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RESSENTIMENTO DE CLASSE

A desigualdade entre burgueses e proletários não é a única


desigualdade que nos incomoda. Existem pessoas que dependem do
próprio trabalho para sobreviver e que dele extraem uma vida digna,
estável e bastante confortável. Existem também pessoas que dependem
do seu trabalho para sobreviver e que nem mesmo trabalho possuem.
Entre estes extremos existem diferentes condições que ao serem
contrastadas entre si podem gerar diversos sentimentos. É sobre as
causas, a concatenação e a legitimidade de tais sentimentos que trato.
Para compreender as causas iniciarei tentando apresentar como o
reconhecimento é um ponto nodal para compreender a integração, os
atritos, as tensões e as cisões dentro de grupos sociais em relação às
diferenças de poder econômico.

PRODUZIR E DESCONHECER
O reconhecimento é algo fundamental em qualquer grupo humano.
Seja para separar quem está dentro de quem está fora ou seja para
estabelecer que lugar cada um ocupa dentro de uma determinada
estratificação social (hierarquizada ou não), são distribuídos elementos
simbólicos a fim de produzir uma diferença. Esses elementos, mesmo os
mais intangíveis (um cargo, uma outorga, um posto de influência ou
destaque) sempre têm um lastro material; e daqueles francamente
materiais (uma casa, uma viagem ou um carro) deve ser destacado o
caráter social, das inúmeras mãos marcadas no curso de sua produção.
Para compreender a lógica dos sentimentos resultantes da
iniquidade, da diferença entre ter e não ter acesso a tal riqueza como
símbolo distintivo, é fundamental atentar para o feitiço lançado sobre tais
elementos que os transforma em objetos de fetiche. O feitiço é um feitiço
de apagamento das marcas das mãos daqueles e daquelas que
trabalharam na produção do objeto. O que destacarei aqui é que, para
que o feitiço funcione, o que deve ser apagado é fundamentalmente
aquilo que liga a marca das mãos que produzem com as mãos que detém
o objeto.
Importante ressaltar que não apenas aquilo que é inanimado pode
ser tomado como objeto. A história de vida de uma pessoa, ao longo da
qual teve oportunidades de acumular conhecimento e experiências,
também é um objeto, materializado na sua compleição neuronal:
cognitiva, afetiva e intelectual. Não raro, o feitiço da mercadoria opera na
forma do academicismo, dos arrotos de títulos, da grandelouquência, de
códigos de conduta, como se quaisquer um destes elementos pudesse
produzir por si só o efeito de distinção de uma história de construção de
estudo e produção de conhecimento junto aos semelhantes. Ninguém
jamais aprendeu nada só. Seja pelo acesso ao ensino formal, pelo acesso
a condições de aprendizado (ideais ou extremamente dificultosas), toda
pessoa aprende por meio do trabalho de outras pessoas, pois, no limite,
só se aprende através de uma linguagem construída histórica e
socialmente. Para o materialismo o autodidatismo sempre precisa ser
relativizado.
Retornando ao reconhecimento, devemos nos atentar para o fato de
que todo reconhecimento é reconhecimento de uma história singular e
toda história singular é uma história coletiva, pois um outro tanto
participa objetivamente quanto um outro é necessário para reconhecê-la
como tal. Seja a alteridade absoluta e material, seja a alteridade que nos
habita enquanto instância psíquica, sempre nos constituímos em relação a
outrem.

RESSENTIR PARA QUE?!


No fio da meada, entre a alteridade e a materialidade, atento para
outro fato: os produtos materiais são sempre produtos de uma história de
trabalho. É evidente que a revolta contra a desigualdade pode ser
suficientemente justificada pela flagrante e brutal injustiça, pelo absoluto
prejuízo para a vida da classe trabalhadora. No entanto, podemos
compreender a revolta contra a diferença entre ter e não ter bens
materiais como uma revolta contra a impossibilidade de ter reconhecida
sua história de vida de trabalho. Em certo sentido, se sofremos pela falta
de objetos não sofremos apenas pela falta de recursos para sobreviver,
ter alguma segurança ou conforto. Sofremos também pela impossibilidade
de fazer reconhecer nossa história.
Aquele que nutre qualquer animosidade contra quem tem posse de
elementos distintivos não necessariamente gostaria de ter aqueles
objetos específicos, mas gostaria de ter elementos distintivos que
contassem sua história através dos objetos. O que se quer fundamental,
necessária e inescapavelmente, é a capacidade de produzir objetos que
condensem nossa história.
Ao longo do tempo tivemos muitas formas de apresentar esta
condensação. Seja como nos vestimos, nos pintamos, onde moramos,
que utensílios utilizamos para determinadas tarefas, quais hábitos
alimentares temos ou não, tudo isso funciona como elemento distintivo
que, imbricados de maneiras múltiplas e singulares, tentam manifestar
uma identidade. Dos elementos que elenquei podemos produzir um mapa
de civilizações etnias e povos, mas também podemos compreender
distinções dentro da nossa organização antropológica no sul catarinense.
Pensemos em duas pessoas que são vizinhas em um bairro qualquer. Por
que não pintar a casa da mesma cor? Por que não ter exatamente as
mesmas roupas? De toda maneira já não possuem hábitos alimentares
muito semelhantes, se comparados com outros dois vizinhos num bairro
qualquer de Katmandu?! Para além da conveniência econômica de
apropriar-se de um ou outro elemento, cada escolha é feita para
manifestar uma preferência pessoal, singular, própria. O reconhecimento
de uma singularidade própria por parte dos outros é uma necessidade
fundamental de todo ser falante.
Os objetos de consumo, na nossa sociedade, não são mensurados
em seu valor de uso, mas fundamentalmente no seu valor de troca, ou
seja, no valor simbólico que possuem. Quanto mais estes objetos são
capazes de representar a uma história de prestígio, mais valorizados eles
serão. O feitiço, a estrutura de reconhecimento da sociedade capitalista,
faz justamente com que se tenha o efeito de reconhecimento sem a
ligação material com a história de produção daquele objeto. O mais
funesto dos efeitos é o desfile de bilionários em seus foguetes como se
tivessem qualquer relação com este grande feito que não apenas a sorte
de ter acertado ou herdado uma aposta no cassino do mercado
globalizado.
Retornando o escopo para os nossos bairros, sobre o convívio entre
os extratos da classe trabalhadora nas cidades, podemos compreender a
animosidade quando vemos um semelhante tendo uma vida
materialmente um tanto melhor que a nossa como uma revolta contra a
impossibilidade de ver condensada na posse de determinados objetos a
sua história de vida, de trabalho. A legitimidade desta animosidade que
nos afasta destes semelhantes de classe reside estritamente naquilo que
é revolta contra a aparente adesão daqueles a este regime de
reconhecimento. As pessoas seguem comprando uma roupa, um carro,
um eletrodoméstico, etc., enquanto nós não temos a possibilidade disto. É
como se ao se apropriarem da riqueza socialmente produzida as pessoas
legitimassem o modelo de reconhecimento do capitalismo.
Fato é que esta revolta se transforma em ressentimento quando nos
dedicamos a tentar produzir não uma transformação no regime de
reconhecimento, não uma reestruturação da ligação entre produção
socialmente realizada e o acesso aos produtos, mas uma simples
ampliação do acesso aos produtos. Neste esforço, o mecanismo
fundamental do feitiço, do apagamento da ligação entre as mãos que
produzem e as mãos que detém, permanece intacto.
O ressentimento é um modo de sofrimento no qual a pessoa que
sofre procura recobrar um suposto valor de si através da interpelação
moral contra alguém que a teria impedido ou impossibilitado alcançar ou
manter um suposto valor. A pessoa ressentida dá exclusiva e plenamente
ao Outro a potência de decidir sobre o valor e a importância dela mesma.
Um dos mecanismo fundamentais da perpetuação do capitalismo é
justamente a impessoalidade do dinheiro como este grande Outro que é
capaz de o desligar das possibilidades da sua história vivida — composta
de vários pequenos outros e que, portanto, o restringindo histórica,
geográfica e estruturalmente — em favor de uma promessa de realização
autônoma e infinita, onde a posse de dinheiro poderia instá-lo ao lado de
reis, rainhas ou herdeiros de genocídios que posam como grandes
visionários, mas que na verdade são apenas playboys megalomaníacos e
psicopatas autocentrados.
O que proponho aqui não é um retorno a um mercantilismo
primitivo, pelo desaparecimento do dinheiro como intercambiável
universal, onde a única possibilidade de acesso a bens de consumo
supostamente seria pela troca direta. Numa sociedade com o grau de
complexidade como a nossa, até onde minhas reflexões alcançam, isso é
impossível. O que proponho é que a estrutura de reconhecimento pelo
trabalho, pela contribuição local, de acordo com as possibilidades de cada
uma e cada um, possa paulatinamente prevalecer sobre o modelo
capitalista de reconhecimento até o ponto que se torne estranho e
inconcebível diferenças significativas entre de extratos da classe
trabalhadora quanto ao acesso a bens e serviços. A superação do modelo
de reconhecimento imposto no sistema capitalista implica no
estabelecimento da prevalência do trabalho como elemento distintivo de
reconhecimento ao invés da posse dos objetos. Neste sentido, os objetos
podem ser deflacionados da sua capacidade de condensação simbólica, de
sua capacidade de narrativa e passarem a ter mais valor de uso do que de
troca.
Não se trata de afirmar que o caminho da igualdade radical é aquele
onde o psiquismo de cada pessoa operará de uma forma tal que os
objetos deixaram de ser tomados numa dimensão simbólica ou até
mesmo operarem fetichismo, mas se trata de afirmar que é necessário
que a posse ou não de objetos deixe de representar quem é melhor e
quem é pior, pois hoje, independente de qualquer moralismo humanista,
para a classe trabalhadora sob o capitalismo, eles representam.

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