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Transições: do racismo nosso de cada

dia às novas referências literárias


Por Sara da Silva Pereira* http://www.sipad.ufpr.br/portal/transicoes-do-racismo-nosso-de-
cada-dia-as-novas-referencias-literarias-2/

Ontem decidi comemorar o Dia Nacional do Livro Infantil, que é


celebrado em 18 de abril, rodeada de personagens negras, indígenas,
quilombolas e outras tantas. Estive com Luanda, Tayó, Azizi, Florípedes,
Dandara, Zumbi, Madiba, Bernardo, Lindara, Huiára, Guanãby e muitas
outras/os. Pensei como tudo poderia ter sido diferente se essas/es
personagens já ocupassem meu imaginário na infância.

Ah, se nossas crianças já os conhecessem antes das Nastácias, Sacis,


Barnabés, escravizadas/os e tantas/os outras/os que nem nomes
possuíam nas narrativas!

Por muito tempo levei a Emília para minha sala de aula. Hoje, muitas
pessoas me questionam por que não apresento mais esse tipo de
literatura. Teria eu desgostado de Lobato? Comecei a estudar um pouco
mais e acho que já sei de tudo?

Muito pelo contrário! Foram nos tensionamentos da vida que despertei


um olhar crítico sobre tais obras: na militância, na academia, nos
confrontos entre pesquisas contra e a favor.

Minhas referências literárias, por muito tempo foram eurocêntricas, pois


por um longo tempo era apenas o que eu conhecia. Então, reproduzia o
que tinha acesso.

Em meio à magia, fantasia e faz-de-conta devemos nos atentar para o


fato de que na literatura infantil produzida por Lobato as/os personagens
negras e negros (tia Nastácia, tio Barnabé e Saci) ocupavam lugar de
subalternidade e eram caracterizadas/os através de diversas
estereotipias. Os estudos de Maria Cristina Soares de Gouvêa (2005)
discutem a representação dessas personagens na obra do referido
escritor. A autora mostra como a personagem tia Nastácia era
depreciada; a ela eram atribuídos apelidos pejorativos, como: “negra,
beiçuda”; seu conhecimento era deslegitimado, uma vez que era
considerada “ignorante”; não tinha família; era subserviente.
Constantemente essa personagem era adjetivada de forma racista e
desmoralizante.

Por isso, e tantas outras passagens, devemos problematizar essas


questões. Assim como ocorreu o questionamento em 2010, através de
uma denúncia feita pelo Movimento Negro, sobre a inserção da literatura
produzida por Monteiro Lobato no Programa Nacional Biblioteca na
Escola (PNBE), desafiando a cultura hegemônica.

Gihane Scaravonatti (2015) é uma pesquisadora que investigou as


leituras na mídia a partir das denúncias de racismo sobre a personagem
Tia Nastácia, da coleção literária “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”, obra
infantil de Monteiro Lobato inserida nos acervos desse programa.

Os tempos mudaram e, graças aos embates protagonizados pelo Movimento


Negro e aos estudos de pesquisadoras e pesquisadores, uma outra história
começou a ser contada. Caíram as máscaras! Descortinaram-se os véus.
Seria o fim da hegemonia e do cânone literário?

Claro que não, mas era o momento de dar voz às novas/os


protagonistas, visibilizando-as/os, construindo outras narrativas,
trazendo representatividade aos que dantes eram excluídas/os.

Quando você abre os olhos e percebe que a democracia racial não


existe, começa a enxergar o racismo que ronda nossa sociedade. Não
se trata de desconsiderar o valor de escritores e escritoras
consagradas/os e sua contribuição para a obra literária, mas sim de
questionar se essas contribuições foram válidas para todas/os ou foram
construídas sob a égide da degradação e obscurantismo de outras e
outros. Se as infâncias são múltiplas porque somente as crianças
brancas são valorizadas e apenas uma história é digna de ser contada?

Mandela foi criança? Zumbi teve infância? Como vivem os sem-


terrinhas? Como vivem as crianças trans? E as crianças indígenas em
suas diferentes nações, com designações e culturas diferentes, não são
dignas de serem representadas, nada têm a nos ensinar? Podemos nos
colocar num lugar de escuta, não somente das crianças, mas dos
diferentes povos que habitam essa nação?

O Brasil é um país em que a maioria da população se diz não racista,


mas continuamos assistindo as denúncias de nosso povo diante de tal
atrocidade. Ou pior ainda: continuamos a constituir o imaginário infantil
com vocabulário de cunho racista, com a desculpa de que é preciso ler
para fazer a crítica. No entanto, quando a crítica é feita, não é aceita.

É inegável a contribuição de Monteiro Lobato para a literatura infantil


brasileira, sendo que sua produção representou um divisor de águas nos
estudos literários, conforme nos citam diversas pesquisadoras/es.
Aclamado pela crítica como o criador da literatura infanto-juvenil, sua
produção perpassa por um universo infantil em que a criança se
identifica e adquire protagonismo na narrativa. No entanto, propagou
ideias racistas num plano simbólico e que até hoje permeiam, em boa
medida, o imaginário nacional.

*Sara Pereira é mestre em Diversidade Diferença e Desigualdade Social


em Educação; professora da etapa da Educação Infantil na rede pública
de São José dos Pinhais e integrante do Grupo de Pesquisas
Erêyá/NEAB/UFPR.

Ela relata que as indagações suscitadas pelo Movimento Negro geraram


controvérsias. Essas foram tantas que a polêmica foi instaurada: inicia-
se uma discussão sobre censura na literatura e sobre o politicamente
correto. Mais uma vez as questões referentes ao racismo que assola o
povo negro foram consideradas exagero, sendo minimizadas e até
mesmo desqualificadas, já que em 2014, o Estado negou o pedido
realizado pelo Movimento Negro (MN), deixando de dar seguimento ao
Mandado de Segurança que discutia o racismo nas obras do autor.

Pesquisadoras como Ândrea Barbosa de Andrade (2020) acreditam que


manter a relação de Lobato a esta data (Dia Nacional do Livro Infantil) e
sua associação à importância da literatura infantil é validar sua produção
eugenista e racista, relativizando a luta do Movimento
Negro, invisibilizando as diferentes infâncias a quem a literatura deve e
precisa alcançar e, mais, honrando uma obra que a todo tempo cria uma
fantasia que é o cenário de nosso país: a fantasia da democracia racial.

Entender ser o autor fruto de sua época, não significa aceitar o racismo.
Este atravessa o tempo, perpassando as relações sociais e trazendo
inúmeras mazelas para a população negra; e precisa ser combatido. A
questão de se inserir uma nota explicativa mostra-se como uma solução
paliativa, pois dá a entender que qualquer obra poderia ser aceita no
referido programa (que foi o PNBE), desde que apresentasse uma nota
justificando o teor de suas transgressões. Por isso é tão importante
estudarmos as relações étnico-raciais e entender como o racismo está
presente em obras como a de Monteiro Lobato.

Elucidada essa questão, eu, de minha parte, se um dia fui Emília, hoje
eu não quero mais ser!
Quero ser Luanda e desfilar meus penteados!
Quero ser Lara e brincar com minhas bonecas.
Quero ser Antonieta e me sentir parte da história, sempre a frente do
meu tempo.
Quero ser Bruna e brincar com a galinha d’Angola.
Quero ser Inine e dançar em todas as festas, apesar das mazelas que
nos afligem.
Quero ser Tom que conquista a todos com sua sensibilidade.
Quero que minhas crianças saibam que existem outras personagens,
pretas, brancas, amarelas, com ou sem deficiência e que as relações
étnico-raciais estabelecidas entre elas não precisam ser hierarquizadas
e todas elas poderão ser quem bem entenderem: princesas ou heroínas,
protagonistas de suas histórias.


Indicações de Leituras:
E se você for adulta/o como eu, mas que possui uma criança latente
dentro de si, vale muito conhecer esses títulos:
1. As bonecas negras de Lara, da autora Aparecida de Jesus Ferreira;
2. Guanãby Muru-Gáwa: a origem do beija-flor, de Yaguaré Yamã;
3. Cada um com seu jeito, cada jeito é de um; Azizi, de Lucimar Rosa
Dias;
4.Tom, de André Neves;
5. Ulomma, a casa da beleza e outros contos, de Sunny;
6. Lindara, Palmas e vaias, É o aniversário do Bernardo; A lenda do
timbó, Zum Zum Zumbiiii, todos da escritora Sonia Rosa;
8. O mundo no black power de Tayó, de Kiusam de Oliveira;
9. Bruna e a galinha d’Angola, de Gercilga de Almeida;
10. Madiba: o menino africano, de Rogério Andrade Barbosa;
Antonieta, de Eliane Debus. 11. Entrevista da Kiusam de Oliveira, no
Blog da Letrinhas, que está imperdível e traz diversos questionamentos
e reflexões. Vale muito a pena conferir aqui.
Referências:

GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. Imagens do negro na literatura


infantil brasileira: uma análise historiográfica. Educação e Pesquisa,
São Paulo, v. 31, n. 1, p. 77-89, jan./abr. 2005.

SCARAVONATTI, Gihane. “Boneca de pano é gente/sabugo de milho


é gente”; e Tia Nastácia, seria gente? A disputa em torno da
personagem lobatiana a partir de sua inserção nos acervos do
Programa Nacional Biblioteca da Escola. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Universidade Federal do Tocantins

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