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O HERÓI COMO REPRESENTAÇÃO

DA RESISTÊNCIA A O SISTEMA

Rosângela Sanches da SILVEIRA*

A fada que tinha idéias de Fernanda Lopes de A l m e i d a , um conto de


fadas moderno que critica o "status quo", a ordem estabelecida, a e s t a g n a ç ã o . E
uma obra que leva o leitor a refletir e questionar sobre o mundo em que vive e a
q u e s t i o n á - l o , despertando-o para uma tomada de posição, n ã o s ó diante do
texto, mas diante da própria realidade. Contudo, o livro n ã o afasta o leitor do
â m b i t o maravilhoso. Ou seja, o mundo que nos é apresentado é o mundo
maravilhoso dos contos de fadas e o elemento m á g i c o , nessa obra, acaba por
constituir-se em um elemento de interpretação do real.

Essa passagem entre o real e o maravilhoso em A fada que tinha idéias


é construída de maneira sutil e dissimulada, pois a obra , antes de tudo poética,
isto é, trata-se dum texto em que predomina o literário e n ã o apenas a
c o n t e s t a ç ã o , a resistência. Certamente, por isso mesmo, consegue ser uma
e x p r e s s ã o da resistência.

A história se passa na via láctea e tem como herói uma fada de apenas
10 anos de idade: Clara Luz. U m nome bastante sugestivo para uma
personagem t ã o cheia de idéias e que consegue enxergar o seu mundo de uma
maneira muito especial.

Clara L u z , uma c r i a n ç a essencialmente crítica. Ela contesta toda a


sociedade em que vive, resistindo firmemente a aceitar tudo que lhe é imposto.
A sociedade em q u e s t ã o é o reino das fadas. Uma sociedade feminina na qual os
p a p é i s da mulher como "fada", m ã e , professora e líder político que antes

* Aluna do Programa de Pós-Graduaçâo.


estavam bem definidos, passam a ser questionados por Clara Luz. Ela resiste à
a c e i t a ç ã o do sistema vigente, questionando a família, a política e a e d u c a ç ã o
dentro da sociedade.

Clara L u z é impulsionada por um forte desejo de criar, ela quer


originalidade, por isso n ã o aceita "receitas prontas" e nem f ó r m u l a s m á g i c a s
p r é - e s t a b e l e c i d a s , como aquelas contidas no L i v r o das Fadas. Ela resiste a
aprender as m á g i c a s do L i v r o , uma vez que sempre s ã o as mesmas: fabricar
tapetes e desencantar princesas, impedindo a c r i a ç ã o de novas m á g i c a s e
levando à e s t a g n a ç ã o e ao conformismo diante das regras. O L i v r o das Fadas é
o primeiro ato de resistência de Clara L u z em favor da liberdade de c r i a ç ã o ,
como forma de melhorar o mundo. Colorindo a chuva, organizando um balé no
c é u , transformando as nuvens em animais de brincadeira, Clara L u z tenta
melhorar o ambiente em que vive, embelezando-o ou tornando-o mais alegre e
interessante.

Criando suas próprias m á g i c a s , e por vontade própria, Clara L u z


consegue garantir autonomia para lidar com os poderes m á g i c o s que as fadas
tradicionais n ã o p o s s u í a m , pois estavam sempre atendendo os pedidos de
outrem - lembre-se que o papel da fada tradicional, na maioria das vezes, é
reverter feitiços ou doar objetos m á g i c o s para a s o l u ç ã o do conflito, é o auxiliar
mágico.

As m á g i c a s de Clara Luz, p o r é m , nem sempre d ã o certo. Ela errou na


receita dos bolinhos, quando colocou r e l â m p a g o demais, errou t a m b é m ao
colocar três asas no bule para que ele virasse p á s s a r o . Mas Clara L u z sempre
p ô d e contar com a ajuda da F a d a - M ã e . Sua m ã e , apesar de morrer de medo da
Rainha e de desobedecer ao L i v r o das Fadas, é forçada a transgredir as ordens
do L i v r o , criando novas m á g i c a s para salvar sua filha. Inovando, Clara L u z leva
sua m ã e a inovar t a m b é m . Para resolver um problema de originalidade s ó se
pode usar originalidade. A F a d a - M ã e quer inovar, mas tem medo do novo, por
isso ela sempre usa a desculpa de falta de ar. A m ã e de Clara L u z sente falta de
ar em situações-limites, quando é necessária uma atitude. Quando isso acontece
Clara L u z pede à m ã e que olhe a sua volta para ver como tem ar sobrando e sua
m ã e melhora. Se a m ã e n ã o tem c o n s c i ê n c i a do ar a sua volta, como pode ter
c o n s c i ê n c i a do que está acontecendo ao seu redor?

A F a d a - M ã e e as outras fadas t ê m medo de inovar, pois s ã o reprimidas


pelo L i v r o e pela tirania da Rainha. Clara Luz, ao contrário, n ã o tem medo de
nada, pois tem idéias. Pensando, criando, ela sempre consegue reverter
situações de perigo em situações favoráveis. E sua grande arma n ã o é a m á g i c a ,
mas seu bom senso, sua inteligência, os argumentos que utiliza que acabam
sempre convencendo.

N a sua primeira aula de Horizontologia, Clara L u z e x p õ e à professora


r e c é m - f o r m a d a uma série de o p i n i õ e s sobre os horizontes. Em primeiro lugar,
Clara L u z acredita que n ã o existe apenas um horizonte, como todos dizem, mas
sim muitos. Ela d i z a t é que vai escrever um livro sobre o assunto. A l é m disso,
p r o p õ e um novo procedimento didático, sugerindo uma aula "vivenciada": uma
aula sobre horizonte no p r ó p r i o horizonte. Clara Luz acredita na c o n s t r u ç ã o do
saber e n ã o em algo pronto que deva ser "engolido" sem d i s c u s s õ e s . A l é m do
mais, quer aprender brincando, "vivenciando" e x p e r i ê n c i a s .

A professora a princípio resiste a aceitar essa aula-brincadeira,


dizendo que n ã o foi assim que ela aprendeu Horizontologia no c o l é g i o . Clara
Luz, para c o n v e n c ê - l a , utiliza o seguinte argumento:

- Por isso é que a senhora é tão magrinha.


- Hein?
- Coitada, levou anos aprendendo horizontologia sentada!
(Almeida, 1985)

A professora acabou cedendo e f o i para o horizonte com Clara Luz. A


fadinha conseguiu despertar na professora o seu lado lúdico, fazendo com que
ela voltasse a ser criança:

A professora foi a primeira a pular sobre o horizonte.


Estava tão alegre que se esqueceu de que era professora e saiu
aos pulos, com os cabelos voando (Almeida, 1985).

Elas acabaram aprendendo e se divertindo ao mesmo tempo e sem


contar que se tornaram amigas.

N a ú l t i m a parte da história, Clara L u z tem sua tarefa mais difícil:


convencer a Rainha a mudar sua forma de governar.

A o p i n i ã o de Clara L u z é que a Rainha deveria abrir os horizontes.


Para c o n v e n c ê - l a disso, utiliza dois argumentos muito fortes:
O primeiro é este:

- Minha opinião é essa: se D. João V I , que não era fada, pôde


abrir os portos, porque Vossa Majestade não pode abrir os
horizontes? (Almeida, 1985).

Clara Luz desafia a Rainha a mostrar seu poder, sua autoridade. Como
ela pode ficar atrás de D . J o ã o V I ?

O outro argumento utilizado é que as fadas n ã o podem seguir as regras


de um livro embolorado. O L i v r o M á g i c o das Fadas estava embolorado. Diante
desses argumentos, a Rainha n ã o p ô d e mais resistir à p r e s s ã o e autorizou a
abertura dos horizontes, j á que n ã o se pode ter idéias com os horizontes
fechados. O L i v r o das Fadas foi extinto, permitindo a liberdade de pensamento
e de c r i a ç ã o das fadas.

Clara Luz, com sua astúcia e inteligência desafia o adulto, mas


reconhece o papel e a importância de cada um: da m ã e , da professora, da rainha.
Em nenhum momento quer assumir seus papéis. Ela quer ajudar, participar, dar
suas o p i n i õ e s e idéias, pois acredita que tudo é da conta de todos. N ã o é pelo
fato de ser c r i a n ç a que suas o p i n i õ e s n ã o devem ser levadas em conta. Com
idéias inovadoras, Clara Luz leva as outras fadas (como a F a d a - M ã e e a
professora) a se questionarem, a quererem mudar e, o que é mais importante:
elas perdem o medo e passam a defender as m u d a n ç a s ao lado de Clara Luz. E o
adulto evoluindo, crescendo, superando suas dificuldades e fazendo com que
seu mundo evolua.

Clara Luz representa o herói que consegue n ã o somente resistir ao


sistema vigente, mas t a m b é m transformar toda a sociedade em que vive.
Segundo Clara Luz:

Quando alguém inventa alguma coisa, o mundo anda. Quando


ninguém inventa nada, o mundo fica parado (Almeida, 1985).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A L M E I D A , F. Lopes de. A fada que tinha idéias. 12.ed. SSo Paulo: Ática, 1985.

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