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Epidemias no Brasil, covid-19 e uma

“distopia neoliberal”

Entrevista com Sidney Chalhoub*

Concedida a

Gabriela dos Reis Sampaio∗∗ e Ricardo dos Santos Batista∗∗∗

1) No livro Cidade Febril, ao estudar as Cidade febril lida com duas conjunturas
epidemias que grassavam na Corte no históricas diferentes. A primeira delas cobre
século XIX, você mostra como as decisões a segunda metade do século XIX, em
sobre as medidas a serem tomadas no especial o período em que José Pereira
combate às doenças eram, muitas vezes, Rego, o barão do Lavradio, foi protagonista
questões políticas mais do que decisões quanto à formulação das políticas públicas
médicas, ainda que se tratasse de um na área da saúde (décadas de 1850 a 1880).
governo militar de inspiração positivista, É um período em que o Brasil, e em especial
que valorizava a ciência. É possível a cidade do Rio de Janeiro, foi assolado
estabelecer relações com a epidemia que por epidemias de varíola, febre amarela
vivenciamos neste começo do século e cólera, para mencionar apenas as mais
XXI, em um contexto de negacionismo visíveis. A Junta Central de Higiene Pública,
e mesmo uma postura anticiência do subordinada ao ministério do Império, além de
governo? ser o órgão de referência para as comissões

∗ Professor titular colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de


Campinas (Unicamp) e professor do Departamento de História da Harvard University, EUA.
∗∗ Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Departamento
de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-1942-9096. E-mail: grsampaio@hotmail.com.
∗∗∗ Doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da graduação em História
e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). ORCID: https://
orcid.org/0000-0002-7959-5929. E-mail: kadobatista@hotmail.com.

Mundos do Trabalho, Florianópolis | v. 12 | p. 1-10 | 2020


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higiênicas das províncias, que lhe enviavam militar de 1889. O regime republicano surge
relatórios anuais e consultas avulsas, tinha sob três signos que terão vida longa na
sob a sua jurisdição a cidade do Rio de história do país: o cientificismo de ranço
Janeiro e a província fluminense. Esse é positivista, autoritário, que se encastelava
um período anterior à microbiologia, em na administração central e governava em
que a transmissão de doenças epidêmicas aliança com o mandonismo local; o racismo
era entendida a partir do paradigma dos estrutural, profundo, que se articulava desde
miasmas, partículas que ninguém sabia o a década de 1870 e se materializaria na
que eram e como vinham a ser, acreditando- ideologia do embranquecimento – quer
se apenas que emergiam espontaneamente dizer, no projeto de genocídio “lento, gradual
em ambientes pantanosos, sujos, carregados e seguro” da população negra do país; por
de material orgânico em putrefação. Por um fim, na tutela militar da política, responsável
lado, a pregação dos higienistas pela limpeza pela garantia armada da reprodução perene
dos ares, águas e lugares deixou um legado das desigualdades sociais e econômicas.
que consistiu na incorporação de assuntos Esses três aspectos tiveram, digamos, um
como rede de esgotos, fornecimento de água momento ritual na presidência de Rodrigues
potável e limpeza das ruas da cidade como Alves (1902-1906), por meio da execução
agenda necessária da administração pública. dos projetos de reforma urbana do Rio de
Por outro lado, há uma distância enorme entre Janeiro (Pereira Passos) e das campanhas
achar que doenças se originam em miasmas de erradicação das epidemias de varíola,
que se produzem em regiões alagadas e saber febre amarela e peste (Oswaldo Cruz). A
que águas paradas permitem a proliferação de revolta de 1904 é expressão da instabilidade
mosquitos transmissores de malária, dengue, e do vale-tudo da política tutelada por
febre amarela etc. Logo a impressão geral era militares, sempre cortejados por setores
a de que as medidas sugeridas pela Junta civis para ver quem dava o golpe de Estado
Central de Higiene e às vezes implementadas da vez. Ela é também a manifestação de
pela administração não surtiam efeito visível outro momento da saúde pública, em que a
no controle das epidemias. microbiologia e o desvendamento da forma
A segunda conjuntura, décadas de de transmissão de algumas doenças haviam
1890 e 1900, se caracteriza pela maior aumentado dramaticamente a eficácia técni-
aproximação dos higienistas ao poder público, ca de medidas específicas de combate a
no sentido de adquirirem possibilidade mais epidemias. As medidas implementadas para
real de ditar políticas da administração controlar a febre amarela, baseadas no
pública. Isso tem a ver com o processo conhecimento que então se havia adquirido
de maior prestígio da ciência no país, em sobre como ela se transmitia por picadas
particular a partir da década de 1870, e de mosquitos, impressionam pela precisão,
se consolida com o estabelecimento do detalhamento e eficácia. Impressionam
regime republicano por meio do golpe também pela violência, pela ausência de

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qualquer protocolo de convencimento a isso uma penca de liberais e positivistas


da população, cujo papel era o de se prontos a discursar sobre o desrespeito a
submeter às medidas. Há um acúmulo suas liberdades individuais que a vacinação
de ressentimento em relação ao modo de obrigatória representava. Enfim, as motiva-
essas políticas de saúde pública serem ções eram diversas e nada tinham a ver
implementadas que irá explodir na revolta com negacionismo científico, até porque o
da vacina em novembro de 1904. A violência cientificismo como ideologia, em especial
cotidiana da aplicação dessas medidas quanto às credenciais da medicina científica,
atingia em especial a população negra. A simplesmente ainda não se havia enraizado
revolta começa com uma tentativa de golpe na população. Não havia noção a respeito de
militar e com movimentos de estudantes e que se justificaria uma postura negacionista.
operários em escaramuças no centro da A situação atual é totalmente outra.
cidade, mas evolui para um confronto e O negacionismo atual à ciência tem o seu
repressão duríssima aos negros pobres na primeiro capítulo na campanha sistemática
Saúde e adjacências. Cientificismo autoritário, da indústria do cigarro para desacreditar
militarismo, racismo, repressão violenta pesquisas, que começam a aparecer desde a
da dissidência dos pobres. Sem esquecer década de 1950, ligando tabagismo a certos
que a ideologia do embranquecimento era tipos de câncer. Hoje se sabe que houve uma
um projeto do capital, do capitalismo racista, campanha deliberada, corrupta, promovida
interessado em manter o país aberto a por essas corporações multinacionais para
novas levas de imigração europeia e a novos financiar e promover “pesquisas” destinadas
investimentos do capital internacional. a causar confusão, plantar dúvidas e impedir
A comparação entre a conjuntura de o reconhecimento dos problemas causados
1904 e o momento atual é instrutiva, pois um pelo fumo. Esse comportamento da indústria
momento nada tem a ver com o outro, cada um do tabaco lançou uma matriz de atuação que
contendo as suas próprias complexidades. foi replicada mais tarde no negacionismo das
A resistência popular à vacina antivariólica mudanças climáticas. De novo, o interesse
em 1904 tinha a ver com muitas décadas de grandes corporações multinacionais é
de experiência com o procedimento, que fundamental. A direita política norte-americana
permaneceu problemático ao longo de todo se organiza, ao menos desde a década de
o século XIX. A vacina às vezes não pegava, 1980, no governo Reagan, em torno do esforço
custou-se a descobrir que a revacinação para desregular a economia. Hoje em dia é
era necessária após dez anos, o modo de claro o objetivo de evitar que o reconhecimento
inoculação da linfa vacínica podia transmitir das mudanças climáticas globais resulte em
doenças diversas, como a sífilis. Além disso, controle dos empreendimentos capitalistas
interferir no curso de uma epidemia de varíola para defender a vida no planeta. Ou seja, há
contrariava formas de entender a doença um contexto mais amplo do negacionismo
segundo religiões afrobrasileiras. Some-se científico, que aparece associado à ideologia

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do Estado mínimo, da negação dos direitos mínimo, em tudo isso que permite a prática
dos trabalhadores, do conjunto de políticas de um capitalismo predatório, corruptor,
econômicas que se costuma chamar de tipo fiesp, avenida paulista, boi bala bíblia.
neoliberalismo. A única maneira de tocar esse projeto
Haveria muitas maneiras de chegar predatório é desacreditando a ciência,
ao atual negacionismo quanto à vacinação. a academia, o conhecimento em geral,
Um episódio interessante ocorreu quando pois não há controvérsia científica alguma
das primeiras campanhas para vacinação a respeito da necessidade de regular o
contra a gripe no Brasil, na década de 1990, capitalismo para lidar com as mudanças
destinada a prover cobertura à população climáticas e salvar o planeta. Setores
idosa. Houve muita resistência dos idosos do capitalismo internacional entenderam
a tomar a vacina, com relatos frequentes isso faz tempo, sabem que para salvar o
de alguns deles a dizer que a intenção do capitalismo será preciso salvar o planeta.
governo era matar os velhinhos. A explicação No momento, porém, a banda podre e
para isso estava no fato de que o mesmo predatória do capitalismo está no poder nos
governo que oferecia a vacina havia acabado EUA. Aqui, na Bruzundanga, talvez demore
de promover uma campanha dura em favor a se chegar à compreensão de que uma
da mudança nas regras das aposentadorias, floresta em pé, hoje em dia, pode agregar
durante a qual a impressão que se tinha é que mais valor econômico do que pastos sem
a população idosa era culpada pelo déficit fim. O mundo está mudando muito rápido.
público e tudo o mais de ruim que havia no Em suma, não há base alguma para
país. A desconfiança parecia justificável, e o ceticismo quanto à vacinação. O que
assim uma campanha sem dúvida destinada ocorreu no século XX, quanto à história
ao bem-estar das pessoas idosas teve um das imunizações, abala até a crença dos
começo atribulado. céticos mais devotos, entre os quais me
O que torna a situação atual mais incluo. O controle de pragas como varíola,
grave, tanto em relação a 1904 quanto em sarampo, poliomelite, febre amarela e tantas
relação à década de 1990, é que o próprio outras doenças é um bem inestimável, uma
governo central se tornou propagador do conquista da medicina para a humanidade
negacionismo científico. Não há relação inteira. Quem duvidar que passe um tempinho
alguma entre os revoltosos de 1904 e os lendo estatísticas de morte por essas
energúmenos que entram em seus carros doenças em tempos passados. Declarações
e vão buzinar na porta de hospitais hoje de descrédito quanto à vacinação, inclusive
em dia, devidamente incentivados pela as que virão para a covid-19, são parte do
famiglia no poder e as milícias suas aliadas. contexto mais amplo da necessidade de
O componente do interesse econômico contestar a ciência para avançar no intuito de
é óbvio, pois o grande capital aposta na desmontar o Estado, desregular a economia
desregulação da economia, no Estado e retirar direitos dos trabalhadores.

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Epidemias no Brasil, covid-19 e uma “distopia neoliberal”

2) Em uma entrevista recente, você cada ano, durante toda a segunda metade
se referiu à epidemia de coronavírus do século XIX, criava a necessidade de
como uma “distopia neoliberal”, pois continuar a formular modos de intervenção,
vai contra a globalização e circulação numa busca incessante e angustiante, pois
intensa de produtos e pessoas que vinha a febre amarela também se fizera alegoria
acontecendo no Brasil e em outras partes do processo de transformação do mundo
do mundo, com a defesa de Estado do trabalho. A crise da escravidão e o pós-
mínimo e das privatizações, já que força -emancipação ocorreram paralelamente
o isolamento de indivíduos e a parada da à formulação de ideologias raciais que
economia ao mesmo tempo em que revela respondiam ao racismo científico europeu do
a importância de um Estado forte. Você período, próvido em garantir a inviabilidade
poderia explicar melhor essa noção? de um país cujo povo era tão “híbrido”,
sendo que a miscigenação ou o “cruzamento
de raças” era quase sempre tido como
Acho que epidemias importantes acabam conduzente à degeneração da população.
se tornando ao mesmo tempo uma crise A febre amarela passou a representar um
de conhecimento e uma alegoria do tempo obstáculo importante à imigração europeia
histórico. As epidemias de febre amarela no em massa, que garantiria a continuidade da
Brasil da segunda metade do século XIX miscigenação num contexto demográfico
são um bom exemplo das duas cousas. modificado, ideia apoiada também no
O paradigma miasmático a respeito da esforço intelectual de revisar a noção de
propagação de doenças convidava a uma que os híbridos do cruzamento de raças
reflexão ampla sobre as transformações seriam sempre uma degenerescência
históricas do período. A dificuldade de das raças originais. É possível ver esse
uma delimitação precisa da forma de esforço com clareza acompanhando as
transmissão da febre amarela justificou publicações médicas do período, a começar
iniciativas para controlar as formas de pelos Annaes Brasilienses de Medicina,
moradia dos pobres e as maneiras de eles publicação da Academia Imperial de
se inserirem na cidade (campanha contra Medicina. Enfim, a febre amarela interpela
os cortiços), propiciou a compreensão de o conhecimento médico do período, com
que o poder público precisava atuar para consequências importantes sobre como
garantir serviços básicos à população (por enfrentar tal desafio de saúde pública, e ao
exemplo, organizar a coleta de lixo), exigiu mesmo tempo alegoriza as aflições de uma
do Estado o investimento na produção classe dominante diante da dificuldade de
de conhecimento sobre a sociedade pensar o mundo sem escravidão – ou seja,
(recenseamentos, coleta de informações da necessidade dela de justificar de outras
e elaboração de estatísticas diversas). maneiras a continuidade da desigualdade
O fracasso no controle da epidemia, a social e econômica brutal existente no país.

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A pandemia de covid-19 pode ser demais a contenção e desmascaramento


pensada de modo semelhante. Ela é um de falsidades. A circulação instantânea da
desafio de conhecimento em vários níveis. mensagem e a tendência dessas tecnologias
A direita política que governa o Brasil e os digitais de formar bolhas de assentimento
EUA no momento se caracteriza por um tornam a mentira um procedimento viável.
terraplanismo epistemológico denso, que Uma ilustração magnífica desse procedimento
não se deve subestimar. Ela parte de uma de terraplanismo epistemológico é uma
sacação muito importante. A maior parte do cena recente em que o presidente da
conhecimento científico opera a partir do Bruzundanga aparece segurando uma
suposto de que a verdade das cousas não caixinha de cloroquina; ele diz assim, mais
está naquilo que você vê, mas na explicação ou menos: “Pode tomar isso aí, pessoal.
daquilo que estrutura a forma como as Não está provado que cura a covid-19. Mas
cousas se dão a ver aos observadores a também não está provado que não cura...”.
partir de diversas perspectivas. Assim, por A condição de possibilidade de inventar uma
exemplo, ao andar na rua podemos achar realidade alternativa é o pressuposto da
que a terra é plana. Ao passarmos um dia piadinha do governante. Se não posso ter
inteiro observando o Sol, temos a impressão acesso à verdade, então é possível inventar
de que ele gira em torno da Terra. A verdade uma a meu gosto. A era da reprodutibilidade
não é o que a gente pensa que vê. Nem é o digital descontrolada do discurso criou
que a gente lê. Por exemplo, Toni Morrison a possibilidade objetiva, material, do
argumenta que não há nenhuma relação terraplanismo epistemológico de direita.
positiva direta entre o espaço que o racismo Mas há problemas quanto à aplicação
ocupa na superfície dos textos dos autores do terraplanismo cognitivo à epidemia atual.
clássicos da literatura norte-americana A covid-19 é um desafio formidável porque
do Oitocentos e a importância do racismo ela é uma doença que se transmite sem
na fatura desses textos. A questão racial que possamos ver o transmissor, a doença
estrutura em larga medida a visada de corre o mundo carregada por pessoas
autores que ao que parece estão pensando assintomáticas. Ela torna difícil a nossa
e escrevendo sobre outros assuntos. A epidemiologia senso comum do dia a dia: “O
grande sacação da direita internacional Joaquim estava espirrando e tossindo muito,
atual é perceber que havia condições peguei a gripe dele”. A covid-19 lembra
objetivas de apostar na mentira. Quer dizer, a história triste da personagem chamada
se a verdade não é aquilo que a gente vê, Maria Tifóide, uma empregada doméstica
então é possível inventar enunciados falsos irlandesa, imigrante nos EUA no início do
e fazer com que eles passem por verdade. século XX, que transmitia a febre tifóide sem
A condição de possibilidade dessa conduta saber que a tinha. Depois de contaminar
é a disponibilidade de uma tecnologia de várias famílias inteiras, descobriu-se que ela
repetição infinita de mensagens que dificulta transmitia a doença sem ter sintomas dela.

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Epidemias no Brasil, covid-19 e uma “distopia neoliberal”

A mulher acabou isolada num sanatório, sem encaminhe um futuro menos tenso, sirva de
nunca ter entendido direito o que acontecia, forte antídoto à máquina de falsificações da
segundo os relatos de época. Assim, o fato direita. Todavia, tudo é muito arriscado, pois
de o vírus da pandemia atual não se fazer governos de machos eternamente púberes
sempre visível quanto à doença que causa ameaçam precipitar a adoção de uma vacina,
pode parecer um convite ao negacionismo achando que o problema pode ser resolvido
científico de direita. Eu não vejo a doença com voluntarismo. Ameaçam adotar uma
causada pelo vírus, então ele não está solução científica – a vacina – sem a aderir à
espalhado tanto assim, não existe na ciência necessária para produzi-la. Pode dar
intensidade que dizem, logo não se justificam certo, pode virar tragédia. Ao mesmo tempo,
políticas de isolamento e demais supostos a própria corrida para achar vacinas eficazes,
exageros. O problema é que, no caso da envolvendo grandes corporações da indústria
covid-19, a mentira não elimina o vírus, não farmacêutica em aliança com centros de
contorna a verdade. O resultado é que Brasil pesquisa e universidades, vira epítome das
e Estados Unidos, unidos no negacionismo, contradições profundas do momento histórico
permanecem juntos também na necropolítica atual. A potência da ciência, exemplificada
das centenas de milhares de mortes, muitas na intensa colaboração internacional que
delas evitáveis fosse outra a atitude dos deu origem às pesquisas em busca da
governantes. vacina, parece ameaçada pelas pressões
A covid-19 é um desafio também políticas de governantes negacionistas e
para a ciência estabelecida. De fato, é ao pela concorrência capitalista dos vários
mesmo tempo fascinante e aterrador ver a candidatos a oferecer o produto a bilhões
ciência em movimento, tateando, errando de ávidos consumidores. No momento
e acertando, recomeçando, tudo isso em essa parece ser a área mais dinâmica da
tempo real, e sem que se possa ter certeza concorrência capitalista internacional. É a
de quando haverá uma vacina confiável e/ exceção que prova o sentido profundamente
ou um tratamento eficaz para a doença. distópico da covid-19. Não só a circulação
Não tenho ideia a respeito de como essa internacional de mercadorias e pessoas
situação de “ciência em movimento”, ao diminuiu ou cessou, como a ideologia do
vivo e a cores, afetará a percepção das Estado mínimo está levando um baile da
pessoas a respeito do conhecimento e da realidade. Há até o risco de que governos
negação dele pela extrema direita. Pode ser hostis a políticas sociais ajudem a normalizar
que tanta cobertura dos procedimentos de programas assemelhados a propostas de
pesquisa esteja servindo para educar parte renda mínima ou cidadã que aparecem em
da população a respeito da dificuldade e da discussões da esquerda política há décadas.
imprevisibilidade relativa da ciência. Pode Mas a covid-19 não é só alegoria,
ser que esse processo, caso resulte numa distopia neoliberal. Ela confirma, pela
vacina e/ou num tratamento eficaz que enésima vez, a frase de William Coleman,

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um grande estudioso de epidemias de hierarquia entre elas. Nos EUA, a morte


oitocentistas: “A morte é uma doença social”. de muitos imigrantes irlandeses pela praga
Uma crise epidêmica dessas dimensões amarela reforça a noção de que os negros
expõe as desigualdades de acesso aos e apenas eles estavam aptos a realizar
serviços de saúde, a dependência da trabalhos braçais sob o calor escorchante do
sociedade em relação aos trabalhadores sul do país. No Brasil, a alta mortalidade dos
mal remunerados que fazem com que imigrantes devido à febre amarela se tornou
tudo que é básico continue a funcionar, o um obstáculo à promoção da imigração
racismo estrutural multisecular. Explicita europeia em grande escala. No momento
também a irracionalidade e a futilidade do estou terminando uma edição crítica do livro
gerenciamento de empresas e das cidades, de José Pereira Rego, História e descrição da
que desperdiçam tempo e recursos próprios febre amarela epidêmica que grassou no Rio
e do planeta forçando a circulação diária de de Janeiro em 1850 (Chão Editora, previsto
muita gente sem necessidade. para 2021). Sempre fui fascinado por esse
livro, publicado originalmente em 1851, logo
após a primeira grande epidemia de febre
3) Em relação ao tema mais específico amarela no Brasil em 1850. As incertezas
deste dossiê, sobre doenças e os mundos sobre a forma de transmissão da doença, o
do trabalho, você poderia falar sobre a desconhecimento de um tratamento eficaz,
febre amarela no século XIX e sua relação a superlotação de enfermarias e hospitais,
com o racismo científico e as medidas o caos nos enterrramentos em igrejas e
adotadas pelos governantes e médicos cemitérios, a luta dos profissionais de saúde
ligados ao Estado em relação aos – todos temas que nos inundam no momento
trabalhadores escravizados e imigrantes? atual – estão em História e descrição.
Aproveitei para revisitar o assunto e realizei
uma pesquisa mais detalhada sobre a figura
Já disse algo sobre isso na pergunta de José Pereira Rego e sobre a produção
anterior. A febre amarela foi uma doença intelectual dos médicos ligados à Academia
importante para a emergência das ideologias Imperial de Medicina, em especial quanto ao
raciais do século XIX em todas as sociedades estudo dos seus Annaes, como já mencionei.
que emergiam da escravidão (Brasil, EUA, Apesar de Cidade febril ter sido um livro bem
países caribenhos). A doença causava recebido, continuando a circular bastante até
mortalidade elevada entre os brancos, em hoje entre os colegas da área e o público
especial imigrantes recém-chegados ao em geral, houve à época algumas vozes
país, logo sem imunidade adquirida prévia céticas quanto ao meu argumento de que
à doença, poupando em geral os negros, haveria um sentido racial no higienismo
o que origina elucubrações a respeito das brasileiro do Oitocentos. No livro, de fato,
diferenças entre as raças e da existência o argumento é sustentado muito mais por

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Epidemias no Brasil, covid-19 e uma “distopia neoliberal”

dedução, quer dizer, pelo procedimento da estou no facebook, nem no twitter, nem no
imaginação disciplinada pelas evidências “tique-toque”, não uso uátisápi, sequer tenho
e seus limites, pois afinal se tratava de telefone celular, numa atitude deliberada
comprovar uma ideologia racial que tinha de evitar o risco de ser tragado por essas
no seu cerne o procedimento retórico de cousas. Tenho uma conta de instagram que
negar a sua própria existência. Racistas abri a pedido do meu amigo Jean Wyllys,
eram os norte-americanos. Agora, após o que me convidou para uma conversa ao vivo
estudo mais cuidadoso das publicações dos com ele e esse é o meio que ele usa. Nunca
Annaes, juntei muitos testemunhos, na forma postei nada lá, nem sei se o farei algum dia.
de textos publicados e de debates entre os Acho a comunicação instantânea, no reflexo,
sócios da Academia Imperial de Medicina, algo profundamente autoritário, invasivo,
que mostram a penetração profunda do não me submeto a ela de jeito nenhum.
racismo científico na instituição já desde o Meu ofício é ler e pesquisar devagar, pensar
final da década de 1860. lentamente, escrever quase parando. Minhas
fontes de informação sobre a atualidade são
os órgãos da imprensa profissional. Assino
4) Em diferentes momentos históricos, vários jornais e revistas de países diferentes,
as sociedades evocam memórias sobre me preocupo demais com a qualidade da
determinados eventos, com o intuito de informação que me chega. Todavia, isso
auxiliar as pessoas a se situar frente aos não significa que estou alheio ao meio
desafios contemporâneos. Isso ocorre, digital e que me recuse à comunicação.
atualmente, em relação à pandemia de Pelo contrário. É apenas uma escolha
coronavírus: os historiadores foram estratégica, da minha avaliação daquilo que
requisitados a apresentar explicações posso fazer melhor. Considero a situação
sobre como as pessoas lidaram com política global uma questão emergencial
epidemias a exemplo do cólera, da que só se agravou com a pandemia. Nada
febre amarela, da varíola e da gripe justificaria o meu silêncio diante de governos
espanhola. O que você pensa sobre o irresponsáveis, criminosos, genocidas. O
papel desempenhado pelos historiadores conhecimento histórico é essencial nesse
no contexto atual? Quais os efeitos da momento e há uma obrigação moral de
proliferação de comunicações online, compartilhá-lo amplamente. Um aspecto
lives, podcasts e transmissões em redes interessante da pandemia e da quarentena
sociais? é que estou muito mais próximo do Brasil,
em certo sentido. Tenho dado palestras e
entrevistas num ritmo muito mais acelerado
Devo confessar, em primeiro lugar, que do que costumava fazer, pois viajo por toda
evito deliberadamente qualquer participação parte sem sair do lugar. Falo da história como
minha, individual, nas redes sociais. Não conhecimento, da história das epidemias, de

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Gabriela dos Reis Sampaio e Ricardo dos Santos Batista

escravidão e racismo, de literatura e história, a história do Brasil para ser mais otimista
da pandemia e da conjuntura política atual. quanto ao futuro do país. Todavia, há um valor
A tirada normalmente atribuída a Mark Twain profundo, intrinseco, ao exercício de observar
de que a história não se repete, mas que o mundo devagar, sem pressa de interpretar,
ela rima, nos alerta para a continuidade de mas sem fugir à obrigação da interpretação
estruturas sociais, econômicas e políticas de e da divulgação dela num momento de tanta
longa duração que ajudam a nos situar diante violência e ameaça à própria humanidade.
das calamidades contemporâneas. Às vezes O conhecimento histórico é indispensável à
penso que gostaria de saber menos sobre imaginação política.

Recebida em 30/09/2020
Aprovada em 03/10/2020

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