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Juventude, Trabalho e Educação no Brasil:

Perplexidades, desafios e perspectivas


Gaudêncio Frigotto1

Tomado por diferentes ângulos, o tema de que nos ocupamos nesta análise é, desde o
início, complexo e controverso. Esta complexidade e esta controvérsia têm início com a
dificuldade de ter-se um conceito unívoco de juventude, tanto por razões históricas quanto
sociais e culturais. Assim, é necessário, de imediato, não tomá-lo de forma rígida. Mais
adequado seria, talvez, falar, como vários autores indicam, em juventudes, especialmente se
tomarmos um recorte de classe social.2 Ao optarmos por essa compreensão, podemos levar
em conta particularidades e até aspectos singulares sem cair numa perspectiva atomizada. Os
sujeitos jovens (ou as juventudes) teimam em ser uma unidade do diverso econômico,
cultural, étnico, de gênero, de religião etc.
Não menos controvertido e complexo é o tema do trabalho e do emprego, em torno do
qual há simplificações e mistificações de toda ordem. A mais elementar é reduzir o trabalho,
de atividade humana vital – forma de o ser humano criar e recriar seus meios de vida – a
emprego, forma específica que assume dominantemente o trabalho sob o capitalismo: compra
e venda de força de trabalho.
Os jovens a que nos referimos nesta análise têm "rosto definido". Pertencem à classe
ou fração de classe de filhos de trabalhadores assalariados ou que produzem a vida de forma
precária por conta própria, no campo e na cidade, em regiões diversas e com particularidades
socioulturais e étnicas. Compõem este universo aproximadamente seis milhões de crianças e
jovens que têm a inserção precoce no mundo do emprego ou subemprego. Inserção esta que
não é uma escolha, mas uma imposição de sua origem social e do tipo de sociedade que se
construiu no Brasil. Aqui o recorte de classe e, de forma sobreposta o de cor – ou mais

1
Professor Titular Visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro representante do Brasil no
Conselho Diretivo do CLACSO (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais e do GT Trabalho e Educação
da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação – Anped).
2
Como poderá depreender-se da leitura do texto, o ponto de partida da análise que empreendemos sobre
juventude, trabalho e educação no Brasil é situá-la no âmbito das classes e frações de classes sociais. Isto não
elide e não inviabiliza que consideremos questões de gênero e raça. Trata-se de categorizações que, pelo
contrário, ganham maior densidade analítica quando relacionadas à classe social. Um simples acesso ao
Observatório sobre Juventude coordenado, na UFF, pelo prof. Paulo Carrano nos dá elementos valiosos sobre
as juventudes existentes no Brasil. Há, por outro lado, pesquisadores que se ocupam desta discussão. Ver
Spósito (1997, 2001, 2002) e Abramo (1994). Nos campos da antropologia, sociologia e psicologia há uma
ampla gama de pesquisas que podem subsidiar a compreensão das várias juventudes em seu recorte de classe,
etnia, raça, gênero etc.
2

adequado, como veremos adiante, de raça – evidencia-se sem necessidade de muitas


mediações.
Mesmo na delimitação deste universo podemos encontrar diferentes particularidades.
Assim, uma massa enorme de jovens trabalha com a família em minifúndios ou como
arrendatários ou assalariados do campo. Outros milhares de jovens vivem nas centenas de
acampamentos, de norte a sul, do Movimento dos Sem-Terra. Mas, certamente, o número
maior de jovens filhos de trabalhadores reside em bairros populares ou favelas das médias e
grandes cidades do Brasil.
Todos esses grupos de jovens têm suas especificidades mas, do ponto de vista
psicossocial e cultural, tendem a sofrer um processo de adultização precoce. A inserção no
mercado formal ou "informal" de trabalho 3 é precária em termos de condições e níveis de
remuneração. Uma situação, portanto, muito diversa da dos jovens de "classe média" ou filhos
dos donos de meios de produção, que estendem a infância e juventude. Nesses casos, a grande
maioria inicia sua inserção no mundo do trabalho após os 25 anos e em postos de trabalhos ou
atividades de melhor remuneração.4
Há, também, um número significativo de jovens das grandes capitais, violentados em
seu meio e em suas condições de vida, que se enquadram numa situação que, no mundo da

Como ao longo deste texto se utilizarão os termos mercado, mercado de trabalho, mercado formal e informal,
cabe, de imediato, uma advertência ao leitor. O conceito ou noção de mercado ou mercado de trabalho é
altamente banalizado pela ideologia do liberalismo econômico. É freqüente ouvirmos ou lermos na imprensa
que o “mercado está nervoso, tenso ou deprimido”. O mercado é personificado. Esconde-se que o mercado de
trabalho resulta de relações sociais, relações de força e de poder vinculadas a interesses de grupos e frações das
classes sociais. A dicotomia mercado formal e informal, por outro lado, não permite captar uma enorme
diversidade de estratégias de sobrevivência dos contingentes excluídos do trabalho formal. Economia popular,
economia de sobrevivência, economia solidária são novos conceitos que buscam expressar essa complexidade
(Tiriba, 200).

4
Ao definirmos como foco deste texto os jovens de classe trabalhadora caracterizados como provenientes da
classe social que "vive da venda da sua força de trabalho" (Antunes, R., 1999) não sinalizamos que os jovens da
classe média ou do topo da pirâmide social não tenham problemas. A análise de Pier Paolo Pasolini nos mostra
que a juventude parece estar condenada àquilo que é um dos temas misteriosos do teatro grego trágico: “a
predestinação dos filhos a pagar a culpa dos pais. (...) a nossa culpa de pais consistiria no seguinte: em crer que a
história não seja e não possa ser senão a história da burguesia" (Pasolini, P. P. 1990). Pasolini tem como
contexto de sua análise o fascismo e "o poder do consumo, última das ruínas, ruína das ruínas". Os jovens pobres
sentem-se "infelizes" por não poderem fruir as promessas do consumismo e os filhos da burguesia por serem
levados a um estado de permanente insatisfação com o que consomem. Tomando-se a questão do futuro de
jovens filhos de pais com altos salários -- gerentes, executivos de grandes empresas (funcionários do capital) --,
no contexto de crise do sistema capitalista encontramos problemas que, embora de outra natureza em relação
aos jovens de classe trabalhadora, os torna "infelizes". Um estudo indicativo a esse respeito é de Célia Ferreira
Novaes sobre "As determinações sociais no problema da escolha profissional: contradições e angústias nas
opções dos jovens das classes sociais de alta renda" (Novaes, 2003).

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física, se denomina de ponto de não-reversibilidade. Trata-se de grupos de jovens que foram


tão desumanizados e socialmente violentados que se tornaram presas fáceis do “mercado da
prostituição infanto-juvenil ou de gangues que nada têm a perder ou constituem um exército
de soldados do tráfico. Com efeito, em pesquisa feita pela Unesco sobre o mapa da violência,
o Brasil ocupa o terceiro lugar na América Latina. A situação das grandes capitais é
dramática. Em 1980, no Rio de Janeiro, os homicídios de jovens entre 15 e 24 anos
representavam 33,2% do número total de mortes da capital. 5 No ano 2000, passaram a
representar 53,2% (Pereira, M. 2004). Os dados do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito
e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro indicam que as mortes em
confronto com a polícia, no Rio de Janeiro, passaram de novecentos casos, em 2002, para
1.195 em 2003. Essa tendência, em relação aos jovens nesta faixa etária, se reproduz em
outras capitais, como São Paulo, Belo Horizonte, Salvador etc.
A configuração acima esboçada nos indica que não é por acaso que o tema da relação
juventude, trabalho e educação assume, especialmente nas últimas décadas, uma preocupação
específica no âmbito das políticas públicas do Estado brasileiro. Aplica-se, para um enorme
contingente de jovens no Brasil, aquilo que Viktor Frankl, nos anos 1940, denominava de
"vida provisória em suspenso" ao referir-se à situação dos tuberculosos, dos que viveram a
experiência dos campos de concentração ou de quem vive em situação de desemprego.
Neste texto vamos discutir brevemente três aspectos relativos ao tema. Primeiramente
dimensionaremos alguns dados mais gerais o universo de jovens no Brasil, especificando sua
origem geográfica – campo, cidade –, origem de cor ou raça e escolaridade. Partindo destes e
de outros dados indicaremos algumas inferências relacionadas à inserção precoce dos jovens
no mercado de trabalho.6 Um segundo aspecto busca sinalizar que o problema que analisamos
não tem solução fácil, ainda que sejam demandadas soluções urgentes. As teses que enfatizam
tratar-se de uma questão conjuntural não atentam para questões estruturais, tanto da atual crise

5
Dificilmente passa um dia sem que os jornais de grande circulação não noticiem mortes de jovens em cidades
como São Paulo e Rio de Janeiro. Trata-se de mortes causadas por confrontos ou não com a polícia ou entre
grupos rivais. Manchetes como estas se repetem "PM sobe a Rocinha e três adolescentes são mortos". A notícia
dá conta de que "os jovens voltavam para casa depois de um baile funk quando foram abordados por homens do
Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da PM. Eles teriam sido levados para a Travessa Gregório, próximo a
um valão, e baleados." (De Cássia, Cristina e Bottari, Elenice, O Globo, 2.02.2004, p. 13).
6
Embora o parâmetro de faixa etária não seja, como indicamos na nota 2, o melhor indicador para analisar a
problemática dos jovens, por ser o parâmetro da idade cada vez mais complexo, para este item, por nos valermos
das estatísticas oficiais do IBGE, tomamos os jovens em duas faixas etárias – 15 a 18 e 19 a 24 anos. Para
indicar que o parâmetro idade é problemático, a literatura nos dá conta de que em alguns países, do ponto de
vista de idade, a juventude se estende até os 32 anos.
3
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do capitalismo "global" quanto e, especialmente, da especificidade da sociedade capitalista


historicamente construída no Brasil.
Por fim, nos ateremos à discussão das políticas públicas de caráter emergencial ou
conjuntural e as de natureza estrutural em face da problemática dos jovens em sua relação
com o mundo do trabalho e da educação. Neste particular, por estarmos tratando de situações
de mutilação da vida de milhares de jovens, as políticas públicas terão que enfrentar situações
emergenciais de curtíssimo prazo e, ao mesmo tempo, tratar das questões estruturais.
Enfatizaremos que, tanto do ponto de vista econômico e social quanto ético-político, o plano
da ação se move num terreno contraditório repleto de riscos. Trata-se do terreno posto pela
realidade histórica. Assim, as perspectivas que se apóiam na antinomia certo e errado, bom e
ruim ou tudo ou nada ou do deve ser movem-se no plano discursivo e num raciocínio circular,
cujo efeito pode ser o imobilismo.7

1. Alguns traços da população jovem no Brasil: Procedência


geográfica, raça, trabalho e escolaridade

Embora a elevação da vida média dos brasileiros nos últimos cinqüenta anos tenha
sido significativa e, de outra parte as taxas de natalidade tendam a ser menores, mesmo assim
podemos afirmar que o Brasil é um país com um contingente extraordinário de crianças e
jovens. Com efeito, de acordo com dados do PNAD de 1999, aproximadamente 47% da
população brasileira tinha até 24 anos de idade. Um cenário muito diverso, por exemplo, do
da população da rica Europa, onde a baixa taxa de natalidade e o aumento da expectativa de
vida constituem um problema socioeconômico e político. Entre nós, como sinalizamos acima,
o problema é de outra ordem: a parcela mais numerosa da infância e da juventude
historicamente vem sendo mutilada em seus direitos mais elementares.

7
Como nos indica Jameson (1997), a antinomia explicita-se por uma forma mais clara de linguagem:
“proposições que efetivamente são radical e absolutamente incompatíveis, é pegar ou largar (...) x ou y, e isso de
forma tal que faz a questão da situação ou do contexto desaparecer por completo”. De modo totalmente diverso,
“a contradição é uma questão de parcialidades e aspectos; apenas uma parte dela é incompatível com a
proposição que a acompanha; na verdade, ela pode ter mais a ver com forças, ou com estado de coisas, do que
com palavras e implicações lógicas" (p. 18). Jameson acrescenta que “nossa época é, de forma bem clara, mais
propícia à antinomia do que à contradição. Mesmo no próprio marxismo, terra natal desta última, as tendências
mais avançadas reclamam da questão da contradição e se aborrecem com ela, como se ela fosse um
remanescente inexpugnável do idealismo, capaz de reinfestar o sistema de forma antiquada como os miasmas ou
a febre cerebral” (id. ibid., p. 18).
4
5

Tomando-se a faixa etária entre 15 e 24 anos, encontramos, de acordo com o Censo do


IBGE de 2000, um total de 34.092.224 jovens.8 Considerando que a população do Brasil,
pelo mesmo Censo, é de 169.872.856 de habitantes, percebe-se que esta faixa etária
representa aproximadamente 20,07%. Para se ter uma idéia da magnitude deste número, o
mesmo está próximo da população total do vizinho país, Argentina.
O quadro 1 mostra as características da população jovem, segundo a procedência
urbana e rural. Notamos que, do total da população das faixas etárias de 15 a 19 anos e 20 a
24 anos, a grande maioria (81%) reside na zona urbana. De outra parte, verifica-se que a
proporção de jovens de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos que residem no campo e na cidade é
muito próxima – 54% entre 15-19 anos e 52% entre 19-24 anos. Na zona rural há uma
diferença ainda maior. Verificamos, respectivamente, 56% e 48%. Esta diferença sinaliza a
tendência de jovens do campo, quando atingem a maioridade, a migrarem para a cidade.

QUADRO 1
População Jovem no Brasil por Grupo de Idade Segundo a Situação do
Domicílio
SITUAÇÃO DO GRUPO DE IDADE TOTAL
DOMICÍLIO 15 a 19 Anos 20 a 24 Anos De 15 a 24 Anos
URBANA 14.401.006 13.358.020 27.759.026
RURAL 3.548.282 2.784.916 6.333.198
BRASIL 17.949.288 16.142.936 34.092.224
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2000.

Isto parece se confirmar por um levantamento indicativo feito em dezembro de 2003


pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Programa Nossa Primeira Terra. Se por um
lado mais de 60% dos 141 jovens de cinqüenta municípios brasileiros entrevistados indicaram
que gostariam de permanecer no campo e estudar em áreas afins (62%), por outro, por falta de
oportunidades, saem do campo. Os motivos que os levam sair do campo são: para trabalhar
(28,5%), para estudar (26,5%), para trabalhar e estudar (26,5%) e 17,5% por outras razões
(Franco, I. 2003). Note-se que, para 55% dos jovens, se coloca a questão da busca de trabalho.
Alguns analistas sinalizam que, não fosse a organização do Movimento dos Sem-Terra, que
congrega aproximadamente 20 milhões de pessoas – sendo um grande número de crianças e
jovens –, o inchaço na periferia urbana seria mais grave. Paradoxal e contraditoriamente, o

8
Agradeço ao professor Jailson Alves dos Santos a colaboração na montagem dos quatro quadros e do gráfico
utilizados neste item.
5
6

agravamento da crise do emprego no setor industrial a partir do final dos anos 1970 levou
muitas famílias que haviam deixado o campo para trabalhar na cidade a retornarem ao campo.
Parte destas famílias se juntou aos sem-terra por sua capacidade política de mobilização e
estratégias de sobrevivência.9
Os ganhos das crianças e dos jovens que vivem nos acampamentos dos sem-terra,
apesar da precariedade que não nos permite uma visão romântica, em termos de politização e
de escolarização, formação humana e "cuidado com a vida", são inequívocos. 10 Há, como
mostram diferentes estudos, uma reeducação dos adultos nos acampamentos e assentamentos,
corrigindo sua cultura de exigências duras de trabalho das crianças e jovens.
Um dos aspectos que vem gerando intensa controvérsia são as políticas públicas de
discriminação positiva, mormente com os "afro-descendentes". Em grande parte a
controvérsia se origina pelo não-acordo com a forma de as estatísticas oficiais classificarem a
população brasileira. O IBGE trabalha em suas estatísticas com o conceito de cor e raça, e,
desta forma, classifica a população brasileira em branca, preta, parda, indígena, amarela e sem
declaração. A diferença é enorme, como mostram os quadros 2 e 3, se o critério for somente o
de raça.11
Pelo quadro 2, quando se trabalha com o critério cor e raça, apenas aproximadamente
6% da população jovem entre 15 e 24 anos é considerada negra. Na relação entre brancos e
negra teríamos, respectivamente, 50,92% e 6% . Todavia, se levarmos em conta os estudos
que mostram que a população brasileira é formada pelas raças, branca, negra, indígena e
amarela (quadro 3), constataremos que a grande maioria dos jovens de 15 a 24 anos está
concentrada nas raças branca e negra (pretos e pardos), que compõem 98,47% do total da
população nesta faixa etária, com ligeira predominância para a raça branca (50,92%), contra
47,55% para os negros.

9
Uma análise que busque entender as diferenças de organização e de politização do MST (Movimento dos Sem-
Terra) em relação aos movimentos e lutas do passado no campo, entre outras determinações, certamente deve
pesar a experiência urbana e sindical de muitos trabalhadores que trabalharam em grandes centros, como São
Paulo, por exemplo. Não é por acaso que as elites dominantes buscam vender uma imagem "demoníaca" do
MST, principalmente acusando-o de vincular-se a outros movimentos urbanos e/ou seduzir desempregados para
incorporar-se ao movimento.
10
Para uma análise da proposta educativa do Movimento dos Sem-Terra, ver Caldart (2000).
11
Temos presente que a definição de raça é complexa e controversa no plano sociológico, político e
psicossocial. A controvérsia é ainda maior no plano biológico. Sobre este último aspecto ver Bamshad, M. J. e
Olson, S. E. (2004). Registramos, entretanto, que ganha maior consenso entre pesquisadores e o movimento
negro sobre o uso de raça. No Encontro Nacional sobre Ações Afirmativas nas Universidades Públicas
Brasileiras, no texto-síntese há uma recomendação explícita neste sentido: "Propomos homogeneizar a
terminologia racial que circula nas discussões atuais sobre políticas públicas e definir que o termo a ser usado,
em toda a discussão de cotas, seja "negro" e não preto, pardo ou afro-descendente" (Carvalho, 2003:170)
6
7

QUADRO 2
População de Jovens entre 15 e 24 anos segundo a cor e a raça
COR/RAÇA POPULAÇÃO
BRANCA 17.359.231
PARDA 14.041.462
PRETA 2.169.448
S/DECLARAÇÃO 251.121
INDÍGENA 145.493
AMARELA 125.469
TOTAL 34.092.224
Fonte: Elaborado por Jailson Alves dos Santos a partir dos dados do
Censo Demográfico de 2000.

QUADRO 3
População de Jovens entre 15 e 24 anos segundo a raça
RAÇA POPULAÇÃO
BRANCA 17.359.231
NEGRA 16.210.910
S/DECLARAÇÃO 251.121
INDÍGENA 145.493
AMARELA 125.469
TOTAL 34.092.224
Fonte: Elaborado por Jailson Alves dos Santos a partir dos dados do
Censo Demográfico de 2000.

Essas formas de classificação não são inocentes. Historicamente, no Brasil há um


trabalho ideológico no sentido do embranquecimento da população. Assim é que 41% dos
jovens entre 15 a 24 anos são considerados oficialmente pardos e, portanto, não-negros. Esta

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leitura dissimula e reforça o preconceito racial. Tal reforço advém da forma de a população
negra subjetivar ou representar a si mesma como dominantemente parda. Trata-se do efeito do
que Bourdieu, em diferentes trabalhos (1975 e 1975), denominou violência simbólica. Isso,
contudo, não apaga o preconceito racial. O preconceito com os negros e jovens negros, do
ponto de vista da criminalidade, está mais do que caracterizado na sociedade brasileira.
Embora esteja havendo uma maior conscientização, fruto da organização crescente do
movimento negro, as instituições jurídicas e a própria imprensa exigem apuração dos fatos
quando os mesmos acontecem com negros famosos.
No presente momento (fevereiro de 2004), dois fatos elucidam o que acabamos de
assinalar. Primeiramente o assassinato, por policiais, de um jovem dentista negro (Flávio
Ferreira Sant’Ana), em São Paulo, por ter sido suspeito de praticar um assalto. E o segundo
fato se refere ao jovem estudante negro Luciano Ferreira da Silva, filho de criação do casal
Caetano Veloso e Paula Lavigne, expulso do shopping Fashion Mall, no Rio de Janeiro, por
um policial militar que fazia um serviço particular como segurança dos filhos da família de
um autor de novelas. Note-se que o jovem Luciano estava junto com o filho (branco) da
família Veloso.
Estes dois fatos, por atingirem jovens negros que alcançaram uma ascensão social,
ganham repercussão ampla na imprensa e, até mesmo, um sentimento moralista mais
generalizado. Porém, como analisa o senador da República Paulo Paim, permanece forte na
sociedade brasileira aquilo que Abdias Nascimento denunciava em 1949 – o delito de ser
negro:
Basta um negro se detido por qualquer coisa insignificante – assim como não ter uma carteira de
identidade – para ser logo tratado como se já fosse criminoso. Dir-se-ia que a polícia considera o
homem de cor um delinqüente nato, e está criando o delito de ser negro (apud, Paulo Paim, O
Globo, 24.02.2004, p.7).

A criminalização preconceituosa do negro, como mostra Paulo Paim, não está apenas
no aparato policial. Está presente nas instituições da justiça e em outras instituições e no
imaginário social construído em nosso processo histórico.12
A repercussão diferenciada destes fatos reforça a apreensão de que, no Brasil, há uma
forte relação e superposição entre classe social e o fato de ser negro. Neste sentido, as
políticas de discriminação positiva para os negros são, igualmente, políticas para o grupo
social ou fração da classe trabalhadora mais pobre e excluída. Assim, as estatísticas dos
12
Para uma compreensão mais ampla desta questão ver a análise de Mendes Lima (2003) sobre "a experiência
cotidiana de jovens pertencentes aos bairros periféricos, resultante da institucionalização do tráfico e do aparato
repressor". Ver, também, Ribeiro & Lourenço (2003).
8
9

presídios, dos internos da FEBEM, dos jovens de rua ou que vivem na rua, dos jovens mortos
nos "confrontos" com a polícia, ou, como veremos a seguir, a inserção precoce nos trabalhos
mais desgastantes e mal remunerados, revelam uma ampla dominância de negros.
As estatísticas relativas à inserção, tanto de crianças quanto de jovens, no mercado de
trabalho revelam, invariavelmente, uma desvantagem dos negros. A inserção precoce no
mercado atinge mais as crianças negras. De acordo com o PNAD de 1999, do total de crianças
trabalhando na faixa de 5 a 9 anos, 61,7% eram afro-descendentes. Esta porcentagem se
mantém inalterada na faixa dos 10 aos 14 anos (61,3%). Na faixa etária dos 15 aos 17, quando
se define a idade legal para estágios e ingresso no mercado formal de trabalho, a proporção
cai para 53% de negros. Desta faixa em diante, nota-se uma inversão. A oportunidade de
inserção fica favorável aos jovens e adultos brancos, reforçando a discriminação, agora de
igualdade ao acesso ao trabalho na idade apropriada. Assim, na faixa dos 18 a 24 anos, 59%
dos ocupados são brancos. Nas faixas de 25 a 36 e 37 a 50 anos, a porcentagem de brancos
empregados é, respectivamente, de 55% e 57,4%. As pesquisas que avaliam a qualidade das
ocupações e o nível de remuneração mostram claras desvantagens para os negros.13
Um último aspecto desta caracterização geral relaciona-se à escolaridade. Trata-se de
faixas etárias que correspondem ao tempo de freqüência dos ensinos médio e superior. Pelos
dados do quadro 4 nos damos conta de como o Brasil é um país "gigante com pés de barro”,
como o caracterizava o sociólogo Florestan Fernandes ao analisar a situação educacional.
Trata-se de um limite estrutural que nos dificulta e nos impede em grande parte, como
veremos no próximo item, de ingressar no padrão de inovação tecnológica de base digital-
molecular, em que, como sinaliza Arrighi (1996), predominam as atividades cerebrais em
relação às neuromusculares.
Os dados apresentados são eloqüentes. Tomados os jovens entre 15 e 24 anos, na
época do senso apenas 46,8% estavam na escola, distribuindo-se da alfabetização à pós-
graduação. A maioria, 53%, neste intervalo já está fora da escola. Em termos absolutos,
15.971.851 jovens estão em algum nível de escolaridade e 18.119.273 fora do sistema escolar
regular. Fica patente a distorção idade/série e todas as suas implicações psicossociais e
pedagógicas. Na faixa entre 15 e 24 anos, encontramos quase a metade dos jovens, 48,2%,
sendo 6,2% na alfabetização e 42,6% no ensino fundamental.

13
Neste artigo não estamos trabalhando com a questão de gênero. Ressalte-se, todavia, que, no caso da mulher
negra, em relação ao trabalho e a remuneração da mesma, há uma dupla discriminação: em relação ao branco
( homem e mulher) e ao homem negro.
9
10

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística de 2001, indicam que existem 10.308.707 jovens na faixa etária de 15
a 17 anos, considerada legalmente regular para se cursar o ensino médio. O Censo escolar do
mesmo ano, porém, demonstra que, desses jovens, somente 37% (cerca de 4 milhões) estavam
matriculados no ensino médio, enquanto um milhão ainda cursavam o ensino fundamental ou
freqüentavam cursos na modalidade de educação de jovens e adultos ou profissional. Nota-se
que mais da metade dos jovens desta faixa etária, que deveriam estar cursando o ensino
médio, nem sequer estão na escola.

QUADRO 4
Jovens que freqüentam a escola por nível de ensino e grupo de idade
GRUPO DE IDADE
NÍVEL DE ENSINO 15 a 19 Anos 20 a 24 Anos 15 a 24 Anos
Alfabetização 49.750 50.026 99.776
Ensino Fundamental 5.703.500 1.101.984 6.805.484
Ensino Médio 5.465.331 1.477.757 6.943.088
Pré-Vestibular 209.863 154.325 364.188
Superior Graduação 467.953 1.274.648 1.742.601
Mestrado/Doutorado - 16.678 16.678
TOTAL 11.896.397 4.075.418 15.971.815
Fonte: Elaborado por Jailson Alves dos Santos a partir dos dados do
Censo Demográfico de 2000.

No campo da escolarização, a desigualdade entre jovens brancos e negros reitera o


que analisamos em relação a outros indicadores. Pelos dados do PNAD em 1999,
aproximadamente 46% dos jovens brancos entre 15-24 anos não tinham completado o ensino
fundamental, contra 66,5% dos afro-descendentes. Outros dados apresentados por Carvalho e
Segatto (2002) indicam que 84% dos jovens negros entre 18-23 anos não haviam concluído o
ensino médio. A proporção de jovens brancos que não completou o ensino médio é de 63%.
De acordo com estes autores, apenas 2% dos jovens negros tinham acesso à universidade.
O acesso à escola não garante, por si, uma educação de boa qualidade. Três aspectos
corroboram para penalizar os jovens da classe trabalhadora em relação à escola pública. Um
primeiro aspecto diz respeito ao dualismo explícito formalmente ou pelo tipo de escola que se
oferece e que se perpetua ao longo de nossa história. Uma escola de acordo com a classe

10
11

social (Frigotto, 1977, 1987 e Nosella, 1993 e 2001).14 O segundo aspecto refere-se ao
desmonte da escola básica, tratando-a não como direito, mas como filantropia e mediante
campanhas de "amigos e padrinhos da escola" ou "adoção e voluntariado". O ensino médio
público é dominantemente noturno ou supletivo. Finalmente, nos anos 1990, a desqualificação
da escola básica pública se efetiva mediante a adoção unilateral do ideário da pedagogia do
mercado: pedagogia das competências e da empregabilidade. Trata-se de noções ideológicas
que compõem o que Bourdieu & Wacquant (2001) caracterizam como uma nova vulgata ou
uma espécie de nova língua que reatualiza a teoria ou ideologia do capital humano dos anos
1970 (Frigotto, 1983).
Este último aspecto é responsável por uma falsificação perversa que cunhou a
expressão "inempregáveis" para referir-se aos trabalhadores sem escolaridade ou com pouca
escolaridade. A perversidade situa-se no fato de culpar os que são vítimas de uma exclusão de
classe por sua situação de vítimas. Como mostra Beluzzo (2001:2):

Não adianta ter gente mais "empregável" se a economia não cria novos empregos. Ao contrário do
que pretendem os mandamentos e as lengalengas do pensamento único, a maioria não é pobre
porque não tem boa educação, mas, na realidade, não consegue boa educação porque é pobre
(grifos meus).

Da mesma forma, o fato de os jovens negros terem piores empregos, pior remuneração
e pior escolaridade não pode ser atribuído à sua condição de negros, mas porque, não bastasse
o longo processo de escravidão, de quase quatrocentos anos no Brasil, na sua "libertação"
tiveram como prêmio da alforria os trabalhos mais desqualificados. Tem ampla penetração no
senso comum o sofisma ou a estratégia de deduzir, de alguns exemplos bem-sucedidos de
pobres ou de negros que ascenderam socialmente, a tese de que, se houver esforço e vontade,
todos poderão conseguir.

14
Sob este aspecto, a classe dominante tem naturalizado a idéia de que as crianças e jovens filhos da classe
trabalhadora necessitam de uma escolaridade mais rápida e profissionalizante no sentido restrito de treinamento.
No plano da legislação, o período da ditadura militar produziu a Lei 5692/71, em que explicitamente defendia
uma escola aligeirada de preparação para o trabalho para as crianças e jovens da classe trabalhadora. No
contexto dos anos 1990, sob a égide da ideologia neoliberal e da ditadura do mercado, apagaram-se as conquistas
dos anos 1980 firmadas na Constituição de 1988 e impôs-se a nova lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei
9394/96), mediante a qual se estruturou uma nova dualidade: um sistema regular de ensino e, outro, de educação
profissional e tecnológico. Este ideário é ideologicamente eficaz, pois quando se consultar população,
especialmente a grande massa de pobres, sobre que tipo de escolaridade reivindicam para seus filhos, a resposta
dominante não é a escola básica, já que é um direito, mas escolas técnicas profissionalizante. Mesmo num
estado como o Rio Grande do Sul, com uma tradição educacional acima da média nacional, durante o segundo
ano de mandato do governo popular do Partido dos Trabalhadores, a prioridade solicitada para todo o Estado a
ampliação da educação técnico-profissional.
11
12

Mas há, também, o racismo que busca fundamentar-se no cientificismo. Este é o caso
da obra denominada A curva do sino, em que pesquisadores americanos buscam, em quase
mil páginas, nos convencer de que os negros têm tendência natural e podem ser bem-
sucedidos em atividades como música, esporte, dança, canto etc. Em contrapartida, os negros
não teriam tendência natural para gerir empresas, governar cidades, estados ou a nação etc.
Usam candidamente como argumento um volume assustador de dados estatísticos mediante os
quais constatam que, ao longo da história dos Estados Unidos, a maioria dos negros que
obtiveram ascensão social o fizeram pela música, dança, canto, esporte, e não nos cargos de
executivo ou de gestão. (Herrnstein, R. J.& Murray, C., 1996). Trata-se de um viés de análise
em que se tomam os dados empíricos como a própria realidade que se quer compreender.
Ignora-se o fundamental, que é de buscar nas relações socioculturais e políticas as mediações
que permitem explicar de fato por que o caminho de ascensão dos negros é aquele e não
outro. Por essa via, certamente não se chegaria à conclusão de “tendência natural dos
negros”.15
Cabe realçar, então, que a questão central não é de caráter individual, nem
primeiramente de gênero, cor ou de raça, mas de classe social. Por isso, a inserção precoce no
emprego formal ou "trabalho informal", a natureza e as condições de trabalho e a
remuneração ou o acesso ou não à escola, a qualidade da mesma e o tempo de escolaridade
estão ligados à origem social dos jovens.

2 -Trabalho precoce e educação precária dos jovens:


Para além do conjuntural
As diferentes possibilidades e o alcance das políticas públicas, para fazer face aos
problemas acima discutidos em relação aos jovens em sua relação com o trabalho e a
educação, estão inscritas na compreensão da especificidade da fase atual do capitalismo e das
particularidades históricas do tipo de sociedade que construímos no Brasil. Isso nos permite,
de imediato, tanto a não-naturalização do trabalho precoce e da educação dual e da mutilação
de direitos quanto a não-adoção de uma perspectiva moralista em face destes problemas.
Também nos indica que a crença de que o problema é conjuntural pode conduzir a políticas

15
O tipo de análise dos pesquisadores americanos carrega um viés de classe. Aplica-se a eles o que Marx
criticava nos economistas fundadores do pensamento econômico funcional: "Presos às relações capitalistas,
vêem sem dúvida como se produz dentro da relação capitalista, mas não como se produz essa própria relação."
12
13

públicas focalizadas e de natureza filantrópica ou de "administração e controle da pobreza",


sem atentar para políticas que atacam as estruturas produtoras da desigualdade.
Neste item vamos destacar primeiramente as contradições entre a possibilidade de
ampliar o tempo livre e a escolaridade e o trabalho precoce dos jovens de classe trabalhadora
no capitalismo de ontem e de hoje. Em seguida, nos deteremos na particularidade, neste
contexto, do capitalismo construído no Brasil, a reiteração de sua estrutura dual como forma
de inserção subordinada e associada ao capitalismo global. E, finalmente, discutiremos o que
nos aponta o presente em termos de necessidade e as possibilidades de resgatar e dilatar o
direito de os jovens terem tempo de "cuidado com sua vida" e um futuro sem mutilações.
O tema do trabalho precoce e da educação dos jovens é fecundo para elucidar a
contradição inerente ao sistema capitalista, entre a igualdade formal e a necessidade da
desigualdade real entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores que vendem sua
força de trabalho.16 Veremos como essa contradição se explicitava na origem do capitalismo
e como ese agrava e, paradoxalmente, se dissimula no presente.
Nem mesmo Karl Marx, referência de crítica ao caráter anti-social e anti-humano do
capitalismo, deixa de reconhecer o caráter civilizador do mesmo enquanto modo de produção
social que necessita, para constituir-se nas relações de trabalho e na afirmação de sua
ideologia, romper com o regime de escravidão e com o poder absolutista. Mas o capitalismo
não supera a sociedade de classes, pelo contrário, a mantém e, ao formar e legalmente
proclamar a igualdade, dissimula a desigualdade. A inserção de crianças e de jovens no
mundo do trabalho, sua exploração e uma escola diferenciada aparecem desde o início.
Uma leitura histórica da origem da escola enquanto instituição central do projeto
societário da burguesia nascente nos mostra que a mesma era concebida, por excelência, como
uma instituição social e cultural, de produção do conhecimento e valores e espaço para o
desenvolvimento lúdico, estético e artístico para as crianças e jovens. A origem etimológica
da palavra escola vem do grego, significa lugar de ócio. Um espaço, portanto, onde as
crianças e jovens vivem um longo tempo incorporando valores, conhecimentos e
amadurecendo para a vida futura. Mas o mesmo retrospecto histórico nos evidencia que esta
não era e nunca foi a escola para todos. Como mostram inúmeros estudos, 17 a escola para a

16
Para uma introdução clara, didática e densa sobre a origem e a natureza do capitalismo e sua fase atual ver os
textos de Elle Meiksins Wood "A origem do capitalismo" (2001) e "O que é (anti)capitalismo" (2003).
17
Ver, a esse respeito, os trabalhos clássicos de Baudelot, C. e Establet, R. (1971) e de Snyders, G. (1981).
13
14

classe trabalhadora sempre foi outra – uma escola para a disciplina do trabalho precoce e
precário.
A dissimulação desta desigualdade, no contexto do capitalismo nascente, era
problemática, porquanto os formuladores da teoria ou ideologia liberal incorporavam
concepções da velha sociedade. Um exemplo emblemático pode ser encontrado na obra
Elementos de ideologia, de Desttut de Tracy:

Os homens de classe operária têm desde cedo necessidade do trabalho de seus filhos. Estas
crianças precisam adquirir desde cedo o conhecimento e, sobretudo, o hábito e a tradição do
trabalho penoso a que se destinam. Não podem, portanto, perder tempo na escola. (...) Os
filhos de classe erudita, ao contrário, podem dedicar-se a estudar por muito tempo; têm muita
coisa a aprender para alcançar o que se espera deles no futuro. Necessitam de um certo tipo
de conhecimentos que só pode apreender quando o espírito amadurece e atinge determinado
grau de desenvolvimento. Esses são fatos que não dependem de qualquer vontade humana;
decorrem necessariamente da própria natureza dos homens e da sociedade; ninguém está em
condições de poder mudá-los. Portanto, trata-se de dados invariáveis dos quais devemos
partir (Tracy, 1917).

Passados mais de dois séculos de modo de produção capitalista, a contradição é mais


radical. De fato, o fim do século XX e início do século XXI explicitam um movimento
societário do capitalismo "global" realmente existente dentro de contradições sem
precedentes. Há um avanço exponencial da capacidade de produção de mercadorias e
serviços,18 mediados por uma nova base técnica, de natureza digital-molecular, que dilata a
produtividade do trabalho e poderia ampliar o tempo realmente livre e, portanto de escolha.
Entretanto, há uma apropriação privada cada vez mais concentrada, entre regiões e países e
internamente a cada país. Uma realidade bem diferente da que postula o credo ideológico da
globalização. A construção do mercado mundial é a forma de o capital seguir sua natureza
intrínseca de acumulação, concentração e centralização, excluindo competidores e usurpando
direitos.
O contraditório, em nível sistêmico, é que, para manter sua lógica de acumulação, o
capitalismo de hoje necessita destruir um a um os direitos conquistados pela classe
trabalhadora ao longo do século XX. Conquistas que tiveram como base políticas públicas
que regularam o capital e garantiram, pelo menos em alguns países, além dos direitos civis, os
direitos sociais de educação, saúde, moradia, transporte, previdência social e aposentadoria
digna. A ideologia neoliberal restabelece um retorno à fé absoluta nos mecanismos de

18
Esta realidade mostra o caráter ideológico e mistificador das teses da "sociedade do conhecimento" e da
sociedade pós-industrial e pós-classista. Como nos mostra o historiador Eric Hobsbawm (1999), nunca o mundo
foi tão industrial como atualmente. Apenas se industria de modo diferente, sendo a mão e os sentidos humanos
mediados pela ciência e tecnologia.
14
15

mercado e, portanto, ao capitalismo desregulado. Disso resulta o que Mészáros (2002) indica
como o esgotamento da capacidade civilizatória do capital . Vale dizer, na análise do autor,
um capitalismo que se funda cada vez mais no desperdício, obsolescência planejada,
ampliação do complexo militar e destruição das bases da vida pela degradação do meio
ambiente, desemprego em massa e produção de “trabalho supérfluo”.
No aspecto específico do trabalho e da educação dos jovens da classe trabalhadora,
a contradição se radicaliza tendo em vista que a maior produtividade do trabalho não só não
liberou mais tempo livre, mas, pelo contrário, no capitalismo central e periférico a pobreza e a
"exclusão" ou inclusão precarizada jovializaram-se. Ou seja, cresceu o número de jovens que
participam “de trabalhos” ou atividades dos mais diferentes tipos, como forma de ajudarem
seus pais a compor a renda familiar. E isto não é uma escolha, mas imposição de um
capitalismo que rompe com os elos contratuais coletivos e os reduz a contratos individuais e
particulares e instaura o que Boaventura Santos (1999) denomina de fascismo da
insegurança.
19
É neste contexto que a pedagogia das competências e da empregabilidade expressa,
no plano pedagógico e cultural, a ideologia do capitalismo flexível, nova forma de intensificar
a exploração do trabalho e de "corrosão do caráter", num contexto cujo "lema é: Não há longo
prazo" (Sennett, 1999). Uma ideologia que aumenta sua eficácia na medida em que efetiva a
interiorização ou subjetivação de que o problema depende de cada um e não da estrutura
social, das relações de poder. Trata-se de adquirir o "pacote" de competências que o mercado
reconhece como adequadas ao "novo cidadão produtivo". Por isso que o credo ideológico
reitera que “a empregabilidade é como a segurança agora se chama".
Uma pedagogia adequada ao projeto social da globalização e que objetiva, de acordo
com Carlos Paris (2002:240), uma “domesticação das massas”, restringindo a
responsabilidade do cidadão "ao trabalho bem-feito". Um cidadão "que paga seus impostos

19
É muito difícil apresentar uma noção ideológica de forma tão explícita como o faz Moraes (1998) ao definir
o significado de empregabilidade. "A empregabilidade é um conceito mais rico do que a simples busca ou
mesmo a certeza de emprego. Ela é o conjunto de competências que você comprovadamente possui ou pode
desenvolver – dentro ou fora da empresa. É a condição de se sentir vivo, capaz, produtivo. Ela diz respeito a
você como indivíduo e não mais à situação, boa ou ruim, da empresa – ou do país. É o oposto do antigo sonho da
relação vitalícia com a empresa. Hoje a única relação vitalícia deve ser com o conteúdo do que você sabe e pode
fazer. O melhor que uma empresa pode propor é o seguinte: vamos fazer este trabalho juntos e que ele seja bom
para os dois enquanto dure; o rompimento pode se dar por motivos alheios à nossa vontade. [empregabilidade] é
como a segurança agora se chama."

15
16

(...) e que careça de visões globais e de sentido crítico" e que se convença de que a atividade
política “não é ofício de todos os cidadãos, mas dos especialistas”.
Queremos insistir que os aspectos que abordamos acima inscrevem a questão do
trabalho precoce e da educação dual e precária dos jovens da classe trabalhadora no núcleo
estrutural do capitalismo e que as contradições que daí advêm são cada vez mais profundas e
destrutivas.
Os traços contraditórios e o efeito mutilador e destrutivo do capitalismo se
potencializam quando se trata de países periféricos ao capitalismo central e cujas elites são a
ele associadas e subordinadas. Se hoje, como analisa Hobsbawm (1999), não é fácil prever
quais sãos as chances de futuro digno no século XXI para as crianças e jovens dos países
centrais, mais dramático é o cenário para os países do capitalismo periférico.
O Brasil constitui-se num exemplo emblemático de sociedade capitalista das mais
desiguais do mundo, onde a escravidão durou aproximadamente quatrocentos anos, dos
quinhentos após o descobrimento. Ao estigma escravocrata que perdura como traço cultural
da elite brasileira sobrepõem-se relações capitalistas predatórias que se expressam no mais
elevado grau exploração do trabalho e de concentração de renda do mundo. O salário mínimo
no Brasil hoje, não atinge 83 dólares, sendo, portanto 12 a 14 vezes menor que um salário
mínimo dos países do Mercado Comum Europeu. Como mostram os estudos de Pochmann
(2004). Os empregos que se criam no Brasil são, na maioria, os mais desqualificados na
divisão internacional do trabalho e com baixa remuneração. Como mostra este pesquisador,
foram criados no Brasil, nos últimos quatro anos, 4,6 milhões de empregos formais, todos
abaixo de três salários mínimos. Isto equivale a cerca de 240 dólares. Por outro lado, de 1998
a 2001, a renda dos trabalhadores caiu, em média, 10,8%. Contrariando a ideologia do capital
humano e da empregabilidade e mostrando que o grau de exploração dos trabalhadores se
inscreve em relações de poder e de força, os dados mostram que quem mais perdeu renda
neste período (16%) foram os mais escolarizados (Pochmann & Borges, 2002). As
conseqüências, em termos de qualidade de vida e de subtração de direitos dos trabalhadores,
são perversas. Uma destas conseqüências é o trabalho precoce de crianças e jovens e sua
superexploração.
No Brasil, a aprovação de uma legislação específica de proteção contra a exploração
das crianças e jovens é muito recente. Mesmo com os avanços da Constituição de 1988 e a
aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, não há avanços significativos na prática.

16
17

O Brasil, por exemplo, ainda não assinou a normatização internacional da OIT de 1973
(Convenção 138), na qual se estabelece a idade mínima para a admissão no emprego e a
obrigatoriedade escolar.
Para elucidar o tipo de particularidade de sociedade capitalista, que foi se estruturando
no Brasil ao longo do século XX, e a situação de impasse estrutural em que nos encontramos,
nos valemos da análise de Luiz Fiori e Francisco de Oliveira, cujo pensamento atualiza as
obras dos clássicos do pensamento econômico e social brasileiro.20
Numa breve síntese, José Luiz Fiori (2002) nos indica que no Brasil três projetos
societários “conviveram e lutaram entre si durante todo o século XX”. O primeiro projeto
estrutura-se dentro das idéias do liberalismo econômico e centra-se na política monetarista
ortodoxa e na defesa intransigente do equilíbrio fiscal e do padrão-ouro. Este foi o projeto
dominante ao longo de todo o século XX e “o berço da estratégia econômica do governo
Fernando Henrique Cardoso”. Um projeto em que as elites brasileiras se associam, de forma
subordinada, aos centros hegemônicos do capital.
O segundo projeto, ao qual o anterior sempre se contrapôs, é o “nacional-
desenvolvimentismo” ou “desenvolvimentismo conservador”, presente na Constituinte de
1891 e nos anos 1930, com o governo Vargas. Trata-se de um projeto que nas décadas de
1930 e 40 incorporou alguns anseios da classe trabalhadora, gerou uma legislação trabalhista,
ampliou o acesso à escola pública sem, contudo, atacar as estruturas econômico-sociais e a
cultura política que mantém uma grande concentração da propriedade e da renda e a
manutenção de uma enorme desigualdade social.
Por fim, o terceiro projeto, ao qual o liberalismo econômico ortodoxo se opôs mais
duramente, é do “desenvolvimento nacional-popular".21 Esta terceira alternativa “nunca
ocupou o poder estatal, nem comandou a política econômica de nenhum governo
republicano, mas teve enorme presença no campo da luta ideológico-cultural e das
20
Referimo-nos aqui, particularmente, às obras de Caio Prado Junior, Celso Furtado e Florestan Fernandes.
21
O conceito de nacional, por paradoxal que pareça, contrapõe-se ao de nacionalismo. Este último tem uma
marca histórica conservadora e de caráter autoritário. As experiências do nazismo e do fascismo são, sem
dúvida, as mais emblemáticas. No caso brasileiro, tanto a ditadura Vargas como setores das forças que
protagonizaram a ditadura civil-militar de 1964 apoiavam-se em teses do nacional-desenvolvimentismo. O
nacional refere-se a um povo, com sua história, cultura, língua e valores que constituem a base de um
relacionamento autônomo e soberano com outras nações e povos. As forças a que nos referimos no início deste
texto, que se situam neste projeto, também são amplamente heterogêneas. O que as une, todavia, é a pauta
política, que inclui reformas de base que permitam uma efetiva distribuição de renda e diminuição da
desigualdade. A reforma agrária, uma nova legislação tributária que não puna os mais pobres e os assalariados
e um novo relacionamento internacional são pontos básicos da pauta destas forças. Para alguns setores dessas
forças trata-se de lutar para ir além das relações sociais capitalistas mediante um projeto socialista, pois a
efetiva igualdade de condições entre os seres humanos é inviável dentro do capitalismo.
17
18

mobilizações democráticas” (id. ibid., p. 3). Representado por forças políticas vinculadas ao
campo da esquerda, este projeto centra-se na luta pelas reformas de base: a reforma agrária e
a taxação das grandes fortunas, com o intuito de acabar com o latifúndio e a altíssima
concentração da propriedade da terra; a reforma tributária, com o objetivo de inverter a lógica
regressiva dos impostos, em que os assalariados e os mais pobres pagam mais, corrigindo
assim a enorme desigualdade de renda; a reforma social, estatuindo uma esfera pública de
garantia dos direitos sociais e subjetivos. No processo constituinte, nos anos 1980, estas
forças tiveram um peso significativo e uma influência importante no capítulo sobre a ordem
social e econômica.

Na última década do século XX, sob a ideologia neoliberal, houve um ataque frontal
às teses do projeto nacional-desenvolvimentista e nacional-popular de massa. Efetivou-se a
Reforma do Estado e a Reestruturação Produtiva sob o ideário da desregulamentação dos
direitos sociais e da privatização e do desmonte do espaço público. Como indicam Petras &
Vetmeyer (2001), na década de 1990, particularmente nos oito anos de governo de Fernando
Henrique Cardoso, radicalizaram-se as teses do liberalismo econômico conservador e
tornou-se o Brasil seguro para o capital. A contrapartida disso foi o aumento da insegurança
para a grande massa da população brasileira e um processo perverso de naturalização da
exclusão e da violência que penetra no plano institucional e no tecido social e cultural. Como
sintetiza Veríssimo (1996): “O paraíso que o neoliberalismo triunfante oferece ao capitalismo
no mundo todo não é o da exclusão sem represália, é o da exclusão sem culpa."

Numa mesma obra – Crítica à razão dualista, republicada trinta anos depois com um
texto de atualização –“O ornitorrinco” –, Francisco de Oliveira (2003) nos traz o fio condutor
para entender as mediações do tecido estrutural de nosso subdesenvolvimento e a associação
subordinada aos centros hegemônicos do capitalismo e os impasses a que fomos sendo
conduzidos no presente. Contrapondo-se às teses do pensamento dominante, pelo menos dos
últimos cinqüenta anos, de que nosso subdesenvolvimento se deve a uma realidade dual de
nossa estrutura social e econômica – uma moderna e outra atrasada –, Francisco de Oliveira
sustenta que, pelo contrário, a dualidade é a opção da classe dominante de constituir nossa
sociedade. O atraso da época na agricultura, a persistência da economia de sobrevivência nas
cidades, uma ampliação ou inchaço do setor terciário com um baixo custo da mão-de-obra
foram funcionais à elevada acumulação capitalista, ao patrimonialismo e à concentração de
propriedade e de renda.
18
19

Para Roberto Schwarz, a Crítica à razão dualista e o texto “O ornitorrinco”


"representam, respectivamente, momentos de intervenção e de constatação sardônica. Num, a
inteligência procura clarificar os termos da luta contra o subdesenvolvimento; no outro, ela
reconhece o monstrengo social em que, até segunda ordem, nos transformamos" (Schwarz,
2003:12).
A metáfora do ornitorrinco nos traz, então, uma particularidade estrutural de nossa
formação econômica, social, política e cultural, em que a "exceção" se constitui em regra,
como forma de manter o privilégio de minorias e inviabilizando ou nos distanciando da
possibilidade de um salto que permita viabilizar as reformas de base propostas pelo projeto de
desenvolvimento nacional-popular e de massa:

O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvido e aproveitar


as brechas que a Segunda Revolução Industrial propiciava; não há possibilidade de avançar,
no sentido da acumulação digital-molecular: as bases internas da acumulação são
insuficientes, estão aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as
“acumulações primitivas”, tais como as privatizações propiciaram: mas agora, com o domínio
do capital financeiro, elas são apenas transferências de patrimônio, não são propriamente
falando de “acumulação”. O ornitorrinco está condenado a submeter tudo à voragem da
financeirização, uma espécie de “buraco negro”: agora será a previdência social, mas isso o
privará exatamente de distribuir renda e criar um novo mercado que sentaria as bases para a
acumulação digital-molecular. O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma
sociedade desigualitária sem remissão” (Oliveira, 2003:150).

A ruptura com esta herança histórica pressupõe um percurso diverso do percorrido até
aqui. A tendência da mundialização do capital e a nova base científico-técnica (digital-
molecular) imprimem uma grande velocidade à competição e a obsolescência dos
conhecimentos, fazendo com que, como mostra Oliveira, nossa tradição histórica de
dependência e cópia se torne cada vez mais inútil. O desafio do salto implica enorme esforço
de investimento em educação, ciência e tecnologia e na infra-estrutura. E isso demanda um
volume de recursos que, em face do pagamento exorbitante de juros da dívida interna e
externa, além da tradição regressiva dos impostos, não permite. Trata-se de um impasse que
não é conjuntural, mas estrutural em nossa história.

A composição de forças que governa o Estado brasileiro a partir de 2003 incorpora


representantes dos três projetos. Isso, porém, não é novo na política brasileira. O que é novo,
sem dúvida, é que pela primeira vez em nossa história ganham o poder do Estado nacional
forças políticas majoritárias cuja história e biografias estão vinculadas ao embate teórico e à
luta ideológica por um projeto de desenvolvimento nacional-popular. O partido que elegeu o
19
20

presidente e é majoritário fez da experiência do orçamento participativo da Prefeitura de


Porto Alegre e de sua ampliação para outras prefeituras e estados algo inovador em termos de
democracia participativa. A expectativa que se criou, interna e internacionalmente, foi de que
seriam atacadas as questões estruturais.

As razões podem ser muitas e de diversas ordens. Não há espaço aqui para abordá-las.
O que se pode afirmar, todavia, é que no primeiro ano de governo, no fundamental da política
macroeconômica, tem-se a continuidade do ideário do liberalismo calcado nas teses do
monetarismo e ajuste fiscal. Não só a reforma da previdência, que é emblemática, mas o
superávit primário de mais de 4,25% do PIB são fatos políticos que afirmam esta continuidade
duplamente agravada. Primeiro, porque ampliam negativamente aquelas reformas; segundo,
por serem protagonizados por forças que sempre defenderam um sentido contrário.

As conseqüências, no plano econômico-social, desta continuidade têm sua síntese nos


indicadores que acabam de ser divulgados em relação à queda do PIB (Produto Interno Bruto)
de 0,2 em 2003 e o desemprego formal, com taxa de 11,7% pelos critérios do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e de aproximadamente 19%, nas grandes
capitais, pelos critérios do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE). Pelos cálculos do economista Reinaldo Gonçalves (2004), esta
queda do PIB representa o aumento de 1,5 milhão de empregos formais. Isto agrava a
tendência da ampliação do trabalho informal, substituição do emprego por ocupações
precárias e temporárias, e o desmantelamento da relação salarial. Com efeito, como mostram
os estudos de Márcio Pochmann (2004), "o emprego vem se tornando um bem cada vez
mais escasso e, quando encontrado, apresenta-se, em geral, com baixo salário e qualidade
precária".

A direção que Pochmann sinaliza para a problemática de que nos ocupamos neste
texto é fecunda, tanto pela desmistificação de teses usuais no campo da direita e da esquerda
quanto pelas proposições em termos de política pública nos planos estrutural e conjuntural.
Esta direção se fundamenta numa dupla base: como pesquisador e estudioso do tema do
desemprego, com outros colegas, no Instituto de Economia da Unicamp, e como secretário
municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo. Em artigo que traz

20
21

uma síntese de seus estudos, ele questiona teses da elite da direita e da esquerda que tratam o
problema do emprego de forma simplificada:

"A escassez de emprego tem sido vista — do espectro político de direita, que imputa ao
enrijecimento do mercado de trabalho, ao de esquerda, que justifica como decorrência do avanço
tecnológico — como algo a ser resolvido num passe de mágica: basta fazer isso ou aquilo (Rio de
Janeiro, O Globo, 27.02.2004).

Nem a rigidez do mercado de trabalho nem a tecnologia em si podem ser tidas como
os determinantes fundamentais do desemprego, do desmanche da relação salarial e da
precarização do trabalho e do trabalho precoce. A democratização do avanço científico e
tecnológico mediante a socialização da produção e da riqueza e, por conseqüência, a
regulação do capital poderiam permitir redução da jornada de trabalho, a erradicação do
trabalho precoce de crianças e jovens e a geração de empregos em setores e atividades que
talvez saldassem a dívida dos direitos de saúde, educação, transporte, moradia, cultura e lazer
com milhões de brasileiros.
A explicação tem que ser buscada como o resultado de determinadas relações sociais e
relações de poder que variam dentro do próprio capitalismo. O Brasil, para Pochmann, é um
"país que teima em não fazer as três reformas clássicas do capitalismo contemporâneo:
agrária, tributária e social". A conclusão a que chega esse autor, e que partilhamos, é que

hoje as poucas brechas que se abrem no conturbado contexto internacional dificilmente serão
aproveitadas enquanto perdurar o aprisionamento da política macroeconômica às altas finanças. Se
a geração de trabalho for o desejo nacional, o interesse de 15 mil famílias envolvidas com o
circuito da financeirização precisa ser contrariado, como forma de implementação da
macroeconomia do emprego no Brasil.

3. Políticas públicas, juventude, trabalho e educação: Desafios e perspectivas

A análise que empreendemos nos itens acima nos revela que as políticas públicas
relacionadas ao trabalho e à educação dos jovens brasileiros da classe trabalhadora são, no
plano econômico-social e ético-político, tão imprescindíveis quanto complexas. Esse duplo
caráter resulta da particularidade da formação social brasileira, bem caracterizada pela
metáfora do ornitorrinco. O caráter imprescindível das políticas públicas deriva da

21
22

necessidade real de milhares de jovens ingressarem precocemente na luta pela sobrevivência


em face do "monstrengo social em que nos transformamos". A complexidade resulta dos
impasses estruturais da economia e da cultura da elite brasileira que se mantém sócia menor e
subordinada aos centros hegemônicos do capital e aposta na cópia, no atalho, e em
transformar a exceção na regra.
Esta leitura da realidade, para não cair em esquemas simplistas de soluções mágicas ou
do imobilismo por não poder atacar frontalmente as mudanças estruturais, implica, como
sinalizamos no início deste texto, que nos orientemos pelo campo da contradição, que deriva
do contexto histórico, e não pela antinomia, que é logicamente perfeita, mas na qual o
contexto desaparece por completo. Isto significa a necessidade de políticas públicas que
enfrentem o plano conjuntural, emergenciais, atentando para a particularidade e a diversidade
do grupos de jovens inseridos precocemente no mundo do trabalho e, ao mesmo tempo,
discernimento para mudanças ou reformas estruturais que produzam desigualdade social.
O pior cenário possível, neste momento, é da manutenção de políticas neoliberais, com
a crescente mercantilização dos direitos sociais, ruptura da proteção ao trabalho e a instalação
de um mercado auto-regulado. Neste primeiro ano, o atual governo não conseguiu sair deste
cenário. E nisso reside, sem dúvida, uma perplexidade. A esse respeito parece pertinente a
advertência de Perry Anderson (2002) sobre os riscos e as possibilidades do atual governo de
fazer mudanças fundamentais para o Brasil. Numa análise didática, este autor mostra que na
década de 1990 os governos eleitos por forças de centro-esquerda ou esquerda (Inglaterra,
Alemanha, França, Espanha, Portugal, Chile, Peru, entre outros) acabaram completando as
reformas da direita.
Um governo liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, advertia, não estaria
isento desta possibilidade, ainda que reconhecesse que sua origem e a base social que o
apoiava poderiam fazer a diferença, sendo uma alternativa singular para o mundo. Apontava,
porém, quatro condições, para eles imprescindíveis, para que isso pudesse ocorrer: não
confundir os votos ganhos com o poder que deteria; ter um projeto alternativo claro e um
grupo coeso na busca de sua concretização; vincular este projeto aos movimentos sociais
organizados e identificar o inimigo e não subestimá-lo.
Sem atacar as mudanças estruturais, resta a adoção de políticas focalizadas de inserção
social, atacando-se pelos efeitos (Castell, 1997). Tais medidas, contraditoriamente, são
emergencialmente necessárias, mas insuficientes. O risco é reeditar um traço de nossa cultura

22
23

política, o de transformar a exceção em regra e uma permanente descontinuidade. Trata-se,


então, de trabalhar com políticas claramente distributivas e políticas emancipatórias 22 e, ao
mesmo tempo, avançar na num projeto de desenvolvimento nacional e de massa que altere a
estrutura social produtora da desigualdade.
Uma política que atua na dilatação do fundo público, com amplo controle
democrático, mediante impostos progressivos, taxação das grandes fortunas e do capital
financeiro, pode permitir, no curto prazo, tirar 6 milhões de jovens e crianças do mercado de
trabalho – no qual foram inseridos precocemente e que se encontram fora da escola. Isto lhes
garantiria o direito da escolaridade básica (ensino fundamental e médio) no tempo adequado
e, num contexto de desemprego endêmico, abriria vagas para adultos.
Esta política tem, no plano contábil, um custo alternativo. Ou seja, para que estas
crianças e jovens possam sair do mercado de trabalho e freqüentar a escola (até 18 anos), o
Estado tem que garantir uma renda mínima que compense o que ganhavam. Se isso não for
feito, as reiteradas campanhas para punir pais que fazem seus filhos trabalharem
precocemente ou punir as empresas que os empregam não só são cínicas como, em vez de
garantir direitos à educação, cultura e lazer, agravariam sua situação, lançando-os na
mendicância, na prostituição ou tornando-os presas fáceis do tráfico e do crime.
Esta é uma política de caráter claramente distributivo, com a vantagem de garantir
direitos e, ao mesmo tempo, gerar vagas de emprego. Sob o prisma de criar bases efetivas
para ingressarmos na tecnologia de base digital-molecular, economicamente estamos diante
de um investimento fundamental. Os países que estão hoje inseridos nesta base científica
tomaram essa decisão política há quase um século. É fundamental, então, que se tenha claro
que, para o Brasil, cujo PIB oscila entre o oitavo e o 12º maior do mundo, a questão não é
econômica, mas política. Para viabilizar esta política distributiva, bastaria que, em vez de
alardear o chamado "custo Brasil", nos aproximássemos da proporção do PIB que compõe o
fundo público dos países que garantem o direito à infância e à juventude.
Com efeito, enquanto nosso fundo público é de pouco mais de 30% do PIB e a pressão
é de diminuição de impostos para aliviar o custo Brasil, os países europeus o têm aumentado
significativamente. O ponto crucial é definir onde incide o aumento de carga tributária. 23 Nos
22
Tomamos essa denominação das formulações e trabalhos de Márcio Pochmann, o qual a desenvolve na prática
como secretário de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da cidade de São Paulo. Esta experiência e
outras, também experimentadas por governos populares, como é o caso do governo Olívio Dutra no Rio Grande
do Sul, sinalizam uma direção que não cai na armadilha da focalização.
23
Vale ressaltar, como expusemos acima, que não estamos apontando um aumento linear de impostos, pois isto
agravaria o caráter profundamente regressivo dos mesmos. Ou seja, estaria na lógica de punir os assalariados e
23
24

últimos 15 anos, a França passou de um fundo público de 44% do PIB para 55%; a Itália, de
45% para 54%; a Suécia, de 51% para 61%. Em suma, nenhum país da comunidade européia
tem um fundo público menor que 45% de tudo que se produz naqueles países.
No plano das políticas públicas, no campo da educação, uma proposta de mudança de
legislação em relação à educação básica e profissional,24 feita pela Secretaria de Ensino Médio
e Tecnológico do Ministério da Educação (Semtec), sinaliza, na nossa análise, uma direção
importante que pode aliar a dimensão distributiva à emancipatória. Em primeiro lugar, deve-
se estender progressivamente, nos próximos anos, a obrigatoriedade do ensino médio para
todos os jovens que completam o ensino fundamental até a idade de 16 anos. Em segundo
lugar, considerando que na realidade brasileira um grande contingente de jovens necessitam
ingressar muito cedo no mercado de trabalho, mas sem escolaridade de nível médio só
conseguem, e nem sempre, ocupações de baixos salários, propõe-se a opção de um ensino
médio integrado. Busca-se, sem abrir mão de uma educação básica de nível médio de
qualidade, oferecer, ao mesmo tempo, a possibilidade de formação técnico-profissional. Para
isso fica a opção de aumentar a carga horária diária de aulas ou fazer o ensino médio em
quatro anos.
Não se trata, como poderia parecer, de regredir às proposições de profissionalização
compulsória do período da ditadura militar (lei 5692/71), nem de reiterar o caráter dual da
escola básica. Pelo contrário, o sentido e o significado da concepção que se quer afirmar é que
o ensino médio, enquanto educação básica, tem como eixo central a articulação entre ciência/
conhecimento, cultura e trabalho.24 Como tal, não pode estar definido por uma vinculação
imediata e pragmática, nem com o “mercado de trabalho” nem com o “treinamento” para o
vestibular.
Mas há um contingente de jovens que abandonaram a escola e estão só trabalhando ou
buscando emprego. Aqui também se podem aliar políticas distributivas, com apoio de bolsa
de estudo, para que estes jovens retornem à escolaridade formal e, em seguida, ou

os de menor renda. Recente estudo mostra que no Brasil nos últimos oito anos o imposto de renda triplicou para
assalariados de classe média, com uma distorção maior para as faixas de menores salários (Nascimento, (2004).
Trata-se, então, de fazer uma reforma tributária que taxe lucros e grandes fortunas de forma progressiva.
24
Ver a minuta de decreto substitutivo ao decreto 2208/97 e a exposição de motivos para as mudanças. MEC.
Brasília, DF. 2004.
24
Uma avaliação da proposta pedagógica que integra formação básica e técnico/profissional e seus resultados e a
estratégia de bolsas de estudo para manter, em período integral, jovens de classe popular que ingressam, desde
meados dos anos 1980, no ensino médio na Escola Politécnica Politécnica Joaquim Venâncio da Fundação
Oswaldo Cruz /RJ, pode fornecer elementos importantes para mostrar a consistência que pode ter o ensino
integrado.

24
25

concomitantemente, políticas públicas emancipatórias como a do primeiro emprego. Neste


particular, há várias experiências, desenvolvidas pela Central Única dos Trabalhadores
(CUT), em âmbito nacional, ou outros sindicatos a ela filiados que acumularam experiências
significativas nesta direção. Uma dessas experiências é o Programa Integração da CUT
nacional.25 Na mesma direção situa-se o Programa Integração, no Rio Grande do Sul, e o do
Sintel/RJ (Sindicato de Trabalhadores de Telecomunicações do Estado do Rio de Janeiro,
neste caso com uma experiência interessante de elevação de escolaridade em nível de ensino
médio. Há também algumas ONGs e instituições com longa experiência de articulação entre
elevação da escolaridade, formação técnico-profissional e inserção no trabalho. Como
exemplo indicativo destaco, no caso das ONGs, o trabalho da Capina (Cooperação de Apoio a
Projetos de Inspiração Alternativa), que articula um amplo conjunto de experiências em todo
o Brasil com estas características. No caso de instituições, o exemplo da Escola Sete de
Outubro, em Belo Horizonte, é emblemática.
Aqui há duas ordens de questões diretamente vinculadas à necessidade de o Estado
definir uma política pública vinculada ao Ministério da Educação. Em primeiro lugar, ter
informações qualificadas sobre as múltiplas experiências, distinguindo o que é sério dos
"escritórios" de venda de serviços educacionais. No que é específico à escolaridade e
formação profissional, exercer o controle da qualidade dos cursos e da certificação de
elevação de escolaridade que se efetiva em diferentes espaços e instituições com recursos
públicos ou não. Em segundo lugar, devem-se estabelecer mecanismos de controle sobre os
fundos públicos envolvidos no financiamento desses cursos. As avaliações do Planfor, salvo
algumas exceções, indicam uma banalização de cursos e desperdícios de recursos. 26 Outro
tabu que revela o atraso da elite econômica e política relaciona-se ao fundo público de mais
de 4 bilhões de reais recolhidos anualmente pelo Estado brasileiro e repassado ao Sistema S,
sem que daí em diante haja efetivo controle público. O atraso é emblematicamente
evidenciado pela resistência dos dirigentes, desde o processo constituinte, a efetivar uma
gestão tripartite.27 O argumento de que seus relatórios são aprovados pelo Tribunal de Contas
é pífio, pois se trata de uma avaliação contábil. O que se necessita avaliar é se esses recursos
estão sendo aplicados dentro das prioridades e necessidades da sociedade. Ao que se saiba há
25
Uma visão geral desta experiência em sua concepção educativa, metodologia e resultados é efetivada por
Barbara, M. M., Miyashiro, R., Garcia, S. R. de Oliveira (2003).
26
Uma análise densa da concepção do Planfor e de seu significado político é feita por CÉA (2003).
27
Cabe notar que esta não é a posição da maioria dos trabalhadores que atuam neste sistema. Há trabalhos de
avaliações internas que indicam o desejo destes trabalhadores de uma efetiva democratização destes recursos.

25
26

desperdícios de várias ordens, a começar pela construção de prédios suntuosos e gastos


administrativos.
Um grupo para o qual se necessita pensar políticas públicas que atentem para suas
particularidades é o dos jovens filhos de trabalhadores do campo. Quer pela necessidade, quer
por traços culturais, o trabalho precoce e o abandono da escolaridade formal são
elevadíssimos. A organização do Movimento dos Sem-Terra, ao contrário da demonização
que as elites insistem em produzir, mesmo nos limites dos acampamentos, representa ganhos
humanos e de formação enormes. A escola do MST tem um projeto pedagógico que articula
vida, cultura, conhecimento e formação política. Sob outro ângulo, o MST preserva estes
jovens de migrarem para as periferias urbanas, onde dificilmente encontrariam trabalho e,
conseqüentemente, ficariam mais vulneráveis diante dos próprios jovens destas periferias.
O desafio maior aqui é uma efetiva reforma agrária, cujo atraso histórico passa de um
século. A luta do MST, neste particular, é exemplar, sem descuidar-se de lutas cotidianas para
poderem sobreviver com um mínimo de dignidade. Não basta, por outro lado, terem acesso à
terra. É necessário que haja uma política agrícola mediante a qual possam viabilizar uma vida
digna.
Para garantir os mesmos direitos, as políticas para os jovens do campo devem incluir
as dimensões distributivas e emancipatórias. No plano educacional, há um aspecto crucial
que, se mal encaminhado, terá profundos efeitos negativos para os jovens do campo, ainda
que não só para eles. Uma política pública de ensino básico (fundamental e médio) que
busque articular ciência, conhecimento, cultura e trabalho não pode ser nem homogeneizadora
nem atomizadora e particularista. Para combater a perspectiva do dualismo, reiterado ao longo
de nossa história educacional, seja de escolas ou do conhecimento, o desafio é que um
conjunto de conceitos e categorias básicas possam ser reconstruídos ou produzidos a partir da
diversidade, tanto regional como social e cultural. Isso significa que os sujeitos coletivos
singulares são a referência real, ponto de partida e de chegada, e não podem ser
homogeneizados a priori. Por outro lado, o objetivo é que, ao longo do processo, todos
possam ter o direito ao patamar possível de conhecimento neste nível de ensino, em todo o
país. Se, de um lado, a homogeneização pelo alto violenta as singularidades dos sujeitos
coletivos e sua particularidade histórica, a escola não pode ter como ponto de chegada a
pulverização das particularidades, mas deve desenvolver um grau de universalidade histórica,
construída nesta diversidade (unidade do diverso).

26
27

O desafio mais complexo e, ao mesmo tempo, urgente é a definição de políticas


públicas que garantam direito digno de vida a um contingente de jovens, especialmente das
periferias das grandes cidades, empurrados para a mendicância, a prostituição, as atividades
do tráfico ou para aquilo que Wilson (1987, apud Boaventrura Santos, 1999) denomina
atividades criminosas do tipo street crime. O pior tipo de política, neste particular, é reduzir
este problema a uma questão policial ou ao confinamento em instituições do tipo das
FEBEMs. Num e noutro caso amplia-se a degradação. Por tratar-se de jovens que foram
mutilados em sua existência, o caminho de volta é tortuoso, nem sempre bem-sucedido e
demorado. De imediato, a inclusão na escola ou no trabalho não lhes são mais atrativos.
Algumas experiências indicam que este caminho de volta pode se dar no âmbito de atividades
culturais e do mundo da arte (teatro, música, dança etc.). O investimento ampliado para estas
políticas não só é economicamente mais barato que a perspectiva policial e da criminalização,
mas eticamente imperativo.
Embora este texto não pretenda e não permita conclusões de ampla generalização,
impõe-se, a partir do que analisamos, algumas indicações.
A primeira destas é de que a mutilação de direitos elementares da infância e da
juventude de filhos da classe trabalhadora é uma constante ao longo de nossa história. Isto nos
remete a buscar entender esta realidade no âmbito das raízes estruturais nos planos
econômico, político e cultural. O agravamento das condições de vida destes jovens está ligado
à recusa criminosa da elite brasileira em efetivar as reformas (agrária, tributária e social) e de
romper com a relação de partilha subserviente com o capital especulativo.
Uma armadilha que tem sido imobilizadora na ação é a perspectiva da visão
antinômica entre as políticas públicas estruturais e as políticas emergenciais e focalizadas. Se,
de fato e comprovadamente, a tendência tem sido de políticas focalizadas de cunho
assistencialista, que atacam, de forma superficial, os efeitos da desigualdade, isto não impede
que se implementem políticas redistributivas e de caráter emancipatório de grupos específicos
mais violentados e, ao mesmo tempo, que se busque atacar os problemas estruturais. A
perplexidade situa-se no fato de que, após um ano de governo composto por forças políticas
que historicamente defenderam essas mudanças de rumo estrutural, não há sinais claros nesta
direção.
A mudança de rumo das políticas públicas para jovens da classe trabalhadora implica
que sejam superadas algumas mistificações do credo do liberalismo conservador em sua face

27
28

atual, o neoliberalismo. O trabalho precoce de crianças e jovens e a escolaridade precária ou a


ausência da mesma são fatos que se correlacionam fortemente, mas um não explica o outro e
também não podem, linearmente, serem tomados um como solução do outro. Ambos têm sua
determinação fundamental na origem de classe. Ou seja, os jovens que têm trabalho precoce,
de baixa qualidade e remuneração, e os jovens que tem pouca escolaridade e de péssima
qualidade ou estão fora da escola estão nesta condição por serem filhos de trabalhadores
com condições de vida precárias. Isso nos mostra que a tese de "empregabilidade" é falsa e
cínica. Falsa porque a escola não tem, como vimos, capacidade de gerar nem garantir o
emprego. Ainda mais falsa num contexto de crise endêmica de desemprego e, no caso
brasileiro, de recessão. Cínica, porque culpa a vítima por ser pobre e por ter baixa
escolaridade e mascara a estrutura social geradora de desigualdade.
Do mesmo modo, a questão fundamental não é racial. Os piores empregos e salários e
a menor escolaridade não se devem precipuamente ao fato de esses jovens serem negros.
Deve-se ao fato de que, na formação social brasileira, os quatrocentos anos de escravidão
incidiram sobre o negro e a libertação legal não lhes devolveu o que lhes foi espoliado. O
legado foi serem jogados no grupo ou fração da classe trabalhadora com as menores
condições de sobrevivência. É a partir desta situação histórica que se desenvolve o
preconceito racial, que passa a ser um reforço e justificativa da desigualdade. Neste caso, as
políticas de discriminação positiva são, ao mesmo tempo, de classe e de raça. Pela razão
histórica é possível justificar, numa espécie de ajuste de contas com uma dívida social,
política e ética, uma prioridade para os negros, mas não pode ser exclusiva.
Uma política pública redistributiva e emancipatória de caráter mais universal, que
teria extraordinário efeito social, econômico e ético, seria, como discutimos ao longo deste
texto, a retirada do mercado de trabalho, formal ou não-formal, de todas as crianças e jovens
até a idade legal de conclusão do nível médio. Como vimos, para que isso seja viável, há a
necessidade de estipular-se uma renda mínima para estas crianças e jovens, sem o que elas
não podem abandonar sua luta pela sobrevivência. Para jovens de 18 a 24 anos, deve-se
garantir a possibilidade de continuidade de escolaridade até a conclusão do ensino médio.
Para os que estão empregados, devem-se criar condições de tempo, legalmente garantido,
para o estudo e um apoio, em termos de bolsa de estudo, sem o que também não há condições
de retorno à escola. Para os desempregados, seria necessário uma renda mínima e,
concomitantemente, o implemento de uma política de primeiro emprego. Pelo tamanho do

28
29

PIB do Brasil, está claramente provado que há viabilidade econômica para estas políticas e
que, portanto, a decisão de implementá-las é política. Certamente, isto é inequívoco, deve
haver uma outra divisão da riqueza e da renda, vergonhosamente concentradas. Isto, como
sinalizou Pochmann, não se faz sem contrariar interesses dos ricos, das grandes fortunas e do
capital especulativo.
Esta direção de política pública, levando-se em conta as particularidades dos diferentes
grupos de jovens, pode garantir uma educação básica que faculte aos jovens as bases dos
conhecimentos que lhes permitem analisar e compreender o mundo da natureza, das coisas, e
o mundo humano/social, político, cultural, estético e artístico. Haverá então a formação de um
jovem "técnico-dirigente”, sujeito autônomo e protagonista de cidadania ativa e não reduzido
a um "cidadão-produtivo" explorado, obediente, despolitizado e que faça "bem-feito" o que o
mercado determina.
O que se deve ter presente é que milhares de jovens, do campo e da cidade, não
podem continuar pagando o preço da mutilação dos seus direitos. Assim se estabelece uma
realidade em que aqueles que se situam na linha dos que já não têm nada perder transformam
em direito a vingança, por diferentes formas de violência e delitos, contra seus algozes. O
dramático é que estes têm como "blindar sua segurança" ou erguer guetos protegidos. Quem
paga são os pobres ou a remediada classe média. Mas isso também tem limites.

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