, ainda que às vezes eu
gostaria de saber como reagiriam a família Barreto, os conhecidos e
poderosos “Supercap”, se soubessem que exerci a prostituição para
sobreviver. Voltei para minha cidade e entrei na universidade, naquela
época fazia parte do movimento escoteiro, ali conheci quem seria meu
futuro ex-marido.
A tristeza e a dor que levava dentro de mim eram meus fantasmas,
os que me acompanhavam em toda parte, é difícil conviver com um
passado que está presente, muitas pessoas dizem “passado é passado”, que
tem que apagá-lo, não nos é fácil, ainda mais quando se trata de vivências
fortes, mas se o passado não houvera importância, não existiriam os
karmas… e não nos preocuparíamos com que nossos filhos tivessem um
desenvolvimento piscoafetivo normal. Um dia me esqueceram em casa
sozinha, parece coisa de filme, mas não é, literalmente me esqueceram.
Certamente, ocorreram muito mais coisas que não relato aqui.
No Huracán conheci Miguel Ángel, que se converteu em um dos
meus clientes habituais. Quando ele via que eu estava mal, me pagava a
noite e me dizia para ir para o quarto dormir, muitas vezes era difícil
esconder as lágrimas que vinham involuntariamente. Faltava um mês para
o aniversário de Yuri e eu já tinha o resguardo da identidade em minhas
mãos:
— Olá, meu menino, como você está?
— Bem, mamãe, mas tenho muitas saudades.
— E eu de você, como está Johann?
— Está bem, mamãe, ele também está com muitas saudades.
— Eu sei, meu filhote, eu sei. Mas o que que foi? Te vejo um pouco
triste.
— Não, mamãe, é que eu gostaria muito que você estivera aqui no
meu aniversário.
— Eu também quero estar contigo neste dia, não te prometo nada,
mas se posso irei.
— Obrigado, mamãe.
— Você não tem que me agradecer, eu sim que tenho que agradecer
pelos filhos que tenho. Te amo, Yuri.
— Eu também te amo, mamãe.
— Agora, passa-me com teu irmão.
— Ele está dormindo.
— O.k., mais tarde eu ligo para falar com ele.
— De acordo, mamãe. Te amo.
— Eu também te amo.
Meu coração se partiu quando ele me disse que gostaria que eu
estivesse no seu aniversário, aquilo me destruiu totalmente. Já não podia
trabalhar com tanta tristeza, tinha vontade de vê-los. Johann necessitava de
mim, pois era autista, mas minha mãe e eu, com muito amor, lhe aplicamos
técnicas de ludoterapia e, pouco a pouco, conseguimos muitos e bons
resultados com ele. Eu tinha uma experiência de quatro anos trabalhando
com crianças com problemas psicológicos e minha mãe quinze. Por
casualidade, o tema que mais gostei em psicologia infantil foi o autismo, os
meus trabalhos foram todos sobre esse tema.
Aquela noite veio Miguel.
— Olá, Anastásia, como estás? Não te vejo muito bem hoje.
— Desculpa, Miguel, é que estou um pouco triste.
— Que aconteceu?
— Falei com meus filhos e o maior estava muito triste, me disse que
gostaria que eu estivesse no seu aniversário, mas não tenho dinheiro
suficiente para ir em novembro e devo pegar a identidade. Pensava ir em
dezembro para passar o Natal com eles, mas já não posso mais.
— Não te preocupes, te pago a passagem para que vaias ao
aniversário do teu filho.
— Estás brincando?
— Não, não estou, jamais brincaria com uma coisa assim.
— Pois, muito obrigada, não tens ideia do bem que estás fazendo.
— Não me agradeça, só quero ver você e seus filhos felizes, já vai
fazer um ano que não os vês e isso é muito tempo.
— Sim, eu sei, é muito tempo.
Miguel parecia um bom homem. Estava separado da sua mulher e
trabalhava com sinalização de estradas, dizia que era engenheiro de
mobilidade. Não era bonito, mas era uma pessoa agradável e tinha um bom
coração. Estava no balcão quando se acercou um homem que levava uma
bolsa negra, me fez um sinal e eu fui falar com ele:
— Boa noite, você é muito bonita.
— Obrigada. E você muito gentil.
— Estou buscando algo muito especial.
— Pois me diga o que é, vejo se posso te posso ajudar.
— Eu gosto de sadomasoquismo.
— Ufff... O.k., mas eu gosto de bater e não que me batam. E isto custa
um pouco mais.
— Eu gosto que me batam e o dinheiro não é problema. Você tem
botas negras?
— Sim, eu tenho.
Eu jamais havia feito sado maso, mas havia visto uma reportagem,
tinha uma ideia do que era. O homem abriu sua bolsa e dali sacou de tudo:
chicotes de todas as formas, um cinturão com um vibrador, uma mordaça,
alfinetes, correntes, algemas e pinças. Tinha todo um arsenal. Coloquei as
botas e comecei a maltratá-lo; ele me pedia que lhe pegasse mais forte, me
senti mal, senti pena daquele miserável homem que estava ali ajoelhado
diante de mim; suplicando que lhe fizera dano... Era patético, mas a única
vantagem de ser dominadora era que eles não me tocavam para nada, isso
me encantava. A princípio, me molestava, depois de algum tempo aceitava
melhor a situação, mas esse homem foi meu primeiro escravo e terminou
por buscar um psicanalista. Me perguntou se aquilo era normal e eu disse
que não.
— Anastásia, crês que necessito de ajuda?
— Sim, Juan, não quero que interpretes mal, mas isto não é uma
coisa normal.
— Que crês que é isto?
— Podem ser muitas coisas, um trauma de infância ou adolescência,
um problema com tua mãe, pode também ser provocado pelo teu trabalho,
ou um reflexo das coisas que você vive no teu dia a dia, pode ser também
uma maneira de autopunição. Podem ser tantas coisas.
— Tens razão...
— Em quê?
— Necessito de ajuda. É que cada vez quero mais e mais, nada é
suficiente.
— Pois sim. Você tem que buscar ajuda e encontrar a raiz do
problema e tentar eliminá-lo.
Eu não servia para ser prostituta. Enquanto algumas garotas
estavam felizes e buscavam que seus clientes se afundassem mais em seus
problemas para que elas continuassem tirando proveito, eu lhes mandava
ao psicólogo. Quando não, eu mesma lhes servia de psicóloga. Havia muitas
garotas que estavam especializadas em trabalhar com os drogados, elas
tinham drogas para persuadi-los a subir. Levavam os clientes para o
quarto, os deixavam drogados, lhes tiravam até o último centavo, passavam
valores altíssimos nos cartões e ficavam horas e horas. Uma vez, uma
garota, Naomi, me chamou para ir ao quarto com um cliente seu. Ele estava
de coca até os olhos, pagava garrafas de champanhe e pagava 300 euros a
hora para cada uma. Mas estou segura de que ele não era consciente. Tinha
um suor frio, estava gelado, parecia que o coração dele ia sair pela boca. Ele
ficou tão mal que tive que pegar o seu carro e levá-lo ao hotel onde estava
hospedado. Era terrivelmente penoso que um homem bonito, rico e
inteligente, certamente com uma família maravilhosa, chegara a esse ponto.
Eu preferia fazer passes normais, subir e baixar mais vezes que
trabalhar com os drogados, não suportava vê-los se drogando. Insisto, é
muito deprimente, me sentia mal, me davam pena, muita pena, ficava triste,
me sentia incomoda com aquela situação. Normalmente, os clientes que
consumem drogas querem que também a garota consuma, mas eu tinha
que enganá-los e eu não gostava de fazer isso. Houve casos em que o cliente
descobriu que a garota não estava se drogando e que, em vez disso, ela
jogava fora a coca. Então o cliente a agredia fisicamente, a pegava pelos
cabelos e golpeava o rosto dela em cima do criado-mudo, esfregando na
coca e metendo à força pelo nariz e boca; ademais de castigá-la a socos, a
obrigava a consumir. Eu chamo a cocaína de pó do diabo.
Existe todo tipo de cliente, aqueles que te dão pena e aqueles os que
se tem vontade de matá-los porque são uns bastardos. Homens que te
procuram e no quarto nem te tocam, porque se vê que eles têm nojo de
você. Te pedem que coloque o preservativo, que fique de quatro. Te fodem
sem te tocar e não te deixam que os toques. Te sentes como um depósito de
espermas, é degradante.
Mas como podem ser tão asquerosos e hipócritas? Se as prostitutas
lhes dão asco, que diabos vão fazer em um prostíbulo? Que se façam uma
punheta em casa ou metam seu puto pênis dentro de um buraco. Se nota
em seus olhares como te desprezam, é uma sensação desconcertante que te
faz sentir como um lixo, como uma leprosa. Te indignas porque sabes que
ninguém deles é melhor do que você e que eles nem sequer te veem como
um ser humano. Muitas pessoas se creem imortais, esquecendo-se de que o
fim de todos é o mesmo, independente da sua condição socioeconômica ou
de seu status. Aquela semana foi tranquila, peguei o resguardo da
identidade, Miguel me trouxe o dinheiro, comprei a passagem. Estava
ansiosa e feliz, faltavam apenas três dias para partir para o Brasil, não
podia acreditar que finalmente ia abraçar meus filhos, parecia outra
pessoa.
Chegou o dia. Subi no avião. A viagem parecia não ter fim, mas
depois de duas conexões cheguei à minha cidade e peguei as minhas malas.
Ali vi os meus filhos... Eles não acreditavam que eu estava ali, e eu
tampouco. Abracei os dois ao mesmo tempo, choramos de alegria e emoção.
Tinha uma confusão de pensamentos e sentimentos, me sentia impura,
suja, e sentia vergonha de me apresentar ante os meus filhos, não sabia
como me comportar, eles não sabiam o que eu fazia, mas eu sim. Me sentia
indigna deles.
— Olá, mamãe!
— Olá! Meu Deus, como vocês estão grandes e bonitos! Quanto senti
falta de vocês! Os amo muito, mas muito.
— Nós também te amamos.
— Johann, que grande você está! Já sabe escrever?
— Sim, mamãe, eu já sei escrever o teu nome.
— Que lindo!
— E você, Yuri? Como vai na escola?
— Muito bem, vou mostrar meus cadernos para você, mamãe.
Fomos para a casa da minha mãe. Fiquei apenas sete dias, que
passaram como se fossem sete minutos. Fizemos uma festa para Yuri, ele
me disse que eu era o seu melhor presente, me emocionei e as lágrimas
rolaram, passei cada segundo junto a eles, lhes comprei tudo o que lhes
fazia falta. Dormíamos os três juntos, Yuri me enganchava com os pés
enquanto dormia e Johann com o braço em volta do meu pescoço. Eu
gostava de sentir o cheiro dos seus cabelos, ainda tinham o mesmo cheiro
de neném de quando nasceram, era como um perfume para mim.
— Mamãe, quando voltarás definitivamente?
— Quando mamãe possa comprar uma casa para nós.
— Espero que não demore muito.
— Eu também, Yuri.
— Já está chegando o dia de você ir outra vez.
— Não se preocupe, em dezembro estarei aqui, venho para passar
dois meses e quero estar no aniversário do Johann.
— Ele vai ficar muito feliz e eu também — enquanto eu falava com
Yuri, Johann estava longe, olhando o vazio.
— Johann, que foi?
— Que te amo muito. Me perdoa, mamãe, quase me esqueci de como
você era.
— Não tem que pedir perdão, faz um ano que eu fui, e você só tinha
cinco anos, meu amor. Mas não te preocupes, eu jamais me esqueci de você
e do teu irmão, sois as coisas mais lindas do mundo, para mim vocês são o
mais importante e precioso que eu tenho.
Me doeu muito escutar que meu pequeno quase havia se esquecido
de como eu era... Não tenho palavras para expressar o que senti nesse
momento.
O dia do meu retorno à Espanha foi muito duro, mas logo voltaria
para estar com eles e isso me acalmava um pouco. A despedida foi muito
difícil, eles choraram muito e eu também, só pedia a Deus que lhes
protegesse na minha ausência e que pudesse voltar logo para estar junto a
eles, desejava vê-los crescer, acompanhar suas vidas, suas descobertas,
suas conquistas, estar ao lado deles quando cometessem um erro e poder
orientar.
Quando voltei para Espanha me dei conta de que eu não vivia,
porque tinha meu corpo na Espanha e minha cabeça e meu coração
estavam no Brasil; eu estava dividida entre dois mundos distintos. Retornei
ao trabalho, era tudo igual: as mesmas garotas, os mesmos homens.
Conheci uma russa que se chamava Alona, era muito inteligente e educada,
e fizemos amizade. Foi ela que me contou a história do meu nome. Eu sabia
que Anastásia foi uma princesa, mas não que era a filha menor do último
czar, Nicolás II, e também irmã de Olga, Tatiana, Maria e Alexis, e que toda a
família havia sido assassinada. Mas existe uma teoria que sustenta que
Anastásia sobreviveu ao massacre. Alona me dizia que eu merecia o nome
que tinha, pois parecia uma princesa em todos os aspectos.
Faltavam apenas duas semanas para receber minha identidade,
voltei a Benicassim para buscar minhas coisas e me mudei definitivamente
para Pamplona, na casa de Beth, ela me alugava um quarto desde que eu
machuquei o joelho descendo as escadas do clube. Como eu não podia ficar
no clube sem trabalhar, a chamei para pedir que me deixasse ficar uns dias
na sua casa. Ela me ofereceu o quarto e eu aceitei. Cheguei a Benicassim e
coincidiu que Luís estava ali, então falei com ele, lhe disse que me mudava
para Pamplona definitivamente. Ele ficou triste, não podia crer que eu
estava partindo. Já em Pamplona, voltei para o Huracán. Trabalhava bem
ali, tinha meus clientes.
— Olá, Anastásia! Como foi tudo no Brasil?
— Bem. E graças a você, Miguel.
— Você é uma garota muito inteligente, você não encaixa aqui.
— Isto não é para sempre.
— Claro, todas dizem o mesmo. Vê a Morgana?
— Sim.
— Leva aqui como uns doze anos.
— Por Deus! Como pode suportar?
— Tenho uma proposta para te fazer.
— Que proposta?
— Uma não, em verdade são duas.
— Qual é a primeira?
— Quanto falta para você ir para o Brasil?
— Vinte dias.
— Pois eu tenho que viajar cinco dias e, quando eu voltar, eu
gostaria de passar esses quinze dias com você. Que te parece?
— Tenho que trabalhar, necessito de dinheiro.
— Te darei seis mil euros. Está bem assim? Só estaremos juntos
depois das sete, pois eu tenho que trabalhar.
— O.k., muito bem, mas você tem que me dar o dinheiro antes.
— Não se preocupe.
— E a segunda proposta, qual é?
— Quero abrir uma empresa de sinalização de estradas e quero que
você seja minha sócia.
— A troco de quê?
— De nada, apenas quero te ajudar, não posso te ver aqui, sofres
demasiadamente, vejo nos teus olhos.
— Muitas pessoas me dizem que por mais que eu sorria meu olhar é
sempre triste.
— Não estás feita para isto.
— Não posso te dar o que você quer. Eu gosto de você como um
amigo, me deito contigo porque me pagas, você é meu cliente, quero que
isso fique bem claro.
— Não se preocupe, só quero ajudar, nada mais. Tenho uma filha e
eu não gostaria de vê-la passar por uma coisa assim.
— Tenho que pensar.
— Isso faremos quando você voltar do Brasil, ali terás muito tempo
para pensar. Na próxima semana te darei o dinheiro.
— O.k., então nos vemos na semana que vem.
— Se cuida muito, Anastásia.
— Adeus e obrigada.
Miguel se foi, fiquei pensando na sua proposta, me informei com a
encarregada que o conhecia fazia muitos anos e ela me falou muito bem
dele. Qualquer coisa era melhor que estar dentro de um clube, mas deveria
estar atenta, pois afinal eu era apenas uma prostituta, o que querem é
comer-te pela cara, ou seja, de graça. Por mais que te digam que te querem,
que te amem e que te veem como uma pessoa, a verdade é que sempre vão
te ver como uma prostituta, e quando menos esperes, te jogam na cara o
que você é, o que foi. Isso é o pior que se pode fazer a uma prostituta,
escutar isso é como se te cravassem um punhal no coração e te fossem
cortando bem devagar, lentamente, enquanto te olham nos olhos. Para tirar
uma prostituta do seu trabalho, um homem tem que ter peito e, sobretudo,
uma capacidade de amar e de esquecer muito grande, deve ser muito
nobre. Uma prostituta não necessita de sexo e sim está ansiosa de amor, de
carinho, de afeto, de ser respeitada e ser vista como um ser humano. Amor
é uma palavra e um sentimento proibido para as prostitutas. Sempre digo
que Pretty woman é apenas um filme. Muitas sonham com um Richard Gere,
todas se sentem como Julia Roberts, mas por melhor e mais íntegra que
seja a garota, seu passado sempre será um fantasma na sua vida e sempre
viverá esta ameaça de um dia ter que escutar da boca de quem ama que um
dia foi uma prostituta. Imagino que esses homens que dizem apaixonados
por uma prostituta têm nas suas cabeças o constante medo de que um dia
elas lhes vão pôr um belo par de chifres, mas eles são uns tontos, porque
não sabem que o maior desejo de uma prostituta é ter uma vida normal, é
ser amada de verdade e se entregar por amor, ser de um só homem.
Os cinco dias passaram voando. Miguel veio e me deu os seis mil
euros, uma parte depositei na minha conta e a outra mandei para casa. Fui
à casa de Beth, deixei minha mala de trabalho, peguei algumas coisas e fui
com Miguel a uma pensão.
— Anastásia, este fim de semana te quero levar a um lugar especial.
— Aonde?
— A Santiago.
— Estás brincando? Não posso acreditar! Mas quero fazer o
caminho a pé.
— Não importa, se conheces a catedral antes de fazer o caminho não
passa nada, já quando você vier do Brasil e estiver com a sua empresa,
poderás fazê-lo tranquilamente.
— Sim, eu gostaria de fazê-lo com o meu irmão.
— E por que não?
— Sim, é verdade.
— Partimos esta tarde.
— Está bem.
No caminho a Santiago pensei em muitas coisas, me vinham na
cabeça lembranças, fantasmas do passado e minhas experiências
paranormais, das quais não podia falar com quase ninguém porque me
chamariam de louca. Ainda compreendo estes preconceitos, porque eu
apenas acreditava nos fenômenos paranormais porque eram parte de mim,
ocorriam comigo e, se fosse diferente, penso que eu tampouco acreditaria
nessas coisas. E se parava para pensar nesses fenômenos olhando de uma
perspectiva de expectador realmente parecia coisa de loucos.
Passei boa parte da minha vida lendo livros de todos os temas
relacionados com a paranormalidade, também livros de diversas religiões e
seitas, percorri as páginas escuras da magia negra no O livro da capa negra
de San Cipriano, passando pela magia branca, wicca, rosacruzes, maçonaria,
budismo, A fraternidade branca de Saint Germán, física quântica e
metafísica, o poder da mente… Li autores como Deepak Chopra, Osho e
Freud para poder compreender as premonições através dos sonhos, li A
religião de Platão, A analogia do bem e do mal de Kant. Brian Weiss me
emocionou muito com seus livros, fiz um longo caminho literário e prático
do mundo espiritual. Sofria uma ansiedade de um grau terrivelmente alto,
busquei médicos, tinha medo de estar louca, estava sempre recorrendo a
minha mente, buscando dentro dela coisas coerentes para ter como um
ponto de apoio. Tudo começou quando tinha apenas nove anos, aparições
de espíritos, premonições, eram muitos os eventos, também os “déjà vus”
eram uma constante, busquei várias respostas possíveis não só no mundo
místico, também busquei dentro da ciência. Era um sábado de tarde e
estávamos todos em casa, era hora de nos arrumar para ir para uma festa
de aniversário de um amigo dos meus pais e eu estava no meu quarto,
sentada na minha cama, olhando a janela insistentemente:
— Anastásia, ainda não estás pronta?
— Não, mamãe, não quero ir, quero ficar em casa.
— Você não pode ficar sozinha em casa, você tem apenas doze anos.
— Mas eu não quero ir — comecei a chorar desesperadamente
olhando para a janela.
Então veio meu padrasto:
— Anastásia, se arruma já, se não te vou bater.
Em um impulso gritei:
— Eu não vou, não quero. Não vês que vão roubar a casa?
Meu padrasto veio na minha direção, mamãe interveio evitando que
ele me batesse, me colocaram no carro e, quando descemos a rampa da
garagem, olhei outra vez a casa e lhe adverti uma e outra vez, mas o que
quase ganhei foi outro murro. Chegamos na festa, meus pais comentaram
com um casal de amigos o que havia ocorrido. Como eles eram espíritas
(Kardecistas – Allan Kardec), lhes disseram que me dessem crédito, em
menos de vinte minutos nos fomos, dando exatamente uma hora entre a
saída e a volta. Quando meu padrasto parou o carro na frente da casa, eu a
olhei e disse: “Roubaram a casa”. Ele se virou com tudo para me golpear e
minha mãe, uma vez mais, o impediu. Ele desceu do carro, nos disse que
ficássemos ali na garagem esperando e, quando voltou, olhou para minha
mãe e disse: “Roubaram a casa”. Os ladrões entraram pela janela do meu
quarto, como eu adverti, por isso a olhava insistentemente. Minhas
premonições eram demasiadamente fortes, minha família era testemunha,
também os amigos mais próximos; eram manifestações muito evidentes
que não se podiam negar. Não podia me sentar para jogar baralho com os
demais porque chegava a mim informação através dos naipes que giravam
de mão em mão, sofri muito por não poder controlar aquilo que me ocorria.
Chegou ao ponto de que me procurarem para ajudar a encontrar objetos
roubados. Eu não queria ser uma guru, uma bruxa. Tinha experiências fora
do corpo. Fiz experimentos com amigos de confiança e constatei que
realmente tinha uma força muito grande... Mas até hoje, jamais compreendi
minha missão. Por que tinha que recorrer o caminho difícil que tomava
minha vida? Busquei, de todas as formas, respostas para o que ocorria até
que cansei e comecei simplesmente a viver sem fazer mais perguntas;
assim sofria menos.
— Estás cansada, Anastásia?
— Sim, um pouco, é uma viagem longa.
— E você quer fazer a pé. Creio que te faltam alguns parafusos.
— Sim, eu também creio... Miguel, quando puder, paramos para
tomar um café?
— Sim. Enquanto possa, paro.
Me recostei e voltei a sentir aquela sensação estranha: como se
estivera em outra dimensão na qual os sucessos ocorrem muito rápido.
Existe uma teoria de que o tempo é diferente nas duas dimensões, na outra
é tudo mais rápido que na nossa.
Miguel tocou meu braço tentando me despertar para irmos tomar
um café, mas desistiu e foi sozinho. Quando saiu do carro, estando sozinha,
senti uma mão apertando fortemente o meu ombro direito, olhei para trás
e vi meu avô Jacob, o pai do meu padrasto. Estava com a roupa do seu santo
de cabeça, como se diz na umbanda, a roupa era de Xangô, o senhor da
justiça. Ele me disse: “Dê a volta na igreja sem olhar para trás, três vezes”.
Eu dei um meio passo e vi a catedral de Santiago na minha direita e na
minha frente a escuridão, veio de imediato na minha mente o ritual de São
Cipriano, um ritual com o que se faz um pacto com o diabo. Lhe disse que
não.
— Não farei. O que você faz aqui? Este não é o teu lugar. Deves ir
embora.
— Já te disse, dê as três voltas.
— Não, sai daqui, vai embora.
Eu queria que ele fosse embora, mas ele me apertava mais e mais o
ombro; tentava me mover e não podia, era agoniante. Ele me repetia uma e
outra vez: “Dê a volta; tens que dar a volta”. Comecei a rezar, pedi a Deus
que o levasse, mas nada; chamei por Jesus, e nada; então recorri ao Arcanjo
Miguel, que é quem luta constantemente contra o mal e é o responsável de
encaminhar as almas a seu devido lugar depois da morte. Foi apenas
invocar sua presença, o espírito do meu avô se foi, me deixando em paz. Só
depois disso pude me mover outra vez. Fazia muito tempo que não tinha
uma manifestação tão forte. Como já disse antes, meu avô Jacob não era
uma pessoa em que se pudesse confiar, era uma pessoa hipócrita, que
usava sua religião para se aproveitar dos outros. Desde sua morte, muitos
membros da família tinham sonhos e pesadelos com ele como protagonista.
Como era um homem que não havia se comportado muito bem na sua vida
terrena, creio que não estava tendo paz por mais que fizessem orações por
ele. Segundo a lei do karma, devemos pagar por nossos erros, existem
espíritos que não conseguem encontrar a paz depois da sua desencarnação
pelo feito de ficarem desorientados pela não aceitação da morte do seu
corpo. Esse é um tema muito delicado e complexo, não quero aprofundar-
me agora nele. Miguel me perguntou o que me passava e expliquei, mas ele
ficou um pouco receoso, crendo e não crendo. Sempre me perguntei se o
feito de ter que exercer a profissão mais antiga do mundo era um karma a
ser pago ou um erro desta vida e que deverei pagar na próxima, mas até
hoje não obtive resposta. Finalmente, chegamos a Santiago. Era tarde e
chovia a cântaros. As ruas de pedra brilhavam com a água e o reflexo das
luzes, a magia que corria por toda a cidade, era embriagadora.
— Anastásia, amanhã pela manhã vamos ver a catedral.
— Eu quero ir agora.
— Mas está chovendo e você vai se molhar.
— Não estou feita de açúcar e as roupas se secam.
— Você é terrível!
Parada em frente à catedral, debaixo da chuva, estava sozinha no
meio da praça contemplando uma das mais belas expressões de fé e de
amor. A emoção me inundou a alma, é difícil explicar o que eu senti... Uma
mistura de amor, paz, alegria, admiração e respeito… Era uma espécie de
êxtase divino. Cheguei a pensar na possibilidade de que visitar a catedral
antes de fazer o caminho me iria tirar a vontade de fazer o percurso depois,
mas me enganei. Com a visita, meu desejo se intensificou mais ainda,
desejava mais que tudo. Algo muito forte dentro de mim me pedia. Não sei
explicar por que o tema do caminho sempre esteve tão latente dentro de
mim. A única coisa que eu sabia naquele momento mágico era que, sim, o
caminho tem muita magia e encanto, eu logo estaria nele. Ou melhor,
sempre estive, mas não sabia.
— Estás contente, Anastásia?
— Sim, muito. Isto é o céu.
— Vai fazer o caminho de verdade?
— Sim. Andando.
— Mas se acabas de fazer de carro! Tem gente que faz em bicicleta
ou em moto.
— Eu sei, mas um peregrino caminha e é o caminhar o que te faz
encontrar a ti mesmo. Sem sacrifícios, sem entrega, não terás este encontro.
Passamos o fim de semana em Santiago, recorri suas ruas estreitas,
antigas e cheias de energia, uma energia que contamina o espírito. Estive
sentada na praça vendo chegar os peregrinos realizando seus sonhos.
Sonhos que no pouco tempo que eu os observava, compartiam comigo
inconscientemente, me vi em cada um deles.
Voltamos para Pamplona. Os quinze dias passaram voando. E,
finalmente, fui para o Brasil para estar dois meses com meus filhos, ainda
não tinha dinheiro suficiente para comprar uma casa. Na minha casa
ninguém tinha carro, e comprei um, assim podíamos ir buscar os meninos
na escola. Antes pensava que um carro era um luxo, mas não, é uma
necessidade, sempre fui uma pessoa desapegada da matéria, jamais
comprei uma coisa sequer que fosse de marca. Eu dormia com meus filhos
todas as noites, como de costume, cada um de um lado. Yuri me enganchava
pelas pernas e Johann pelo pescoço. Não os deixei nem um só minuto,
foram dois meses maravilhosos. Me levantava cedo, fazia o café da manhã
como eles gostavam, íamos caminhar pela praia pelas manhãs e, às vezes,
também pelas tardes. Este era o meu paraíso: estar à beira-mar com meus
filhos. Era uma bendição vê-los jogarem. Preparar a comida preferida deles
me fazia sentir plena, cozinhava com muito amor, fazia bolo de chocolate,
que é o bolo preferido deles e também o meu. Pela noite, quando dormiam,
eu ficava observando eles, admirando-os e pedindo a Deus que os
abençoasse, que iluminasse seus caminhos e que fizesse deles homens
nobres e de valor, Lhe agradecia por ter filhos tão maravilhosos, com saúde
e perfeitos. Mas, infelizmente, tinha que voltar, ainda não havia alcançado
meus objetivos. Ademais, estando ali no Brasil me dei conta de que eles
necessitavam mais que amor para viver. É triste: pertencer a uma
sociedade onde, muitas vezes, temos que submetermos a certas coisas para
poder cobrir as necessidades básicas dos nossos filhos e as nossas, saúde,
casa e educação...
A despedida como sempre foi difícil. Chorei muito e eles também;
seus olhos estavam vermelhos e cheios de lágrimas, me abraçavam forte,
como se quisessem me reter ali... Cada despedida era um pesadelo...
De volta à Espanha, Miguel veio me buscar na casa de Beth para
jantar, queria falar comigo.
— Como foi a viagem?
— Bem, mas a despedida foi muito dura.
— Imagino. Deixar os meninos é muito difícil para você.
— Sim, é muito... Perdão, mas prefiro não falar disso.
— Não quero que volte a trabalhar na noite, você não está feita para
isso.
— Eu sei, mas que eu vou fazer. Agora que tenho documento posso
trabalhar em algo normal, mas o salário não dará nem para pagar o aluguel.
— É por isso que quero abrir a empresa contigo. Eu cuido das obras
e você da parte administrativa e contábil.
— Mas não tenho dinheiro para investir.
— Não te estou pedindo que o faça, farei tudo eu.
— Por que você está fazendo isso? Sabe que eu te tenho como um
amigo e que não passará disso.
— Apenas quero te ajudar, e não posso te ver mais ali.
— Pois, se estás fazendo de coração tal e como me diz, te agradeço
muito.
No dia seguinte, fomos ao tabelião para constituir a sociedade. Ele
ficou com quarenta e nove por cento e eu com cinquenta e um. Fomos ao
registro mercantil, alugamos um apartamento que tinha dois quartos: um
para o escritório e o outro para que eu pudesse viver ali, já que Miguel vivia
em Zaragoza. As coisas estavam saindo bem.
No Brasil, meu irmão — pai de um bebê — ficou sem trabalho.
Miguel me propôs trazer ele para trabalhar com nós na empresa. Então,
falei com ele e me disse que queria vir dentro de um mês, porque tinha que
deixar uns assuntos resolvidos antes de partir. Escolhemos San Sebastián
como sede da empresa, pois decidimos que era o melhor lugar para viver e
para exercer o ofício.
— Que te parece, Ricardo? Você gosta da Espanha?
— Sim, é muito bonita.
— Logo te habituarás às pessoas e ao clima.
— Anastásia, como é o Miguel?
— Parece uma boa pessoa, mas não confio totalmente nele... Não sei,
mas minha intuição me diz que devo ter cuidado.
— Ele te ajuda muito.
— Sim, diz que simplesmente é porque quer ajudar-me, mas
suspeito que seja uma forma de me manter perto, um intento para
conquistar-me.
— Pode ser.
— Mas eu deixei as coisas bem claras.
— Você fez bem...
— Ricardo, estás preparado para o caminho?
— Sim, estou. E você?
— Sim, começaremos dentro de duas semanas; enquanto isso, te vou
mostrar a cidade e te vou pôr a par do trabalho, que pode ser um pouco
duro.
— Eu imagino, mas isso não é problema. Você sabe que na nossa
família jamais ninguém teve medo de trabalho.
— Claro que sei.
Meu irmão logo se deu conta de que a vida na Espanha era bastante
dura por muitas razões: racismo, cultura, adaptação ao clima, a tudo,
inclusive à mudança de alimentação. E estar longe da família. Me perguntou
muitas vezes como suportei estar sozinha tanto tempo e sempre respondi
que era necessidade e que o amor que eu tenho pelos meus filhos me dava
forças.
Começamos a nos preparar para o caminho de Santiago. Para nós,
fazê-lo não seria difícil, pois havíamos sido escoteiros no Brasil. No
movimento, aprendemos muitas coisas, desde arrumar uma mochila até
implementar técnicas de sobrevivência, as mesmas do exército, pois no
Brasil os escoteiros devem estar muito bem preparados já que fazem parte
da Defesa Civil do país. Em caso de inundações e catástrofes, devem ajudar
a prestar serviço social. Nos divertíamos e, ao mesmo tempo, aprendíamos
disciplina, amor ao próximo, solidariedade, união, humildade e respeito por
toda forma de vida existente na Terra.
Eu estava radiante, muito feliz por poder fazer o caminho depois de
doze anos sonhando com ele e, por fim, tinha a possibilidade de encontrar
as respostas para as minhas perguntas, encontrar um sentido para minha
história; mas o que eu não sabia é que o caminho te engancha, ele penetra
nas veias. Não era apenas feliz por poder fazê-lo, senão também porque
fazia com meu irmão e a verdade é que o caminho está feito para recorrê-lo
com pessoas que realmente são importantes para ti. Me sentia uma pessoa
normal, andava pelas ruas sem vergonha, sem culpa e sem medo, e tudo
isso era porque já não estava trabalhando nos clubes. Os danos psicológicos
que causa esse trabalho são muito profundos, tenho marcas em minha alma
que sei que jamais se apagarão; a dor física passa, mas a outra fica gravada,
na memória, na alma...
No dia 15 de agosto de 2002 saímos de San Sebastián em direção à
França, a San Jean Pierre du Port. Dormimos ali. Pela manhã, às seis,
iniciamos o caminho. A primeira etapa era em subida: vinte e sete
quilômetros, dos quais vinte e três eram íngremes, os famosos Pirineus,
com suas paisagens exuberantes. Creio que quem faz essa etapa sem
problemas chega a Santiago seguro, pois é a mais dura, ainda que também
seja maravilhosa. Estava escuro, caminhávamos com muito cuidado, as
brumas não deixavam ver nada e a lanterna pouco ajudava, pois a névoa
era muito densa. Havíamos caminhado uns dois ou três quilômetros
quando meu irmão me disse:
— Vem atrás de mim, bem perto, porque não se vê nada.
— O.k., não te preocupes, aqui estou, bem detrás de ti, colada, assim
não nos perdemos.
Apenas terminei de falar, tudo aconteceu muito depressa. Só escutei
o tilintar de sinos por todos os lados, meu irmão caiu em cima de uma
ovelha e eu caí em cima dele, nós dois acabamos sentados no monte.
Olhamos ao redor: estávamos cercados de ovelhas, no meio de um rebanho.
Começamos a rir, que forma de começar o caminho, conosco não podia ser
de outra maneira.
— Ricardo, que começo de caminho!
— Sim, sim. Bom, isto Paulo Coelho não contava no livro.
— Seguro que encontraremos muitas coisas que ele não contou.
— Ha, ha, ha. Bom, a ver se encontramos nosso guia espiritual
interior, pois as ovelhas já as encontramos.
— Sim, mas creio que cair entre as ovelhas não estava previsto em…
esta busca espiritual... ha, ha, ha.
— Um acidente de percurso, sempre tem em todos os caminhos.
— E faz mais emocionante e divertido.
Me sentia aliviada, livre, com um grande sentimento de humildade.
Me sentia agradecida por estar ali, queria purificar minha alma, meu corpo,
meus pensamentos... Depois dos primeiros sete quilômetros, encontramos
uma cruz no caminho, sinalizando que ali morreu um peregrino. Essa era a
primeira de muitas, se poderia escrever um livro somente dos mortos do
caminho. A etapa de Saint Jean é duríssima, se sai de duzentos metros
acima do nível do mar para subir a mil e quatrocentos em apenas vinte e
sete quilômetros, e logo se baixa um pouco a novecentos metros, mas só
nos últimos cinco quilômetros. Parávamos quando nos sentíamos cansados,
bebíamos água, observávamos a natureza, um presente de Deus que a
maioria não sabe amar nem respeitar. Finalmente, chegamos a Roncesvalles
quase mortos. As pernas tremiam... A etapa foi muito dura, pegamos
lugares para dormir, nos banhamos e assistimos à missa de bendição do
peregrino. Era tudo tão mágico… os sacerdotes levavam sotainas brancas
com bordados dourados, a missa foi celebrada em vários idiomas, de
acordo com as nacionalidades de quem faziam o caminho naquele dia. Não
tenho palavras para descrever o que sentia naquele momento... Eu estava
em estado de êxtase ao ver tanta gente de praticamente todas as partes do
mundo, de todas as religiões, seitas, filosofias, crenças, gente de todas as
cores, de todas as raças e culturas... Todos unidos com o mesmo objetivo:
levar sua fé até Santiago. No caminho, todos somos iguais, não é necessário
saber falar a mesma língua para ser solidário, com apenas um olhar tudo
fica claro... No caminho se aprende que “para viver, necessitamos pouco e
para morrer, nada”. Que estamos feitos do mesmo barro, que nossas almas
têm as mesmas necessidades, que todos queremos o mesmo... Te faz
reconhecer teus erros e te faz mais forte porque te põe cara a cara contigo
mesmo... Te abre o coração e te desnuda a alma, toca tuas emoções e
temores mais profundos. Tira o que está escondido, te faz chorar, rir, amar,
odiar, te faz sentir vergonha de ti mesmo e do Criador. Te faz sentir como
uma criança que necessita de amor, orientação e proteção. Depois dessa
desordem emocional que te provoca, te faz ressuscitar mais limpo, mais
puro, e então te sentes agradecido, te sentes amado e protegido. Jamais li a
Bíblia completa, mas do pouco que li pude ver que a passagem mais bela,
mais completa e perfeita é a Carta a Coríntios 1:13, se as pessoas fossem
capazes de compreender a profundidade destas palavras, veriam que o
resto da Bíblia sobra, inclusive os dez mandamentos:
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse
amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine. E ainda que
tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e
ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não
tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse todos os meus bens para
sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado,
e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno;
o amor não é invejoso; o amor não se vangloria, não se ensoberbece, não se
porta inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses, não se
irrita, não suspeita mal; não se regozija com a injustiça, mas se regozija com
a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais
acaba; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão;
havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte
profetizamos; mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será
aniquilado. Quando eu era menino, pensava como menino; mas, logo que
cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos
como por espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço
em parte, mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente
conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança, o amor, estes três; mas
o maior destes é o amor.”

O amor é a base e a cura de tudo; é a razão de tudo, é a manifestação
do incondicional, do perfeito; não é por menos que Henry Drummond
chama o amor de “O Don Supremo” em seu livro.
Dormimos em um povoado depois de Zubiri, Lazarroña, e pela
manhã partimos em direção a Pamplona, dormimos em Cizur Menor e
seguimos a Puente la Reina. Esta também é uma etapa muito dura. Tens que
subir o Alto del perdón: subir não é nada, o pior é baixar, é onde se começa a
conhecer as pedras do caminho de Santiago, que são uma autêntica tortura.
A paisagem bucólica desde o Alto del perdón é relaxante e vês que Deus tem
sido generoso conosco permitindo que habitemos em um planeta tão
perfeito e tão maravilhoso. Mas quando começas a baixar o Alto, que é
muito íngreme, se esquece de todas as maravilhas, demoras mais descer
que subir, e tens que fazer de costas, senão destroças os joelhos. Eu digo
que no Alto del perdón só estás perdoado uma vez que o tenhas baixado,
porque o sacrifício está todo ali, na sua inclinação, nas suas milhares de
traiçoeiras pedras soltas. Baixando o Alto se esquece da pureza, da nobreza,
e de toda a fé e devoção, começas a escutar e dizer palavrões todo o tempo
e em todos os idiomas…
Os dias passaram muito rápido, chegamos ao albergue de Estella-
Lizarra e dali deveríamos seguir para Los Arcos no dia seguinte. Miguel me
chamou e foi nesse momento quando comecei a conhecê-lo de verdade.
— Escuta, quando vão terminar esse puto caminho?
— Não estou entendendo, Miguel, do que você está falando?
— Eu aqui trabalhando como um burro e vocês a desfrutar do
passeinho.
— Mas você sabia muito bem que eu queria fazer o caminho, o trato
era que meu irmão faria comigo, e depois começaríamos a trabalhar.
— Pois não me interessa, quero que voltem para San Sebastián já.
— De verdade, você não tem palavra. Que classe de homem você é?
— E você? Que classe de mulher é?
— Pois cala-te e não fale assim comigo, porque você conhece muito
bem minhas condições e jamais te enganei, jamais te menti.
— Deixa de sandices e venham para casa trabalhar.
— Amanhã de manhã chego a San Sebastián e falamos.
Comecei a chorar. Falei com meu irmão e decidimos voltar. Eu sabia
que tudo era demasiadamente bom para ser verdade, sou uma pessoa que
não prometo nada do que não possa cumprir e se digo uma coisa, a faço.
Jamais gostei de enganar ou fazer as pessoas de bobas, sempre tive meus
valores muito claros: “não faça nem desejes aos demais aquilo que não quer
para você”. Não estava acostumada a um comportamento assim. Sem mais
nem menos, Miguel me liga e diz que tenho que voltar para casa, sem mais,
gritando como um louco. Agora tinha motivos para estar mais atenta, pois
agora era diferente, tinha meu irmão comigo e me sentia responsável por
ele, não queria que lhe sucedesse nada.
Pela manhã pegamos o ônibus em direção a San Sebastián.
Chegamos a casa, estava tudo bem. Entrei no escritório e não vi nada
anormal.
— Diga.
— Onde vocês estão, Anastásia?
— Onde crês que estamos? Em casa, é lógico.
— Mas eu estava brincando.
— Brincando? Pois não me parecia nenhuma brincadeira quando
me falou naquele tom.
Depois de meia hora Miguel chegou na minha casa. Meu irmão e eu
estávamos lavando nossas roupas, comecei a ver a contabilidade da
empresa e a controlar o trabalho.
— Olá, como estão?
— Serás idiota? Depois de me tratar como me tratou, me fazer
abandonar o caminho, para agora vir com esse sorriso amarelo na cara!
— Não fica com raiva, Anastásia, não pensei que você ia levar a sério
tudo o que eu te disse.
— Estás louco, não se joga assim com as pessoas, fazendo meu
irmão e eu de bobos.
— Desculpa, amanhã pela manhã os levo aonde haveis parado o
caminho.
Depois que ele foi embora, fiquei com meu irmão, jantamos, nos
banhamos e novamente arrumamos as mochilas para na manhã seguinte
recomeçar o caminho. Miguel jamais havia tido uma mudança de humor tão
radical antes.
— Anastásia, que bicho mordeu Miguel?
— Não sei, a única coisa que sei é que este é um comportamento de
loucos.
— Alguma vez ele havia se comportado assim?
— Não, é a primeira vez, mas devemos estar atentos, é bom comigo,
mas meu coração me disse que devo estar alerta.
— Sim, você tem razão, ele não me parece muito normal.
— O que ele fez ontem... é que... não tem explicação.
Finalmente, voltamos a Estella, Miguel nos deixou no albergue dos
peregrinos, assim não saltaríamos nem um centímetro. Ele me prometeu
que não faria mais aquilo e que nos deixaria fazer o caminho em paz. Eu já
via que aquela história acabaria mal, mas suportar ele era melhor que
suportar muitos homens diferentes me tocando a cada dia, me dava medo
ter que voltar para os clubes. Voltar a essa rotina humilhante, esgotadora e
deprimente de todos os dias, despertar, comer, se arrumar e pintar a cara
para a guerra. Os salões dos clubes eram campos de batalhas cruéis porque
estavas sozinha: todos ali eram teus inimigos; de um lado, o pessoal dos
clubes que te tratavam como uma merda, as garotas que eram pior que
serpentes, a falsidade e a inveja imperavam; por outro, os clientes eram
como incógnitas porque jamais sabias o que ias encontrar detrás de cada
um, pois ali todos usavam máscaras. Me sentia mal só de pensar em ter que
voltar para aquilo... Tinha medo, minhas mãos começavam a suar, me dava
taquicardia, tremia... Eram os típicos sintomas psicossomáticos da
ansiedade, e isso me preocupava porque aos dezessete anos tive minha
primeira crise de ansiedade e fui diretamente para o hospital, estive
tomando psicotrópicos fortes por dois anos com controle médico, e não
queria voltar a viver aquela mesma situação porque a única diferença entre
os psicotrópicos e as drogas é que os primeiros receitam os médicos.
Mas era normal que me ocorrera isso por causa da pressão de
levantar todos os dias sem saber o que ia acontecer, sem saber se vás
ganhar dinheiro, sem saber se ao final conseguirás sair dali antes de
enlouquecer, antes de perder tua própria identidade, antes de te converter
em uma morta em vida ou antes de que te sucedera algo grave. É mais
importante saber sair de um clube que entrar. No caminho, combati contra
mim mesma, ele me fez ponderar, me fez sentir vergonha, sentir-me suja,
indigna de pisar a terra pela qual caminhava, pensei em todas as mulheres
que foram assassinadas e pensei em seus filhos e em suas famílias. Eu não
queria acabar assim.
Caminhávamos de seis a oito horas diárias, e como meu irmão era
mais rápido, ele ia a seu passo e eu ao meu; eram nesses momentos de
solidão que me encontrava em plena natureza sozinha com Deus. Este
enfrentamento consigo mesmo é muito forte e te pode levar à loucura, é
onde você começa a buscar e a rebuscar a consciência com medo de romper
o frágil fio que existe entre a razão e a loucura. Não é tão simples
reconhecer teus erros e teus defeitos, tem que ter muita coragem e muita
humildade para assumir, e mais força ainda para perdoar a si mesma e
perdoar a aqueles que, ao longo da tua vida, te fizeram dano. Não tem nada
pior que sentir vergonha de si mesmo, necessitas muito valor para voltar e
recomeçar... Me sentia suja ainda... Esperava, em qualquer momento,
receber uma bendição que me lavasse a alma. O caminho se adapta à
necessidade de cada um. Ele nos dá tudo o que necessitamos, comida, água,
amor, confissão, perdão, redenção e também te ensina tudo o que
necessitas aprender, basta interpretar as mensagens e os sinais, basta
saber reconhecer os anjos do caminho, e para chegar a tudo isso apenas é
necessário ter um coração e uma mente aberta, e muita humildade, para
poder receber com sabedoria o que chega até você.
Decidi escrever este livro quando a escritora uruguaia Isabel Pisano
publicou seu livro. Ao ler “Yo Puta” me comovi com seu interesse por fazer
chegar até as pessoas o que estava acontecendo e ainda acontece com
milhares de meninas, adolescentes e mulheres, percebi que as garotas em
suas entrevistas não contavam a verdade. Detrás de cada palavra delas
havia algo estranho, eu sentia, intuía e de alguma forma sabia, porque
também vivi essa dura realidade que é a prostituição. Creio que não dizem
a verdade por medo. Tem algumas que, para não se sentir inferiores, dizem
gostar de estar ali e se escondem detrás de um personagem que elas criam
para poder sobreviver, mas eu sei que, no fundo, ninguém quer estar ali,
fazendo o que estão fazendo. Conheci garotas que me davam pena, minha
alma se consumia de ver velhos sebosos tocando jovens que pareciam mais
bem suas netas, me dava vontade de vomitar e também de matá-los. Alguns
tinham consciência e valor e evitavam ir para a cama com as garotas muito
novinhas. As garotas que chegavam novas e que nunca haviam trabalhado
antes, essas lhes encantavam as ratas velhas de clube, pois com elas faziam
o que queriam, sendo que elas não sabiam trabalhar ainda e que não
conheciam o que se enfrentavam. Um dia escutei uma garota falando com a
sua amiga, lhe dizia que os seus clientes ela os tratava muito bem e que
para não perdê-los lhes concedia todos seus desejos. Aquilo me pareceu
uma das coisas mais estúpidas que escutei dentro de um clube. Uma
mulher tem todo o poder sobre um homem se ela quiser; ser uma
prostituta não é deixar que te façam de tudo, e sim é cobrar bem e fazer o
que queiras com eles, fazendo o cliente sair feliz e contente... Têm muitas
garotas que se submetem a tudo por pouco. É um absurdo com todos os
riscos que se correm exercendo esse trabalho.
Quanto mais caminhava, quanto mais me acercava de Santiago,
tinha mais necessidade de confessar-me, precisava falar com alguém, mas
ainda não havia conhecido a pessoa certa. O feito de haver exercido a
prostituição me torturava cada dia, não queria pensar nisso, não queria
lembrar-me do que havia deixado atrás, tinha que esquecer e perdoar-me,
deixar de me sentir triste, envergonhada, culpada... Mas era como um
fantasma que estava do meu lado todo o dia torturando-me.
Três dias antes de chegar a Burgos conhecemos Manu e Marta. Ele
era de Barcelona, era pedreiro, e ela, de Madrid, garçonete. Ela tinha um
estilo hippy, era um encanto, e começamos a caminhar juntos.
— Marta, crês em todo este conto místico?
— Sim, Anastásia. E você?
— Também. Para mim, as casualidades não existem, tudo tem uma
razão de ser.
— Eu também creio.
— E por mais que tudo pareça fora de lugar, em realidade está
exatamente como deveria estar e ser.
— Claro, mas para nós, que sempre estamos buscando controlar
tudo, é muito difícil aceitar esta verdade.
— Sim, o medo ao desconhecido, o não confiar na provisão divina.
— Isso se chama falta de fé.
— Não é fácil chegar a isto. Nos custa confiar nas pessoas, imagina
em alguém que não podemos ver, tocar, escutar, apenas senti-lo.
— Estamos muito apegados aos sentidos, à matéria, Anastásia.
— E isto não é bom. E você, Manu, crês em estas coisas? Em Deus?
— Me desculpem, eu estava escutando, mas eu não creio em essas
coisas. Me disseram que o caminho é mágico, que te provoca mudanças,
mas eu só vim fazê-lo por curiosidade, não por fé ou religião. Sou ateu.
— Posso te entender, é difícil de acreditar se jamais te ocorreram as
chamadas experiências paranormais ou como queiras chamá-las.
— Tu, Anastásia, acreditas?
— Sim, Manu. Tenho muitas razões para isso.
— Mas porque já existia uma predisposição da tua parte.
— Pode ser, Manu, mas a ti também te podem ocorrer coisas, só tem
que estar relaxado, com a mente e o coração aberto e te poderiam ocorrer
coisas… digamos... estranhas.
— Bom, vou começar a observar melhor.
— O.k., mas relaxa-te, deixa que o caminho te leve e, mais que
observar, sentir.
Manu era totalmente incrédulo, mas era uma pessoa de caráter doce
e muito nobre. Marta parecia um anjo. No caminho também conhecemos
López, um professor de Educação Física do Brasil, mas seu trabalho não era
dos mais seguros, ele trabalhava na antiga FEBEM, um cárcere para
delinquentes juvenis — o mais perigoso do Brasil —; e também Marcelo,
um dentista brasileiro; o senhor José Luís, maratonista de Logroño, pessoa
com uma luz esplêndida que tinha um filho pianista, mas seu filho era
especial, porque não podia ver. O senhor José não caminhava, voava...
Conhecemos muita gente e todos tinham uma característica em comum: o
coração cheio de amor. Quem tem amor em si, tem tudo, pois jamais estará
sozinho. Quando chegamos a Logroño conhecemos a senhora Felicia, sua
casa estava na entrada da cidade, ela era analfabeta e, desde muitos anos,
todos os dias se levantava, ia para frente da sua casa com duas caixinhas,
uma estava cheia de pedras e a outra estava vazia; por cada peregrino que
passava ela colocava uma pedra na caixa que estava vazia, assim controlava
o fluxo de peregrinos, lhes oferecia água e figos frescos. Me lembro muito
bem dessa senhora muito amável, ela tinha seu próprio carimbo do
caminho e ter um carimbo dela é uma honra, pois ela é uma das pessoas
que fazem parte da história do caminho. Manu tinha que voltar para o
trabalho, mas eu sentia que ele não queria deixar o caminho, algo no seu
coração lhe pedia para continuar. Falou com Marta, com meu irmão e
comigo, em separado, e fez a mesma pergunta a cada um:
— Anastásia, o que você pensa, se ligo para o meu trabalho e digo
que estou fazendo o caminho e que quero terminá-lo?
— Bom, você pode tentar.
— É que eu não sei como meu chefe vai reagir. Tampouco posso
perder meu trabalho.
— Você tem que confiar na provisão divina: se você tem que
terminar, terminarás, e mais, creio que teu chefe, se é boa pessoa e tem
princípios, valores, aprovará que voltes ao trabalho depois que terminar o
caminho.
— Então devo ligar e ao menos tentar.
— Sim, o que é teu é teu. Se este trabalho é para você, quando voltar,
estará ali, te esperando.
— Pois bem, no próximo povoado vou ligar.
O mais interessante foi que todos lhe demos a mesma resposta, me
lembro da sua cara com um sorriso que iluminava todo o povoado quando
veio contar-nos que seu chefe lhe havia dito que terminasse o caminho e
que não se preocupasse, que seu trabalho estava ali. Então, confessou ante
todos que nos havia feito a mesma pergunta a cada um e que lhe
respondemos a mesma coisa, nos disse: “Isto é um pequeno milagre, agora
posso compreender as coisas que me haveis contado, porque conheço o
meu chefe e ele jamais me teria dado uma resposta positiva. Estou muito
contente por havermos nos conhecido e feliz porque chegaremos a
Santiago juntos”.
Aquilo que se comparte no caminho não esquece jamais... Manu
começava a acreditar em coisas que nunca pensou que acreditaria, tinha
sonhos estranhos com significados muito profundos, enquanto em mim,
crescia cada vez mais a necessidade de confissão. Fiz um tipo de diário, mas
era um diário muito especial: em cada fim de etapa comprava postais,
escrevia a história e as lendas do caminho, e as enviava para meus filhos, e
assim podia compartir com eles essa experiência tão bela e fazer que de
alguma forma participassem da minha vida e do caminho junto a mim,
ainda estando tão longe... Em uma das postais me lembro de que lhes
escrevi esta frase: “As distâncias separam dois corpos, mas não duas
almas”, é a mesma frase que minha avó me disse um dia quando eu era
adolescente e estava apaixonada por um alemão que havia partido, mas era
um amor platônico e jamais havia tido nada com ele.
Os câmbios de paisagens que sucedem ao longo do caminho são
impressionantes, dos verdes Pirineus passas pelas planícies que vêm
depois de Burgos, e outra vez encontras as montanhas no Bierzo. As
mochilas já eram parte dos nossos corpos, caminhar era um prazer, e em
nenhum minuto se sente falta da cama, das roupas, da casa ou das
comodidades que estamos acostumados, como tecnologias e outras
modernidades.
Estávamos em Azofra. Neste dia choveu muito, acabamos
empapados. Tivemos que acabar a etapa em um povoado antes do previsto.
Mas na manhã seguinte tudo estava seco. Naquele dia teríamos que
caminhar oito quilômetros a mais, já que não havia muitos albergues
naquela etapa. Esse dia foi o dia da confissão.
— Marta, preciso falar contigo.
— Diga-me, Anastásia.
— Não sei por onde começar, é que é um assunto um pouco
delicado.
— Não te preocupes, seja o que seja, nada vai mudar.
— É que desde que empreendi o caminho sinto a necessidade de
falar disso, como se necessitara confessar-me. Falei com Deus, mas não me
parece suficiente, Ele conhece minha dor e minha agonia, e não sei por que
sinto que devo contar para ti.
— O que é o que te provoca tanta dor?
— Estive nas mãos da máfia, fui prostituta, sinto vergonha disso e
quero apagar da minha mente, do meu coração, da minha vida, mas está aí
dentro e não posso esquecer. Os clubes são um inferno, as máfias são o
terror e a tensão é enorme cada dia, com cada homem que me deitava me
sentia violada.
— Não te culpes por isso, não chores mais. Você foi uma vítima a
mais e agora, mais que nunca, te quero, obrigada por confiar em mim.
— E por quê?
— Porque minha mãe havia sido prostituta e eu não podia perdoar
ela. Graças a ti agora posso fazê-lo, vendo tuas lágrimas e a tua dor
compreendi muitas coisas.
— E como sabes que ela foi prostituta?
— Ela me contou, mas para mim foi um choque, eu houvera
preferido não saber. Não podia entender por que me contou, mas agora que
você me disse tudo isso, eu posso perdoar ela e a mim, porque ela apenas
necessitava de um abraço naquele momento e eu não soube dar esse
abraço.
Marta me abraçou com toda ternura, fiquei surpreendida quando
me disse que sua mãe também havia sido prostituta, e a verdade é que não
me equivoquei: Marta estava no momento oportuno no meu caminho e eu
no dela. Uma vez mais vi que as casualidades não existem, que tudo tem sua
razão de ser e de existir. Me sentia aliviada, era como se houvera entrado
debaixo de uma cascata de água fria e houvera gritado a todo pulmão,
eliminando toda minha dor, me sentia livre, estava feliz por Marta, porque
minha necessidade de confissão era sua necessidade para poder
compreender algo que tinha dentro; minha confissão era sua resposta. Dois
dias depois, Marta teve que deixar o caminho, machucou o tornozelo e não
podia prosseguir. A despedida foi emocionante:
— Estou triste porque você tem que ir.
— Não fique triste, Anastásia, alegra-te porque já encontrei o que
buscava.
— Sim, eu sei.
— Adeus.
— Não. Um peregrino não diz adeus.
— E que raios diz um peregrino?
— Nos vemos no caminho.
— Você é grande, Anastásia. Pois: nos vemos no caminho.
O caminho é assim. Pessoas chegando e pessoas partindo, mas, em
realidade, só existem chegadas no caminho, porque uma vez que inicia você
já não sai dele, não importa para onde você for, sua vida é uma extensão do
caminho, o levas dentro para toda vida. O caminho é como o Tao, um ciclo
de infinita e pura energia que se completa.
Meu irmão tinha o joelho inflamado e eu o tornozelo, mas nada nos
podia parar, nossa fé era maior que qualquer dor, o espírito se fortalecia
cada dia mais, te surpreendes com tua capacidade de superação, com tua
persistência, com o amor que levas dentro de ti... o amor incondicional e
altruísta... Quando você vir, está curando calos, chagas de desconhecidos,
ajudando os demais e sendo ajudado por pessoas que nem sabem falar o
teu idioma. O caminho é uma grande comunhão com a energia, com o
universo, com Gaia, com Deus, como queiram chamá-lo... O Caminho de
Santiago é único, nenhum outro caminho consegue reunir tanta
diversidade cultural e religiosa.
Saímos de Astorga em direção a Manjarín, estávamos ansiosos por
conhecer o mítico albergue dos templários, em que o hospitaleiro era e
ainda é Tomás. Mas um pouco antes de chegar na cruz de ferro está o
povoado de Foncebadón, que, segundo dizem, é o povoado que Paulo
Coelho previu sua ressurreição. Pois quando chegamos só havia pedras em
ruínas, em meio dessa paisagem apocalíptica estava a “Taberna de Gaia”,
onde paramos para comer. Logo fizemos amizade com o proprietário,
Henrique Notario. Era tudo perfeito, em estilo medieval, o menu era um
pergaminho, o vinho era caseiro e servido em jarras de barro. Agora
éramos meu irmão, Manu, um moço que era músico e irmão da cantora
Selena Leo, e sua namorada brasileira. Nos sentamos em uma das mesas
grandes e, depois de comer, Henrique se sentou conosco e começamos a
falar das lendas do caminho, da energia que havia no ar, que era muito forte
e se podia sentir como vibrava.
A taberna se converteu em um ponto de referência para os
peregrinos. Henrique tem um conhecimento profundo da cultura celta e do
caminho de Santiago. A taberna era toda de pedra, com móveis rústicos
feitos por ele mesmo, se vestia como os antigos “mesoneros” medievais,
com um colete de couro, cabelo comprido, camisa branca, calça negra, botas
de couro e cinturão; ali, ante sua presença, era muito fácil de transpassar a
barreira do tempo e voltar ao passado quando nos contava os segredos do
caminho. Era apaixonante, se via o brilho em seus olhos, se podia sentir a
energia que emanavam das suas palavras.
— Quantos anos faz que estás aqui em Foncebadón?
— Três anos.
— Pois você é muito valente e corajoso.
— É o amor que eu sinto pelo caminho, existe muita magia aqui...
Dentro de pouco, vocês irão pisar as terras galegas, terras de “meigas”, de
bruxas, com seus bosques encantados.
— É fenomenal poder estar aqui e viver isto, é um momento único,
indefectível.
— Sim, é um privilégio poder viver as experiências do caminho.
Vocês têm que provar a “queimada”, a bebida sagrada das “meigas”.
Primeiro se faz o conjuro, depois a bebem.
— E como se prepara.
— Com “orujo” — orujo é uma espécie de cachaça muito forte feita
dos ramos das uvas —, se põe maçã picada, depois colocam fogo e se bebe
quente, dizem que é para a boa sorte e proteção.
— Este é o povoado do qual fala Paulo Coelho no livro?
— Sim, eu o conheci. Esteve sentado comigo aqui mesmo, em esta
mesa.
— E como é ele?
— É uma pessoa muito agradável e acessível.
— Mas ele fez o caminho de verdade?
— Não sei, ele diz que sim. Mas aparte disso, este povoado é muito
especial por si mesmo; porque é um dos pontos mais fortes onde emana a
energia de Gaia.
— Verdade? Isso é fenomenal, é incrível...
— Sim, estiveram aqui uns físicos e comprovaram.
— Por Deus, isto é maravilhoso! Quem poderia imaginar?
— Sim, é uma benção. Estão levando a pedra para deixar na cruz de
ferro?
— Sim, peguei uma para cada membro da família, quando chegar na
cruz me pesará um quilo a menos a mochila.
— Ha, ha, ha... A mochila representa nossos defeitos e nossas
virtudes, ela é muito importante porque saber enfrentar tudo isto não é
fácil. Um peregrino de verdade leva suas próprias coisas; devemos assumir
a responsabilidade de nossas vidas, pegá-la em nossas mãos e dar-lhe um
sentido.
— Tem toda razão, mas não é fácil conviver com todas estas coisas,
muitos nos chamariam de loucos por crer no que cremos. E ser senhor de si
mesmo não é para qualquer pessoa.
— Sim, mas loucos estão eles por não acreditarem.
— Todos vêm ao caminho buscando algo, consciente ou
inconscientemente.
— Ninguém sai do caminho sem respostas. Ele te dá o que você
necessita em cada momento. Não te dá nem mais nem menos.
— Eu sei.
— Não se esqueça, em Finisterre, de queimar algo que usaste no
caminho, é um ritual de purificação.
— Não sabia disso.
— É um ritual que tem origem celta. Pois os celtas iam todos os dias
ao cabo de Finisterre, antes do crepúsculo, para fazer seu ritual para que o
Sol volvesse ao dia seguinte, porque eles acreditavam que sem sol não
haveria vida.
— E de feito não se equivocaram, sem sol não existe vida.
— Os celtas eram muito inteligentes, e sábios.
— Conheço um pouco da sua cultura.
— Eles também fazem parte do caminho, mas já antes do caminho
ser caminho. Como os templários.
— Eram uma ordem religiosa, verdade?
— Sim, mas tinham sua faceta mística. Eles protegeram o caminho
durante muito tempo. Por todo o caminho existem sinais da passagem dos
templários, a cruz de Santiago é uma variação da cruz templária, a cruz das
oito beatitudes. Até a cor é a mesma, eram uma ordem religiosa-militar.
— Sim, li algo sobre os templários, é um tema que me interessa
muito.
— Henrique, você leu El Peregrino de Compostela?
— Confesso que não.
— As pessoas que leram falam bem. O caminho estava morto até a
chegada do seu livro e, para bem ou para mal, o caminho é o que é hoje
graças a ele.
— Claro, Anastásia, concordo contigo, mas ele é muito beneficiado
com isto.
— Eu sei. Alguns dizem que ele jamais fez o caminho.
— Sim, assim dizem.
— Mas uma coisa te digo, Henrique: quem não fez o caminho como
Deus manda, não sabe o que está perdendo, e jamais poderá compreender
certas coisas.
— Sim, tem toda razão.
Falamos com Henrique durante horas sobre as lendas do caminho. O
tempo passou muito depressa. Trocamos os números de telefone.
— Deus, como é tarde.
— Anastásia, não nos deixarão entrar no albergue.
— Eu sei, Ricardo, dormiremos em algum lugar que encontremos.
— Se tivesse lugar os deixaria dormir aqui.
— Obrigado, Henrique, a gente se vira.
— Tenham cuidado porque o caminho é muito fechado daqui até
chegar na estrada principal.
— Não se preocupe, já somos quase peregrinos profissionais. E os
lobos? — me disseram que por esta zona têm muitos.
— Não se preocupem, não farão nada, apenas não olhem nos olhos
deles.
— Por quê?
— Diz a lenda que quem olha nos olhos de um lobo não viverá
muito.
— Então é melhor não encontrá-los, ha, ha, ha. Adeus!
— Adeus, Anastásia. Ricardo, é um prazer conhecê-los.
— O prazer é nosso.
Seguimos em direção a Manjarin, eram dez da noite, paramos na
cruz de ferro e decidimos dormir ali mesmo, debaixo do telhado da eremita.
Foi uma noite cheia de magia. Fizemos uma fogueira com muito cuidado
para não provocar um incêndio e também para que a polícia florestal não
visse porque senão íamos todos para a cadeia e terminaríamos o caminho
detrás das grades. Cantamos e dançamos ao redor do fogo. Aquele
momento foi mágico, fizemos como nossos ancestrais aborígenes,
entoamos os sons que saíam de nossas almas em um ritmo forte e cadente,
cada vez mais frenético e atraente, levando-nos a uma espécie de transe.
Por um momento me transportei ao passado, ao que nem sequer sei se
pertenci alguma vez. A cada dia que passava estávamos mais perto de
Santiago e algo estranho me ocorria porque não tinha vontade de chegar...
Em realidade, queria que o caminho não chegasse a seu fim. Pela manhã,
nos levantamos cedo para iniciar logo a caminhar. Quando estávamos
chegando ao albergue dos templários, começaram a tocar os sinos. É uma
tradição deles. Quando avistam os peregrinos, os tocam e os convidam para
tomar um café. Vestem umas túnicas brancas com a cruz templária na
frente, “a cruz das oito beatitudes”, e debaixo sempre vão de negro.
Entramos no albergue e encontramos uns peregrinos que já conhecíamos,
Rudolf e Maria, das Ilhas Canárias.
— Olá, peregrinos, como estão?
— Olá, Maria. Bem.
— Onde haveis dormido?
— Debaixo da eremita da cruz de ferro, ficamos até tarde na
Taberna de Gaia, mas dormimos bem.
— Pois creio que haveis dormido melhor que nós.
— Por quê?
— Bom... não te digo nada, uns buracos no teto que podias ver toda a
Via Láctea…
— Ha, ha, ha… Que exagerados vocês são, Rudolf.
— Não, vem ver, sem banheiro, sem nada, olha.
— Pois isto está pior que um estábulo, anda já que aquilo não é um
buraco, é uma cratera no teto, ha, ha, ha…
— Te disse, Anastásia.
— Sim, tem razão. Meu irmão, Manu e eu estivemos muito melhor.
Conheci Tomás, o hospitaleiro chefe do albergue. Era todo muito
rústico, havia gatos, cachorros, galinhas e um cavalo. Tomás e os outros
dois viviam ali todo o ano, mas essa zona no inverno é impiedosa e eles não
tinham nem calefação, ali até a água se congela. Vi Tomás batendo no
cachorro que estava amarrado na sua casa:
— Mas por que bate nele?
— Porque comeu uma galinha.
— Mas isso não é um motivo para que bata nele!
— Já... Isso é porque tu não sabes o que é passar todo o inverno aqui
sem poder sair.
— Mas o cachorro não tem culpa, tonta foi a galinha, pois o pobre
está amarrado.
— O pior de tudo é que você tem razão.
Eu sempre fui uma defensora dos animais incurável e uma coisa sim
é verdade: quanto mais conheço o ser humano mais eu gosto e respeito os
animais.
Seguimos caminho em direção a Ponferrada. As paisagens iam
mudando drasticamente, estávamos saindo da vermelha Castilla-León e
íamos em caminho à verde Galícia. Em Molina Seca, antes de chegar a
Ponferrada, encontramos no caminho um senhor, um homem de sessenta e
nove anos que diariamente pelas manhãs pegava seus azeites, umas toalhas
e ia para montanha. Ficava ali todo o dia esperando os peregrinos
passarem e aos que chegavam lesionados fazia uma massagem. Me lembro
de que ele vestia uma camiseta do Brasil que uns peregrinos lhe haviam
presenteado.
Faltava apenas um dia para chegar em O Cebreiro, a porta de entrada
da Galícia, e também uma das três etapas mais duras. Em seguida
enfrentaríamos o Alto del Poyo, um verdadeiro rompe pernas. Já em
Villafranca del Bierzo dormimos no albergue municipal. Ali está a famosa
Puerta del Perdón, que é onde davam o perdão aos peregrinos que não
podiam continuar o caminho porque estavam doentes, a tradição diz que ao
chegar na porta deves ajoelhar-te e pedir perdão com todo teu coração, se
não podes continuar, é como se já houveras chegado a Santiago e recebido
o perdão. Passamos toda a noite nos preparando psicologicamente para
subir O Cebreiro, pois sabíamos que ia ser muito duro, apesar de que nossos
corpos já estavam acostumados a tanta lenha. De Villafranca del Bierzo ao
pé do O Cebreiro foi uma etapa tranquila. Empreendemos a subida, eu ia à
frente, era um caminho muito estreito, e, no meio da floresta galega,
havíamos subido durante uns quinze minutos, quando escutei o passo dos
animais, levantei o olhar e vi umas cinco vacas descendo a toda bala, nos
estávamos na rota delas. Tivemos que nos meter entre as árvores para
deixá-las passar. Tudo aconteceu muito rápido. Depois, nos ríamos daquilo
durante todo o resto da etapa.
— Caralho, com as putas vacas do caminho!
— Tranquilo, Marcelo, estamos chegando a Galícia.
— Claro, Anastásia… para você, que morre pelos animais, isto é
diversão, nós levamos um bom susto. Não viu que desciam como loucas?
— Sim, e imagino que as vacas já estão até o nariz dos peregrinos.
— Sim, e por isso saíram ao nosso encontro...
— Ha, ha, ha…
Chegando ao monumento que marca a divisa entre Galícia e Castilla-
León, fizemos uma foto, nos sentíamos felizes e em paz, era maravilhoso
poder estar ali. Agradeci a Deus que me dera a oportunidade de viver um
momento tão especial. A noite em O Cebreiro foi tranquila, uma vista
preciosa. O povoado é um lugar peculiar, com suas cabanas de pedra e tetos
de palha, uma paisagem mística... Pela manhã, havia duas ou três vacas na
saída do albergue e ninguém se atrevia a espantá-las para poder passar:
— Que está acontecendo aqui, Ricardo?
— Nada, a vaca não nos deixa passar.
— Espera, que vou espantá-las.
— Não, Manu, que a vaca avança.
— Estás brincando. Anastásia, as vacas não fazem nada...
— Não vê como te olha?
Manu foi ao encontro da vaca e começou a espantá-la; a vaca se
virou e começou a correr atrás dele, costa abaixo, não havia um só
peregrino ali que não estivesse rindo, menos mal que a vaca logo se cansou
de Manu. Seguimos o caminho, estava em uma encruzilhada de caminhos,
as laterais eram como barrancos muito altos e as raízes das árvores
ficavam na altura da minha cabeça, olhei para direita e vi uma vaca que
parecia estar perdida.
— Marcelo, creio que a vaca está perdida.
— Ela parece tranquila.
— Pois para mim parece que não, e, como nós estamos em seu
caminho, não quero nem imaginar.
Passamos a encruzilhada, começamos a descer, escutei o patear da
vaca, olhei para trás e vi a vaca vir com toda sua força e velocidade detrás
de nós, Marcelo e eu saímos correndo e gritando, mas a vaca era muito mais
veloz que nós e tivemos que nos agarrar nas raízes das árvores e subir o
barranco para nos proteger da vaca, até hoje não sei como conseguimos
subir com a mochila carregada como uns burros, e eu com o tornozelo que
ainda me doía um pouco. É incrível o que se faz quando se sente em perigo,
os mecanismos de defesa soam como um alarme e tudo acontece
intuitivamente. Realmente estávamos no caminho da vaca, um pouco mais
adiante a encontramos golpeando a porta de uma casa com seus cornos,
naquele momento sai uma senhora e fala com a vaca, lhe abre a porta e a
deixa entrar.
Meus pés já não me incomodavam muito, havia utilizado de tudo
para melhorar a inflamação no tornozelo, tinha calos de todos os tipos,
grandes, pequenos, com água, sem água… Já nada mais podia ocorrer,
estava vacinada.
No caminho era inevitável não pensar na vida. Eu pedia tanto a Deus
que tudo fosse bem, pois não queria voltar a trabalhar nos clubes, pois essa
possibilidade me aterrorizava, isso não é vida para ninguém. Faltavam
cinco dias para chegar a Santiago. Depois de cruzar Galícia fugindo das
vacas, de tantas pedras e calçadas romanas que te causam calos e mau
humor, havíamos sobrevivido, havíamos superado a dor, nós havíamos
enfrentado nossos inimigos internos, lavado a alma, havíamos sorrido,
havíamos chorado… A tristeza de ter que deixar o caminho começava a dar
sinais depois de viver quase um mês longe de toda a sujeira, de toda
hipocrisia, de todo o egoísmo que existe no nosso mundo; era frustrante ter
que voltar a conviver em sociedade. Voltar para a vida que cremos, que
gostamos, que estamos acostumados e que pensávamos que não
poderíamos viver sem determinados luxos e comodidades... eu não pensei
que fosse tão fácil deixar atrás essas coisas e a verdade é que é muito fácil...
não estamos feitos para estar amarrados, para estar parados sempre no
mesmo lugar. Caso contrário, teríamos raízes e não pernas, teríamos folhas
e não um cérebro...
Chegar ao Monte do Gozo foi emocionante. Estávamos destroçados,
mas estávamos muito bem com nós mesmos, a satisfação e a emoção se
viam refletidas nos olhares daqueles que vinham desde França... Havia
peregrinos dos últimos cem quilômetros, os “turigrinos”, que fazem desde
Arzúa somente para receber a Compostela, para exibi-las, estes chegam a
Santiago muito frescos, mas seguro que não é a mesma coisa e eles jamais
saberão a grandeza e a emoção que passam os verdadeiros peregrinos;
aqueles que vêm com doenças sérias desde muito longe, os que vêm com
sua fé, com um coração puro e aberto. Muitos iniciam o caminho desde suas
casas. A fé é a coisa mais bela e preciosa que uma pessoa pode ter, porque
onde existe fé, existe esperança, existe amor...
Pela noite, nos sentamos fora do albergue, nas escadas, e ficamos
observando e admirando Santiago. Desde ali se podiam ver as torres da
catedral. Todos se preparavam para entrar em Santiago, se podia sentir e
ver o sentimento de humildade, respeito, de gratidão, de resignação… se
podia ver claramente nos olhos que todos saíam dali diferentes... como uma
ave Fênix... Sim, como uma Fênix, penso que é a comparação mais adequada
para exemplificar a transformação que provoca o caminho em nós... Me
houvera gostado que meus filhos estivessem ali comigo, mas ainda que
houvessem podido estar, eram muito pequenos, e desejei profundamente
que algum dia pudesse voltar ao caminho com eles. Não pude dormir bem
pela noite, estava ansiosa. Pela manhã, nos preparamos como se fôssemos
verdadeiros guerreiros do caminho... Posso dizer que a emoção de chegar
na praça do Obradoiro é muito grande, te sentes pleno... realizado. Quando
chegamos diante da catedral, simplesmente nos entreolhamos e, sem dizer
nenhuma palavra, nos abraçamos, pois as lágrimas não deixavam ninguém
falar... e porque qualquer palavra naquele momento era desnecessária,
porque nem a mais preciosa oração houvera sido capaz de expressar o que
sentíamos... Eu chorava de frustração, de emoção, não queria voltar, não
queria que o caminho terminasse... Poderia passar toda minha vida
caminhando e vivendo desse modo, estou segura de que se não fosse por
meus filhos, jamais faria nem mesmo a metade das coisas que fiz.
Cumprimos todos os rituais que se fazem na catedral: tocamos a pedra
sagrada na entrada, assistimos à missa, vimos o “botafumeiro” (um
incensário gigantesco), abraçamos o santo e rezamos. Eu não havia feito
nenhuma promessa, então dediquei o caminho à paz mundial e pela
igualdade... Pedi a Deus que curasse os males da humanidade e que
bendissesse toda forma de vida existente na Terra e no universo, Lhe pedi
que protegesse a minha família, Lhe roguei por meus filhos. E Lhe agradeci
profundamente por estar ali naquele momento e pela minha vida. “Deus
não está para compreendê-lo e explicá-lo e sim para senti-lo.” Depois de
tudo isso, fomos comer com nossos amigos do caminho e nos despedir, pois
muitos já iam a casa desde ali. Pela tarde, fomos a Finisterre para fazer o
ritual da queima, observava minha camisa queimando e desejei que se
queimasse junto todos os meus males, que queimasse todo o mal, o
negativo que existia na minha vida. Enquanto estava ali no cabo, imaginei
os celtas fazendo seus rituais diariamente para que o sol retornasse. Fiquei
calada olhando o horizonte, me deixei levar pelo que sentia... Por um
instante, me senti parte do universo, em comunhão com a alma da Terra...
Finisterre possui uma beleza imensa.
Já em casa, uma semana depois de haver retornado a vida normal,
ainda sentíamos falta do caminho, queríamos jogar as mochilas nas costas e
pôr os pés na estrada. Jamais pensei que me custaria tanto voltar para a
vida cotidiana, estava admirada do fácil que resulta esquecer-me de tudo
aquilo, da matéria, eu não estava de férias em um paraíso em qualquer
parte do mundo, em um hotel de cinco estrelas. Eu havia chegado do
caminho de Santiago, vinte e cinco dias caminhando até nove horas, com
sol, chuva, inflamações no tornozelo, comendo o que havia, dormindo em
qualquer parte. Mas ali se vive no presente, não pensas no que vás
encontrar na manhã seguinte, não te preocupas aonde vás dormir ou que
vás comer, e muito menos com o que vás vestir... Não faz planos de nada, ali
apenas se vive o momento que a vida te oferece, não tem com o que se
preocupar, se o presente vai bem, seguro que o futuro também irá.
Passamos parte de nossas vidas preocupados com um futuro e um passado
que não existem, e perdemos o controle do presente e, portanto, geramos
um futuro desastroso. O amanhã depende de hoje.
Quase sempre estava sozinha. Meu irmão saía para trabalhar com
Miguel e os demais empregados. Tínhamos trabalhos por toda Espanha.
Meu irmão e eu passamos o Natal com um primo nosso de Madrid. Minha
cunhada veio do Brasil com o filho do meu irmão para as festas. Tudo
parecia andar bem. Em fevereiro fui para o Brasil para estar com meus
filhos, fiquei ali um mês. Cada vez que regressava à Espanha voltava
renovada, até o meu aspecto mudava. Me sentia cheia de energia, de vida, e
com muita vontade de trabalhar para logo voltar para casa. Mas eu não
estava somente no escritório, quando havia trabalhos como pôr as cercas
de proteção nas estradas para que os animais não as cruzassem, eu
também ia. Meu irmão fazia os buracos, eu o cimento para fixar os tubos e
colocava os parafusos, estendia a malha de metal e as fixava. Miguel estava
impressionado comigo e com Ricardo, porque éramos muito trabalhadores
e dedicados. Mas quando cheguei do Brasil e fui fazer as folhas de
pagamento e a contabilidade... algo não se enquadrava.
— Miguel, você me disse que Cercados Iruña não nos pagou ainda.
— Assim é, atrasaram um pouco este mês.
— Que estranho! Eles são sempre muito pontuais.
— Essas coisas acontecem.
Passou um mês e meio, e ele sempre com a mesma história. Jamais
queria que os pagamentos se fizessem diretamente na conta da empresa.
Então foi quando chamei pessoalmente a Yolanda, de Cercados Iruña, para
falar dos pagamentos pendentes.
— Olá, Yolanda, sou Anastásia, de Señalizaciones Kilómetro 10.
— Olá, como vai?
— Bem, muito bem. E você?
— Bem, aqui estamos.
— Desculpa se te molesto, é que ainda não cobramos as duas
últimas faturas.
— Como que não? Anastásia, se tenho aqui os recibos dos
pagamentos.
— Mas como é isso? Se eu tenho os recibos aqui.
— Anastásia, não sei o que estará acontecendo, mas isto é muito
estranho.
— Yolanda, me faz um favor? Me envia por fax as faturas e os
comprovantes de pagamento.
— Em cinco minutos, não se preocupe.
— Muito obrigado.
— De nada.
Yolanda me enviou os faxes, as notas fiscais eram iguais, produto,
data de faturamento, número de nota, mas os valores estavam alterados.
Miguel estava me roubando... já havia cobrado as notas e havia cobrado um
valor mais alto que da nota original. Como era ele quem me passava os
valores, era fácil fazer trapaça. Ele pegava a nota fiscal que eu preparava, a
levava a um contador que fazia outra com valores mais altos e me dava o
dinheiro para pagar as taxas, as folhas de pagamento, e quase não sobrava
nada para mim no final do mês; e quando ia dar a parte dele, ele me dava
um pouco da sua para se fazer de bom. Mas eu descobri tudo e quis
desfazer a sociedade.
Minha vida se converteu em um verdadeiro inferno. Meu irmão já
estava em situação irregular, nem com a empresa pude arrumar seus
documentos, as leis mudavam constantemente. Eu disse a Miguel que
queria desfazer a sociedade e ele me ameaçou de morte e a denunciar
Ricardo na estrangeria. Chamou o proprietário do apartamento, pedindo a
caução, e o proprietário veio na minha porta e nos expulsou, mesmo que já
estivesse pago o aluguel. Me humilhou, passei muita vergonha com aquele
homem que gritava comigo… Eu, chorando, lhe dizia que tínhamos um mês
para estar ali ainda, mas a ele não importava se tínhamos um lugar para
onde ir. Me lembro da sua cara até hoje e da minha preocupação por não
saber aonde ir. Me ameaçou chamar a polícia e eu não queria problemas
por proteger Ricardo, eu não queria que ele corresse esse risco. Por isso,
tive que pensar rápido em uma solução e agir mais rápido ainda. Sempre
fui de sangue quente, mas nos momentos críticos sempre tive um
autocontrole que não sei de onde vinha.
— Ricardo, vem, arruma tuas coisas que vou te levar para uma
pensão.
— Mas como são de filhos da puta, Anastásia! O aluguel está pago.
— Sim, eu sei, mas aqui com papéis ou sem papéis sempre seremos
os putos estrangeiros de merda. Bem-vindo à Espanha, irmão! E à vida de
imigrante! Vem, arruma tuas coisas, que tenho que buscar um lugar para
trabalhar.
— Mas onde?
— Para onde vou ir? O único lugar onde posso fazer dinheiro rápido
para mandar você para casa são os clubes.
— Eu sinto muito.
— Não vou deixar que você fique aqui sem documentos tendo que se
submeter a qualquer trabalho e correndo o risco de que a polícia te pegue.
— E como você fica?
— Como sempre...
Levei meu irmão a uma pensão em San Sebastián e lhe dei um pouco
de dinheiro, liguei para o clube Errota Berri e pedi praça para o dia
seguinte. Fui para Pamplona, na casa de Beth, para deixar minhas coisas no
depósito. Tive que dar minha gata negra ao taxista que me levou a
Pamplona, eu chorava desesperada pensando no meu irmão, em tudo o que
passou, abraçava a minha gata e lhe fazia carícias, eu gostava muito dela,
mas eu não podia ficar com ela. Estava na rua sem ter aonde ir e tinha que
voltar para o inferno para poder sobreviver, porque sem dinheiro não se
vai a nenhuma parte e você não é ninguém. Peguei uma mala pequena,
coloquei dentro o salto alto e os vestidos de trabalho e voltei para San
Sebastián, diretamente ao Errota.
O clube era pequeno, mas se ganhava dinheiro. Em três dias
consegui o suficiente para mandar Ricardo para o Brasil. Miguel continuava
com as ameaças, as deixava na secretária eletrônica do meu celular, assim
que resolvi ir à polícia. Fiz a denúncia contra ele, pois a “ertzaintza” (polícia
do país Vasco, uma das mais eficientes) me disse que se eu não a fizesse,
fariam eles, já que escutaram todas as ameaças gravadas. Vivi um bom
tempo com medo de que ele me encontrasse, pois eu sabia que ele estava
me buscando. Tive que fazer a dissolução da empresa sozinha, o tabelião o
procurou várias vezes para assinar os documentos, mas como ele não
apareceu, o mesmo tabelião os assinou alegando sua omissão. Miguel havia
me denunciado por roubo de um computador e de três mil euros. Ele não
compareceu na audiência e eu apresentei o comprovante fiscal de que o
notebook estava no meu nome e demonstrei que na conta da empresa não
havia nada e que o único dinheiro existente havia sido retirado cinco meses
antes por ele. Uma coisa sim posso dizer: os Vascos foram maravilhosos
comigo, me ajudaram com a dissolução da empresa, viram que eu dava a
cara sozinha e que Miguel havia desaparecido, fez muitas trapaças e tinha
uma lista de estafas nas costas. No seu nome, devia muito dinheiro para o
governo.
Esse clube abria às cinco da tarde e ia até as três e meia da
madrugada, e se pagavam sessenta euros ao dia. O proprietário era um
cigano conhecido como Nati. Jamais falei com ele. Todos os dias, mais o
menos na mesma hora, ele vinha, se colocava em um canto da sala e ficava
observando. Depois de um tempo ia embora. Ele tinha dois clubes a mais:
La Frontera e La Rosa. Mas eu trabalhava somente no Errota, pois os outros
dois eram verdadeiros açougues, um mercado barato de carne humana: as
instalações eram repugnantes, com colchões velhos e uma sujeira incrível.
Muitas garotas se submetiam a esses clubes e trabalhavam em más
condições, mas eu não podia, para mim era demasiado. Ali conheci um
senhor que vinha todas as quartas-feiras com outro moço. Um dia ele me
chamou e me ofereceu uns drinks.
— Olá, como você chama?
— Anastásia. Encantada.
— Eu sou Ángel e este é Sandro... Peça um drink, o que você quiser.
— Obrigada.
— Como te tratam aqui?
— Bem, dentro das circunstâncias.
— Você é livre?
— Sim, eu sou. Por quê?
— Por nada, é que eu sei como funcionam as coisas, mas você não é
como as outras.
— E como sou?
— Se nota no vestir, no falar: você não encaixa aqui.
— Muitas vezes me disseram isso, às vezes um não tem opção de
escolha na vida.
— Você tem filhos?
— Sim, dois meninos, estão no Brasil com minha mãe.
— E teu marido?
— Sou divorciada, as coisas entre nós não foram bem.
— Sinto muito. Me dói ver uma mulher com tanta educação e
elegância em um lugar como esse.
— Para mim também é muito duro, pois não gosto de estar aqui,
mas um trabalho normal não daria nem para pagar o aluguel.
— Eu sei, é por isso que existem apartamentos nos quais vivem até
quinze imigrantes ou mais.
— As condições em que vivem são absurdas, imagina como
deveriam ser duras as suas vidas em seus países de origem quando
escolhem mudar para viver assim.
— E por que não te casas outra vez e sai disso?
— Porque teria que amar essa pessoa. Posso suportar um
desconhecido, um homem que eu não gosto, durante meia hora, mas não
toda uma vida.
— Tens toda a razão. Você é nobre.
— Tenho um grande defeito: ser demasiadamente sincera e não
fazer as coisas por conveniência. Não sei ser de outra forma.
— Me parece muito bem, demonstra que você tem caráter e que é
uma boa pessoa.
— Obrigada, você também me parece uma boa pessoa.
— Agora devo ir. Na semana que vem venho te ver para saber como
você está.
— Obrigada pelo drink e pela companhia.
— Adeus.
— Até logo.
Todos me olhavam com uma expressão estranha, mas eu não sabia
por que, pressentia que era porque estava com Ángel, mas o que havia por
detrás não vislumbrava. Ele voltou durante muitos meses, quase todas as
quartas-feiras, e me oferecia drinks. Falávamos de tudo, menos de ir para o
quarto. Jamais o chamei e ele a mim tampouco. Ficamos sendo muito
amigos e ele conhecia toda minha vida.
— Anastásia, posso te perguntar algo?
— Diga-me.
— Por que você se divorciou?
— Porque meu ex-marido não me amava.
— Como se pode não amar uma mulher tão doce e guerreira como
você?
— Tudo começou quando estava grávida do meu filho mais novo.
Meu ex não andava bem no trabalho e ele estava consciente disso. Me disse
que não se encontrava cômodo na empresa e que pensava que poderiam
despedi-lo, e eu lhe pedi que aguentasse até que o pequeno nascesse, pois
faltavam apenas três meses... Eu não queria perder o plano de saúde, queria
que o médico que fez o meu primeiro parto estivesse comigo.
— Bom, é normal que queiras que teu médico esteja contigo.
— Não sei se você acredita em estas coisas, mas... tive a premonição
de que se ele não estivesse comigo, algo me passaria no parto e eu
morreria.
— Que forte!
— Sim, porque sabia que ele me salvaria a vida se estivesse comigo,
contei ao meu ex--marido da premonição e ele sabia que as minhas
premonições jamais falharam, ele era testemunha... Mas permitiu que lhe
despedissem, perdemos o plano de saúde e fizemos um plano na
maternidade semiprivado, porque só assim eu poderia chamar meu
médico. Chegou o dia do nascimento do meu filho e… realmente aconteceu
algo. O anestesista me aplicou a anestesia muito depressa, com isso, me deu
um princípio de parada respiratória e quem me salvou a vida foi o meu
médico. O anestesista ficou estático sem saber que fazer.
— É incrível...
— Então, ele decidiu trabalhar por conta e as coisas não iam nada
bem, faltava até para o leite dos meninos. Minha mãe me ajudava com o que
podia, era impossível para ela fazer mais por mim, pois minha irmã teve
uma menina que nasceu com problemas e meu padrasto gastou muito
dinheiro em hospitais. Pelas manhãs, ia trabalhar na sua floricultura, podia
levar o pequeno sem problemas, para mim era cômodo e, ademais, não
tinha com quem deixá-lo. Então chegamos ao extremo em que não
tínhamos dinheiro para nada, ele disse que falaria com seus pais, pois eles
tinham dinheiro. Mas seu orgulho não lhe deixava, teve propostas de
trabalho e não as aceitou porque dizia que pagavam muito pouco, eu lhe
dizia que era melhor pouco que nada.
— Mas ele era muito teimoso, cabeça dura.
— E o que você vai esperar de um alemão?
— Não é brasileiro?
— Não. Não tinha muito o que fazer. Era uma época em que não
conseguia nem umas horas de substituta como professora, nada. Fazia
cestas de café da manhã para presente, um café da manhã especial com
flores naturais, biscoitos, bolo. A princípio, ia bem, mas ele as entregava
com atraso e, pouco a pouco, fui perdendo os meus clientes. Num fim de
semana do Dia das Mães, estive trabalhando, preparando as coisas para o
domingo, desde uma quinta-feira até o domingo às dez da manhã, sem
dormir, e estava grávida, e ele não me ajudou.
— Como um homem pode ser tão acomodado e insensível? Isso já é
demais.
— Não, não, não. O pior te conto agora... Quando já não tinha
alternativas... a única coisa que sabia fazer, além de dar aula, era dançar. Fui
bailarina de contemporâneo. Então, conheci um senhor que era cantor e
amigo da família, ele cantava em um night clube e lhe perguntei quanto
pagavam pelo striptease, ele me disse que cinquenta euros por atuação.
Falei com meu marido e ele me disse que não havia problemas, que era um
trabalho como qualquer outro. Ali foi onde vi que realmente não me amava
e creio que foi quando me decidi pedir o divórcio. Pois lhe dei mais corda,
para ver até onde chegaria essa história. Fui, falei com a dona da boate, fui
para casa e preparei o traje para dançar, eu mesma bordei à mão,
aproveitando umas coisas que tinham guardadas dos Carnavais. Na minha
primeira apresentação meu marido estava comigo, me viu dançar e tomou
uma cerveja que descontaram do meu cachê e ali se acabou meu
casamento. Ele me disse que eu havia casado por interesse, então saí do
matrimônio com meus filhos e umas roupas. Eu deixei tudo, apartamento,
carro, móveis… tudo, e fui para casa da minha mãe.
— Você sofreu muito na tua vida, se pode ver no teu olhar. Ainda
que sorrias, teu olhar te delata, é sempre triste.
— É que levo muita dor dentro de mim.
— Você é uma guerreira, Anastásia, você tem que levantar a cabeça
e sentir orgulho de você mesma porque se nota a nobreza que levas dentro.
— Obrigada por dar-me ânimos.
— Sempre terás um amigo em mim; se necessitas qualquer coisa,
sempre estarei disposto a ajudar-te.
— Obrigada de verdade.
Ángel foi outro anjo que Deus pôs no meu caminho. Uma noite,
estava trabalhando tranquila quando um homem me chamou e me pagou
muitos drinks, gastou muito dinheiro em champanhe. Ele queria me pagar
uma saída, mas eu não gostava de sair, ir para hotéis ou casa dos clientes, e
tive um pressentimento que me dizia que não deveria ir com esse homem.
— Anastásia, quanto é a saída?
— É muito cara e não vejo motivos para ir a outra parte, pois aqui
temos uma bonita suíte com hidromassagem.
— Não, é que eu não gosto do ambiente. Diga-me quanto, o dinheiro
não é problema.
— São três mil euros.
Lhe disse um preço alto para que ele desistisse, mas foi em vão.
Sacou a carteira, pôs o dinheiro no balcão e me disse: “Vamos”. Lhe pedi
desculpas e lhe disse que não, que não tinha vontade de ir a nenhuma
parte. Lhe deixei e fui trabalhar. Ele ficou toda a noite em um canto no
clube, me seguia com o olhar cada movimento que eu fazia, me controlava
todo o tempo. Até que o vi falando com uma garota que usava meu nome
para trabalhar, mas eu não tinha amizade com ela. A noite chegou ao seu
fim, não podia dormir e fui na cozinha para fazer um chá para relaxar-me
um pouco e tentar conciliar o sono. No corredor encontrei Checho, o
encarregado:
— Mas o que você faz por aqui ainda, Checho?
— Problemas sérios.
— Que aconteceu?
— Lembra daquele homem que te pagou os drinks?
— Sim, por quê?
— Ele pagou uma saída para a outra Anastásia, a gordinha loira.
— Sim, eu o vi falando com ela um pouco antes de fechar o clube.
— Ele lhe roubou tudo, o dinheiro, os documentos e o telefone.
— Meu Deus.
— Ele jogou ela fora do carro em movimento e, quando viu que ela
se levantou, deu uma ré para passar por cima dela.
— Como está ela? Aquele homem não me inspirava confiança para
nada.
— Para escapar, ela se jogou barranco abaixo.
— Mas onde foi isso?
— A trinta quilômetros daqui. Você teve muita sorte, Anastásia, você
fez bem em não ir, pois três mil euros não devolvem a vida a ninguém.
— Eu sei, Checho. Onde está a garota?
— Estão levando para o hospital. Quebrou um braço e tem
hematomas e feridas por todo o corpo.
— Que Deus a bendiga... Menos mal que não lhe passou algo pior:
poderia estar morta.
A sorte da garota foi que, quando ela começou a correr pelo campo,
ele desistiu de persegui-la, sorte que ela lembrava o número de uma amiga.
Depois de que se assegurou de que esse homem já não a seguia, voltou para
a estrada para pedir ajuda. Graças a Deus jamais fui uma pessoa ambiciosa,
porque esse dia a ambição poderia haver me matado.
Naquele mesmo clube, um marroquino violentou e golpeou uma
garota que se chamava Tania, mas ela não quis denunciar porque não tinha
documentos. Jamais se pode generalizar as coisas, os assassinatos de
garotas de clubes eram cometidos por estrangeiros e espanhóis, ninguém é
santo. Muitas garotas evitavam subir com estrangeiros, como marroquinos,
albaneses, argelinos e romenos, pois tinham muito má fama, havia clubes
que não lhes permitiam a entrada. Me lembro de que em Figueras iam
muitos marroquinos, pois como é fronteira com a França e nesse país
vivem muitos deles, eles sempre falavam em francês para tentar passar por
franceses, mas seus rasgos e suas não educação lhes delatavam, eles não se
davam conta de que algumas garotas falavam francês, então é onde nós
ficávamos conhecendo as barbaridades que faziam e como pensavam.
Muitos eram ladrões, delinquentes ou chibatas, se podiam reconhecer
porque tinham uma cicatriz na cara, eles têm esta tradição de um traidor
marcar com uma cicatriz entre o olho e a boca, assim todos saberiam que
aquele era um traidor. Muitos haviam fugido para Alemanha ou para outros
países onde as leis são muito estritas, as coisas horríveis que diziam a
respeito das mulheres eram aterradoras. Uma garota que trabalhava no
clube Oasis, em Castellón, foi assassinada por um cliente habitual da casa.
Ele já havia pagado umas oito saídas para ela e na nona a matou.
As romenas começaram a entrar na Espanha como ratas, por todos
os lados, arruinando o trabalho, pois a maioria era má, roubava os clientes,
para trabalhar dizia que era de outros países sul-americanos, e os homens,
como são tontos e não sabem distinguir um acento de outro, caíam na
armadilha. Antes a disputa era entre brasileiras e colombianas, agora era
entre sul-americanas e da Europa do leste, inclusive havia clubes que não
aceitavam garotas de leste para trabalhar porque sabiam que com elas
vinham junto as máfias, gigolôs, e muita confusão. Ademais, eram baratas e
muitas não tinham escrúpulos. Conheci duas que tinham vergonha de
serem romenas, não dividiam quarto com suas compatriotas e muito
menos ficavam ou falavam com elas. Uma garota romena discutiu com uma
brasileira em um clube de Málaga, o S´candalo, e para vingar-se fez com
que seu gigolô se passasse por um cliente e entrasse com a brasileira no
quarto, onde a estrangulou. O S’candalo é o clube onde esteve Jean-Claude
Van Damme e fez uma pequena orgia de sexo e drogas. Ele não fodia
ninguém. Tinha dentro do quarto seus guarda-costas, que sempre lhe
cuidavam, pois ter um filho com uma prostituta não seria nada bom e a
fama das prostitutas é de serem umas sem-vergonha, umas oportunistas...
Mas isso não é sempre assim. Estamos cansados de saber que no mundo da
moda, televisão, música e cinema muitos se movem através de favores
sexuais que é o mesmo que prostituir-se, para chegar aonde desejam.
Estava tranquilamente sentada no meu canto quando um moço me
chamou e educadamente fui falar com ele:
— Olá, você é muito bonita.
— Pois, muito obrigada, e você muito gentil.
— Eu gosto de pessoas educadas. Me chamo Iñaki.
— Anastásia. Encantada.
Estivemos falando um pouco. Ele estava acompanhado dos seus
amigos. Me parecia um moço muito gentil até que aconteceu o seguinte:
— Iñaki, que te parece se fizermos algo?
— Não.
— E para que me chamou?
— Para falar.
— Pois isto não é um barzinho e eu não estou de passeio aqui, estou
trabalhando.
— Sabe de uma coisa? É que não fodo com putas.
— Aparte de mentecapto e idiota, você é um ignorante.
— Eu ignorante? Ha, ha, ha.
— Sim. Pega o dicionário e verás que ali põe que puta é a que fode
por prazer, pela cara, e prostituta é aquela quem presta serviços sexuais a
troco de dinheiro. Eu sou prostituta, as putas você as tem na tua casa.
Seus amigos riam dele, não me explico como uma pessoa sai de casa
para gozar da cara de uma prostituta, deve ser uma pessoa muito infeliz,
porque o último lugar aonde eu iria para passar o tempo seria numa zona.
Ali, naquele mundo, se encontrava de tudo, gente complexada, com um
sentimento de inferioridade, muitos são tão pequenos, tão pobres de
espírito, que vão aos clubes para sentir-se melhor, porque é o único lugar
onde se sentem superiores, porque não tem domínio sobre o seu ego e de
sua própria vida. Em realidade, me dão pena, pois já gostaria ver seus
comportamentos e como se sentiriam em um salão cheio de pessoas ricas,
cultas e inteligentes; seguramente, se afogariam no seu mesquinho ego.
A história que lhes vou contar agora é tremenda. Havia pouca gente
no clube, era a hora da janta e eu estava observando, como de costume.
Havia um moço muito bonito e bem vestido no balcão e as garotas se
aproximavam dele, falavam com ele um pouco e logo se iam, nenhuma lhe
agradava. Fiquei intrigada e fui falar com ele.
— Boas noites, desculpa se te molesto. Posso te fazer uma pergunta?
— Sim, diga-me.
— É que eu estava observando e vi que por aqui passaram todas as
garotas e nenhuma te agrada. Por quê?
— É que aqui não tem ninguém com o coeficiente intelectual ao meu
nível.
— Certamente teu sobrenome é Einstein.
— Você o conhece?
— Não, não tive o prazer, mas creio que sei quem é. Não é aquele
senhor de cabelo branco que dizem que é o pai da Física e que tem uma foto
mostrando a língua que foi feita por Arthur Sasse? E, se não me equivoco, é
o responsável de várias teorias, como o efeito fotoelétrico, o movimento
browniano, a relatividade espacial, a equivalência massa energia, a
relatividade geral… e, sem embargo, ninguém o superou até hoje. E seguro
que não serás tu que o supere.
— Foda-se, tia, você sim é que sabe. Bebe um drink.
— Não. Obrigada. Adeus.
— Por que você vai embora?
— Porque teu espírito não está ao nível do meu e muito menos teu
coeficiente intelectual. A pessoa que entra por essa porta buscando um
nível elevado de Q.I em um lugar no qual a maioria das garotas que aqui
estão não tiveram a oportunidade de estudar e que muitas passaram até
fome em seus países de origem, outras são analfabetas, para mim não
demonstra mais que pobreza de espírito e te garanto que todas elas valem
mais que você. Ademais, subestimar não é de inteligentes. E antes de abrir a
boca, conecta o cérebro. Boa noite.
Ele não sabia onde enfiar a cabeça. Olhou para os dois lados e se foi
sem crer que uma prostituta lhe houvera deixado por terra. Estava cansada
de tanta estupidez humana, de homens que vinham com a carteira cheia de
dinheiro exibindo-a para as garotas e nem um drink dos mais baratos
sequer lhes pagava. Eram deprimentes as coisas que se via ali e me dava
pena das garotas que não sabiam nem se defender. Têm umas que são tão
ingênuas que não se dão conta do que lhes estão fazendo..., mas elas, em
suas ignorâncias, sofriam menos. Eu tinha muita vontade de voltar a
estudar e comecei a ver universidades. Me inscrevi na Universidade de
Navarra, em jornalismo. Fiz todos os trâmites, a autobiografia, a entrevista,
o dossiê que enviaram do Brasil da Universidade na qual estudei… Superei
todo o processo e me admitiram na universidade. Mas não pude fazer o
curso, porque os horários eram incompatíveis, e com um trabalho normal
não teria dinheiro para pagá-la. Até hoje tenho guardada a carta da
admissão, para mim foi um mérito, que houvera sido ainda maior se
houvera podido estudar, mas, por ironia da vida, não se pode ter tudo ao
mesmo tempo.
Estava chegando a data para renovar a carteira de identidade, e eu
estava sem o certificado da prefeitura e sem contrato de trabalho, então
usei o certificado antigo e as escrituras da empresa para renovar os
documentos como autônoma e deixei o endereço de uma amiga para
receber as cartas. Fui para o Brasil ver meus filhos e uma amiga me ligou
dizendo que a polícia esteve me buscando no clube. Eu já imaginava o que
era: haviam descoberto que o certificado não valia e que a empresa já não
existia, e eu tinha que ir até a delegacia. Cheguei do Brasil e fui diretamente
lá.
— Olá, me disseram que devia comparecer, e aqui estou.
— Qual é o seu nome?
— Anastásia, esta é a minha identidade.
— Um momento, já volto.
— O.k.
Estava muito nervosa, pois sabia que as coisas não estavam bem, e
não deixava de pensar em como acabaria tudo. O policial não demorou
muito.
—Venha, o chefe de estrangeria quer falar com você.
Minhas pernas tremiam e, quando entrei na sala, quase tive um
infarto. O chefe de estrangeria era Ángel. Nesse momento entendi por que
ninguém me dizia nada.
— Olá, como vai, Anastásia?
— Congelada... paralisada…
— Sabe que eu poderia te colocar na cadeia? Certificado não válido,
empresa que não existe...
— Sim, eu sei. Mas é que... — as lágrimas rolavam pela minha cara,
refletindo a vergonha e o desespero que sentia.
— Não precisa dizer nada. Te conheço muito bem e conheço tua
vida... Toma, pega tua residência e vai fazer tua carteira, vai trabalhar. E
mais, desejo que logo você possa sair disso e estar com teus filhos.
— Obrigada, não tenho palavras... pelo que estás fazendo por mim
é...
— Não digas nada; quero ver-te bem, se cuida muito. Nos vemos.
— Até logo e obrigada, mas muito obrigada de verdade.
Saí dali sem crer no que me havia passado. Deus põe anjos na Terra
para cuidar de nós e eles se apresentam das formas mais estranhas e nos
momentos menos esperados: através de quem menos imaginas. Aquele foi
um presente... Até hoje tenho Ángel no meu coração e me sinto agradecida,
porque aquilo que ele fez, não faz qualquer um. Sem sua ajuda tudo
houvera sido muito mais difícil ainda.
Abandonei o Errota e fui ao clube Macabucha, que diziam que era
muito bom. Ali um cliente quase me estrangulou. Era um homem da zona,
aparentemente normal, mas, quando estava em cima de mim, seu olhar
começou a mudar e suas mãos vieram em direção ao meu pescoço; pouco a
pouco me apertava, cada vez mais e mais, lhe disse que se detivesse, mas
ele não me escutava... Me oprimia com mais força, e já me faltava o ar,
estive a ponto de perder os sentidos. Então, consegui jogá-lo com minhas
pernas contra a parede, saí correndo, apertei o alarme e os seguranças
chegaram. Foram muito rápidos e o pegaram. Foi horrível. Aquele homem
se transformou totalmente. Era a terceira vez que escapava da morte, por
isso cada vez me dava mais medo trabalhar. Fiquei ali poucos dias e fui ao
Stark 92 de Fuengirola, em Málaga. Um famoso clube onde se encontravam
as mais belas mulheres. O Stark tinha fama de pegar garotas bonitas,
inclusive tinha que se apresentar ou enviar uma foto. Quando terminei
minha praça ali fui ao Stark de Algeciras. Ali eu gostei de trabalhar, pois a
gente de Cádiz é muito simpática e simples, se parecem muito com os
brasileiros e são muito graciosos, eu ria o dia inteiro. Em Cádiz nasceu
“Camarón de la Isla”, o melhor cantor de flamenco, na “Línea” tem um
monumento dedicado a ele, ele foi o melhor cantor de flamenco, se fez
grande e conhecido com Paco de Lucía, o melhor guitarrista de Flamenco do
mundo. Mais tarde, quando voltei a San Sebastián, conheci um de seus
sobrinhos, que também é cantor. Ele ia fazer um show no Kursal, mas
suspenderam como sinal de luto a causa da tragédia do 11 M. No Stark de
Algeciras, também conhecido como Los Lagos, era muito perigoso trabalhar
sem documentos, pois a Policía de Estrangeria era muito dura. Durante
minha segunda praça em Los Lagos, ajudei uma garota, Victoria, a conseguir
praça ali, eu tinha conhecido ela em San Sebastián, chegou três dias depois
de mim. Cinco dias depois da sua chegada, veio a Policía e fez uma redada.
Levaram Victoria junto a sete romenas mais. Foi horrível: as colocaram em
um canto, lhes fizeram fotos, as interrogaram uma por uma. A Policía
revisou o clube buscando garotas até debaixo das pedras. Eu fiquei em um
canto falando com um policial, e todas as demais as amontoaram como se
fossem gado... e as fotografavam. Havia policiais por todos os lados, não se
podia nem ir ao banheiro sozinha, pois mandavam uma policial feminina
para acompanhar as garotas, eles tiravam os telefones. Publicaram
fotografias nos jornais que provocaram um verdadeiro escândalo. No dia
seguinte fui falar com o encarregado.
— Olá, Juan, que passou com as garotas?
— Estão no Centro de Imigrantes.
— Quando sairão?
— Não sei.
— E como é isso?
— Podem ficar ali até quarenta dias antes de serem deportadas.
— Na segunda irei me informar sobre quando posso visitá-las.
— Está bem, como queiras.
Na segunda pela manhã fui ao Centro de Imigrantes, que parecia
mais bem uma cadeia de segurança máxima: as visitas eram permitidas
uma vez na semana, nas segundas das sete da noite até as oito. Se podia
levar dinheiro e produtos de higiene pessoal, mas não comida. Te davam
um papel dizendo o que estava permitido levar aos detentos e tinha que
deixar a identificação na porta; depois, se passava por um detector de
metais, um policial te metia mão por todos os lados para averiguar se
levava algo perigoso ou suspeitoso. Voltei ao clube e pedi a Juan que me
deixasse o dia livre para ir visitar as garotas, comentei o assunto com Ares
— minha companheira de quarto, uma colombiana muito simpática —, lhe
disse que ia visitá-las e ela me deu dinheiro e cartões telefônicos para levar
para as garotas. Chamei meu amigo Paco para que me levasse até o C.I.E. Ao
chegar, fiz todo o ritual de entrada, um policial me acompanhou até onde
estavam as garotas, fiquei gelada ao ver que todas estavam amontoadas em
uma cela. Quando me viram, correram ansiosas para falar comigo. Me
lembro de seus rostos, das mãos estendidas através das barras em um
gesto de desespero. Seus olhares... de medo e pavor eram como de crianças,
em corpos de mulher. A expressão do medo e as lágrimas compulsivas
deixavam claro que aquilo não era um Centro de Imigrantes. Eu não
conhecia nenhuma delas, tive pouco contato com Victoria em San Sebastián
e depois nos encontramos ali. Passaram Victoria para uma cela em que me
haviam levado para poder falar com ela.
— Como você está?
— Desesperada. Aquela prorroga do visto dizem que não vale.
— Mas quem fez?
— Um advogado.
— Ligou para ele?
— Não, não me deixaram pegar nada, nem sequer roupa ou
dinheiro.
— Te trouxe dinheiro e cartões de telefone. Uma garota colombiana
também me deu dinheiro para as outras.
— Obrigada, Anastásia, você é um anjo.
— De nada, me sinto responsável por você, pois te ajudei a pegar
praça aqui.
— Não, você não tem a culpa de nada.
— Você quer que eu faça algo?
— Sim, quero que me traga minhas coisas. Dentro da minha bolsa
está o cartão do advogado, liga e fala com ele.
— O.k., não te preocupes. A mala trago amanhã, deixarei na
recepção, sendo que só se pode visitar nas segundas.
— Está bem.
— E não se preocupe, amanhã pela manhã ligo para o advogado e
lhe darei o número daqui.
— Obrigada, não sei o que seria de mim sem você.
— Quer que eu avise a tua irmã?
— Sim, por favor.
Victoria se abraçava a mim e chorava como uma criança. Antes de ir,
falei com as demais, lhes dei algo de dinheiro e lhes perguntei se
necessitavam de alguma coisa ou que avisasse a alguém. Me fui com o
coração partido. Senti raiva do sistema porque, enquanto elas estavam
sendo tratadas como delinquentes, os verdadeiros vândalos estavam livres
dando voltas pela Espanha e passando bem.
Todas as segundas ia visitá-las, a voz correu por todo o clube e
algumas garotas me buscavam para dar-me dinheiro e cartões telefônicos
para levar, mas jamais alguma se atreveu a me acompanhar. Fui pedir a
Juan que me deixasse ficar ali uns dias a mais até que o problema das
garotas fosse resolvido.
— Juan, sei que a praça é apenas por vinte e um dias, mas deixa que
eu fique aqui um pouco mais.
— Sim, não tem problema, Anastásia. Muitas não irão gostar disso,
mas tenho um bom motivo para deixar que você fique.
— E que motivo é este?
— Pessoas como você não se encontram todos os dias.
— Obrigada.
— Posso perguntar algo?
— Sim.
— Por que você está fazendo isto por essas garotas?
— Primeiro, são seres humanos e fazem o mesmo trabalho que eu;
estamos na mesma situação, sozinhas em esta selva de pedra, não temos
nem parentes nem amigos, ninguém a quem recorrer... e se eu estivera na
mesma situação delas, eu gostaria muito que alguém fizera por mim o que
estou fazendo por elas. Eu faço porque sou assim, porque me sai do
coração.
— Vou te dizer uma coisa: faz quinze anos que trabalho aqui e todos
os anos ocorre o mesmo, de uma a três vezes por ano, e nunca, jamais
nenhuma mulher fez o que você está fazendo. Você não pertence a este
planeta, Anastásia, você é um anjo sem asas.
— Não, sou apenas uma mulher.
Paco veio me buscar para me levar ao C.I.E. Era a segunda visita que
fazia às garotas e estavam todas muito abatidas; quando Victoria entrou na
cela, me abraçou forte e chorando me disse:
— Me tira daqui, Anastásia, por favor, me tira daqui.
— O que aconteceu?
— Não posso falar.
— Calma, tranquila, fica abraçada a mim e me fala no ouvido.
— Os guardas estão violentando as garotas. Ontem um tentou me
violar e comecei a gritar. Então, me deu um soco e se foi.
— Por Deus, temos que fazer algo! Olha, toma o dinheiro e divide
entre você e as outras. Aqui estão os cartões. Teu advogado já entrou em
contato com o Centro e já falei com tua irmã e com o teu irmão. Agora tenho
que ir para resolver isto. Se cuida muito. Amanhã pela manhã me liga.
— O que você vai fazer, Anastásia?
— O que se deve fazer: denunciá-los.
Paco me levou ao chefe de Polícia de Algeciras. Ali fiz a denúncia,
chamaram o diretor do Centro e mudaram toda a guarda masculina por
uma feminina. Não era a primeira vez que ocorria um caso assim, muitas
garotas foram violadas por policiais enquanto esperavam ser deportadas
ou liberadas. Em Irún, no País Vasco, a polícia tinha má fama; ademais de
denuncias por violação, detinham as garotas que também tinham
documentos e as mantinham prisioneiras, isso quando não rasgavam seus
documentos. Colocavam barbitúricos na água que davam para as garotas,
assim elas dormiam e não molestavam. Como podeis ver neste livro: as
prostitutas estão cheias de inimigos por todos os lados, não tem para onde
correr. Eu sempre disse: “É mais importante saber sair de um clube que
saber entrar”. As garotas foram deportadas. Algumas romenas tinham
documentos falsificados pela máfia de seu país. Victoria não teve sorte, pois
quando estava chegando o documento para sair em liberdade os policiais
pegaram ela, colocaram em um carro e ficaram dando voltas com ela
muitas horas antes que partisse o avião, tudo isso para que o advogado
chegasse ali e não a encontrasse. De Algeciras, fui trabalhar em Oviedo,
Asturias, no Model`s. No tempo que estive ali, uma garota brasileira morreu
de overdose, tinha apenas vinte e um anos, era uma menina ainda, a
maioria das pessoas não sabe que existe a terceira adolescência e acaba aos
vinte e um e é por isso que em alguns países, para determinadas coisas, a
maioridade é essa. Ela havia saído para se divertir depois do trabalho com
uma colombiana e uma romena, entrou em um bar e não sei por que razão
um homem bateu nela, ela caiu na calçada fora do bar. A levaram ao
hospital, onde entrou em coma.
No clube Horóscopo, em Gijón, uma garota que fazia a lap dance se
suicidou porque não suportava mais as pressões do trabalho. O cadáver de
Abies Otaremovbo, uma jovem nigeriana que exercia a prostituição nas
imediações da rotatória do “cubato” na estrada que une Ciudad Real e
Ángelturra, foi encontrado dentro de um poço no término de Torralba de
Calatrava. O autor do assassinato, um jovem de vinte e um anos que
responde pelas iniciais F. L. L. P., confessou o crime. Segundo as
investigações, utilizou uma navalha (tipo mariposa) de quatorze
centímetros para acabar com a vida da prostituta. O mais interessante é
que o nome da vítima vem exposto e o do assassino só aparecem as iniciais:
eles têm direito à lei de privacidade, e a família da garota não, ou seja, um
assassino tem mais valor que uma prostituta e sua família. Um dos mais
recentes casos ocorreu em Córdoba: 3 de abril de 2010 foi assassinada
Antônia, uma prostituta com a que seu assassino mantinha relações
habituais e reteve seu cadáver em casa até o dia doze do mesmo mês,
quando foi descoberto; um caso não contabilizado pelo “Ministério de
Igualdade” devido à profissão da garota. Prostituta não é mulher, não é
mãe, não é irmã, não é filha, não é humana, é uma anomalia da natureza, ou
melhor, uma enfermidade da sociedade. Para os que não sabem, as
prostitutas amam e odeiam como qualquer outra pessoa, as prostitutas
choram, sofrem, comem, dormem, têm filhos, sentem dor, adoecem, entram
em depressão. Uma prostituta é um ser humano. Bestas, aberrações da
natureza são os hipócritas políticos, famosos, pais de família, empresários,
entre outros, que as buscam para desafogar-se e jogar em cima delas todo o
lixo que levam em suas mentes doentes. Escutei várias vezes a frase
machista e asquerosa de: “Hoje vamos sair de putas”, como quem vai ao
mercado. Quero saber que pensam os devotos de Maria Madalena; é
interessante que as pessoas se digam tão religiosas, tão perfeitas e puras,
mas esta parte da Bíblia penso que saltaram. Como gostaria que esta teoria
de que Madalena foi a mulher de Cristo se confirmasse. Enquanto existe
uma onda de pedofilia dentro do clero, tudo isso é inaceitável. Essas
mulheres têm muito valor, por todas as coisas que suportam dos
asquerosos que as buscam, com suas paranoias, homens que
aparentemente parecem uns senhores respeitáveis, que pedem para que se
caguem e urinem em cima deles ou que lhes metam o braço dentro do ânus,
tantas nojeiras e perversões como podeis imaginar. Homens que não sabem
lavar nem seu próprio pênis... Quando me deparava com um desses
enfermos, eu dizia a mim mesma: “Deus, permite-me sair daqui com a
cabeça sã, não quero chegar ao limite da loucura”. Minha sorte é que eu
tinha conhecimento em psicologia, senão haveria acabado como a maioria:
alcoólica, drogada ou louca. É necessário muito sangue frio ou muito
cérebro para suportar tudo isso, por isso não condeno e não julgo as
garotas que bebem ou usam drogas, e digo mais: noventa e nove por cento
delas, quando deixam esse trabalho, necessitará de assistência psicológica,
inclusive eu, porque apagar da memória tudo isso é impossível, temos que
aprender a conviver com tudo isso sem que nos faça dano.
Me custa muito escrever este livro porque é reviver tudo uma vez
mais, é evocar sentimentos e sensações que não quero provar outra vez
mais. O único que desejo agora mesmo é terminá-lo e, se escrevo, não é por
mim; faço por estas milhares de mulheres que estão aí afora jogando
cotidianamente com suas vidas por querer dar uma vida melhor a seus
filhos, a suas famílias e a si mesmas, por não ter aonde ir. Faço um apelo a
todos os homens e mulheres: que tenham um pouco mais de compaixão,
porque cada prostituta que se encontra morta poderia ser sua filha, sua
irmã, sua prima ou você mesma. Eu jamais me imaginei na prostituição, e
onde acabei? Provenho de uma família nobre que tinha dinheiro para dar
com os pés; o que me aconteceu, poderia acontecer a qualquer outra
mulher.
A maioria das garotas que trabalha na prostituição e que fica muito
tempo acaba virando lésbica, pois conhecem um lado dos homens que dá
asco e, ademais, quase todos estão casados e têm filhos. Pobres mulheres
que não sabem o que tem dentro de casa, isso me faz recordar do filme
Dormindo com o inimigo, pois citá-lo me parece bastante acertado e
adequado para a ocasião.
Voltei para San Sebastián em dezembro. Um dia, chegou Ángel com
uma foto de uma garota.
— Anastásia, você conhece ela?
— Não tenho contato com ela, mas já vi ela aqui. Que aconteceu?
— Está desaparecida. Espero não encontrá-la morta.
— Isso não é difícil de acontecer.
— Tem cuidado e, qualquer coisa, me liga.
— O.k.
Quatro dias depois, Ángel voltou e me disse que a encontraram
morta. Se quisesse enumerar e contar todos os casos que tenho de dados
oficiais, seria um livro bastante grande, seria um informe enorme. Todos
querem ganhar com as prostitutas, mas ninguém quer comprometer-se:
“Eu encho meus bolsos e as prostitutas que se fodam”.
Ligava para casa quase todos os dias para falar com meus filhos. Me
despertava pelas manhãs pensando neles e me deitava igual.
— Anastásia, viu o livro do Paulo Coelho? Que livro mais bonito.
— De que livro do Paulo Coelho você está falando?
— Onze minutos, a história de uma prostituta.
— Aquela porcaria?
— Eu gostei, me parece bom.
— Esse é o pior livro que há escrito.
— Mas o que você está dizendo?
— Li todos os seus livros e te posso garantir que esse é o pior e que
é uma porcaria; fazer com que a prostituição pareça um conto de fadas é
ridículo.
— É verdade... Mas eu gostei...
Li Onze minutos e me deu embrulho no estômago, é o pior livro de
Paulo Coelho. Me fez sentir raiva porque, primeiro, a protagonista parecia
uma torpe encontrando o prazer através da dor, para isso só tem um nome:
doença. Depois, usar o Caminho de Santiago é patético... Ela que para e vê
uma placa indicando o caminho e naquele instante sofre uma
transformação... parto da base de que a maioria das prostitutas não sabia
nem que existia o caminho antes desse livro. Fiquei indignada porque o que
conto aqui, esta é a realidade de uma prostituta, conheci muitas, fui uma
delas, e a vida de nenhuma terminou como um conto de fadas. Ao contrário,
a maioria sempre acaba mal e o dinheiro ganhado parece maldito, acabam
sem dignidade, sem dinheiro, porque por incrível que pareça, muitas foram
enganadas por seus maridos ou parentes, quando voltavam para seus
países para ficarem, não podiam, porque não tinham nada ali, lhes haviam
roubado.
Conheci uma garota linda, muito bonita. Uma brasileira que se
chamava Antônia, ela ligou para casa e disse para sua mãe que queria
voltar, que necessitava descansar, que já não suportava mais o trabalho e
que se encontrava muito mal. A mãe lhe disse que ficasse ali, que agora
necessitava de um carro. Essa garota entrou em um estado depressivo tão
profundo que tentou suicidar-se. Esteve em uma clínica durante muito
tempo e a única pessoa que esteve cuidando dela foi um garçom do clube
em que ela trabalhava; se não houvesse sido pela compaixão dele, ela
ficaria jogada e acabaria morta.
O livro me fez sentir mais raiva ainda porque eu fiz o caminho e o
vivi intensamente. O caminho se converteu em parte da minha vida, tem
um significado muito profundo e importante para mim. Como é que uma
garota — protagonista de um livro — que, supostamente, se casou com um
homem rico, vem fazer o caminho tantos anos depois de sair o livro? A
única coisa que Paulo Coelho fez com esse livro foi alimentar os sonhos de
muitas garotas reforçando o mito de “pretty woman” e incentivar as garotas
a prostituirem-se, colocando mais ilusões em suas cabeças. Já basta. As
novelas no Brasil vendem uma Europa perfeita e rica, o que não é verdade.
As garotas que não conhecem a Europa sonham com ela pensando que isso
é o Paraíso e em realidade não é. Aqui a vida se pode converter em um
verdadeiro inferno. Só é um paraíso se tens dinheiro, igual que em qualquer
outra parte do mundo. De verdade, é dramático que um escritor de nível
escreva essa porcaria sem ter conhecimento de causa e confesso que,
depois desse livro, não comprei nenhum outro dele, fiquei decepcionada e
triste. Um tema tão delicado como esse, que envolve assassinatos, máfias,
drogas, exclusão e omissão social, não pode ser tratado como um romance
barato e com um final feliz. Sem falar da parte espiritual, pois ao exercer a
prostituição teu karma se torna mais pesado ainda, os espíritos baixos que
vagam e ficam nos clubes de alterne geram mais energia negativa ainda. No
Errota Berri muitas garotas diziam escutar chorar e ver uma mulher
caminhando pelo clube; não se sabe bem a causa da sua morte, se foi um
suicídio ou um assassinato. Esses ambientes estão carregados de energia
negativa, têm muitas garotas que fazem rituais de magia para atrair
clientes e dinheiro. Quantos clubes foram incendiados por culpa das velas
que acendem como oferenda. A maioria delas não sabe nem o que está
fazendo, e desconhecem as consequências de tudo isso. Algumas até faziam
pactos demoníacos, e isso não é lenda, é realidade; todos sabemos que em
países como Brasil, Colômbia, República Dominicana, Cuba, África, inclusive
Romênia, se fazem muitos rituais de magia. São tradições muito arraigadas
na cultura desses países, é parte de suas vidas e costumes. Não quero
aprofundar-me nesse tema, pois daqui também sairia outro livro.
A ignorância não se limita só a parte espiritual, se não também afeta
os temas de saúde. Uma das coisas mais absurdas que escutei da boca de
uma garota dentro de um clube é que a AIDS só se transmite se o homem
ejacula dentro... Na Espanha não existe nenhum controle oficial de saúde
nos clubes de alterne e isso é um absurdo, sendo que é um país que está
cheio de bordéis e prostitutas. No Brasil, em determinadas zonas, os
bordéis só aceitam garotas que tenham uma carteira sanitária onde veem
os dados de todos os exames que fazem periodicamente e também recebem
auxílio e informação a respeito das doenças de transmissão sexual. Porque
ali são conscientes de que existem garotas que são totalmente ignorantes;
se um país não informa a seu povo, no futuro terá uma sociedade doente,
famílias infectadas. Têm muitos homens que pedem para ter relações sem
preservativo e existem garotas que fazem. Isso é uma corrente, a corrente
da morte, temos que frear esse processo, ao menos tentar, pode ser
possível controlando e informando.
Vi casos de garotas que se infectaram com o vírus do HIV. Uma delas
se suicidou, a outra saiu fodendo com todos sem preservativo, cada uma
reagiu de uma forma frente à notícia da doença, não julgo nenhuma, pois é
uma doença irreversível. Inclusive com o preservativo se corre o risco de
infectar-se, já que existem casos em que o preservativo se rompeu.
Ademais, está a hepatite, que é outro fantasma que se pode contagiar pela
saliva, o HPV em que pode converter-se em câncer. Nas últimas pesquisas,
em 60% dos casos de câncer de garganta encontraram o HPV, que o homem
também pode ser portador e transmissor. Conheci mulheres, que com
somente de vê-las, me impressionou pensar em que alguém pudera deitar-
se com elas porque se via de longe que não eram higiênicas. Eu sempre fiz
exames periodicamente, sempre estava alerta... Um dia, estava no centro de
controle de doenças transmissíveis sexualmente de San Sebastián
esperando os resultados dos exames e havia outra sala de espera onde
estava um moço sozinho, eu podia vê-lo do corredor. Logo chegou outro
garoto, olhou para ele e o abraçou, os dois começaram a chorar
desconsoladamente, pois o teste lhes revelou que estavam infectados pelo
HIV. Uma cena triste que ficou na minha memória para sempre. Ainda
posso ver na minha mente o desespero e a desolação de ambos.
Era mês de dezembro, e estava fazendo praça em Onxa. Eu gostava
de trabalhar ali pelo caráter das pessoas, eu tinha sorte naquele clube.
Estava falando por telefone com minha família, na cabine que ficava perto
do escritório do clube e da cozinha. Escutei o proprietário ameaçando o
encarregado geral.
— Se este dinheiro não aparecer antes de segunda-feira, você será
um homem morto.
Era uma discussão muito forte. Eles gritavam e eu deixei de falar por
telefone, nesse momento cruzei com o encarregado e com a cozinheira. Nós
três escutamos a discussão e as ameaças, ficamos nos entreolhando sem
dizer nada. Uma semana depois estava na sala falando com Marta, uma
garota que tinha também certo grau de sensibilidade extrassensorial.
— Anastásia, o que você está vendo?
— Ainda não sei… você sentiu?
— Sim, sinto uma presença muito forte de um espírito.
— Você não está enganada, tem algo aqui e está muito nervoso.
O espírito de Julián quando desencarnou foi para o clube, estava
desesperado, ia de um lado para o outro. Eu me assustei, pois fazia muito
tempo que não via espíritos e o conhecimento que eu tinha me permitia
saber que esse homem havia se suicidado ou havia sido assassinado.
Quando fechou o clube, estava indo para cozinha e encontrei uma amiga,
ela havia sido namorada de Julián, ela estava chorando muito e veio em
minha direção.
— O que foi, Lisa?
— Anastásia, Julián morreu.
— Eu sei.
— Mas como?
— Eu vi ele na sala.
— Deus meu.
— E que dizem? Como morreu?
— Dizem que se jogou na frente do trem.
— Se jogou na frente do trem? Que estranho...
— Sim, deixou uma carta dizendo que ia se suicidar.
O clima no clube ficou pesado, se via na cara de todas as garotas o medo e a
desconfiança porque algo não estava bem, todos evitávamos falar do tema,
pois intuíamos que havia muita sujeira detrás de tudo isso. Dizem que
Julián roubou mais de trinta mil euros do clube. Eu me fui dali e somente
voltei depois de muito tempo, quando a poeira já havia baixado. Quando
voltei ali, haviam mudado todo o pessoal do clube, os clientes também
haviam mudado, agora quase não se via espanhóis se não franceses, eles
haviam descoberto que a Espanha era o paraíso sexual mais próximo de
suas casas, sendo que na França de hoje a prostituição é motivo de multa
para os clientes. Seguindo o exemplo da Suécia, onde já se implementou
esse sistema de proibição e pelo visto tem dado resultados, na França
querem votar uma lei para abolir esse ofício, a ideia mais interessante do
projeto é castigar o cliente não a pessoa que exerça a prostituição, com
multas e detenções. Afirmam Bousquet e Geoffroy; “a prostituição e a trata
de brancas existem porque existe o cliente. Tem que explicar aos nossos
filhos que o corpo humano não se vende nem se aluga. E conscientizar
os clientes de que o feito de comprar sexo conduz ao tráfico de seres
humanos”, os franceses são muito duros e as leis ali se aplicam, isso tem
contribuído para a invasão francesa aos bordéis espanhóis nas fronteiras,
como Irún e Figueras, se podia saber exatamente quem eram os franceses
pelo tipo de bebida que pediam; o Jet, que é um licor de menta verde os
distinguia dos espanhóis. O que me impressionou é a diferença entre os
franceses da parte vasca e os da parte catalana, os da parte vasca ou os que
vinham de Paris eram mais abertos, gentis e educados, em contrapartida,
os de Montpelier e Perpignan eram mal-educados e grosseiros,
verdadeiramente insuportáveis. Quando lhes perguntava de que cidade da
França eram e me respondiam; Montpelier, eu colocava a mão na cabeça e
dizia “Mon Die”, dava meia-volta e ia embora nem por todo o dinheiro do
mundo eu suportaria estar com um deles.

Fui para o Saratoga, em Castelldefels, um clube pequeno e tranquilo
onde te tratavam bem. Ali conheci uma garota brasileira, Rose, que se
converteu em uma de minhas melhores amigas. Ela era uma mulher de
fibra, inteligente e lutadora, eu a admirava muito pela sua coragem e sua
força. Uma noite, subi com um homem baixinho, era muito simpático e,
ademais, jamais olhei a beleza, o único que desejava era que me tratassem
bem, nada mais... Então, fui para o quarto com ele. Enquanto eu estava em
cima, pegou meus seios e os apertou com toda sua força. Instintivamente,
juntei minhas mãos, as fechei e comecei a golpear seu rosto com todas
minhas forças até que lhe cortei os lábios… Me detive e vi que ele tinha uma
expressão de prazer e satisfação. Pensei comigo: “Será filho da puta? Ele
gosta”!
— Por que você me machucou?
— Era para que tua reação fosse mais real...
— Mas com a vontade que eu tenho de matar um não era necessário
me machucar, houvera bastado dizer-me. Você é um demente.
Continuei batendo, agora com mais força, e com vontade o expulsei
do quarto. Me arrumei e desci com uma expressão de satisfação na cara...
— Que aconteceu, Anastásia? Gozou?
— Não! Melhor, muito melhor que isso... Bati no cliente, mas bati
com gosto, me desafoguei... Estou leve como uma pluma, e vocês são umas
bestas, porque sabem que não gozo nem que me matem.
As garotas riam porque me conheciam e sabiam que eu era muito
séria, eu ria com elas, pois me sentia aliviada, relaxada... Toda a raiva que
tinha joguei sobre aquele pobre desgraçado que, no final, já me pedia que
não lhe batesse mais, creio que nessa noite lhe curei tirando seu desejo de
sofrimento para toda a vida...
Ali conheci José Maria, e acabei me envolvendo com ele. Me parecia
uma boa pessoa, me tratava com respeito e carinho, estava me ajudando,
me pediu que deixasse o trabalho e que fosse viver com ele, e assim foi.
— Tens outro aspecto desde que não trabalhas.
— Sim, é que aquilo é deprimente e muito duro.
— Ainda não dormes bem.
— Não, mas penso que dentro de pouco poderei dormir bem. E você,
quando vais deixar teu trabalho?
— Logo.
Ele me confessou que trabalhava para um traficante que se chamava
Juan. Primeiro me havia dito que era comerciante e só me disse a verdade
depois que já estávamos vivendo juntos, lhe disse que só continuaria com
ele se deixasse. Me prometeu que deixaria o tráfico, mas não cumpriu sua
promessa. Tinha um caráter terrível, ele não falava com seu irmão há
muitos anos, nem sequer no funeral do seu pai. Era separado e tinha dois
filhos em Galícia, quase não falava com eles e nem com a sua mãe. Fiz com
que se reaproximasse da família.
— Anastásia, não sei o que você tem que todas as pessoas que te
conhecem ficam encantadas com você.
— Não tenho nada de especial, sou uma pessoa normal, apenas trato
bem as pessoas.
— Não, de verdade, tens algo, pois minha mãe jamais aceitou a
minha segunda mulher e nem a primeira que é mãe dos seus netos, e a ti te
quer bem com loucura.
— Pois não sei, sou como sou, já sabes.
Ele esteve no Brasil para conhecer a minha família, mas não se
comportou muito bem. O príncipe se transformou em um sapo muito
malvado, era mulherengo e o flagrei de mãos com uma garota na praça de
Castelldefels e ali se acabou o que jamais deveria haver começado. Depois
de um tempo voltamos a falar, fiquei doente das cervicais, estava muito
mal, o médico me disse que não fizera nada, mas nada, durante uns cinco
dias, não podia girar-me e nem dormir bem, parecia uma múmia. Então, ele
me chamou para que fosse para sua casa, e quando cheguei ali no dia
seguinte me deixou sozinha e se foi com um amigo de viagem no fim de
semana. Sem contar que na noite anterior, enquanto eu estava deitada,
ficou saltando na cama, eu pedia que parasse porque me doía muito, mas
quanto mais eu pedia, mais ele saltava e fazia o colchão se mover
propositalmente, como um sádico olhando nos meus olhos e rindo
sarcasticamente. Quando ele voltou, lhe perguntei para que me havia
chamado:
— Se houvera sabido que era para estar sozinha aqui não haveria
vindo. Você sabe das recomendações médicas.
— Ah! Isso são besteiras.
— Você é insensível... Não sou tua boneca.
— Deixa-me em paz.
— Sim, te deixo, mas para sempre, porque você é um merda.
— E como vai a vida de puta?
— Cala, porque você tem uma filha.
— Não te metas com minha filha.
— Se te importara tanto com a tua filha não tratarias as mulheres
como as trata.
— Eu sabia que voltarias para o trabalho.
— Sim, porque jamais vi uma fotógrafa sem câmara.
Me deu um soco no rosto, me colocou dentro do carro e me jogou na
estação de Sants. Fui para a polícia e lhe denunciei. Foi a pior coisa que me
passou, porque estava apaixonada, me arrependi de haver deixado de
trabalhar para estar com ele, perdi mais de um ano da minha vida, podia
haver terminado as coisas que havia iniciado no Brasil. Foi muito duro
voltar a trabalhar. Ele havia comprado um Jeep de segunda mão para mim,
que era o carro que eu sempre gostei, comprou também uma câmara
fotográfica e acessórios para trabalhar, uma porque era minha paixão e
outra porque eu havia estudado fotografia, e ele me tirou tudo, me deixou
sem nada, me deu o céu e o inferno. Quase dois anos mais tarde ele teve a
cara de me procurar pedindo para voltar, disse que não podia me esquecer
e que ele foi um idiota por não haver sabido apreciar a grande mulher que
eu era, eu lhe disse que agora é tarde demais. Estive uns dias em Castellón
na casa de Gabriela descansando, depois de cinco anos nos havíamos
reencontrado. Me encontrava em uma situação muito difícil, estava doente,
não podia trabalhar, sem dinheiro e sem um lugar para viver, me lembro de
que estava dormindo no chão na casa da minha amiga, naquela noite havia
acendido uma vela para meu anjo da guarda, Gabriela estava na sala vendo
filme de terror que ela gostava, senti uns passos no colchão como se alguém
estivesse caminhando muito lentamente do meu lado, me virei e, para
minha surpresa, via os buracos no colchão como se formavam e se
desfaziam, lentamente levantei meu olhar e vi uma forma angelical que
tinha mais de dois metros, era impressionante…a paz que senti naquele
instante jamais havia provado, não tive medo, me virei e dormir, pela
manhã quando me despertei não tinha absolutamente nada no pescoço.
Um dia caminhando pelo centro, em Benicassim, encontrei Luís
sentado em uma varanda de um bar. Foi uma surpresa, e me senti muito
feliz ao vê-lo.
— Anastásia, por Deus, não posso crer.
— Nem eu.
— Mas estás mais bonita ainda.
— Sou como o vinho.
— Como estás?
— Não muito bem, acabo de sair de uma relação muito complicada.
— Necessito falar contigo.
— Diga-me.
— Não, agora não. Que tal se amanhã almoçarmos juntos?
— Bem, este é o meu número, me liga de noite e combinamos para
amanhã.
— Está bem, estou muito feliz de te reencontrar.
— Eu também, Luís.
Ele continuava igual, não havia mudado em nada. Me sentia ansiosa
para saber sobre o queria falar comigo, pois pelo tom de voz se via que era
importante.
— Bom dia, princesa... Já estás pronta?
— Sim.
— Em cinco minutos passo.
— Está bem, estarei abaixo te esperando.
— Como sempre, estás cada vez mais bonita, me encantas,
Anastásia.
— Obrigada. Você não muda, sempre esbanjando elogios. Agora me
diga o que você tem para me falar, de tão importante.
— Sim, de verdade que é importante. Já tenho minha vida resolvida
e tenho que dar um rumo a ela.
— Isso está muito bem. E o que você quer fazer?
— Não quero estar sozinho.
— Assim que, por fim, você se decidiu recomeçar tua vida...
— Sim e tenho três opções: voltar com minha mulher, unir-me com
uma garota russa muito bonita ou ficar contigo... Queres casar-te comigo?
— Estás louco? Primeiro: você tem somente duas opções e já sabes
quais são; e, segundo: você acreditava que eu ia te esperar cinco anos?
— Mas estás sozinha agora, naquele momento não era conveniente,
eu estava sempre fora.
— Mas não é o feito de estar sozinha, é que o teu momento passou...
Quando eu te quis e estava disposta a estar contigo, estava apaixonada,
você não quis...
— Não era o momento, Anastásia.
— Para o amor não existe hora marcada... Ele chega e se apresenta e
se não se aproveita o momento, você perde...
Por Deus, não podia aceitar que existam pessoas que creem que
para o amor tem um momento adequado, uma hora marcada: onde existe
conveniência não existe amor, são incompatíveis. O amor como a poesia
não se medem e valorizam com equações.
Uma pessoa, quando ama e assume a responsabilidade de seguir
junto à pessoa que ama, deve estar preparada para todas as
consequências... O amor não é um jogo, é a coisa mais divina que existe na
Terra, mas o egoísmo humano destrói essa joia que é o amor... Sempre
acreditei no amor, no seu poder, na sua força. Sempre respeite os
sentimentos alheios, jamais joguei com ninguém, nunca traí ninguém na
minha vida. Porque se não sabes respeitar os sentimentos dos demais, não
sabes respeitar a ti mesmo. Sempre foi difícil para mim enamorar-me, mas
quando acontecia era de corpo e alma.
Já me encontrava melhor e não necessitava do colar cervical, assim
me fui de Castellón, deixando Luís com suas outras duas opções.
Voltar a trabalhar não foi nada fácil, era uma tragédia para mim, o
fim do mundo. Estive falando com Naomi, mas ela havia mudado muito.
— Olá, Naomi, como você está?
— Bem, e você?
— Não muito bem, as coisas foram mal, tenho que voltar a trabalhar
e eu não quero.
— Deixa de besteiras, você tem que pensar no dinheiro.
— Mas é que eu não consigo... não suporto que me toquem, não
suporto o cheiro dos seus corpos, isto não é vida, isto é se suicidar pouco a
pouco, não posso mais.
— O dinheiro é o que importa, sem dinheiro não somos ninguém.
— O dinheiro não é tudo. Sou um ser humano com sentimentos,
penso, vejo, não estou morta. Tenho sangue nas veias e não vendi minha
alma ao diabo. Sem contar toda a energia negativa e os karmas nossos que
cada dia vão ficando mais pesados, e você sabe de tudo isso.
— Você é tonta, por que me enche a cabeça com essas coisas?
— Você pode deixar isso tudo quando quiser, Naomi! Você não tem
filhos, você está trabalhando há seis anos sem parar suportando a loucos e
drogados. Não te reconheço, você mudou muito.
— Deixa-me em paz, Anastásia. Pega tua mala e vai trabalhar, é o
que tem e não estou de acordo com as coisas que você diz.
Naomi havia se transformado, não era a garota com princípios e
valores que conheci, não era a pessoa doce que sempre estava para dar
uma mão, que fazia suas orações antes de descer para trabalhar. Ela
também se perdeu no caminho, se deixou corromper pelo dinheiro, pela
ambição. Perdi uma amiga. Sabia bem que nela já não havia nada da pessoa
que conheci quatro anos antes, senti nas suas palavras a frieza de um
coração impiedoso, materialista e calculista... Agora naquele corpo vivia
uma mercenária. Havia perdido o amor próprio. Não sei que coisas lhe
podiam haver passado… Que pode provocar uma mudança tão radical em
uma pessoa? Ela não consumia drogas, mas se via que psicologicamente
não estava bem, a ambição também é uma droga... Fazer tudo por dinheiro
é o mesmo que vender a alma ao diabo. Porque quando se perde o amor
próprio, já perdeu tudo.
Fui para um clube chamado Madames, em Figueras, na fronteira com
a França. Tinha uma depressão terrível, crises de ansiedade, estava com
medo de ter que voltar a tomar medicinas controladas, minhas crises eram
horríveis a ponto de ter que ir diretamente ao hospital. Fiquei sabendo que
todas as quintas-feiras vinha uma psicóloga que ficava toda a noite à
disposição das garotas, então todas as quintas ia vê-la, ficava horas com ela,
pois era sua única paciente e isso me ajudou muito a suportar o trabalho.
Dr. Cristiana era um encanto de pessoa, era bom poder conversar com ela,
eu fico abismada como as pessoas ignoram o valor que tem a psicologia e o
fundamental que é ter ao menos certo conhecimento básico, eu como
educadora digo que independente do curso que se faça no segundo grau, no
primeiro ano deveria ser obrigatório uma matéria de psicologia, creio que
todos viveríamos um pouco melhor, porque seríamos em grau de conhecer
e compreender melhor a nós mesmos e consequentemente aos outros
também. Decidi voltar a dançar, mas havia um problema: era uma boa
bailarina, sabia fazer striptease, mas não dançar na barra e isso era o que
estava na moda. Decidi aprender, ficava olhando as garotas que dançavam;
depois, pela manhã, ia para o palco tentar, eu já tinha trinta e cinco anos e
mais limitações físicas, mas minha sorte é que sempre fui muito ativa
fisicamente e praticava yoga. Superei todos os obstáculos e sozinha aprendi
a pole dance, porque é assim que se chama, uma dança acrobática que exige
muita força e concentração, pois um erro pode ser fatal. Em alguns lugares
se dançava em barras de até 3 metros de altura. Busquei um empresário e
comecei a dançar, tudo isso porque já não podia estar com os homens, já
não suportava que me tocassem, sendo que muitos te fodem como se fosse
a cabra do seu sítio; homens que não sabem tocar, que pegam teus seios
como se estivessem tirando leite de uma vaca e, ademais, já se sentia os
primeiros sinais de crise na Espanha.
Tudo me saiu melhor do que eu esperava. Fiz até uma publicidade
na televisão onde saía dançando. Pelos clubes que eu passava todos
queriam que eu voltasse. O clube 2000, em Murcia, foi um dos que mais
gostei para dançar. O encarregado, Valentín, era boa gente, nos tratava
bem. Ali também veio Jamila, uma garota que havia conhecido no clube
Erótica através da minha amiga Rose. Jamila e eu fizemos uma amizade que
dura até hoje. Uma mulher de um caráter doce, inteligente e elegante, com
uma cara preciosa, olhos expressivos e brilhantes... Ela e Rose tiveram e
têm um papel muito importante na minha vida, pois foram as pessoas que
me deram apoio e carinho quando mais necessitei. Foram as duas pessoas
que estiveram ao meu lado de forma incondicional. Tenho muito que
agradecer-lhes e também a Estela. Quando tinha crises de ansiedade, Rose
me fazia massagens tentando relaxar-me, me trazia água, sempre estava ao
meu lado procurando acalmar-me.
Em um dos clubes, conheci uma garota que tinha contatos na Itália,
me disse que ali ainda se trabalhava bem e que era menos pesado, pois se
trabalhava de dia em apartamentos privados com anúncios em jornal e
internet. Então, me arrisquei e fui para Itália. Enquanto buscava uma forma
de ganhar mais dinheiro sem tanto sofrimento, meus filhos estavam
crescendo e eu estava perdendo o melhor deles e o melhor de ser mãe.
Cheguei ao ponto em que já não perguntava mais a mim mesma e nem a
Deus o porquê das coisas e simplesmente decidi aceitar o que a vida me
oferecia.
Na Itália trabalhei em três apartamentos diferentes, onde se
pagavam de sessenta a cento e cinquenta euros por dia. Estava em Viterbo
quando um dia vi Johann no MSN, mas ele àquela hora deveria estar na
escola. Lhe perguntei que passava e me disse que seu avô Yves havia
morrido. Fiquei sem saber o que dizer, pois ele era um homem maravilhoso
e amava muito os meus filhos, seus netos eram sua vida, fazia de tudo pelos
dois. Ele era o anjo da guarda dos meus filhos. Com sua morte, minha
tranquilidade se acabou. Agora mais que nunca deveria preocupar-me em
trabalhar, porque a pessoa que protegia os meus filhos havia partido.
Liguei para os dois, lhes perguntei se eles queriam que eu fosse e disseram
que não. Minha mãe e minha irmã se ocuparam deles, estiveram com meus
filhos todo o tempo. Ligava até três vezes ao dia para apoiar-lhes e dar-lhes
meu carinho. Minha ex-sogra sofreu muito, pois meu ex-sogro era desses
homens que já não existem: o marido que toda mulher deseja.
De Toscana a Lazio e de Lazio fui a Umbría eu ainda não havia
desistido de estudar, ainda sonhava em ir à universidade. A terceira cidade
em que fui trabalhar me agradou e por casualidade na internet encontrei
uma universidade que tinha o curso que queria fazer. Pensei na
possibilidade de ficar ali e estudar, mas havia um problema: como iria dizer
para os meus filhos que ia estar fora por mais quatro anos? Liguei para os
meninos e falei com eles:
— Olá, Yuri, como estás, meu amor?
— Bem, mamãe, e você?
— Bem, queria te contar algo.
— Conta-me, mamãe.
— É que aqui na Itália tenho a possibilidade de voltar para a
Universidade, mas isto supõe estar outros quatro anos fora; filho, não sei o
que fazer, necessito saber tua opinião e a do Johann.
— Eu estou aqui, mamãe.
— Johann, você está na extensão, meu amor?
— Sim, e estou escutando tudo.
— Mamãe...
— Fala, Yuri.
— Mamãe, você já fez tantas coisas por nós… Pensa um pouco em
você, sempre quis se formar, é teu sonho. Faz algo por você e seja você
mesma, você sempre nos disse que nós não devemos desistir de lograr
nossos sonhos.
— Eu estou de acordo com Yuri. Você tem que entrar para a
universidade.
— Obrigado, meus filhos, sois maravilhosos, vocês são um presente
divino, não sabeis o orgulhosa que estou de vocês e a honra que tenho de
ser mãe de dois garotos como vocês. Os amo, os quero mais que tudo.
— Nós também te amamos, mamãe.
As lágrimas foram inevitáveis, lágrimas de emoção, mesmo com
toda a distância física que existia entre nós, consegui meu objetivo como
mãe. Tenho dois seres humanos maravilhosos na minha vida que me
ensinaram muito, me fizeram ver que nem a distância pode separar uma
mãe dos seus filhos e que para educá-los é necessário muito diálogo, amor
e compreensão. Eles não tinham minha presença física, mas jamais fui
ausente, fui uma mãe virtual todos estes anos. Escutar essas coisas de um
garoto de quinze anos e outro de doze é, de verdade, muito gratificante.
Como já disse, sempre me preocupei em educar bem os meus filhos, não
para que as pessoas me digam “que bonitos e educados são” e sim para que
eles tivessem princípios e valores, para que soubessem conviver em
sociedade, para que eles não sofressem as consequências de haver recebido
uma má educação... Quem ama, educa; educar é sinônimo de amar. Eu lhes
escrevia muitas cartas e falava por telefone, lhes enviava correios
eletrônicos… mas não era a mesma coisa, o feito de receber uma carta, de
abri-la, pegá-la nas mãos e ler tem sua magia e sua função psicológica e
pedagógica, depois poder guardar com amor a carta que recebi. Uma carta
evoca emoção e tudo o que está nela fica impresso na mente, no coração.
Depois de falar com eles, decidi ficar e fazer a prova de admissão. Comecei
a procurar um apartamento. Uma coisa que jamais gostei de fazer é ter que
ir a imobiliárias, suportar os mal-educados dos agentes imobiliários e
escutar sempre a mesma coisa: a palavra “extracomunitário”. Logo ter que
aclarar que “eu não sou uma extracomunitária, eu sou espanhola”, então
me pediam desculpas. Antes de ir-me à Itália, já tinha Espanha no meu
coração, pois deu de comer a mim e aos meus filhos. Tenho uma bandeira
espanhola na minha casa. Aparte da minha ascendência, eu me sinto
espanhola, é minha segunda pátria, minha segunda casa e, depois de
conhecer Itália, me enamorei mais ainda do povo espanhol. Isso me faz
recordar quando fiz a entrevista para a nacionalidade na Polícia Nacional
de Madrid:
— Olá, eu sou Carlos.
— Anastásia, encantada.
— Anastásia, devo te fazer umas perguntas que estão dentro do
protocolo.
— De acordo, não tem problema.
— Primeiro: Por que queres a nacionalidade espanhola?
— Porque tenho sangue espanhol e porque me encanta esta terra,
eu gosto da sua gente, sua cultura, sua história...
— Que coisas sabes e conheces de Espanha?
Comecei a falar de cada província, falei do Caminho de Santiago, lhe
contei a história da Espanha desde o princípio até a atualidade, comecei
com os romanos e os marroquinos passando pelos reis católicos, Franco até
chegar a José Luís Rodríguez Zapatero. Relatei o sistema político atual. Falei
de Goya, o maestro da luz, Picasso, Miró, Dalí e Antoni Gaudí… Ele ficou
impressionado.
— Por Deus, que vergonha, conheces Espanha melhor do que eu.
Mas agora tenho que fazer-te uma última pergunta, mas...
— Mas quê? Diga-me.
— É que me dá vergonha, mas é o protocolo e devo segui-lo.
— Então, me pergunta.
— Quais são as cores da bandeira espanhola?
O policial e eu começamos a rir.
— No escudo oficial de Espanha, o castelo e o leão representam a
união de Castilla e León desde o século XIII. As faixas vermelhas e amarelas
fazem referência à coroa de Aragón. As barras vermelhas eram as armas de
Wifredo I ou Veleso, primeiro conde independente de Barcelona, que,
segundo a lenda, foi ferido em uma batalha contra os normandos no ano
875. Então, o Rei Carlos o Calvo lhe visitou em sua tenda, ele rogou uma
mercê, o que Wifredo disse: “Da-me, senhor, um brasão para meu escudo”. O
escudo estava na cabeceira do leito, e então o monarca molhou os dedos
com o sangue da ferida de Wifredo e os passou pelo escudo dourado
marcando quatro raias vermelhas, dizendo: “Divisa que com sangue se
ganha, com sangue deve estar escrita. Estas barras serão as armas de vosso
escudo”. As correntes representam o reino de Navarra, unido à monarquia.
Se dizem que procedem da batalha das Navas de Tolosa, ganha pelos
príncipes cristãos ao Miramolín Mohamed, que tinha a tenda rodeada por
camelos amarrados com poderosas correntes. Trás a batalha, os navarros
levaram as correntes e conformaram o escudo de Navarra. A granada
simboliza o reino de Granada, último reduto muçulmano. Enquanto as
colunas com a legenda Plus Ultra, se diz que o emblema dos Reyes Católicos
era “non plus ultra” (assim consta, por exemplo, no escudo atual de Melilla),
em referência às colunas de Hércules (duas colinas situadas a ambas as
margens do estreito de Gibraltar) tinham como um dos limites do mundo. O
posterior descobrimento da América implicou na eliminação do “non”, já
que carecia de sentido. Logo mudaria completamente o significado, fazendo
referência à conquista e à obra espanhola no novo mundo (mais acolá do
ultramar).
— A ti não só devem dar a nacionalidade se não também uma
comenda.
— É que eu gosto de história, meu país é muito novo e não temos
toda esta riqueza que tem vocês, um passado cheio de guerras, lendas, reis,
nobres e um ditador. É fascinante chegar aqui e poder visitar o castelo dos
reis católicos, visitar a casa onde nasceu Goya… Isto é como tocar a história
com as mãos.
— Tens toda a razão. Jamais escutei alguém falar com tanta paixão
do meu país. Seja bem-vinda.
— Obrigada.
Espanha sempre me despertou uma paixão inexplicável, me
encantam os olivares, sua música, sua comida, suas tradições; tenho o
coração dividido entre Espanha e Brasil, me encanta falar o castelhano.
Gostei da Itália, mas ali não encontrei o calor humano que tem os espanhóis
nem a nobreza e tampouco a alegria. Menos mal que me tocou uma parte
da Itália considerada boa em todos os sentidos, a verde Umbría.
Com uma gente que a princípio parecia amável, não demorei muito
em encontrar um apartamento. Foi através de uma imobiliária cuja
proprietária, Estefânia, me tratou muito bem. Uma mulher dinâmica,
inteligente e muito elegante, ao contrário de muitas outras que não me
faziam caso por ser estrangeira.
No ponto de ônibus conheci uma colombiana que me pediu fogo e
começamos a falar, não pensei que ela fosse prostituta, pois estava com
uma menina pequena, sua filha. Fizemos amizade, me convidou para ir na
sua casa, conheci o seu marido, que era italiano. Ela se lamentou do lugar
onde estava trabalhando e decidimos alugar um apartamento juntas, e
assim fizemos. Então fiz o teste de admissão da universidade e fui
aprovada, me permitiram fazer em espanhol, já que um dos professores era
licenciado em castelhano. Assim, fiquei com um apartamento para viver e o
outro para trabalhar.
Pelas manhãs ia para universidade e pelas tardes trabalhava, tendo
uma dupla vida... Tinha medo de coincidir com pessoas que sabiam o que
eu fazia. A princípio, me custou acostumar, não pensei que seria tão difícil
reintegrar-me na sociedade, mesmo que fosse uma reintegração parcial...
Quase entrei em depressão no primeiro ano do curso. Foi muito difícil fazer
amizade, os italianos não confiam em ninguém nem em nada, e sempre
estão querendo levar vantagem em tudo. Um feito que me deixou
impressionada é a falta de solidariedade dos italianos, quando ocorreu o
terremoto de L’Aquila, um dos garotos da universidade era dali, e não
fizeram nada, mas nada para ajudar, nem mesmo reunir roupas, comida…
nada, não mexeram nem mesmo um dedo, nem sequer tocaram no assunto.
Fiquei alucinada, pois na Espanha, no período que levava uma vida normal
fora dos clubes, fui muito bem recebida pela sociedade, sempre encontrei
apoio e também amizades incondicionais, coisa que na Itália é muito difícil,
são mais individualistas e tudo é movido por interesse. Eu imaginava uma
Itália diferente e me encontrei com uma Itália farsante. Onde está o
Vaticano, que está cheio de pedófilos, racistas e hipócritas, tanto homens
como mulheres têm seus amantes, não se separam, não se divorciam, mas
sempre estão pulando o muro, dizem que “tiros trocados não doem”. Na
Itália existe um refrão popular; “não existe coisa mas divina que foder a
prima” e aos domingos vão à igreja, sempre estão elogiando os amigos e
por detrás lhes apunhalam. Casar-se com um estrangeiro na Itália é quase
um crime dependendo da zona, eles dizem que aqueles que se casam com
uma estrangeira é porque não conseguiram casar-se com uma italiana,
porque as mulheres italianas são muito exigentes e somente se casam com
um homem que tenha dinheiro e posição, pois são muito materialistas e
prepotentes. Também tem como conceito que os ricos se casam com as
magras, ou melhor, anoréxicas, e os pobres e do interior com as robustas.
Conceitos totalmente banais que demonstram a pobreza espiritual italiana.
Essa é a coisa mais absurda que vi na minha vida, um racismo entranhado
na pele, são racistas entre eles mesmos. Isso deve ser porque seu grande
herói de guerra, Giuseppe Garibaldi, estava casado com uma brasileira,
Anita Garibaldi, nascida em Laguna, no estado de Santa Catarina. Também
tem memória curta, pois em 1820 emigraram para o Brasil um milhão e
meio de italianos, hoje de duzentos milhões de habitantes que existem no
Brasil, cinquenta e cinco milhões descendem de italianos, enquanto a
população indígena entre puros e descendentes é de apenas cinco por
cento, o que é nada, os imigrantes italianos provocaram um caos social no
Brasil fomentando o movimento anarquista.
Um dia acompanhei uma amiga até o seu apartamento, estávamos
com os baldes e as vassouras para fazer a limpeza, pois seu marido ia
chegar da Espanha em dois dias, ele ia trabalhar em um restaurante de
maître. Na entrada do edifício umas mulheres nos pararam para perguntar
que íamos fazer ali. Minha amiga explicou que estava indo ao seu
apartamento para limpar porque se mudariam no fim de semana. Ter que
dar explicações da tua vida para vizinhos é demasiado, minha amiga ligou
para o moço da imobiliária e armaram um escândalo. Eles querem parecer
com os espanhóis, mas não chegam nem aos pés da amabilidade, educação,
e nobreza espanhola. Mas uma coisa sim é verdade: Itália é rica em
monumentos e história, Roma é muito bonita, com seus majestosos
monumentos, tem uma gastronomia rica e variada, mas quanto mais ao sul
vais, o panorama muda para pior. Nunca me senti tão sozinha como na
Itália. Na Espanha, aparte de minhas amigas brasileiras, tinha meus amigos
espanhóis que tenho como amigos até hoje, na Itália minha melhor amiga é
uma albanesa que estuda direito em Roma. Quando você tem um problema
na Espanha, os espanhóis dão a cara por você; na Itália, os italianos
desaparecem como ratos. Depois de alguns meses deixei o apartamento de
trabalho que tinha com a colombiana. Ela e o marido estavam sempre me
perguntando quanto havia feito no dia e queriam alugar apartamentos para
pôr garotas dentro para trabalhar para nós, e eu não estava de acordo com
isso, por isso me fui. Eu tinha direito à metade de tudo o que havia no
apartamento, e inclusive à metade do dinheiro da caução, mas eles não me
deram nada. Quando trabalhava na Espanha jamais um espanhol tentou
roubar-me ou enganar-me e tampouco aproveitar-se; na Itália, tinha que
estar sempre atenta... Uma vez, fui a uma cidade perto de Roma para
procurar um apartamento para uma amiga, incrível o que aconteceu... de
dez pessoas que tive contato naquela semana, oito me tentaram enganar…
Como eu lhes conhecia dentro do trabalho e fora, tinha uma visão clara da
sociedade.
Sempre ligava para casa, mas nesse dia não tive boas notícias, minha
irmã me disse que meu padrasto havia sido ingressado no hospital, que
tinha apenas um pouco de tosse, que não se sentia bem e que
provavelmente sairia logo. Segui ligando todos os dias; eles me
comunicavam que ele estava bem, mas meu coração me dizia ao contrário.
Ele ingressou na sexta-feira, e terça-feira minha irmã passou o telefone
para ele; falamos, ele me disse que estava bem e que não me preocupasse.
Na quarta-feira estava igual, mas na quinta-feira piorou; minha irmã
começava a preocupar-se, mas ela era otimista e também meu irmão. Na
sexta-feira o entubaram e colocaram ele na unidade de tratamento
intensivo. Ele tinha apenas cinquenta e cinco anos.
Perguntei para minha irmã se queria que eu fosse para o Brasil, mas
ela me disse que não, que estava segura de que ele ia se recuperar. Ela
chorava muito e meu coração sabia que as coisas não iam bem. No sábado
pela noite entrou em coma. No domingo pela tarde estava me lembrando
dele e de tudo o que me fez. Uma vez me colocou para fora de casa e tive
que deixar os meninos com meu ex-marido e não houve um só parente que
me dissesse: “Olha, aqui tem um canto, se queres ficar aqui”. Tive que
dormir escondida durante meses dentro da floricultura da minha mãe, me
banhava com água fria, não tinha onde fazer a comida, dormia no chão e
tudo isso porque cortei as pontas do cabelo da minha sobrinha, da sua neta
de sangue.
Comecei a chorar porque, apesar de tudo, o único pai que eu tive
havia sido ele, chorei de raiva e me perguntava por que ele havia feito o que
havia feito, por que ele não havia elegido ser um bom pai para mim. Por
Deus! Como desejei nesse momento que ele houvesse sido um bom pai!... Aí
foi quando senti sua presença no quarto e senti tocar-me a nuca, pois como
era muito alto — media 1,98m —, tinha esse costume de tocar a nuca dos
filhos como um gesto carinhoso. Ele estava ali comigo e me dizia que tudo
estava bem e que tudo ia acabar bem, que não me preocupasse. Na
segunda-feira fui para o Brasil para apoiar meus irmãos. Quando estava no
aeroporto de Zúrich para fazer a conexão liguei para casa e me disseram
que podiam declarar óbito em qualquer momento, aquilo foi muito ruim de
escutar. Eu chorava compulsivamente, lhe havia perdoado... As aeromoças
me deixaram sozinha no último assento, fazia cinco horas que estava no
avião quando senti que ele sentou ao meu lado, me acompanhou durante o
resto da viagem. Cheguei no Brasil a tempo para vê-lo. Fizeram uma missa,
mas o mais duro foi quando ficamos sozinhos ao seu lado, meus irmãos e eu
lhe colocamos Time de Pink Floyd, sua música preferida, e todos nossos
amigos começaram a chorar... Foi emocionante. Ele nos despertava às seis
da manhã com essa música, mas a todo volume, seu desejo era ser
incinerado e que jogássemos suas cinzas no mar, mas minha tia não quis.
Ela queria que colocássemos as cinzas na tumba de nossos avós, e aí
começou a confusão:
— As cinzas de Max tem que ir para tumba junto com os corpos dos
nossos pais.
— Mas, tia, ele não queria isso.
— Não, mas eu sim quero.
— É que é ele, e não você. É tão difícil de entender?
— Ele jamais me disse que queria ser jogado ao mar. E sou sua irmã.
— Sim, mas a nós, seus filhos, nos disse, está aqui mamãe para
confirmar.
— Não, isto não pode ser.
Já estava cheia da discussão entre minha irmã Agnes e minha tia.
Então, intervim:
— Basta já! Paramos com a palhaçada! Se dividem as cinzas. Se
coloca um pouco na puta tumba e o que sobrar vai para o mar, como era o
desejo dele, e se acabou.
Minha irmã começou a rir e eu também, mas ao menos, chegamos a
um consenso. Dois dias depois fomos para pegar nossa parte das cinzas...
Não podia ser diferente na minha vida, se fosse, não seria minha vida.
— Olá, Rosa, viemos pegar as cinzas do pai.
Rosa era a atual mulher do meu padrasto e ex-namorada do meu
irmão. Eu não a suportava. Quando a separação aconteceu e descobrimos
quem era a mulher que estava com ele, fui a única que não falava com
nenhum dos dois, nem por conveniência, não lhes olhava na cara. É que não
podia, não tinha estômago. Saí do Brasil sem falar com meu padrasto. No
meu primeiro aniversário na Espanha, ele me ligou e me pediu perdão,
disse que me admirava muito, pois o mundo podia dar voltas, passar um
ano, dois ou dez, não importava quanto tempo, mas ao final eu sempre
conseguia o que queria, me disse que eu era uma guerreira inata. Minha tia
nos escutou chegar e pedir as cinzas do meu padrasto da cozinha e
começou o escândalo.
— Que sacrilégio partir o meu irmão assim, pelo meio!
Minha irmã, com um ar de quem queria rir, pegou as cinzas e as
abraçou.
— Da-me nossa parte das cinzas, espero ao menos que esta parte
seja o seu cérebro, que era o que ele tinha de melhor.
— Não me conformo com o que estais fazendo com meu irmão, por
que já não partiram ele ao meio no necrotério?
— Tia, chega. Já basta! Porque esta confusão foi você quem armou,
ele queria ser jogado ao mar e foi você quem inventou esta história de
tumba.
— Mas, Anastásia...
— Nem mas, nem nada.
Minha irmã e eu pegamos as cinzas e nos fomos, parecia um roteiro
de uma comédia.
— Anastásia, põe o pai ali atrás.
— Já coloquei.
— Mas ele está bem?
— Bom, ele não se queixou de nada, olha como está quieto.
Fomos para minha casa. Ali ficamos até o dia da minha partida.
Como não podia ficar muitos dias, decidimos jogar as cinzas em dezembro,
quando estivéssemos reunidos os três irmãos. Voltei para Itália muito triste
e sem ânimo. Sempre fui uma pessoa incapaz de guardar rancor e, apesar
de tudo, sentia falta dele e sabia que a próxima vez que fosse para o Brasil
já não estaria ali. Diante da morte tudo fica muito pequeno.
Fiz as provas que havia perdido da universidade, pois foram
exatamente na semana em que meu pai morreu. Mas não podia me
concentrar para estudar, não podia nem trabalhar, estava muito afligida e,
pouco a pouco, fui me recuperando. Quando voltei em dezembro para o
Natal, no dia 31 jogamos as cinzas do meu pai. Mas toda, não só uma parte,
pois fomos ao cemitério e roubamos a outra metade que estava ali, minha
tia não sabe até hoje, mas creio que ela imagina. Meu irmão empurrou a
tampa da tumba, enquanto eu vigiava, e minha irmã com a mão dentro da
tumba rebuscou para encontrar a pirâmide com as cinzas.
— Anastásia, vem alguém?
— Não, anda, rápido, senão vamos todos parar detrás das grades.
— Mas que você está fazendo, Agnes?
— É que está muito escuro, Ricardo.
— Anda, foi você que teve a ideia, mete a mão na tumba já.
Era cômico. Fomos para a praia com as cinzas... Subimos nas pedras
para jogá-las, minha irmã ficou na primeira, meu irmão na segunda e eu na
terceira, diante de nós havia uma quarta pedra muito grande em forma de
pirâmide... meu padrasto era maçom. Quando minha irmã foi jogar as
cinzas, o vento mudou de direção e as cinzas vieram para cima de nós,
estávamos os três saltando e se limpando...
— Caralho com o puto vento! Tenho o pai até dentro dos olhos.
— Ricardo, não te queixes que tu estás mais longe. Eu comi ao
menos um dedo seu. Anastásia teve mais sorte, só caiu um pouco no braço.
Nós não sabíamos se chorávamos ou ríamos, sem contar que,
enquanto estávamos nas pedras, passou o helicóptero da polícia militar e
ficaram nos observando, deram a volta e passaram por nós uma e outra
vez; eu acredito que eles pensaram na possibilidade de que fôssemos
traficantes, com todo aquele pó que tínhamos não era difícil de confundir.
Duas semanas depois de chegar na Itália encontraram em Perugia
uma brasileira morta em seu apartamento. A assassinou um italiano, cliente
habitual seu. Em Udine, norte de Itália. Ramón Bertoso assassinou uma
romena, Deiana Alexiu, de 24 anos e a italiana Llenia Vecchiato de 28 anos.
Depois de roubar e maltratar suas vítimas, lhes dava um tiro com uma
besta no meio da testa, e as sepultava nuas. Também na Itália se
assassinam muitas garotas e são assassinatos brutais, o último caso que
ocorreu foi o de uma garota que foi cortada em pedaços com uma
motosserra, o corpo foi encontrado só um mês depois, mas o mais triste é
que não havia nenhuma denúncia de desaparecimento nem de amigos ou
de um namorado, na Itália a situação é pior ainda, pois muitos casos não
são levados a conhecimento público. Como já disse, estamos sozinhas e
ninguém faz nada, uma prostituta morta é só um número a mais na lista.
Quando tinha férias na universidade, saía para trabalhar em outras
cidades. Estava em Arezzo, quando entraram no apartamento quatro
albaneses armados com pistolas e chaves de fenda... Me roubaram tudo. Eu
não reagi, me machucaram um pouco e nada mais. Me deixaram fechada no
banheiro. Pela manhã pude sair e fui até a casa de uma amiga, Aline, que me
levou na delegacia para fazer a denúncia. Depois, voltamos para sua casa.
— Aline, me acompanha até a loja de telefone, que devo pedir uma
SIM nova para recuperar meu número, é que não quero sair sozinha.
— Te acompanho, Anastásia, não tem problema.
— Sei que você tem coisas para fazer, mas é que tenho a impressão
de que eu vou encontrar eles na rua.
— Tranquila, estes devem estar longe.
Saímos e fizemos tudo o que havia por fazer. Tinha que pagar a
universidade, as garotas me deixaram algo de dinheiro para completar com
o que eu tinha no Banco, já que me haviam roubado tudo. Pagava três
mensalidades de mil e oitocentos euros por ano mais a matrícula, que eram
seiscentos euros. Quando estávamos voltando para a casa da Aline, um
amigo dela veio ao nosso encontro e pedi a ele que me acompanhasse ao
apartamento, queria pegar umas coisas, pois ia ficar na casa da Aline aquela
noite, e depois iria para minha casa.
— Anastásia, você se lembra de como era o ladrão?
— Sim, Pedro, era baixo, um pouco robusto, de cabelo escuro, tinha
pintas na cara; apesar de que levava meia calça na cabeça, posso
reconhecê-lo, porque estava sempre comigo, os outros procuravam coisas
pelo apartamento.
— Pois creio que sei quem é, faz tempo que a polícia está detrás
deles.
Pedro fazia parte da defesa civil na Itália, então sabia muitas coisas
relacionadas com roubos e delinquentes procurados pela polícia,
estávamos nos aproximando de um bar que estava muito perto do
apartamento; desde ali se podia ver a sacada do apartamento onde eu
estava trabalhando.
— Anastásia, olha aquele moço que sai do bar.
Fiquei olhando discretamente. O moço falava ao telefone, se virou e
vi sua cara: era ele, o meu coração quase saiu pela boca.
— Me tira daqui, Pedro, é ele, estou segura, me tira daqui agora.
Não podia ligar para polícia porque estava muito nervosa; então
Pedro ligou e em menos de dez minutos estavam ali e os pegaram, pois a
delegacia estava muito perto dali. Foi horrível, fiquei muitas horas na
delegacia, fiz o reconhecimento. A polícia conseguiu recuperar meu
notebook, meu MP3 e meu telefone. O notebook era velho, não me
preocupava, mas sim o que havia dentro, todo o meu material da
universidade. Tive que voltar mais vezes a Arezzo, pois naquele dia
detiveram dois e mais tarde os outros dois. Todo o processo durou mais de
um ano, fiquei aterrorizada quando o sargento me disse que não sabia se já
ficariam detidos ou não, isso era um absurdo, com todas as provas que
tinham de que haviam sido eles os autores, ainda existia uma possibilidade
de ficarem em liberdade. Não dormia bem, pois cada vez que ia me deitar
via a cara do ladrão na minha mente. Fiquei traumatizada. Tive muita sorte,
pois eles haviam assaltado uma garota e lhe haviam destroçado a sua cara,
a espancaram, e a mim não fizeram nada, apenas me pegavam pelo braço
ou pelo cabelo e me arrastavam de um lado ao outro para mostrar onde
estavam as coisas.
Aline esteve todo o tempo comigo na delegacia. As demais garotas a
criticavam, diziam que ela não deveria estar comigo, que tinha que pensar
nos seus filhos, e ela lhes contestou dizendo que, graças a mim, prenderam
os ladrões e elas poderiam trabalhar tranquilas agora, pois nenhuma antes
havia tido coragem para denunciar-lhes. Maximiliano, o advogado do
ladrão, deu meu número para a namorada de um dos delinquentes
albaneses, ela me ligou duas vezes, eu lhe adverti que dissesse ao seu
advogado que, se ele quisesse saber de algo, que me ligasse diretamente, e
que eu conhecia muito bem as leis de privacidade. A partir daí, ninguém me
molestou. Liguei para o sargento Andrea e lhe contei o que havia passado e,
com muito descaro, me perguntou “o que você quer eu faça”? Tomazo, o
outro sargento, era mais atencioso e preocupado, me ligava perguntando
como iam as coisas. Passei muito tempo com medo, pois sabia que os
albaneses eram muito vingativos. Na denúncia, disse ao policial que as
armas eram falsas e me perguntou como eu sabia, lhe disse que foi pelo
barulho que fez uma quando a engatilharam perto da minha cabeça, e eu
tinha razão. As armas eram falsas. Eles não entendiam como fui capaz de
reconhecê-los com a cara tapada e distinguir as armas. Quando tive que
voltar a Arezzo para fazer outro reconhecimento, o policial me contou que
o ladrão disse ao juiz que me pedisse desculpas, e o advogado tentou usar a
prostituição como um argumento para pôr em dúvida a minha denúncia, o
depoimento e o reconhecimento. O juiz lhe respondeu dizendo que na
minha denúncia e declarações e no meu reconhecimento não havia nenhum
indício que pudesse levar à possibilidade de uma equivocação e que eu não
era uma prostituta qualquer. Que era uma universitária que fazia o que
fazia para poder estudar e que nisso não havia nada que pudesse
prejudicar a minha imagem, porque eu não era vista como uma estúpida,
como quis deixar ver o advogado. A única pessoa que me apoiou foi esta
garota, Aline. A agradeço de coração, pois ao menos ali naqueles momentos
não me senti tão só. A polícia italiana, conhecidos como Carabinieri, não
lhes importa nossa segurança, quando tive que ir fazer o último
reconhecimento, me armaram uma das boas: queriam colocar-me na
mesma sala com um dos ladrões, o que reconheci na rua, enquanto o outro,
que deveria reconhecê-lo, estava em uma sala à parte. Eu disse a Andrea, o
sargento responsável do caso, que não me parecia justo que ele visse o meu
rosto depois de tanto tempo. Então, mudaram a posição do ladrão e assim
ele me veria de costas. Andrea se posicionou ao meu lado, grudado em
mim, para que ele não me visse, mas tudo isso aconteceu porque eu exigi,
porque para eles houvera dado igual. As leis na Itália não estão feitas para
proteger o cidadão, a ambiguidade é uma constante, uma das coisas que me
surpreendeu foi saber que um homem não tem a obrigação de reconhecer
um filho mesmo que seja comprovada a paternidade. No Brasil, o estatuto
da infância e do adolescente garante no registro de nascimento de qualquer
criança o nome do pai e o sobrenome, a lei defende que ninguém deverá
sofrer as consequências psicológicas provocadas por rejeição e maltrato
por ser considerado um bastardo. Seguramente, têm pessoas que pensarão
que muitas mulheres se aproveitariam dessa lei, mas não é assim; se o pai
tem condições, paga a pensão, caso contrário, não paga nada. E se é a
mulher quem tem dinheiro, em caso de separação, é ela quem paga a
pensão. As coisas ali não vão de homens para mulheres ou ao contrário, e
sim de seres humanos para seres humanos, se busca usar do bom senso,
para que tenha um equilíbrio e igualdade.
Sofri muito com a situação que vivia, sempre com medo de que
alguém descobrisse o que eu fazia e agora com medo de que os ladrões
viessem detrás de mim. Na última audiência fiquei muito perto do ladrão, a
coisa se alargou, pois este último não aceitou o acordo, era tão cínico o filho
da puta que dava asco, ele insistia em dizer que não era ele, o feito é que ele
era o único com a cara descoberta, o que tocou a campainha para que eu
abrisse a porta. A petulância era tanta, que ele era o imputado e queria
fazer-me uma pergunta; o juiz lhe disse rotundamente um “não” com uma
expressão de indignação diante de tal descaro. Fora tinham alguns
albaneses e um deles tinha um tatuagem na mão, era um dos delinquentes
que já estava solto, pois, como era o chibata, lhe rebaixaram a pena, estava
solto e desfilava pelo corredor do fórum com tal soberbia e cinismo, que
faria com que qualquer um lhe saltasse no pescoço; eu estive ao ponto de
fazê-lo. A única amiga que tinha com quem podia falar abertamente era
Amanda, uma senhora colombiana, uma paranormal. A conheci através de
Mónica, a colombiana com quem tive o apartamento de trabalho. Essa
senhora foi como um anjo da guarda para mim, sempre estava me
advertindo de coisas que poderiam ocorrer e o roubo foi uma delas; ela era
a única pessoa em quem podia confiar meus segredos, nossa amizade se
fortaleceu de tal maneira que a tinha como uma segunda mãe.
Na Itália, conheci um moço que parecia ser diferente, vinha a verme,
ele me dizia que era solteiro e pobre, e resultou ser casado, rico e com um
filho, me mentia com o intento de estreitar uma relação comigo. Depois de
muitas discussões, ao final ficou sendo meu amigo e cliente, mas era uma
pessoa muito estranha, como a maioria dos italianos, uma pessoa egoísta e
fria que chega a assustar. Perdi a conta das vezes que clientes meus na
Espanha chegavam e me davam ao menos dez euros e me diziam: “Toma
isto, é para teus filhos”, e quantas vezes entravam na quarto comigo
somente para conversar. Na Itália, jamais um italiano me ofereceu ajuda ou
deu um presente para meus filhos, não é pelo feito do dinheiro ou do
presente, e sim pelo gesto. Fazia quatro meses que havia chegado ali
quando um cliente da região, que dizia que estava apaixonado, quase me
deixou louca, vinha detrás de mim quase todos os dias, pois eu não queria
envolver-me com ninguém, porque sabia o que passaria depois. Fui clara e
disse tudo o que pensava e mesmo assim ele quis entrar na minha vida. Não
me equivoquei, de verdade esse moço merecia um Oscar, cheguei a pensar
que por ser do campo seria diferente, mais humano, humilde; era uma
pessoa fria, com um coração gélido e uma mente calculista. Primeiro te
amam, te querem muito, mas chega o momento em que você tem
problemas, aí desaparecem; sair contigo, ou fazer algo juntos, nem pensar.
Não fazem, porque têm medo de que as pessoas possam descobrir o que
você faz ou que te reconheçam, e te mantêm escondida; que diabos de amor
é esse? Isso tem apenas um nome: egoísmo. Não te apresentam a seus
amigos, nem muito menos a sua família, você se sente um lixo, te sente um
nada; posso entender o medo que têm de passar vergonha; somos
responsáveis pelas pessoas que cativamos, e quando você decide entrar na
vida de uma pessoa deve ter em conta todas as consequências. Se você não
sabe se vai poder com isso é melhor nem começar, mas eles não
compreendem ou não querem compreender, nem imaginam como você se
sente e nem menos lhes importam, jamais vi pessoas com um coração tão
frio como os italianos.
Ser uma prostituta implica estar à margem da sociedade, à margem
da vida. Têm muitos que pensam que nós gostamos de fazer esse trabalho,
pensam que não temos sentimentos, que não somos capazes de se
apaixonar, mas se equivocam. Pensam que nós gostamos de fazer sexo
quando em realidade estamos cansadas de sexo e o que queremos é afeto,
atenção, carícias. Quando você fica doente, se vê sozinha. Não tem ninguém
disposto a estar ao teu lado. Lucrar, aproveitar-se, foder as emigrantes sim,
mas para casar-se não, cuidá-las não. São tão hipócritas que te conhecem
como te conhecem e, depois, te jogam na cara o que você faz... Os homens
por natureza já são egoístas, mas ter uma pessoa ao seu lado e dizer que a
ama, conhecer sua vida, seu sofrimento e depois ignorá-la, deixá-la sozinha
quando lhe convém, é o cúmulo do egoísmo, da crueldade e frieza.
Enquanto ele está com sua família e seus amigos reunido para
comer, você está sozinha, e muitas vezes trabalhando, e ele sabe e deixa
que você passe por tudo isso, te deixa sozinha nas datas importantes. É
muita frieza. Um homem, para casar ou viver com uma prostituta, deve ter
um par de ovos muito bem colocados, ter muita personalidade, ser muito
nobre e ter as coisas muito bem claras porque, senão, a única coisa que vai
fazer é sofrer e fazer sofrer a pessoa que tem ao lado. Eu penso que
sofrimentos já temos bastantes e não necessitamos de que ninguém venha
arruinar o pouco que nos resta de vida. Jamais gostei de envolver-me com
clientes ou o pessoal dos clubes, creio que inclusive dentro deste trabalho
deve existir ética profissional para que as coisas funcionem bem e para
evitar problemas. Sempre procurei deixar minha vida sentimental isolada
porque esse trabalho te destrói como mulher, como ser humano, sempre
evitei envolvimentos amorosos porque me conheço perfeitamente e sabia
que estando apaixonada seria incapaz de deitar-me com outro homem, não
suportaria que me tocassem... Minha dor e meu sofrimento seriam muito
grandes.
E também porque não me entra na cabeça que um homem que se
diga apaixonado por você permita que você se deite com outros, ainda que
seja por dinheiro. A sensação que senti nestes anos, em todos os sentidos,
foi muito triste, os anos que passei na Itália foram os piores, deitar,
despertar, comer... sempre em solidão, nos domingos almoçar e jantar
sozinha...
Cheguei ao ponto de, em uma Páscoa, arrumar a mesa para duas
pessoas para não sentir-me só, e convidei Jesus para comer comigo: parece
loucura, mas não é. A única companhia que tinha era a de Deus, era com Ele
com quem me desafogava. Dava graças a Deus quando alguém falava
comigo, ficava feliz, mas isso raramente ocorria, pois os italianos não são de
falar com desconhecidos. Saía a caminhar pelas manhãs e ao ver as pessoas
com suas famílias, os casais passeando, me deixava nostálgica, triste,
enquanto eu tinha apenas a companhia de um MP3. As canções que
escutava me faziam recordar que estava viva, porque a prostituição te
consume pouco a pouco, te isola do mundo, rouba teus sonhos e desejos de
mulher: o sexo te dá asco porque você já viu de tudo e já fez de tudo contra
tua vontade. Prostituir-se é se autoviolar cada dia... inconscientemente.
O dano psicológico, e muitas vezes físico, te deixa duras marcas, pois
uma mulher não está feita para ter seis, oito relações ao dia ou mais. Têm
algumas garotas que trabalham com o ciclo menstrual e colocam esponjas
ou algodão no útero, isso é uma agressão ao corpo e se pode pagar um
preço muito alto por isso. Têm garotas que conheci que perderam o útero e
até a vida. A única coisa que eu sei é que não desejo para nenhuma mulher
viver o que eu vivi, passar o que eu passei. Peço a Deus que proteja estas
mulheres que ainda continuam exercendo a prostituição. E aos políticos,
que regularizem a profissão mais antiga do mundo, assim, ao menos, essas
mulheres passarão a existir legalmente e terão seus direitos... À sociedade,
lhe peço que seja menos hipócrita, pois todos temos irmãs, filhas e mães,
que deixem de ver as prostitutas como animais, como uma doença, como
uma anomalia social... Às mães, lhes peço que eduquem melhor os seus
filhos e que lhes ensinem a respeitar as mulheres desde pequenos, pelo
simples feito de que uma mulher tem o dom do supremo milagre, o dom de
dar a vida.
As prostitutas vivem em uma prisão sem barras, eu posso garantir
que é uma tortura, um pesadelo estar nas mãos da máfia. Não é fácil, eu tive
muita sorte... Mas muitas não têm e acabam assassinadas. Pensem nas
mães, nos filhos dessas garotas... O preço que pagam para poder dar de
comer a sua família é muito alto, “mas é muito mais digno prostituir-se que
matar ou roubar”, é muito mais digno que deixar os seus filhos sem casa,
sem educação, muito mais digno que obrigar os seus filhos a estarem
jogados mendigando pelas ruas à mercê da sorte... É muito mais digno
deitar-se com mil homens por dinheiro que deitar-se com o melhor amigo
de seu marido ou namorado. É fácil ver uma mulher e dizer: “Esta é uma
puta”. Mas detrás desta cara pintada existe um coração que leva muito
sofrimento, detrás desta falsa alegria e do sorriso que levam aqueles lábios
cor de carmim existem muitas lágrimas ocultas...
A prostituta conhece muito bem a arte de sorrir mesmo quando se
tem vontade de chorar... Ninguém conhece os segredos ocultos no coração
dessas mulheres.
GAROTO DE ALUGUEL
LETRA E MÚSICA DE ZÉ RAMALHO

Baby!
Dê-me seu dinheiro
Que eu quero viver
Dê-me seu relógio
Que eu quero saber
Quanto tempo falta
Para lhe esquecer
Quanto vale um homem
Para amar você?...

Minha profissão
É suja e vulgar
Quero um pagamento
Para me deitar
E junto com você
Estrangular meu riso
Dê-me seu amor
Que dele não preciso...

Baby!
Nossa relação
Acaba-se assim
Como um caramelo
Que chega-se ao fim
Na boca vermelha
De uma dama louca
Pague meu dinheiro
E vista sua roupa...

Deixe a porta aberta


Quando for saindo
Você vai chorando
E eu fico sorrindo
Conte pr'as amigas
Que tudo foi mal
Nada me preocupa
De um marginal...

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