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ARQUIDIOCESE DE NITERÓI - VICARIATO EPISCOPAL SÃO GONÇALO

INSTITUTO DE FORMAÇÃO ESTRELA DA EVANGELIZAÇÃO


Curso de Teologia - Estrela da Evangelização
Prof.: João Guilherme Araujo de Oliveira
Disciplina: Teologia Moral Fundamental

AS VIRTUDES

“Tudo o que é verdadeiro, nobre e justo, tudo o que é puro, amável e de boa reputação, tudo o que é
virtude e digno de louvor, isto deveis ter no pensamento” (Fl 4, 8).
A virtude é uma disposição habitual e firme para praticar o bem. Permite à pessoa não somente praticar
atos bons, mas dar o melhor de si mesma. A pessoa virtuosa tende para o bem com todas as suas forças
sensíveis e espirituais; procura o bem e opta por ele em atos concretos.
“O fim duma vida virtuosa consiste em tornar-se semelhante a Deus1”.

I - As virtudes humanas
As virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência e da
vontade, que regulam os nossos atos, ordenam as nossas paixões e guiam o nosso procedimento segundo a
razão e a fé. Conferem facilidade, domínio e alegria para se levar uma vida moralmente boa. Homem virtuoso
é aquele que livremente pratica o bem.
As virtudes morais são humanamente adquiridas. São os frutos e os germes de atos moralmente bons
e dispõem todas as potencialidades do ser humano para comungar no amor divino.

Distinção entre as virtudes teologais


Há quatro virtudes que desempenham um papel de charneira. Por isso, se chamam “cardeais”; todas as
outras se agrupam em torno delas. São: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. “Se alguém ama a
justiça, o fruto dos seus trabalhos são as virtudes, porque ela ensina a temperança e a prudência, a justiça e a
fortaleza” (Sb 8, 7). Com estes ou outros nomes, estas virtudes são louvadas em numerosas passagens da
Sagrada Escritura.
A prudência é a virtude que dispõe a razão prática para discernir, em qualquer circunstância, o nosso
verdadeiro bem e para escolher os justos meios de o atingir. “O homem prudente vigia os seus passos” (Pr 14,
15). “Sede ponderados e comedidos, para poderdes orar” (1 Pe 4, 7). A prudência é a «reta norma da ação»,
escreve São Tomás2 seguindo Aristóteles. Não se confunde, nem com a timidez ou o medo, nem com a
duplicidade ou dissimulação. É chamada “auriga virtutum – condutor das virtudes”, porque guia as outras
virtudes, indicando-lhes a regra e a medida. É a prudência que guia imediatamente o juízo da consciência. O
homem prudente decide e ordena a sua conduta segundo este juízo. Graças a esta virtude, aplicamos sem erro
os princípios morais aos casos particulares e ultrapassamos as dúvidas sobre o bem a fazer e o mal a evitar.

1
São Gregório de Nissa, De Beatitudinibus, oratio 1: Gregorii Nysseni opera. ed. W. Jaeger, v. 7/2 (Leiden 1992) p. 82 (PG 44, 1200).
2
São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 2-2, q. 47. a. 2. sed contra: Ed. Leon. 8, 349.
A justiça é a virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o
que lhes é devido. A justiça para com Deus chama-se “virtude da religião”. Para com os homens, a justiça leva
a respeitar os direitos de cada qual e a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade
em relação às pessoas e ao bem comum. O homem justo, tantas vezes evocado nos livros santos, distingue-se
pela retidão habitual dos seus pensamentos e da sua conduta para com o próximo. “Não cometerás injustiças
nos julgamentos. Não favorecerás o pobre, nem serás complacente para com os poderosos. Julgarás o teu
próximo com imparcialidade” (Lv 19, 15). “Senhores, dai aos vossos escravos o que é justo e equitativo,
considerando que também vós tendes um Senhor no céu” (Cl 4, 1).
A fortaleza é a virtude moral que, no meio das dificuldades, assegura a firmeza e a constância na
prossecução do bem. Torna firme a decisão de resistir às tentações e de superar os obstáculos na vida moral.
A virtude da fortaleza dá capacidade para vencer o medo, mesmo da morte, e enfrentar a provação e as
perseguições. Dispõe a ir até à renúncia e ao sacrifício da própria vida, na defesa duma causa justa. “O Senhor
é a minha fortaleza e a minha glória» (Sl 118, 14). «No mundo haveis de sofrer tribulações: mas tende
coragem! Eu venci o mundo!” (Jo 16, 33).
A temperança é a virtude moral que modera a atração dos prazeres e proporciona o equilíbrio no uso
dos bens criados. Assegura o domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos nos limites da
honestidade. A pessoa temperante orienta para o bem os apetites sensíveis, guarda uma sã discrição e não se
deixa arrastar pelas paixões do coração3. A temperança é muitas vezes louvada no Antigo Testamento: “Não
te deixes levar pelas tuas más inclinações e refreia os teus apetites” (Sir 18, 30). No Novo Testamento, é
chamada “moderação”, ou “sobriedade”. Devemos «viver com moderação, justiça e piedade no mundo
presente» (Tt 2, 12).

“Viver bem é amar a Deus de todo o coração, com toda a alma e com todo o proceder [...], de tal modo que
se lhe dedica um amor incorrupto e íntegro (pela temperança), que mal algum poderá abalar (fortaleza), que
a ninguém mais serve (justiça), que cuida de discernir todas as coisas para não se deixar surpreender pela
astúcia e pela mentira (prudência)4”.

A virtude e a graça
As virtudes humanas, adquiridas pela educação, por atos deliberados e por uma sempre renovada
perseverança no esforço, são purificadas e elevadas pela graça divina. Com a ajuda de Deus, forjam o carácter
e facilitam a prática do bem. O homem virtuoso sente-se feliz ao praticá-las.
Não é fácil, ao homem ferido pelo pecado, manter o equilíbrio moral. O dom da salvação, que nos veio
por Cristo, dá-nos a graça necessária para perseverar na busca das virtudes. Cada qual deve pedir
constantemente esta graça de luz e de força, recorrer aos sacramentos, cooperar com o Espírito Santo e seguir
os seus apelos a amar o bem e acautelar-se do mal.
II – As virtudes teologais
As virtudes humanas radicam nas virtudes teologais, que adaptam as faculdades do homem à
participação na natureza divina5. De facto, as virtudes teologais referem-se diretamente a Deus e dispõem os
cristãos para viverem em relação com a Santíssima Trindade. Têm Deus Uno e Trino por origem, motivo e
objeto.
As virtudes teologais fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão, Informam e vivificam
todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na alma dos fiéis para os tornar capazes de proceder como

3
Cf. Sir 5, 2; 37, 27-31.
4
Santo Agostinho, De moribus Ecclesiae catholicae, 1, 25, 46: CSEL 90, 51 (PL 32, 1330-1331).
5
Cf. 2 Pe 1, 4.
filhos seus e assim merecerem a vida eterna. São o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas
faculdades do ser humano. São três as virtudes teologais: fé, esperança e caridade6.

A Fé
A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo o que Ele nos disse e revelou e que a
santa Igreja nos propõe para acreditarmos, porque Ele é a própria verdade. Pela fé, “o homem entrega-se total
e livremente a Deus”7. E por isso, o crente procura conhecer e fazer a vontade de Deus. “O justo viverá pela
fé” (Rm 1, 17). A fé viva “atua pela caridade” (Gl 5, 6).
O dom da fé permanece naquele que não pecou contra ela8. Mas, “sem obras, a fé está morta” (Tg 2,
26): privada da esperança e do amor, a fé não une plenamente o fiel a Cristo, nem faz dele um membro vivo
do seu corpo.
O discípulo de Cristo, não somente deve guardar a fé e viver dela, como ainda professá-la, dar firme
testemunho dela e propagá-la: “Todos devem estar dispostos a confessar Cristo diante dos homens e a segui-
Lo no caminho da cruz, no meio das perseguições que nunca faltam à Igreja”9. O serviço e testemunho da fé
são requeridos para a salvação: «A todo aquele que me tiver reconhecido diante dos homens, também Eu o
reconhecerei diante do meu Pai que está nos céus. Mas àquele que me tiver negado diante dos homens, também
Eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus» (Mt 10, 32-33).

A Esperança
A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa
felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas
no socorro da graça do Espírito Santo. “Conservemos firmemente a esperança que professamos, pois Aquele
que fez a promessa é fiel” (Hb 10, 23). “O Espírito Santo, que Ele derramou abundantemente sobre nós, por
meio de Jesus Cristo nosso Salvador, para que, justificados pela sua graça, nos tornássemos, em esperança,
herdeiros da vida eterna” (Tt 3, 6-7).
A virtude da esperança corresponde ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração de todo o
homem; assume as esperanças que inspiram as atividades dos homens, purifica-as e ordena-as para o Reino
dos céus; protege contra o desânimo; sustenta no abatimento; dilata o coração na expectativa da bem-
aventurança eterna. O ânimo que a esperança dá preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade.
A esperança cristã retorna e realiza a esperança do povo eleito, que tem a sua origem e modelo na
esperança de Abraão, o qual, em Isaac, foi cumulado das promessas de Deus e purificado pela provação do
sacrifício 10. «Contra toda a esperança humana, Abraão teve esperança e acreditou. Por isso, tornou-se pai de
muitas nações» (Rm 4, 18).

A esperança cristã manifesta-se, desde o princípio da pregação de Jesus, no anúncio das bem-
aventuranças. As bem-aventuranças elevam a nossa esperança para o céu, como nova tema prometida e traçam-
lhe o caminho através das provações que aguardam os discípulos de Jesus. Mas, pelos méritos do mesmo Jesus

6
Cf. 1 Cor 13, 13.
7
II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum, 5: AAS 58 (1966) 819.
8
Cf. Concílio de Trento, Sess. 6ª, Decretum de iustificatione, c. 15: DS 1544.
9
II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Lumen Gentium, 42: AAS 57 (1965) 48: cf. ID., Decl. Dignitatis humanae, 14: AAS 58 (1966)
940.
10
Cf. Gn 17, 4-8; 22, 1-18.
Cristo e da sua paixão, Deus guarda-nos na «esperança que não engana» (Rm 5, 5). A esperança é «a âncora
da alma, inabalável e segura» que penetra [...]«onde entrou Jesus como nosso precursor» (Hb 6, 19-20). É
também uma arma que nos protege no combate da salvação: «Revistamo-nos com a couraça da fé e da
caridade, com o capacete da esperança da salvação» (1Ts 5, 8). Proporciona-nos alegria, mesmo no meio da
provação: “alegres na esperança, pacientes na tribulação” (Rm 12, 12). Exprime-se e nutre-se na oração,
particularmente na oração do Pai-Nosso, resumo de tudo o que a esperança nos faz desejar.
Podemos, portanto, esperar a glória do céu prometida por Deus àqueles que O amam11 e fazem a sua
vontade12. Em todas as circunstâncias, cada qual deve esperar, com a graça de Deus, “permanecer firme até ao
fim” 13 e alcançar a alegria do céu, como eterna recompensa de Deus pelas boas obras realizadas com a graça
de Cristo. É na esperança que a Igreja pede que «todos os homens se salvem» (1 Tm 2, 4) e ela própria aspira
a ficar, na glória do céu, unida a Cristo, seu Esposo:

«Espera, espera, que não sabes quando virá o dia nem a hora. Vela com cuidado, que tudo passa com
brevidade, embora o teu desejo faça o certo duvidoso e longo o tempo breve. Olha que quanto mais
pelejares, mais mostrarás o amor que tens a teu Deus, e mais te regozijarás com teu Amado em gozo e
deleite que não pode ter fim»14.

A Caridade
A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas por Ele mesmo, e ao
próximo como a nós mesmos, por amor de Deus.
Jesus faz da caridade o mandamento novo15. Amando os seus “até ao fim” (Jo 13, 1), manifesta o amor
do Pai, que Ele próprio recebe. E os discípulos, amando-se uns aos outros, imitam o amor de Jesus, amor que
eles recebem também em si. É por isso que Jesus diz: “Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei.
Permanecei no meu amor” (Jo 15, 9). E ainda: “É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros,
como Eu vos amei” (Jo 15, 12).
Fruto do Espírito e plenitude da Lei, a caridade guarda os mandamentos de Deus e do seu Cristo:
“Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor” (Jo 15, 9-
10)16.
Cristo morreu por amor de nós, sendo nós ainda “inimigos” (Rm 5, 10). O Senhor pede-nos que, como
Ele, amemos até os nossos inimigos 17, que nos façamos o próximo do mais afastado18, que amemos as
crianças19 e os pobres como a Ele próprio 20.
O apóstolo São Paulo deixou-nos um incomparável quadro da caridade: “A caridade é paciente, a
caridade é benigna; não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa; não é inconveniente, não procura o próprio

11
Cf. Rm 8, 28-30.
12
Cf. Mt 7, 21.
13
Cf. Mt 10, 22: Concílio de Trento, Sess. 5ª, Decretum de iustificatione, c. 13: DS 1541.
14
Santa Teresa de Jesus, Exclamaciones del alma a Dios, 15, 3: Biblioteca Mística Carmelitana, v. 4 (Burgos 1917) p. 290.
[Exclamações, XV. 3: Obras Completas (Paço de Arcos. Edições Carmelo 1994) p. 959).
15
Cf. Jo 13. 34.
16
Cf. Mt 22, 40: Rm 13, 8-10.
17
Cf. Mt 5, 44.
18
Cf. Lc 10, 27-37.
19
Cf Mc 9, 37.
20
Cf. Mt 25, 40.45.
interesse, não se imita, não guarda ressentimento, não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade;
tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13, 4-7).
Sem a caridade, diz ainda o Apóstolo, “nada sou”. E tudo o que for privilégio, serviço, ou mesmo
virtude..., se não tiver caridade “de nada me aproveita”21. A caridade é superior a todas as virtudes. É a primeira
das virtudes teologais: “Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de
todas é a caridade” (1 Cor 13, 13).
O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade. Esta é o “vínculo da perfeição”
(Cl 3, 14) e a forma das virtudes: articula-as e ordena-as entre si; é a fonte e o termo da sua prática cristã. A
caridade assegura e purifica a nossa capacidade humana de amar e eleva-a à perfeição sobrenatural do amor
divino.
A prática da vida moral animada pela caridade dá ao cristão a liberdade espiritual dos filhos de Deus.
O cristão já não está diante de Deus como um escravo, com temor servil, nem como o mercenário à espera do
salário, mas como um filho que corresponde ao amor “d'Aquele que nos amou primeiro” (1 Jo 4, 19):

“Nós, ou nos desviamos do mal por temor do castigo e estamos na atitude do escravo, ou vivemos à espera
da recompensa e parecemo-nos com os mercenários; ou, finalmente, é pelo bem em si e por amor d'Aquele
que manda, que obedecemos [...], e então estamos na atitude própria dos filhos”22.

Os frutos da caridade são: a alegria, a paz e a misericórdia; exige a prática do bem e a correção fraterna;
é benevolente; suscita a reciprocidade, é desinteressada e liberal: é amizade e comunhão:

“A consumação de todas as nossas obras é o amor. É nele que está o fim: é para a conquista dele que
corremos; corremos para lá chegar e, uma vez chegados, é nele que descansamos”23.

III – Os dons do Espírito Santo


A vida moral dos cristãos é sustentada pelos dons do Espírito Santo. Estes são disposições permanentes que
tornam o homem dócil aos impulsos do Espírito Santo.
Os sete dons do Espírito Santo são: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e
temor de Deus. Pertencem em plenitude a Cristo, filho de Davi24. Completam e levam à perfeição as virtudes
de quem os recebe. Tornam os fiéis dóceis, na obediência pronta, às inspirações divinas.
“Que o vosso espírito de bondade me conduza pelo caminho reto” (Sl 143, 10). “Todos aqueles que
são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus [...]; se somos filhos, também somos herdeiros:
herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo” (Rm 8, 14.17).
Os frutos do Espírito são perfeições que o Espírito Santo forma em nós, como primícias da glória
eterna. A tradição da Igreja enumera doze: “caridade, alegria, paz, paciência, bondade, longanimidade,
benignidade, mansidão, fidelidade, modéstia, continência, castidade” (Gl 5, 22-23 segundo a Vulgata).

21
Cf. 1 Cor 13, 1-4.
22
São Basílio Magno, Regulae fusius tractatae, prol. 3: PG 31. 896.
23
Santo Agostinho, In epistulam Iohannis ad Parthos tractus 10, 4: PL 35, 2056-2057.
24
Cf. São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 1-2, q. 24, a. 3. c.: Ed. Leon. 6, 181.
O PECADO
I – A misericórdia e o pecado
O Evangelho é a revelação, em Jesus Cristo, da misericórdia de Deus para com os pecadores (86). O
anjo assim o disse a José: Pôr-Lhe-ás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados» (Mt
1, 21), o mesmo se diga da Eucaristia, sacramento da Redenção: “Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança,
que vai ser derramado por todos para a remissão dos pecados” (Mt 26, 28).
“Deus, que nos criou sem nós, não quis salvar-nos sem nós”25. O acolhimento da sua misericórdia exige
de nós a confissão das nossas faltas. “Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos, e a verdade não está
em nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e para nos
purificar de toda a maldade” (1 Jo 1, 8-9).
Como afirma São Paulo: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Mas para
realizar a sua obra, a graça tem de pôr a descoberto o pecado, para converter o nosso coração e nos obter “a
justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 5, 21). Como um médico que examina a chaga
antes de lhe aplicar o penso, Deus, pela sua Palavra e pelo seu Espírito, projeta uma luz viva sobre o pecado:
A conversão requer o reconhecimento do pecado. Contém em si mesma o juízo interior da consciência.
Pode ver-se nela a prova da ação do Espírito de verdade no mais íntimo do homem. Torna-se, ao mesmo
tempo, o princípio dum novo dom da graça e do amor: "Recebei o Espírito Santo". Assim, neste "convencer
quanto ao pecado", descobrimos um duplo dom: o dom da verdade da consciência e o dom da certeza da
redenção. O Espírito da verdade é o Consolador26.

II – Definição de Pecado
O pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a reta consciência. É uma falha contra o verdadeiro
amor para com Deus e para com o próximo, por causa dum apego perverso a certos bens. Fere a natureza do
homem e atenta contra a solidariedade humana. Foi definido como “uma palavra, um ato ou um desejo
contrários à Lei eterna”27.
O pecado é uma ofensa a Deus: “Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos”
(Sl 51, 6). O pecado é contrário ao amor que Deus nos tem e afasta d'Ele os nossos corações. É, como o
primeiro pecado, uma desobediência, uma revolta contra Deus, pela vontade de os homens se tornarem “como
deuses”, conhecendo e determinando o que é bem e o que é mal (Gn 3, 5). Assim, o pecado é «o amor de si
próprio levado até ao desprezo de Deus”28 Por esta exaltação orgulhosa de si mesmo, o pecado é
diametralmente oposto à obediência de Jesus, que realizou a salvação 29.
É precisamente na paixão, em que a misericórdia de Cristo o vai vencer, que o pecado manifesta melhor
a sua violência e a sua multiplicidade: incredulidade, ódio assassino, rejeição e escárnio por parte dos chefes
e do povo, cobardia de Pilatos e crueldade dos soldados, traição de Judas tão dura para Jesus, negação de Pedro
e abandono dos discípulos. No entanto, mesmo na hora das trevas e do príncipe deste mundo 30, o sacrifício de
Cristo torna-se secretamente a fonte de onde brotará, inesgotável, o perdão dos nossos pecados.

25
Santo Agostinho, Sermão 169, 11, 13: PL 38, 923.
26
27
Santo Agostinho, Contra Faustum manichaeum, 22, 27: CSEL 25, 621 (PL 42, 418): cf. São Tomás de Aquino, Summa theologiae,
1-2, q. 71, a. 6: Ed. Leon. 7, 8-9.
28
Santo Agostinho, De civitate Dei, 14, 28: CSEL 40/2, 56 (PL 41, 436).
29
Cf. Fl 2, 6-9.
30
Cf. Jo 14, 30.
III – Diversidade dos pecados
É grande a variedade dos pecados. A Sagrada Escritura fornece-nos várias listas. A Epístola aos Gálatas
opõe as obras da carne aos frutos do Espírito: «As obras da natureza decaída ("carne") são claras: imoralidade,
impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, inimizades, discórdias, ciúmes, fúrias, rivalidades, dissensões,
facciosismos, invejas, excessos de bebida e de comida e coisas semelhantes a estas. Sobre elas vos previno,
como já vos tinha prevenido: os que praticam ações como estas, não herdarão o Reino de Deus» (Gl 5, 19-21)
(93).
Os pecados podem distinguir-se segundo o seu objeto, como todo o ato humano; ou segundo as virtudes
a que se opõem; por excesso ou por defeito; ou segundo os mandamentos que violam. Também podem agrupar-
se segundo outros critérios: os que dizem respeito a Deus, ao próximo, à própria pessoa do pecador; pecados
espirituais e carnais: ou, ainda, pecados por pensamentos, palavras, obras ou omissões. A raiz do pecado está
no coração do homem, na sua vontade livre, conforme o ensinamento do Senhor: «do coração é que provêm
pensamentos malévolos, assassínios, adultérios, fornicações, roubos, falsos testemunhos, maledicências –
coisas que tornam o homem impuro» (Mt 15, 19). Mas é também no coração que reside a caridade, princípio
das obras boas e puras, que o pecado ofende.

IV – A gravidade do pecado
Os pecados devem ser julgados segundo a sua gravidade. A distinção entre pecado mortal e pecado
venial, já perceptível na Escritura31, impôs-se na Tradição da Igreja. A experiência dos homens corrobora-a.
O pecado mortal destrói a caridade no coração do homem por uma infracção grave à Lei de Deus.
Desvia o homem de Deus, que é o seu último fim, a sua bem-aventurança, preferindo-Lhe um bem inferior. O
pecado venial deixa subsistir a caridade, embora ofendendo-a e ferindo-a.
O pecado mortal, atacando em nós o princípio vital que é a caridade, torna necessária uma nova
iniciativa da misericórdia de Deus e uma conversão do coração que normalmente se realiza no quadro do
sacramento da Reconciliação:

«Quando [...] a vontade se deixa atrair por uma coisa de si contrária à caridade, pela qual somos ordenados
para o nosso fim último, o pecado, pelo seu próprio objeto, deve considerar-se mortal [...], quer seja contra o
amor de Deus (como a blasfémia, o perjúrio, etc.), quer contra o amor do próximo (como o homicídio, o
adultério, etc.) [...] Em contrapartida, quando a vontade do pecador por vezes se deixa levar para uma coisa
que em si é desordenada, não sendo todavia contrária ao amor de Deus e do próximo (como uma palavra
ociosa, um risco supérfluo, etc.), tais pecados são veniais» 32.

Para que um pecado seja mortal, requerem-se, em simultâneo, três condições: «É pecado mortal o que
tem por objeto uma matéria grave, e é cometido com plena consciência e de propósito deliberado» 33.
A matéria grave é precisada pelos dez Mandamentos, segundo a resposta que Jesus deu ao jovem rico:
«Não mates, não cometas adultério, não furtes, não levantes falsos testemunhos, não cometas fraudes, honra
pai e mãe» (Mc 10, 18). A gravidade dos pecados é maior ou menor: um homicídio é mais grave que um roubo.
A qualidade das pessoas lesadas também entra em linha de conta: a violência cometida contra pessoas de
família é, por sua natureza, mais grave que a exercida contra estranhos.

31
Cf. 1 Jo 5, 16-17.
32
São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 1-2, q. 88. a. 2, e: Ed. Leon. 7, 135.
33
João Paulo II. Ex. ap. Reconciliatio et paenitentia, 17: AAS 77 (1985) 221.
Para que o pecado seja mortal tem de ser cometido com plena consciência e total consentimento.
Pressupõe o conhecimento do carácter pecaminoso do ato, da sua oposição à Lei de Deus. E implica também
um consentimento suficientemente deliberado para ser uma opção pessoal. A ignorância simulada e o
endurecimento do coração34 não diminuem, antes aumentam, o carácter voluntário do pecado.
A ignorância involuntária pode diminuir, ou mesmo desculpar, a imputabilidade duma falta grave. Mas
parte-se do princípio de que ninguém ignora os princípios da lei moral, inscritos na consciência de todo o
homem. Os impulsos da sensibilidade e as paixões podem também diminuir o carácter voluntário e livre da
falta. O mesmo se diga de pressões externas e de perturbações patológicas. O pecado cometido por malícia,
por escolha deliberada do mal, é o mais grave.
O pecado mortal é uma possibilidade radical da liberdade humana, tal como o próprio amor. Tem como
consequência a perda da caridade e a privação da graça santificante, ou seja, do estado de graça. E se não for
resgatado pelo arrependimento e pelo perdão de Deus, originará a exclusão do Reino de Cristo e a morte eterna
no Inferno, uma vez que a nossa liberdade tem capacidade para fazer escolhas definitivas, irreversíveis. No
entanto, embora nos seja possível julgar se um ato é, em si, uma falta grave, devemos confiar o juízo sobre as
pessoas à justiça e à misericórdia de Deus.
Comete-se um pecado venial quando, em matéria leve, não se observa a medida prescrita pela lei moral
ou quando, em matéria grave, se desobedece à lei moral, mas sem pleno conhecimento ou sem total
consentimento.
O pecado venial enfraquece a caridade, traduz um afeto desordenado aos bens criados, impede o
progresso da pessoa no exercício das virtudes e na prática do bem moral; e merece penas temporais. O pecado
venial deliberado e não seguido de arrependimento, dispõe, a pouco e pouco, para cometer o pecado mortal.
No entanto, o pecado venial não quebra a aliança com Deus e é humanamente reparável com a graça de Deus.
«Não priva da graça santificante, da amizade com Deus, da caridade, nem, portanto, da bem-aventurança
eterna»35.

«Enquanto vive na carne, o homem não é capaz de evitar totalmente o pecado, pelo menos os pecados leves.
Mas estes pecados, que chamamos leves, não os tenhas por insignificantes. Se os tens por insignificantes
quando os pesas, treme quando os contas. Muitos objetos leves fazem uma massa pesada; muitas gotas de
água enchem um rio; muitos grãos fazem um monte. Onde, então, está a nossa esperança? Antes de mais, na
confissão...»36.

«Todo o pecado ou blasfémia será perdoado aos homens, mas a blasfémia contra o Espírito não lhes será
perdoada» (Mt 12, 31)37. Não há limites para a misericórdia de Deus, mas quem recusa deliberadamente
receber a misericórdia de Deus, pelo arrependimento, rejeita o perdão dos seus pecados e a salvação oferecida
pelo Espírito Santo38. Tal endurecimento pode levar à impenitência final e à perdição eterna.

V – A proliferação do pecado
O pecado arrasta ao pecado; gera o vício, pela repetição dos mesmos atos. Daí resultam as inclinações
perversas, que obscurecem a consciência e corrompem a apreciação concreta do bem e do mal. Assim, o
pecado tende a reproduzir-se e reforçar-se, embora não possa destruir radicalmente o sentido moral.

34
Cf. Mc 3, 5-6; Lc 16, 19-31.
35
João Paulo II, Ex. ap. Reconciliatio et paenitentia, 17: AAS 77 (1985) 221.
36
Santo Agostinho, In epistulam Iohannis Parthos tractatus, 1, 6: PL 35, 1982.
37
Cf. Mc 3. 29; Lc 12, 10.
38
Cf. João Paulo II, Enc. Dominum et vivificantem, 46: AAS 78 (1986) 864-865.
Os vícios podem classificar-se segundo as virtudes a que se opõem, ou relacionando-os com os pecados
capitais que a experiência cristã distinguiu, na sequência de São João Cassiano39 e São Gregório Magno40.
Chamam-se capitais, porque são geradores doutros pecados e doutros vícios. São eles: a soberba, a avareza, a
inveja, a ira, a luxúria, a gula e a preguiça ou negligência (acédia).
A tradição catequética lembra também a existência de «pecados que bradam ao céu». Bradam ao céu:
o sangue de Abel41; o pecado dos sodomitas42; o clamor do povo oprimido no Egito43; o lamento do estrangeiro,
da viúva e do órfão44; a injustiça para com o assalariado.
O pecado é um ato pessoal. Mas, além disso, nós temos responsabilidade nos pecados cometidos por
outros, quando neles cooperamos:
– tomando parte neles, direta e voluntariamente;
– ordenando-os. aconselhando-os, aplaudindo-os ou aprovando-os;
– não os denunciando ou não os impedindo, quando a isso obrigados;
– protegendo os que praticam o mal.
Assim, o pecado torna os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a concupiscência, a
violência e a injustiça. Os pecados provocam situações sociais e instituições contrárias à Bondade divina; as
«estruturas de pecado» são expressão e efeito dos pecados pessoais e induzem as suas vítimas a que, por sua
vez, cometam o mal. Constituem, em sentido analógico, um «pecado social» 45.

39
Cf. São Cassiano, Conlatio, 5, 2: CSEL 13, 121 (PL 49, 611).
40
Cf. São Gregório Magno, Moralia in Job, 31, 45, 87: CCL 143B, 1610 (PL 76, 621).
41
Cf. Gn 4. 10.
42
Cf. Gn 18, 20; 19, 13.
43
Cf. Ex 3, 7-10.
44
Cf. Ex 22, 20-22.
45
João Paulo II, Ex. ap. Reconciliatio et paenitentia, 16: AAS 77 (1985) 216.

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