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REVISTA DE BIOLOGIA E CIÊNCIAS DA TERRA ISSN 1519-5228

Volume 8 - Número 1 - 1º Semestre 2008

As montanhas e suas representações:buscando significados à luz da


relação homem-natureza1

Altair Gomes Brito2

RESUMO

O presente trabalho busca retratar alguns aspectos da relação homem-montanha, sob a ótica popular.
Inclui dimensões complementares, e até mesmo antagônicas: mitos primitivos e associações
modernas, esportes de aventura e hierofanias, veneração romântica e sentimentos negativos, eco-
turismo e inconsciente popular. O desafio é detectar os novos valores e significados do cotidiano
moderno, marcado pela influência da mídia.

Palavras-chave: Montanhas, representações, imaginário, paisagem, inconsciente coletivo.

The mountains and their representations: searching meanings in the light of the
relation man-nature

ABSTRACT

The present work search to show some aspects in the relation man-mountains, under the popular
view-point. Include complementary dimensions, even antagonics: primitive myths and the moderns
associations, adventure sports and sacred manifestations, romantic veneration and ecoturism,
popular unconscious and the negative feelings. The challenge is detect the new values and meanings
of the modern daily life, marked for media influence.

Keywords: Mountains, representations, imaginary, paisagem, colective unconscious.

INTRODUÇÃO
valores, que ultrapassam em muito a simples
Explorar o mistério que envolve a existência física daquelas formas naturais?
presença das montanhas na vida humana, ao Distinguindo-se como formas naturais
longo do tempo e dos lugares, é tarefa marcantes na paisagem, as elevações rochosas
desafiadora em vários aspectos. Seu encanto e incorporam historicamente um desafio
imponência desafiam as limitações físicas do persistente, tanto ao domínio quanto ao
homem, mas instigam sobretudo sua razão e entendimento humanos. Elas se erguem acima
sensibilidade. Por que para tantas pessoas elas das planícies habitadas; são remotas, perigosas e
despertam associações simbólicas e até mesmo inassimiláveis às necessidades do trabalho
características sagradas? Porque são tidas como diário do homem. Conforme Tuan (1980, p. 81),
lugares especiais, com uma variada gama de as montanhas desafiam o controle humano fácil:

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são elementos permanentes no mundo do elevação de vertentes inclinadas cuja altura em
homem, quer ele goste ou não. relação à base é maior que 300 metros. Esse
As inúmeras interpretações das pessoas parâmetro, porém, gera conflitos: pequenas
a respeito das montanhas são inspiradas não só formações ao nível do mar (como o Pão de
por sua imagem física no horizonte, mas Açúcar, no Rio de Janeiro, com 392m) podem
também por sua imagem simbólica, tecida ser montanhas, pois sua altitude e sua altura são
culturalmente ao longo de gerações. As imagens as mesmas. Ao contrário, sob este critério
mentais criadas no cotidiano, sem muitas montanhas de grande altitude deixariam
necessariamente visualizá-las ou acessá-las em de ser assim chamadas, pois estão em platôs
atividades esportivas e recreacionais, revelam elevados. Como alerta Faria (2005), há até
uma complexidade surpreendente. As mesmo pesquisadores que afirmam não existir
representações tecidas no universo do chamado montanhas no Brasil.
senso comum acompanham a transformação dos Como nos lembra Herzog (1956, p. 4), a
valores estéticos e religiosos da sociedade, noção de montanha não é consensual. Um
sendo compostas também por outras dimensões, turista, um alpinista, um eremita e um geólogo,
como a turística, a esportiva e a ambiental. por exemplo, que digam do mesmo modo “vou
As paisagens escarpadas surgem à montanha” não falam absolutamente da
freqüentemente como tema na literatura, onde mesma coisa. Suas incursões escondem
são traduzidas por autores clássicos e modernos, objetivos diferentes, até mesmo contraditórios:
em cujos textos transparece a evolução dos alguns buscam repouso, outros buscam a
sentimentos sobre as montanhas. Muitas atividade e o risco. Alguns se movem por
narrativas registram as experiências decorrentes sentimentos espirituais, outros por interesses
da incursão em seus domínios. Estes relatos, de essencialmente racionais.
grande apelo sentimental e estético, atestam a Assim, as diferenças óbvias entre as
secular atração exercida pelas alturas. Aqui, “nossas” montanhas – em regiões de baixa
porém, nos propomos um esforço adicional: latitude/altitude, arredondadas e cobertas de
transpor a ótica dos aventureiros e montanhistas, vegetação – e as montanhas escarpadas e
que acessam efetivamente as montanhas, cobertas de neve, em certo sentido se desfazem.
buscando sobretudo a perspectiva popular, a Ambas guardam, para o senso comum,
visão das pessoas comuns. O fenômeno do representações semelhantes, que as unem em
montanhismo e a experiência pessoal/existencial torno de um imaginário único.
dos montanhistas integra um universo maior, Explorando as diversas visões-de-mundo
que inclui as influências exercidas pelo seu incorporadas pela coletividade, subjacentes às
discurso, por suas atitudes e suas variadas formas de conceber as montanhas,
conquistas/tragédias sobre as representações da buscamos contribuir, numa linha diferenciada,
coletividade. com análise geográfica do espaço. As formações
Para o chamado senso comum, alvo da montanhosas, usualmente enfocadas sob a ótica
presente pesquisa, a definição de montanha física, ambiental ou econômica – relacionando-
passa por uma lógica própria, em que não se as à geomorfologia, ao eco-turismo e à
fazem necessárias fronteiras rigidamente mineração, por exemplo – serão aqui enfocadas
definidas. Assim, aqui a conceituamos de modo culturalmente, segundo as concepções coletivas
livre, desconsiderando propositadamente as sobre ela traçadas.
definições adotadas pela Geomorfologia e A presente abordagem busca resgatar o
ciências afins, que imporiam demasiadas domínio das operações simbólicas, uma
limitações. O critério do relevo relativo, por dimensão pouco explorada na pesquisa
exemplo, validado pela maior parte dos científica. As montanhas imaginadas abrigam
pesquisadores, considera montanha apenas a mais do que suas características naturais e

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geológicas. Mapear esta teia de significados é o regras ou avaliações. Neste procedimento
desafio que nos propomos. experimental, os alunos foram estimulados a
produzir rapidamente um pequeno texto, de
OPÇÕES E INSPIRAÇÕES aproximadamente dez linhas, no qual
escreveriam o que desejassem sobre o tema
A idéia de representação é uma das montanhas. Não deveriam se preocupar com a
chaves para analisar a lógica da relação homem- letra ou com as regras da Língua Portuguesa –
montanha. Representar é criar mediações, cuidados que só tirariam a naturalidade dos
traduzir a realidade incomensurável, relatos. Foi-lhes dada total liberdade de
possibilitando que o mundo seja cognoscível e expressão e de forma, e sugerido que
compreensível ao pensamento. Na registrassem o pensamento que viesse à cabeça.
representação, o sujeito encontra reflexos do seu Esse exercício de investigação visava retratar
próprio pensar, inventando uma explicação mais suas representações e relações de valor.
familiar das coisas, transpondo-as para o seu As míni-redações conduziram a algumas
cotidiano. Mas, em grande escala, as reflexões importantes, mas necessitavam ser
representações são produtos da coletividade. complementadas por opiniões de pessoas
Como contribuição essencial para adultas. Nas entrevistas, fizemos
analisar essa conexão entre a dimensão questionamentos abertos, como “o que é
individual e a coletiva, destaca-se a teoria das montanha para você” e “o que você acha das
Representações Sociais (RS), que veio a montanhas”. Após alguns momentos de
enriquecer sobremaneira a abordagem reticência, a maior parte das pessoas expressava
polarizada entre o indivíduo “puro” e a suas opiniões, usando os adjetivos e metáforas
sociedade, centrando seu olhar sobre como se que retrataremos adiante. Nosso objetivo não era
constrói a relação entre os dois. Ao fazer isso tanto captar depoimentos estruturados, mas
ela recupera um sujeito que, por meio de sua apontar os elementos discursivos e consensuais
atividade e relação com o mundo, é tanto agente presentes no senso comum. Para tanto,
quanto produto, constrói tanto a sociedade como escolhemos pessoas sem qualquer vínculo com
a si próprio. o ambiente acadêmico ou com o tema de
Ao analisar a construção dos saberes pesquisa: vigilantes, frentistas, operários,
sociais, Moscovici visa romper também com a taxistas, estudantes de ensino médio.
dualidade ciência-verdade X senso comum- As contribuições decorrentes destes
ilusão. Contrapondo-se à idéia da “ignorância procedimentos serão inseridas pontualmente a
das massas”, o estudo das RS valoriza o senso seguir.
comum como conhecimento legítimo e motor de
transformações sociais. Concebe, além do AS MONTANHAS DA BÍBLIA
mundo reificado, próprio das ciências e da
política, um mundo consensual, o universo da Entre os depoimentos colhidos, por
cultura cotidiana. diversas vezes transpareceram sentimentos
A fim de captar evidências de como se relativos à dimensão sagrada. Para muitos, a
originam e manifestam os sentimentos relativos montanha é uma “coisa de Deus”, nela ficamos
às montanhas, buscamos alguns procedimentos “mais perto o Céu”. Esta metáfora, de uso
metodológicos diferenciados. Além de consulta corrente, surge com a mesma intensidade na
a textos bíblicos e artigos publicitários, literatura, como uma das justificativas para a
buscamos subsídio em pesquisas com alunos e incursão de montanhistas e aventureiros às
em entrevistas livres. Com as crianças, foi alturas, sendo empregada com naturalidade em
pedido um texto “na hora”, deixando que relatos de escaladas.
escrevessem livremente, sem preocupação com

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No contexto predominantemente cristão monte Tabor, onde se daria sua transfiguração
em que nos encontramos, um fator que (Marcos, N.T., 9:2)
certamente contribui para formar esta concepção O monte das Oliveiras é o cenário de boa
é a existência de diversas passagens e figuras parte da última semana de Cristo. Sua última
bíblicas que se referem às montanhas. Presente aparição também foi num monte, que os
na formação moral e cultural das sociedades evangelhos não citam o nome.
ocidentais, a Bíblia e seus ensinamentos A imagem de Jesus subindo às
exercem forte influência ética na conduta dos montanhas para rezar compõe o imaginário
indivíduos provindos de famílias de matriz popular do ocidente, fortemente influenciado
cristã. Assim, nos propusemos inicialmente a pelo catolicismo e pelas religiões evangélicas.
explorar de que modo a imagem da montanha é Assim como nas religiões orientais, a
retratada na Bíblia. peregrinação em busca de algo maior, além de si
Mesmo um estudo pouco aprofundado mesmo, encontra muitas vezes na subida das
das mensagens contidas no texto sagrado do encostas o sacrifício físico que conduz à
cristianismo revela inúmeras menções a montes iluminação. A escalada é o caminho da
e elevações: são citados o monte Carmelo, o contemplação divina: subindo ao alto dos
monte Horeb, as montanhas de Efraim, o Tabor montes o homem estabeleceria uma conexão
e o monte Moriá. Diversas personagens bíblicas com Deus.
estão vinculadas às montanhas, sejam estas No âmbito da igreja católica, uma
retratadas como local de peregrinações, personalidade que incorporou este simbolismo
sacrifícios, milagres ou revelações divinas. foi Karol Wojtyla, o papa João Paulo II. Este
Já no Antigo Testamento, a narrativa demonstrava grande fascínio pelas montanhas,
sobre Moisés, que ao sair com seu povo do desde a juventude, e em inúmeras ocasiões
Egito acampara aos pés do monte Sinai, é rica subiu picos alpinos. Era conhecido como “o
em simbolismos com relação à montanha. teólogo da montanha”. Uma torre de 2.424
Observe-se que ao chamar Moisés, Deus lhe metros de altitude, no maciço do Gran Sasso
teria advertido que o povo não poderia subir ao (Itália) foi batizada com o nome do papa, após
monte, dizendo: “Marca limites ao redor do seu falecimento. Na ocasião da homenagem, o
monte, e santifica-o.” (Êxodo, 19:23). A subida cardeal Martins (2005) relembrava que a relação
ao alto da montanha freqüentemente é tarefa que do papa com as montanhas fora realmente
somente alguns iluminados ou profetas devem singular: nelas João Paulo procurava “a beleza e
executar. E essa limitação não se deve a motivos a força, os silêncios profundos e as vozes dos
físicos, mas a uma necessária preparação anjos”.
espiritual que lhes tornava aptos à experiência Estas palavras lembram ao homem
da aproximação com os céus. cristão a dimensão sagrada da montanha, que
Mas são as imagens bíblicas sobre a vida antes de ser uma formação física, é um símbolo
de Jesus as mais ricas em elementos simbólicos espiritual. As metáforas bíblicas remetem a isto
relativos às formações montanhosas: do Sermão constantemente: “Levanto os olhos para os
da Montanha à crucificação no alto de uma montes: de onde me virá o auxílio?” (Salmos,
elevação, a história dos evangelhos está repleta A.T., 120:1-2). “As alturas dos montes
de menções que reforçam este simbolismo. pertencem a Deus” (Salmos 95:4). Estas
Depois da multiplicação dos pães, Jesus imagens bíblicas estão inegavelmente presentes
se despediu da multidão, e “subiu a um monte no imaginário do homem cristão, sendo
para orar na solidão.” (Mateus, 14:23). Antes periodicamente reavivadas e rememoradas nas
de escolher os apóstolos, é ali também que ele cerimônias católicas, evangélicas e protestantes.
passa a noite em oração. Mais tarde, Jesus As passagens bíblicas acima retratadas,
reuniria alguns dos seus apóstolos sobre o sobretudo as do antigo testamento, lembram que

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desde a antiguidade as montanhas abrigavam Em terceiro lugar, Samivel situa uma
intenso significado sagrado. Ao estabelecer nova evolução das idéias: a noção do divino se
cultos e tradições utilizando a imagem destas, o desmaterializa e transcende, e sua localização
cristianismo demonstra uma aproximação com passa de um plano terrestre a um plano celeste.
certas crenças míticas. Isto nos conduz a Nessa concepção, as montanhas se constituem
investigar manifestações simbólicas anteriores. em meios principais de conectar os homens aos
Ao lançar um olhar para o passado, nos deuses, uma passagem por meio da qual corre
aproximaremos do pensamento mágico de um fluxo entre a terra e o céu divino. E, como
nossos ancestrais, no qual se situam algumas conseqüência de uma evolução na concepção do
raízes do moderno imaginário sobre as mundo, ligada a uma observação científica ainda
montanhas. embrionária, elas seriam vistas como os pilares
que suportavam o céu.
MONTANHAS SAGRADAS O conceito de Axis Mundi é clarificado
por Eliade (1996), para quem a montanha
As elevações rochosas assumiram, ao sagrada era também entendida como um eixo
longo dos séculos, significados profundos. perpendicular – símbolo extremamente
Dentre todos os objetos naturais, a montanha foi difundido. Para este pesquisador, a imagem de
o que se revestiu de mais intensa sacralidade. uma coluna universal que sustenta os céus está
Diversos grupos antigos a incluíram como uma presente em muitas teorias cosmológicas.
de suas referências essenciais, revelando Conforme Eliade, todas as cidades, templos ou
concepções antropológicas que, mesmo palácios considerados como Centros do Mundo
concebidas isoladamente, abrigavam não passam de réplicas, multiplicadas à vontade,
semelhanças com representações coletivas de da imagem arcaica de um eixo que sustenta a
maior abrangência espacial e cultural. Samivel esfera celeste.
(1956, p. 20-21) classifica esta devoção em Para Campbell (1994, p. 92) a
alguns estados míticos, ao longo do tempo. característica simbólica mais marcante tanto do
Em primeiro lugar, estaria a noção do Velho como do Novo Mundo foram as grandes
Deus-montanha, bastante antiga, em que a torres-templo e as pirâmides se erguendo acima
própria montanha se constituiria alvo de dos telhados humildes agrupados ao redor de
adoração. suas bases. Para os sumérios, a forma da
Num segundo estágio, a noção do divino montanha simbolizava as duas direções duas
se desprenderia do corpo material da montanha. direções do movimento espiritual, para o alto e
Ela não seria a divindade em si mesma, mas sua para baixo.
residência, morada sagrada. As montanhas O simbolismo da elevação sagrada é,
abrigavam, para o homem primitivo, entes para Durand, o que leva os homens a construir
sobrenaturais de variadas formas e monstros essas colinas artificiais que são a Kaaba e outros
lendários. Wilkinson (2002, p. 52-56) nos templos: “Tal como as pirâmides, os Tumuli
lembra que os deuses mais importantes da funerários da civilização nórdica e os túmulos
Grécia eram aqueles que residiam no monte de sacerdotes-reis são voltados ao culto do
Olimpo. Zeus nasceu no monte Ida, e Dionísio céu.” (1997, p. 128)
foi criado no monte Niza. Diana, deusa dos As fases identificadas por Samivel
romanos, era homenageada nas montanhas. Na traçam um interessante quadro que ajuda a
Sicília, há o monte Hibla, no qual se adorava a distinguir algumas das principais formas de
deusa de mesmo nome. Para a mitologia conceber as montanhas. O repertório aqui
chinesa, de igual modo, as montanhas retratado instiga a um questionamento a respeito
abrigavam diversas entidades. das raízes que alimentam tanto o imaginário
moderno quanto as cosmologias dos povos ditos

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primitivos. Algumas das associações que carregadores nas grandes montanhas himalaias
motivaram nossos ancestrais podem ser após cuidadosos rituais e oferendas. Para aquela
evidenciadas ainda hoje? Tomemos como etnia, o monte Everest é Deus – deles e de todo
exemplo a função da magia como redutora da o mundo. As denominações locais comprovam
ansiedade diante do desconhecido, como meio esta devoção: para os tibetanos, o monte Everest
de tranqüilizar os temores do homem. A é conhecido como Chomolungma (“deusa mãe
significação mágica do homem antigo estaria do universo”); para os nepaleses, ao sul, como
ligada, afinal, a uma necessidade: ele recorria ao Sagarmatha (“deusa do céu” ou “montanha
ritual e ao mito para dar sentido e segurança a abençoada”).
seu mundo. A presença das montanhas sagradas é
Os fenômenos da natureza – raios, marcante em todo o oriente, sobretudo nas
tempestades, terremotos, vulcões, eventos religiões de matriz budista. No Japão moderno,
astronômicos – foram durante séculos os montes são respeitosamente venerados: as
ocorrências incompreensíveis, demandavam lendas de deuses japoneses que os habitam são
uma explicação coerente que apenas a crença no visíveis nas suas tradições, no folclore e nas
sobrenatural poderia fornecer. Diante das forças artes. Os deuses das montanhas são
da natureza e de suas manifestações considerados seus ancestrais. O inativo vulcão
catastróficas, entendidas como demonstrações Fuji-Yama, cuja denominação significa vida
da ira dos deuses, o homem certamente foi eterna, possui inúmeros santuários em suas
tomado pelo medo e pelo espanto. Esta encostas, dedicados a deuses do xintoísmo e à
necessidade de segurança espiritual e Sengen-Sama, a deusa do sol nascente. Aquele
psicológica parece estar plenamente atuante no monte atrai mais 300 mil peregrinos todos os
mundo moderno, sendo tradicionalmente uma anos, que cumprem o ritual de subir ao topo ao
das bases da religião a do mito. alvorecer.
Também Schama, em sua obra
“Paisagem e memória”, exemplifica como o EM BUSCA DO LAZER E DA BELEZA
homem secularmente cultua e teme a natureza, NAS MONTANHAS
atestando a universalidade de mitos tradicionais
com relação à floresta, à montanha e outros Nos relatos dos alunos, pudemos
elementos naturais. Sua tese principal, que perceber com freqüência a presença de uma
referendamos em boa parte, é a persistência dos ligação das montanhas ao turismo, a visão
mitos herdados da antiguidade, transmitidos destas como local de visitação. Alguns
inconscientemente ao longo de gerações da depoimentos expressam o desejo de “ir lá no fim
cultura ocidental. de semana, passar o dia”, outros declaram que
A atualidade de algumas crenças “tem muita coisa legal”, que “é muito útil para
contemporâneas atesta que mitos como o da acampar, fazer piqueniques”, e que “tem
montanha sagrada ainda estão atuantes em pleno recantos para parar e olhar a vista”.
século XXI. Podemos citar, por exemplo, a Cachoeiras, “paisagens lindas” e abismos
relação entre os aborígenes australianos e o compõem o quadro imaginado ou lembrado. As
Uluru, colossal monte de arenito vermelho no palavras escritas por Ana Paula resumem a
meio do deserto da Austrália central, contemplação da natureza serrana: “Em cada
considerado um local santo. Também em toda a parte é muito bonito tem bastantes árvores
cordilheira do Himalaia, diversas etnias flores águas e como sempre bastante gente
consideram as montanhas sagradas. O monte tirando fotos”.
Kailash, por exemplo, permanece até hoje como As conversações com jovens e adultos
local proibido, não sendo concedida permissão sinalizam, do mesmo modo, opiniões
para escalá-lo. Os Sherpas só atuam como semelhantes: “é pra ver de longe, é bonito,

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viajar”, “bom é ver do carro, ir vendo a serra, da sociedade. De fato, os novos valores estéticos
aquele verde”. Algumas pessoas expressarem e a alteração na percepção das paisagens
influências da educação ambiental moderna, ao naturais, que floresciam com vigor na Inglaterra,
associar as montanhas à natureza, que “muita tornaram-se rapidamente um fenômeno europeu
gente não respeita”. e mundial, que impulsionou a busca por locais
O uso ecoturístico surge em vários selvagens e não transformados pelo homem. O
depoimentos, ligando-se à idéia de aventura. cenário de reeducação estética iria gerar um
Para muitos, montanha é eleita como local de gosto especial pela admiração da paisagem
lazer, “é tudo de bom: natureza, aventura, sair rochosa e escarpada.
com os amigos”; “é sair no final de semana e Devido a esta nova sensibilidade, a visão
subir, se embrenhar no mato, ficar lá muitos sobre as montanhas se transformou
dias”. Gilson (entregador, 30 anos) contou que hegemonicamente. Ao longo de três séculos,
tinha uma casa de campo no pé de uma ocorreria uma grande mudança de percepção: as
montanha: “Quase todo fim de semana vou pra características que outrora as levavam a ser
lá, descansar, sentir o ar puro, a natureza. É o desprezadas – altitude, desolação, perigo –
meu paraíso...” passaram a constituir seus aspectos mais
Este gosto pela região serrana e pelas apreciados. A partir de então as belezas naturais
áreas naturais em geral tem, no entanto, uma da montanha seriam percebidas como lugares de
trajetória histórica. Durante longo tempo, as prazer, onde havia o ar mais puro e as melhores
áreas montanhosas foram usualmente vistas. As cordilheiras e regiões altas passaram a
consideradas locais perigosos, de gente ser um recurso recreativo de alcance popular, e a
incivilizada, povos bárbaros, ladrões e selvagens paixão pelo cenário montanhoso tomou conta do
– um cenário a ser evitado. Predominava a idéia público em geral.
de, a todo custo, evitar-se as montanhas, Os viajantes olhavam para a natureza em
circundá-las ou, caso fosse estritamente busca de conformidade com o padrão
necessário, transpô-las através de alguma preconcebido, com um modelo aceito de
passagem. harmonia estética. O apreço pela natureza
Segundo Keith (1988), os primeiros selvagem se convertera num paradigma
viajantes as achavam desagradáveis e arriscadas. dominante: a natureza das montanhas não era
Porém esta visão pouco tolerante para com as somente bela, era moralmente benéfica.
paisagens naturais e montanhosas iria se Nas regiões montanhosas, o ar era
modificar radicalmente antes de terminar o considerado mais limpo, com propriedades
século XVII. O gosto inglês pelos jardins curativas e ação purificadora. O aspecto
formais e cuidadosamente aparados se revelaria higiênico das regiões altas atraiu também a
fora de moda, e a paisagem agreste se tornaria medicina. A partir de 1850, diversos sanatórios
fonte de renovação espiritual. foram construídos em pontos elevados dos
A nova cultura nascente seria Alpes, onde tuberculosos e asmáticos
impulsionada também por valores religiosos. A internavam-se, absorvendo o sol da montanha e
idéia de uma terra ordenada por Deus, em o ar puro. No Brasil, a mesma valorização
perfeita harmonia, penetra em profundidade nas terapêutica das terras altas deu origem à cidade
consciências populares, orientando o olhar sobre de Campos do Jordão: o povoado, fundado em
o ambiente. 1874, transformou-se em estância de repouso, e
Conforme analisa Carvalho (2001, p.45- nas décadas seguintes se firmaria como centro
46) no arcadismo – que mais tarde influenciou o de tratamento doenças pulmonares. Ainda hoje
movimento romântico do século XIX – estão as atrai turistas devido ao frio e ao ambiente
origens desta admiração pela natureza, que se montano.
generalizou para um conjunto bem mais amplo

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A admiração moderna pelo relevo A partir deste processo de popularização
escarpado permanece, até hoje, vinculada a certa recente, meras técnicas de escalada, como o
noção de perigo diante da grandiosidade da rapel e a tirolesa, foram alçadas à condição de
natureza. A atração das montanhas sempre se "esportes”, na disputa por um mercado cada vez
relacionou à sua força e mistério, gerando uma mais atraente. No turismo comercial de
admiração semi-religiosa temperada pelo medo: aventura, empresas passaram a oferecer acesso
‘’“Um sentimento comum foi passado de guiado às montanhas, em condições controladas,
geração em geração, espalhando-se por grande risco mínimo e desfecho positivo quase
faixa populacional. A diferença entre os que assegurado. Nesse contexto, a indústria de
pereciam nas montanhas, os que excursionavam equipamentos e de serviços ligados ao
pelos Alpes (...) e os que apenas liam a respeito montanhismo desempenha papel efetivo. Os
de montanhas, ou contemplavam representações vários segmentos deste mercado crescente (que
de montanhas, passou a ser uma questão de oferece produtos, materiais e serviços
grau, e não mérito. Todos estavam sujeitos ao especializados) buscam fidelizar consumidores e
encantamento da altitude, e todos participavam formar novos adeptos da atividade.
de tal encantamento. Havia uma união quase O mercado turístico especializado em
perfeita entre os montanhistas, que buscavam viagens de aventura e ecoturismo, sobretudo,
atenção, e o público, que buscava ascenção.” utiliza um discurso que busca seduzir as
(Macfarlane, 2005, p. 151) pessoas. Para isso, lança mão, freqüentemente,
À medida em que a estabilidade e a de conceitos e referências provenientes do
prosperidade econômica se consolidavam, a universo simbólico e mítico que aqui
sociedade burguesa se dispunha, cada vez mais, abordamos. Ao oferecer a participação em
a correr riscos – ainda que imaginários. A classe expedições a grandes montanhas do Brasil e do
média precisava de uma válvula de escape, de mundo, a comunicação publicitária emprega,
um mecanismo que permitisse uma alternativa além da linguagem visual, mensagens de
às amenidades urbanas, e as montanhas eram impacto que refletem valores e crenças atuantes
um lugar ideal, onde cada pessoa poderia na sociedade.
encontrar o nível de risco que desejasse. Uma pesquisa em revistas dedicadas a
Constatou-se que os riscos tinham as suas turismo e viagens nos apresentou alguns
recompensas, como a sensação de euforia e exemplos da forma como as montanhas são
júbilo que hoje atribuímos aos efeitos da “vendidas”. Observamos sobretudo os anúncios
adrenalina. O risco tornou-se desejável, um bem veiculados por agências de viagens. No universo
consumível. dos periódicos disponíveis, trabalhamos com a
Este é um componente cultural atuante revista Caminhos da Terra, edições de abril/98 a
ainda na modernidade: sob o domínio das julho/2000, por ser uma publicação cujo
máquinas e da tecnologia, muitos são atraídos público-alvo é situado na classe média. Nesta
pela força de energias primitivas, impelidos a revista, as chamadas publicitárias que anunciam
desafiar a natureza, a testar sua força. Os os pacotes de viagens acenam com um mundo
chamados esportes “radicais” estão plenos deste de magia e promessas de êxito nas montanhas:
significado, promovendo certo resgate da  “Nepal – você no topo do mundo”
interação do homem com o meio natural. Estas  “Destino Mont Blanc: o maior cume da
incursões recriam os condicionantes de perigo Europa ao seu alcance”
existentes no passado, e em busca deles o  “Pico dos Marins: na rota da aventura”
homem deixa a cidade, seu mundo, e aventura-  “Torres Del Paine: sinta a real liberdade das
se na montanha. Ela se transforma em um meio montanhas”
eficaz de fugir ao estresse da vida urbana, de  “Montanhas do Peru: aventura na dose certa”
renovar as energias.

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 “Trekking nos Andes peruanos: venha treinamento, pra enfrentar o frio, o perigo,
descobrir os caminhos da natureza” altura.” (Julio M., estudante, 22)
 “Serra dos Órgãos – roteiros fantásticos para A influência dos escaladores entre os
você curtir suas férias” mais jovens é visível. Muitos deles se espelham
 “Férias na Patagônia: você perto da natureza – nos feitos e virtudes de montanhistas famosos,
ou melhor, dentro dela” elegendo-os como modelos: “Quero ser um
 “Pedra do Baú: a escada que vai ao céu da montanhista (...) Os caras que sobem não tem
Mantiqueira” medo, sabem escalar, tem os equipamento. Mas
Estas frases são usualmente colocadas à o principal é a coragem...” (Robson F. A,
frente de imagens de impacto. As mensagens estudante, 16).
utilizadas pelos agentes de propaganda se Freqüentemente, estes sentimentos pelas
utilizam também de metáforas, associando seus montanhas e seus freqüentadores acabam
produtos e serviços a conceitos como conquista, exercendo uma atração que leva muitas pessoas
sucesso, ousadia e aventura. a também acessá-las efetivamente. A relação
A publicidade alimenta ainda o apaixonada entre homens e montanhas inclui
imaginário coletivo que concebe a montanha fatores míticos, poéticos e imaginativos. O
como um santuário, um local paradisíaco. Seu montanhismo assume, de fato, profunda
discurso valoriza a comunhão com a natureza, significação, que transcende em muito sua
disponibilizando um caminho para o êxtase forma esportiva.
numa montanha longínqua, oferecendo uma Ainda que o intrigante universo do
oportunidade de transcendência num outro montanhista não seja nosso foco principal, ele
mundo, de onde os clientes/aventureiros aqui se constitui numa dimensão essencial ao
retornarão renascidos. influenciar, como vimos, a opinião das pessoas.
O montanhismo difunde idéias, imagens e a
“cultura” do risco e da aventura, afetando,
MONTANHISMO: PAIXÃO E DISCURSO
assim, o cidadão comum, nosso principal
Uma das dimensões mais marcantes “objeto” de estudo.
presente na pesquisa realizada foi aquela De fato, o imaginário popular abriga com
associada ao montanhismo. Em boa parte das intensidade a figura do erudito, poeta ou místico
pessoas, de fato, a idéia de montanha é de que vai para as montanhas buscar iluminação. A
imediato ligada aos escaladores e a seus feitos elevação assume, assim, o papel de um caminho
recentes. e um meio físico de estímulo espiritual,
A figura do montanhista é retratada em perfeitamente adequado à busca de Deus. Esta
inúmeros comentários, como na fala de Marina ligação religiosa se materializa em templos,
R. (vendedora, 32 anos): “Tem gente que dá santuários e retiros. Os escritos de místicos,
tudo pra subir nessas montanha, arrisca a vida. livros sagrados e de religiões orientais e
Pra mim é loucura, só dá prejuízo. Gasta a vida ocidentais transbordam da menção à subida
lá, sofrendo, ainda se trouxesse alguma coisa... física montanha em busca de inspiração ou
Não sei pra que isso. (...) Mas tem que ter sacrifício. O montanhismo mantém viva esta
coragem, experiência, não é pra qualquer um. ligação com o sagrado. Em sua prática, surge
Fica até famoso se chegar lá em cima.” Outros uma devoção semi-religiosa, em que o esforço,
expressam respeito pelas qualidades usualmente o autoconhecimento e a disciplina estão
relacionadas à escalada: “Montanha é assim um presentes.
lugar longe, que os alpinista vão, subir até o Ao assumir riscos, o montanhista desafia
topo. É bonito de ver a coragem, a batalha a natureza e a si mesmo, expondo-se à vitória e
deles. É exemplo, né? Tem que ter força de à derrota, à luta e à recompensa. O montanhista,
vontade, não é pra qualquer um. E preparo, realmente, escala para si, movido pelo desafio,

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em busca da superação de si mesmo, de se sobretudo a forte conexão do montanhista
conhecer seus limites físicos e mentais – mas com a figura mítica do herói. O escalador
escala também para os outros, representando assume o papel de alguém que se sujeita a
países ou grupos, e colhe os frutos obtidos. privações e sofrimentos, que luta contra os
Hoje, o escalador de alta montanha é obstáculos para cumprir sua missão. Para
levado a fazer um cuidadoso registro de seus Bachelard, esta imagem lembra o mito de Atlas,
feitos, tornar-se conhecido e divulgar que sustentava o mundo às costas. Assim como
amplamente suas capacidades e conquistas, pois aquele deus grego, o alpinista gosta do seu
sem esse marketing pessoal não obtém o fardo, demonstra sua força e coragem, está
patrocínio necessário. O apoio financeiro exige, orgulhoso de sua tarefa: “Para um verdadeiro
além de garantias de sucesso, um retorno na alpinista, a mochila é um prazer positivo.”
mídia, o uso da imagem, através de entrevistas, (2001, p. 293)
palestras e contratos de propaganda. Mesmo que O sacrifício do herói, assim como os
esta exposição seja vista com resignação, para rituais de iniciação ou de passagem presentes
muitos assume ares de vaidade. Vários em muitas culturas, representa a libertação da
escaladores renomados já sofreram por este inconsciência e da imaturidade. Ao lutar contra
preconceito, sobretudo entre seus pares, tendo o monstro ou o dragão, o herói deve sair
seu nome envolvido em polêmicas, como vitorioso das provas, ‘morrer’ e ‘ressuscitar’
Reinhold Messner e, entre nós, Waldemar para alcançar uma existência plena. Pelo
Niclevicz. A divulgação de façanhas pessoais ao sofrimento testa a si próprio, conhece suas
grande público parece incorporar elementos de possibilidades e acaba por tornar-se
traição a um ideário. Afastariam o montanhista espiritualmente superior (ELIADE, 1999, p.
da valorizada imagem do homem introspectivo 170).
que sobe aos cumes para meditar, de qualidades Esta imagem mítica persiste como uma
como autodisciplina (através da qual resista herança simbólica. As evidências de sua
também aos prazeres mundanos) e humildade manifestação ao longo do tempo nos levam a
(pois para escalar montanhas é preciso lançar um olhar, ainda que rápido, sobre o
reconhecer as próprias fraquezas e limitações). conceito de “inconsciente coletivo”. Segundo
A todo momento, este embate dual surge Jung (1964) esta dimensão é a parte da psique
nas interpretações e comentários das pessoas que retém e transmite a herança psicológica
sobre a figura do montanhista. Consideram-no comum da humanidade. O inconsciente coletivo
às vezes um alienado envolto em uma busca está associado à idéia de arquétipo, que se
obsessiva por objetivos pessoais – inclusive define como as imagens primordiais ou
acusando-o de apenas almejar o sucesso e os conteúdos simbólicos localizados nas camadas
“louros” da árdua vitória. Em outros momentos, mais profundas da mente. São conteúdos ou
o montanhista é visto como um modelo, em que imagens típicas que não foram submetidos a
o autoconhecimento, o companheirismo e a qualquer elaboração consciente, mas surgem
busca de uma vida em maior harmonia com a com freqüência como temas permanentes do
natureza surgem como exemplos. O olhar pensamento humano, preenchidos pelo material
popular é pontuado por momentos de da experiência consciente. A escola de
incompreensão e admiração, crítica e aplauso. psicologia analítica de Jung, assim, ajudou a
As opiniões das pessoas sobre a atitude do eliminar a distinção arbitrária entre o homem
escalador envolvem qualidades antagônicas: primitivo, para quem os símbolos são parte
irresponsabilidade e coragem, exibicionismo e natural do cotidiano, e o homem moderno que,
autocontrole, egoísmo e abnegação. aparentemente, não lhes encontra nenhum
O montanhismo guarda também aspectos sentido ou aplicação.
inconscientes e simbólicos de longa data. Nota-

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No que tange ao tema aqui proposto, nos conquista é embalado pelo ideário construído
parece haver uma aproximação entre a dimensão histórica, cultural e simbolicamente, conduzindo
inconsciente e as RS, uma zona de o praticante do montanhismo a desafiar seus
permeabilidade entre ambas. Os arquétipos limites mentais e físicos.
atuam no mundo moderno, alojados nas No início, especialmente a partir do
dimensões subjetivas do cotidiano. Cabe aqui século XIX, esta atividade estava associada a
refletirmos sobre o alcance e influência que um compromisso com a ciência. As escaladas
podem exercer sobre as representações dos tinham um vínculo institucional que lhes
montanhistas, e sobre a visão pública sobre eles. conferia maior seriedade perante a sociedade: as
As representações sobre as montanhas incursões eram muitas vezes justificadas por um
estão ligadas também a uma certa noção de intuito científico, e nelas era usualmente
verticalidade profundamente arraigada no realizado algum tipo de experimento. A
pensamento humano. As montanhas, assim academia, de fato, foi uma das forças motrizes
como as cruzes, as árvores e as torres das do montanhismo: as primeiras expedições foram
igrejas, simbolizam a postura vertical, a linha financiadas como expedições científicas, cujo
ascendente em direção ao céu, em oposição à objetivo era buscar conhecimentos geológicos e
dimensão terrena, rasteira e profana. botânicos. A geologia, sobretudo, exerceu
De fato, o impulso para o alto, e de ir a influente parceria com o montanhismo: uma
locais cada vez mais elevados, é inato à mente escalada sé dá percorrendo diferentes extratos
humana. O ser humano aspira, como as plantas, rochosos, e cedo intrigou os pesquisadores a
a ascender da terra, a levantar-se: o salto é uma presença de conchas e outros elementos antigos
expressão básica da alegria (Bachelard, 2001). a grandes altitudes. O montanhismo contribuiu
De igual modo pensa Durand, para quem os atos em alguns aspectos para a elaboração de teorias
e crenças humanos com relação às montanhas fundamentais, como a da deriva dos continentes,
estão ligados à verticalização, ao instinto natural de Wegener. Na rampa do Everest conhecida
da criança que se ergue e à postura ereta do como ‘franja amarela’, a pouca distância do
adulto: “O imaginário continua o impulso cume, encontram-se fósseis de criaturas que
postural do corpo” (1997, p. 130). Também viveram no mar de Tétis, que separava a Índia
Eliade lembra que há na idéia da ascenção todo da Eurásia e do atual Tibete a milhões de anos
um sistema de correspondências atrás.
antropomórficas, que vão da coluna vertebral ao O monte Everest, a propósito, assume
Axis Mundi (1999, p. 138). grande representatividade para o montanhismo
A subida da montanha, no mundo todo, é mundial, e surge com freqüência nas
associada à chegada ao ápice, à busca do representações sociais pesquisadas. Conforme
sucesso. Ao desafiar as adversidades, percorre- lembra Brandolin (1993, p. 19) existem muitas
se figurativamente um caminho íngreme que montanhas mais bonitas e mais difíceis de serem
leva ao alto. A escalada tem ampla utilização escaladas, mas a mais alta do mundo provoca
como metáfora. Sua imagem está presente no uma irresistível atração. Nenhuma outra recebeu
marketing, nos gráficos de linha ascendente que tantas expedições, foi tão documentada e
retratam metas corporativas ou em alusão a mereceu tantos livros.
tarefas difíceis. De fato, depois que o explorador norte-
A vista panorâmica que se descortina do americano Robert Peary proclamou ter chegado
alto, ainda que deslumbrante, não equivale à ao Pólo Norte, em 1909, e Roald Amundsen
significação simbólica em torno da escalada: o liderou uma equipe norueguesa ao Pólo Sul, em
ápice, um ponto nas coordenadas do espaço 1911, o Everest (8848 m. de altitude) tornou-se
elevado pelas contingências da geologia, é o objeto mais cobiçado no reino das explorações
sobretudo algo imaginado. O desejo da terrestres. Passou a incorporar, no imaginário

11
mundial, o papel de Terceiro Pólo, à espera dos comerciais ao Everest, ao nível popular sua
seus conquistadores. força simbólica parecer se manter relativamente
A dimensão geopolítica e nacionalista inalterada: as polêmicas recentes não superam a
atua desde o início do alpinismo internacional, força do imaginário coletivo. Nota-se até mesmo
tendo sido marcada pela histórica rivalidade um efeito contrário: atendendo ao “chamado” da
entre ingleses e franceses. Estes tinham, em montanha, os novos aventureiros difundem
1950, divulgado amplamente a conquista do ainda mais sua magia, ampliando seu poder de
Annapurna – o primeiro cume de 8 mil metros atuação sobre a mente do homem comum. O
escalado pelo homem – como uma epopéia intenso simbolismo sobre a montanha mantém
nacional, uma prova da superioridade francesa. assim sua força, alimentado pelos relatos
O acontecimento se inseriu na memória coletiva trágicos ou heróicos de cada temporada de
da França, que saíra ferida e dilacerada da escaladas.
segunda guerra. A repercussão da conquista
francesa gerou o “efeito annapurna”: várias RELEVO E NATUREZA INTOCADA
expedições internacionais eram montadas, com
apoio governamental, buscando elevações de Entre as diferentes dimensões de análise
destaque mundial. Os britânicos estavam relativas ao o ambiente montano, uma assume,
obcecados sobretudo pela conquista do Everest, para nós, importância especial: a relação entre o
e após dez expedições, finalmente tiveram êxito, relevo montanhoso e a ocupação dos espaços.
em maio de 1953. Edmund Hillary e o sherpa As representações sociais aqui retratadas estão,
Tenzing Norgay se tornaram os primeiros de fato, estreitamente vinculadas à
homens a pisar no topo. A repercussão foi transformação do meio natural pelo homem.
enorme na Inglaterra: “O gigante da Terra No processo histórico de ocupação do
sucumbiu” anunciavam o Times. A notícia território pelo ser humano, as regiões
chega aos ingleses no mesmo dia da coroação da montanhosas surgem como barreiras muitas
nova rainha da Inglaterra, e a coincidência vezes intransponíveis. Ao se erguerem no
destes dois acontecimentos gerou fortes horizonte, elas assumem um papel de obstáculo
sentimentos patrióticos. O país se recuperava ao avanço da urbanização, impondo limites
dos horrores da guerra, e tanto a jovem rainha físicos à ocupação do solo. Isoladas ou
como a conquista no Himalaia simbolizavam agrupadas em serras, as montanhas tendem a
um novo recomeço, marcado por esperança, limitar ou desviar os fluxos de produção e de
orgulho e nostalgia de um passado de glória transporte. As condições climáticas e de solo
(TERRAY, 1977b, p. 160). complementam a adversidade da inclinação
Os primeiros brasileiros a escalar o mantendo as encostas e vales montanhosos
Everest foram Mozart Catão e Waldemar usualmente fora dos projetos progressistas e
Niclevicz, em 1995. O fato foi amplamente modernizadores. Via de regra, a cultura humana,
divulgado pela mídia brasileira, que retratou os e a agri-cultura, preferem as áreas mais planas.
dois escaladores como heróis nacionais. Com a gradual ocupação de todas as
Niclevicz foi homenageado pelo presidente da terras férteis e relativamente planas, sobraram
república e pelo então ministro dos esportes, somente ilhas de natureza intocada. Estes
Pelé, de quem havia recebido a bandeira redutos sobreviveram sobretudo por razões
nacional que estenderia no cume. O livro de ligadas ao relevo. Ao se mostrarem inviáveis
Waldemar que narra a expedição vitoriosa ao para o cultivo, dificultarem a construção de
teto do mundo tem como subtítulo “A conquista estradas – que atuam há séculos como efetivos
brasileira da maior montanha do mundo”. corredores de ocupação – e a exploração dos
Apesar das duras críticas tecidas no meio recursos naturais, os ambientes naturais serranos
montanhístico contra as atuais expedições

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foram poupados. Esta dinâmica pode ser
percebida por todo o mundo. Sob muitos aspectos, a relação entre
Exercendo efetiva resistência à expansão homens e montanhas guarda estreitas ligações
agrícola e econômica, as montanhas se mantêm com a relação homem-natureza estabelecida
relativamente intocadas, enquanto o restante das pela sociedade contemporânea.
florestas são desmatadas e loteadas Na literatura consultada, a evolução do
desenfreadamente. Certamente outros fatores olhar sobre as montanhas é vista sob uma ótica
contribuíram para que a vegetação serrana fosse evolucionista: os sentimentos negativos são
poupada do extermínio, mas sem dúvida retratados sobretudo como coisas do passado.
nenhum foi tão atuante quanto a própria Estas percepções teriam sido substituídas por
conformação geológica e natural. As ações novos valores estéticos, a partir do final do
ambientais e a legislação que hoje protegem as século 17, que situam na natureza o locus da
florestas se configuram, sobretudo, como uma beleza, da pureza e do equilíbrio perdido –
continuidade, de extremo valor em um momento inspirados nas idéias do romantismo. Mas a
em que se ampliam as pressões sobre as zonas presente pesquisa aponta que, de modo sutil,
montanhosas. sentimentos conflitantes com esta postura, de
De fato, as Unidades de Conservação séculos atrás, permanecem atuantes.
brasileiras com relevo montanhoso constituem a Boa parte dos relatos guarda temores
maior porcentagem em comparação ao total de com relação à fauna e à vegetação (usualmente
área protegida. Um olhar sobre os 62 Parques tidos como sinônimos de natureza). Esta
Nacionais do Brasil confirma que boa parte constatação, algo surpreendente, contraria a
deles está localizada em regiões de montanha. A tendência hegemônica do naturalismo romântico
própria denominação de mais de vinte dessas visto na atualidade, fruto do processo cultural de
UC’s evidencia, de norte a sul, a origem natural raízes européias exposto anteriormente.
que apontamos acima. Abaixo citamos algumas: A natureza concebida como boa, bela e
• P. N. Montanhas do Tumucumaque (AP) saudável convive, na percepção popular, com
• P. N. do Monte Roraima (RR) associações antagônicas de medo e aversão.
• P. N. da Serra do Divisor (AC) Muitas vezes ela é vista como um lugar perigoso
• P. N. Serra da Capivara (PI) e assustador, morada de animais e bandidos –
• P. N. Serra de Itabaiana (SE) um mundo totalmente oposto ao das cidades. Os
• P. N. da Serra dos Órgãos (RJ) sentimentos sobre a montanha guardam relação
• P. N. da Serra do Cipó (MG) com acidentes, mortes e animais selvagens. As
• P. N. Serra da Bodoquena (MS) crianças se referiam a sons assustadores, à mata
• P. N. Aparados da Serra (SC) escura, aos ouvidos trancados e a sentirem
• P. N. da Serra Geral (RS) enjôo. “Parece que vai tudo se desmoronar”
escreveu Nicole.
Um estudo que sobreponha o Entre os adultos, alguns depoimentos
mapeamento das florestas preservadas a mapas expressaram admiração estética pelas
de relevo e altitude certamente reunirá dados montanhas, mas tendiam a situá-las ao longe,
que confirmem este fenômeno. Para o senso num local para visitar ocasionalmente, ou
comum, porém, o fato da natureza se refugiar mesmo para apreciar pela janela do carro. “É um
nas áreas montanhosas cria um novo perigo andar por lá. Bom é ver do ônibus”.
sentimento, mesclado a temores antigos Quais os motivos desta visão conflitante
relacionados às montanhas. entre o belo e o perigoso, entre o bom, inspirado
nos valores ambientais, e o ameaçador? Nos
AS MONTANHAS COMO REDUTOS DA levantamentos realizados, via de regra, as
NATUREZA HOSTIL montanhas são imediatamente associadas à idéia

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de natureza, indicando a relação estreita e usual Este pensamento simbólico foi
entre ambas. Porém, ainda que transferido sem mudanças substanciais para a
hegemonicamente transformadas, as impressões visão sobre as montanhas. Ainda na
sobre elas guardam dimensões alternativas, modernidade, pode-se notar apreensão e
interpretações que abrigam uma diversidade desconfiança com relação às elevações cobertas
oculta pela postura estética dominante. de vegetação, portadoras de um imaginário
Convivem no cotidiano o desejo de coletivo carregado de superstições.
aproximação e valorização da natureza (como A tendência de ver as montanhas como
um bem, algo que se deveria respeitar, admirar e lugares perigosos e inadequados ao homem
cuidar), o desejo de dominação (o ambiente civilizado foi fortalecida ao longo do tempo por
natural como algo a ser conquistado/enfrentado) um fator adicional: historicamente, heréticos e
e o sentimento de temor/aversão. rebeldes, em tempos de perseguição, se
Nos depoimentos coletados percebe-se escondem nas montanhas, relacionadas a focos
uma tendência a conceber a natureza como de resistência civil/militar. Os Alpes foram por
alteridade, como algo desconectado de si, centenas de anos o baluarte da Europa, reduto e
distante, fora da cidade, associando-a às esconderijo de grupos perseguidos.
montanhas. Isto reforça uma postura humana Recentemente, na luta contra a ocupação
que tem um substrato histórico claro no indonésia do Timor, a resistência se deu
processo de ocupação do espaço: a dicotomia sobretudo nas montanhas. Nelas, se refugiam os
campo-cidade. A cidade, contrapondo-se à rebeldes do Afeganistão, os guerrilheiros curdos
natureza selvagem, se estabelece historicamente e colombianos, os traficantes de drogas do Rio
como o lugar da cultura. O desenvolvimento de Janeiro e os supostos terroristas procurados
econômico-industrial priorizava as necessidades pela milícia americana no Iraque.
humanas e a cultura urbana em expansão. Essa A natureza também pode ser abrigo de
tendência se materializava através de um uso criminosos. Alguns depoimentos julgaram a
prático dos recursos naturais e na transformação montanha como um “lugar de bandido” onde
dos espaços tomados por florestas “inúteis”. O ocorrem roubos e assaltos, e onde “só tem mal-
antagonismo entre cultura e natureza era intencionado”. A percepção da comunidade
marcado pelo domínio humano, e materializado revela a persistência do imaginário da mata
em intervenções artificiais na paisagem. A partir escondendo bandidos.
do surgimento das primeiras aglomerações Outra dimensão usualmente
humanas e cidades, a natureza passou a ser vista menosprezada na atualidade é a que concebe a
hegemonicamente pela nova sociedade urbana natureza como local de feras. Erroneamente
como sinônimo de atraso e rusticidade, domínio atribuída unicamente às sociedades não-urbanas
do inculto e do esteticamente desagradável. Em ou primitivas, essa noção sobrevive enraizada
muitos aspectos, representava uma ameaça à no inconsciente humano. Diversas pessoas
ordem nascente. mencionaram o medo de animais –
Como alerta Gonçalves, chama-se principalmente de cobras – nos depoimentos. O
selvagem – da selva, do plano da natureza – aluno Marcos escreve: “... podemos morrer
àquele que se encontra no pólo oposto da porque tem cobras, aranhas e muitos animais
cultura. Esta é tomada como algo superior e que perigosos”.
conseguiu controlar e dominar a natureza, a Durante longos séculos, foi muito raro
inconstância, o imprevisível, o instinto, as um sentimento bondoso para com os animais: o
paixões. Neste contexto, o Estado, a lei e a normal era temê-los, e, se possível, exterminá-
ordem necessários para evitar o primado da los. As florestas e montanhas causavam medo
natureza, onde reina o caos ou, no máximo, a lei porque abrigavam, além de feras imaginárias,
da selva. (2002, p.25) animais selvagens de toda espécie, que quando

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não atacavam o viajante causavam dificuldades pequenos animais se refugiam. Este desejo de
aos povoados próximos. À noite, lobos segurança se une ainda a valores estéticos: a
esfomeados vinham às cidades, rodeavam as arquitetura e o planejamento urbano abrigam em
casas, devoravam ovelhas e cordeiros. Seus suas origens o desejo humano de corrigir e
uivos aterrorizavam as aldeias. (TUAN, 2005). controlar a natureza. Pode ser percebido
Com o crescente aproveitamento de terras para a facilmente este gosto pelo seu domínio: criação
agricultura e ao desflorestamento, os animais de espécies geneticamente melhoradas, jardins
eram vistos como ameaça. projetados geometricamente, troncos pintados à
Nos textos e depoimentos que buscaram cal, praças com arbustos e flores alinhadas,
retratar as representações sociais foram citados canteiros livres de todo mato. Esta lógica
com freqüência cobras, escorpiões, aranhas e os pragmática essencialmente urbana esconde
incômodos mosquitos. Demonstrou-se valores culturais antagônicos à noção romântica
preocupação também com “bichos grandes”, de natureza.
como onças. A natureza relativamente intocada As representações sociais, assim, mesmo
das montanhas serranas concentraria, assim, recebendo influências da ciência e de grupos
uma fauna perigosa. Poucos entrevistados formadores de opinião, exibe características
externaram sentimentos de admiração para com próprias, algumas de origem remota. Vemos
os animais selvagens que lembravam existir nas surgirem ainda hoje, por exemplo,
montanhas. representações da natureza como instrumento de
A presença de insetos que transmitem castigo divino, que no contexto técnico-
doenças também foi lembrada nas conversações. científico moderno se achavam extintos. São
Esta associação, que vê a natureza como foco de resquícios persistentes de uma sociedade
enfermidades e males é, de fato, estimulada com supersticiosa, atormentada pelos caprichos dos
freqüência no cotidiano moderno. As deuses e pelo medo da noite. Esta
campanhas de saúde nos meios de comunicação reincorporação da natureza mágica se renova na
atuam nesse sentido, como no recente alerta vinculação da idéia de natureza a catástrofes
público contra o mosquito transmissor da climáticas e ambientais (vendavais, inundações,
dengue. Animais e plantas são, muitas vezes, granizo), traduzidas freqüentemente em
portadores de germes patogênicos. Na comentários populares, que as explicam como
atualidade, o combate ao tráfico de animais “a natureza reagindo às agressões” ou
silvestres tem como um de seus principais “retomando seu lugar”, e em expressões como
argumentos o risco que estes oferecem à saúde “a fúria da natureza”.
humana, como transmissores de doenças.
A preocupação higienista/sanitária atua, MONTANHAS DO MAL
de igual modo, na formação da imagem de
natureza pelo senso comum. A tendência urbana A pesquisa em que se baseia este artigo
à purificação, organização e esterilização do demonstrou que as montanhas acumulam
ambiente habitado contribui diretamente para a percepções contraditórias, que vão do sublime
contraposição homem/natureza. Em nosso ao desprezível, da admiração ao temor. Um
cotidiano, as folhas que caem das árvores são destes antagonismos, no entanto, chama a
varridas como sujeira, os gramados atenção: a montanha é associada ao sagrado –
cuidadosamente aparados, as frutas e verduras nela estaríamos mais perto de Deus – mas
escolhidas segundo sua aparência impecável. A também ao maldito. Realmente, as metáforas da
postura moderna se materializa em bosques montanha como divindade ou morada do
roçados e limpos, bem como na eliminação das criador, apresentadas no início deste trabalho,
ameaças naturais à ordem/harmonia social – contrastam fortemente com a ligação simultânea
como os terrenos baldios onde a vegetação e

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desta a entidades maléficas, como bruxas, Ao fixar objetos no ponto mais alto das
dragões e demônios. montanhas, o ser humano busca assinalar seu
No folclore popular, as montanhas são controle simbólico e espiritual sobre elas. O
muitas vezes tidas como a morada de animais hábito de se instalar cruzes em montanhas por
malignos, ou como o próprio abrigo do todo o mundo é prova desta necessidade de
demônio. Em diversas culturas do mundo, as demarcar um território. Esta purificação
montanhas estão associadas à forma cônica do religiosa faz com que também imagens de
chifre. Este, o próprio símbolo do diabo, faz santos católicos sejam erigidas nas montanhas.
com que a montanha seja também conectada à Capelas e pequenos altares são freqüentemente
noção do maldito. Há, de fato, no mundo todo construídos alto de montanhas sul-americanas e
uma abundante presença de montanhas com européias, principalmente em Portugal e na
designações como “cime du Diable”, “mont Espanha. No Brasil este também era um hábito
Maudit” (ambos nos Alpes franceses), “Mount tradicional, hoje restringido pelas
Diablo” (Califórnia/USA), “Devils Thumb” regulamentações ambientais que protegem o
(Alaska), “Cerro del Diablo” (México), “Diente cume das elevações.
del Diablo” e “Punta del Diablo” (Chile), Em todo o mundo os nomes originais de
“Montaña del Diablo” (Venezuela) e tantas algumas montanhas, relacionados ao diabo,
outras. No Brasil, podemos citar como exemplos foram substituídos por outras denominações, por
o Morro do Diabo (São Paulo), a Agulha do iniciativa popular ou oficial. Assim como as
Diabo (Rio de Janeiro) e o Anhangava (Paraná). cruzes, esculturas e templos erigidos nas
Este último tem sua toponímia originada do montanhas, as denominações atuam também
tupi, traduzindo-se para o português como como um marco territorial e cultural, um esforço
"morada do espírito mau”, do “gênio do mal” ou por incluí-la num universo conhecido e seguro.
do diabo. Outro fator que contribui para difundir a
Para Tuan (2005, p. 13), o meio imagem da montanha como local de perigos,
ambiente físico de montanha adquire uma atualizando sua visão negativa, é a divulgação
dimensão de mau agouro e aversão, além da de acontecimentos trágicos do montanhismo. O
ameaça das forças naturais e espíritos, quando é aumento do acesso humano às montanhas é
identificado com a maldade humana de ordem acompanhado, realmente, pelo crescimento no
sobrenatural, como a atribuída às bruxas. número de acidentes e mortes, de modo geral
Durante séculos, as montanhas e terras altas apresentados ao público comum em tom
foram consideradas o próprio habitat destas sensacionalista. Nas redações, a influência da
mulheres reais ou imaginadas. A caça européia cobertura de imprensa sobre a idéia de
às bruxas, que durou mais de dois séculos, montanha ficou evidente: “Uma das montanhas
concentrou-se nos Alpes e Pirineus. mais difícil de se escalar é o Monte Everest,
Ao reconhecer na montanha o último esses dias morreu um homem sem oxigênio”;
reduto da natureza bravia e mágica, o homem “um cara que tentou subir sem oxigênio e
sente ainda hoje necessidade de dominá-la. O acabou morrendo”; “um brasileiro morreu
ritual religioso, sobretudo, combate a associação tentando descer”.
daqueles locais com a morada do demônio, num As entrevistas com pessoas mais velhas,
esforço para conter a força maléfica da também apontaram a presença de eventos
montanha. A cruz, especialmente, visa situá-la trágicos do montanhismo: “Montanha é um
num plano de energias positivas, afugentar os lugar perigoso, só louco pra ficar subindo lá à
seres nocivos, tranqüilizando espiritualmente o toa... Quanta gente não morre lá, se perde,
homem moderno – assim como as oferendas e depois fica a família desesperada aí... Os
rituais apaziguavam os temores dos povos alpinistas mesmo acabam morrendo, dá no
antigos. jornal” (Marcos A. W., 28)

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Recentemente, o público brasileiro chegar ao alto, é necessário passar por corpos
acompanhou pela imprensa dois acontecimentos congelados, conservados pelo frio, cuja remoção
trágicos envolvendo montanhistas: a morte de se torna inviável diante das adversidades
Catão e seus companheiros no Aconcágua exercidas pela altitude.
(1998), atingidos por uma avalanche, e de Vitor Mesmo nas elevações menos extremas,
Negrete, no Everest (2007). Os relatos foram ou situadas em ambientes tropicais em que a
intensamente noticiados nos meios de neve, o gelo ou os males da altitude estão
comunicação, que exploraram avidamente os ausentes, o fator climático e as condições
aspectos emocionais dos acidentes. Os naturais oferecem risco constante.
depoimentos dos membros da expedição, dos Esta dimensão macabra, que compõe a
amigos e da família foram incluídos na mídia rotina do freqüentador das montanhas, é, porém,
impressa e nos telejornais, incluindo programas o que confere valor especial à atividade. Ainda
de alcance popular, como o Fantástico e outros que o planejamento, o cuidado preventivo e os
telejornais noturnos equipamentos especializados garantam certo
Há muitas maneiras de morrer nas controle sobre o perigo, este nunca deixa de
montanhas: por congelamento, avalanche, estar presente. O que torna o montanhismo
desmoronamento, ou em conseqüência da singular entre todas as demais atividades de
altitude, que pode causar edema cerebral ou lazer ou esportivas é, inclusive, a possibilidade
pulmonar. A queda, obviamente, é um risco da morte, o fato de que alguns praticantes irão
constante. Todos os anos, centenas de pessoas perder a vida. À parte o sofrimento causado aos
morrem nas montanhas do mundo, e milhares se familiares, isso é aceito com relativa
acidentam. O Mont Blanc, sozinho, já matou naturalidade. O fato de pessoas morrerem ou se
mais de mil pessoas; o Matterhorn, quinhentas; acidentarem nas montanhas, de vez em quando,
o K2, um número semelhante. Nos Alpes e nos inspira os sobreviventes, e alimenta o
Andes, os números são assustadores: dezenas de imaginário popular (MACFARLANE, 2005, p.
aventureiros morrem anualmente. Em 82).
Chamonix (França), morre em média uma
pessoa por dia em cada temporada de escaladas. CONCLUSÕES
Em determinados invernos, mais pessoas
perecem nas montanhas da Escócia do que nas A idéia de montanha remete a metáforas
estradas que a circundam. que integram as mais diferentes culturas e
Também no Everest a morte é uma ambientes. Ainda na atualidade, certos
presença constante. Cada minuto no topo, onde elementos do imaginário antigo se mostram
há somente 30% do oxigênio disponível ao nível atuantes, resistindo ao tempo em conexões que
do mar, significa menos reservas de oxigênio e acenam com origens comuns. Não só
energia para a descida, durante a qual acontece a sobrevivem nas brechas entre a tecnologia e o
grande maioria dos acidentes. O cume é apenas ritmo de vida urbano, como se transformam e
a metade do caminho. Desde 1921, as reavivam, mesclados a influências
estatísticas apontam um número superior a 210 contemporâneas. Muitas representações sobre as
mortos (metade deles na última década). Muitos montanhas têm raízes em um imaginário antigo
morrem devido à baixa temperatura, que pode que já se julgava extinto, herdado de um
ultrapassar os 35ºC negativos, e à exaustão. O passado de crenças mágicas e míticas comum a
excessivo aumento no número de escaladores do toda a humanidade.
Everest tem custado a vida de muitos: o Ao abordar as montanhas no universo
“congestionamento” que causa filas em locais popular, ressaltamos a atuação de elementos
estreitos e expostos é hoje uma das maiores ligados à memória coletiva e às construções
problemas enfrentados pelas expedições. Para simbólicas, ampliando o enfoque usualmente

17
dado à RS. Estas não se constituem apenas de Os meios de comunicação via de regra
processos cognitivos. O saber popular inclui ressaltam a representação positiva da montanha,
imaginário, emoções, afetos, memória e religião como esteticamente bela e vinculada ao prazer,
num arcabouço existencial diariamente contribuindo para a fantasia de um passado
exercitado na vida social. A existência do natural, de inspiração romântica. No universo
homem comum utiliza permanentemente esses consensual, surge freqüentemente a idéia da
elementos, como forma de estabelecer uma natureza como um paraíso perdido –
lógica própria. enaltecimento nostálgico é ainda hoje um dos
O estilo de vida do montanhista principais motores de posturas protecionistas
incorpora consciente ou inconscientemente com relação ao ambiente. Sua atuação no
dimensões simbólicas, resgatando imagens cotidiano é inegável, compondo o substrato não
arquetípicas. A popularização do alpinismo traz só do moderno ambientalismo como das
ao público comum um retorno dual: ao mesmo ciências naturais e humanas.
tempo em que conduz à sua “dessacralização”, O sentimento romântico hegemônico
gera eventos que reforçam emoções e opiniões convive, no entanto, com elementos
alternativas às de beleza e harmonia. Ao essencialmente antagônicos, que julgam a
evidenciar as mortes e acidentes dos últimos natureza como ameaçadora e hostil, em
anos, frutos da crescente exploração ecoturística oposição à cultura humana. Nesta visão negativa
das montanhas, os meios de comunicação da natureza, as montanhas inspiram temor e
contribuem ativamente para divulgar esta face insegurança.
perigosa. O risco evidenciado no noticiário As representações sobre as montanhas
realimenta temores ancestrais, que atribuíam parecem abrigar ainda uma certa origem
uma dimensão “maldita” e maléfica aos cumes. espacial. Muitas vezes são fruto de uma
As notícias das mortes de brasileiros no dinâmica espaço-temporal, que passa por
Everest e no Aconcágua continuam na memória modificações cumulativas: de fato, as formações
coletiva nacional, assim como as conquistas de rochosas que se elevam no horizonte estão
Niclevicz. Este, apesar das polêmicas em que se presentes em toda a história humana na
vê envolvido, é sem dúvida um personagem superfície do planeta. Ainda hoje, são vistas por
importante para o imaginário popular no Brasil. muitos como obstáculos ao desenvolvimento
Sua imagem está ligada a um sentimento econômico: as áreas de relevo acidentado atuam
patriótico de orgulho nacional, que desde os como barreira à expansão do uso agrícola e
primeiros tempos do alpinismo se faz presente urbano do solo. O cerco antrópico acaba por
ao lado da busca individual pela vitória na rodeá-las gradualmente, formando paisagens
escalada. Waldemar difunde a imagem de um que influenciam as diferentes leituras que o ser
solitário que desafia a adversidade, como humano faz das montanhas. Nelas se erguem
provação para representar um povo – elementos atualmente boa parte dos retalhos de floresta
característicos da figura do herói mítico. intocada restantes – protegidos historicamente
A mídia, movida por interesses pelo relevo e, posteriormente, por unidades de
comerciais, renova o simbolismo associado à conservação.
montanha através de idéias de aventura, desafio, Por trás deste processo, surgem valores
conquista, beleza, ascensão econômica, sucesso relevantes para a compreensão da relação
profissional e outros sentimentos/desejos homem-natureza. O papel de abrigo e refúgio,
humanos. O marketing de cunho turístico- que tende a se acentuar ainda mais no futuro,
esportivo, sobretudo, influencia fortemente o renova a visão do meio natural longe das
imaginário popular, interagindo com as demais cidades. Ali o senso comum tende a situar a
representações. natureza.

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As montanhas surgem como um
exemplo único da capacidade imaginativa do ELIADE, M. Imagens e símbolos: ensaios sobre
homem moderno, que num processo contínuo o simbolismo mágico-religioso. São Paulo:
cria conexões e tece novos sentidos para a Martins Fontes, 1996. 178 p.
realidade. A paisagem montanhosa atua como
um emissor de imagens simbólicas. Através dela _____. O Sagrado e o profano: a essência das
se fundem diversos sentimentos, compondo um religiões.São Paulo: Martins Fontes, 1999.
universo intuitivo não racionalizado. 191p.
Ao problematizar a montanha sob a ótica
das relações simbólicas e culturais sobre ela FARIA. A. P. Classificação de Montanhas pela
traçadas, buscamos retratar suas nuances menos Altura. In: Revista Brasileira de Geomorfologia.
visíveis. O imaginário contemporâneo forma Ano 6, nº 2. Rio de Janeiro: 2005. P. 21 – 28.
hoje um quadro impreciso, em que estão
presentes diversas influências. Afloram GONÇALVES, C. W. P. Os (des)caminhos do
dialogicamente no chamado senso comum meio ambiente. 10. ed. São Paulo: Contexto,
sentimentos topofílicos e topofóbicos, valores 2002. 148 p.
antigos e modernos, conscientes e inconscientes, HERZOG, M. et all. La montagne. Paris:
que introduzem maior complexidade à Larousse, 1956. 476 p.
interpretação de suas representações.
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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964. 316 p.
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pelo Centro Bíblico Católico, revisão Frei João Objetiva, 2005. 282 p.
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19
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São Paulo: Publifolha, 2002. 128 p.

1
Artigo baseado na dissertação “As montanhas
e suas representações através dos tempos:
buscando significados”, defesa em março/2008.
Orientação Profª Drª Salete Kozel.
2
Mestre em Geografia pela UFPR.

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