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NECROPOLÍTICA

MARCOS BARBOSA
Prefeitura de São Paulo
Secretaria Municipal de Cultura
Centro Cultural São Paulo
mundanacompanhia

apresentam

Associação Centro Cultural


CONSOLIDAÇÃO

Este quarto movimento da Mostra de dramaturgia em


pequenos formatos cênicos do Centro Cultural São Paulo é
sem dúvida o que consolida o projeto, lindamente amadurecido
com a participação de nove autores e autoras selecionados
nas edições anteriores e a inscrição de algumas centenas de
outros e outras, que enviaram seus textos.
A edição atual ensaia mais deliberadamente as pontes entre
estética e política em um momento em que esta relação volta
a ganhar recorrência na cena brasileira. Foram selecionados
para montagem os textos de Ave Terrena Alves, As 3 uiaras de
SP City - barbante roxo do mural da memória, Jhonny Salaberg,

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Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã e Marcos Barbosa,
Necropolítica. Nos dois primeiros prevalecem as discussões de
gênero, raça, lugares de classe e de uma microfísica do poder,
como dizia Michel Foucault. São fábulas que acompanham o
momento de emergência de temas poucas vezes tratados a
partir de posições tão afirmativas e críticas como agora. No
texto de Ave Terrena liberdade e contingência ganham campo
de embate a partir da história de personagens transgêneros,
em espelhamento de diferentes momentos da história do país.
É projeto que está no raiar de um tempo novo para o teatro, em
que vozes até então silenciadas passam a falar em seu próprio
nome e com seus próprios modos.
A peça de Salaberg é uma história altamente concentrada,
que articula-se em recursos fantásticos e conta, em sofisticada,
poética estratégia narrativa, sobre a tragédia ordinária de jovens
negros nas periferias do Brasil e do mundo. Por fim, a quase
anti-peça de Marcos Barbosa observa a sociabilidade em uma
visada mais ampla, discutindo as formas atuais do ativismo
agora travadas na suspensão da aporia e nas suas variações,
em torno de temas como representatividade e engajamento
- palavras que ali ganham significados díspares. O campo de
ficcionalização lambe o nonsense. Vistos no conjunto são três
retratos livres mas generosamente críticos sobre o Brasil
atual, em que a pertinência dos temas não limita a experiência
de criação ao mero relato da conjuntura em forma teatral.

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Ao contrário, convidam para a invenção de um imaginário
interessado na invenção de linguagem e, portanto, na expansão
dos horizontes da dramaturgia.

O PROJETO

O projeto da Mostra de dramaturgia em pequenos formatos


cênicos nasceu em 2015, de uma necessidade: diante dos meios
de produção existentes no panorama teatral de São Paulo, o que
poderia ser útil? O que poderia ser relevante em uma cidade cujo
teatro é já mais que razoavelmente subvencionado? Os editais
de montagem não têm necessariamente compromisso com
o autor. A autoria dramatúrgica original é um acidente, pode
estar como não estar, dependendo do projeto. A impressão das
brochuras com as peças, distribuídas à plateia, é uma tentativa
de tornar mais íntima e quem sabe um pouco mais duradoura
a experiência fugidia do espectador frente a o fenômeno teatral
em uma época na qual o texto de teatro ainda é pouco publicado
e é dos nichos menos representativos no mercado editorial. A
ideia de pequenos formatos não é novidade. Nas artes visuais
há Mostras e salões de pequenos formatos. No cinema, os
chamados filmes de baixo orçamento. E nestas duas áreas
a expectativa é a de que o “pequeno” não seja indicador de
obras artísticas de má qualidade. Ao contrário, são condições
a partir das quais a própria linguagem se articula. No caso do

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teatro é ideia que pressupõe dramaturgias sintéticas no plano
formal. Em que o plano de pensamento seja mais importante e
não dependa de muitos recursos materiais para a encenação.
Então o pequeno formato já não será uma contingência e sim
um campo de provocações, de fomento criativo.
E assim tem sido. Nos dois primeiros editais tivemos
cerca de duzentos inscritos (por edição). No terceiro o número
subiu. Destes, selecionamos três textos por ano, que foram
montados e ganharam a cena durante as Mostras. Os textos
escolhidos perfazem um amplo painel da sociabilidade e das
subjetividades emergentes no Brasil. A repercussão pública
do projeto tem sido uma alegria. As Mostras têm acontecido
com boas plateias, o público está vindo. E o reconhecimento
institucional também. Nas duas primeiras edições ao menos
um dos três espetáculos nascidos do edital esteve entre os
mais premiados do ano e o próprio Centro Cultural São Paulo
foi indicado ao Premio Shell de teatro, na categoria Inovação,
“pelo estímulo à experimentação de novas formas cênicas,
dramatúrgicas e de produção”.
No Edital do CCSP, pelas contingências (que
tentamos transformar em adubo) escolhemos, entre estas
tantas possibilidades, jogar luz sobre o texto. Que não é
necessariamente “a peça”. Temos recebido e premiado
inúmeras escritas experimentais e textos tradicionais
também. A resposta ao chamado, com quase trezentos

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textos inscritos na última edição, nos diz que aquela intuição
inicial estava em bom caminho. E vamos. Bem vindos/bem
vindas a mais uma Mostra. Que seja mais uma vez o espaço
de observação e fruição da vida através do teatro e destas
histórias imaginadas mas já tão nossas irmãs, criadas por
Ave, Jhonny e Marcos.

Kil Abreu
Curador de Teatro do CCSP

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NECROPOLÍTICA é uma peça incomum. Não quanto à drama-


turgia que traça um painel e expõe, por meio de várias cenas
independentes, ângulos variados de um mesmo assunto: a
morte. Em si, morte é assunto bastante comum no teatro des-
de a antiguidade. Talvez, juntamente com o amor e a tragédia,
seja o sustentáculo de grande parte da dramaturgia mundial.
O incomum na peça de Marcos Barbosa é o tratamento dado.
Em NECROPOLÍTICA, a morte não tem um sentido dramático
como estamos acostumados a ver, tem um sentido ideológico.
Mikhail Bakhtin, em Problemas da Poética de Dostoiévski,
desvenda com muita propriedade a característica ideológica
dos personagens do grande autor russo. Em Dostoiévski,
eles não são construídos da forma clássica. Não é o caráter

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poderoso do protagonista que complica e movimenta a sua
trajetória como nos textos clássicos, mas é sua ideia. É a
ideia que o personagem faz de si mesmo e do mundo; são
as ideias que um personagem adota e que passam a habitá-
lo e a fazer parte de seu corpo de crenças que movimentam
a trama e que fazem com que ele caminhe rumo à loucura,
ao heroísmo, ao sofrimento e à morte. Dostoiévski é um dos
inventores do personagem contemporâneo, esse ser ficcional
movido não por falha moral ou por descomedimento de
caráter, mas por descomedimento da ideia - é por meio dela
que ele se perde. O personagem pode ser frágil e desprezível,
mas pode se agregar a um conjunto de ideias e defendê-las
com sua própria vida e com a vida dos outros se preciso for.
O escritor russo, podemos afirmar, foi igualmente um dos
precursores da crítica ao fundamentalismo religioso e ao
fundamentalismo político que movem seres humanos a uma
fé cega, sem contradição interna alguma.
No mundo contemporâneo são corpos e vidas que
se embatem, definham, morrem por ideias muitas vezes
estranhas e incompreensíveis para eles próprios. O ódio
nas redes sociais é uma clara evidência desse apego a
ideias prontas que criam uma arena virtual de gladiadores
sem o mínimo senso crítico. Em NECROPOLÍTICA temos
não só o embate das ideias, mas a ideia como a própria
substância da peça: a ideia da morte. O que é a morte? Na

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peça essa pergunta não é filosófica, é uma pergunta prática.
A moderna tecnologia pode perenizar a consciência de um
ser humano num corpo biologicamente morto? Parece ficção
científica e é. A ação de NECROPOLÍTICA se passa num
futuro suficientemente distante no qual o desenvolvimento
tecnológico tornou difusas as fronteiras entre a vida e a morte.
Cadáveres providos de memória e consciência por meio de
suporte digital são trazidos à vida e situados num limiar
entre a morte biológica e a vida. E, a partir daí, o autor propõe
uma série de questionamentos. O morto provavelmente seja
o nosso “outro” mais definitivo, mas e esse “outro” que não
é comprovadamente vivo nem definitivamente morto? Esse
“diferente” deve ser integrado, com todos os direitos civis ao
mundo dos vivos? É moralmente aceitável que uma morta
trazida a esse estranho tipo de existência, mescla biológica
e digital, gere uma nova vida? E o amor de um vivo por um
morto é aceitável? Essas e outras questões são debatidas
de forma ardorosa e dramática neste texto teatral incomum
aberto a uma série de leituras. Pode ser a ficção científica de
um tempo futuro ou a metáfora do tempo presente em que a
exacerbação da ideia de morte, da mentalidade politicamente
correta e do relativismo moral elimina todas as diferenças.
Podemos lê-lo também como uma possibilidade real do
destino humano cada vez mais mesclado com a tecnologia
- corpos biológicos que convivem com chips de programas

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diversos implantados em si. Ou como uma metáfora do velho
mito da luta do ser humano em busca da imortalidade ou de
sua perversa derivação que é o apego à vida até às raias do
absurdo. E, finalmente, podemos lê-lo como uma comédia,
talvez trágica, de nossos erros e manias no enfrentamento de
nosso maior Outro: a morte.
Marcos Barbosa com NECROPOLÍTICA apresenta-
nos um texto provocador, repleto de reflexões em cada cena,
onde não sabemos se partilhamos tais exageros da ideia,
se levamos a sério seus conteúdos e refletimos em cada
momento da obra ou se relaxamos e rimos do absurdo das
situações. Talvez a melhor atitude não seja rir de maneira
tão descompromissada. Podemos estar rindo da sociedade
que estamos construindo e de nós mesmos, enfim.

Luís Alberto de Abreu

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Marcos Barbosa, artista de quem eu queria me aproximar
há algum tempo, chegou numa tarde ensolarada do início do
verão de 2017/18, me apresentou o texto NECROPOLÍTICA e
propôs que a mundana companhia o encenasse. Depois de
ler o texto falei do meu interesse ao mesmo tempo que disse
da agenda apertada da companhia para o período em que o
trabalho deveria ocorrer, dado o prazo do edital do CCSP. Po-
rém, a gentileza e determinação de Marcos foram mais for-
tes e eu tive a certeza que deveria estabelecer essa parceria.
Nem eu nem a mundana companhia poderíamos perder esse
momento. Amores também surgem sem hora marcada.
Mandei o texto para Mariano Mattos Martins, Carol
Badra e Vanderlei Bernardino com um prazo curtíssimo para

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eles lerem e dizerem se queiram fazer. A resposta positiva
veio acompanhada de falas do tipo: Que estranho! O que são
Necropolíticos? Isso existe?
Depois dos acordos feitos e as parcerias consolidadas,
o barco zarpa e os navegantes se jogam juntos no mar da
criação e do conhecimento. Assim temos realizado nossos
projetos: conscientes dos acordos, correndo riscos, expondo
as vozes individuais, com coragem e força criativa.
Além de formar a equipe decidi dirigir novamente um
projeto da companhia. Tenho experiências acumuladas que
preciso exercitar jogando na posição de diretor. Peguei o bastão.
E vieram Diogo Costa, Luís Mármora, Ricardo
Morañez, Ivan Garro, Bia Fonseca, Vera Hamburger, Tatiana
Thomé, Flora Belotti, Nana Yazbek, Yghor Boy, Lucas Cândido,
Mariana de Moraes, Otávio Ortega, Éder Santos, Adriana
Monteiro... A maioria mundanos de outras jornadas.
Um trabalho de teatro pode ser uma experiência tão
rica dentro da vida! Fazemos mundos com sons, luzes, ob-
jetos, seres, palavras... No atual trabalho que começou na
imaginação de Marcos temos o desafio de nos relacionar com
um novo ser que clama por uma voz ativa na nossa sociedade,
mas que transcendeu uma barreira definidora do que é hu-
manidade: a morte. Por causa da tecnologia ele pode existir
e realizar uma ambição ancestral dos homens: a vida eterna.

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Diante do ser “perenizado” os personagens vivos
perturbam-se e espantam-se com a maravilha que surge. O
futuro chegou e ele não é doce e cordial como imaginamos nas
velhas utopias. Resta-nos a memória que soa melancólica.
Porém, nossos encontros criativos são feitos para
germinar novas relações e humanidades mesmo quando
anunciamos um mundo necropolítico.
Que seja mesmo amor!

Fortaleza, 05 de junho de 2018


Aury Porto

NOTA DO AUTOR

Em abril de 2017, cheguei, ou chegou a mim, o desenho geral de

NECROPOLÍTICA. O tema central da peça, a estrutura e o título surgiram

em um só gole. Uma pesquisa abreviada me apontou, já então, referência

ao trabalho homônimo de Achille Mbembe, que, à época, carecia de

tradução ao português e encontrava pouca ressonância na academia

brasileira. De lá para cá, tudo muda, Mbembe foi devidamente traduzido

e começa a se tornar referência quase obrigatória em diversos campos

da pesquisa – inclusive em artes – no Brasil. De um jeito ou de outro,

NECROPOLÍTICA, a peça, não foi escrita em relação direta com o trabalho

de Mbembe e não tem nenhuma intenção de ser sua reelaboração em

dramaturgia (nem por aproximação nem por divergência).

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NECROPOLÍTICA

Uma peça de Marcos Barbosa

1.

Talk show.
HOST. Mas se, como já foi dito aqui, a questão não se resume
apenas a uma nomenclatura, então qual a importância do
nome “necropolítica”? O que há de errado em dizer que uma
pessoa é “não-viva”, ou “perenizada” ou “estabilizada”, por
exemplo? O que muda, para melhor, se a gente diz que ela é
uma “necropolítica”?
DEPUTADO. Não muda nada.
Reação de incômodo de Ativista. Deputado percebe, mas
desconsidera.
DEPUTADO. Absolutamente nada. É justamente esse o ponto.

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HOST. Professora?
PROFESSORA. “Que importa o nome?” Diz uma célebre
citação a Shakespeare. “Que importa o nome? O mesmo doce
aroma / Exala a rosa se mudar de nome.”
DEPUTADO. A professora concorda comigo, então.
PROFESSORA. Eu gostaria de concluir.
HOST. Professora.
PROFESSORA. Eu quero justamente ressaltar que a citação ao
nome da rosa não vale para esse debate. Ali nós temos Romeu
e Julieta, dois adolescentes, perdidamente apaixonados,
olhando para a polis de Verona com a irresponsabilidade de
crianças. Para viver um romance proibido, Romeu e Julieta
não se importam em deflagrar a guerra e se importam
menos ainda com o nome da rosa. Mas, no nosso caso, o
nome importa e muito. A terminologia é o momento poético
do pensamento.
ATIVISTA. Desculpa interromper, professora. Mas é
importante deixar isso claro. A gente não está nessa luta só
para inventar um nome, a luta não é só por um modelo novo
para a carteira de identidade. A questão é de afirmação, de
empoderamento, de lugar de fala e de conquista de direito.
Aplausos.
PROFESSORA. Concluindo. Juro que vou ser breve. Se eu digo
que alguém é “não-vivo”, eu estou realizando uma atribuição
negativa. Eu me apresento como brasileira, não me apresento

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como não-argentina, por exemplo. Se eu digo “estabilizado”,
“perenizada”, algo assim, eu estou chamando atenção não
para o sujeito em si, mas para um procedimento, médico
ou não, pelo qual a maior parte deles passou em algum
momento. Mas não é como objetos que eles devem se inserir
na sociedade e sim como agentes de construção das relações
políticas. Por isso a insistência em dizer que essas pessoas
são “necropolíticas” e que devem ser reconhecidas como uma
modalidade própria da cidadania.
DEPUTADO. A senhora acha, então, que uma pessoa morta/
HOST. Deputado.
DEPUTADO. Vou só concluir a pergunta, é importante. A
senhora acha que um morto/
ATIVISTA. O senhor dizer uma palavra assim, em público,
é uma grosseria, um crime, uma coisa que, sinceramente,
não se deveria esperar de ninguém, muito menos de um
representante do Estado.
Aplausos.
DEPUTADO. Bom. Tudo bem, eu reformulo. Meu problema não
é com o nome, eu já disse. A questão é a mesma: uma pessoa
que foi à óbito, uma pessoa perenizada, um necropolítico,
digamos, a senhora acha que essa pessoa pode se candidatar
à presidência da república, por exemplo?
PROFESSORA. Atualmente seria muito pouco provável, mas
isso por uma questão de pré-conceito. A longo prazo eu creio

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que isso seja algo inevitável. Atravessamos mais de um século
de república até termos uma mulher na presidência, mas
hoje, quando se coloca isso sob uma perspectiva histórica, a
ideia não causa nenhum susto, aliás o susto é que tenhamos
esperado tanto tempo até termos uma presidenta da república.
Aplausos.
DEPUTADO. Não é a mesma coisa.
PROFESSORA. Mas é a mesmíssima coisa.
DEPUTADO. Não, me desculpe. A senhora está tentando
distorcer minha ideia.
PROFESSORA. De modo algum.
HOST. Deputado.
DEPUTADO. Nós tivemos mulheres na presidência, negros na
presidência, estrangeiros na presidência, pessoas com questões
de cognição e o mais, tudo bem, não se trata disso e eu não vou
deixar a senhora me associar a nenhum discurso de ódio.
PROFESSORA. Eu não tive essa intenção.
DEPUTADO. Eu vou direto ao ponto: a questão é que estas
pessoas, todas elas, desde Vilma... de Vilma Rousseff.
ATIVISTA. Dilma Rousseff.
DEPUTADO. De Dilma Rousseff em diante, obrigado. Essas
pessoas eram pessoas vivas. Nenhum médico tinha examinado
essas pessoas e registrado óbito, percebe? Eram vivas.
ATIVISTA. Mas o que é uma pessoa viva, para o senhor?
DEPUTADO. A senhora não sabe o que é uma pessoa viva?

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ATIVISTA. Nem eu sei nem ninguém sabe.
DEPUTADO. Isso é uma questão biológica. (interpela)
Professora? (outra vez à Ativista) Isso é científico, se eu tiver
que definir, aqui, o que é uma pessoa viva, é porque esse
debate não faz sentido algum.
PROFESSORA. Eu gostaria de intervir, para lembrar que
o termo “vivo”, desde a origem, inclui o sentido de “o que
habita” e que, por essa via, o que até bem pouco tempo se
chamava de “vivo” agora precisa passar por uma revisão
muito séria para incluir os sujeitos que, se por um lado não
têm mais o mesmo status biológico, digamos, fisiológico
que nós aqui nesse painel de debate temos, não serão por
isso impedidos de serem compreendidos como alguém que
“habita”, que seja “vivo”, portanto.
ATIVISTA. E é importante registrar que há empresas, sobretudo
na área de bioenergia e de atenção psico-social, a maior parte
delas na Escandinávia, inclusive, que já são dirigidas, e muito
bem dirigidas, por necropolíticos. E nem por isso elas deixam
de ser empresas bem gerenciadas e rentáveis. Quando é o
caso de serem empresas voltadas ao lucro.
DEPUTADO. Essas pessoas estão lá, nas presidências dessas
empresas, em caráter simbólico. É como antes estavam lá
os quadros dos antigos chefes, as estátuas, os vídeos, os
hologramas. Isso não configura uma presença, de fato, não
são pessoas tomando decisões de gerência.

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ATIVISTA. São pessoas plenamente capazes, tomando
decisões de gerência.
DEPUTADO. Não são.
ATIVISTA. São sim.
DEPUTADO. Não são. São softwares de comunicação,
ligados a material genético de um não-vivo, um perenizado,
um necropolítico, chame do que quiser, são softwares que
geram respostas mais ou menos coerentes a partir de um
banco de dados gravado por essas pessoas ainda em vida.
Isso é um truque de cibernética detalhado mais de cem
anos atrás. Aliás, no final do século XX já havia softwares
que respondiam a perguntas como se fossem John Lennon,
só para lhe dar uma ideia.
HOST. A senhora pode esclarecer do que se trata o tão
comentado procedimento de comunicação com necropolíticos
pela linguagem através dos novos dispositivos?
PROFESSORA. Posso.
DEPUTADO. (corta) São um truque. As pessoas ficam
maravilhadas com esses vídeos na internet achando que
estão vendo uma revolução, uma mudança de paradigma
social, mas esses vídeos só estão lá para dar dinheiro a
empresas de capital russo, coreano... Isso é passatempo de
milionário. É truque.
PROFESSORA. Não são um truque, são padrões de comuni-
cação profundamente complexos, profundamente humanos,

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que se estabelecem em uma interface digital conectada a
material genético de indivíduos perenizados, perdão, indiví-
duos necropolíticos. Esses padrões evoluem com o tempo,
de modo que é possível dialogar com essas pessoas e elas,
como nós quatro aqui, têm questões, ideias, receios, senso
de humor... Elas aprendem, como nós, elas esquecem, como
nós. E, só para chegar à imagem que o Deputado lançou ante-
riormente, elas podem, eventualmente, se candidatar e con-
vencer uma maioria de votantes a votar nelas, conquistando,
democraticamente, o posto de presidência da república.
Aplausos.
DEPUTADO. Eu não vou perguntar em quem a senhora votou
na última eleição, porque essa afirmação já é uma declara-
ção de voto.
Risos.
DEPUTADO. Me permita falar de um modo muito claro, porque
eu sou uma pessoa simples, mas muito conectada com uma
grande parte da população desse país. Uma pessoa que teve
um infarto, uma parada cardíaca, que tomou um tiro, sei lá, e
que ficou sem respirar, não come mais nem anda mais, nada
disso, pode passar pelo procedimento que for, mas é o que,
quando eu era criança, pelo menos, todo mundo concordava
em chamar de “morto”.
Vaias crescem até o final da fala.
DEPUTADO. Esse nome aí, “necropolítico”, isso também

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é uma “grande” novidade do início do século passado,
uma rubrica de sociologia aí, de filosofia, coisa de francês,
inclusive de conotação negativa. Se a palavra “morto” virou
palavrão, tudo bem, a gente chama de outra coisa, mas essas
pessoas, me desculpe, deviam ser enterradas ou cremadas,
como muitas ainda são, e pronto, ficaria por isso. São quinze
bilhões de pessoas no mundo. Veja bem, quinze bilhões, se
agora ninguém mais sair do mapa, como é que fica?
ATIVISTA. O senhor fala “sair do mapa”, como se pessoas
fossem alfinetes. Ser enterrado, ser cremado, continua sendo
uma escolha de pessoas em diversos arranjos de vida. Há
quem não espere o infarto para ser cremado, ninguém mais
se assusta com procedimentos de eutanásia, de transição
assistida, por diversos motivos, mas isso tem que ser uma
escolha, não uma imposição.
DEPUTADO. A senhora sabe quanto o Estado investe, hoje,
em “assistência necropolítica”?
ATIVISTA. Menos do que gasta com a assessoria dos deputados.
Aplausos e risos.
DEPUTADO. Vou resumir. Nós quatro aqui somos o que? Vivos.
Aí na plateia são todos vivos, pelo que eu estou vendo daqui, pelo
menos. Eu duvido que algum de nós, por mais vinculado que seja
a essa causa de necropolítica, sei lá o quê, eu duvido que alguém
esteja disposto a trocar esse estado de vivo para ser perenizado,
embalsamado, mumificado, sei lá. Se é tudo tão simples, tão

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igualitário, então porque nenhum ativista necropolítico se
arrisca a virar voluntariamente um necropolítico?
Poucos aplausos.
HOST. Nesse caso, deputado, acho que estamos diante de
uma ocasião especial. (à Ativista) Não é verdade?
ATIVISTA. É verdade, sim. Meu companheiro está aqui na
plateia e nós combinamos que, a partir de hoje, seguiremos
atuando como ativistas da necropolítica, mas que eu mesma
passarei à condição de necropolítica, voluntariamente. É algo
que quero fazer há algum tempo e, numa prova de amor, ele
me apoiou nesse projeto.
HOST. Onde ele está?
ATIVISTA. Ali, na plateia. (acena) Eu iniciei um processo de
interrupção assistida essa manhã e, em poucos minutos eu
estarei presente aqui não mais apenas como uma ativista da
necropolítica, mas como uma necropolítica ativista.
HOST. E isso deve acontecer quando?
ATIVISTA. A qualquer instante.
Rumores e aplausos.
HOST. Deputado, o senhor ficou bastante silencioso.
Deputado vai dizer qualquer coisa, desiste.
ATIVISTA. É muito comum que uma prova de amor ou de
coragem verdadeira silenciem um fascista.
Aplausos.

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2.

Home office.
Médico, de pijama, trabalha diante de um computador. Entra
Bióloga, sonolenta, de camisola, em estágio avançado de
gravidez e, em silêncio, observa Médico que, depois de um
tempo, repara na chegada de Bióloga.
MÉDICO. Acordou?
BIÓLOGA. Estava meio sem ar.
MÉDICO. Quer que eu pegue o travesseiro alto, no guarda-
roupa?
BIÓLOGA. Não precisa.
Bióloga senta-se, com alguma dificuldade.
BIÓLOGA. Quero parir logo.
Médico ri.
MÉDICO. Um telefonema e, em duas horas, a gente dá entrada
no Centro Cirúrgico.
BIÓLOGA. Não, obrigada.
MÉDICO. Não, porque...
BIÓLOGA. Você sabe muito bem o porquê.
MÉDICO. Porque certa amiga sua, com nome de índio, que
alega ser atriz, doula e taróloga, colocou na sua cabeça que é
muito relevante para o espírito humano que você se submeta
a parir sem intervenções médicas – como se isso fosse
sequer possível – instaurando assim uma espécie de evento

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cósmico só conhecido por uma pequena casta de vestais
visionárias e cujo portal metafísico astral se abrirá em meio
às suas lancinantes dores de contração.
Bióloga ri.
BIÓLOGA. Para. Eu não posso rir, esqueceu?
MÉDICO. Incontinência?
BIÓLOGA. A minha azia piora.
MÉDICO. Azia?
BIÓLOGA. É. Por alguma razão que a ciência não alcança.
MÉDICO. Sua amiga deve ter alguma explicação cósmica para
isso também.
BIÓLOGA. Esquece essa história, pelo amor de Deus. Não
tem nada a ver com ela. Além do mais eu só disse que acordei
com falta de ar, eu não reclamei da falta de ar, nem da falta
de sono, nem da azia, nem da hemorroida.
MÉDICO. Da hemorroida você reclama bastante.
BIÓLOGA. Sem detalhes, por favor.
MÉDICO. Vou pegar o travesseiro.
BIÓLOGA. Não precisa.
Silêncio.
BIÓLOGA. Você não vem deitar?
MÉDICO. Daqui a pouco.
BIÓLOGA. São três e meia da manhã.
MÉDICO. A ciência não dorme.
BIÓLOGA. Você não é a ciência.

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MÉDICO. Não, mas preciso fazer minha parte.
BIÓLOGA. Está olhando o que?
MÉDICO. O portal da agência.
BIÓLOGA. Você olha isso mil vezes por dia. Põe um alerta de
atualização do status do projeto e pronto. Você não precisa
ficar colado nesse computador, feito um maníaco.
MÉDICO. Já tentei, mas tem alguma coisa errada com meu
padrão de usuário. E eles ignoram as mensagens que eu
deixo no fale-conosco.
BIÓLOGA. Se vão patrocinar ciência de ponta, deviam cuidar
melhor do sistema deles.
MÉDICO. Para você ver como as forças destrutivas das trevas
da Idade Média ainda estão por toda parte. Não fosse por isso,
uma PhD em biologia evolutiva não escolheria, nessa altura
da história da humanidade, parir em casa, sem intervenções
médicas. Como se isso fosse sequer possível.
Bióloga boceja.
BIÓLOGA. Ai, que bom que essa conversa me deu sono.
Bióloga levanta com dificuldade, Médico faz menção de ajudar,
mas Bióloga sinaliza que não é necessário.
MÉDICO. Eu vou daqui a pouco.
BIÓLOGA. Tudo bem. Mas eu posso te garantir que eles não
vão atualizar o sistema às três e meia da manhã.
MÉDICO. Nunca se sabe o que os conselhos de fundos para
a ciência estão deliberando em Tel Aviv, em Sidney, na
Cidade do México...
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BIÓLOGA. Tel Aviv? Que projeto é esse?
Silêncio.
BIÓLOGA. Que projeto é esse?
MÉDICO. 2355.
BIÓLOGA. O L.U.C.Y?
Médico faz que sim.
BIÓLOGA. Você ia me contar quando?
MÉDICO. Quando você tivesse uma boa noite de sono.
BIÓLOGA. Você deve estar de brincadeira.
Silêncio.
BIÓLOGA. Você esperou eu sair de licença para desenterrar
um projeto que a gente tinha concordado em cancelar.
MÉDICO. A gente tinha concordado em adiar a submissão.
BIÓLOGA. Você esperou eu sair de licença.
MÉDICO. Cento e trinta e sete milhões durante cinco anos.
Mais apoio logístico para todos os outros projetos correlatos,
incluindo os de pesquisa com big data em escala mundial.
Eu não decido isso sozinho, você sabe, mas ainda que eu
decidisse/
BIÓLOGA. Puta que pariu.
Bióloga faz menção de ir embora.
MÉDICO. Amor, espera. Espera! Não estou te escondendo nada.
Eu só queria a hora certa para a gente conversar. Você está no
grupo de discussão do laboratório, isso já foi dito lá mil vezes.
BIÓLOGA. Eu saí do grupo. Você sabe. Por recomendação sua.

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MÉDICO. Me escuta, então.
BIÓLOGA. Isso já passou pelo conselho de ética da I.N.A.?
Médico faz que sim.
BIÓLOGA. E ninguém se opôs à porra de um projeto que
pretende induzir um processo de gravidez em uma mulher,
em uma humana perenizada?
MÉDICO. A gente teve treze indicações a favor, mais as seis abs-
tenções, que foram contadas junto com o voto do presidente.
BIÓLOGA. Quem subscreveu a inscrição?
MÉDICO. O C.I.R.S., a A.N.A. e a Nekrovery de Oslo.
Bióloga chora. Médico vai ampará-la, mas ela o trata com
violência.
BIÓLOGA. Olha para mim. Você me vê todo dia, com essa
barriga crescendo, com essa cara de fantasma, andando
torta desse jeito, sabe por que? Porque eu estou gerando
um bebê, uma menina, a sua filha. Você acha mesmo que faz
sentido simular uma gestação num corpo que já... Num corpo
que... Merda.
MÉDICO. Meu amor, o projeto é seu. A teoria é toda sua.
BIÓLOGA. Eu nunca quis trabalhar com humano.
MÉDICO. É a sua teoria, aplicada a um organismo humano.
BIÓLOGA. É uma pessoa! Uma pessoa no lugar de uma vaca!
Médico ri.
BIÓLOGA. Está rindo do que? Você ia concordar em gerar sua
filha numa vaca? Uma porra de uma vaca morta?

31
Silêncio.
MÉDICO. Você está cansada. Vamos deitar, deixa esse
computador aí.
BIÓLOGA. Sai.
MÉDICO. É uma pesquisa, meu amor. Um projeto. Milionário,
eu sei. Mas é só mais um projeto. Entre tantos que já estão
esperando aprovação das agências. Ou a gente faz isso, antes de
todo mundo, do jeito certo, com você ajudando a gente a tomar
decisões, ou outro grupelho de merda toma a nossa frente e faz
isso de qualquer jeito, sem nenhum escrúpulo ético, sob alguma
fachada de grupo de pesquisa confessional e aí sim, a gente vai
ter um problema. Todo mundo vai ter um problema.
Silêncio.
BIÓLOGA. Eu não vou conseguir.
MÉDICO. Meu amor, escuta. A voluntária foi perenizada
quando estava grávida de quatro meses. O feto foi criogenizado
em perfeitas condições de ressuscitação.
Bióloga passa mal e vomita, Médico ajuda, limpando a Bióloga e
o chão com a própria camisa.
MÉDICO. Deixa que limpo isso. Eu vou pegar água para você.
Sai Médico. Silêncio. Volta Médico, com água. Médico serve água
a Bióloga.
BIÓLOGA. A gente tinha combinado. A gente tinha prometido
que não ia fazer isso.
MÉDICO. A gente falou muito disso tudo, é verdade. Mas olha

32
para mim. Eu não sou o Doutor Frankenstein, nem Jesus
brincando de acordar Lázaro. A nossa voluntária não é um
Golem. É uma pessoa perenizada ciente dos riscos. A gente
está fazendo pesquisa de ponta pelo bem dela.
BIÓLOGA. E por cento e trinta e sete milhões.
MÉDICO. Pelo bem das pessoas. Você sabe muito bem quanta
pesquisa está agora mesmo consumindo muito mais dinheiro
de fundos humanitários pesquisando tecnologia para armas
de destruição em massa. A gente está pesquisando a
manutenção da vida, meu amor.
Alerta soa no computador. Médico vai até o computador e
verifica o resultado na tela. Médico olha para a esposa.
MÉDICO. A gente está pesquisando a manutenção da vida.

3.

Administração do cinema.
CLIENTE. Isso eu já entendi. Eu quero saber é se você vai
tomar uma decisão. Porque, se não for, eu tomo. Isso é caso
de polícia.
ATENDENTE. Só um segundo.
CLIENTE. De polícia! O que esse cara fez é crime.
ATENDENTE. Estou tentando falar com o gerente.
CLIENTE. Sua colega disse que a gerente é você.

33
ATENDENTE. Eu estou substituindo.
CLIENTE. Está o que?
ATENDENTE. Um segundo, por favor.
CLIENTE. Deixa que eu chamo a polícia.
ATENDENTE. Senhor, eu estou só vendo a melhor forma de
atender. Eu garanto que as providências serão tomadas.
CLIENTE. (em um rompante) Um filho da puta! Filho da puta!
ATENDENTE. Como?
CLIENTE. Não. Desculpa! (controlando-se) O cara lá. Meu Deus.
ATENDENTE. Entendi, senhor.
CLIENTE. Desculpa.
ATENDENTE. Tudo bem.
CLIENTE. Eu estou num estado que.
ATENDENTE. Eu imagino.
CLIENTE. Imbecil. Nossa. Nunca imaginei ter que passar por
isso. Nunca. É o fim. O mundo não deu certo. Ponto.
Cliente tenta reter as lágrimas.
ATENDENTE. O senhor aceita um copo d’água? Quer sentar?
Atendente alcança ao Cliente um copo d’água.
CLIENTE. Meu Deus...
ATENDENTE. O senhor precisa sentar.
Silêncio.
ATENDENTE. Está se sentindo melhor?
Cliente faz que sim.
ATENDENTE. Aqui, a água.

34
Cliente bebe a pequenos goles.
ATENDENTE. Antes de qualquer coisa, eu quero pedir des-
culpas. Sinceramente. Em meu nome e em nome do cinema.
CLIENTE. Imagina. Você não fez nada, vocês me ajudaram.
Imagina.
ATENDENTE. Eu insisto. O senhor passou por uma situação
estressante, desnecessária, desagradável. Eu sinto muito.
Mesmo.
CLIENTE. Ele ainda está lá. Ele ficou lá. Você sabe, né?
ATENDENTE. Quem?
CLIENTE. O cara. O louco, o maníaco imbecil.
ATENDENTE. Eu passei uma descrição para o pessoal de
segurança e ele vai ser retirado da sala. Eu prometo.
CLIENTE. Ele tem que ir para a cadeia. Tem umas cinquenta
pessoas lá de testemunha.
ATENDENTE. A gente pode prestar queixa. Tem um protocolo
padrão. A gente apresenta vídeo das câmeras de segurança,
mas sem áudio, porque a gente está com, a gente está com
um problema no, no microfone do. No microfone. Bom, o caso
é que agora eu estou mais preocupada com o senhor do que
com ele. O senhor perdeu o filme quase todo. Já pensou? Eu
vou cadastrar o senhor como cliente premium, com entrada
gratuita em doze sessões e o senhor pode.
CLIENTE. Eu pago pelo meu ingresso.
ATENDENTE. Perfeitamente.

35
CLIENTE. E posso pagar pelo do meu marido também.
ATENDENTE. Claro, sem dúvida.
CLIENTE. Não estou aqui pedindo esmola do cinema.
ATENDENTE. Eu sei.
CLIENTE. Eu quero justiça.
ATENDENTE. Perfeitamente. Eu quero oferecer um presente
de desagravo, só isso. Não apaga o que aconteceu, mas é
uma forma de dizer que estamos do seu lado.
CLIENTE. Eu tenho que voltar para a sala. O Jonas ficou
sozinho lá. Saí na loucura, deixei ele sozinho.
ATENDENTE. Já acionamos a segurança.
CLIENTE. Tem alguém de vocês lá com ele? Com o Jonas?
Atendente faz que sim.
CLIENTE. Você pode perguntar como ele está?
ATENDENTE. Faço isso agora mesmo.
CLIENTE. Não. É melhor eu voltar lá.
ATENDENTE. Tem certeza?
Cliente reflete um pouco, faz que sim.
ATENDENTE. Eu acompanho o senhor, então.
VOZ FEMININA. (fora de cena) Senhor? O senhor não pode entrar.
Ela está atendendo um cliente. Não, senhor. De modo algum.
OUTRO. (fora de cena) Sai da minha frente!
VOZ FEMININA. (fora de cena) Senhor?
OUTRO. (fora de cena) Sai da minha frente, porra!
A porta é aberta com violência. Entra Outro.

36
OUTRO. A senhora é a gerente? Eu vim falar com a senhora
e com esse rapaz.
CLIENTE. O que você tem pra me dizer? (saca um dispositivo)
Eu vou gravar isso, viu?
OUTRO. Pode gravar.
CLIENTE. (agita o dispositivo) O que você tem pra me dizer?
O que é?
ATENDENTE. Senhores, por favor...
CLIENTE. Eu vou prestar queixa desse criminoso.
OUTRO. Vai tomar no cu, rapaz!
CLIENTE. Estou gravando.
OUTRO. Vai tomar no cu!
ATENDENTE. Pelo amor de Deus.
OUTRO. Que Deus o quê! Você sabe o que esse moleque fez
lá dentro?
ATENDENTE. O senhor está fora de si.
CLIENTE. Deixa ele falar! Quem perde é ele.
OUTRO. Que é? Está gravando? Você acha que eu me importo?
ATENDENTE. O gerente está a caminho. Ele vai conversar
com vocês/
OUTRO. Sua colega disse que a gerente é você.
ATENDENTE. Eu estou substituindo. (pelo comunicador)
Segurança?
CLIENTE. Vai repetir o que falou para mim lá dentro?
ATENDENTE. (pelo comunicador) SG5 administração cinema.

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OUTRO. Vim aqui para isso mesmo. Eu sou um pai de família,
rapaz! Eu não preciso embarcar em moda.
ATENDENTE. (pelo comunicador) QSL SG5 administração
cinema.
OUTRO. Você trouxe um, um cadáver para uma sala de cinema.
CLIENTE. Que foi que você disse?
ATENDENTE. TKS.
OUTRO. Não sou obrigado a aceitar gente morta arrastada
em um saco para dentro do shopping, porra! Para um cinema.
Puta que pariu!
ATENDENTE. Senhor! Por favor!
OUTRO. Esse moleque abriu o saco do cadáver e deu um...
ATENDENTE. Eu estou pedindo ao senhor! Não diga mais nada!
OUTRO. Um beijo. Deu um beijo num cadáver.
CLIENTE. Eu não preciso esconder o meu amor!
OUTRO. Estou me fodendo pro seu amor. Tinha criança
naquela sala e ninguém merece ver você beijando ninguém,
quanto mais um/
CLIENTE. Um o quê?
OUTRO. Você sabe muito bem.
CLIENTE. Um o quê? Um homem?
OUTRO. Um homem?
CLIENTE. O senhor nunca beijou um homem?
OUTRO. Você está fazendo piada, seu moleque?
CLIENTE. Que foi? Vai repetir o que falou lá dentro? Ou ficou

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com medo, agora?
OUTRO. Tenha santa paciência. Não quer enterrar seu amigo,
tudo bem, faz esse troço aí, como é? Pereniza, faz alguma
coisa. Não deixa a pessoa apodrecer, assim.
CLIENTE. Eu não tenho vergonha de quem eu amo. E não me
sinto na obrigação de perenizar ninguém e ele nunca quis
ser perenizado. Meu namorado é um cidadão. Muito mais
do que você, seu reacionário de merda! O corpo dele é a
presença dele e se eu não tenho vontade – porque a questão
não é dinheiro – se eu não tenho vontade e se ele nunca teve
vontade de ser perenizado, nós vamos ficar juntos pelo tempo
que a gente quiser e não vai ser a cara feia de ninguém que vai
mudar isso, porque nessa democracia de merda, ao menos a
presença dele, numa sala de cinema, é garantida por lei.
OUTRO. Por lei?
Atendente faz que sim.
OUTRO. Por lei?
CLIENTE. É, por lei!
OUTRO. É o fim do mundo mesmo.
CLIENTE. E eu não tenho vergonha de demonstrar meu
amor pelo homem da minha vida, ainda que isso fira a sua
moralzinha hipócrita de merda.
OUTRO. Olha aqui, meu filho. Eu nem consegui ver se era um
homem. A porra daquele cadáver já está podre.
CLIENTE. Não chame ele de cadáver!
OUTRO. Um cadáver podre, fedendo e espalhando doença.
39
CLIENTE. Um cachorro espalha mais doença que um corpo
humano em decomposição.
OUTRO. Ah, tá.
CLIENTE. Uma criança é mais perigosa para a saúde de
quem está naquela sala do que o corpo de alguém em
decomposição. Eu não tenho vergonha do Jonas. Eu não
tenho vergonha do corpo dele.
OUTRO. Que vergonha, seu idiota? Eu estou falando de nojo,
porra!
CLIENTE. Lave sua boca imunda para falar dele!
OUTRO. Nojo daquela porra que nem parece mais gente!
CLIENTE. Você não fala assim do Jonas na minha frente!
ATENDENTE. Chega!
OUTRO. Não sei nem que é Jonas! Por mim aquilo podia ser
um porco!
CLIENTE. Não diga isso!
OUTRO. Um monte de resto catado numa porra de uma vala!
ATENDENTE. Chega!
CLIENTE. Filho da puta!
Cliente larga seu dispositivo e ataca fisicamente o Outro. Entra
a equipe de segurança e leva os dois para fora, em meio a uma
confusão violenta.
Atendente senta-se a um canto e chora convulsivamente.

40
41
4.

Dia de visita.
Homem folheia um documento.
HOMEM. É só assinar?
MULHER. E rubricar as páginas.
HOMEM. E acabou? Pronto?
MULHER. Tem ainda a parte da burocracia. Cartório, essas
coisas. No todo deve levar uns quarenta dias, mais ou menos.
HOMEM. E aí acabou?
MULHER. Claro.
Homem ainda folheia o documento.
HOMEM. Como estão os meninos?
MULHER. (longa pausa) Bem.
Silêncio.
HOMEM. O advogado está acompanhando o caso bem de perto. O
novo, o que entrou agora. Ele esteve no fórum, semana passada.
Na verdade, ele me explicou que, do jeito que virou tudo, ele agora
está tentando ganhar tempo. O tempo dessa vez está ao meu
favor. Quem diria? Vai sair uma decisão do Supremo, que talvez se
reverta em ganho pro caso. Em mais um ou dois meses a gente
deve ter mais clareza. De tudo. A sentença não deve demorar a
sair. Essa sentença, do outro caso, a sentença do Supremo.
MULHER. Não muda nada.
HOMEM. Muda. Isso pesa muito. Ele acha que vai ser fixada

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uma jurisprudência. O advogado, o novo, ele disse que já há um
precedente que pode ser usado a meu favor e, com a questão
dos minorantes, quer dizer, dos atenuantes, pode ser que/
MULHER. Eu quero que você assine isso que está aí na sua
mão. Só isso. Foi para isso que eu vim aqui.
Silêncio.
Homem assina a última folha e rubrica as demais.
Mulher vai pegar o documento, Homem retém o documento.
HOMEM. Você pode conversar comigo agora?
MULHER. Não tenho nada para conversar com você.
HOMEM. É a primeira vez que você vem me ver.
MULHER. Segunda.
HOMEM. Aquela não conta. Naquele dia você não veio para
conversar comigo.
MULHER. (ri) Por que será?
HOMEM. Deixa eu te falar. Me escuta ao menos dessa vez. Até
agora, você não me ouviu.
MULHER. Eu penso nisso o tempo todo. Eu acho que eu já ouvi
demais, sabe? Já li demais. Isso tudo já virou notícia. Já virou
fórum, livro, reportagem, meme... Sua vida foi devassada,
minha vida foi devassada, a vida dos seus filhos foi devassada.
Eu não quero mais saber de nada. Eu quero esquecer. (indica
o documento) Me dá isso aqui.
HOMEM. Como estão os meninos?
MULHER. Estão bem. Eu já disse.

43
HOMEM. Eles perguntam?
MULHER. De você?
Homem faz que sim.
MULHER. Eles já entendem tudo. Eles sabem muito bem o
que está acontecendo.
Homem esconde o rosto entre as mãos.
MULHER. E eu não vou trazer eles aqui, em hipótese alguma.
HOMEM. Não. Não é isso. Não é para trazer. Mas talvez a
gente pudesse se falar.
MULHER. Eles não querem.
Silêncio.
HOMEM. Eu não tinha como contar antes.
MULHER. Antes quando? Desde quando você sabe que não
gosta de transar com gente viva?
HOMEM. Não é assim.
MULHER. Não?
Silêncio.
MULHER. E esse grupo que vocês formaram? O grupo da
internet. Você fala com eles desde quando? Desde antes de a
gente ter filho?
Homem hesita, mas faz que sim.
MULHER. Antes de a gente se casar?
Homem hesita longamente, mas faz que sim.
MULHER. Então você teve tempo de sobra para me contar o
que você quisesse.

44
HOMEM. Não é assim.
MULHER. Não é assim o quê? (pausa) Você disse que queria me
falar, não foi? Então? Eu estou ouvindo, agora. Eu estou te ouvin-
do faz vinte anos, aliás. Por que você não contou isso tudo antes?
HOMEM. Eu não contei porque eu te amo.
MULHER. Ah, tá! Me dá logo esse papel, que eu tenho que sair!
HOMEM. Eu não contei porque eu achei que fosse passar. Eu
achei que fosse. Depois eu achei que eu pudesse de algum
modo, não sei. Que eu pudesse dar um jeito de. Não sei.
MULHER. Eu olho para você, eu sinto nojo.
Silêncio.
MULHER. Eu fico imaginando você numa orgia.
HOMEM. Não era assim.
MULHER. Sete pessoas! Isso não é uma orgia? É o que, então?
Silêncio.
MULHER. E aí entra lá uma criatura imbecil levando essa
menina, essa criança.
HOMEM. Não era uma criança.
MULHER. Era uma menina de dezessete anos. Sua filha tem
quinze.
HOMEM. É diferente. Ela não era menor de idade.
MULHER. Não era menor por que? Porque era uma
necropolítica? É isso que você vai dizer? Que não existe
uma legislação para isso? Que o estatuto da criança e do
adolescente não reconhece aquela menina? Que a constituição

45
ainda não foi reformulada dos pés à cabeça, como isso fosse
sequer possível, do jeito que a gente está indo e que por isso
está tudo bem estuprar? É por isso que ela deixa de ser uma
criança? Se sua filha morre e eu resolvo que ela vai ficar com
a gente, isso faz da sua filha uma coisa para você foder?
HOMEM. Ela concordou! Ela queria.
MULHER. Concordou em ter sexo com um grupo de estupro?
De linchamento?
HOMEM. Linchamento?
MULHER. Foi o que vocês fizeram.
HOMEM. Não era para ser assim. A gente não sabia como
funcionava. O rapaz, o acompanhante dela também não sabia.
MULHER. O acompanhante dela tinha dezenove anos, o que esse
menino sabe da vida? O que a gente sabe da vida? Eu tenho quase
cinquenta. Você tem mais de cinquenta. O que a gente sabe da
vida? Você quer pôr a culpa em quem? No rapaz? Na garota?
HOMEM. Não. Eu não estou falando de culpa. Estou falando
de responsabilidade. As pessoas que estavam lá não eram
monstros. Eu não sou um monstro.
MULHER. Então eu devo ser. Porque eu olho para você. Eu lem-
bro do que a gente atravessou junto. Tanta coisa difícil, tanta coisa
bonita. Eu vejo os meninos brincando. Eu vejo o pé de jabutica-
ba dando flor. A parede de vidro no fundo da casa. Nossa foto de
casamento. Eu vejo aquilo tudo e... Eu só quero te machucar. Eu
quero te ver sangrando, sofrendo. Eu quero muito te ver sofrer!

46
Mulher esconde o rosto entre as mãos.
HOMEM. Eu fiz você sofrer. Vocês. Eu fiz vocês sofrerem.
Silêncio.
HOMEM. Mas eu não sou só o homem que errou. O homem
que fez as outras coisas, coisas boas, por você, pelos meninos,
esse homem sou eu também.
MULHER. O que você fez de bom é a parte que mais me
destrói. É a parte que dói mais.
Após uma pausa, Homem entrega o documento para Mulher.
Mulher pega o documento, confere rubricas e assinaturas e o
guarda.
MULHER. Eu não volto mais aqui.
Homem aquiesce.
MULHER. Você quer dizer mais alguma coisa?
HOMEM. Quero. Quero falar com os meninos.
MULHER. Não.
HOMEM. Quando eles crescerem, se eles quiserem me
procurar, eu vou poder falar com eles. É meu direito.
MULHER. Não é.
HOMEM. É direito deles.
Mulher dá de ombros.
HOMEM. Eu queria ao menos que eles soubessem que o pai
deles está brigando, na justiça, para resolver essa questão.
O pai deles não é um criminoso. Quando for firmada essa
jurisprudência/

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MULHER. Jurisprudência?
HOMEM. Jurisprudência é quando/
MULHER. Eu não estou nem aí. Não estou discutindo uma lei.
HOMEM. Como não? O que está me mantendo preso aqui é
uma lei.
MULHER. Estou discutindo o que você fez. Eu não preciso de
uma lei para saber que é errado você fazer sexo com uma
menina perenizada de dezessete anos, se o acompanhante
dela concordou ou não. Por que você insiste em me falar de
lei? Não foi por uma lei que eu me apaixonei. Não foi com uma
lei que eu me casei. Você era o meu marido. Não era uma lei.
Por que você fica falando em lei? Essa menina não era uma
lei. Era a filha de alguém.
Mulher senta outra vez, abaixa a cabeça, parece chorar. Homem
afaga o cabelo de Mulher, com algum receio. Mulher se afasta.
HOMEM. Eu te amo.
Silêncio.
HOMEM. Não estou falando isso por falar.
MULHER. Eu sei.
HOMEM. Eu não quis machucar aquela menina. Aquilo fugiu
do controle. Quando eu vi, era tarde demais. Para todo mundo.
Mulher e Homem se encaram.
HOMEM. Tarde demais.
Silêncio.

48
49
5.

Sala de jantar.
Filha em silêncio junto à mesa, sobre a qual repousa um prato
com o jantar, intacto e já frio.
PAI. (fora de cena) Amor, você viu o pijama?
MÃE. (fora de cena) O quê?
PAI. (fora de cena) O pijama dele! Está ficando frio.
MÃE. (fora de cena) Está em cima da cama.
PAI. (fora de cena) Em cima da cama não tem pijama nenhum.
MÃE. (fora de cena) Em cima da cama! Deixei aí não faz nem
dez minutos!
PAI. (fora de cena) Eu estou no quarto, olhando para a cama.
Não tem pijama nenhum aqui.
Entra Mãe. Filha se retrai. Mãe atravessa a sala e sai.
MÃE. (fora de cena) Aqui, ó.
PAI. (fora de cena) Tá, mas como é que eu ia adivinhar?
MÃE. (fora de cena) Eu falei “em cima da cama”, não falei?
PAI. (fora de cena) Devia ter dito “embaixo do travesseiro”, aí
eu encontrava.
MÃE. (fora de cena) Me dá que eu visto ele.
PAI. (fora de cena) Não precisa.
MÃE. (fora de cena) Me dá ele aqui.
PAI. (fora de cena) Não precisa! Já disse! Deixa que eu ponho
ele na cama. Leva isso aqui para o banheiro.

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MÃE. (fora de cena) Melhor pôr logo para lavar.
PAI. (fora de cena) Então leva lá para o fundo. Deixa que eu
cuido dele.
Entra Mãe, trazendo consigo roupas e toalhas usadas. Filha se
retrai. Mãe atravessa a sala e sai.
Silêncio.
Entra Mãe e repara em Filha. Mãe senta-se ao lado de Filha.
Longo silêncio.
MÃE. Eu fiz do jeito que você gosta.
Silêncio.
MÃE. Hoje você tem que comer.
FILHA. Por que?
MÃE. Você não sabe?
Silêncio.
MÃE. Se você se comportar como uma criança, a gente vai te
tratar como uma criança.
Silêncio.
MÃE. Quando você terminar de comer, a gente conversa.
FILHA. Eu não vou comer!
MÃE. Chega! Cansei. Isso é coisa séria. Estou de saco cheio
dessa piada.
FILHA. Eu não estou brincando.
MÃE. Então come!
FILHA. Eu não estou com fome.
PAI. (fora de cena) Estão precisando de mim?

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MÃE. (fala alto, em direção ao Pai, fora de cena) Não! (fala
consigo mesma, sarcástica) Já ajudou o suficiente...
Silêncio.
MÃE. Você vai dormir aqui, sentada, na frente de um prato de
comida?
FILHA. Você que disse que eu não posso levantar.
MÃE. Se você fosse um bebê, eu te enfiava comida goela
abaixo. Eu apertava sua bochecha assim, ó, enfiava uma
colher de sopa e fazia você engolir. Aliás eu fiz isso, com
você e com seu irmão, mais de uma vez. Podia reclamar
quem quisesse, não estou nem aí, minha mãe fez muito pior
e eu estou aqui, inteira. Mas você não é mais um bebê. Você
entende isso? É você que tem que querer comer.
FILHA. Eu não quero.
MÃE. Vai passar fome até quando?
FILHA. Não sei. Tanto faz.
Silêncio.
MÃE. Você está fazendo isso por que, filha? Me explica, pelo
menos. Você está triste? Você está com raiva?
FILHA. Até parece que você se importa.
MÃE. Você acha mesmo que eu não me importo com você? Eu?
FILHA. Você só reclama de mim. Só briga comigo o tempo
todo. Tudo que eu faço está errado.
MÃE. Isso não é verdade.
FILHA. Me esquece, mãe. Quer que eu fique aqui, eu fico. Eu

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fico a noite toda, a semana toda. Mas me deixa em paz.
MÃE. Eu não quero que você fique encostada aqui a semana
toda, nem a noite toda nem mais um minuto que seja, filha.
Eu quero que você saia daqui e vá para o seu quarto, eu quero
que você ligue a TV, eu quero que você tire a bicicleta da
garagem e dê uma volta lá em baixo, eu quero levar você para
passear na casa da sua prima, eu quero te levar para ver um
filme, eu quero que faça o que você gosta de fazer. Mas, para
tudo isso, você precisa comer. Você está a quatro dias sem
comer, minha filha. Quatro dias.
FILHA. Ele também não come.
Silêncio.
MÃE. Quem não come?
Silêncio.
MÃE. Seu irmão? É por isso que você não quer comer? Porque
seu irmão não come?
FILHA. Sai, mãe. Me deixa só.
Mãe afaga Filha.
MÃE. Filha, seu irmão mudou. Você sabe o que aconteceu.
Seu irmão sofreu um assalto e reagiu. Quando ele reagiu/
FILHA. Eu sei.
MÃE. Então.
FILHA. Por que vocês trouxeram ele de volta?
MÃE. Como assim?
FILHA. Por que ele voltou para cá?

53
MÃE. É seu irmão. É meu filho. É nossa família.
FILHA. Não é mais!
MÃE. Não fala isso, filha. A gente já sofreu o bastante. Não
fala mais isso.
FILHA. Vocês ficam o dia todo cuidando dele e ele só ri. Ele
está rindo da gente.
MÃE. Seu irmão não está rindo. Seu irmão. Minha filha, o que
é isso? A gente decidiu que seu irmão ia ficar aqui. A gente
conversou.
FILHA. Eu menti. Eu não queria que ele voltasse.
MÃE. Por que?
FILHA. Porque ele morreu.
MÃE. Se você anda dizendo isso assim, na rua, com seus
amigos, eu não tenho como te impedir. Mas aqui, nessa casa,
a gente não fala essa palavra.
FILHA. Ele morreu, mãe. Ele reagiu a um assalto, ele levou
um tiro no rosto e/
MÃE. Chega, filha. Chega. Hoje eu não aguento brigar. Hoje
eu não aguento. Eu estou cansada, filha.
Longo silêncio.
FILHA. A Nina também voltou.
MÃE. Eu sei.
FILHA. Ela fala.
MÃE. Eu sei. A Nina é de uma família muito rica. A gente não
tinha dinheiro para isso. O tiro machucou muito seu irmão e.

54
Talvez um diz a gente consiga, não sei. Agora a gente tem que
tomar conta dele, assim, de jeito que ele está.
FILHA. Mãe...
MÃE. O que?
Silêncio.
MÃE. Fala, filha, pode falar.
FILHA. Eu tenho vergonha dele. Eu tenho vergonha do Pedro.
Filha parece chorar, Mãe a acalenta.
MÃE. Seu irmão mudou, mas é seu irmão. A gente gostava
tanto dele antes, não era? Pois então? É difícil, eu sei. Mas a
gente vai ter que ser forte.
FILHA. E se ele não quisesse voltar?
MÃE. Filha, na idade do seu irmão, eu e seu pai decidimos
por ele.
FILHA. E por mim?
MÃE. Por você também.
FILHA. Se acontecer alguma coisa eu não quero voltar.
MÃE. Não pensa nisso, filha. Quando você for adulta, você
decide. Até lá, a gente vai decidir. Eu e seu pai.
FILHA. Eu não quero voltar.
Mãe acalenta Filha.
MÃE. Não pensa nisso.
FILHA. Promete que não me traz de volta?
MÃE. Ninguém volta de lugar nenhum, filha. Isso não existe.

55
Isso é lenda, é uma mitologia, uma invenção. Depois você vai
entender melhor.
FILHA. Promete, mãe?
Mãe acalenta Filha.
Pai aparece à porta, sem ser notado.
MÃE. Filha?
FILHA. O que?
MÃE. Você pode comer, agora?
Filha faz que não.
MÃE. Por que, meu amor?
FILHA. Se a gente morre de fome, a gente não volta.
MÃE. O que?
FILHA. Se a gente morre de fome, não dá para trazer de volta.
MÃE. Quem te falou essa besteira? É por isso que você não quer
comer? Você quer passar fome para. (pausa) É por isso, filha?
Filha parece chorar.
MÃE. Meu amor, deixa eu te dizer uma coisa: nada disso é
culpa sua, isso não é culpa de ninguém, filha. Aconteceu uma
coisa terrível com o seu irmão, mas você não tem que passar
por nada assim. Você vai crescer, você vai ter filhos, você vai
ter uma vida diferente da vida do seu irmão. Completamente
diferente. O papai e a mamãe estão sem dinheiro agora, mas
de repente, daqui a um tempo, seu irmão vai te explicar que
morrer é só uma palavra feia que antigamente as pessoas
usavam. Lembra do filme do Lindo Quarto Azul?
FILHA. Infinito Quarto Azul.
56
MÃE. Isso. Infinito Quarto Azul. Você viu o filme tantas vezes.
Como é que o garotinho falava?
FILHA. É bom lembrar de novo do que eu nunca esqueci.
MÃE. É bom lembrar de novo do que eu nunca esqueci. E o
que isso quer dizer?
FILHA. Que era ele o tempo todo.
MÃE. O tempo todo, filha. Que nem seu irmão, agora.
Filha parece chorar, Mãe a afaga.
MÃE. Agora, isso de passar fome para a gente não te trazer
de volta, meu amor, isso não existe. É uma brincadeira de
mau gosto de quem te contou essa história.
Pai se aproxima da mesa e, finalmente, é notado por Mãe e por
Filha. Pai abraça Filha longamente, em silêncio.
Desfeito o abraço, Pai retira o prato da mesa e vai até a cozinha.
Barulho do micro-ondas em operação.
Pai retorna e põe o prato na mesa.
MÃE. Seu castigo acabou. Você só come se quiser.
Filha não se aproxima do prato.
MÃE. Prova, filha.
Pai vai até o prato, monta uma pequena colherada e aproxima da
boca da Filha, que come.

57
6.

Talk show, ainda.


ATIVISTA. Absolutamente incapazes de empatia. Não conse-
guem se pôr no lugar de ninguém, de compartilhar da dor de nin-
guém. Levam suas vidas como se fossem o centro do mundo e
são terrivelmente vorazes em roubar as narrativas de quem quer
que seja, para encaixar o mundo, a fórceps, em um modelo que
só serve a uns poucos eleitos. Querem negar aos que são diferen-
tes a própria condição de sujeito, porque acham que essa massa
gigante da qual cada um deles depende só pode existir como ob-
jeto, como fonte de exploração, exploração concreta e, sobretudo,
simbólica. E são capazes de destruir subjetividades e lugares de
fala em prol de um modelo de sociedade de exploração. Um mo-
delo falido, fruto de um capitalismo falido, binário, falocêntrico e
gore, que fede a século XX. Ainda alegam o valor do mérito, mas
se agarram feito carrapatos aos privilégios de classe e se fecham
em pequenas, em micro corporações. Sobem muros em volta
dessas ilhas artificiais e fecham os olhos para o resto do mundo.
Mas o tempo ao qual eles se acorrentam passou. Acabou. Não dá
mais. E se esperam, com argumentos de um outro tempo, atra-
vessar como um trator em cima dos que estão trabalhando por
um futuro mais igualitário, estão fadados ao fracasso. Ao absoluto
fracasso. Vão perder mais essa guerra, como já perderam tantas.
Aplausos.

58
HOST. Deputado, últimas palavras?
DEPUTADO. Eu já disse o que tinha para dizer. Não retiro uma
vírgula de nada do que eu falei. (à Ativista) Nem permito que
falem por mim.
Murmúrios.
ATIVISTA. Talvez porque falar pelos outros seja algo que o
senhor tenha tentado fazer aqui o tempo todo.
Aplausos.
HOST. Últimas palavras, Professora?
PROFESSORA. Ainda no século VIII, no Tibete, o Livro da
Libertação Liminar, um texto sagrado do budismo tibetano,
registrou um pensamento que expressa de modo muito direto
o que debatemos aqui, hoje, e eu peço licença para citar. Diz
assim: “Tu te sentes atormentado, amargurado e acossado.
Tremes. Teu espírito está disperso, vacilante e difuso. Terás
apenas um pensamento: ‘Estou morto, o que posso fazer?’”. O
conteúdo é um tanto ofensivo, mas é preciso guardar o sentido
histórico do discurso. “’Estou morto, o que posso fazer?’ E, com
este sentimento, teu coração ficará vazio e frio. Tu te sentirás
impregnado de infinita tristeza interior. Mesmo que tentes entrar
nove vezes em teu cadáver, este estará gelado se for inverno ou
decomposto se for verão, ou ainda tua família já o terá sepultado
ou incinerado, ou então as feras o terão despedaçado. Por isso
te sentes tão infeliz e por isso queres desaparecer nas fendas
e nas rochas.” Esse texto é prova de uma passagem de tempo

59
no que entendemos por experiência humana. Foi escrito no
século VIII, ficou perdido por meio milênio até ser redescoberto
no século XIV e só foi traduzido para as línguas ocidentais no
século XX. Mas o caso é que agora podemos olhar para trás e
ver que toda essa dor mencionada ali foi superada. Ou pode ser
superada. A experiência humana se torna complexa e agora
esse que dizia “Estou morto, o que posso fazer?”, esse que dizia
“O que eu não daria para possuir um corpo qualquer!”, pode
dizer esse é o meu corpo, eu sou um necropolítico, faço parte da
sociedade e sou, eu também, responsável por ela.
Aplausos.
PROFESSORA. No século VIII, no século XIV ou no século XX não
sabíamos o que sabemos agora, não podíamos o que podemos
agora, mas mesmo no Livro da Libertação Liminar se pregava
ao que sofria pelo processo de descontinuação da vida que este
poderia atravessar a dor que eu descrevi há pouco dirigindo seu
pensamento, sua meditação, ao Amor. Eu penso que, mesmo
depois de uma virada histórica tão imensa, nossa missão
continua a mesma. (fala olhando para a Ativista) É preciso, cada
vez mais, que nosso sentimento se volte para o Amor.
Ativista sorri enternecida.
Aplausos.
Ativista parece desmaiar.
Deputado tenta acudir Ativista.

60
7.

Visita do técnico de assistência.


ARQUITETO. Não sei se consigo.
TÉCNICO. A gente tem tempo. Não precisa pressa.
ARQUITETO. Você faz isso sempre?
TÉCNICO. É meu trabalho.
ARQUITETO. É difícil ficar assim.
TÉCNICO. O senhor está excitado? Sexualmente excitado? Se
for isso, é uma reação comum.
ARQUITETO. Não.
TÉCNICO. Nervoso?
ARQUITETO. Nervoso. Constrangido.
TÉCNICO. Estou aqui como um instrutor, um técnico, mas eu
quero que o senhor pense em mim como um amigo, também.
Silêncio.
TÉCNICO. O senhor trabalha com o que?
ARQUITETO. Sou arquiteto. Fui. Não sou mais.
TÉCNICO. Mudou de ramo?
ARQUITETO. Não. Parei. Parei por um tempo. Não sei se
volto. Estou numa fase da vida, numa condição que. Estou
aprendendo a morrer.
TÉCNICO. Se o senhor prefere chamar assim.
ARQUITETO. Prefiro. Claro. É uma questão política, até. Eu
não quero, não me sinto obrigado a passar por nenhuma

61
estabilização, perenização, guarda de identidade, nada
disso. Eu quero morrer. De fato. Eu quero ser sepultado
imediatamente, sem deixar nenhum traço, nenhum simulacro,
nada. E não estou dizendo “morrer” como agressão ao seu
trabalho nem à sua posição política, nem como piada de mau
gosto nem como metáfora nem como panfleto, nada disso.
Para mim, a palavra é essa mesmo, não tem outra.
Silêncio.
ARQUITETO. Só que, acredite ou não, para cuidar disso eu
preciso de tempo. Porque além de vencer a burocracia toda,
a gente tem que lidar com uma parte disso que é emocional.
Aí eu pesei tudo e vi que meu trabalho agora tem que ser esse
mesmo: me preparar para morrer.
TÉCNICO. Se o senhor estiver sentindo algum tipo de
angústia, de stress, eu posso indicar ajuda profissional. Uma
conversa. Sem compromisso.
ARQUITETO. Já reduzi ao mínimo as intervenções dos
médicos, eu já me sinto envelhecer. Eu já sinto que a falência
vai tomando conta do meu corpo, do meu cheiro, da textura
da minha pele, vai interferindo na forma como eu passo a
aceitar a dor constante, os limites de função, porque vai tudo
mudando, minha voz, meu jeito de comer, de pensar, de cagar,
de enxergar, de dormir, de me masturbar. Mas isso tem me
dado muita alegria, sabe? Uma satisfação muito profunda, um
senso de integração com meus pais, com a memória deles,

62
com a memória do meu avô, que eu perdi aos quinze anos, com
a memória do avô dele, que tinha o meu nome, mas que eu não
conheci. É uma integração cósmica mesmo, com Niemeyer,
com Gaudi, Vitruvio, com Tolstoi... com o Cristo.
TÉCNICO. Eu não tenho religião.
ARQUITETO. Eu também não.
TÉCNICO. Talvez ajude se eu fizer uma demonstração.
ARQUITETO. Com ela?
TÉCNICO. Sim.
ARQUITETO. Vocês dois, sozinhos? Eu fico olhando, é isso?
TÉCNICO. Sim.
ARQUITETO. Não. Por favor, não. Isso não.
TÉCNICO. Vocês eram casados?
ARQUITETO. Fomos casados por quarenta anos.
TÉCNICO. Parabéns.
ARQUITETO. Era outro tempo.
TÉCNICO. No caso dela, o algoritmo de estabilização/
ARQUITETO. Não quero falar disso.
TÉCNICO. Desculpe.
ARQUITETO. É muito chocante, para mim. Falar dela nesses
termos. A gente viveu muita coisa juntos. De verdade. Prefiro
não saber detalhes de. Disso aí.
TÉCNICO. Eu posso voltar outro dia.
ARQUITETO. Talvez seja melhor.
TÉCNICO. O senhor pode preencher essa avaliação?

63
ARQUITETO. Avaliação?
TÉCNICO. Do meu trabalho.
ARQUITETO. Eu faço isso depois. On-line, pode ser?
TÉCNICO. Como o senhor preferir.
ARQUITETO. Na próxima vez, vai ser você, de novo? Ou vem
outra pessoa aqui?
TÉCNICO. Eu, provavelmente. A gente faz tudo de modo muito
individual, é uma espécie de artesanato. Eu li as instruções
dela e cuidei de tudo, desde o princípio, é no mínimo altamente
recomendável que seja eu a mediar esse encontro.
ARQUITETO. As instruções dela?
TÉCNICO. Sim.
ARQUITETO. Ela por acaso falou de, de mim, do que aconteceu na/
TÉCNICO. Isso é tudo muito confidencial.
ARQUITETO. Entendo.
Silêncio.
ARQUITETO. Eu não tenho como suportar isso.
TÉCNICO. Talvez o senhor queira começar, pelo menos. Aí, à
medida que o encontro for progredindo, o senhor pode tomar
uma decisão com base em algo mais concreto. Pela minha
experiência, em casos assim, a imaginação é sempre muito
mais exuberante que o evento em si.
ARQUITETO. Meu Deus... (pausa) “Meu Deus”. Eu digo isso,
assim, como meu avô dizia. São as palavras dele, o tom dele,
a lembrança. Eu não tenho religião.

64
TÉCNICO. Seu avô, o refugiado francês?
ARQUITETO. Meu avô falava francês, mas ele nasceu nas ilhas
Maurício. Ela comentou isso? Ela falou alguma coisa disso?
TÉCNICO. Eu sugiro que a gente comece. Ou pelo menos
tente. Aí o senhor pode perguntar, diretamente a ela.
ARQUITETO. Diretamente? Ela já está aí?
TÉCNICO. Sim. Nós viemos juntos.
ARQUITETO. Tem mais alguém aí fora?
TÉCNICO. Só nós dois vamos entrar. Ela entra comigo e só.
Após hesitar por um longo tempo, Arquiteto parece concordar.
TÉCNICO. Um minuto.
Técnico sai, Arquiteto fica à espera, seu nervosismo é palpável.
Técnico retorna com Edna e a posiciona com o rosto voltado para
Arquiteto.
TÉCNICO. Só um instante.
Técnico conecta Edna a um dispositivo de comunicação.
TÉCNICO. A avaliação do DNA demora um pouco, mas como
o sinal está alto. Pronto. Fiquem à vontade.
ARQUITETO. Como assim?
TÉCNICO. Desculpa. O senhor pode contar até cinco? Esqueci
de fazer o teste de voz.
ARQUITETO. Um, dois três, quatro, cinco.
TÉCNICO. Um minuto só. Perfeito.
Silêncio.
TÉCNICO. Pode falar.

65
ARQUITETO. Olá?
TÉCNICO. (olhando para o monitor do dispositivo) Sorriso.
ARQUITETO. Como?
TÉCNICO. Um sorriso, quando o senhor disse olá. (pausa) Olá.
Arquiteto parece não entender.
TÉCNICO. Ela disse olá.
ARQUITETO. Você vai ficar falando por ela?
TÉCNICO. Por esse algoritmo, sim. Ou, eu posso por uma voz
sintética, mas ela não deixou nada no banco, então a gente
reconstitui a partir de outros registros, mas nem sempre
funciona bem. Eu mostro. Um minuto só. Pronto.
VOZ NO DISPOSITIVO. Olá.
ARQUITETO. Edna?
VOZ SINTÉTICA NO DISPOSITIVO. Gostou do meu vestido?
ARQUITETO. Está lindo, meu amor/
Arquiteto parece chorar.
VOZ SINTÉTICA NO DISPOSITIVO. Ao menos dessa vez, sem
lágrimas.
ARQUITETO. (para o Técnico) Desliga.
TÉCNICO. Senhor, eu não posso desligar.
ARQUITETO. Saia da minha casa, então!
TÉCNICO. Talvez a gente possa ao menos/
ARQUITETO. Sai!
TÉCNICO. Sua voz está cansada. Seu olho não para de tremer.
Você deve estar dormindo pouco.

66
ARQUITETO. Isso não é da sua conta, o senhor se retire da
minha casa!
TÉCNICO. Não é ele, sou eu. Ele não dá a mínima para o seu
sono, mas eu queria ter a oportunidade de falar com você mais
uma vez. Em nome do que a gente viveu juntos, do que a gente
sonhou juntos, em nome de tudo que a gente perdeu, também.
Silêncio.
TÉCNICO. Ela pediu para eu desligar o sintetizador de voz. (nou-
tro tom) Parecia a voz da sua prima tentando imitar Maria Callas.
Arquiteto ri.
TÉCNICO. Não posso mais brindar com licor de pera, receita
do seu avô, não posso mais andar de bicicleta, nada é mais a
mesma coisa, mas eu posso falar com você e eu queria ouvir
um pouco a sua voz.
Silêncio.
TÉCNICO. Eu nunca me cansei de ouvir sua voz.
ARQUITETO. Isso é loucura.
TÉCNICO. Parece loucura, eu sei.
ARQUITETO. Isso quem falou foi você ou ela?
TÉCNICO. Eu, Edna. (em outro tom) Quando for eu mesmo,
como agora, eu sinalizo.
ARQUITETO. Isso é como um jogo, Edna. É um programa de
computador que cruza informações pessoais com. Não sei.
Expectativa de resposta. Esse tipo de coisa. Não é você, meu
amor. Não é você. É uma brincadeira. Uma espécie de piada.

67
TÉCNICO. Pelo menos assim você não pode me acusar de
falta de humor.
Arquiteto sorri.
TÉCNICO. É bom ver você sorrir.
ARQUITETO. Você consegue me ver?
TÉCNICO. Um pouco. (sinaliza) A recepção não está no máximo,
ainda. Com o uso, o sistema vai melhorando a captação. Mas
ela pode ver o senhor, sim. (noutro tom) Eu vejo um pouco fora
de foco, só isso, como se eu estivesse sem óculos.
Silêncio.
ARQUITETO. Edna... O que existe depois da vida?
TÉCNICO. Risos. Não sei, meu amor. Ainda não deixei de viver.
É como se eu estivesse sonolenta, então tem uma parte da
memória que embaralha um pouco, mas vai tudo formando
um contínuo. Eu não fui e voltei de lugar nenhum. É como se
eu sempre estivesse aqui. Eu nunca fui embora.
ARQUITETO. Eu vi quando você foi.
TÉCNICO. Eu sei.
ARQUITETO. E?
TÉCNICO. E o que? Se Deus existe? Existe. Mas isso eu te falo
desde sempre. E, não, eu não me encontrei com ele.
ARQUITETO. Você sente fome? Dor?
TÉCNICO. De um outro jeito, sinto. Eu sinto uma espécie de
vontade, de ânsia.
ARQUITETO. Qual era sua música preferida do Irving Berlin?

68
TÉCNICO. Risos. Let’s face the music and dance.
ARQUITETO. Que presente eu te dei quando a gente inaugurou
o escritório? Não. Qual era a cor do/
TÉCNICO. Não vou ficar respondendo esse tipo de pergunta.
ARQUITETO. Você sente saudades de mim?
TÉCNICO. Você está aqui, na minha frente.
ARQUITETO. Eu sinto muita saudade de você. E raiva,
também. Você devia ter me dito que queria isso, que queria se
transformar nisso, assim. A gente sempre conversou e você
me dizia que queria morrer, como eu quero morrer, agora. A
gente falou disso, até o fim.
TÉCNICO. A gente falou sobre não ter filhos, sobre vender a
casa da praia, a gente falou sobre recusar o convite de levar
o escritório para o Chile. A gente falou de tudo isso, a gente
concordou com tudo isso e depois se arrependeu. De tudo.
ARQUITETO. Você devia ter me falado. A polícia entrou
aqui, levaram seu corpo. E aí foi aquela loucura toda, a
humilhação... Você devia ter me dito.
TÉCNICO. Estou dizendo agora.
ARQUITETO. Você sofreu por muito tempo, na minha frente. Você
definhou aqui, nessa casa, junto de mim. Você sentiu dor, você
agonizou. Se você não queria morrer, então por que aquilo tudo?
TÉCNICO. Era importante, para mim, saber como é. Eu queria
aprender. Eu queria que você aprendesse, comigo.
ARQUITETO. Eu não aprendi nada. Aquilo só me devastou.

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TÉCNICO. Eu imagino como foi difícil.
ARQUITETO. Não.
Silêncio.
ARQUITETO. Eu falei com os seus advogados e consenti com
um encontro. Um só. Esse. Você tem mais alguma coisa para
me dizer?
TÉCNICO. Que eu te desculpo.
ARQUITETO. Desculpa? (pausa) Você devia me agradecer.
TÉCNICO. Eu te desculpo por não ter suportado me ver
sofrer. Eu te desculpo pela fúria. Eu sei que foi um momento
de fraqueza, de loucura.
ARQUITETO. Você não pensava mais direito. Você nem falava
mais, você só tremia em cima de uma cama, com febre,
vomitando, sangrando. Eu passava o dia trocando lençol,
limpando a ferida enorme nas suas costas enquanto você
gritava. Não fiz aquilo por fúria. Eu fiz aquilo para acabar
com sua dor. Você nem estava mais lá. Era só a dor, ali, no
seu lugar. Não era mais você, não era mais a mulher que eu
amava. A mulher que amei por quarenta anos.
TÉCNICO. Me disseram que você está doente e que escolheu
passar pela mesma coisa. Definhar, como eu definhei.
Definhar voluntariamente. É verdade?
Arquiteto faz que sim.
TÉCNICO. Você agora está sozinho. Você cancelou as
cláusulas de eutanásia. Por que?

70
Silêncio.
TÉCNICO. Se, no meio de tudo, você perder a consciência, não
vai ter ninguém para interromper sua dor.
ARQUITETO. Não quero pensar nisso agora.
TÉCNICO. Você pode chegar um pouco mais perto?
Arquiteto não se aproxima.
TÉCNICO. Se você chegar um pouco mais perto, talvez eu
possa sentir o seu cheiro.
Arquiteto olha para Técnico, entre assombrado e incrédulo.
Técnico confirma com um aceno. Arquiteto se aproxima de
Edna e fica junto dela, de olhos fechados, em silêncio, por um
longo tempo.
TÉCNICO. Eu não quero que você morra.
ARQUITETO. Eu sei.
TÉCNICO. Eu não quero que você sofra.
ARQUITETO. Impossível.
TÉCNICO. Eu nunca consegui cuidar de você. Você nunca
deixou. Ou eu nunca soube como. Não sei. Agora eu estou
mais lúcida. Agora eu posso ser sua companheira. Eu posso
te ouvir mais, eu posso te entender melhor, eu posso zelar
mais pelos seus sonhos, entender melhor o medo que você
sente de tudo, porque agora eu não tenho mais pressa. Eu
estava sempre com pressa, mas agora eu sinto que eu posso
te amar. Eu posso cuidar de você.
ARQUITETO. Ela está chorando?

71
TÉCNICO. (sinaliza) Não, desculpe. É que eu. Desculpe.
ARQUITETO. Quer um copo d’água?
TÉCNICO. Estou bem. Desculpe. (noutro tom) Você ouviu o que
eu disse? Eu não quero só um encontro. Eu não estou aqui
por conta de um acordo que você fez com um advogado. Não
é isso. Eu vim aqui por sua causa. Eu não quero ir embora. Eu
quero ficar com você.
ARQUITETO. Eu sei.
TÉCNICO. Eu posso ficar?
Silêncio.
TÉCNICO. (sinaliza) Me parece que ela, ela está chorando,
sim. Isso é raro. Eu vou iniciar o protocolo de suspensão.
Técnico inicia o encerramento do protocolo.
ARQUITETO. Espera!
Técnico suspende o encerramento do protocolo.
ARQUITETO. Eu posso segura-la?
TÉCNICO. Por que você não pergunta direto para mim?
ARQUITETO. Eu posso segurar você?
TÉCNICO. Não. (pausa) Risos.
Arquiteto ri. Arquiteto se aproxima de Edna. Técnico hesita,
mas concede, Ergue Edna e junta-se a ela e ao Arquiteto em
um abraço.
Dançam.

FIM

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73
TEXTO :: MARCOS BARBOSA
DIREÇÃO :: AURY PORTO
ASSISTENTE DE DIREÇÃO :: NANA YAZBEK
ELENCO :: CAROL BADRA, LUIS MÁRMORA,
MARIANO MATTOS MARTINS, TATIANA THOMÉ
e VANDERLEI BERNARDINO
TREINAMENTO CORPORAL :: LU FAVORETO
DIREÇÃO DE ARTE :: VERA HAMBURGER
CENOGRAFIA :: FLORA BELOTTI
NA CENOGRAFIA O TRABALHO DE EDER SANTOS ::
MÁQUINA DE REFLEXÃO
FIGURINO :: DIOGO COSTA
LUZ - CRIAÇÃO E OPERAÇÃO :: RICARDO MORAÑEZ
TRILHA SONORA - CRIAÇÃO E OPERAÇÃO :: IVAN GARRO
CANÇÃO FINAL COM MARIANA DE MORAES E OTÁVIO ORTEGA
PROJETO GRÁFICO :: MARIANO MATTOS MARTINS
VÍDEO :: YGHOR BOY
FOTOS :: SOSSO PARMA
ASSESSORIA DE IMPRENSA :: ADRIANA MONTEIRO
PRODUÇÃO EXECUTIVA :: BIA FONSECA
e NOS2 PRODUTORAS ASSOCIADAS
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO:LUCAS CÂNDIDO
PRODUÇÃO :: mundana companhia
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Prefeitura de São Paulo Bruno Covas
Secretaria de Cultura André Sturm

CENTRO CULTURAL SÃO PAULO


Direção Geral e Núcleo de Curadoria Cadão Volpato
Supervisão de Ação Cultural Adriane Bertini e equipe
Supervisão de Acervo Eduardo Navarro Niero Filho e
equipe Supervisão de Bibliotecas Maria Aparecida Reis
Ribeiro da Silva e equipe Supervisão de Informação
Álvaro Olyntho e equipe Supervisão de Produção Luciana
Mantovani e equipe Núcleo de Gestão Francis Vieira
Soares e equipe Núcleo de Projetos Kelly Santiago
e Walter Tadeu Hardt de Siqueira
CCSP | Curadoria de Teatro Kil Abreu (curador),
Urion Braga (estagiário) e Lucas Cavalcante (estagiário)
Comissão de seleção do IV edital da Mostra de dramaturgia
em pequenos formatos cênicos do CCSP Beth Néspoli, José
Fernando Peixoto de Azevedo e Lucienne Guedes Fahrer
Prefixo Editorial: 99954 | Número ISBN: 978-85-99954-18-8 | Título: Necropolítica
Tipo de Suporte: Papel | Edição mundana companhia | Capa Sosso Parma (foto)
Impressão Laboratório Gráfico do CCSP | Distribuição Gratuita no CCSP
realização
apoio
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CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
R. Vergueiro, 1000/CEP 01504 000
Paraíso/São Paulo - SP / Metrô Vergueiro
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