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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
TRABALHO DE GRADUAÇÃO INDIVIDUAL EM LETRAS ORIENTAIS

DEISE APARECIDA DE ARAUJO BUENO SAKUDA

Alegorias de guerra na cultura pop:


O exemplo de Godzilla e Mobile Suit Gundam

Versão Original

São Paulo
2016
DEISE APARECIDA DE ARAUJO BUENO SAKUDA

Alegorias de guerra na cultura pop:


O exemplo de Godzilla e Mobile Suit Gundam

Versão Original

Trabalho de Graduação Individual


apresentado ao Departamento de Letras
Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, da Universidade de
São Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do grau de Bacharel em Letras –
com habilitação em japonês.

Orientador: Prof. Dr. Koichi Mori

São Paulo

2016
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
SAKUDA, D.A.A.B. Alegorias de guerra na cultura pop: O exemplo de
Godzilla e Mobile Suit Gundam. Trabalho de Graduação Individual
apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção do grau de Bacharel em Letras.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. Koichi Mori Instituição: ______________________


Julgamento: __________________ Assinatura: ______________________

Prof.ª Dr.ª Patrícia M. Borges Instituição: ______________________


Julgamento: __________________ Assinatura: ______________________

Prof.ª Dr.ª Luiza Nana Yoshida Instituição: ______________________


Julgamento: __________________ Assinatura: ______________________
Ao meu querido marido, Fabio Sakuda,

minha maior inspiração para seguir em frente.


AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Inacia e Aparecido, que sempre me apoiaram em tudo.

Ao meu orientador, Prof.º Dr.º Koichi Mori, que acreditou no meu potencial.

À Prof.ª Patricia, por sempre me dar esperanças na vida acadêmica.

À Prof.ª Nana, por aceitar avaliar este trabalho.

Ao meu marido, por todo o apoio e força que me deu este tempo todo.

À minha irmã, à Juju, e à tia Danny, por todo o amor que me enviam sempre.
RESUMO

SAKUDA, D.A.A.B. Alegorias de guerra na cultura pop: O exemplo de


Godzilla e Mobile Suit Gundam. Trabalho de Graduação Individual
apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção do grau de Bacharel em Letras.

O presente trabalho visa realizar um estudo comparativo de obras de


audiovisual que apresentam grande influência do pensamento japonês pós-
guerra e toda a modificação social do país com decorrência do período das
Guerras Mundiais do século XX, focando em críticas sociais e alegorias. O
objetivo também é o de focar na importância e relevância das obras da cultura
pop japonesa, que sempre trataram de assuntos delicados da história e política
nacional e internacional de forma singela, a fim de informar e demonstrar sua
visão parcial das coisas. Para isso, foram escolhidas duas obras de longa-
metragem, Godzilla (Gojira - 1954) e a trilogia Mobile Suit Gundam (Kidou
Senshi Gundam – 1980), ambos criados e exibidos durante a Guerra Fria, para
fazer um estudo aprofundado de cenas que deixam transparecer a visão crítica
do autor de cada obra e sua intenção de servir como formador de opinião para
as próximas gerações. Em Godzilla, é possível estabelecer relação direta entre
o enredo e os últimos dias da Segunda Guerra Mundial, principalmente no que
se refere ao lançamento das duas bombas atômicas, além de mostrar a
fragilidade do povo quanto ao tema na década de 50. Já em Gundam, foram
identificadas diversas cenas que reforçam, direta e indiretamente, a posição
política e os sentimentos do autor em relação à incerteza do período da Guerra
Fria.

Palavras-chave: Guerras. Alegorias. Godzilla. Gundam. Japão.


ABSTRACT

SAKUDA, D. A. A. B. War allegories in pop culture: Godzilla and Mobile


Suit Gundam example. Individual Graduation Work presented to the Faculty of
Philosophy, Languages and Human Sciences of the University of São Paulo to
obtain the degree of Bachelor in Languages.

This present work aim to conduct a comparative study of audiovisual works that
have huge influence in the Japanese post-war thoughts and all the social
changes in the country in consequence of 20th Century World War, focusing in
social criticize and allegories. The objective is also to focus in the importance
and relevance of Japanese pop culture, that always deal with delicate subjects
from the national and international history and politics in simple form, in order to
inform and demonstrate their partial vision of the situations. For that, it was
chosen two works in feature film, Godzilla (Gojira – 1954) and the Mobile Suit
Gundam trilogy (Kidou Senshi Gundam – 1980), both created and exhibited
during Cold War, to make a deep study of scenes that make clear the author
critic vision in the works and their intent to serve as opinion leaders to the next
generations. In Godzilla is possible to stablish a direct relation between the plot
and the last days of the World War II, mainly in what is referred to the two
Atomic Bombs attacks, and showing the fragility of the people to this subject in
the fifties. Now, in Gundam, we identify many scenes that reinforce, directly and
indirectly, the political position and the feelings of the author in relation to the
uncertainty of the Cold War period.

Key Words: Wars. Alegories. Godzilla. Gundam. Japan.


あらすじ

SAKUDA、D. A. A. B.ポップカルチャーの戦争寓話:ゴジラと機動戦士ガンダムの
例。サンパウロ大学哲学・文学・人間科学学部で文学学士の学位を取得する為
の個人卒業研究。

本稿は、第二次世界大戦後の日本の戦後思想や社会変化に大きな影響を与える
映像作品に社会的批判と寓意に焦点を当てる比較研究を目的としております。

その目的は更に、シンプルな形で国内外の歴史と政治の繊細な科目をいつも
扱っている日本のポップカルチャーの重要性と妥当性に焦点を当て、状況の部
分的なビジョンを知らせ、実証することにもある。

そのため、冷戦時代に制作、展示された長編映画「ゴジラ」(Gojira - 1954)と

機動戦士ガンダム三部作(Kidou Senshi Gundam - 1980)の 2 作品が選ばれ、作

家の批評家のビジョンと次世代の世論指導者としての役割を果たしたい気持ち
を明確にするシーンを深く研究しています。

ゴジラでは主に原子爆弾投下で、プロットと第二次世界大戦の最後の日々との

間の直接的な関係を築くことができ、1950 年代での人々のこのことに関する脆

弱性を示します。

そしてガンダムでは、作者の政治姿勢と冷戦期の不確実性に関連する気持ちを
直接的および間接的に強化する多くのシーンで特定できます。

キーワード;大戦、寓話、ゴジラ、ガンダム、日本
LISTA DE IMAGENS

Figura 1.1 – Primeira concepção de Godzilla................................................................. p. 19

Figura 1.2 – O Dr. Serizawa apresenta o Oxygen Destroyer.......................................... p. 21

Figura 1.3 – A explosão inicial que mostraria Godzilla pela primeira vez em ação........ p. 22

Figura 2.1 – Colônias espaciais criadas em volta dos pontos de Lagrange....................p. 26

Figura 2.2 – Bandeira Nacional do Principado de Zeon.................................................. p. 30

Figura 2.3 – O carro “Zeonic Toyota” homenageando Char Aznable, e o dublador original do
personagem, Shuuichi Ikeda...................................................................... p. 34

Sequência de figuras 1 – Diálogo entre Degwin Zabi e Gihren Zabi........................... p. 31

Sequência de figuras 2 – Os monumentos japoneses em homenagem a Godzilla e


Gundam – A cabeça de Godzilla no topo do prédio da Toho em
Shinjuku / A estátua em tamanho real do Gundam em frente ao
Diver City de Odaiba............................................................p. 41
SUMÁRIO

1 Introdução.................................................................................................13
2 Godzilla.....................................................................................................16
2.1 Contexto histórico................................................................................17
2.2 A criação de Godzilla...........................................................................18
2.3 O roteiro...............................................................................................20
2.4 Alegorias e importância........................................................................21
2.5 A reflexão final vinda de Godzilla.........................................................24
3 Mobile Suit Gundam..................................................................................25
3.1 Roteiro..................................................................................................26
3.2 Contexto histórico dentro da obra........................................................27
3.3 O autor e o contexto histórico-político..................................................28
3.4 As primeiras alegorias..........................................................................29
3.5 O Principado de Zeon e a família Zabi.................................................29
3.6 O Cometa Vermelho e suas influências...............................................34
3.7 Influência da Bomba Atômica em Gundam..........................................36
3.8 Usando da violência para conscientizar...............................................37
5 Conclusão..................................................................................................40
6 Bibliografia.................................................................................................42
12

INTRODUÇÃO

Sabemos que a cultura pop é grande influenciadora e que o número de


fãs de quadrinhos e filmes relacionados a essa cultura vai crescendo de ano a
ano. Hoje vemos muitas produções no cinema referentes a super heróis e
personagens de ficção, com enredo que mostra a superação de um grande
problema ou crises mundiais usando elementos fantásticos. Sabe-se que
muitas vezes na história do mundo, estes personagens foram criados para
influenciar o pensamento dos jovens, ou até para mostrar a opinião dos
próprios autores. Histórias da cultura ocidental como o Super Homem 1 ou
Capitão América surgiram em períodos de crises financeiras ou, no caso do
segundo, de guerra2.

O século XX foi marcado por conflitos que muitas vezes mudaram o


rumo e a visão que temos do mundo. O Japão, que teve importante
participação na Segunda Guerra Mundial, sofreu grandes danos no decorrer
deste acontecimento. Suas perdas durante o ultimo período da Guerra do
Pacífico3 foram impressionantes: sessenta e seis cidades bombardeadas, três
milhões de mortos, nove milhões de desabrigados, três milhões de civis presos
no exterior, e três milhões e meio de soldados e marinheiros que necessitaram
ser repatriados (DOWER, 1999, p. 45-9, 119, 179, 562). Além disso, o Japão
foi alvo das duas bombas atômicas que destruíram as cidades de Hiroshima e
Nagasaki, causando um dano devastador e espalhando um período de temor
por todas as partes do globo. Segundo o professor e historiador William
Ashbaugh, “para o japonês do pós-guerra, nenhum trauma nacional pode
competir com a Guerra Asiática do Pacífico” 4 (ASHBAUGH, 2010, p. 327) e isso

1 Super Homem: Do inglês Superman, herói criado em 1938, durante a recuperação americana da Crise
de 1929, que gerou a grande depressão. O herói apresentava em seus quadrinhos elementos
nacionalistas e incentivava o país a se reerguer da crise.

2 Criado durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941, o Capitão América foi um herói-símbolo da nação
americana e lutava contra o nazismo.

3 Guerra do Pacífico: Série de conflitos asiáticos que fizeram parte da Segunda Guerra Mundial. Alguns
acontecimentos importantes são a Segunda Guerra Sino-Japonesa, o bombardeio a Pearl Harbor e o
ataque atômico a Hiroshima e Nagasaki.

4 Tradução livre de “For postwar Japanese, no national trauma can compete with the Asia Pacific War”.
13

se dá não só pelos efeitos físicos causados, mas também pelo abalo


psicológico que tomou o país após a rendição definitiva em agosto de 1945.
Com a rendição, veio a ocupação americana e a significativa perda de poder do
imperador. Tantas mudanças trouxeram grande abalo cultural. A consciência
das crianças e jovens daquela época passou a ser exposta nas décadas
seguintes e mesmo sofrendo influências ocidentais decorrentes das
ocupações, o espírito nacionalista deixava-se transparecer no campo da arte e
cultura. Aos poucos, pinturas, filmes, quadrinhos e animações foram surgindo,
com sutis demonstrações e referências do grande impacto causado pela
guerra. Algumas dessas obras culturais serviram como boas influenciadoras
para a recuperação do espírito nacional, outras como responsáveis por mostrar
às novas gerações os horrores causados pelos conflitos e pelo militarismo, este
que não era mais permitido ao Japão5. Tais obras passaram a circular pelo
arquipélago e se popularizaram, surgindo mais e mais criações, com
referências cada vez mais explícitas. Nas ultimas décadas, a cultura popular
japonesa se difundiu pelo mundo e sua mensagem de nacionalismo e críticas
ganhou importante função na compreensão do estilo de vida e de como a
nação se reergueu, tornando-se a potência que conhecemos hoje.

Mas por que usar da ficção e de personagens muitas vezes infantis para
criar alegorias que poderiam ser seriamente expostas? A estratégia de usar da
fantasia para “amenizar” um fato é levada em conta pelos especialistas para
ajudar crianças com traumas, e a ficção da cultura pop se mostra como boa
ferramenta neste sentido. O jornalista Gerard Jones, em seu livro “Brincando
de Matar Monstros”6 cita o exemplo de como crianças americanas lidaram com
o 11 de setembro: faziam desenhos, contavam histórias e brincavam, entre
outras coisas, de soldados derrotando terroristas. Segundo ele “(essa reação) é
simplesmente a maneira pela qual as crianças lidam com isso. Quando algo as
incomoda, sentem necessidade de brincar com o fato até que pareça mais
seguro” (JONES, 2004, p.13). Os japoneses usaram deste artifício para
5 Criado para a constituição japonesa de 1946, o Artigo 9 impõe a renúncia à Guerra e ao poderio
militar. Com isso, o Japão abriu mão do exercito, ficando apenas com uma força de autodefesa até 2015,
quando o artigo foi reinterpretado e levado do senado ao primeiro-ministro Shinzo Abe, que sancionou
a nova legislação em março de 2016.

6 Título original: “Killing Monsters: why children need fantasy, super heroes and make-believe violence”,
versão traduzida em português pela Editora Conrad, em 2004.
14

também levar segurança às crianças das futuras gerações, além de lembrar,


com um pouco de fantasia, os acontecimentos históricos, mas com o intuito de
levar ao publico mensagens de força e regeneração.

Analisaremos nas próximas páginas duas importantes obras


influenciadoras da cultura popular japonesa: Godzilla e Mobile Suit Gundam,
que servem como exemplos de como os autores usaram da ficção e fantasia
para mostrarem suas ideias referentes ao modo com o qual a nação japonesa
agiu e reagiu após a grande tragédia, mantendo a cabeça erguida.
15

GODZILLA (ゴジラ)

O Japão passou por momentos muito difíceis na primeira década do pós


guerra. A luta para se reerguer de um episódio tão difícil como o das bombas
atômicas pareceu interminável. As vítimas sobreviventes das bombas também
passaram por preconceito devido a sua aparência, porque o povo não queria
de forma alguma se lembrar dos terríveis momentos.

Até o fim da década de 40 o mundo ainda respirava uma pequena


sensação de paz, que acabou quando a União Soviética anunciou que também
havia feito testes nucleares. Com isso, começou o período da Guerra Fria, uma
época de incertezas quando ninguém no mundo sabia o que poderia acontecer
caso as duas potências, Estados Unidos e União Soviética, se enfrentassem.
Americanos passaram a incentivar a construção de abrigos subterrâneos e
instruíam crianças a se abaixarem em caso de ataque. Todos estavam num
período de horror.

No Japão ainda era muito difícil lidar com a situação mundial de forma
explícita, neste período os cineastas da empresa Toho resolveram debater o
assunto nuclear de forma criativa e sem nocividade. Em 1954, 9 anos após o
fim da Segunda Guerra Mundial, estreava nos cinemas um filme de horror com
um protagonista que iniciaria o gênero dos Kaijus (monstros gigantes), Gojira.
Criado por Tomoyuki Tanaka e dirigido por Ishiro Honda e Eiji Tsuburaya, que
criou os efeitos especiais e iniciou o gênero Tokusatsu 7, o filme contava a
grande tragédia fictícia deixada pelo monstro radioativo. Gojira (ou Godzilla,
nome dado pelos americanos e que marcou a fama do monstro pelo mundo)
era um monstro gigante que chegava pelo mar até Tokyo e destruía a cidade,
causando pânico e mortes. Este poderia ser apenas um filme comum, se não
ficasse clara a forte mensagem de repúdio aos testes nucleares e à bomba
atômica, citada no filme como grande culpada pela criação do monstro.

7 Tokusatsu: Abreviação de Tokushu Satsuei (特集撮影), efeitos especiais. Gênero de filmes e séries de
super heróis e monstros que possui como característica os efeitos de destruição das cidades e as luzes e
cores, todas feitas com efeitos especiais de baixo orçamento. O gênero é um grande sucesso entre as
crianças japonesas.
16

O filme, que se tornou grande sucesso, iniciando uma franquia que traria
mais 32 filmes entre 1955 e 2016, fez com que o monstro Godzilla aos poucos
se tornasse um dos símbolos da cultura popular japonesa, mudando seus
objetivos aos poucos com o decorrer das mudanças na história mundial.

Apesar de toda a evolução do pensamento japonês acompanhar a


evolução dos filmes, focaremos em todo o impacto e importância causados
pelo primeiro longa de Godzilla, e como ele mudou a visão do povo no início da
Guerra Fria. Como afirma Cristiane Sato em seu livro: “o Japão lidou com o
medo nuclear de modo diferente que os americanos – ao invés de construir
abrigos enquanto reconstruíam suas cidades, os japoneses criaram Godzilla”
(SATO, 2007, p.180).

Contexto historico:

A Segunda Guerra Mundial terminou em 2 de setembro de 1945. O


Japão, um dos membros do Eixo, se rendeu em 15 de agosto do mesmo ano,
após sofrer o impacto de duas bombas nucleares nas cidades de Hiroshima e
Nagasaki. Tal fato se tornou um divisor de águas para a história da nação
nipônica, visto que não só sofreram com as mudanças provenientes da
ocupação americana em território nacional, como a perda do poder do
Imperador, a queda do exército e o grande trauma causado pelas
consequências da radiação nos locais próximos ao lançamento das bombas.

O governo americano passou a incentivar a criação de partidos políticos


e a extinção das empresas familiares8, a fim de modificar a forma como o
Japão governava antes da guerra. A economia passou a crescer de forma
positiva se aproveitando de outra guerra, a Guerra das Coréias 9, quando o
país, que era tão próximo da região dos conflitos, foi estratégicamente usado
pelos Estados Unidos na venda de armas, lançando o Japão pela primeira vez
8 Zaibatsu: Grande oligopólios formados por empresas familiares que gozavam de grande poder político
e econômico durante o Japão Imperial (Período Meiji até a Segunda Guerra Mundial). Alguns exemplos
são empresas como Mitsubishi e Mitsui.

9 Guerra das Coreias (1950-1953): Famoso conflito que resultou a divisão da Coreia em dois países
distintos, a Coreia do Sul (apoiada pelos Estados Unidos e Reino Unido) e a Coreia do Norte (apoiada
pela União Soviética e China). Apesar de ter ocorrido um armistício em 1953, em 2013 a Coreia do Norte
anulou o acordo.
17

num boom industrial e fazendo com que o país pudesse financiar suas próprias
importações (TORRES, 1983, p.18).

O objetivo do Japão ao acompanhar os Estados Unidos era conquistar


uma independência financeira que pudesse reavivar seu espírito nacionalista,
mas era clara a consciência da nação quanto às mudanças que deveriam ser
feitas a partir de todos os acontecimentos da Segunda Guerra, como cita
Ernani Torres:

Com o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, o velho sonho imperial


foi definitivamente enterrado. O Japão estava agora submetido à
hegemonia americana e precisava se adaptar e responder
rapidamente a esta nova situação. Neste contexto, o perfil industrial
desejado era aquele que permitisse, a um só tempo, superar as
condições do estrangulamento externo e ampliar o mercado interno.
(TORRES, 1983, p.19)

Ainda com poucos recursos no que se refere a matéria-prima para o


setor da indústria, o Japão passou a criar incentivos para se atualizar
tecnologicamente, enquanto mudava aos poucos sua política industrial.

No que diz respeito às artes, o cinema foi um elemento de grande


destaque no Japão da década de 50 e se tornou uma das melhores formas de
expressão popular. Em 1951, o filme “Rashomon” de Akira Kurosawa, recebeu
o Leão de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Veneza, sendo
indicado em 1953 ao Oscar de melhor direção de arte em preto e branco. Em
1954, Godzilla estreava no cinema. Ainda nessa mesma década, em 1958, os
cinemas japoneses receberam o público pagante recorde de 1.1 bilhão de
pessoas (SATO, 2007, p.15).

A criação de Godzilla:

Enquanto Rashomon era indicado ao Oscar em 1953, Hollywood


lançava um filme de ficção científica chamado “The Beast from 20,000
Fathoms”10, que contava a história de um dinossauro que surgia a partir de

10 The Beast from 20,000 Fathoms, no Brasil lançado como “O Monstro do Mar”.
18

testes nucleares. Inspirado nesta ideia, Tomoyuki Tanaka, junto ao diretor


Ishiro Honda, decidiram trabalhar num filme que pudesse ao mesmo tempo
entreter e conscientizar a população japonesa a respeito das bombas atômicas
e da realidade mundial. Surgiu assim o projeto que daria vida a Gojira, o
monstro radioativo que atacava Tokyo causando terror geral.

A princípio, a ideia de Tanaka e Honda era criar um monstro que


lembrasse a bomba atômica, com a cabeça em formato de um cogumelo
(figura 1), mas decidiu que o monstro pareceria um dinossauro com a face
semelhante a de um gorila, de forma que associasse Godzilla à Besta do filme
hollywoodiano, ao mesmo tempo que lembraria o famoso King Kong (1933).

Figura 1.1 – Primeira concepção de Godzilla

Disponível em: < http://legendsrevealed.com/entertainment/wp-


content/uploads/2014/07/godzillamushroom.jpeg> Acesso em dez. 2016.

Apesar das semelhanças do monstro gigante recém-criado com os dois


seres hollywoodianos, o intuito era gerar um impacto diferente. Peter Brothers,
em seu livro, explica:

King Kong e The Beast from 20,000 Fathoms, exibiram efeitos que
descrevem a destruição local; Mas em Godzilla, o mundo inteiro
estava em jogo. Nenhum desses dois filmes americanos estava
terrivelmente preocupado com a realidade ou questões humanas e
nunca pretendeu fazer qualquer tipo de declaração social sobre os
tempos em que eles foram feitos, mas Godzilla foi destinado a
19

iluminar, bem como entreter com um monstro de poder e


propósito.11 (BROTHERS, 2015, p. XV)

A ideia de mostrar ao mundo o desenvolvimento cinematográfico ao


mesmo tempo que os sentimentos de uma nação abalada, enquanto trabalha
com a cabeça do próprio povo japonês, impulsionou a equipe da Toho 12 a
acelerar a produção do filme, que estreou em 3 de novembro de 1954,
alcançando uma bilheteria de 153 milhões de ienes (KALAT, 2010, p.18).

O Roteiro:

O filme começa com uma explosão no mar presenciada por marinheiros


num barco. Depois deste incidente é descoberto que um monstro radioativo
estava atacando Tokyo. O paleontologista Kyohei Yamane passa a pesquisar
sobre o monstro e descobre que ele era resultado dos testes nucleares feitos
pelos Estados Unidos na região do Atol de Bikini 13. Passa-se então a tentar
desvendar uma forma de deter Godzilla, enquanto este continua a atacar a
cidade.

A filha de Kyohei, Emiko Yamane, conhece um cientista chamado


Daisuke Serizawa, que revela que conseguiu construir a maior arma de
destruição em massa da história da civilização, o Oxygen Destroyer (figura
1.2), um mecanismo que consegue destruir partículas de oxigênio. Arrependido
da invenção e com medo de que caia em mãos erradas, o Dr. Serizawa se
convence a usar a arma para destruir Godzilla, mas antes queima todas as

11 Tradução livre de: “King Kong and The Beast from 20,000 Fathoms, which showcased effects
depicting local destruction; but in Godzilla, the entire world was at stake. Neither of those two American
films were terribly concerned about reality or human issues and never intended to make any sort of
social statement about the times in which they were made, but Godzilla was meant to enlighten as well
as entertain with a monster of power and purpose.”

12 Toho: Produtora de filmes criada na década de 30 e que ficou famosa pelos filmes de Godzilla.
Também distribui diversos filmes de animes, como os do Studio Ghibli.

13 Atol de Bikini: Membro das Ilhas Marshall, é um atol localizado no Oceano Pacífico que foi utilizado
como zona de testes de bomba nuclear e bomba de hidrogênio por muitos anos após a Segunda Guerra
Mundial.
20

suas pesquisas, se sacrificando junto com o monstro para que não haja mais
nenhum vestígio de algo tão cruel a ponto de destruir a humanidade inteira.

A história acaba com uma reflexão do que poderia acontecer caso armas
como esta caíssem nas mãos dos grandes governos, junto com um alerta dos
perigos dos testes nucleares e de Bombas H, que eram constantes no período
em que o filme foi lançado.

Figura 1.2 – O Dr. Serizawa apresenta o Oxygen Destroyer

Disponível em: <http://www.cinemainsomnia.com/wp-content/uploads/2013/07/Godzilla_Ogata-


Emiko-Serizawa.jpg> Acesso em dez. 2016.

Alegorias e importância:

As referências encontradas em Godzilla são tão explícitas que o filme


poderia ser considerado quase que parcialmente baseado em fatos.
Apontaremos a seguir algumas das mais marcantes encontradas durante o
longa.

 O Lucky Dragon 5:

Em 1 de março de 1954, o barco Daigo Fukuryuu Maru ( 第五福龍丸 – ou


Lucky Dragon n.º 5) navegava na região das ilhas Marshall quando recebeu o
21

impacto de um teste de bomba de hidrogênio. Os 23 tripulantes foram envoltos


por uma luz forte e depois presenciaram cinzas caindo por todos os lados do
barco, chegando às suas cabeças. Pouco depois, descobriram que estavam
contaminados por uma grande quantidade de radiação e expostos a várias
doenças. Voltando ao Japão, todos tiveram reações, muitos contraíram
hepatite C e um dos tripulantes faleceu poucos meses depois devido às
complicações da radiação. O impacto deste fato foi enorme, causando muita
revolta nos japoneses. Muitos dos marinheiros sobreviventes tiveram que
mudar de cidade, por medo de contágio14.

A cena inicial do filme (figura 1.3), com uma explosão acontecendo ao


lado de um barco enquanto os marinheiros descansavam, foi uma referência
clara a este incidente, sendo recebida por todos os espectadores como uma
homenagem, ao mesmo tempo que uma grande crítica.

Figura 1.3 – A explosão inicial que mostraria Godzilla pela primeira vez em ação

Disponível em: <https://moviepilot.com/posts/1271069> Acesso em dez. 2016.

 A bomba atômica:

14 Durante os primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial, os cidadãos ainda acreditavam que a
radiação exposta aos sobreviventes das bombas atômicas era contagiosa, causando muita discriminação
e marginalidade.
22

Em 6 de agosto de 1945, o avião Enola Gay cruzava os mares


transportando a Little Boy, a primeira bomba nuclear, que seria jogada na
cidade de Hiroshima. Tal como a bomba veio do oceano e chegou ao Japão,
trazendo destruição sem precedentes, Godzilla também partiu do oceano e
chegou à capital nipônica causando destruição por onde passava, tendo como
principal arma uma chuva de radiação vinda de sua boca. Tal radiação
desintegrou pessoas e prédios, e causou grande terror aos espectadores.

Desde o lançamento do filme de 1954 até hoje, Godzilla é considerado


uma das maiores alegorias já feitas à bomba atômica e a toda a sua
destruição.

 O experimento científico:

O Oxygen Destroyer era uma arma ficcional que poderia destruir a


humanidade, mas a discussão sobre ela era muito real. Durante a criação do
filme, as duas grandes potências mundiais corriam atrás de novas tecnologias
para a criação de armas de destruição ainda mais fortes que a bomba atômica.
Uma dessas armas era a bomba H, feita de hidrogênio. A bomba, criada a
partir da ideia de explosão de estrelas, possuía a capacidade de criar uma
fissão nuclear forte o bastante para espremer átomos de hidrogênio, sendo
inúmeras vezes mais potente que as bombas atômicas de Hiroshima e
Nagasaki. Os testes americanos da bomba eram feitos no pacífico e era
importante que os civis japoneses entendessem o perigo dessa criação. O
Oxygen Destroyer se tornou uma alegoria às novas armas de destruição em
massa, que deveriam ser destruídas para nunca serem usadas.

 O cientista arrependido:

O Dr. Serizawa do filme se mostra como uma figura completamente


perturbada. Ele sabe que criou uma arma mortal demais para ser usada, mas
sabe também que só ela pode deter Godzilla.

A ideia de uma arma mais poderosa destruir outra era o símbolo da


grande epopeia da Guerra Fria. Tendo a consciência de que o próprio Godzilla
era uma criatura vinda de testes humanos, o Dr. Serizawa resolve afunda-lo
junto com toda a sua pesquisa. Atraindo Godzilla para o mar, ele ativa o
23

Oxygen Destroyer a tempo de fugir, mas decide ficar e se sacrificar junto com o
monstro, a fim de apagar definitivamente o Oxygen Destroyer da face da Terra.

O fato de seu sacrifício não ser interpretado de forma heroica também


mostrava uma crítica a cientistas como Robert Oppenheimer, um dos
responsáveis pelo Projeto Manhattan, que criou as bombas atômicas.
Oppenheimer também se mostrou algumas vezes arrependido, chegando a sair
do projeto, mas continuou com a fama de um dos autores da maior arma de
destruição usada em humanos.

A reflexão final vinda de Godzilla:

Por fim, o filme deixa uma grande reflexão a quem assiste: O monstro
Godzilla não era o vilão, ele era também uma vítima dos testes nucleares, um
ser pré-histórico que vivia nos mares, mas que foi atingido pela radiação,
cresceu e se descontrolou. Godzilla também era uma arma criada por
humanos, cada vez mais aflitos em mostrar seu poder, a fim de trazer a paz
através do medo.

Por outro lado, o filme veio para mostrar que os japoneses precisavam
se mover e se reerguer, deixando para trás seu passado trágico. Algumas
cenas mostraram fielmente o sentimento de vítimas em que os japoneses se
encaixavam, como uma mãe segurando os filhos sem fugir, dizendo que em
breve todos estariam com o pai da família (que aparentemente morreu durante
a guerra). Era chegado o tempo de se levantar e sair dessa situação, e cenas
como esta serviram para chocar os espectadores a ponto de perceberem que
não precisavam mais viver na inércia.

Godzilla se tornou tão famoso que foi exibido nos cinemas americanos
em 1956, com novas cenas, e várias de suas continuações se tornaram um
sucesso no ocidente. Os produtores da Toho conseguiram enviar sua
mensagem para muito além do que esperavam: há mais de 60 anos, o povo
ainda reflete as consequências das guerras enquanto assiste Godzilla.
24

MOBILE SUIT GUNDAM (機動戦士ガンダム)

As décadas de 60 e 70 foram marcadas por grandes avanços


econômicos no Japão. Recuperados dos primeiros anos após a Guerra do
Pacífico, o país crescia cada vez mais e se reerguia com sucesso. Os anos 60
foram conhecidos como “Golden Sixties” devido a grande transformação
econômica, entre 1965 a 1970, o país teve uma média de crescimento fiscal de
11,8% por ano (NARIAI, 1994, p.39-40). Todo esse avanço também gerou
esperança no futuro, impulsionada pela tecnologia que chegara ao país e à
corrida espacial característica do período médio da Guerra Fria. Com a
chegada do homem à lua a bordo da Apollo 11 em 1969, os sonhos foram
aflorados e intensificados. A Expo’70 (Exposição Universal de 1970), uma feira
mundial que aconteceu em Osaka entre março e setembro, tinha como tema
principal o “progresso e harmonia para a humanidade”. Essa feira expôs uma
pedra trazida da Lua, o que “dava mostras de que o espaço poderia ser
colonizado e fez as crianças acreditarem que uma utopia social e tecnológica
viria” (MELO, 2016, p.5). Foi com base nessa ideia que o diretor Yoshiyuki
Tomino criou em 1979 a série para TV “Mobile Suit Gundam”.

A série exibida pela TV Aichi a partir de 7 de abril de 1979 contava a


história de Amuro Ray, um jovem de 15 anos que se envolveu numa guerra
espacial e acabou se tornando piloto do robô Gundam, ultimo avanço
tecnológico em questão bélica. Com uma animação de pouco recurso e focada
para o público infantil, o anime não agradou muito e foi cancelado após o
capítulo 43. Porém, em 1980, uma compilação criada em formato de três longa-
metragem para o cinema, resultou no sucesso que alavancaria a franquia
Gundam para o que ela é hoje. A série, que foi criada como “encomenda” para
vender robôs de brinquedo, hoje é uma das franquias mais rentáveis do Japão,
com rendimentos de 78,6 bilhões de ienes (cerca de 750 milhões de dólares)
25

só no ano fiscal de 2015-2016, mais que o dobro de rendimento em relação à


segunda maior franquia, Dragon Ball (Bandai Namco Holdings, 2016). Em 37
anos, Gundam possui a notável marca de 19 séries para TV, 6 filmes com
roteiro original, 12 séries feitas para vídeo (OVA) e inúmeras compilações. A
franquia também é conhecida por atrações em parques, cafés especializados e
a característica estátua em escala real (18 metros de altura) do robô da série
de 1979, que segue desde 2009 exposta em Odaiba, Japão.

Apesar do sucesso da marca ser comumente associado aos populares


modelos em escala dos robôs da série 15, Gundam possui como característica
peculiar o fato de seu roteiro ser na maior parte das vezes centrado em
guerras, o que não é muito comum em histórias criadas para crianças.

A partir de agora, vamos focar na compilação de filmes da primeira série


de Gundam e dos acontecimentos antecedentes aos deste enredo, mostrando
como a obra de Yoshiyuki Tomino é influenciada pelo período pós-guerra.

Roteiro:

A história de Mobile Suit Gundam se passa num futuro ficcional muito


distante, em que por decorrência do elevado crescimento da natalidade e
consumo de matérias primas do planeta, este já não suporta mais o numero
total de habitantes. Como consequência, uma intensa corrida espacial com o
objetivo de criar colônias em volta da Terra passa a ocorrer. A partir da data em
que a primeira colônia (Side 1) é inaugurada na orbita lunar (figura 2.1), o
calendário passa de Anno Domini (AD) para Universal Century (UC).

Figura 2.1 – Colônias espaciais criadas em volta dos pontos de Lagrange

15 Gunpla: Os modelos em escala foram criados a partir da década de 80 pela empresa BANDAI,
seguindo a linha Plastic Model, em que o brinquedo é montado peça a peça. Os Gunplas fazem sucesso
até hoje.
26

Fonte: TOMINO, 2004, p.13

Em apenas 40 anos, 40% da população já havia se mudado para o


espaço (FOSTER, 2004, p.13). A compilação de filmes se passa em UC 0079.

Contexto histórico dentro da obra:

O ano de 0079 da Universal Century é marcado pela “Guerra de Um

Ano” ( 一 年 戦 争 ) e sua série de conflitos em âmbitos universais. Os conflitos


políticos que originam a guerra se dão quando, em 0058, o filósofo Zeon
Deikun declara independência para a terceira colônia espacial (Side 3) e a
nomeia “Republica de Zeon”. Após um golpe de estado em 0068 que resultou
no assassinato do lider, Side 3 passou a ser governada pela família Zabi e
chamada depois de “Principado de Zeon”. Encabeçado por Degwin Zabi, o
Principado começou a investir em militarização e se tornaram constantes as
ameaças à Federação da Terra, composta pelo planeta e todas as outras 6
colônias. Em cinco anos, o principado se tornou uma força militar repleta de
armas revolucionárias, entre elas os Mobile Suits, robôs de batalha com
enorme força bélica. Em 3 de janeiro de 0079, o Principado de Zeon declara
guerra à Terra e faz ataques surpresa em vários pontos das colônias. A guerra
se inicia com aquela que já seria considerada a maior tragédia da humanidade
até então: Uma das colônias espaciais é usada como arma de destruição em
massa, derrubada na superfície do planeta e acabando ao todo com três
bilhões de vidas. Após essa grande tragédia, a Federação e Zeon assinam um
tratado que impede o uso de armas nucleares e de destruição em massa
27

durante a Guerra, limitando-a a pequenos conflitos com uso de Mobile Suits,


mostrando sempre a superioridade de Zeon.

O primeiro filme da trilogia começa meses depois destes


acontecimentos, quando a guerra já está desgastada e a Federação se revela
vítima constante de ataques. Depois de 8 meses de conflitos, os soldados já
são em sua maioria adolescentes de 15 a 20 anos. Num bombardeio surpresa
à colônia Side 7, o jovem Amuro, filho de um engenheiro da Federação, é
forçado a pilotar a mais nova arma da Terra, o Gundam. A partir deste
momento, somos apresentados aos mocinhos da história, os membros da
White Base, nave que passa a carregar não só militares, como também
crianças e adolescentes refugiados de guerra, que acabam cooperando com as
batalhas para sobreviver.

Os três filmes contam a série de batalhas entre a White Base e os


soldados de Zeon, em especial o jovem capitão Char Aznable, e todos os
traumas e superações dos personagens, passando por mortes de entes
queridos e vinganças políticas, tudo num contexto “infantilizado”, onde as
armas de destruição são robôs e crianças ainda brincam dentro da nave de
refugiados.

O autor e o contexto histórico-político:

Yoshiyuki Tomino nasceu em 5 de novembro de 1941, durante a


Segunda Guerra Mundial. Viveu sua infância em Odawara (cidade de
Kanagawa), a ultima cidade a ser bombardeada durante a Guerra
(ASHBAUGH, 2010, 335). Era muito pequeno para entender o impacto das
bombas atômicas, mas passou a infância convivendo com a ocupação
americana.

Tomino frequentou a Universidade Nihon e passou a fazer parte de uma


minoria de jovens progressistas, num período em que o Partido Liberal
Democrata e outros partidos de direita lideravam o Japão. Nesta época, a
mídia japonesa costumava expor o Japão como grande vítima da Guerra e
eram constantes os programas de TV que apresentavam o sofrimento japonês,
principalmente em datas como 6 e 9 de agosto, aniversários das bombas
nucleares (SEATON, 2007, p.107). Já na década de 70, o Ministério da
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Educação passou a controlar o conteúdo dos livros de história, enfatizando os


bombardeios americanos e reduzindo os estragos causados pelos japoneses
em conflitos como o Massacre de Nanquim 16 (ASHBAUGH, 2010, p.337). Neste
contexto, durante o fim da reforma dos livros didáticos infantis, Tomino já havia
dirigido cinco animês de ficção científica e já estava trabalhando na compilação
dos filmes de Gundam.

As primeiras alegorias:

Segundo Willian Ashbaugh, quando a série de Gundam estava para ser


produzida, Tomino já tinha popularidade o suficiente para criar um enredo mais
livre, em que podia colocar suas opiniões nas entrelinhas, ao mesmo tempo
que usava a figura dos robôs para deixar seus patrocinadores felizes. Ele
explica que “Tomino estava determinado a expor a guerra completamente,
começando com a agressão japonesa na Manchúria em 1931” 17, referindo-se
ao fato de que as primeiras cenas do anime e do filme se passam em 18 de
setembro de 0079, mesma data que em 1931 a tropa japonesa invadiu e
explodiu o South Manchurian Railway (no chamado Incidente de Mukden).
Neste dia, a linha de trem explodiu, mas o trem não foi destruído, assim como
no ataque a Side 7 que dá início ao filme, quando a colônia sofre inúmeros
danos e perde civis, mas o Gundam não é danificado.

Essa não é a única data que coincide com os ataques à Manchúria. A


própria invasão à muralha da Manchúria, em 1933, ocorreu em 3 de janeiro,
mesmo dia da derrubada da colônia na Terra em 0079, que deu início a Guerra
de Um Ano. Além dessas duas, há outra importante data que coincide com um
acontecimento histórico: O golpe em 15 de agosto de 0069, quando Zeon
Deikun é morto e dá lugar a Degwin Zabi, nos lembra o 15 de agosto de 1945,
quando o Japão reconhece sua derrota da Segunda Guerra Mundial.

16 Massacre ocorrido em 1837 na então capital chinesa. O acontecimento é famoso pela decorrência de
milhares de assassinatos e estupros feitos pela tropa imperial japonesa que dizimou grande parte da
população de Nanquim. Estudiosos afirmam que até 300.000 pessoas podem ter morrido
(WAKABAYASHI,2008, p.362)

17 Tradução livre de: “Tomino was determined to expose the war thoroughly, starting with Japanese
agression in Manchuria in 1931” (ASHBAUGH, 2010, p.335).
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O Principado de Zeon e a família Zabi

Degwin Zabi possuía cinco filhos, todos criados e formados em


ambientes militares e políticos. Seu segundo filho, Sasro Zabi, morreu num
atentado durante o velório de Zeon Deikun. Durante os acontecimentos da
Guerra de Um Ano, Degwin já deixava grande parte do comando do Estado
nas mãos de seu filho mais velho, Gihren Zabi, enquanto os três mais novos
Dozle, Kycilia e Garma serviam o Principado militarmente. A nação criada e
governada pelos Zabi é, sem dúvidas, uma alegoria à Alemanha nazista. Sua
bandeira possuindo as mesmas cores (Figura 2.2) e o comportamento de
Gihren provam em todos os momentos onde Tomino queria chegar.

Figura 2.2 – Bandeira Nacional do Principado de Zeon

Disponível em: <http://zeon-central.wikia.com/wiki/Principality_of_Zeon> Acesso em nov. 2016

Ashbaugh faz uma clara comparação entre Gihren e Hitler. O mais velho
dos filhos de Degwin era tão popular em Zeon como Hitler foi na Alemanha
nazista, usando dos mesmos artifícios. Seus discursos também defendiam a
superioridade racial dos “spacenoids” de Zeon, sempre dizendo que eram
seres mais evoluídos que os terrestres e por isso não era necessário temer ou
pensar duas vezes nas possibilidades de vitória. Gihren usou da morte de seu
próprio irmão mais novo, Garma, para incitar o povo ao ódio num discurso
extremamente hitleriano no fim do primeiro filme. Este discurso, que se encerra
com o grito da população, originou a famosa expressão “Sieg Zeon” entre os
fãs de Gundam. Mas a maior prova de que Gihren foi criado baseando-se a
Hitler é exposta no terceiro filme. Em meio aos ultimos suspiros da Guerra,
30

Gihren pede a seu pai que autorize o uso de uma arma de destruição em
massa. Degwin alerta que isso fará com que percam o apoio popular, mas este
lhe diz que convencerá o povo com seu discurso de superioridade,
impulsionada à descoberta dos primeiros Newtypes 18 a surgirem durante a
guerra. Neste momento, Degwin compara o filho a Hitler e Gihren leva como
elogio. A sequência traz a tona o que o velho governante de Zeon já previa que
aconteceria com o Principado:

Sequência de figuras 1 – Diálogo entre Degwin Zabi e Gihren Zabi

“Você tem conhecimento de Adolf Hitler?” “Hitler?”

18 Newtype: Nome dado na franquia à evolução humana defendida por Zeon Deikun. Segundo ele, ao
sair da Terra e chegar ao espaço, é natural que a humanidade evolua para um novo patamar e se torne
mais desenvolvida, ganhando habilidades especiais. Gihren usa da teoria de Zeon Deikun para articular
que o povo do espaço é superior e deve governar o mundo.
31

“Ele viveu na Idade Média, não é?” “Ele foi um ditador”

“Um homem que não pôde ver a que ponto o mundo chegou” “Você está seguindo os passos dele”

“Você está dizendo que o seguidor de Hitler “Correto”


agora conseguiu elevar a nação a uma ditadura?”
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“Assim como com a Federação, democracia “Com o tempo, as pessoas vão apenas acabar destruindo
absoluta apenas promove fraquezas.” umas as outras”

“Eu vou te mostrar que nós podemos ganhar” “Veja como o homem que segue os passos de Hitler consegue lutar”
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“Mas no fim, Hitler foi derrotado”

Fonte: Mobile Suit Gundam III – Encounters in Space

Nos filmes, o Principado de Zeon é puramente associado aos vilões, e


mesmo quando pesquisamos a fundo sua história e as causas de iniciarem
uma Guerra contra a Terra (Zeon não possuía muitos recursos, tudo era
controlado pela Federação, assim como as potências do Eixo queixavam-se de
como as matérias primas de algumas colônias europeias lhes eram negadas na
década de 30), suas atitudes são extremamente cruéis e desumanas, visto a
própria relação de ódio entre Gihren – Kycilia e a forma como um acaba
destruindo o outro19, além das atrocidades cometidas com civis durante a
Guerra. Os outros irmãos Dozle e Garma são descritos na história como figuras
mais honestas, mas facilmente manipuláveis, tendo destinos trágicos, porém
importantes. Garma Zabi possui significativo papel no enredo apesar de sua
“breve vida”, foi o primeiro a sofrer com a vingança de Char Aznable, o ás de
Zeon. Ao fim da guerra, Dozle Zabi deixa uma filha, que será de grande
importância para as sequências de Gundam.

19 Gihren assassina o pai, e é assassinado por Kycilia (que também foi a mandante da morte de Sasro),
todos por razões de escalada social.
34

O Cometa Vermelho e suas influências:

Não é possível falar sobre Gundam sem comentar sobre Char Aznable,
isso porque o personagem possui fama tão grande que alguns japoneses
mesmo sem ter assistido um capítulo sequer da franquia, sabe reconhecê-lo.
Char está numa escala popular tão grande que possui um carro próprio,
produzido pela Toyota (figura 2.3) e uma quantidade gigantesca de produtos
ligados a ele e a sua cor característica, o vermelho.

Figura 2.3 – O carro “Zeonic Toyota” homenageando Char Aznable, e o dublador


original do personagem, Shuuichi Ikeda

Disponível em: <http://gundamguy.blogspot.com.br/2013/08/zeonic-toyota-char-


aznable-x-toyota-ms_27.html> Acesso em nov. 2016.

A popularidade do personagem chama atenção pelo fato dele, sendo um


dos vilões, ter se tornado mais famoso que o mocinho. Char mesmo
mostrando-se impiedoso, levantou questões importantes quanto ao
posicionamento na guerra. Sua história é complexa: no início, mostra-se como
um soldado fiel de Zeon, amigo direto de Garma Zabi e o melhor de seu
esquadrão. Seu mobile suit de cor vermelha se destaca a ponto de assustar os
oponentes. O jovem soldado de 20 anos é chamado de ás pelos inúmeros
combates vencidos e se torna o rival direto de Amuro. Char já podia se tornar
um destaque pelas suas estratégias, mas o que é revelado em sua história o
faz se tornar muito mais importante: o jovem esconde que na realidade é um
35

dos dois filhos de Zeon Deikun, Casval, que havia fugido com a irmã Artesia
após o Golpe dos Zabi com o auxílio de amigos da família. Cresceu com o
objetivo de destruir a família Zabi de dentro para fora, e cumpre este objetivo
até o final da Guerra de Um Ano. Char também acaba sofrendo por uma cruel
surpresa do destino: sua irmã Artesia, agora chamada Sayla, se une às forças
da Federação e combate o próprio irmão ao lado de Amuro.

Algumas características de Char e de sua história nos lembra duas


importantes personalidades da Primeira Guerra Mundial: Manfred Von
Richthofen e Anastasia Nikolaevna da Rússia. O primeiro, mais conhecido
como Barão Vermelho20, tinha como principal característica a cor de seu avião,
um vermelho vivo, que fazia com que seus adversários o reconhecessem de
longe. A juventude, frieza e até aparência de Char lembram a de Richthofen e
são muito bem expostas, principalmente quando o personagem passa a ter
fama como o “Cometa Vermelho” de Zeon. Já sua origem lembra a história da
família Romanov e principalmente do mito de Anastasia 21. O fato da esposa de
Zeon Deikun e suas crianças terem sido mantidas em cativeiro após a morte do
pai e de Casval e Artesia terem conseguido fugir sem que os cidadãos de Zeon
soubessem de sua sobrevivência nos lembra das inúmeras reviravoltas
descobertas aos poucos sobre o caso da família Russa. A diferença é que Char
fez o que muitos russos fantasiavam: Surgiu com um novo nome e tomou o
poder de Zeon das mãos dos Zabi alguns anos depois da Guerra. Apesar de
terem aparecido várias mulheres dizendo ser a Grã-Duquesa Anastasia,
nenhuma conseguiu provar o improvável. Toda a família Romanov estava
morta, afinal.

20 Barão Vermelho: foi um importante piloto de caça alemão durante a Primeira Guerra Mundial.
Considerado como o maior ás da Guerra, derrubou 80 aviões em combate. Morreu em abril de 1918,
aos 25 anos.

21 Anastasia Nikolaevna, filha do último Czar da Rússia, foi colocada em cativeiro junto aos pais e aos
irmãos durante a Revolução Russa dos Bolcheviques depois que seu pai foi deposto do poder. A família
foi executada no fim da Primeira Guerra Mundial, mas seus corpos só foram encontrados nos anos 90,
com exceção aos de Anastasia e Alexei, seu irmão mais novo. O grande mito russo do século XX era que
Anastasia pudesse ter sobrevivido à execução, mas seus ossos foram encontrados em 2007.
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Influência da Bomba Atômica em Gundam:

A maior alegoria de Gundam também diz respeito a Bomba Atômica e é


sem dúvidas a mais impactante: O Colony Drop, a derrubada de uma colônia
inteira na Terra causando a morte de bilhões de civis ainda na primeira semana
da guerra. A Operação British, nome dado a primeira parte da Guerra de Um
Ano, consistia em ataques surpresa a três colônias espaciais da Federação,
Sides 1, 2 e 4. Concluindo com sucesso, Zeon iniciou a derrubada de Side 2 na
Terra, tendo sua maior parte destruindo Sydney, na Austrália. O objetivo era o
rendimento total da Federação. Takashi Murakami afirma em seu livro a
relevância desta referência:

O ataque de Zeon começa com um “colony drop” – a derrubada de


uma enorme estação espacial na Terra. O uso dessa arma de
destruição em massa indiscriminada era uma referência óbvia à bomba
atômica. De forma interessante, na guerra imaginária de Gundam, a
Federação e Zeon assinam um tratado que expressamente bane o uso
de armas nucleares assim como “colony drops” visto sua capacidade
desumana de aniquilação em massa 22 (MURAKAMI, 2005, p. 77)
(Tradução em MELO, 2016, p. 8)

Assim como dito por Murakami, realmente foi feito um tratado. Com a
não rendição da Federação, todos se reuniram e assinaram o chamado
“Tratado de Antártica”, que firmava o comprometimento de ambas as partes,
Federação e Zeon, de não mais usar armas nucleares, químicas, bem como
colônias, durante a Guerra de Um Ano, o que reforçou a importância do uso
dos Mobile Suits, robôs de batalha.

Este tratado nos lembra do Tratado de Não-Proliferação Nuclear


assinado no fim da Segunda Guerra Mundial, após a derrubada das duas
bombas atômicas. Por meio dele, houve o comprometimento das potências que
possuíam armas nucleares a não entrega-las a outros países, assim como usar
a energia nuclear apenas para avanços tecnológicos pacíficos.

22 Tradução de Marina Melo de: Zeon’s attack begins with a “colony drop” – The dropping of a huge
space station on the earth. The use of this weapon of indistriminate mass destruction was an obvious
reference to the atomic bomb. Interestingly, in Gundam’s imaginary war, the federation and Zeon
subsequently sign a treaty that expressly band the use of nuclear weapons as well as colony drops in the
light of their inhumane capability for mass killing.
37

O Colony Drop ocorreu em janeiro de 0079, mas a guerra durou até o


fim deste mesmo ano. Tomino mostra, portanto, que os freios da humanidade
para a guerra poderiam já não mais funcionar após um novo ataque nuclear.

Usando da violência para conscientizar:

O primeiro questionamento que temos ao conhecer o enredo de


Gundam é se essa produção foi mesmo feita para o público infantil. Sim, foi
uma série encomendada para vender brinquedos. Mas como dito
anteriormente, Tomino tinha plena consciência de que poderia expor suas
ideias a respeito do período da Guerra Fria. A violência mascarada em lutas
épicas havia se tornado um sucesso há não muito tempo com Star Wars, que
claramente substituía os “inimigos” pelos alienígenas. Assim como em Godzilla
foi usado o monstro para simbolizar a bomba atômica, em Gundam Tomino
usou os robôs para “fantasiar” o estrago real causado pelas armas de guerra;
fora isso, tudo era real: a corrupção, a maldade, a luta pela sobrevivência, tudo
foi visto em tempos de guerra.

A ideia de Tomino em criar uma série de robôs gigantes com o fundo de


uma guerra séria pareceu ser voltada à estratégia de incentivar as crianças a
usarem da fantasia para debater e conhecer assuntos profundos, além de jogar
seus próprios sentimentos para fora numa época de tanta incerteza como foi a
Guerra Fria. Gerard Jones defende esta estratégia, dizendo que “é preciso
deixá-las (as crianças) aproveitarem a fantasia como fantasia, ao mesmo
tempo que lhes ensinamos a realidade” (JONES, 2002, p. 129) e defende
também que os adultos não repreendam crianças que usem estes elementos
como brincadeiras, “também precisamos ver nossas fantasias como fantasias,
nossos medos simplesmente como medos, e diferenciá-los claramente da
relação real de nossos filhos com a violência” (JONES, 2002, p. 129). A
verdade é que o Gundam não era um robô amigo falante, que colocava o
mocinho no ombro e o salvava de encrencas, ele era uma máquina de guerra
manipulada por seres humanos, com o intuito de destruir os inimigos.
38

A visão da morte também é importante em Gundam, já que personagens


de ambos os lados (Zeon e Federação) morrem no decorrer da guerra e todos
sofrem com isso, nada avança para melhor com as mortes. Vemos de um lado
um importante amigo de Amuro morrendo em batalha, uma oficial que ele
admirava se sacrificando e seu impacto na vida dos integrantes da White Base,
mas também vemos a comoção popular de Zeon com o anúncio de morte do
jovem Garma e o sofrimento de seu pai, que se torna cada vez mais
amargurado com a perda do filho predileto, a noiva de Garma também se
sacrifica de forma dolorosa após a morte do amado. Todas as mortes
mostravam que não importa se você é herói ou vilão, todos são sujeitos a
sacrifícios num estado de guerra e muitas vezes não há salvação. John
Tennant comenta em sua tese de mestrado que num estudo feito em 1980, foi
constatado que personagens bons eram vítimas de violência em proporções
muito maiores que os maus em programas japoneses (TENNANT, 2006, p. 66)
e isso ocorria com frequência naquele período, porque claramente a mídia
focava na ideia de que a sociedade japonesa era a grande vítima da Guerra e
sempre vendia a imagem do “herói trágico” para o público. Mas em Gundam
esse dado não é recorrente, tanto membros da Federação quanto os
combatentes de Zeon sofrem as muitas baixas.

Ashbaugh defende que Tomino era contra a ideia da “nobreza do


fracasso”, ou seja, a de heróis mártires que eram derrotados de maneira nobre,
como verdadeiros heróis trágicos. Ele aponta que Amuro não possuía interesse
nenhum em heroísmo, e que tudo era luta pela sobrevivência, tendo muitas
vezes insônias e problemas psicológicos que hoje classificaríamos como
pânico e depressão. Seu pai, o engenheiro criador do Gundam, também se
torna uma pessoa psicologicamente instável.

Apesar de Tomino ser contra a onda de “nobreza do fracasso” que vinha


tomando a mídia nos últimos anos, ele apoiava a ideia da “nobreza no
enfrentamento”, mostrando que não há problema algum em ter medo, mas os
personagens sempre enfrentavam este medo no fim das contas, e isso era um
bom incentivo para as crianças. A valorização da vida era muito maior que a
nobreza do sacrifício em Gundam, “Tomino mostra que a verdadeira nobreza
39

não reside na inútil autodestruição/morte, mas no sentido de estar vivo/viver 23”


(ASHBAUGH, 2010, p. 348). Um exemplo bom desta ideia é a criação do
personagem Kai Shiden, um garoto que se afirma covarde e sempre mostra-se
interessado na própria sobrevivência, mas que no decorrer da história enfrenta
seus medos e luta, se tornando um dos sobreviventes no final. O nome do
garoto foi baseado nos aviões de guerra japoneses, os “Shiden Kai”.

Em suma, Gundam possui uma mensagem anti-guerra diferente da dos


programas japoneses do período, diferente até de Godzilla: não há espaço
para vítimas de uma só nação. Todos podem ser heróis ou vilões no meio de
uma guerra e todos são suscetíveis a se tornarem vítimas. Numa época de
tantas incertezas, Tomino deixou sua marca e seus ideais, mostrando que se
quisermos que as futuras gerações sejam pacíficas, é necessário mostra-las o
quão terrível é a violência e a guerra, e sua solução foi mostrar tudo isso numa
série de forma que haja compreensão sem perder o espírito de aventura.
Gundam pode ser um brinquedo, uma arma de guerra e um instrumento de
paz, tudo depende do entendimento da fantasia e da realidade.

23 Tradução livre de: “Tomino shows that true nobility lies not in pointless self-destruction/death, but in
meaningful living/life.”
40

CONCLUSÃO

Com base nos dados coletados durante a realização deste trabalho, é


possível concluir que ambas as obras, tanto Godzilla como Gundam, não só
são até hoje importantíssimas para a difusão da cultura popular japonesa como
também foram um instrumento forte de releitura das grandes guerras do século
XX, repletos de alegorias e referências que serviram para que as novas
gerações tivessem uma interpretação diferenciada dos fatos. O período da
Guerra Fria foi repleto de incertezas e medos, e os autores usaram deste medo
não só para alertar, como também para criar discussões abertas sobre temas
que ainda eram um tabu, como os ataques nucleares.

Godzilla surgiu numa época em que os japoneses ainda tentavam se


reerguer economicamente e psicologicamente do terrível legado da Segunda
Guerra Mundial. O monstro surgiu dos mares para as tela dos cinemas com o
intuito de ajudar a população a vencer seus medos e seguir em frente, ao
mesmo tempo que criticava a forma como a guerra invisível e interminável
entre Estados Unidos e União Soviética faziam com que os testes nucleares
caminhassem para um futuro cada vez mais ameaçador. Ainda hoje o monstro
é um símbolo da bomba atômica, e nos lembra que a destruição infelizmente
pode ser causada pelas próprias invenções humanas.

Exibido quase três décadas depois de Godzilla, Mobile Suit Gundam


provou não ser apenas uma infantil história de robôs ao trazer à tona a
temática das guerras e até onde vai a ambição humana, de forma que deixa
claro que num conflito ambos os lados perdem, mesmo que alguns sigam
vivos. A série, apesar de ter sido criada para o público infantil, deixava
transparecer a visão de Tomino sobre o horror dos conflitos e a importância do
diálogo e da compreensão. A franquia, que coloca como um dos temas
principais a disputa por territórios e independência, continua atual por ainda
hoje presenciarmos as mesmas guerras civis e revoluções em várias partes do
mundo.

Como alegorias, as obras possuem a função de conscientizar através de


cenas chocantes ou de diálogos que fazem o espectador pensar sobre o rumo
41

do mundo. De qualquer forma, podemos sentir os sentimentos de um país em


guerra enquanto assistimos, e essa consciência nos faz querer ser pessoas
melhores e trabalhar para um futuro melhor. Com essa intenção, Os diretores
Tomino Yoshiyuki e Ishiro Honda enviaram sua mensagem para o Japão e para
o mundo, fazendo com que ambas as franquias se tornassem não só um
sucesso, como dois símbolos nacionais de força e superação.

Sequência de figuras 2: Os monumentos japoneses em homenagem a Godzilla e Gundam – A


cabeça de Godzilla no topo do prédio da Toho em Shinjuku / A estátua em tamanho real do
Gundam em frente ao Diver City de Odaiba.

Disponíveis em: <https://sociorocketnewsen.files.wordpress.com/2015/03/gs-1.jpg?


w=580&h=546> e <http://images.huffingtonpost.com/2013-04-03-Huffgundamrobot.JPG>
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42

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