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Pense é uma viagem maravilhosa

ao mundo da filosofia que nos


mostra o papel fundamental que
esta disciplina tem para uma
compreensão mais completa e rica
do universo e dos seres humanos.
Eis alguns dos temas abordados
nesta obra:
• Poderemos conhecer alguma
coisa com segurança, ou é tudo
um mar de dúvidas?
SIMON BLACKBURN é professor de Filo­
• O que é a consciência? sofia na Universidade de Cambridge e
Será que temos uma alma imortal?
um dos mais reputados filósofos con­
Ou somos apenas um produto das
temporâneos. Foi director da Mind, a
leis da natureza?
mais prestigiada revista internacional
• Seremos realmente livres, ou de filosofia, de 1984 a 1990, efellow e
estará tudo determinado pelas leis
tutor do Pembroke College de Oxford.
da natureza? Ou haverá maneira
É autor de Spreading the Word (1984),
de sermos livres apesar de tudo
depender das leis da natureza? Essays in Quasi-Realism (1993) e
Ruling Passions: A Theory of Practical
• O corpo é meu, o cérebro é meu
Reasoning (1998), além do Dicionário
e os pensamentos são meus - mas
onde está o eu que é proprietário de Filosofia (1994), publicado na «Filo­
disso tudo? O que é o eu? Será que sofia Aberta», e mais recentemente The
é apenas uma ilusão? Being Goog (2001), uma brilhante in­
trodução à ética. As teorias defendidas
• Será que Deus existe?
E os milagres? Será que a fé está por Simon Blackburn são tema corrente

para além do pensamento? de discussão na bibliografia especiali­


zada, sobretudo a sua teoria da razão
• O que é a lógica? Serve para
alguma coisa? E as probabilidades? prática e as suas posições quase-realistas

Como pode a lógica ajudar-nos em ética, epistemologia e metafísica.


a compreender melhor o mundo? Apesar da sua estatura como filósofo
- ou talvez por isso mesmo -, interessa-
• Será o mundo como a ciência
diz que é? Mas como é o mundo -se fortemente pela divulgação da

que a ciência descreve? filosofia a um público mais vasto: de


acordo com as suas próprias palavras, «a
• Como podemos tomar melhores
decisões na nossa vida? Como filosofia deve descer à rua» (entrevista

poderemos encarar-nos como seres ao Público).


humanos sem nos tornarmos meros
objectos? Será que tudo é relativo?
-•
◄Jli•i·ht•v.BERTA

1. QUE QUER DIZER TUDO ISTO?


Uma Iniciação à Filosofia
Thomas Nagel
2. A ARTE DE ARGUMENTAR
Anthony Weston
3. MENTE, HOMEM E MÁQUINA
Paul T. Sagal
4. DICIONÁRIO DE FILOSOFIA
Simon Blackburn
5. ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA
Nigel Warburton
6. LÓGICA: UM CURSO INTRODUTÓRIO
W. H. Newton-Smith
7. SERÁ QUE DEUS EXISTE?
Richard Swinburne
8. A ÚLTIMA PALAVRA
Thomas Nagel
9. ÉTICA PRÁTICA
Peter Singer
10. PENSE
Uma Contagiante Introdução à Filosofia
Simon Blackburn

A publicar:

ENCICLOPÉDIA DE TERMOS LÓCICO-FILOSÓFICOS


Org. de João Branquinho e Desidério Murcho
A FILOSOFIA DA FíSICA
Lawrence Sklar
AS LINGUAGENS DA ARTE
Nelson Goodman
SIMON BLACKBURN

PENSE
UMA CONTAGIANTE INTRODUÇÃO
A FILOSOFIA

REVISÃO CIENfÍFICA
DESIDÉRIO MURCHO
SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA

PEDRO SANTOS
UNNERSIDADE DO ALGARVE

gradiva
Título original: Think: A Compelling Introduction to Philosophy
© 1999, by Simon Blackburn
This translation of Think: A Compelling Introduction to
Philosophy, originally published in English in 1999, is published
by arrangement with Oxford University Press
Esta tradução de Think: A Compelling Introduction to Philosophy,
originalmente publicada em inglês em 1999, é publicada
com o acordo da Oxford University Press
tradução: António Infante, António Paulo da Costa, Célia Teixeira,
Desidério Murcho, Fátima St. Aubyn, Francisco Azevedo
e Paulo Ruas
Revisão científica: Desidério Murcho e Pedro Santos
Revisão do texto: Manuel Joaquim Vieira
Capa: Armando Lopes, sobre ilustração de David Ligare,
Still Life with a Rock and a Leaf (1994)
Fotocomposição: Gradiva
Impressão e acabamento: Rolo & Filhos, Artes Gráficas, L.""
Reservados os direitos para Portugal a: Gradiva - Publicações, L.""
Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. -1399-041 Lisboa
Telefs. 21 39'7 40 67/8 -21 397 13 57 - 21 395 34 70
Fax 21 395 34 71 -Email: gradiva@ip.pt
URL: http://www.gradiva.pt
l.ª edição: Junho de 2001
Depósito legal n.º 165 793/2001

Colecção coordenada por


ÜEsIDÉRIO MURCHO e GUILHERME VALENTE
com o apoio científico do
CENTRO PARA o ENSINO DA FILOSOFIA
(Sociedade Portuguesa de Filosofia)
Índice

Prefácio............................................................................................ 9
Introdução ...................................................................................... 11
Sobre que havemos de pensar? ....................................................... 12
Qual é o interesse? ............................................................................. 15

1. Conhecimento........................................................................... 23
Perder o mundo.................................................................................. 23
O génio maligno ................................................................................. 26
Cogito, ergo sum ..............................................................................,.... 27
Motivações, questões ......................................................................... 30
O esquivo «eu» ................................................................................... 36
Ideias claras e distintas ..................................................................... 40
O argumento da marca..................................................................... 42
O círculo cartesiano .......................... ................................................. 45
Fundamentos e redes......................................................................... 48
Cepticismos localizados .................................................................... 53
A moral da história................................ ............................................ 55

2. Mente ......................................................................................... 57
O fantasma na máquina ................................................................... 58
Mortos-vivos e mutantes .................................................................. 60
Locke, Leibniz e o bel-prazer de Deus .......................................... 66
A análise .................................. ................. ............................................ 73
PENSE

Um modelo científico ........................................................................ 76


Espectros invertidos: linguagens privadas ................................. 80
Pensamento....................................................................................... 85

3. Livre arbítrio .......................................................................... 89


As grilhetas do destino .................................................................. 90
Figueiras e quedas de água .......................................................... 93
Autodomínio .................................................................................... 98
Bonecos e marcianos....................................................................... 105
Obsessões e Twinkies...................................................................... 107
Objectivar pessoas ........................................................................... 115
Destino, oráculos e morte.............................................................. 118
Flexibilidade e dignidade .............................................................. 126

4. O eu ......................................................................................... 129
Uma alma imortal? ......................................................................... 129
Carvalhos e navios .......................................................................... 134
Almas e bolas elásticas .................................................................. 136
O militar corajoso............................................................................ 139
O eu como feixe .............................................................................. 143
O eu como princípio organizador............................................... 146
Delírios da imaginação................................................................... 148
Misturar almas .................................................... ............................. 152

5. Deus ......................................................................................... 157


Crenças e outras coisas .................................................................. 157
O argumento de S. 10 Anselmo: a mulher dos nossos sonhos e
perus............................................................................................... 160
Elefantes e tartarugas ..................................................................... 167
O arquitecto sábio ........................................................................... 171
O problema do mal ........................................................................ 176
Milagres e testemunho ................................................................... 183
Infini-rien........................................................................................... 192
Emoção e vontade de acreditar.................................................... 196

6. Raciocínio ................................................................................ 201


Um pouco de lógica ....................................................................... 201
Tabelas de verdade .......................................................................... 203
ÍNDICE

Não há que ter medo ..................................................................... 208


Linguagem e lógica......................................................................... 213
Raciocínios plausíveis ..................................................................... 218
A lotaria da Harpa de Ouro ......................................................... 221
Coisas hipotéticas............................................................................ 225
Explicações e paradigmas.............................................................. 232

7. O mundo................................................................................. 239
Cores, cheiros, sons, sensações e gostos .................................... 239
Um robusto bom senso.................................................................. 247
Os problemas de Berkeley............................................................. 249
Forças, campos e coisas ................................................................. 253
Coletes-de-forças e leis ................................................................... 256
A revolução de Kant....................................................................... 259
Os olhos de quem a vê .................................................................. 265
Regras, universais............................................................................ 270

8. O que fazer............................................................................. 275


Preocupações reais .......................................................................... 276
A voz interior ................................................................................... 282
Verdade e bondade.......................................................................... 287
Bons maus sentimentos.................................................................. 291
Raciocínio prático ............................................................................ 294
Coerência, objectividade, imaginação ......................................... 297
Relativismo........................................................................................ 300
Despedida.......................................................................................... 302

Bibliografia ................................................................................... 303


Glos s ário inglês p - ortuguês ........................................................ 307
Índice analítico ............................................................................ 317
Prefácio

Este livro é o resultado de anos a tentar fazer as pessoas


terem interesse pelas ideias. É algo que fiz enquanto profes­
sor, mas também enquanto alguém que tenta explicar o valor
das humanidades em geral, e da filosofia em particular, a um
público mais alargado. Na verdade, a minha primeira dívida
é para com o clima do nosso tempo, cujo cepticismo quanto
ao valor do ensino superior me mostrou claramente a urgên­
cia desta tarefa. Uma segunda dívida, mais séria, é para com
todos os estudantes que, ao longo de muitos anos, acabaram
por dar forma a este livro com os seus acenos de cabeça e
sobrolhos franzidos. Estou também em dívida para com as­
sistentes universitários aqui na Universidade da Carolina do
Norte, que tiveram uma experiência directa na tarefa de ca­
tivar os estudantes para versões mais antigas deste trabalho.
Todavia, jamais me teria aventurado se não fosse o generoso
encorajamento de Catherine Clarke e Angus Phillips, da
Oxford University Press. Angus seguiu de perto o desenvol­
vimento do trabalho, ficando eu a dever muito ao seu apoio
e conselhos.
Algumas versões mais antigas deste trabalho foram lidas
por Huw Price e Ralph Walker, fornecendo-me ambos precio­
sas sugestões. Yuri Balashov e Dan Ryder ajudaram-me em

9
PENSE

temas particulares. Por uma questão de brevidade não incluí


um glossário de termos filosóficos, que em qualquer caso
teria sido inspirado nas definições que se encontram no meu
Dicionário de Filosofia.
A soberba revisão de Maura High e Angela Blackbum
deu-me uma desconfortável consciência das minhas limita­
ções como escritor, escondendo-as no entanto, felizmente, do
público. Angela, claro, teve também de sofrer os problemas
habituais de ter um marido que escreve, e sem o apoio dela
nada teria sido possível.

SIMON BLACKBURN

10
Introdução

Este livro é para pessoas que querem pensar sobre os


grandes temas: conhecimento, razão, verdade, mente, liber­
dade, destino, identidade, Deus, bem, justiça. Estes temas
não são do domínio privado dos especialistas. São coisas
naturalmente enigmáticas para homens e mulheres, pois
estruturam os diferentes modos como pensamos sobre o
mundo e sobre o nosso lugar nele. São também temas acerca
dos quais os pensadores tiveram uma palavra a dizer. Neste
livro procuro apresentar modos de pensar sobre os grandes
temas. Apresento também algumas das coisas que os pensa­
dores disseram sobre esses temas. Se os leitores assimilarem
este livro, deverão sentir-se mais à vontade relativamente
aos grandes temas. E deverão poder ler com prazer e uma
razoável compreensão muitas das obras dos grandes pensa­
dores, obras que de outro modo são desconcertantes.
A palavra «filosofia» tem conotações infelizes: coisas
abstractas, remotas, esquisitas. Tenho a impressão de que to­
dos os filósofos e estudantes de Filosofia passam por aquele
momento de embaraço silencioso quando algu ém nos per­
gunta inocentemente o que fazemos. Eu preferiria apresen­
tar-me como engenheiro conceptual. Pois, tal como um enge­
nheiro estuda a estrutura das coisas materiais, o filósofo

11
PENSE

estuda a estrutura do pensamento. Para compreender a


estrutura é necessário ver como as partes funcionam e se
conectam entre si, o que significa saber o que aconteceria de
melhor ou pior se fizéssemos algumas mudanças. É este o
nosso objectivo ao investigarmos a estrutura que dá forma à
nossa visão do mundo. Os nossos conceitos e ideias consti­
tuem o lar mental em que vivemos. No fim talvez tenhamos
orgulho nas estruturas que construímos. Ou talvez pense­
mos que esses conceitos precisam de ser desmantelados e
que temos de começar a partir do zero. Mas primeiro temos
de saber o que são estes conceitos.
O livro é de leitura independente e não pressupõe que o
leitor tem outros recursos. Mas pode ser complementado.
Por exemplo, pode ser lido a par de algumas das fontes pri­
márias que cito frequentemente. Essas fontes são clássi­
cos como as Meditações, de Descartes, os Irês Diálogos, de
Berkeley, a Investigação sobre o Entendimento Humano ou os
Diálogos sobre a Religião Natural, de Hume. Mas este livro
também pode ser lido independentemente, sem que o leitor
tenha à sua disposição os textos referidos. E, depois de o ler,
deve lançar-se nos clássicos, ou noutras coisas como manuais
de lógica ou obras de ética, com um espírito preparado.

Sobre que havemos de pensar?


Eis algumas perguntas que qualquer um de nós pode
fazer sobre nós mesmos: O que sou eu? O que é a consciên­
cia? Será que eu poderia sobreviver à morte do meu corpo?
Será que posso ter a certeza de que as experiências e sensa­
ções das outras pessoas são como as minhas? Se eu não posso
partilhar as experiências das outras pessoas, será que posso
comunicar com elas? Será que agimos sempre em função do
nosso interesse próprio? Será que sou uma espécie de fanto­
che, programado para fazer as coisas que penso fazer em
função do meu livre arbítrio?

12
INTRODUÇÃO

Eis algumas perguntas sobre o mundo: Por que razão há


algo e não o nada? Qual a diferença entre o passado e o
futuro? Por que razão a causalidade acontece sempre do pas­
sado para o futuro, ou será que faz sentido pensar que o
passado pode ser influenciado pelo futuro? Por que razão é
a natureza regular? Será que o mundo pressupõe um Cria­
dor? E, se pressupõe, será que podemos compreender por
que razão ele (ou ela ou eles) o criou?
Por fim, eis algumas perguntas sobre nós e o mundo:
Como podemos ter a certeza de que o mundo é realmente
como pensamos que é? O que é o conhecimento e que quan­
tidade de conhecimento temos? O que faz de uma área de
investigação uma ciência? (Será a psicanálise uma ciência?
E a economia?) Como conhecemos os objectos abstractos,
como os números? Como conhecemos os valores e os deve­
res? Como poderemos saber se as nossas opiniões são
objectivas ou apenas subjectivas?
O que há de singular nestas perguntas é não apenas se­
rem desconcertantes à primeira vista, mas também desafia­
rem processos simples de solução. Se alguém me perguntar
quando é a maré cheia, sei como fazer para obter uma res­
posta. Há tabelas fidedignas que posso consultar. Posso ter
uma ideia de como se fazem essas tabelas. E, se tudo o resto
falhar, eu próprio posso ir medir as marés. Uma pergunta
deste género refere-se à experiência: é uma pergunta empírica.
Pode responder-se por meio de processos comprovados, que
incluem olhar e ver, medir, ou aplicar regras que, perante a
experiência, verificámos que funcionam. As perguntas dos
parágrafos anteriores não são assim. Parecem exigir mais re­
flexão. Não sabemos imediatamente para onde olhar. Talvez
tenhamos a sensação de que não sabemos exactamente o que
queremos dizer quando fazemos aquelas perguntas, ou o
que poderia ser considerado uma solução. O que será que
me poderia mostrar, por exemplo, que eu não sou afinal um
fantoche, programado para fazer as coisas que penso fazer
livremente? Será que devemos perguntar aos cientistas que

13
PENSE

são especialistas do cérebro? Mas como iriam eles saber o


que procurar? E como saberiam que tinham encontrado
algo? Imagine a primeira página do jornal: «Neurocientistas
descobrem que os seres humanos não são fantoches. » Como?
O que dará então origem a essas perguntas desconcertantes?
Numa palavra: a auto-reflexão. Os seres humanos têm a
capacidade de reflectir constantemente sobre si próprios.
Podemos fazer algo por hábito, mas depois somos capazes
de começar a reflectir sobre esse hábito. Podemos pensar
coisas por hábito e depois reflectir sobre o que estamos a
pensar. Podemos perguntar a nós mesmos (ou, por vezes, são
as outras pessoas que nos perguntam) se sabemos do que
estamos a falar. Para responder temos de reflectir sobre as
nossas próprias posições, a nossa própria compreensão do
que estamos a dizer, as nossas próprias fontes de autoridade.
Podemos começar a duvidar se sabemos o que queremos
dizer. Podemos começar a duvidar se o que dizemos é
«objectivamente » verdadeiro ou apenas o resultado da nossa
própria perspectiva, ou o que a situação nos parece. Ao pen­
sar sobre isto, confrontamo-nos com categorias como conhe­
cimento, objectividade, verdade, e podemos querer pensar
sobre elas. Nesse ponto estamos a reflectir sobre conceitos,
processos e convicções que normalmente nos limitamos a
usar. Estamos a olhar para os andaimes do nosso pensamento
e a fazer a nossa engenharia conceptual.
A reflexão pode surgir no decurso de uma discussão per­
feitamente normal. Um historiador, por exemplo, está mais
ou menos condenado a perguntar a certa altura o que, em
história, quer dizer «objectividade » ou «prova» ou mesmo
«verdade». Um cosmólogo tem de fazer uma pausa quando
está a resolver equações com a letra t e perguntar o que se
quer dizer com o fluxo do tempo ou a direcção do tempo ou
o princípio do tempo. Mas nesse momento, quer se aperce­
bam disso, quer não, transformam-se em filósofos. E estão a
começar a fazer uma coisa que pode ser bem ou mal feita.
O objectivo é fazê-la bem.

14
INTRODUÇÃO

Como aprendemos filosofia? Uma pergunta melhor é a


seguinte: como podemos adquirir destreza no pensamento?
O pensamento em questão implica ter atenção a estruturas
básicas do pensamento. Isto pode ser bem ou mal feito, de
forma inteligente ou inepta. Mas ser capaz de o fazer bem
não é, em primeiro lugar, adquirir um corpo de conhecimen­
tos. É mais como saber tocar piano. É tanto um «saber fazer»
quanto um «saber que». A personagem filosófica mais fa­
mosa do mundo clássico, o Sócrates dos diálogos de Platão,
não tinha orgulho na quantidade de coisas que sabia. Pelo
contrário, tinha orgulho em ser o único a saber quão pouco
sabia (uma vez mais, a reflexão). O que ele fazia bem -em
princípio, pois a avaliação do seu sucesso varia - era expor
os pontos fracos das pretensões das outras pessoas ao conhe­
cimento. Processar bem os pensamentos é uma questão de
ser capaz de evitar confusões, detectar ambiguidades, pensar
numa coisa de cada vez, apresentar argumentos de con­
fiança, ter consciência das alternativas, etc.
Resumindo: as nossas ideias e conceitos podem ser compa­
radas com lentes através das quais vemos o mundo. Em filo­
sofia, são as próprias lentes que constituem o tema de estudo.
Seremos bem ou mal sucedidos não em função da quantidade
de coisas que sabemos no fim do estudo, mas em função do
que podemos fazer quando as coisas se tornam difíceis:
quando a maré dos argumentos sobe e se gera a confusão. Ser
bem sucedido quer dizer levar a sério o que as ideias implicam.

Qual é o interesse?

Está tudo muito bem, mas será que vale a pena preocupar­
mo-nos? Qual é o interesse? A reflexão não põe o mundo a
funcionar. Não coze o pão nem põe os aviões no ar. Por que
razão não havemos de pôr as perguntas reflexivas de lado e
passar às outras coisas? Irei esboçar três tipos de respostas:
a elevada, a intermédia e a chã.

15
PENSE

A resposta elevada põe em questão a pergunta - urna


estratégia filosófica típica, pois implica subir um grau na
ordem da reflexão. Que queremos dizer quando pergunta­
mos para que serve? A reflexão não coze o pão, mas também
a arquitectura não o faz, nem a música, a arte, a história ou
a literatura. Acontece apenas que nos queremos compreen­
der. Queremos isto pelo seu valor intrínseco, tal corno os
especialistas em ciências ou matemáticas puras podem que­
rer compreender o princípio do universo ou a teoria dos
conjuntos pelo seu valor intrínseco, ou corno um músico
pode querer resolver alguns problemas na harmonia ou no
contraponto pelo seu valor intrínseco. São coisas que não se
fazem em função de aplicações práticas. Grande parte da
vida consiste de facto em criar gado para poder comprar
mais terra, para poder criar mais gado, para poder comprar
mais terra ... Os momentos em que nos libertamos disso, seja
para fazer matemática ou música, para ler Platão ou Eça de
Queirós, devem ser acarinhados. São momentos em que de­
senvolvemos a nossa saúde mental. E a nossa saúde mental
é boa em si, corno a nossa saúde física. Além disso, há, no fim
de contas, uma recompensa em termos de prazer. Quando
ternos saúde física, o exercício físico dá-nos prazer, e quando
ternos saúde mental, o exercício mental dá-nos prazer.
Esta é urna resposta purista. Esta resposta não está errada,
mas tem um problema. Acontece que provavelmente só con­
segue ser atraente para as pessoas que já estão parcialmente
convencidas - pessoas que não fizeram a pergunta original
num tom de voz muito agressivo.
Por isso, eis uma resposta intermédia. A reflexão é impor­
tante porque está na continuidade com a prática. O modo
corno pensamos sobre o que estamos a fazer afecta o modo
corno o fazemos, ou até mesmo o chegarmos a fazê-lo; pode
conduzir a nossa investigação, ou a nossa atitude relativa­
mente a pessoas que fazem as coisas de modo diferente,
ou até toda a nossa vida. Tornemos um exemplo simples: se
as nossas reflexões nos levarem a acreditar na vida depois

16
INTRODUÇÃO

da morte, podemos estar preparados para enfrentar perse­


guições que não enfrentaríamos se nos convencêssemos
- como muitos filósofos - de que a noção não faz sentido.
O fatalismo, ou a ideia de que o futuro está determinado,
sej a o que for que façamos, é uma convicção puramente filo­
sófica - mas é uma convicção que tem o poder de paralisar
a acção. Em termos mais políticos, pode também ex primir a
aceitação do baix o estatuto social atribuído a alguns segmen­
tos da população, o que pode ser reconforta nte para pessoas
que, pertencendo aos estatutos mais elevados, encorajam
essa aceitação.
Consideremos alguns ex emplos mais prevalecentes no
O cidente. Ao reflectir sobre a natureza huma na, muitas pes­
soas pensam que, no fundo, somos inteiramente egoístas. Só
procuramos a nossa própria va ntagem e nunca nos preocu­
pamos realmente com mais ninguém. Q uando parece que
nos preocupamos com os outros, isso apenas disfarça a nossa
esperança num benefício futuro para nós mesmos. O pa­
radigma principal nas ciências sociais é o homo economicus -
o homem económico. O homem económico toma conta de
si, numa luta competitiva com os outros. O ra, se as pessoas
pensarem que somos todos sempre assim, as suas relações
com os outros transformam- se, pois terão menos confiança
neles, serão menos cooperativas e mais desconfiadas. I sto
muda o modo como interagem com os outros, o que acarreta
vários custos. Irão descobrir que é difícil, e por vezes impos­
sível, manter actividades cooperativas: podem ficar encurra­
ladas naquilo a que o filósofo T homas Hobbes (1588-1676)
chamou «a guerra de todos contra todos» . Na vida real, essas
pessoas terão um alto custo a pagar, pois estão sempre a
pensar que estão a ser enganadas. Se a minha atitude for a
de que «um contrato verbal não vale o papel em que está
escrito» , terei de pagar a advogados para conceberem con­
tratos com sanções, e, se eu não confiar nos advogados por
pensar que eles nada fazem ex cepto encher- se de dinheiro à
custa dos outros, terei de contratar outros advogados para

17
PENSE

verificarem o trabalho dos primeiros advogados, e assim por


diante. Mas tudo isto pode estar baseado num erro filosófico,
que consiste em olhar para a motivação humana através de
um conjunto de categorias erradas, compreendendo por­
tanto de forma errada a sua natureza. Talvez as pessoas
possam importar-se umas com as outras, ou pelo menos
preocupar-se em cumprir a sua parte e em manter as suas
promessas. Se tivermos uma imagem mais optimista, talvez
as pessoas possam viver de acordo com ela. Talvez as suas
vidas melhorem. Assim, pensar um pouco, encontrar as
categorias certas para compreender a motivação humana,
é uma tarefa prática importante. Não é algo que esteja confi­
nado ao escritório; pelo contrário, é algo que extravasa o
escritório.
Eis um exemplo muito diferente. O astrónomo polaco
Nicolau Copérnico (1473-1543) reflectiu sobre como temos
conhecimento do movimento. Copérnico percebeu que o modo
como compreendemos o movimento depende da nossa pers­
pectiva: isto é, a questão de saber se vemos ou não os objectos
em movimento é o resultado do modo como nós próprios
estamos colocados e, em particular, da questão de saber se
nós próprios estamos ou não em movimento. (Sobretudo em
comboios ou nos aeroportos, já tivemos a ilusão de ver o
comboio ou o avião que está ao lado do nosso começar a
movimentar-se, apercebendo-nos depois, com um sobres­
salto, que somos nós que estamos em movimento. Mas no
tempo de Copérnico havia menos exemplos quotidianos.)
Assim, os movimentos aparentes das estrelas e dos planetas
poderiam ocorrer não por eles se movimentarem como apa­
rentam, mas por causa do nosso próprio movimento. E, afi­
nal, as coisas são mesmo assim. Neste caso, a reflexão sobre
a natureza do «conhecimento» -o que os filósofos chamam
«investigação epistemológica», do grego episteme, que significa
«conhecimento» - deu origem ao primeiro grande salto da
ciência moderna. As reflexões de Einstein sobre o modo
como sabemos que dois acontecimentos são simultâneos

18
INTRODUÇÃO

ti nham a mesma estr utura. Ei nstei n perc ebeu que o s re sulta­


do s d as no ssas medi ções iri am d epend er d a direc ção em que
estamo s a vi ajar r elati vamente ao s aco nteci mento s que
estamo s a cro no metrar. Isto co nd uzi u à teori a da relati vid ad e
especial ( e o pr óprio Ei nstei n r eco nhec eu a i mpor tâ nci a do s
fi lóso fo s que o pr ec ed er am ao sensi bi li zar em-no par a as
co mplexid ad es epi stemo lógicas d e tai s medi ções) .
Co mo ex emplo fi nal pod emo s co nsid erar um pro blema
fi lo sófico que mui tas pesso as enfr entam quando pensam
so br e a mente e o cor po . Mui tas pesso as têm em vi sta uma
separ ação estrita entr e a mente, co mo uma coisa, e o cor po ,
co mo uma coisa dif erente. Embor a i sto po ssa par ec er apenas
bo m senso , pod e co meçar a co ntami nar a pr átic a d e uma
maneir a bastante i nsidio sa. Por ex emplo , co meça a ser di fíci l
ver co mo estas d uas coi sas di fer entes i nter agem. O s médico s
pod em então ac har quase inevitável que falhem o s tr atamen­
to s d as co ndi ções físicas que r espo nd em a c ausas mentai s o u
psico lógic as. Pod em ac har pr atic amente i mpo ssível ver
co mo i nterferir na mente d e algu ém pod e algu ma vez c ausar
mud anças no si stema físico co mplexo que é o seu cor po .
Afi nal, a bo a ci ênci a di z- no s que é nec essário ter c ausas fí ­
sic as e químicas par a ter efei to s físico s e químico s. Lo go ,
pod emo s ter uma c er teza a priori, uma c er teza d e pol tro na,
d e que um c er to ti po d e tr atamento (dro gas e c ho ques
eléc trico s, por ex emplo) tem d e estar «corr ec to » e que o utro
ti po d e tr atamento (co mo tr atar o s paci entes humanamente,
o aco nsel hamento e a análi se) está «err ado »: não é ci entífico ,
não é sólido , está co nd enado a falhar. Mas esta c er teza não
tem co mo pr emissa a ci ência, mas uma falsa filosofia. U ma
co nc epção fi lo sófic a melhor d a r elação entre a mente e o
cor po mud a essa c er teza. U ma co nc epção melhor d eve per ­
mi tir -no s ver que nad a há d e surpreendente no fac to d e haver
i nterac ção mente-cor po . U m do s fac to s mai s corri queiro s,
por ex emplo , é o d e pensar em algu mas coi sas (do mínio
mental) pod er fazer cor ar (do mínio fí sico) . P ensar num
peri go futuro pod e c ausar todo o ti po d e mud anças cor po -

19
PENSE

r ais: o coração bate rapidamente, o s pun ho s fecham-se, as en­


tranha s co ntraem-se. Por ex tr apo lação, não deve haver qual­
quer dificuldade em co mpr eender que um estado mental,
co mo um alegr e o ptimismo, po ssa afectar um estado físico,
co mo o desapar ecimento de manchas na pele o u até a r emis­
são de um cancro. O pro blema de saber se tais co isas aco nte­
cem realmente tr ansfor ma- se numa questão pur amente empí­
rica. A pró pr ia cer teza de po ltro na de que tais co isas não
po der iam aco ntecer é afinal algo que depende de uma má
co mpr eensão das estru tur as do pensamento, o u, por o utr as
palavras, má filo so fia - e nesse senti do é anticientífica. E per­
ceber isto po de melhor ar as atitu des e as pr áticas médicas.
Assim, a r espo sta inter média chama- no s a atenção par a o
fa cto de a r eflex ão estar na co ntinuidade co m a pr ática, po ­
dendo a no ssa pr ática ser melhor o u pior de acor do co m o
valor das no ssas r eflexõ es. U m sistema de pensamento é algo
em que vivemo s, tal co mo uma casa, e, se a no ssa casa inte­
lectual esti ver f echada e for limitada, pr ecisamo s de ver que
o utras estru tur as melhor es ser ão po ssíveis.
A respo sta chã limita- se a sublin har um po uco este aspecto,
não relati vamente a belas disciplinas gr acio sas, co mo a eco ­
no mi a e a fí sica, mas relativamente ao piso térr eo, o nde a
vida humana é um po uco meno s elegante. U ma das sér ies de
sátir as gr avadas pelo pintor espan ho l Goya tem por título
«O So no da Razão Pro duz Mo nstro s». Goya pensava que
mui tas das lo ucuras da humanidade r esultavam do « so no
da r azão ». Há sempr e pesso as pro ntas a dizer- no s o que que­
r emo s, a ex plicar- no s co mo no s vão dar essas co isas e a mo s­
tr ar -no s no que devemo s acr editar. As co nvicçõ es são co nta­
gio sas e é po ssível co nvencer as pesso as de pr aticamente
tudo. G er almente estamo s dispo sto s a pensar que o s nossos
hábito s, as nossas co nvicçõ es, a nossa religião e o s nossos po ­
líti co s são mel hor es do que o s delas, o u que o s nossos direito s
dado s por Deus anulam o s direito s delas, o u que o s nossos
inter esses ex igem ataques defensivo s o u dissuasivo s co ntr a
elas. Em últi ma análise, tr ata- se de ideias que fazem as pes-

20
INTRODUÇÃO

soas matarem-se umas às outras. É por causa de ideias sobre


o que os outros são, ou quem somos nós, ou o que os nossos
interesses ou direitos exigem que fazemos guerras ou opri­
mimos os outros de consciência tranquila, ou até aceitamos
por vezes ser oprimidos. Quando estas convicções implicam
o sono da razão, o despertar crítico é o antídoto. A reflexão
permite-nos recuar, ver que talvez a nossa perspectiva sobre
uma dada situação esteja distorcida ou seja cega, ou, pelo
menos, ver se há argumentos a favor dos nossos hábitos, ou
se é tudo meramente subjectivo. Fazer isto bem é pôr em
prática mais alguma engenharia conceptual.
A reflexão pode ser encarada como uma coisa perigosa,
visto que não podemos saber à partida onde nos conduzirá.
Há sempre pensamentos que se opõem à reflexão. As ques­
tões filosóficas fazem muitas pessoas sentirem-se descon­
fortáveis, ou mesmo ultrajadas. Algumas têm medo que as
suas ideias possam não resistir tão bem como elas gostariam
se começarem a pensar sobre elas. Outras podem querer
basear-se nas «políticas da identidade» ou, por outras pala­
vras, no tipo de identificação com uma tradição, grupo ou
identidades nacionais ou étnicas particulares que as convida
a voltar as costas a estranhos que coloquem em causa os
hábitos do grupo. Essas pessoas irão minimizar a crítica: os
seus valores são «incomensuráveis» relativamente aos valo­
res dos estranhos. Só os irmãos e irmãs do seu círculo podem
compreendê-las. Algumas pessoas gostam de se refugiar
num círculo espesso e confortável de tradições populares,
sem se preocuparem muito com a sua estrutura, as suas ori­
gens, ou mesmo as críticas que possam merecer. A reflexão
abre a avenida da crítica e as tradições populares podem não
gostar da crítica. Neste sentido, as ideologias tomam-se cír­
culos fechados, prontas a sentirem-se ultrajadas pelo espírito
interrogante.
Nos últimos 2000 anos, a tradição filosófica tem sido a
inimiga deste tipo de complacência confortável. Tem insis­
tido na ideia de que uma vida não examinada não vale a

21
PENSE

pena ser vi vida. Tem insistido no poder da reflexão racional


para des co brir o que h á de errado nas nossas pr áti cas e para
as su bstituir por pr áti cas melhores. Tem identifi cado a auto­
-reflexão cr íti ca com a li berdade - e a ideia é que só quando
nos conseguimos ver a nós mesmos de forma adequada
podemos controlar a dire cção em que desejamos caminhar.
Só quando conseguimos ver a nossa situação de forma est á­
vel e a vemos na sua totalidade podemos começar a pensar
no que fazer a seu respeito. Marx disse que os filósofos ante­
riores tinham pro curado compreender o mundo, ao passo
que o que era pre ciso era mud á-lo - uma das asserções
famosas mais tolas de todos os tempos (e completamente
desmentida pela sua própria pr áti ca intele ctual). Teria sido
melhor que Marx ti vesse acres centado que, sem compreen­
der o mundo, pou co saberemos em termos de como o mu­
dar -pelo menos para melhor. Rosencranz e Guildenstern
admitem não saber to car gaita-de - foles, mas tentam mani­
pular Hamlet. Quando agimos sem compreensão, o mundo
est á perfeitamente preparado para dar voz à reacção de
Hamlet: «Pensais que eu sou mais f ácil de controlar que uma
gaita- de - foles?»
H á correntes académi cas no nosso tempo que são contra
estas ideias. H ápessoas que questionam aprópria noção de
verdade, de razão, ou apossi bilidade da reflexão desapaixo­
nada. Na sua maior parte, fazem má filosofia, muitas vezes
sem saberem que é isso que estão a fazer: são engenheiros
conceptuais que não conseguem desenhar umplano, quanto
mais conce ber uma estrutura. Voltaremos a esta questão
várias vezes ao longo do li vro, mas para j á posso prometer
que este li vro est á de cara le vantada ao lado da tradição
e contra qualquer cepti cismo moderno, ou pós - moderno,
quanto ao valor da reflexão.
O mote completo de Goya para a sua gravura é o que
segue: «A imaginação abandonadapela razão produz mons­
tros imposs í veis; unida a ela, é a mãe das artes e a fonte dos
seus encantos.» É assim que de vemos encarar as coisas.

22
1
Conhecimento

O pensamento mais perturbador que muitos de nós te­


mos, com frequência quando ainda crianças, é talvez consi­
derar que o mundo inteiro pode ser apenas um sonho; que
os acontecimentos e objectos comuns da vida quotidiana
podem ser fantasias. A realidade na qual vivemos pode ser
uma realidade virtual, engendrada pelas nossas mentes ou,
talvez, introduzida nas nossas mentes por um qualquer si­
nistro Outro. É claro que estes pensamentos vêm e depois
desaparecem e a maior parte de nós liberta-se deles. Mas por
que motivo é esta uma atitude correcta? Como poderemos
saber que o mundo tal como pensamos que seja é o mundo
tal como realmente é? Como poderemos sequer pensar na
relação entre aparência e realidade, na diferença entre as
coisas como se nos apresentam e as coisas tal como são?

Perder o mundo
Poderíamos dizer que tudo começou a 10 de Novembro
de 1619. Nessa data, em Ulm, cidade do Sul da Alemanha, o

23
PENSE

matemático e filósofo francês René Descartes (1596-1650)


fechou-se num quarto aquecido por um fogão e teve uma
visão seguida de sonhos, que ele considerou lhe mostravam
a obra da sua vida: a revelação da única forma autêntica de
atingir o conhecimento. A via autêntica implicava arrasar
tudo quanto havia tomado por certo e recomeçar a partir dos
alicerces.
É claro que, de facto, nem tudo começou em 1619, pois
Descartes não foi o primeiro. Os problemas que Descartes
levantou são tão velhos como o pensamento humano. São
problemas que dizem respeito ao «eu» e à sua mortalidade,
ao seu conhecimento e à natureza do mundo que habita; são
problemas sobre a realidade e a ilusão. Todos estes proble­
mas surgem nos mais antigos textos filosóficos conhecidos,
os Vedas indianos, que datam aproximadamente de 1500 a.
C. À geração imediatamente anterior a Descartes pertencia o
grande ensaísta francês Montaigne, cujo lema era o título de
um dos seus grandes ensaios: «Que sais-je?» - o que sei eu?
Além disso, Descartes não abordou o seu empreendimento
com um espírito inteiramente inocente, pois adquirira um
profundo conhecimento das filosofias dominantes do seu
tempo graças ao ensino de professores jesuítas. No entanto,
na época de Descartes as coisas estavam a mudar. O astró­
nomo polaco Nicolau Copérnico descobrira o modelo helio­
cêntrico (centrado no Sol) do sistema solar. Galileu, entre
outros, estava a lançar os fundamentos de uma ciência
«mecanicista» da natureza. Nesta nova imagem, as únicas
substâncias no espaço seriam materiais, constituídas de áto­
mos e induzidas a mover-se unicamente por meio de forças
mecânicas que a ciência viria a descobrir. Tanto Copérnico
como Galileu entraram em conflito com os guardiães da or­
todoxia católica, a Inquisição, pois esta imagem científica foi
encarada por muitas pessoas como uma ameaça ao lugar
ocupado pelos seres humanos no universo. Se a ciência
revela tudo quanto existe, o que será da alma humana, da
liberdade humana e da nossa relação com Deus?

24
CONHECIMENTO

Descartes era inteligente. Inventou a notação algébrica


padrão e as coordenadas cartesianas, que nos permitem es­
tabelecer equações algébricas de figuras geométricas, têm o
seu nome. Ele próprio foi um dos líderes da revolução cien­
tífica, responsável por avanços fundamentais, não só na
matemática, mas também na física, particularmente na
óptica. Mas Descartes era igualmente um católico devoto,
pelo que era para ele de grande importância mostrar como
no mundo científico em desenvolvimento - vasto, frio, inu­
mano e mecânico - havia espaço, apesar de tudo, para
albergar Deus, a liberdade e o espírito humano.
Assim se compreende a obra da sua vida, que culminou
nas Meditações, publicadas em 1641, «nas quais se demonstra
a existência de Deus e a distinção entre a alma e o corpo», de
acordo com o subtítulo. Mas o que se lê nas entrelinhas é que
Descartes também pretende resgatar a visão moderna do
mundo da acusação de ateísmo e materialismo. O mundo
científico devia ser menos ameaçador do que se temia. Deve­
mos torná-lo seguro para os seres humanos. E a forma de o
tornar seguro é reflectir sobre os fundamentos do conheci­
mento. Assim, começamos com Descartes por ele ter sido o
primeiro grande filósofo a debater-se com as implicações da
moderna visão científica do mundo. Começar com os medie­
vais ou os Gregos significa, muitas vezes, começar tão longe
de onde nos encontramos que o esforço de imaginação ne­
cessário para colocarmos o nosso pensamento na pele deles
é talvez excessivo. Descartes é, por comparação, um de nós,
ou, pelo menos, assim o esperamos.
Parafrasear um filósofo é perigoso, especialmente alguém
tão sóbrio e conciso como Descartes. Vou de seguida expor
alguns dos temas centrais das Meditações. Vou fazê-lo ao jeito
de um programa desportivo, como quem mostra um resumo
com os momentos altos de um jogo. Uma maior familiariza­
ção com o texto poderia revelar outros momentos altos; e um
mais profundo conhecimento do contexto histórico descobri­
ria outros ainda. Mas os momentos altos serão o bastante

25
PENSE

para lançar luz sobre a maioria dos temas centrais da filo­


sofia posterior.

O génio maligno
Há seis meditações. Na primeira, Descartes apresenta a
«dúvida metódica». Descartes decide que, para poder esta­
belecer algo nas ciências que seja «estável e susceptível de
perdurar», terá de demolir todas as suas opiniões comuns e
começar a partir dos alicerces.
Pois ele descobriu que até mesmo os seus sentidos o en­
ganam, e é «prudente nunca confiar completamente naque­
les que nos tenham enganado uma vez que seja»1 • Coloca a
si próprio, no entanto, a objecção de que apenas os loucos
( «que afirmam estar vestidos de vermelho quando estão nus,
ou que as suas cabeças são feitas de barro, ou que são abó­
boras ou feitos de vidro» - pelos vistos, os loucos do século
XVII eram muito pitorescos) negam os muito óbvios dados
dos seus sentidos.
Em resposta a isto, lembra-nos o caso dos sonhos, nos
quais se nos podem representar coisas de maneira tão con­
vincente como os sentidos o fazem, mas que não têm qual­
quer relação com a realidade.
Ainda assim, objecta Descartes a si mesmo, os sonhos
são como pinturas. Um pintor pode alterar a disposição das
coisas, mas, no fundo, pinta coisas derivadas de coisas
«reais», ainda que só as cores sejam reais. Pela mesma ordem
de ideias, afirma Descartes, mesmo que as coisas familiares
(os nossos olhos, cabeça, mãos, etc.) sejam imaginárias, de­
vem depender de coisas mais simples e universais que são
reais.
Mas que coisas são essas? Descartes pensa que «não há
uma única das minhas antigas convicções acerca da qual
1
Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 12.

26
CONHECIMENTO

não se possa levantar uma dúvida pertinente». E, neste es­


tádio,
Vou pois supor que há, não um verdadeiro Deus, que é a
fonte suprema da verdade, mas um qualquer génio maligno, tão
traiçoeiro e enganador como poderoso, que pôs todo o seu empe­
nho em me enganar. Vou pensar que o céu, o ar, a terra, as cores,
formas, sons e todas as coisas exteriores são apenas ilusões e
enganos de que ele se serve para apanhar a minha credulidade
desprevenida 2.

É este o génio maligno. Uma vez levantada esta assusta­


dora possibilidade, a sua única defesa é evitar resolutamente
acreditar em quaisquer falsidades. Descartes reconhece que
isto é difícil de fazer e que uma «espécie de preguiça» o traz
de volta à vida normal, mas, ao nível intelectual, o seu único
caminho é trabalhar na «escuridão impenetrável» dos pro­
blemas que levantou. Assim termina a «Primeira Medita­
ção».

Cogito, ergo sum


A «Segunda Meditação» começa com Descartes esma­
gado por estas dúvidas. No interesse da investigação,
Descartes supõe que «não tenho nem sentidos nem corpo».
Mas:
Será que não se segue que também eu não existo ? Não: se eu
me convenci de algo, então certamente existo. Mas há um enga­
nador sumamente poderoso e traiçoeiro que deliberada e cons­
tantemente me engana. Nesse caso, também é indubitável que
eu existo, para que ele me possa enganar; e, engane-me ele tanto
quanto puder, nunca poderá Jazer que eu nada seja desde que

2 Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 15.

27
PENSE

pense que sou algo. Assim, depois de considerar tudo exaustiva­


mente, tenho finalmente de concluir que esta proposição, eu sou,
eu existo, é necessariamente verdadeira sempre que é avançada
por mim ou concebida no meu espírito3•

É isto o famoso Cogito, ergo sum: «Penso, logo, existo. »


Tendo salvo o seu «eu » do oceano do cepticismo, Descar­
tes pergunta agora o que é este eu. Ao passo que anterior­
mente pensava saber o que era o seu corpo, e pensava em si
mesmo por intermédio do seu corpo, é agora forçado a reco­
nhecer que o conhecimento que tem do seu eu se não baseia
no conhecimento da sua existência corpórea. Descartes irá
ter problemas sobretudo quando tentar imaginar a sua exis­
tência. A imaginação consiste em contemplar a forma ou ima­
gem de uma coisa corpórea (um objecto ou coisa extensa no
espaço). Mas, nesta fase, nada sabemos de coisas corpóreas.
Por isso, «imaginar » o eu imaginando um ser corpóreo com
peso, esguio ou rotundo, alto ou baixo, tal como podemos
ver num espelho, é inadequado.
Assim, qual é a base deste conhecimento do eu?
O pensamento? Finalmente, descobri-o - o pensamento; só isto
é inseparável de mim. Eu sou, eu existo - isto é certo. Mas por
quanto tempo? Enquanto eu pensar. Pois poderia acontecer que, se eu
cessasse por completo de pensar, eu cessaria por completo de existir
[.. . ] Eu sou, pois, no sentido mais estrito, unicamente uma coisa
que pensa4•

A investigação toma agora um rumo ligeiramente dife­


rente. Descartes reconhece que uma concepção de si mesmo
como uma coisa corpórea, vivendo num mundo espacial
extenso de objectos físicos, irá regressar de forma quase
irresistível. E verifica que o «eu» que resta é muito diá-

3
Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 16.
4
Id., ibid., p. 18.

28
CONHECIMENTO

fano: «este eu intrigante de que não consigo formar uma


imagem na imaginação.» Assim, «consideremos as coisas
que as pessoas geralmente pensam compreender mais dis­
tintamente; isto é, os corpos que tocamos e vemos». Descar­
tes examina uma bola de cera. Tem gosto e cheiro e uma cor,
forma e tamanho «fáceis de ver». Se lhe batermos, produz
um som. No entanto, ele coloca agora a cera perto do fogo e
observa:
O gosto residual é eliminado, o cheiro desaparece, a cor
muda, a forma perde-se, o tamanho aumenta; torna-se líquida e
quente; quase não lhe podemos tocar e, se lhe batermos, já não
produz som. Mas será que permanece ainda a mesma cera ?
Temos de admitir que sim; ninguém o nega, ninguém pensa de
outro modo. Mas então o que havia na cera que eu compreendia
tão distintamente? É evidente que não era nenhuma das caracte­
rísticas a que cheguei por meio dos sentidos; pois o que era cap­
tado pelo sabor, cheiro, visão e tacto alterou-se agora - todavia,
a cera permanece5 •

Descartes comenta o resultado deste exemplo como se


mostrasse que há uma percepção da cera que é «puro escru­
tínio mental», que pode tomar-se «claro e distinto» depen­
dendo de quão cuidadoso ele for em concentrar-se naquilo
em que a cera consiste. Portanto, perto do final da «Segunda
Meditação», Descartes conclui:
Sei agora que mesmo os corpos não são estritamente
percepcionados pelos sentidos nem pela faculdade da imagina­
ção, mas unicamente pelo intelecto, e que esta percepção deriva
não de serem tocados ou vistos, mas de serem compreendidos;
e, em vista disto, sei claramente que posso alcançar uma mais
fácil e evidente percepção do meu espírito do que de qualquer
outra coisa6•

5
Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 20.
6
Id., ibid., p. 22.

29
PENSE

Motivações, questões
Como h avemos de ler um texto filosófi co como este?
Começ a mos por ver que Des ca rtes tenta encontr a r uma
motiv a ção p a r a a ceita rmos o méto do da dúvi da extrema
(também conhe ci da por « dúvi da cartesi a na » ou, como ele
mesmo a designa , « dúvi da hiperbóli ca », isto é, ex cessiv a ou
ex a ger a da). M as ser á a motiv a ção s a tisf a tóri a ? O que está ele
a pens a r a o certo? Talvez isto:
Os sentidos por vezes enganam-nos. Logo, tanto quanto sa­
bemos, enganam-nos sempre.

M as isto é um mau argumento - é uma f a l áci a . Comp a­


re-se:
Os jornais por vezes enganam-se. Logo, tanto quanto sabe­
mos, enganam-se sempre.

O ponto de p arti da, ou premiss a , é ver da deiro, mas a


conclusão p are ce bem pou co prov ável. E h á mesmo exem­
plos da forma do argumento onde a premiss a é ver da deir a ,
ma s a conclusão não pode ser ver da deir a :
Algumas notas de banco são falsas. Logo, tanto quanto sabe­
mos, são todas falsas.

Neste caso, a conclusão é imposs ível, uma vez que a pró­


pri a noção de dinheiro f a lso pressupõe notas ou moe das
genuín as. As f a lsifi ca ções são p ar a sitári as rel a tiv amente a os
a rtigos genuínos. Os f a lsifi ca dores ne cessitam de nota s e
moe das genuín a s p ar a copi ar.
Um ar gumento é válido qu a ndo não h á qualquer maneira
- isto é, qu a lquer ma neir a possível - de a s premiss a s, ou
pontos de p arti da, serem ver da deir as sem que a conclusão
sej a também ver da deir a (explor a mos isto ma is profunda -

30
CONHECIMENTO

mente no capítulo 6). E um argumento é sólido se for válido


e tiver premissas verdadeiras, caso em que a sua conclusão
será também verdadeira. O argumento que acabámos de
identificar é claramente inválido, uma vez que não é melhor
do que outros exemplos que nos levam da verdade à falsi­
dade. Mas isto sugere, por outro lado, que é pouco caridoso
interpretar Descartes como se estivesse a oferecer-nos um tão
infeliz presente. Poderíamos interpretá-lo como se tivesse em
mente outra coisa que, lamentavelmente, não toma explícita.
Chama-se a isto procurar a premissa suprimida - algo neces­
sário para sustentar um argumento e que o autor pode ter
pressuposto, mas não declara. Em alternativa, poderíamos
reinterpretar Descartes como se visasse uma conclusão mais
fraca. Ou talvez possamos fazer ambas as coisas. O argu­
mento poderia ser o seguinte:

Os sentidos por vezes enganam-nos. Não podemos distin­


guir os momentos em que o fazem daqueles em que não o fa­
zem. Por isso, tanto quanto sabemos, qualquer experiência sen­
sorial particular pode ser enganadora.

Este argumento parece ser um melhor candidato à vali­


dade. Se o pusermos à prova com notas de banco e falsifica­
ções, descobriremos que a conclusão parece seguir-se. Mas a
conclusão é uma conclusão sobre qualquer experiência parti­
cular. Já não é a conclusão de que todas as nossas experiências
(em bloco, digamos assim) poderão estar a enganar-nos. É a
diferença entre «tanto quanto sabemos, qualquer nota em
particular pode ser falsa» e «tanto quanto sabemos, todas as
notas são falsas». A primeira pode ser verdadeira, apesar de
a segunda não o ser.
Ainda assim, talvez nesta fase das Meditações a conclusão
mais fraca seja tudo o que Descartes pretende. Mas podería­
mos também voltar as nossas atenções para a segunda pre­
missa deste argumento aperfeiçoado. Será esta premissa
verdadeira? Será verdade que não podemos distinguir os

31
PENSE

mo mento s d e erro - co isas co mo ilusõ es, alucinaçõ es, inter­


pretaçõ es errad as do que estamo s a ver - do s o utro s? Para
pensar so bre isto quererí amo s introd uzir uma d istinção.
Pod e ser verd ad e que não co nseguimo s d etectar os mo men­
to s d e ilusão e erro à primeira vista. É isso que faz d eles ilu­
sõ es. Mas será verd ad e que não co nseguimo s fazê-lo ao longo
do tempo? Pelo co ntrário , parece ser verd ad e que o co nsegui­
mo s: pod emo s aprend er, po r ex emplo , a d esco nf iar d e ima­
gens d e água a cintilar no d eserto po r serem ilusõ es engana­
do ras tí picas o u miragens - jo go s d e luz. Mas, pio r aind a,
o fa cto d e pod ermo s d etectar mo mento s d e engano é certa­
mente pressuposto pelo próprio argumento d e Descartes. Po r­
quê? Po rque Descartes está a apresentar a primeira premissa
co mo um po nto d e partid a - uma verdad e co nhecid a. Mas
nós só sabemos que o s sentido s po r vezes no s enganam po r­
que investigaçõ es po sterio res - reco rrendo ao s mesmo s sen­
tido s - mostram que eles no s enganaram. Desco brimo s, po r
ex emplo , que um vislumbre mo mentâ neo d e água a brilhar
no s levo u a pensar errad amente que ali havia água. Mas
d esco brimo s o erro aprox imando- no s, o lha ndo co m mais
atenção e, se necessário , to cando e sentindo o u escutando.
Analo gamente, só sabemo s, po r ex emplo , que um a o pinião
rápid a e sem preparação so bre o tamanho do So l estaria er­
rad a po rque o bservaçõ es cuid ad as po sterio res no s mo stram
que o So l tem, d e facto , muitas vezes o tamanho d a Terra.
Assim, a segund a premissa só parece verd ad eira no seguinte
sentido: « não pod emo s d isti nguir à primeira vista se o s no s­
so s sentido s no s estão a enganar.» Ao passo que, para abrir
caminho para as d úvid as principais d e Descartes, parece que
ele precisa do seguinte: «não pod emo s d istinguir mesmo ao
longo do tempo e com cuidado se o s no sso s sentido s no s estão
a enganar. » E esta última premissa não parece ser verd a­
d eira. Pod erí amo s tentar d izer que o s sentido s são «auto ­
co rrectivo s» : a ex periência senso rial po sterio r d iz- no s, po r si
mesma, quando uma ex periência senso rial em particular no s
i nd uziu a co meter um erro.

32
CONHECIMENTO

Talvez ant eci pando e st e ti po de crítica, Descart es i nt ro duz


o t ema do s so nho s. «Dent ro » de um so nho t emo s ex pe­
ri ênci as algo semelhant es à s da vi da co rrent e; no ent anto ,
nada de real co rrespo nde ao so nho. Se rá a i dei a de Descart es,
nest e po nto , que to da a ex peri ênci a po de ser um so nho? Se
é , uma vez mai s po deríamo s usar uma di sti nção co mo a que
acabámo s de fazer: talvez não po ssamo s di sti ng ui r i medi at a­
ment e o u «à pri mei ra vi sta» se estamo s o u não a so nhar,
mas, usando a memóri a, parecemo s não t er difi culdade em
di sti ng ui r so nho s ti do s de enco nt ro s havi do s co m a reali dade.
Co nt udo , há algo de pert urbado r na i dei a de que to da a
ex peri ênci a po deri a ser um so nho. Poi s co mo po deríamo s
t ent ar det erminar se i sso é verdade? Po r vezes as pesso as
«beli scam-se» para se asseg urarem de que não est ão a so­
nhar. Mas será i sto realment e um bo m t est e? Não po dería­
mo s si mplesment e so nhar que o beli scão mago a? Po dería­
mo s t ent ar desco bri r, do i nt erio r de um so nho , se é um
so nho. Mas, mesmo que co ncebamo s alg uma ex peri ênci a
eng enho sa para det ermi nar se i sso é verdade, será que não
po deríamo s apenas so nhar que a levamo s a ef eito o u que
no s dá a respo st a de que estamo s aco rdado s?
Po deríamo s t ent ar di zer que o s aco nt eci mento s da vi da
quoti diana revelam um equihb rio e uma co mpleta co erênci a
que o s so nho s não revelam. Os so nho s são capri cho so s e espas­
módi co s. Têm po uco o u nenhu m senti do. A ex peri ênci a, po r
o ut ro lado , é g rande, espaço sa e i mpo nente. Desenro la- se de
mo do reg ular - o u, pelo meno s, pensamo s que sim. Co nt udo ,
fica assim aberta a po ssi bi li dade de De scartes se preo cupar em
saber se a g radação e a coe rência não são elas mesmas engana­
do ras. I sso co nduz Descartes ao gé nio malig no , uma das mai s
famo sas ex peri ênci as mentai s da hi stóri a da filo so fia, co nce­
bi da para no s alertar para a i dei a de que, t anto quanto sabe­
mo s da verdade, to da a no ssa ex peri ência po deri a ser apenas
co mo um so nho: algo tot alment e desligado do mundo .
É i mpo rtant e at ent ar em duas coi sas logo de i nício. Em
pri mei ro lug ar, Descart es t em perf eit a co nsci ênci a de que,

33
PENSE

enquanto agentes humanos, vivos e activos, não nos preocu­


pamos com uma possibilidade tão estranha. De facto, não
podemos: como muitos filósofos fizeram notar, é psicologica­
mente impossível manter, fora do escritório, a dúvida acerca
do mundo exterior. Mas isso não importa. A dúvida é digna
de preocupação por causa da tarefa em que Descartes está
empenhado: procurar fundamentos para o conhecimento e
assegurar que as suas convicções estão solidamente fun­
dadas. A investigação de Descartes é feita por motivos
puramente intelectuais. Em segundo lugar, Descartes não
nos está a pedir que acreditemos na possibilidade do génio
maligno; apenas nos pede que a ponderemos - com vista a
tomarmos claro como pô-la de parte. Ou seja, Descartes
pensa (não sem razão, sem dúvida?) que, a menos que esta
possibilidade possa ser descartada, permanece uma ameaça
de cepticismo: a possibilidade de não possuirmos conheci­
mento e de todas as nossas convicções serem completamente
enganadoras.
Podemos reconhecer o valor da experiência mental lem­
brando-nos de quão «realista» a realidade virtual se pode
tomar. Eis uma variante actualizada da experiência mental.
Imagine um progresso científico que permita a um cientista
louco extrair-lhe o cérebro e depois preservá-lo num reci­
piente de produtos químicos que o mantêm a funcionar nor­
malmente. Imagine que o cientista pode enviar dados de
entrada, ou inputs, para os canais normais de informação (o
nervo óptico, os nervos que transmitem sensações de audi­
ção, tacto e paladar). Se tiver boa índole, o cientista fornece
informação como se o cérebro estivesse alojado num corpo
normal e a viver uma vida razoável: comendo, jogando golfe
ou vendo televisão. Haveria retomo, ou feedback, pelo que,
por exemplo, se o leitor produzisse um certo «dado de saída»,
ou output, equivalente a levantar a mão teria um «retomo»,
ou feedback, como se a sua mão tivesse sido levantada. O cien­
tista colocou-o numa realidade virtual, pelo que a sua mão
virtual se ergue. E, ao que parece, o leitor não teria maneira

34
CONHECIMENTO

de saber que isto ti nha aconteci do, uma vez que para si pa­
receria que a vi da normal continuava7•
A versão que o próprio Descartes apresentou desta expe­
ri ência mental não refere cére bros nem tanques. De facto, se
pensar no assunto, ver á que ele não necessita de o fazer.
As nossas con vicções acerca do cére bro e do seu papel no
que respeita a gerar experi ências conscientes são con vicções
acerca do mo do como o mun do funciona. Por isso, tal vez
também elas sejam o resultado dos dados de entrada, ou
inputs, pro duzi dos pelo génio mali gno! Tal vez o génio não
tenha ti do necessi dade de sujar as mãos (?) mexen do em
tanques. O génio limita-se a pro duzir dados de entrada, ou
inputs, da maneira apropriada à reali dade real - seja essa
maneira o que for. Os próprios cére bros e ner vos pertencem
à reali dade virtual.
Esta experi ência mental não refere ver dadeiras ilusões
sensoriais nem ver dadeiros so nhos. Apenas coloca a expe­
ri ência como um to do em contraste com uma reali dade
muito diferente e potencialmente pertur badora. É de notar
também que não vale a pena, o bviamente, ar gumentar con­
tra a hipótese do génio mali gno referin do a coer ência e o
equilí brio da experi ência quoti diana. Pois não sabemos de
qualquer razão que explique porque não po deria o génio
pro duzir dados de entrada, ou inputs, que constituíssem uma
experi ência tão coerente quanto ele quisesse e com a escala
e extensão que ele desejasse.
Portanto, como po deríamos afastar a hipótese do génio
mali gno? Uma vez le vantada, ficamos aparentemente impo­
tentes para a afastar.
No entanto, neste mar de dú vi da, justamente quan do as
coisas estão mais ne gras, Descartes desco bre um roche do
de certeza ao qual se po de agarrar. Cogito, ergo sum: «penso,
lo go existo». (Uma tradução melhor é «estou a pensar, lo go

7
A experiência mental do cérebro numa cuba deve-se a Hilary Putnam,
Razão, Verdade e História, cap. 1.

35
PENSE

existo». A premissa de Descartes não é «penso» no sentido de


«faço esqui», que pode ser verdadeira mesmo que ele não
esteja naquele momento a esquiar; deve ser entendida como
algo semelhante a «estou a esquiar».)
Mesmo que o objecto da minha experiência seja uma rea­
lidade virtual, ainda assim sou eu quem tem essa experiên­
cia! E sei, aparentemente, que sou eu quem tem estas expe­
riências e pensamentos (para Descartes, «pensar» inclui «ter
experiência»).
Por que razão se mantém esta certeza? Observe-a do
ponto de vista do génio. O seu projecto era enganar-me acerca
de tudo. Mas não é logicamente possível que me engane de
modo que eu pense existir quando não existo. O génio não
pode tomar simultaneamente verdadeiras estas duas coisas:
Penso que existo.
Estou enganado quanto à minha existência.

Pois se a primeira for verdadeira, então eu existo para


poder pensar. Portanto, tenho de ter razão quanto à minha
existência. Enquanto pensar isso (ou desde que penso que
penso isso), então existirei.
Posso pensar estar a esquiar quando não estou, pois posso
estar a sonhar, ou a ser enganado pelo génio. No entanto, não
posso pensar que estou a pensar quando não estou. Pois,
neste caso (e só neste caso), o simples facto de pensar que
estou a pensar garante que estou a pensar. É em si um exem­
plo de pensamento.

O esquivo «eu»
Fora do contexto da dúvida, o «eu» pensante é uma pessoa
que pode ser descrita de várias formas. No meu caso, sou
um professor de Filosofia de meia-idade, com uma determi­
nada personalidade, uma família e por aí fora. Mas, no con-

36
CONHECIMENTO

tex to d a d úvid a, tudo is to d es aparece: to m a-s e parte d a rea­


lid ad e virtual. Po rtanto , o que é o «eu» que res ta? Parece-s e
d emas iado co m uma es pécie d e so mbra - um puro s ujeito
d e pens amento. Pod eria mes mo não ter um co rpo! Is to leva­
-nos à próx ima reviravo lta.
O leito r pod eria ten tar pers cr utar o s eu próprio es pí rito,
po r ass im d izer, para captar o s eu «eu» ess encial. Mas , s e
tivermos em co nta que o «eu» es tá aqui s eparado d as marcas
no rmais d a id entid ad e ( a noss a pos ição no es paço , o nosso
co rpo , as noss as relações so ciais , a noss a his tória) , parece
nada haver para captar. Pod emos passar a ter co ns ciência d as
noss as próprias ex periências , mas nunca pod emos , ao que
parece, ter co ns ciência do «eu» que é o s ujeito d ess as ex pe­
riências. O u pod emos tentar imaginar o eu, fazer um retrato ,
po r ass im d izer. Mas , co mo Des cartes ass inala, a imaginação
parece bo a para retratar co is as co m fo rma e tamanho , que
pod emos enco ntrar no es paço ( «co is as ex tens as »). O eu que
permanece co mo o ro chedo nos mares da d úvid a não pod e
ser uma co is a ex tens a. Po is pod emos ter a certeza d a s ua
ex is tência quando aind a não temos a certeza d a ex is tência
d as co is as ex tens as , uma vez que es tamos a to mar a s ério a
poss ibilid ad e do génio maligno.
U ma reco ns trução d es te po nto do argumento apres enta
Des cartes a pens ar d es ta fo rma:

Não posso duvidar da minha existência. Mas posso duvidar


da existência das coisas extensas no espaço («corpos»). Logo,
não sou um corpo.

Em res umo , as almas s ão uma certeza, mas os co rpos s ão


d uvidosos , lo go a alma é d iferente do co rpo. Se es te é o argu­
mento d e Des cartes , então é s uperficialmente plaus ível, mas
pod e ver-s e que é inválido. Veja-s e o argumento paralelo :

Não posso duvidar de que estou aqui na sala. Mas posso


duvidar se uma pessoa que amanhã receberá más notícias está

37
PENSE

aqui na sala. Logo, eu não sou uma pessoa que amanhã receberá
más notícias.

Uma bela demonstração com um resultado bem-vindo!


A esta falácia chama-se frequentemente «falácia do masca­
rado» : sei quem é o meu pai; não sei quem é o homem mas­
carado; logo, o meu pai não é o homem mascarado.
Por mim, duvido que Descartes tenha cometido esta falá­
cia, pelo menos nesta meditação. Nesta fase, Descartes está
mais preocupado com o modo como conhecemos seja o que
fur sobre almas e corpos. Não está preocupado em mostrar
que são diferentes, mas mais preocupado em mostrar que o
conhecimento do eu não depende do conhecimento dos cor­
pos. Pois podemos ter a certeza da existência de um deles
mesmo quando não a temos do outro. No entanto, o que
ficámos realmente a saber sobre o eu?
No século seguinte, o filósofo alemão Georg Christoph
Lichtenberg (1742-99) observou: «Deveríamos dizer, 'há pen­
samento' exactamente como dizemos 'troveja'. Mesmo dizer
cogito é já demasiado se o traduzirmos por ' penso' . »8
(Lichtenberg gostava de aforismos vigorosos e foi uma im­
portante influência numa personagem posterior, Friedrich
Nietzsche [1844-1900].)
A ideia é que a aparente referência a um «eu» como uma
«coisa» ou sujeito de pensamento é ela mesma uma ilusão.
Não há qualquer «coisa» que troveja: poderíamos, em vez
disso, dizer simplesmente que a trovoada está em curso.
Analogamente, Lichtenberg sugere, pelo menos no contexto
da dúvida, que Descartes não tem o direito de nomear um
«eu» que está a pensar. Tudo o que pode adequadamente
afirmar é que «há um pensamento em curso».
Isto parece uma afirmação muito estranha. Pois não será
verdade que não pode haver um pensamento sem alguém

8
Lichtenberg é citado em J. P. Stern, Lichtenberg: A Doctrine of Scattered
Occasions, p. 270.

38
CONHECIMENTO

que o pense? Não podemos ter pensamentos a flutuar numa


sala à espera, por assim dizer, de alguém que os apanhe,
assim como não podemos ter amolgaduras a flutuar por aí à
espera de se agarrarem a uma superfície para amolgar. Vol­
taremos a isto no capítulo 4. Mas, então, por que razão não
podemos dizer que Lichtenberg tem razão? Se Descartes não
pode confrontar-se com um eu que está a fazer acontecer o
pensamento, se não pode ter experiência dele, se não o pode
imaginar, então por que razão pode reclamar qualquer cer­
teza de que esse eu existe? Na verdade, o que pode significar
dizer que o eu existe?
Descartes põe habilidosamente este problema de lado, levan­
tando uma dificuldade paralela quanto às «coisas que as pes­
soas habitualmente pensam compreender mais claramente
do que todas as outras» - os corpos vulgares, ou coisas que
encontramos no espaço. Era isto que visava o exemplo da
bola de cera. Eis uma reconstrução possível do argumento:
Num dado momento, os meus sentidos informam-me de
uma forma, cor, consistência e paladar que pertencem à cera.
Mas, noutro momento, os meus sentidos informam-me de uma
forma diferente, etc. , pertencendo à cera. Os meus sentidos nada
me mostram além destas qualidades diferentes (a que podemos
chamar «qualidades sensoriais», uma vez que os nossos senti­
dos as percepcionam). Faço, no entanto, um juízo de identidade:
é o mesmo pedaço de cera no primeiro e no segundo momento.
Portanto, é da natureza da bola de cera poder possuir diversas
qualidades sensíveis em alturas diferentes. Assim, para compre­
ender o que a cera é devo usar o meu entendimento, e não os
meus sentidos.

Se esta for uma boa reconstrução, deveremos notar que


Descartes não nega que é por meio dos sentidos que eu sei,
antes de mais nada, que a cera está aí (partindo do princípio
de que nos libertámos do génio maligno e voltámos a confiar
nos nossos sentidos). Na verdade, Descartes acaba por nos
dizer isso. Ao invés, Descartes está a sugerir que os sentidos

39
PENSE

são corno mensageiros que entregam informação que precisa


de ser interpretada. E esta interpretação, que neste caso se
traduz em identificar o objecto que persiste entre as muitas
e sucessivas formas, é o trabalho do entendimento. Trata-se
de usar princípios de classificação, ou categorias, cujas cre­
denciais podemos também investigar.
Portanto, tudo o que podemos entender por cera é que é
urna «coisa» esquiva que pode assumir qualidades físicas
diferentes, corno forma, tamanho, cor e paladar. E pelo eu
entendemos apenas urna «coisa» igualmente esquiva que em
alturas diferentes pensa diferentes pensamentos. Portanto,
talvez o eu não devesse ser olhado corno algo especialmente
misterioso em comparação com coisas vulgares corno a bola
de cera. Talvez os eus não sejam mais difíceis de compreen­
der do que os corpos e talvez só pensemos doutra forma
devido a urna espécie de preconceito. Voltamos à cera no
capítulo 7.

Ideias claras e distintas


As duas primeiras meditações merecem o lugar que têm
entre os clássicos da filosofia. Combinam profundidade,
imaginação e rigor numa dimensão raramente igualada,
deixando-nos de respiração suspensa à espera do desenrolar
da história. Aqui está Descartes, repousando no seu pequeno
rochedo, cercado por um mar de dúvida. Mas parece que ele
se privou de qualquer forma de o abandonar. A vida ainda
pode ser um sonho. Para usar a metáfora dos alicerces: Des­
cartes desceu ao leito rochoso, mas não tem materiais de
construção. É que os padrões que ele mesmo estabeleceu de
conhecimento à prova de «génio maligno» parecem proibi-lo
de usar até mesmo meios «auto-evidentes» ou naturais de
raciocinar, de modo a afirmar que conhece mais do que o
cogito. Não há dificuldade alguma em supor que o génio nos
engana, levando-nos a dar atenção a alguns raciocínios

40
CONHECIMENTO

enganadores. Os nossos pensamentos estão mesmo sujeitos


a ser mais falíveis do que os nossos sentidos.
Curiosamente, Descartes não vê as coisas assim. O que
Descartes faz é reflectir sobre o cogito e perguntar o que faz
dele uma certeza tão especial. Convence-se de que é uma
certeza porque possui da sua verdade uma percepção espe­
cialmente transparente, «clara e distinta». Concorda-se geral­
mente com a ideia de que Descartes, o matemático, tinha em
mente um modelo matemático de clareza. Suponhamos, por
exemplo, que pensamos num círculo. Imaginemos um diâ­
metro e tracemos segmentos de recta partindo dos seus ex­
tremos opostos e encontrando-se num ponto qualquer na
circunferência. Os ângulos que resultam desse encontro são
rectos. Tracemos outros; parece que os ângulos são sempre
rectos. Nesta altura poderemos não ter uma noção muito
clara de que talvez exista uma razão para isto. Mas suponha­
mos agora que fazemos uma demonstração (traçando uma
linha desde o centro do círculo até ao vértice do triângulo e
resolvendo os dois triângulos que criámos). Depois disto
podemos ver que o teorema tem de ser verdadeiro. Isto pode
surgir numa «súbita iluminação»: uma certeza deslumbrante
ou compreensão instantânea deste caso específico de ver­
dade geométrica. Este é apenas um exemplo geométrico ao
acaso de um modo de proceder que pode fazer-nos «ver»
algo que antes só confusamente tínhamos compreendido. Se
ao menos pudéssemos ver o resto da realidade, mente, cor­
po, Deus, liberdade e vida humana, com o mesmo relâm­
pago de clareza e compreensão! Bom, existe um ideal filo­
sófico segundo o qual podemos. É o ideal do racionalismo: o
poder da razão pura, sem mais. O racionalista pode ver a
partir do seu cadeirão que as coisas têm de ser de uma
maneira e não podem ser de outras, tal como o ângulo do
semicírculo. O conhecimento alcançado por este tipo de com­
preensão racional é conhecido como a priori: pode ver-se de
imediato que é verdadeiro, sem qualquer experiência sobre
a maneira como o mundo é.

41
PENSE

O argumento da marca
Confiando na clar eza e di stinção, Descart es entr ega- s e ao
raciocínio. Olhando para o s eu próprio « eu», qu e é tu do o
qu e lh e r esta nest e momento, Descart es desco br e qu e t em
uma i deia de p erf eição. Ar gumenta, então, qu e uma tal i deia
implica uma cau sa. No entanto, a coi sa qu e ori ginou es sa
i deia deve po s suir tanta «r eali dade» como ela, e i s so inclui a
p erf eição. I sto implica qu e só uma cau sa p erf eita, i sto é,
Deu s, po de s er vir. Por i s so, Deu s exi st e e l egou-no s a i deia
de p erf eição como um sinal inato da sua acção nas no s sas
ment es, as sim como um art esão deixa a sua marca gravada
no s eu trabalho9•
A s sim qu e Descart es desco br e Deu s, o s mare s da dú vi da
acalmam- s e su bitament e. Poi s, uma vez qu e Deu s é p erf eito,
não é enganador: enganar é clarament e afastar- s e da bon­
dade, para j á não falar da p erf eição. A s sim, s e fizermo s o
no s so trabalho corr ectament e, po deremo s t er a c ert eza de
qu e não s er emo s vítimas da ilu são. O mundo s er á tal como
o compr eendemo s. Fazer o no s so tra balho corr ectament e si g­
nifica so br etu do confiar ap enas em i deias claras e di stintas.
Qu e havemo s de fazer com o ar gumento da «marca»? Ei s
uma r econstrução:
Possuo a ideia de um ser perfeito. Esta ideia deve ter uma
causa. Uma causa deve ser pelo menos tão perfeita como o seu
efeito. Portanto, algo a causou e isso é pelo menos tão perfeito
como a minha ideia. Logo, há tal coisa. Mas essa coisa deve ser
perfeita, isto é, deve ser Deus.

Suponhamo s qu e conc edemo s a Descart es a po s si bili dade


da i deia mencionada na primeira pr emi s sa. (H á tradiçõ es
t eoló gicas qu e não p ermitiriam i s so. Diriam qu e a p erfeição

9
O argumento da marca ocorre na «Terceira Meditação» de Descartes,
pp. 31-33.

42
CONHECIMENTO

de Deus desafia a compreensão, pelo que não possuímos


qualquer i deia dela, nem de Deus.) Mas por que moti vo
po de Descartes formular a premissa de que a sua i deia tem
de ter uma causa? Não po derão existir acontecimentos que
não possuem simplesmente causa? Acontecimentos que, di­
gamos, se limitam a acontecer? No fim de contas, sentado no
seu roche do, Descartes não po de fazer apelo a qualquer ex­
peri ência científica normal. Na sua despojada soli dão meta­
física, como po de ele ne gar que os acontecimentos se limi­
tam a ocorrer? E, se pensa o contr ário, não de veria então
preocupar-se em saber se o génio não estaria a operar nele,
fazendo - o pensar isto apesar de não ser ver dade?
No entanto, tu do se toma ainda pior quando che gamos
ao passo se guinte. Consi deremos a minha i deia de alguém
perfeitamente pontual. Ser á que isto exi ge uma causaperfei­
tamente pontual? Sem dú vi da que seria melhor pensar o
seguinte: posso pura e simplesmente definir o que é alguém
ser perfeitamente pontual. Si gnifica que nunca che ga atra­
sado (ou, tal vez, nunca che ga nem ce do nem tar de). Para
compreender o que seria alguém ser assim não preciso de ter
alguma vez encontrado uma tal pessoa. Posso descre vê- la
antecipadamente. Compreendo a condição que teria de satis­
fazer sem a ter conheci do e até mesmo, na ver dade, se nin­
guém jamais for assim.
Pro vavelmente, Descartes rejeitaria esta analo gia. Tal vez
Descartes pense nela antes desta maneira. Ser á que tenho a
i deia de um matemático perfeito? Bom, posso começar por
pensar num matemático como al guém que nunca comete
erros. Mas isto dificilmente po de ser satisfatório. Um mate­
mático perfeito seria também imaginati vo e inventi vo. As­
sim, com o meu limitado conhecimento de matemáticos, só
possuo uma compreensão muito confusa de como isso seria.
Em geral, não posso abranger com o pensamento ou com­
preender claramente invenções antes de elas sur girem -
pois, de outro mo do, estaria eu mesmo a inventá-las! Por­
tanto, tal vez fosse necess ário um bom matemático para me

43
PENSE

d ar uma idei a (uma idei a «cl ar a e distint a ») de c omo seri a


um matemátic o perfeit o.
Bom, t al vez, mas a g or a t om a-se du vid os o se eu p ossu o
uma idei a cl a r a e distint a de um matemátic o perfeit o e,
a n a l og a mente, de um ser perfeit o. Em ger al, o que a c ontece
se d ou f orma a est a idei a , é que pens o ma is c omo fiz qu and o
pensei em a lguém perfeit a mente p ontu al. Pens o num a gente
que nunc a c omete err os, nunc a se c omp ort a de mod o des a­
gr ad ável, nunc a desc obre n ad a que nã o p oss a f azer, e p or a í
a di ante. P oss o acrescent ar, n a ima gin açã o, alg o c omo uma
espécie de a ur a , ma s é cl a r o que ist o nã o ir á ajud ar. P a rece
cl a r a mente pretensi os o, ou até mesmo bl a sfemo, c onceder­
-me uma c ompreensã o c omplet a e cl ar a d os atribut os de
Deus.
De fact o, n outr o p ont o d a su a obr a, Desc artes f az uma
enc ant a d or a an a l ogi a, ma s que a me aç a c ompr ometer o argu­
ment o d a ma rc a :
Podemos tocar numa montanha com as mãos, mas não pode­
mos abraçá-la como faríamos a uma árvore ou a outra coisa que
não fosse demasiado grande. Compreender uma coisa é abraçá-la
no nosso pensamento; para conhecer uma coisa basta tocá-la com
o nosso pensamento10•

Tal vez p oss a mos apen a s t oc ar a s hip otétic as qu a lid a des


de Deus p or mei o de definições, mas nã o p odemos abrangê­
-l a s c om o pens a ment o. Nesse c a s o, nã o p odemos rec orrer a
um ide al ou arquétip o que n os permitiu a su a c ompreensã o.
P ortant o, p ar a a ma i or p a rte d as pess oa s, o argument o d a
marc a p arece est ar l onge de ser à pr ova de géni o ma lign o -
tã o l onge, de f a ct o, que p arece muit o f ácil resistir-lhe, mesmo
que nã o estej a mos s ob o efeit o d a dú vid a extrema . Neste
p ont o, alguma s premiss as suprimid as sugerid as pel a histó-

1º Excerto retirado de uma carta de Descartes a Marin Mersenne,


referenciada nas Meditações, p. 32, nota.

44
CONHECIMENTO

ria das ideias podem ser usadas para desculpar Descartes.


Ele era indubitavelmente mais optimista quanto ao argu­
mento da marca do que nós porque herdou uma série de
ideias de tradições filosóficas anteriores. Uma ideia muito
importante é que a causalidade genuína consiste em transmi­
tir alguma coisa a um efeito. A causalidade é como passar o
testemunho numa corrida de estafetas. Assim, por exemplo,
é necessário calor para tomar algo quente, ou movimento
para induzir deslocação. Isto é um princípio que surge uma
e outra vez na história da filosofia e iremos encontrá-lo mais
de uma vez. Neste caso dispôs Descartes a pensar que a
«perfeição» da sua ideia precisava de ser nela segregada, por
assim dizer, por uma causa perfeita.
Mas este princípio sobre a causalidade dificilmente é à
prova de génio maligno. De facto, nem sequer é verdadeiro.
Estamos familiarizados com causas que não têm qualquer
semelhança com os seus efeitos. O movimento de um pedaço
de ferro num campo magnético não tem qualquer seme­
lhança com uma corrente eléctrica, mas é isso que ele causa.
De facto, é como se Descartes (uma vez mais influenciado
por ideias de tradições filosóficas anteriores) tivesse sido
levado a pensar que uma ideia de X na verdade partilha X.
Assim, uma ideia de infinito, por exemplo, seria uma ideia
infinita. (Seria uma ideia de algo sólido uma ideia sólida?)
Analogamente, uma ideia de perfeição seria uma ideia per­
feita e exigiria uma causa perfeita. Mas, uma vez mais, po­
deria ser o génio maligno a fazer-nos pensar tal coisa e, de
novo, não há qualquer boa razão para o seguir.

O círculo cartesiano
Descartes deixou-se convencer de que o argumento era
bom: cada passo do argumento era «claro e distinto». Por­
tanto, Descartes agora tem Deus e Deus não é enganador.
Mas não esqueçamos que, para chegar aqui, Descartes teve

45
PENSE

de confiar nas suas ideias claras e distintas como fontes de


verdade. Apesar de tudo, não haverá uma terrível falha neste
modo de proceder? O que aconteceu ao génio maligno? Não
poderiam até mesmo as nossas ideias claras e distintas levar­
-nos a errar? Para eliminar esta possibilidade, ao que parece,
Descartes retrocede e usa Deus - o Deus cuja existência aca­
bou de demonstrar - como garantia de que o que percepcio­
namos clara e distintamente tem de ser verdadeiro.
Foi um dos seus contemporâneos, Antoine Amauld (1612-
94), quem mais alto gritou «falta» neste ponto, acusando
Descartes de apresentar um argumento circular, o famige­
rado «círculo cartesiano» 11 • Descartes parece comprometido
com duas prioridades diferentes. Considere-se a perspectiva
segundo a qual, se percepcionamos clara e distintamente
uma proposição p, então é verdade que p. Abreviemos isto
para (CDp ➔ Vp), que se lê assim: se p é clara e distinta
(«CD»), então é verdadeira («V»). E suponhamos que simbo­
lizamos «Deus existe e não nos engana» por «G». Então, o
círculo consiste em que, a determinada altura, Descartes afir­
ma: posso saber que (CDp ➔ Vp) só se primeiro souber que G.
Mas noutros pontos ele afirma: posso saber que G só se pri­
meiro souber (CDp ➔ Vp). É como o conhecido círculo vicioso
matinal, em que precisamos de café para sair da cama e te­
mos de sair da cama para fazer o café.
Uma das coisas tem de vir primeiro. Há uma imensa bi­
bliografia que tenta perceber se Descartes realmente cai nesta
armadilha. Alguns comentadores citam passagens em que
parece que ele realmente não defende a primeira prioridade.
A mais importante sugestão é que G só é necessária para
validar a memória das demonstrações. Assim, na medida em
que percepcionamos alguma coisa clara e distintamente, não
precisamos de confiar em coisa alguma, nem mesmo em G,
para estarmos habilitados a estabelecer a sua verdade. Mas,

11 A objecção de Arnauld encontra-se no quarto conjunto de objecções e


respostas em Descartes: Selected Philosophica/ Writings, p. 142.

46
CONHECIMENTO

mais t ar de, qu a ndo esque cemos a demonstr a çã o, só G ga­


r a nte o noss o direit o de afirmar que j á a demonstr ámos, pel o
que de ve ser ver da de.
Outr os coment a dores su gerem que Des cartes nã opre cis a
da se gun da. Des cartes vê, cl ar a e distint a mente, que Deus
existe, ma s nã o pre cis a de uma re gr a ger a l, do géner o
(CDp ➔ Vp), par a gar a ntir est a per cepçã o. Des cartes pode ter
a certeza qu a nt o a este ca s o da re gr a sem ter a certeza qu a nt o
à própri a re gr a . Ist o é, em si, uma su gestã o interess a nte e
apresent a uma ver da de importante; desi gna damente, que
por vezes es ta mos mais cert os de vere di ct os pa rti cul ares do
que dos princípi os que poder í amos cit ar a o tent ar defendê­
-l os. P or exempl o, eu poss o s a ber que uma fr a se parti cul ar
est á gr a ma ti ca lmente corre ct a sem est ar se gur o qu a nt o à re­
gr a ger al de gr a máti ca que a s a nci ona. Os filós ofos têm si do
frequentemente bastante dur os qu a nt o a est a possi bili da de.
Só cr a tes, a a dmir a da pers ona gem dos di ál ogos de Pl atã o,
enfure ce-nos por gost ar de fazer a s su as vítima s dizer a l go,
mostr a ndo de se gui da que nã o opodem defender com ba se
emprincípi os ger a is sóli dos e a ca ba ndopor concluir que nã o
tinh am o direit o de afirma r o que a firma r am. N o ent a nt o, o
ca s o do conhe ciment o gr amati cal su gere que ist o é uma má
inferênci a . C onsi dere-se i gu a lmente o ca s o da per cepçã o, em
que eu poderei re conhe cer al go como umpomerano, ou um
membr o dos R olling St ones, ou a minh a mulher, sem ter
conhe ciment o de qu aisquer princípi os ger a is que «justifi­
quem» o vere di ct o. O meu sistema per cepti vopoder á oper ar
de a cor do com a l guns prin cípi os ger a is ou « al goritmos» pa r a
tr a duzir os da dos de entr a da ou inputs visu a is par a vere di c­
t os, ma s eu nã o fa ç o i dei a do que sã o. P or iss o, nã opoderi a
responder a Só cr a tes, que pe diu princípi os ger a is su bj a centes
a o meu a ct o de re conhe ciment o. N a da me rest ari a senã o
ga guej ar e fal ar a t a ba lh oa damente. M a s, apes ar de tu do, re­
conheç o um pomer a no, ou um membr o dos R olling St ones,
ou a minh a mulher. O modo de pr oce der de Só cr a tes só ser ve
par a dar má fama a os filós ofos.

47
PENSE

Ainda assim, estamos obrigados a perguntar por que razão


Descartes pensa poder ter a certeza quanto a este caso da
regra. Por que razão a sua «visão» de que Deus existe clara
e distintamente é também um caso claro e distinto de visão
da verdade? Algumas pessoas poderão ter a negra suspeita
de que é porque a menção a Deus obscurece o espírito em
vez de o iluminar.
Para os nossos objectivos podemos deixar este tema de
lado. O que é claro é haver aqui uma sensação nítida de
duplicidade de critérios. O género de problema céptico en­
carnado no génio maligno é, de algum modo, discretamente
esquecido enquanto Descartes tenta forjar um caminho que
o retire do seu rochedo solitário do cogito. E isto poderá fazer
crer que ele se colocou numa ilha deserta da qual não há
maneira de fugir.

Fundamentos e redes

O grande pensador escocês David Hume (1711-76) criti­


cou Descartes desta maneira:
Há uma espécie de cepticismo, anterior a todo o estudo da
filosofia, fortemente preconizado por Descartes e outros como uma
protecção soberana contra o erro e os juízos precipitados. Recomenda
uma dúvida universal, não só quanto às nossas opiniões e princí­
pios anteriores, como também quanto às nossas faculdades; facul­
dades de cuja veracidade, afirmam eles, devemos assegurar-nos por
meio de uma cadeia de raciocínio deduzida de um princípio origi­
nário que não pode de modo algum ser falacioso ou enganador.
Mas não só não há um tal princípio original, que tenha uma qual­
quer prerrogativa sobre outros, que são auto-evidentes e convincen­
tes, como, se houvesse, não poderíamos avançar um passo que fosse
além dele, excepto usando aquelas faculdades das quais devemos já
desconfiar. Logo, a dúvida cartesiana, ainda que qualquer cria­
tura humana a pudesse atingir (o que claramente não pode), seria
inteiramente incurável; e nenhum raciocínio poderia jamais con-

48
CONHECIMENTO

duzir-nos a um estado de certeza e convicção sobre o que quer


que fosse12•

Se o projecto de Descartes é usar a razão para se defender


da dúvida universal sobre a veracidade da razão, então tem
de falhar.
A objecção de Hume parece convincente. Parece que Des­
cartes estava condenado a fracassar. Qual deverá ser então o
resultado? O cepticismo universal, no sentido de pessi­
mismo sobre se existe realmente alguma harmonia entre o
modo como pensamos que as coisas são e o que elas são?
Ou outra coisa? Precisamos de apresentar outras possibili­
dades.
Uma forma de pensar - a de Hume - aceita a perspec­
tiva de que o nosso sistema de convicções precisa de um tipo
qualquer de fundamento. No entanto, nega que esse funda­
mento possa ter o tipo de estatuto racional que Descartes
queria. A própria veracidade (a autenticidade) dos nossos
sentidos e raciocínios é parte do fundamento. A veracidade
dos nossos sentidos e raciocínios não pode, ela mesma, ser
demonstrada com base noutro qualquer «princípio originá­
rio». Para todos nós, fora do escritório filosófico, confiar na
experiência comum é algo que acontece naturalmente. Cres­
cemos a proceder assim, e à medida que crescemos tomamo­
-nos bons a reconhecer zonas de perigo (ilusões, miragens)
contra o horizonte de convicções naturais que todos forma­
mos. A natureza autocorrectiva dos nossos sistemas de con­
vicções, acima mencionada, é tudo o que precisamos. Pode­
ríamos chamar «não racional» ou «fundacionalismo natural»
a esta abordagem. (Não querendo dizer com isso, claro, que
há algo de irracional a seu respeito. É que, pura e simples­
mente, nos fundamentos as coisas não se «apresentam à ra­
zão» do modo à prova de génio maligno em que Descartes
depositava as suas esperanças.) O próprio Hume ofereceu
12
Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, secção xrr, p. 149.

49
PENSE

uma série de argumentos, alguns dos quais visitaremos a


seu tempo, para pôr de lado qualquer apelo à racionalidade.
A ênfase nas formas naturais de formar convicções har­
moniza-se com outra tendência de Hume e outros filósofos
britânicos dos séculos XVII e XVIII, que é a sua desconfiança
nos poderes da razão pura. Para este filósofos, o melhor
contacto entre a mente e o mundo não é o ponto no qual uma
demonstração matemática se cristaliza, mas o ponto no qual
vemos e tocamos um objecto familiar. O paradigma era o
conhecimento pela experiência dos sentidos, e não pela
razão. Por este motivo, são classificados de empiristas, en­
quanto Descartes é um racionalista encartado. As classifica­
ções, no entanto, escondem muitos pormenores importantes.
Por exemplo, nalguns momentos, quando se sente pressio­
nado, o próprio Descartes parece dizer que o melhor das
ideias claras e distintas é que, quando as temos, não pode­
mos duvidar delas. Isto não é propriamente uma certificação
pela razão, mas antes o mesmo tipo de poder natural que
Hume atribui às convicções empíricas básicas. E em breve
descobriremos um aspecto em que o campeão do empirismo
britânico, John Locke (1632-1704), é tão racionalista como o
melhor racionalista. Os grandes filósofos têm o hábito
perturbador de resistir a classificações.
Neste aspecto, o problema de Descartes era confiar dema­
siado nos poderes da razão. Em vez disso, podemos apelar
à natureza, querendo com isto dizer a nossa propensão para
formar convicções e corrigi-las. E que é feito do génio ma­
ligno? Nesta história, a verdadeira moral das lutas de Des­
cartes é que, se levantarmos a questão de saber se a nossa
experiência e raciocínio (em bloco) se adequam ao modo de
ser do mundo (em bloco), será necessário um acto de fé para
a resolver. «Deus» é apenas a etiqueta para o que quer que seja
que assegura esta harmonia entre as convicções e o mundo.
Mas, como Hume diz na passagem citada, não temos neces­
sidade de levantar esta questão na vida normal. A dúvida
hiperbólica e a resposta a ela são, neste sentido, irreais.

50
CONHECIMENTO

Isto po de parecer sensato, ou apenas complacente. Mas,


para suavizar a acusação de complac ência, po demos, pelo
menos, notar o seguinte. Encarar a dú vi da como irreal não
tem de significar que viramos pura e simplesmente as
costas ao pro blema da harmonia entre apar ência e reali dade,
o pro blema da harmonia entre o que pensamos e o que as
coisas são. Po demos abor dá- lo a partir do interior do nosso
enquadramento normal de convicções. De facto, quando o
mesmo Hume o abor dou desta forma, ficou abismado
com as dificul dades le vantadas pelos nossos mo dos habi­
tuais de pensar acerca das coisas: dificul dades suficien­
temente fortes para reintro duzir o cepticismo so bre a nossa
capaci dade para saber alguma coisa so bre o mundo. Esse é
o tema do capítulo 7.
No entanto, dois séculos depois, temos ao nosso dispor
um pouco de optimismo. Po demos assim supor que a e vo­
lução, presumi velmente respons ável pelo facto de termos as
nossas facul dades sensoriais e de pensamento, não teria op­
tado por elas (na forma em que actualmente as possuímos)
se essas facul dades não funcionassem. Se a nossa visão, por
exemplo, não nos ti vesse informado dos pre dadores, comi da,
ou companheiros, justamente quando pre dadores, comi da e
companheiros estavam por perto, não teria ti do qualquer
utili dade para nós. Por isso, est á formada para fazer bem
estas coisas. A harmonia entre as nossas mentes e o mundo
de ve - se ao facto de o mundo ser respons ável pelas nossas
mentes. A função delas é represent á- lo de tal mo do que pos­
samos satisfazer as nossas necessi dades; se esti vessem feitas
para repre sent á-lo de qualquer outra maneira que não a
ver dadeira, não po der íamos so bre vi ver. Isto não é um argu­
mento conce bi do para fazer frente ao génio maligno. É um
argumento que apela a coisas que pensamos saber acerca
do mundo. Infelizmente, teremos de, a seu tempo, fazer uma
visita à área de dú vi das de Hume, onde as coisas que pen­
samos saber so bre o mundo ser vem tambémpara tomar esse
conhecimento du vi doso.

51
PENSE

Uma resposta bastante diferente afasta a necessidade de


qualquer tipo de «fundamento», quer certificado pela razão,
como Descartes desejava, quer meramente natural, como em
Hume. Esta abordagem recua e dá antes ênfase à estrutura
coerente do nosso sistema quotidiano de convicções: à forma
como são coerentes entre si, enquanto as experiências espo­
rádicas e as convicções que temos nos sonhos são fragmen­
tárias e incoerentes. Aponta, então, uma característica inte­
ressante das estruturas coerentes: nomeadamente a de que
não necessitam de fundamento. Um navio ou uma rede po­
dem ser feitos de um tecido de partes interligadas e derivam
a sua força justamente dessa interligação. Não precisam de
uma «base», ou «ponto de partida», ou «fundamento». Uma
estrutura deste género pode ter cada pedaço apoiado por
outro, sem existir qualquer pedaço que apoie todos os outros
e que não esteja, ele mesmo, apoiado. De modo semelhante,
se uma convicção de alguém é posta em causa, as outras
podem apoiá-la, a menos, é claro, que se verifique que nada
mais a apoia, caso em que deve ser abandonada. O filósofo
austríaco Otto Neurath (1882-1945) usou esta bela metáfora
para o conjunto dos nossos conhecimentos:
Somos como marinheiros que, no mar alto, têm de recons­
truir o seu barco, mas nunca podem começar do zero a partir
do porão 13•

Qualquer parte pode ser substituída desde que reste um


mínimo em que possamos manter-nos. Mas a totalidade da
estrutura não pode ser questionada em bloco e, se tentarmos
fazê-lo, damos connosco no rochedo solitário de Descartes.
A esta abordagem chama-se habitualmente «coeren­
tismo». O seu mote é que, apesar de todos os argumentos
precisarem de premissas, não há algo que seja a premissa de
todos os argumentos. Não há qualquer fundamento sobre o

13
Neurath, Anti-Spengler.

52
CONHECIMENTO

qual tudo o resto repouse. O coerentismo é agradável num


sentido, mas insatisfatório noutro. É agradável naquilo que
elimina, nomeadamente os esquivos fundamentos. Não é, no
entanto, claro que nos ofereça o suficiente para os substituir.
E isto porque parecemos ter sido capazes de compreender a
possibilidade representada pelo génio maligno - que o
nosso sistema de convicções possa ser abrangente e coerente
e que esteja interligado, mas completamente errado. Como
disse na introdução a este capítulo, já em crianças nos deixa­
mos naturalmente surpreender pela possibilidade de que
toda a experiência possa ser um sonho. Poderíamos simpa­
tizar com a ideia de Descartes de que, se as opções são o
coerentismo e o cepticismo, a opção mais honesta seria o
cepticismo.
É uma boa ideia, pois, dar atenção a quatro opções na
epistemologia (a teoria do conhecimento). Há o fundaciona­
lismo racional, como o que Descartes tentou. Há o fundacio­
nalismo natural, como o que Hume tentou. Há o coeren­
tismo. E, nascendo de todos eles, há o cepticismo, ou a
perspectiva de que não há conhecimento. Todos tiveram
defensores notáveis. Seja o que for que o leitor prefira, en­
contrará boa companhia filosófica. Poderíamos pensar que
Descartes acertou em quase tudo ou que errou em quase
tudo. O que suscita perplexidades é defender a resposta, seja
ela qual for, que parece recomendável.

Cepticismos localizados
Tanto podemos levantar dúvidas cépticas em áreas espe­
cíficas como globalmente, à maneira de Descartes. Uma
pessoa poderá estar convencida de que temos, digamos,
conhecimento científico, mas ter muitas dúvidas sobre o
conhecimento na ética, na política ou na crítica literária.
Depressa descobrimos áreas específicas onde não é necessá­
ria a dúvida hiperbólica, mas apenas um pouco de cautela,

53
PENSE

para ficarmos inseguros. No entanto, há outros bons exem­


plos de áreas muito gerais onde o cepticismo é desconcer­
tante. O filósofo Bertrand Russell (1872-1970) deteve a sua
atenção no exemplo do tempo. Como sei que o mundo não
começou a existir apenas há alguns momentos, mas com
todos os traços enganadores de uma idade muito mais avan­
çada? Esses traços incluiriam, é claro, as modificações do
cérebro que nos dão o que tomamos por memórias. Inclui­
riam também todas as outras coisas que tomamos por sinais
de antiguidade 14• De facto, os pensadores vitorianos empe­
nhados em reconciliar a versão bíblica da história do mundo
com os registos fósseis já haviam sugerido algo de muito
semelhante acerca da geologia. Segundo esta versão, há cerca
de 4000 anos, Deus formou todas as provas enganadoras de
que a Terra tem cerca de 4000 milhões de anos (e, pode­
ríamos agora acrescentar, todos os sinais de que o universo
tem cerca de 13 000 milhões de anos). Isto nunca foi uma
manobra muito popular, talvez porque, se formos cépticos
em relação ao tempo, rapidamente nos tomamos cépticos em
relação a tudo, ou talvez porque apresenta Deus como uma
espécie de grande brincalhão. A possibilidade de Russell
parece quase tão remota como o génio maligno de Descartes.
No entanto, há uma coisa muito intrigante no cenário de
Russell: a de se poder defender que é, na verdade, cientifica­
mente mais provável do que a alternativa em que todos acre­
ditamos! E isto porque a ciência nos diz que a «baixa
entropia» ou, por outras palavras, os sistemas altamente or­
denados, são mais improváveis. A acrescentar a isto, à me­
dida que sistemas como o cosmo evoluem, a entropia e a
desordem aumentam. O fumo nunca volta ao cigarro; a pasta
dentífrica nunca volta ao tubo. O mais extraordinário é que
tenha chegado a haver ordem suficiente nas coisas para, à
partida, o fumo estar no cigarro ou a pasta dentífrica no

14 O exemplo de Russell do cepticismo quanto ao tempo ocorre em An


Outline of Philosophy, pp. 171-172.

54
CONHECIMENTO

tubo. Assim, poderíamos argumentar, é mais «fácil» vir a


existir um mundo moderadamente desordenado, como o
mundo é actualmente, do que um ascendente de mais «baixa
entropia» ou mais ordenado. 15 Intuitivamente, é como se
houvesse mais maneiras de isto acontecer, assim como há
mais maneiras de conseguirmos formar palavras de quatro
ou cinco letras num lance inicial de sete letras no Scrabble
do que de conseguirmos formar uma palavra de sete letras.
É muito mais provável conseguirmos formar uma palavra de
quatro letras do que de sete letras. Analogamente, prossegue
o argumento, é como se Deus ou a natureza tivessem menos
que fazer para formar o mundo tal como é hoje a partir do
nada do que para formar a partir do nada o mundo de baixa
entropia tal como pensamos ele ter sido há cerca de 13 000
milhões de anos. Portanto, é mais provável que tenha acon­
tecido daquela maneira. Numa disputa directa em termos de
probabilidades entre a hipótese remota de Russell e o senso
comum, Russell ganha. Deixo isto à ponderação do leitor.

A moral da história
Como devemos então encarar o conhecimento? O conhe­
chnento implica autoridade: as pessoas que sabem são aque­
las que devemos ouvir. Implica fiabilidade: as pessoas que
conhecem são aquelas que são de confiança a registar a ver­
dade, como os bons instrumentos. Afirmar que temos conhe­
cimento implica afirmar uma noção da nossa própria fiabili­
dade. E, para reconhecer a autoridade de alguém ou de algum
método, temos de olhá-lo como fiável. Os perturbadores ce­
nários de um Descartes ou um Russell derrubam a noção
que temos da nossa própria fiabilidade. Levantadas as pos­
sibilidades remotas, esbate-se a noção que temos de que há

15 O tema da probabilidade e da entropia é discutido por Huw Price em


Time's Arrow and Archimedes' Point, cap. 2.

55
PENSE

uma ligação fiáv el entre o mod o como as coisas são e os


mod os como pensamos que sej am. Pod eríamos recuperá- la
se pud éssemos d efe nd er que os cenários são impossív eis ou,
pelo menos, não têm a mín ima hipótese d e ser a maneira
como as coisas são. O prob lema é ser d ifí cil mostrar que são
impossív eis e, nestes campos ab stractos, não temos uma
noção muito b oa d e prob ab ilid ad es ou possib ilid ad es. Por
isso, é d ifícil d efend er não ser possív el que sej am v erd a­
d eiros sem confiar nas próprias opiniões que os cenários
põem em causa. Assim, o cepticismo chama por nós, ou
ameaça- nos permanentemente. Podemos estar a registar o
mund o d e maneira fiáv el, mas pod emos não estar. Para v ol­
tar à analogia d a engenharia que usei na «I ntrod ução» , a
estrutura d o nosso pensamento parece ter grand es fa lhas:
neste caso, a falha entre a forma como as coisas parecem e
como pod erão ser. O utorgamo-nos o d ireito d e passar por
ci ma d essas fa lhas. Mas, se f izermos isto sem seguir qual­
quer b oa noção d a nossa própria fiab ilid ad e ou harmonia
com a v erd ad e, então esse d ireito parece mal fu nd amentad o.
E é nisto que o céptico insiste. Q ualquer confiança na harmo­
nia entre o mod o como pensamos que as coisas sej am e o
mod o como são parecerá um simples acto d e fé.
Descartes d eix ou-nos com um prob lema d o conhecimento.
Tamb ém nos d eix ou com sérios prob lemas no que respeita à
compreensão d o lugar d as nossas mentes na natureza. E, por
fim, tod a a rev olução científica, d e que ele foi um pai tão
d isti nto, nos d eix ou com profund os prob lemas quanto à
compreensão d o mund o em que v iv emos. Vimos alguns
aspectos d os prob lemas d o conhecimento. O próx imo capí­
tulo v olta-se para os prob lemas d a mente.

56
2
Mente

Suponha-se que pomos de parte o problema geral da


harmonia entre a maneira como julgamos ser o mundo e a
maneira como o mundo é. Façamos figas e suponhamos que
conhecemos de facto aquilo que naturalmente julgamos co­
nhecer. Mas até que ponto se harmonizam as nossas opiniões
entre si? Descartes deixou-nos com o nosso próprio eu e as
nossas próprias mentes como objectos especiais e íntimos de
um conhecimento imediato. Ou melhor, cada um de nós fica
com a sua própria mente como objecto de um conhecimento
imediato especial e íntimo. Pois, ainda que eu possa erguer­
-me do oceano da dúvida até ao cogito, não posso alcançar a
natureza da mente das outras pessoas. Mas, então, como
poderei saber alguma coisa das suas vidas mentais? Como
sei eu, por exemplo, se o leitor vê a cor azul do mesmo modo
que eu? Não poderá acontecer que alguns de nós sintam
mais a dor, mas se queixem menos, ou que outros a sintam
menos, mas se queixem mais? Como poderemos sequer pen­
sar acerca da mente e do corpo, do cérebro e do comporta­
mento?

57
PENSE

O fantasma na máquina
Vimos como a estr a té gi a de Des cartes o levo u a consi­
der a r o conhe cimento das noss as mentes ma is se guro e certo
do que o conhe cimento do resto do mundo. M a s Des­
ca rtes er a também um cientista ; fez des co berta s fundamen­
tais na ópti ca ; pr ati co u a disse ca ção e tinh a um conhe ci­
mento r azo ável da tr a nsmissão de impulsos a tr a vés dos ner­
vos a té a o cére bro. S a bi a que isto o corre por meio de uma
tr a nsmissão físi ca, um «puxão» o u «movimento violento»
dos nervos, o u, como hoje pens arí a mos, de um impulso
ele ctroquími co tr a nsmiti do ao longo do sistema nervoso16•
Os senti dos da vista, ta cto, gosto, olfa cto e o uvi do a ctiv a m
o sistema nervoso, o qual tr ansmite mens a gens a o cére bro.
O cére bro não é, natur a lmente, uma ma ss a indiferen­
ci a da . Al guma s pa rtes do cére bro tr ansmitem sinais a o utr a s
partes do mesmo e a o corpo: são postos em funciona mento
pa drões completos de a ctiv a ção. Tudo isto faz pa rte da
ne urofisiolo gi a . Em princípio, to dos estes a conte cimentos
po dem ser vistos em pú bli co: com os instr umentos apro­
pri a dos, os pa drões de a ctiv a ção po dem ser exi bi dos numa
s al a de a ul a .
E depois?
Bem, depois temos o momento mági co. A «mente» ( a cois a
pens a nte, o u res cogitans) ta mbém é afe cta da, e a bre-se o
mundo inteiro da experi ênci a . O s ujeito v ê cores, o uve sons,
sente textur as e temper a tur a s e tem sens a ções de gosto e de
cheiro. Este mundo da experi ênci a é composto por a conte ci­
mentos menta is, o u a conte cimentos que ocorrem no interior
de uma cons ci ênci a s ubje ctiv a . Estes a conte cimentos que
o correm na cons ci ênci a do s ujeito não po dem ser vistos em
pú bli co; são priv a dos. To da a turma po de ver a l guns
ne urónios a dispar ar, mas só a própri a pesso a sente a dor.

16 Sobre a posição de Descartes quanto ao sistema nervoso veja-se em


especial a «Sexta Meditação», pp. 59-60.

58
MENTE

Descartes chegou mesmo a situar o local onde se dá o acon­


tecimento mágico. Por razões de natureza neurofisiológica
bastante sensatas, pensou que a glândula pineal, localizada
no meio do cérebro, devia ser o lugar onde as mensagens
eram conduzidas do domínio da física para o domínio do
mental.
Para Descartes não se trata apenas de os acontecimentos
mentais serem distintos dos acontecimentos físicos. Perten­
cem também a um tipo diferente de substância - uma subs­
tância imaterial -, uma espécie de substância fantasmal, ou
ectoplasma. Em sentido estrito, se eu disser «Pensei na rai­
nha e fiz uma saudação», há uma espécie de ambiguidade:
o «eu» que é o sujeito do pensamento não é o «eu», o corpo,
que saúda. Pensamentos e experiências são modificações que
ocorrem num tipo de substância; movimento e posição di­
zem respeito a outro. Esta parte da doutrina de Descartes
caracteriza-o como um partidário do «dualismos da substân­
cia». Não se trata apenas de haver dois tipos de propriedades
(as mentais e as físicas) e de as pessoas poderem ter os dois.
Trata-se de haver também dois tipos de portadores de pro­
priedades. É claro que isto é teologicamente conveniente:
abre o caminho à imortalidade da alma, uma vez que não há
razão para que aquilo de que a alma é feita tenha a mesma
longevidade que algo como um corpo físico. Mas o dualismo
da substância não é obrigatório. Pode-se sustentar que as
propriedades mentais e físicas são muito diferentes, mas que
um corpo organizado tem-nas ambas - afinal, a massa e a
velocidade são dois tipos muito diferentes de propriedade,
mas os projécteis têm as duas. Quem sustenta que há dois
tipos de propriedades (as mentais e as físicas), mas que po­
dem ambos estar presentes num mesmo tipo de substância
(independentemente do que possa ser a substância de que
são feitos os grandes animais), é um adepto do dualismo das
propriedades.
Descartes conduz-nos à concepção do ser humano como
um «fantasma numa máquina», como resume primorosa-

59
PENSE

mente a expressão de Gilbert Ryle17 (1900-1976). Os aconte­


cimentos que ocorrem na máquina, o corpo físico, são como
os outros acontecimentos que ocorrem no mundo físico.
Consistem em interacções entre tipos de entidades que nos
são familiares: moléculas e átomos, campos eléctricos e for­
ças eléctricas. Os acontecimentos que ocorrem na parte
fantasmal, na mente, são completamente diferentes. Talvez
sejam acontecimentos que ocorrem num certo tipo de subs­
tância fantasmal -ectoplasma, ou substância não física de
que são feitos os espíritos e os anjos. Na crença popular, os
espíritos e os anjos passam bem sem estarem incorporados
num suporte físico. Mas no ser humano normal há uma es­
treita correlação entre os acontecimentos de um e de outro
tipo: espetar um alfinete em alguém provoca mudanças físi­
cas, mas provoca também um acontecimento mental de sen­
tir dor. E vice-versa: o acontecimento mental de nos lembrar­
mos de uma asneira pode causar acontecimentos físicos,
como soltar um lamento ou corar. Assim, os acontecimentos
que ocorrem num dos domínios podem afectar os que ocor­
rem no outro. Mas, em princípio, os dois domínios são com­
pletamente distintos.

Mortos-vivos e mutantes
É claro que esta visão não é exclusiva de Descartes. É a
visão que muitas das maiores religiões do mundo aceitam;
faz parte de qualquer doutrina que sustente que podemos
sobreviver à morte do corpo, ou que a nossa alma pode ir
para um lado enquanto o nosso corpo vai para outro. Con-

17 Ryle usou esta expressão na sua obra The Concept ofMind. Deve dizer­
-se que o próprio Descartes negava que, do seu ponto de vista, a alma esti­
vesse alojada no corpo «como um piloto num navio», de modo que há uma
disputa académica sobre a questão de saber se ele tinha em mente uma
perspectiva mais sofisticada.

60
MENTE

tudo, é uma visão que se defronta com problemas enormes


e provavelmente insuperáveis.
A primeira família de problemas é de natureza epistemo­
lógica. Acabei de dizer que no ser humano normal há uma
estreita correlação entre os acontecimentos de um e de outro
tipo. Mas o que nos autoriza a pensar isso? Eis urna das
maneiras como as coisas poderão ser:
A possibilidade dos mortos-vivos. Os mortos-vivos pare­
cem-se com o leitor e comigo e comportam-se corno o leitor e eu
nos comportamos. A natureza física dos mortos-vivos não se
distingue da nossa. Se o leitor abrisse o cérebro de um morto­
-vivo, chegaria à conclusão de que funciona exactarnente do
mesmo modo como funciona o seu cérebro ou o meu. Se o leitor
picar um morto-vivo, ele soltará um «Ai!», exactamente corno
eu ou o leitor. Mas os mortos-vivos não têm consciência. Não há
fantasma algum dentro deles.
Porque os mortos-vivos se parecem exactarnente consigo e
comigo e se comportam tal corno nós, não há maneira de saber
quais de nós são mortos-vivos e quais de nós têm consciência
tal corno o leitor e eu. Ou, pelo menos, tal como eu, urna vez
que, tendo considerado a possibilidade dos mortos-vivos, dou­
-me conta de que não posso estar realmente seguro acerca de si,
leitor, nem de qualquer outra pessoa. Talvez a consciência seja
urna extremamente rara realidade correlata de um complexo
sistema composto de alma e corpo. Talvez eu seja o único exem­
plo disso - talvez todas as outras pessoas sejam mortos-vivos.

Eis outra das maneiras corno as coisas poderão ser:


A possibilidade dos mutantes. Os mutantes parecem-se com
o leitor e comigo e comportam-se como o leitor e eu nos com­
portamos. A natureza física dos mutantes não se distingue da
nossa. Se o leitor abrisse o cérebro de um mutante, chegaria à
conclusão de que ele funciona exactarnente do mesmo modo
que o seu cérebro ou o meu. Se o leitor picar um mutante, ele
soltará um «Ai!», exactarnente corno eu ou o leitor.
Ao contrário dos mortos-vivos, os mutantes têm consciên­
cia. Há um fantasma dentro deles. Mas os acontecimentos que

61
PENSE

ocorrem no fantasma do mutante não são como é de esperar.


Um mutante que seja picado, por exemplo, pode ter experiência
de um acontecimento mental, como ouvir um dó central de um
clarinete. Também ele soltará um «Ai!», pois, dado que o cére­
bro dele funciona como o nosso e ele se comporta como nós, ser
picado com um alfinete inicia processos que causam modifica­
ções que levam por fim a que ele solte um «Ai!», tal como todos
nós. Quando ele, neste caso, ouvir um dó central de um clari­
nete, talvez sinta uma dor horrível, mas isso não fará mais do
que fazê-lo sorrir beatificamente. Um mutante que veja um
marco de correio vermelho poderá vê-lo como se fosse amarelo;
um mutante que veja narcisas poderá vê-los como se fossem
azuis. Um acontecimento que ocorra na consciência de um
mutante não apresenta qualquer relação com os acontecimentos
que ocorrem na mente do leitor ou na minha. Ou, pelo menos,
qualquer relação com os acontecimentos que ocorrem na minha
mente. Pois, uma vez que considerei a possibilidade dos mu­
tantes, dou-me conta de que não posso estar realmente seguro
acerca de si, leitor, nem de qualquer outra pessoa. Talvez todas
as outras pessoas, quando comparadas comigo, sejam mutantes.

O interesse destas possibilidades está em que, segundo a


perspectiva do dualismo cartesiano sobre a mente e o corpo,
elas parecem estar completamente em aberto. São possibili­
dades perturbadoras, e nós não as temos normalmente em
conta (se bem que eu suspeite que nos ocorrem mais frequen­
temente do que as estranhas possibilidades do primeiro ca­
pítulo).
Uma maneira de reagir é aceitá-las de cara levantada.
O leitor poderá dizer: pois bem, vamos supor que essas são
possibilidades completamente em aberto. Talvez eu jamais
possa saber como é realmente a mente de outra pessoa, que
acontecimentos mentais ocorrem nela ou, até mesmo, se ela
tem realmente alguma vida mental. Mas não poderei eu su­
por, ainda assim, que as vidas mentais das outras pessoas são
muito parecidas com a minha? Não poderei razoavelmente
usar-me a mim próprio como um modelo para tudo o resto?

62
MENTE

Sendo uma hipótese ou conjectura, não será grande coisa


como conhecimento, mas talvez seja uma conjectura razoável a
fazer. Este é o chamado «argumento por analogia a favor da
existência de outras mentes».
O problema deste argumento é parecer incrivelmente
fraco. Como o grande filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein
(1889-1951) perguntava, numa atitude de rejeição, «e como
posso eu, de um modo tão irresponsável, generalizar a partir
de um caso?»18 O simples facto de num caso - o meu pró­
prio -haver, talvez por sorte, uma vida mental de um tipo
particular e definido, associada a um cérebro e a um corpo,
parece ser um fundamento muito frágil para se supor que há
exactamente a mesma associação em todos os outros casos.
Se eu tiver uma caixa com uma carocha lá dentro, isso ape­
nas me dá motivos muito fracos para supor que qualquer
outra pessoa que tenha uma caixa tem também uma carocha
dentro dela.
Talvez pior ainda: isso dá-me motivos muito fracos para
negar que haja carochas noutro sítio qualquer que não as
caixas. Nesse caso, talvez coisas que são fisicamente muito
diferentes tenham consciência exactamente do mesmo modo
que eu: pedras e flores, por exemplo.
O leitor poderá sentir-se inclinado a descartar-se das pos­
sibilidades dos mortos-vivos e dos mutantes. Poderá consi­
derar que elas fazem parte de fantasias filosóficas, irreais ou,
em qualquer caso, inverificáveis. Mas isto não é uma reacção
inteligente. As possibilidades são de facto inverificáveis. Os
neurofisiólogos, por exemplo, não podem encontrar expe­
riência consciente do modo como encontram neurónios,
sinapses e padrões de actividade cerebral - nos termos que
já usámos, não podem mostrá-los num écran aos estudantes
no anfiteatro da escola. Mas então, no dualismo cartesiano,
as possibilidades em que todos nós naturalmente acredita­
mos, nomeadamente que as outras pessoas não são mortos-
18
Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 293, p. 100.

63
PENSE

-vivos nem mutantes, são elas mesmas inverificáveis! Não


passam de cegos artigos de fé. Alguém que sustente a pos­
sibilidade dos mortos-vivos não fica, neste caso, pior do
que nós.
De facto, se a nossa concepção de espírito admitir as pos­
sibilidades dos mortos-vivos e dos mutantes, poderemos até
supô-los como bem prováveis ou, pelo menos, tão prováveis
como qualquer outra coisa. Pois que, se não for a priori falso
que as outras pessoas sejam mortos-vivos, porque seria então
isso menos provável a priori do que a hipótese de elas terem
consciência como eu?
Por que razão falam tanto os filósofos de possibilidades
extravagantes que as outras pessoas têm todo o prazer em
ignorar (uma das coisas que fazem da filosofia uma área
proibitiva e lhe dá má reputação)? A razão está em que as
possibilidades são usadas para pôr à prova uma concepção
acerca de como são as coisas. Neste caso estão a ser usadas
para pôr à prova a concepção de mente e de matéria que as
suscita. O argumento consiste em que, se a mente e a matéria
forem concebidas à maneira cartesiana, então estarão com­
pletamente em aberto possibilidades de um tipo extravagante,
acerca das quais nada podemos saber. Logo, uma vez que isto
é intolerável, devemos repensar a nossa concepção de como
as coisas são (chama-se «metafísica» a isto). Uma concepção
melhor da mente e do seu lugar na natureza deverá excluir
estas possibilidades. A intenção não é atolarmo-nos no
cepticismo, mas sim afastarmo-nos de qualquer filosofia
que abra as portas às possibilidades cépticas. Diríamos: de
acordo com o dualismo cartesiano, tanto a possibilidade dos
mortos-vivos como a dos mutantes estão completamente em
aberto. Mas isso não mostra senão que há algo de errado no
dualismo cartesiano. O mental e o físico não são pura e sim­
plesmente tão distintos como o dualismo cartesiano afirma.
Porque não é realmente possível que (digamos) alguém que
bateu em cheio numa pedra com um pé e ulula de dor se
comporta assim porque está num estado mental como aquele

64
MENTE

em que eu fico ao ouvir um dó central de um clarinete. Esse


estado mental não pode pura e simplesmente ser expresso
através de gritos ou de gemidos. O vínculo que há entre a
natureza intrínseca do estado mental - a maneira como se
sente - e a sua expressão é mais forte do que isso. Sabemos
que alguém que acaba de bater violentamente com o pé
numa pedra não ulula por ter uma experiência igual à que eu
tenho quando ouço um dó central de um clarinete. Sabemos
que está a ter uma experiência muito parecida com a expe­
riência que eu tenho quando magoo o meu pé.
O argumento por analogia a favor da existência de men­
tes alheias era precisamente o alvo de Wittgenstein. A prin­
cipal objecção de Wittgenstein ao «argumento por analogia»
não é apenas o facto de ser tão fraco. Wittgenstein tenta
mostrar que, se o que o leitor souber acerca dos aconteci­
mentos mentais for obtido exclusivamente a partir do seu
próprio caso, não lhe será sequer possível pensar seja o que
for relativamente à consciência alheia. Seria como se, dei­
xasse eu cair um tijolo em cima do seu pé, não houvesse
simplesmente dor (eu não sinto nenhuma), e pronto. Mas,
uma vez que pensamos de facto em coisas que têm a ver com
mentes alheias e com as suas experiências, temos de as con­
ceber de outra maneira.
Por estas razões, o caminho a seguir é rejeitar a imagem
da mente e do corpo que nos é dada pelo dualismo carte­
siano. E devemos ser incitados a rejeitar o dualismo carte­
siano por imperativos não só de ordem metafísica, mas tam­
bém epistemológica. Poderemos nós obter realmente uma
imagem possível da maneira como o mundo é a partir do
dualismo cartesiano, independentemente de sabermos se é
assim? Considere-se outra vez o morto-vivo. O seu funciona­
mento físico é idêntico ao nosso. Reage ao mundo do mesmo
modo. Os seus projectos realizam-se ou falham da mesma
maneira: a saúde dele depende das mesmas variáveis de que
depende a nossa. Ele pode rir nos sítios certos e chorar em
tragédias apropriadas. Pode ser divertido estar com ele.

65
PENSE

Assim sendo, o que está a falta de consciência a fazer? Ou,


pondo as coisas ao contrário, o que está a consciência por
hipótese a fazer em nós? Devemos concluir que em nós, que
não somos mortos-vivos, há acontecimentos mentais, mas
não fazem nada? Será a consciência como o zunido do mo­
tor - algo que não faz parte da máquina que faz acontecer
as coisas? (Esta doutrina é conhecida por «epifenomena­
lismo».) Mas, se as mentes não fazem coisa alguma, por que
razão evoluem? Por que razão tratou a natureza de fazer
mentes? E, se os estados mentais não fazem realmente nada,
como entram na memória, por exemplo?
Este é o problema da interacção cérebro-mente, tal como
se apresenta ao dualismo cartesiano.

Locke, Leibniz e o bel-prazer de Deus


O que está aqui em causa encontra-se admiravelmente
resumido num debate entre John Locke e um contemporâ­
neo seu, o grande matemático e filósofo Gottfried Wilhelm
Leibniz (1646-1716). Locke foi outro pensador do século XVII
que se preocupou com as implicações da moderna visão
científica do mundo. Em particular, preocupou-se com o mo­
mento da causalidade em que os movimentos de partículas
no cérebro dão origem a ideias, tais como a de cor, na mente.
Na passagem seguinte, Locke fala do modo como os bombar­
deamentos de pequenas partículas atómicas fazem surgir
coisas como cheiros, gostos, sons e cores:
Suponhamos agora que os diferentes movimentos e formas, tama­
nho e número de tais partículas, ao afectarem os vários órgãos dos
nossos sentidos, produzem em nós essas diferentes sensações, como as
cores e cheiros dos corpos; que uma violeta, por exemplo, por efeito de
tais partículas insensíveis de matéria com formas e tamanhos particu­
lares e em diferentes graus e modificações dos seus movimentos, causa
as ideias da cor azul e do doce odor dessa flor que se produzem nas
nossas mentes. Pois não é mais impossível conceber que Deus haja

66
MENTE

ligado tais ideias a tais movimentos, com os quais elas não têm qual­
quer semelhança, do que conceber que ele haja ligado a ideia de dor ao
movimento de um pedaço de aço que rasga a nossa carne, algo com o
qual tal ideia não tem parecença19•

Locke partilhava da ideia, que já encontrámos em Newton


e em Descartes, de que alguns processos causais eram relati­
vamente inteligíveis, em particular aqueles em que uma qua­
lidade, como o movimento, é transmitida de uma partícula
para outra por colisão. Mas o momento em que se dava a
causalidade do corpo para a mente, no qual os movimentos
que ocorrem no cérebro produzem algo inteiramente diferen­
te - as sensações de cheiro ou de cor -, era completamente
obscuro. É verdadeiramente espantoso o facto de os aconteci­
mentos mentais ocorrerem quando ocorrem. Isso é devido
àquilo a que Locke chama, noutra ocasião, «a vontade arbi­
trária e o bel-prazer» de Deus, «o sábio arquitecto» que «liga»
certas modificações da consciência a certos acontecimentos
físicos. Em linguagem cartesiana, diríamos que Locka pensa
que não temos uma ideia «clara e distinta» de que tipos de
sistema poderá Deus escolher como lugares no seu entender
adequados para lhes acrescentar consciência. O facto de o
universo estar organizado de tal modo que alguns tipos de
sistemas possuem consciência e outros não será apenas um
facto bruto. E é apenas um facto bruto a consciência desses
sistemas se modificar e adquirir propriedades definidas, ao
mesmo tempo que os seus eus físicos se modificam e adqui­
rem propriedades particulares. Há um contraste entre uma
conexão racional e inteligível, tal como a que encontramos
na disciplina a priori da Matemática, e o facto de certos
«movimentos» só produzirem as sensações que produzem
em nós. Isto é o facto bruto, a consequência do bel-prazer
de Deus.

19 Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano, II. vm. 13, p. 136. Aqui e
noutras passagens, ao citar Locke, modernizei o uso de maiúsculas.

67
PENSE

Na ver dade, a est e r espeito Lock e não est á muito long e da


do utrina conh eci da por «ocasionali smo», adaptada por o u­
tro cont emporâneo s eu, Nicolas Mal ebranch e (1638 - 1715). D e
acor do com esta do utrina, o s acont ecimento s fí sico s não cau­
sam nemfazem s urgir, estritament e, o s acont ecimento s men­
tai s. Ao invé s, o s acont ecimento s fí sico s forn ec em as oca­
siõ es para que D eus insira acont ecimento s mentai s de tipo
apropriado nas no s sas biografias. Rigoro sament efalando, o s
no s so s corpo s não afectam as no s sas ment es; limitam- s e a
forn ec er ocasiõ es nas quai s D eus ag e. I sto não é afirmado
pelo próprio Lock e, mas po demo s consi derar que h á uma
pequení s sima dif er ença entr e, por um lado, a int er venção de
D eus a s eu bel -prazer para que o rasgar da carn e pelo aço
pro voque uma s ensação de dor e, por o utro, a ins erção
dir ecta de D eus de uma s ensação de dor na alma s empr e que
o aço rasga a carn e.
A do utrina de Lock e incomo do u profundament e L ei bniz.
Napas sag em s eg uint e, extraí da do s s eus Novos Ensaios sobre
o Entendimento Humano, que são um coment ário ponto por
ponto a Lock e, Filal eto faz deporta- voz de Lock e e Teófilo de
L ei bniz. Not e- s e a citação dir ecta da pas sag em acima de
Lock e:

FILALETO: Ora, quando certas partículas atingem de diferentes


modos os nossos órgãos, causam em nós certas sensações de cores ou
de sabores, ou de outras qualidades secundárias que têm o poder de
produzir essas sensações. «Pois não é mais impossfvel conceber que
Deus haja ligado tais ideias [como a de calor] a tais movimentos, com
os quais elas não têm qualquer semelhança, do que conceber que ele
haja ligado a ideia de dor ao movimento de um pedaço de aço que rasga
a nossa carne, algo com o qual tal ideia não tem parecença. »
TEÓFILO: Não se deve pensar que ideias tais como as de cor e de dor
são arbitrárias e que entre elas e as suas causas não há relação ou
conexão natural: não é esse o modo de agir de Deus, de tal forma
desregrada e desarrazoada. Por mim, diria antes que há uma parecença
de certo tipo - não que perfeita em toda a linha, mas uma parecença
na qual uma coisa expressa outra através de uma certa relação arde-

68
MENTE

nada entre elas. Do mesmo modo, uma elipse, e mesmo uma parábola,
tem alguma parecença com o círculo, do qual ela é uma projecção num
plano, visto haver uma certa relação precisa e natural entre o que é
projectado e a projecção que de si é feita, com cada ponto de uma das
linhas em correspondência com um ponto da outra, de acordo com
uma certa relação. Isto é algo em que os cartesianos não atentaram; e
neste ponto, Senhor, vós condescendestes com eles mais do que é vosso
costume e mais do que o fundamento que tínheis vo-lo permitia [ . . . ]
É verdade que a dor não se parece com o movimento de um alfinete;
mas pode perfeitamente parecer-se com os movimentos que o alfinete
causa no nosso corpo, e pode representá-los na alma; e não tenho a
menor dúvida de que o faz2º.

O nd e L ocke a pena s v ê « o bel- praz er d e Deus» , L eibniz


pa rece insistir em que tem d e hav er uma conex ão ra ciona l.
O s a contecimentos que se d ão na a lma têm d e ter uma certa
rela ção qua se ma temática com os « mov imentos» no cérebro
e no corpo que lhes d ão origem.
P od emos a presenta r a questão nos seguintes termos. Ima ­
gine- se Deus cria nd o o univ erso. Q ue qua ntidad e d e coisa s
tem Deus d e faz er? U ma d outrina a tra ente seria a ssim: Deus
tem d e cria r a substâ ncia fí sica e a s leis da fí sica e a pa rtir daí
tud o o resto se segue. Nesta concepção, a o fixa r o estad o
físico d o univ erso pa ra tod o o sempre, um d eus criad or fixa
tud o pa ra tod o o sempre. Se tiv esse querid o faz er um mund o
em que a lgo fosse d iferente - no qua l, d iga mos, as a lfineta ­
da s não fossem d olorosa s - , então teria d e ter a lterad o os
factos físicos d e ta l mod o que isso não v iesse a a contecer.
Teria d e ter insta lad o nerv os e v ia s d iferentes no corpo e no
cérebro. Não há qua lquer va ria ção independente em função
da qua l, send o o menta l d iferente, o físico pud esse perma ne­
cer o mesmo. É esta a posição d e L eibniz , pelo menos a julga r
por esta pa ssa gem. (U ma interpreta ção d iferente a presenta- o
como a lguém que consid era hav er uma va ria ção ind epen-

20 Leibniz, Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, 131.

69
PENSE

d ente, mas que Deus, está clar o, escol heu a melhor manei ra
d e associ ar os aconteci mentos mentai s e físi cos.)
L ocke, por seu turn o, pensa que Deus tem d uas coi sas
diferentes a fazer. Pri mei ro, fixar tod a a f ísi ca e tod as as lei s
d a físi ca. Tem, porém, em segund o lugar, d e d ecidi r como
«li gar» os aconteci mentos mentai s aos aconteci mentos fí si ­
cos, consti tui nd o relações psi cof ísi cas. É como se o mund o
ti vesse d uas bi ografias dif erentes; uma d elas seri a a d os seus
aconteci mentos f ísi cos e a outra a d os seus aconteci mentos
mentai s; e Deus teri a d e d ecidi r como relaci oná- los entre si.
Pod eri a haver, por i sso, vari ação i nd epend ente. Deus pod e­
ri a ter mantid o o físi co ex actamente na mesma, d ecidi nd o
embora não li gar qualquer d or à s alfi netad as.
Consid ere-se agora uma pessoa ( o lei tor) e uma répli ca
fí si ca d essa pessoa ( um gémeo) . Se L ocke ti ver razão, então
é em pri ncípi o possível que o gémeo sej a um morto-vi vo ou
um mutante. Ai nd a que o eu f ísi co d ele ou d ela sej a ex ac­
tamente como o seu, seri a um ex ercíci o arbi trá ri o d a bon­
d ad e d e Deus fazer a sua vid a mental também semelhante.
Isto é especi almente óbvi o na versão «ocasi onali sta» d esta
concepção: talvez Deus, por moti vos i nsondá vei s que só a
ele pertencem, consid ere que quand o bato numa ped ra com
o meu pé é uma boa ocasi ão para i nclui r a d or na mi nh a
bi ografi a mental sem proced er d o mesmo mod o consi go. Por
outro lad o, se L ei bni z ti ver razão, não há tal possi bi lid ad e. Se
ambos, o lei tor e o seu gémeo, baterem com a mesma f orça
numa ped ra e reagi rem fi si camente d o mesmo mod o, então
a «ex pressão» d os aconteci mentos f ísi cos nas vossas mentes
terá também d e ser a mes ma, tal como as figu ras projectad as
por d uas f ormas id ênti cas num plano segu nd o um certo
â ngu lo têm d e ser as mesmas.
É i nteressante que L ei bni z use uma anal ogi a matemá ti ca.
Isto não acontece apenas por el e ter sid o um matemá ti co
ai nd a melhor d o que Descart es e d e ter, entre outras coi sas,
i nventad o o cál culo. É antes porque, para L ei bni z, tod a a
ord em d a natureza d eve ser, em ú lti ma aná li se, transparente

70
MENTE

à razão. Quando as coisas sucedem desta ou daquela ma­


neira, não acontecem apenas por acontecer. Tem de haver,
desde que possamos ver suficientemente longe, uma razão
pela qual acontecem assim. As coisas têm de fazer sentido.
Quando Leibniz diz que Deus nada faz de modo arbitrário
ou sem que seja segundo princípios, está na verdade, mais
do que a dar mostras de optimismo teológico, a insistir em
que devemos ser capazes de ver por que razão são as coisas
de uma ou de outra maneira. Este é o seu «princípio da razão
suficiente». Em termos cartesianos, deveremos ser capazes
de formar uma ideia clara e distinta da razão pela qual as
coisas acontecem como acontecem. Devemos ser capazes de
penetrar no que explica por que razão o modo como as coi­
sas são é o modo como têm de ser. É esta confiança no que
deverá ser possível à razão que faz de Leibniz, como Descar­
tes, um «racionalista».
Em filosofia da mente, o leibniziano deverá negar a pos­
sibilidade de mortos-vivos e de mutantes. Se fixarmos a bio­
grafia física, fixamos também a biografia mental. Não há
variação independente, efectiva ou possível. O problema filo­
sófico é o de compreender por que razão é isto assim. Trata­
-se de saber como compreender o modo pelo qual a história
física completa toma real a história mental.
Locke julgava poder deixar em aberto a questão de saber
se é uma «coisa» imaterial dentro de nós (um fantasma) que
faz o pensamento, ou se é o próprio sistema que o faz, uma
vez que Deus tem o poder de acrescentar pensamento a tudo
aquilo que lhe apetecer. Mas é muito claro que, para Locke,
é precisa uma mente para fazer uma mente. Isso requer uma
concessão especial: o pensamento não pode surgir natural­
mente (ou de um modo racionalmente explicável, como faz
Leibniz) da matéria.

Pois que as partículas de matéria não pensantes, seja qual


for a maneira como estejam reunidas, não podem com isso obter
seja o que for de acrescentado, a não ser uma nova relação de

71
PENSE

posição, sendo impossível que esta lhes dê pensamento e conhe­


cimento21.

É este tipo de certeza a priori a respeito do que pode ou


não pode causar outras coisas que nos permite dizer que
Locke é, no essencial, como toda a gente no seu tempo, um
racionalista, ainda que menos confiante nos poderes da ra­
zão do que Descartes e Leibniz.
Os pensadores que têm vindo a ocupar-se das questões
da mente e da matéria não foram muito mais longe que
Locke e Leibniz. Também hoje há pensadores (por vezes
chamados «novos misteriosistas») que pensam que nunca
viremos a compreender a relação entre a mente e a matéria.
A questão está ainda como Locke a deixou: um assunto não
explicável racionalmente -o bel-prazer de Deus. Há mesmo
filósofos que pensam ser verdadeiro um certo tipo de
dualismo cartesiano e que a mente tem realmente uma natu­
reza epifenoménica - nunca causa quaisquer acontecimen­
tos físicos. Dizem isto porque reconhecem que o físico é um
sistema fechado. Se há um processo que começa com um alfi­
nete a ser espetado no leitor e acaba com um esgar, então há
uma cadeia inteiramente física entre espetar um alfinete e
fazer um esgar que explica o esgar. Assim, pensam eles, tem
de ser falso que o leitor faça um esgar por ter uma dor. Este
aspecto do senso comum tem de ser rejeitado. O leitor faz
um esgar por causa das vias físicas, não por causa de um
acrescento mental. Estes pensadores estão de facto encra­
vados no mesmo problema de interacção que Locke enfrenta.
Discuti-lo-emos um pouco mais no capítulo seguinte.
Mas há outros pensadores que pensam ser possível en­
contrar uma relação racional. Apresentarei duas grandes
maneiras de tratar a questão. A primeira procura fornecer
uma «análise» do mental, por forma a podermos vê-lo como

21 Locke, Ensaio, N. x. 16, p. 627.

72
MENTE

uma expressão leibniziana do físico. A segunda procura che­


gar a uma redução de tipo científico do mental ao físico, ou
a uma identidade entre eles.

A análise
A análise, tal como os filósofos a concebem, tenta dizer o
que toma verdadeiros alguns tipos misteriosos de afirma­
ções, usando termos de uma classe de algum modo menos
misteriosa. A análise ilustra-se facilmente com um exemplo
familiar. Suponha-se que alguém fica confuso com esse ícone
da vida ocidental moderna que é o homem médio, com os
seus 2,4 filhos e 1,8 automóveis. Como pode esta figura
anedótica ter verdadeiramente algum interesse? A resposta
obtém-se mostrando o que faz serem verdadeiras as afirma­
ções formuladas em termos dessa figura: neste caso, que o
número total de filhos a dividir pelo número de progenitores
dá 2,4 e o número de automóveis a dividir pelo número de
proprietários dá 1,8. Esta informação está sucintamente apre­
sentada em termos do homem médio. Ele é o que Russell
chamou uma «construção lógica» extraída de agregados de
factos. (Isto não quer dizer que todos os enunciados sobre a
média sejam sensatos ou úteis: como já houve quem disses­
se, a pessoa média tem um testículo e um seio.) Os filósofos
também falam de uma redução de afirmações de um tipo a
afirmações de outro tipo. A análise fornece as reduções.
A análise diz-nos o que as afirmações formadas por certas
palavras querem dizer por meio de afirmações feitas com
outras palavras. As suas próprias credenciais como ferra­
menta intelectual têm sido objecto de enorme controvérsia
filosófica e o seu estatuto foi mudando ao longo dos últimos
cem anos. Alguns, como Russell e G. E. Moore (1873-1958),
concebiam-na como a finalidade principal da filosofia. Mais
tarde, o seu alcance foi questionado por W. V. Quine (1908-
2001), o mais influente pensador norte-americano de meados

73
PENSE

do século xx, além de outros, a cujo pessimismo foi dada


alguma credibilidade pelo facto decepcionante de apenas um
número muito reduzido de análises haver parecido ter êxito.
Presentemente, a análise conhece de certo modo um regresso
cauteloso22• Para os nossos propósitos, porém, as questões
metodológicas podem ser deixadas de parte. O que interessa
é que, se formos capazes de analisar as atribuições mentais
em linguagem física, fica justificado então o sonho leibni­
ziano de um modo racional ou a priori de ver como o físico dá
origem ao mental.
Tomemos a dor como exemplo de um estado mental.
Suponha-se agora que tentamos analisar o que é alguém
estar com dores. Identificamos a dor, em primeiro lugar, por
aquilo que a dor nos leva a Jazer (o que é, também, aquilo
para que seroe, numa perspectiva evolucionista). A dor leva­
-nos a fazer várias coisas. Exige atenção, leva-nos a imobili­
zar partes do corpo, distrai-nos de outras coisas e, natural­
mente, é desagradável. Suponha-se que podemos resumir
estas tendências falando de tendências ou disposições
comportamentais. A sugestão, então, é que estar com dores é
apenas ter tais disposições. Esta é a análise do que significa,
ou o que faz ser verdadeiro, afirmar que alguém está com
dores. Este resultado será um exercício a priori da razão, exer­
cício que é suscitado quando se reflecte sobre o que se quer
realmente dizer com afirmações acerca deste tipo de acon­
tecimento mental. Desaparece, então, o mistério da cons­
ciência. O leitor e o seu gémeo, uma vez que partilham
disposições (ambos têm tendência, de modo verificável, a
comportarem-se da mesma maneira), partilham as vossas
sensações, porque o que as sensações são é isto.
Esta doutrina chama-se «behaviourismo lógico». Penso
que há algo de certo nela, mas há certamente dificuldades.
Poderemos objectar que estamos habituados à ideia de as

22 Uma boa fonte para o cauteloso renascimento corrente das técnicas da


análise é Jackson, From Metaphysics to Ethics.

74
MENTE

pessoas poderem partilhar a mesma sensação, ainda que


reajam de maneira algo diferente. Uma pessoa pode dar, num
dia, uma topada com o pé e fazer por causa disso uma gri­
taria tremenda; mas, noutro dia, acontecendo-lhe o mesmo,
e sentindo a mesma dor, pode ter a coragem de sorrir e pros­
seguir o caminho. O comportamento não é um guia seguro
para as sensações, pensamentos ou sentimentos. (É esta a
ideia da anedota dos dois behaviouristas que fizeram amor:
«Para ti foi óptimo! E para mim?») Portanto, no mínimo,
podem surgir mais complicações. Talvez pudéssemos salvar
a análise referente às disposições para comportamentos
chamando a atenção para o facto de que o leitor, mesmo
sorrindo corajosamente e prosseguindo o caminho, estaria,
ainda assim, de algum modo disposto a fazer demonstrações
de dor mais expressivas, que suprime, por esta ou aquela
razão. É quase impossível suprimir por completo as tendên­
cias para o comportamento de dor e outros autores fazem
brilhantemente notar a diferença entre, por exemplo, uma
criança que não se magoou e outra que se magoou, mas se
comporta corajosamente. Parece essencial à dor dispor as
coisas deste modo. Mesmo que isto seja por vezes desafiado
por casos como o de pessoas com certos tipos de lesões cere­
brais que dizem, de modo aparentemente sincero, que certa
dor está ainda presente, mas que já não se importam com ela.
Devemos notar, todavia, que isto é muito difícil de com­
preender. Se o leitor quiser arranjar um exemplo bem forte
de dor - tocar numa placa de fogão ao rubro ou torcer um
dedo do pé contra a parede -, é muito difícil imaginar que
esse mesmo estado mental não seja incrivelmente desagradá­
vel. E é difícil imaginá-lo sem a sua tendência para causar
manifestações típicas de comportamento.
Os pensadores contemporâneos tendem a não ter muita
fé neste tipo de behaviourismo. Preferem uma doutrina ligei­
ramente mais elaborada conhecida por «funcionalismo».
Também este presta a maior atenção à função do estado
mental. Mas identifica essa função de um modo ligeiramente

75
PENSE

mais descontraído. Tem em conta uma rede de relações


físicas: não apenas disposições para comportamentos, mas
também causas típicas, e até efeitos sobre outros estados
mentais -desde que eles sejam sucessivamente expressos
em disposições físicas. Mas a ideia é essencialmente seme­
lhante.
A dor é um estado mental que se presta muito bem ao
projecto da análise, visto que tem uma expressão claramente
ímpar e natural no comportamento. Outros estados com o
mesmo tipo de expressão natural podem incluir emoções (a
tristeza, o medo, a cólera e a alegria têm, todas, manifesta­
ções típicas no comportamento). Mas outros estados mentais
só muito indirectamente se relacionam com o comporta­
mento: considere-se o gosto do café, por exemplo. Provar
café dá-nos uma experiência ímpar. Há algo que é como o
sabor do café (o que não há no caso dos mortos-vivos). Mas
isso não nos leva habitualmente a fazer coisa alguma. Os pen­
sadores contemporâneos gostam de expressar isto dizendo
que há qualia, impressões ou sensações em bruto associadas
ao sabor do café. E os amigos dos qualia fazem muitas vezes
má cara quando se fala na possibilidade de reduzir os qualia
a disposições comportamentais. No que respeita a este pro­
blema, estão de novo com Locke. De facto, estes qualia são
acrescentados a vários acontecimentos físicos -pelo menos,
no meu caso, ainda que não no seu -, mas as coisas pode­
riam ter sido diferentes. Mas, então, o cepticismo quanto à
questão de saber se as outras pessoas são mortos-vivos ou
mutantes volta a ameaçar.

Um modelo científico
É importante prestar atenção a uma distinção que é co­
mum fazer-se no debate contemporâneo. Até agora apre­
sentámos Leibniz em oposição ao elemento de acaso bruto
de Locke e em defesa de uma relação racional quase mate-

76
MENTE

mática entre mente e corpo. É possível sugerir que há um


caminho intermédio: um que se opõe ao acaso, mas que não
vai tão longe quanto uma relação matemática ou racional­
mente transparente. Isto é habitualmente apresentado dizendo
que talvez haja uma identidade metafisica entre os factos ou
acontecimentos mentais e físicos, mas que ela não é necessa­
riamente algo que possa ser conhecido a priori.
Eis uma analogia frequente. A física clássica identifica a
temperatura de um gás com a média das energias cinéticas
das moléculas que o compõem. Assim, ao fazer gases quentes,
Deus tem apenas uma coisa a estabelecer: o gás e a energia
cinética média das suas moléculas, ficando desse modo esta­
belecida a temperatura. Não há variação independente. Não
pode haver gases mortos-vivos ou mutantes nos quais a
energia cinética das moléculas não constitua qualquer tem­
peratura, ou que constitua diferentes temperaturas relativa­
mente às que estão associadas à mesma energia noutros
gases.
Por outro lado, não é simplesmente a razão, o pensamento
ou a matemática que habilitam os cientistas a identificar a
temperatura com a energia cinética média. O avanço decisi­
vo não foi uma análise a priori, feita numa poltrona, do que
significa a temperatura; em vez disso, teve em conta a expe­
rimentação e a observação, bem como considerações teóricas
gerais. O resultado não foi puramente a priori, mas antes,
pelo menos, sobretudo a posteriori. A relação não é de molde
a que pudesse ter sido obtida antecipadamente apenas pela
matemática ou por «ideias claras e distintas», como o facto
de um círculo projectado sobre um plano inclinado resultar
numa elipse.
Em geral, na ciência, quando um termo ou propriedade
teórica, como a temperatura, passa a estar identificado com
outro (a energia cinética média das moléculas constituintes,
neste caso), a conexão é feita por princípios de ligação que
fazem parte das ciências em questão. Assim, por exemplo, a
identificação que hoje se faz dos genes com fragmentos de

77
PENSE

ADN acontece porque na biologia clássica os genes são de­


finidos pela função que têm na produção de características
que podem ser herdadas, e agora, na biologia molecular,
chega-se à conclusão de que as coisas que têm tal função são
fragmentos de ADN. Note-se que a análise não está comple­
tamente ausente. Temos de saber o que se espera que os genes
façam antes de poder ser feita a identificação. Mas a grande
descoberta é a descoberta contingente e científica daquilo
que faz o que, por definição, os genes fazem.
Se moldássemos a nossa maneira de tratar o problema da
relação mente-corpo de acordo com reduções científicas do
tipo das que acabámos de descrever, encontraríamos um
estado físico qualquer característico das pessoas que partilham
um certo estado mental. Assim, por exemplo, talvez desco­
bríssemos que todas e só as pessoas que estão com dores
partilham um certo estado mental (muitas vezes vagamente
referido dizendo que «as suas fibras C dispararam»). E de­
pois seria proposto que isto é então o estado de estar com
dores, tal como alguns fragmentos de ADN são genes. Uma
vez mais, haveria uma completa redução do mental ao físico.
Isto seria o que se chama uma «teoria da identidade psico­
física».
Os seus adversários dizem por vezes que só se pode acre­
ditar nesta teoria à custa de simular uma anestesia perma­
nente. Queixam-se de que tudo o que é distintamente mental
foi deixado de fora. A refutação correcta disto consiste em
perguntar ao nosso contendor exactamente o que pensa ele
que foi deixado de fora e ficar a vê-lo debater-se com as
dificuldades do dualismo. Mas há outras dificuldades que se
deparam a este tipo de teoria psico-física da identidade. Uma
delas é que, no caso de acontecimentos mentais, é a nossa
própria consciência que manda, no seguinte sentido: na pers­
pectiva do sujeito, tudo aquilo que é sentido como dor é dor.
Não importa se são as fibras C ou outra coisa completamente
diferente. Se alguém tiver sido sujeito a um minitransplante,
no qual as fibras C orgânicas tenham sido substituídas por

78
MENTE

algo feito de silício, por exemplo, de tal modo que o silício


produza os mesmos resultados, é de dor à mesma que se
trata. O nosso conhecimento da nossa própria dor não é re­
fém da questão de se saber se o que temos dentro de nós são
fibras C ou qualquer outro tipo de engenharia biológica. Há
uma autoridade de primeira pessoa. E, embora se possa vir
a saber se os candidatos marginais a sentir dor, como o cama­
rão, por exemplo, têm ou não fibras C, talvez nos sentísse­
mos igualmente embaraçados ao afirmar que eles têm ou
não têm dores simplesmente por causa disso. Assim, a iden­
tidade não parece ser tão clara como em outros casos cientí­
ficos (isto pode ser posto em causa).
Já ficaríamos contentes se pudéssemos chegar a perce­
ber a relação existente entre os acontecimentos mentais e
os acontecimentos que ocorrem no cérebro ou no corpo tão
claramente quanto vemos a relação entre a temperatura e a
energia cinética média nos gases. A circunstância de o resul­
tado ser obtido por via de «pensamento puro» ou por expe­
rimentação não seria talvez muito importante para nós. Por
conseguinte, podemos ver a importância da objecção que
Leibniz faz a Locke sem partilharmos inteiramente do
seu racionalismo. Não obstante, quando tentamos pensar
profundamente sobre a relação entre o cérebro e o corpo,
por um lado, e a mente, por outro, parece habitualmente ser
o nosso pensamento, mais do que a mera ignorância cien­
tífica, que nos deixa ficar mal. Ultimamente, muitos cien­
tistas têm dirigido a sua atenção para a consciência e têm-se
identificado vários estados cerebrais que o funcionamento
consciente normal implica. Por exemplo, tem-se pensado que
as ondas electromagnéticas cerebrais de uma certa frequência
baixa são vitais. Mas não é claro que este tipo de verdade
seja adequado para resolver o problema - permitindo-nos
alinhar com Leibniz contra Locke. Do ponto de vista de
Locke, tudo o que o cientista pode ter descoberto é que,
quando o cérebro está num certo estado específico, temos
sintomas de consciência. Mas pode ser que isso apenas nos

79
PENSE

diga aquilo ao qual a consciência está, por acaso, anexada.


Não toma a combinação inteligível. E pressupõe igualmente
que podemos afastar as possibilidades dos mortos-vivos e
dos mutantes, pois, de outro modo, o cientista nunca poderia
estabelecer a relação, excepto, na melhor das hipóteses, no
seu próprio caso. Mas, de acordo com os novos misteriosis­
tas, nem a ciência nem a filosofia conseguirão fazer melhor.
Nunca poderemos alinhar completamente com Leibniz con­
tra Locke.

Espectros invertidos: linguagens privadas


A questão da cor parece com frequência prestar-se parti­
cularmente bem a abrir a porta à possibilidade, no mínimo,
de mutantes - pessoas fisicamente idênticas que, não obs­
tante, percepcionam as cores de modo completamente dife­
rente. Talvez até possa haver dois mutantes cujos espectros
estejam completamente invertidos entre si, de tal modo que
a experiência que um tem da luz da zona terminal vermelha
do espectro seja exactamente a experiência que o outro tem
da luz da zona terminal azul. E de nada adiantaria dizer-lhes
que assim era.
O dualismo cartesiano abre a possibilidade de mortos­
-vivos e mutantes. Mas talvez abra também uma possibili­
dade ainda mais assustadora. Se pensarmos à maneira do
dualista, poderemos ter a certeza de que pelo menos sabe­
mos como é a nossa própria experiência. As mentes alheias
poderão ser algo conjecturais, mas conhecemos bem as nos­
sas próprias mentes. Mas será mesmo isto verdade? Consi­
dere agora não as mentes alheias, mas a sua própria experiên­
cia do passado. Tem o leitor a certeza de que vê hoje o mundo
com as mesmas cores com que o via ontem? Tem realmente
a certeza de que o mundo tinha cor - por outras palavras,
tem a certeza de que teve de facto a experiência consciente
que se lembra de ter tido?

80
MENTE

Fazendo estas perguntas, o leitor está a aplicar ao seu


próprio passado as possibilidades de mortos-vivos e mutan­
tes. As possibilidades, agora, parecem à primeira vista, natu­
ralmente, ainda mais estranhas e absurdas do que quando
aplicadas a mentes alheias. E a nossa tendência é responder
que sabemos com certeza perfeitamente bem que as cores
tinham ontem exactamente o mesmo aspecto que têm hoje.
Teríamos seguramente reparado se hoje, ao acordar, o céu
nos parecesse como ontem nos parecia a relva e vice-versa.
É claro que concordo que teríamos reparado na mudança.
Mas será isto garantidamente seguro, tendo em conta o
dualismo cartesiano? Isso depende do que pensamos acerca
da memória e dos acontecimentos mentais. Por que razão
haveríamos de ter a certeza de que os acontecimentos men­
tais - considerados distintos, recorde-se, de tudo o que seja
físico - deixam na memória vestígios dignos de confiança?
Posso verificar que a minha memória do mundo físico é su­
ficientemente digna de confiança. Lembro-me de ter posto o
carro na garagem e quando lá volto (pasme-se!) lá está ele.
Lembro-me do caminho para a cozinha e (pasme-se!) chego
lá sem qualquer esforço ou erro. Mas o que poderá confirmar
que a minha memória do mundo mental é exacta? Por que
razão não teria sido, como diria Locke, o «bel-prazer de
Deus» a anexar-me hoje certas modificações, juntamente com
a memória ilusória de que modificações similares me teriam
sido anexadas ontem? Disse Wittgenstein:

Livra-te sempre da ideia do objecto privado da seguinte maneira:


parte do princípio de que ele muda constantemente, mas também de
que não podes dar-te conta da mudança, porque a tua memória está
constantemente a íludir-te23.

Isto é o cerne do argumento «contra a linguagem pri­


vada» das Investigações Filosóficas (publicadas postumamente

23 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, parte rr, XI, p. 207.

81
PENSE

em 1953), um dos argumentos mais famosos da filosofia do


século xx. Wittgenstein tentou mostrar que não poderia ha­
ver pensamento significativo acerca da vida mental do pas­
sado (nem do futuro) de uma pessoa se essa vida mental
estivesse divorciada do mundo físico do modo como o
dualismo cartesiano o propõe. Ela toma-se, por assim dizer,
demasiado movediça ou fantasmal para poder ser um
objecto das nossas próprias memórias ou intenções.
As possibilidades de mortos-vivos e de mutantes, quando
aplicadas aos nossos próprios passados, são certamente in­
quietantes. Mas elas só nos devem realmente inquietar rela­
tivamente ao quadro traçado pelo dualismo. Poderemos,
mais uma vez, rejeitar Locke em favor de uma certa versão
de Leibniz? Leibniz, recorde-se, pensa haver uma relação
«racional» entre o físico e o mental, de tal modo que o acon­
tecimento mental de ver uma cor é uma espécie de expressão
racional do que se está a passar fisicamente, e não algo que
lhe esteja acidentalmente anexado. Como poderia isto fun­
cionar no caso das cores? A ideia leibniziana é que, se eu e
o meu gémeo (que poderá agora ser eu próprio tal como era
ontem) estivermos a funcionar fisicamente do mesmo modo,
não é, então, possível que as nossas vidas mentais sejam
diferentes. Como poderemos explicitar melhor esta suges­
tão? Apresenta-se a seguir um esboço de resposta.
Compreendemos razoavelmente muitas das mudanças
físicas em que assenta a percepção da cor24• A percepção da
cor é o resultado da estimulação dos cones que cobrem a
parte central da retina. A melhor das teorias actuais propõe
que há três tipos diferentes de cones, os L, os M e os C
(longos, médios e curtos). Os cones L «disparam» ou enviam
mensagens para o nervo óptico mais prontamente quando
são atingidos por luz de comprimento de onda mais longo;
os cones M são mais excitados quando atingidos por luz de

24 A melhor fonte no que respeita à ciência recente da cor é C. L. Hardin,


Calor for Philosophers.

82
MENTE

um comprimento de onda médio; os cones C são mais


excitáveis pela luz de comprimento de onda mais curto. A cor
percepcionada por nós depende, assim, antes de mais, de
uma comparação entre os níveis de excitação destes três ti­
pos de cones. Por conseguinte, se, por exemplo, C for mais
excitado que L, isto é codificado como azul, a cor da extre­
midade de menor comprimento de onda do espectro. Se L for
muito mais excitado que C, isso é codificado como amarelo.
Se L for mais excitado que M, obtemos vermelho, e obtemos
verde se M for mais excitado que L. É como se os canais
fossem adversários e o resultado dependesse de qual dos
adversários vence o outro.
Prestemos agora atenção ao facto de as cores terem muitas
propriedades interessantes. Eis algumas: não podemos ver
uma superfície que seja azul-amarelada, nem uma que seja
verde-avermelhada. Por outro lado, podemos ver superfícies
verdes-azuladas, ou vermelhas-amareladas (cor de laranja).
Não se pode ver um castanho-vivo, nem um cinzento-vivo (é
difícil imaginar uma chama cinzenta ou uma chama casta­
nha). O amarelo é uma cor mais clara que o roxo. Pode haver
uma gema transparente vermelha, azul ou verde, mas não
uma gema transparente branca - o mais aproximado seria
um branco-leitoso, como o de uma opala. Pode haver luz
branca, mas não luz preta.
Tudo isto pode parecer uma série de factos em bruto sobre
o domínio cartesiano da mente, onde se espera que residam
as cores. Mas podemos começar a encará-las como expres­
sões de diversos factos físicos. Não podemos ver uma super­
fície azul-amarelada porque o amarelo e o azul são produzi­
dos por opostos matemáticos: obtemos amarelo quando
L > C e azul quando C > L. O mesmo se passa com o verme­
lho e o verde. Não podemos ver um castanho-vivo, porque
o castanho é amarelo-escurecido. Vemos uma superfície
como castanha quando ela seria codificada como amarela,
mas há apenas um baixo nível geral de energia, em compa­
ração com outras fontes de luz no mesmo contexto. O mesmo

83
PENSE

se passa com o ci nzento, que é branco-enegreci do. O ama­


relo é mai s claro que o rox o, porque a luz amarela (L > C)
também está mai s próxi ma da frequênci a em presença
da qual os nossos si stemas vi suai s reagem com o máxi mo
da sua capaci dade. Comparati vamente, tanto o vermelho,
numa das ex tremi dades do espectro vi sual, como o azul, na
outra, nos levam para o preto, ao qual nós não podemos de
todo em todo reagir. Não podemos ver um branco-trans­
parente, porque uma coi sa só é vi sta como branca quando
di funde luz.
Tudo i sto, naturalmente, não passa de esgaravatar na
superfíci e da ci ênci a da cor. Mas permi te-nos, pelo menos,
vi slumbrar o modo como as coi sas « fazem senti do». Com
uma quanti dade sufici ente de factos deste ti po perante nós,
talvez possamos fi car menos encantados com a possi bi li dade
do espectro i nverti do. Vejamos pri mei ro o caso mai s si mples
da vi são monocromáti ca ( a preto e branco). Suponha-se que
se sugere que poderi a haver alguém que fosse uma répli ca
físi ca mi nha, mas que vi sse escuro o que eu vej o claro, e vi ce­
-versa. Será i sso possível? O nosso j uízo i mediato poderá ser
afi rmati vo. Talvez i magi nemos o mundo que ele vê como
nós o vemos num negati vo fotográfi co. Mas i sto, de facto,
não funci ona. Se eu fi zer um pedaço de vi dr o ci nzento mai s
claro, vej o melhor através dele; se eu o fizer mai s escuro, vejo
menos bem através dele. I sto tem de ser verdadei ro para o
meu gémeo, uma vez que ele é um dupli cado físi co. Todavi a,
se fi zéssemos clarear o vi dro, o que lhe « pareceri a» a ele seri a
o mesmo que nos pareceri a a nós se apli cássemos uma ca­
mada de fuli gem, uma vez que, subj ecti vamente, o vi dro se
tom ari a mai s escuro para ele. E, se apli cássemos fuli gem, o
que lhe « pareceri a» a ele seri a o mesmo que nos pareceri a a
nós se o vi dro se tomasse mai s claro. Mas, então, temos de
i magi nar que, para ele, à medi da que uma placa de vi dro se
vai tom ando mai s escura, ele vai vendo cada vez melhor
através dela e que, à medi da que a placa se vai tomando
mai s clara, ele vai vendo cada vez pi or através dela. E i sso

84
MENTE

não parece, pura e simplesmente, fazer qualquer sentido.


Não se apresenta como uma possibilidade coerente.
Considere-se agora alguém que é fisicamente idêntico a
mim, mas que, por hipótese, vê amarelo onde eu vejo azul e
vice-versa. Agora já não é assim tão fácil imaginá-lo. Ele terá
de reagir do mesmo modo que eu, pelo que não poderá
andar por aí a dizer que o amarelo é uma cor escura, por
exemplo. A diferença na reacção e no comportamento será
uma diferença física. Por isso, temos de perguntar como vê ele
o azul como uma cor viva e o amarelo como escura. Se ele vê
realmente o amarelo como uma cor escura, tal como eu vejo o
azul, como verá ele o castanho? Como verá ele o cor de laranja?
O castanho é amarelo escurecido, mas o amarelo, para ele, já é
escuro. É difícil, por conseguinte, imaginar como poderiam as
diferenças físicas dele harmonizar-se com as minhas, devido a
esta completa disparidade na experiência mental.
Em resumo, a possibilidade toma-se bastante menos clara,
e podemos sentir-nos tentados a negar que seja realmente uma
possibilidade. Estaríamos a avançar na nossa engenharia
com uma concepção da mente que suprime o hiato entre o
físico e o mental, isto é, entre o sistema visual existente no
cérebro que funciona e reage em pleno e os aparentemente
acrescentados qualia «subjectivos» da experiência da cor. Uma
tal peça de engenharia seria uma defesa da posição de Leib­
niz. A experiência subjectiva da cor toma-se assim não ape­
nas um acessório esquisito, mas a expressão inevitável e racio­
nalmente explicável dos tipos de funcionamento físico das
criaturas que somos. Se para todos os elementos da nossa cons­
ciência se puder fazer o mesmo, o problema fica resolvido.

Pensamento
Viramo-nos agora para um aspecto ligeiramente diferente
da consciência. Este capítulo concentrou-se em sensações e
qualia. Mas a nossa consciência é também, em grande medida,

85
PENSE

feita de pensamentos. Os pensamentos são coisas estranhas.


Têm poder de «representação»: um pensamento representa
tipicamente o mundo como algo que é de um ou de outro
modo. Uma sensação, ao invés, parece apenas estar aí. Não
aponta, a julgar pelas aparências, para coisa alguma que
esteja para lá de si própria, como um facto ou um facto hi­
potético. (Alguns pensadores recusam isto. Pensam, por
exemplo, que uma sensação de dor é uma percepção de lesão
física e que esta percepção representa o corpo assim
lesionado, tal como o pensamento de amanhã ser sexta-feira
representa como sexta-feira o dia de amanhã. Deixo ao leitor
a tarefa de avaliar a plausibilidade disto.) A natureza repre­
sentativa dos pensamentos, por vezes referida como a sua
intencionalidade ou direccionalidade, é em si mesma uma
questão muito intrincada. Se concebermos os pensamentos
como tipos de «coisas» presentes na consciência, a questão
passa a ser como poderá uma «coisa» em si e por si apontar
para outra coisa (para um facto ou um estado de coisas).
É certo que uma placa de sinalização, por exemplo, pode
apontar para uma aldeia. Mas isso parece depender do modo
como a tomamos. Uma placa de sinalização não representa
em si e por si o caminho para a aldeia. Temos de saber como
tomá-la. Poderíamos imaginar uma cultura na qual o mesmo
objecto físico, aquilo que para nós é uma placa de sinaliza­
ção, tivesse uma função bem diferente: um quadro para
anúncios, um tóteme ou uma obra de arte abstracta. Vemos
isto nos animais: se apontarmos para uma coisa, os cães pres­
tam invariavelmente atenção ao dedo que aponta, para
grande irritação dos donos. Mas parece incoerente imaginar
uma criatura que, tendo os mesmos pensamentos que nós, não
tenha aprendido a tomá-los do mesmo modo que nós. É o
«tomar» que faz o pensamento.
Provavelmente, a reacção correcta a isto será negar com­
pletamente que os pensamentos sejam coisas. Ao erro de
supor que a cada substantivo corresponde uma «coisa» cha­
ma-se por vezes «o erro da reificação». Os pensadores acu-

86
MENfE

sam-se frequentemente entre si de reificações erróneas.


Quem pensa são as pessoas, e pensar não é ter um balão de
um tipo qualquer no cérebro ou na mente. Isto é verdade
mesmo que o balão seja concebido como uma pequena frase
escrita no cérebro. Pensar é tomar o mundo como algo que
é de uma maneira ou de outra, e portanto tomá-lo assim
trata-se de disposições nossas, e não de saber que coisas
estão penduradas dentro de nós.
Talvez não devesse ser mais enigmático o facto de poder­
mos pensar sobre estados de coisas ausentes - estados dis­
tantes e estados do passado e do futuro - do que o facto de
podermos prestar de todo em todo atenção ao mundo. Toda­
via, é uma característica que nos separa dos outros animais.
Os animais podem, presume-se, percepcionar o mundo, mas
temos dificuldade em supor que podem representar para si
mesmos estados de coisas distantes, do passado ou do fu­
turo. Todavia, nós podemos sem dúvida fazê-lo.
Correntemente, a maneira mais popular de lidar com isto
é concentrarmo-nos no modo pelo qual podemos atribuir
pensamentos à pessoa que funciona normalmente. Pode ha­
ver alguma coisa no comportamento de uma pessoa que nos
permite concluir que ela está a pensar no dia de ontem ou
interessada na previsão do tempo para o fim-de-semana. Os
pensamentos são expressos tanto em comportamento
linguístico como em comportamento não linguístico, e talvez
possamos esperar por uma redução do seguinte tipo: «X
pensa que p» se, e só se, os planos, desejos ou comporta­
mento de X estão de algum modo de acordo com o facto de o
mundo ser tal que p. O truque seria preencher o «de algum
modo de acordo». Deve dizer-se que jamais alguém conse­
guiu ser bem sucedido nessa tarefa. Mas há sugestões sobre
como o fazer. Dizemos que um sistema inteligente, como um
míssil guiado, pensa que há um avião a uma milha de dis­
tância e a uma altitude de 60 metros se os seus sistemas o
direccionarem num sentido tal que seja apropriado que esteja
um avião nesse sítio -dado o seu objectivo (ou função), que

87
PENSE

consiste em atingir aviões. Analogamente, poderíamos dizer


que uma pessoa pensa que o tempo vai estar bom no fim-de­
-semana se o seu comportamento for apropriado, dados os
seus objectivos (ou funções) relativamente ao bom tempo
nesse fim-de-semana. A dificuldade seria completar este pen­
samento sem nos basearmos noutros modos ou noutros esta­
dos mentais do sujeito, e isto é o que ninguém sabe fazer.
Deixo o pensamento de lado para já. Em vez disso, nos
próximos dois capítulos, irei ter em consideração dois ele­
mentos na nossa visão do mundo que alimentam também o
dualismo cartesiano. O primeiro é um agregado de pensa­
mentos sobre a nossa própria liberdade. O segundo é um
agregado de pensamentos sobre a nossa própria identidade.

88
3
Livre arbítrio

Uma vez mais, se o movimento sempre está conectado,


Gerando-se novos movimentos de velhos numa ordem fixa,
Se os átomos nunca guinam e originam
Movimentos que possam quebrar as grilhetas do fado,
Enganando a cadeia infinita de causa e efeito,
Qual é a origem deste livre arbítrio
Que as criaturas vivas em toda a Terra possuem?
LUCRÉCIO, De Rerum Natura"

Ou, num tom ligeiramente menos elevado:


Havia um rapaz que dizia «Bolas,
Estou obrigado a ser
Uma criatura que se move
Num predestinado ramerrão -
Nem sequer um autocarro, mas um trem.

O capítulo anterior fez-nos reflectir sobre algumas das


coisas que o cérebro é capaz de produzir: elementos cons-

25 Lucrécio, Da Natureza das Coisas, liv. II, 11. 251-257, p. 43.

89
PENSE

cientes co mo os pens amentos , as s ens ações e os qualia. Mas ,


quando pens amos so bre nós próprios , temos co ns ciência de
v árias o utras co is as . Não nos limitamos a regis tar o que o
mundo é para nós . Agimos nele. Co ncentramo- nos em alter­
nativ as . Deliberamos e fazemos co is as . Co mo dev emos pen­
s ar so bre is to?

As grilhetas do destino
Habitualmente, co ns ideramo- nos agentes do tados de li­
berdade. Viv emos a noss a v ida num es paço aberto de poss i­
bilidades . Deliberamos so bre quais dess as poss ibilidades
pross eguir e, tendo deliberado , o ptamos. Es te ano fui pass ar
férias na mo ntanha, mas po deria ter o ptado pela praia. Tra­
to u-s e de uma es co lha. Não po deria ter ido à L ua po rque não
é o género de v iagem que es tej a ao meu alcance.
Aparentemente, temos co ns ciência da noss a liberdade.
A co ns ciência da liberdade parece es tar intimamente asso ­
ciada a qualquer tipo de co ns ciência q ue s e ten ha. No capí­
tulo anterio r falámos em mo rtos-v ivos e, prov av elmente,
imaginámo -los idênticos às criaturas de Fra nkens tein, uma
es pécie de robots co mputado rizados , s ubmetidos a pro gra­
mas particulares e agindo de um mo do inflex ív el e não i nte­
ligente. Mas nós não so mos ass im, po is não?
Po r v ezes , temos o rgulho da noss a liberdade: não so mos
apenas criações do ins ti nto e do des ejo. Co ns eguimos do mi­
nar- nos e lutar pelo co ntro lo dos nossos v ícios e o bs essões .
Q uando so mos bem s ucedidos , to m amo- nos dignos de apro ­
v ação . Se falharmos , merecemos s er cas tigados e, po r v ezes ,
so mo- lo . A liberdade traz co ns igo a res po ns abilidade e quem
dela abus a merece reprovação e cas tigo . Mas ninguém merece
cas tigo po r fa lhar em fazer algo que não possa fazer. Seria
tremendamente inj us to eu s er punido po r não ter passado
férias na L ua o u cas tigar-s e um recluso po r ter faltado a um
enco ntro fo ra da pris ão . Em ambos os casos , os o bs táculos

90
LIVRE ARBÍTRIO

estão além do controlo do agente. Isto significa que não po­


demos ser responsabilizados.
Assim, as nossas reacções morais, tal como o nosso pen­
samento corrente, parecem pressupor que, por vezes, ainda
que tenhamos agido mal, poderíamos ter feito outra coisa.
Mas poderá esta consciência da liberdade ser uma ilusão?
Será que alguma vez poderíamos ter agido de maneira real­
mente diferente?
Há um argumento que pode ser apresentado a favor de
Lucrécio e do jovem do início do capítulo:

O passado controla o futuro.


Não podemos controlar o passado.
É também impossível controlar o modo como o passado con­
trola o presente e o futuro.
Logo, não podemos controlar o presente nem o futuro.

De facto, não se pode controlar coisa alguma, nem o pas­


sado, nem o presente, nem o futuro.
A primeira premissa do argumento é uma versão com­
pacta de uma doutrina conhecida por «determinismo», dou­
trina que consiste na defesa de que qualquer acontecimento
é o resultado de causas que o antecedem. O estado do mun­
do em cada momento é o resultado do seu estado imediata­
mente anterior, que evolui de acordo com as leis imutáveis
da natureza. A segunda premissa parece evidente. A terceira
lembra-nos que não temos controlo sobre as leis da natu­
reza - sobre o modo como os acontecimentos se originam
uns aos outros. E a conclusão parece seguir-se claramente.
Às pessoas que aceitam este argumento chama-se incom­
patibilistas ou deterministas radicais, dado considerarem que
a liberdade e o determinismo são incompatíveis.
Mas será necessário negar o determinismo se quisermos
defender que há liberdade humana? Podemos talvez ser
optimistas a este respeito porque a física quântica, a melhor
ciência da natureza à nossa disposição, é canonicamente in-

91
PENSE

terpretada como algo que postula a existência de aconteci­


mentos sem causa. No mundo quântico há acontecimentos
microfísicos que se «limitam a acontecer». Isto significa que
dois sistemas podem encontrar� exactamente no mesmo
estado - não há «variáveis ocultas» - e, ainda que num
deles se verifique a ocorrência de um acontecimento
quântico, no outro não é isso que sucede. Estes acontecimen­
tos não têm uma causa: verificam-se ou não se verificam, e
nada mais. A física quântica atribui-lhes um grau de proba­
bilidade, mas é incapaz de determinar, com base no estado
do sistema num dado momento, se tal acontecimento se veri­
ficará ou não no futuro imediato.
No entanto, não é bem isto que pretendíamos: introduzi­
mos um elemento de arbitrariedade na natureza, não um ele­
mento de controlo ou responsabilidade. Para o verificarmos,
pense-se no estado global neurofisiológico do nosso cérebro
e do nosso corpo. Os acontecimentos seguem-se das suas
causas. Se, por vezes, pequenas manifestações súbitas têm
lugar a um nível microfísico, dificilmente poderíamos ser
responsabilizados por quaisquer acontecimentos que tais
manifestações pudessem originar. Não controlamos o mo­
vimento dos electrões. Se o seu comportamento for ge­
nuinamente indeterminista, nada pode controlá-lo. Que um
electrão irrompa na direcção errada ou as nossas boas inten­
ções sejam frustradas por circunstâncias acidentais que não
controlamos é apenas azar. Falar de ocorrências acidentais a
propósito do cérebro não permite restaurar a nossa responsa­
bilidade.
Se o indeterminismo tem alguma consequência, é tomar
ainda mais ténue a responsabilidade e a censura. Chama-se
a isto por vezes «o dilema do determinismo». Se o deter­
minismo for verdadeiro, ficamos privados de liberdade e de
responsabilidade. Se o determinismo não for verdadeiro e
certos acontecimentos carecem de causa, ficamos uma vez
mais privados de liberdade e de responsabilidade. O acaso é
tão implacável como a necessidade.

92
LIVRE ARBÍTRIO

Figueiras e quedas de água


No Evangelho segundo Marcos, em 11, 12-14, 20-1, depa­
ra-se-nos uma história peculiar:
Na manhã seguinte, ao deixarem Betânia, Jesus sentiu fome. Vendo
ao longe uma figueira com folhas, foi ver se nela encontraria alguma
coisa; mas, ao chegar junto dela, não encontrou senão folhas, pois não
era tempo de figos. Disse então: «Nunca mais ninguém coma fruto de
ti. » E os discípulos ouviram isto. [... ]
Ao passarem na manhã seguinte, viram a figueira seca até às
raízes. Pedro, recordando-se, disse a Jesus: «Olha, Mestre, a figueira
que amaldiçoaste secou! »

Ignoremos os perturbadores problemas sociais, económi­


cos e ecológicos que a história acarreta e concentremo-nos
apenas na aparente injustiça a que a figueira foi sujeita. É ver­
dade que Jesus não amaldiçoou a figueira por não dar maçãs
ou ameixas, digamos. Era de figos que ele andava à procura.
E é verdade que, por vezes, as figueiras dão figos. Ainda
assim, a figueira parece ter sofrido uma injustiça. Tudo se
passa como se Jesus tivesse argumentado: «Por vezes dás
figos, logo, também poderias dá-los agora. » Perante este
argumento, seria perfeitamente adequado que a figueira cha­
masse a atenção para o facto de apenas dar figos no Verão e
ser agora Inverno ou, de qualquer modo, «não era tempo
de figos». É necessário um certo conjunto de circunstâncias
para que uma fi gueira dê figos: até a melhor figueira seria
incapaz de o fazer fora da estação, como seria incapaz de dar
ameixas.
A figueira poderia não ter consciência disto. Talvez, caso
fosse uma figueira conscienciosa, se sentisse mal por não
conhecer as causas precisas necessárias para dar figos. Tal­
vez apenas recordasse que por vezes é isso que acontece e
em seguida se sentisse mal pelo facto de não dar figos na
ocasião desejada. Mas tudo isto é apenas ignorância. Se a
figueira se sente incomodada pelo facto de não dar figos no

93
PENSE

Inverno, bem, isso é apenas irracional: a estação não é a apro­


priada, e ponto final.
Talvez queiramos pensar como a figueira que acabamos
de imaginar: apenas sabemos que somos livres, e é tudo. Eis­
-me aqui, capaz de erguer ou não o braço se me agradar.
Suponhamos que o fazia - assim -e, portanto, sentia estar
eu próprio a controlar os acontecimentos. É a minha cons­
ciência que me revela a minha liberdade.
Mas eis o filósofo alemão Schopenhauer (1788-1860):
Imaginemos um homem que, ao encontrar-se na rua, dissesse
a si próprio: «São seis horas da tarde, o dia de trabalho terminou.
Posso dar um passeio ou ir ao clube; posso subir à torre para
observar o pôr do Sol; posso ir ao teatro ou visitar este ou aquele
amigo; na realidade, posso abandonar tudo, percorrer o mundo e
nunca mais voltar. Tudo isto apenas a mim diz respeito; neste
aspecto, a minha liberdade é total. Contudo, não farei qualquer
destas coisas. Tão livre como antes, voltarei para casa e para a
minha mulher. » O mesmo aconteceria se a água dissesse a si pró­
pria: «Posso provocar ondas altas (sim!, no mar, durante uma
tempestade), posso descer pelos montes (sim!, no leito de um rio),
posso cair em golfadas de espuma (sim!, numa catarata), posso
erguer-me livremente no ar (sim!, numa fonte), posso, finalmente,
ferver e desaparecer (sim!, a certa temperatura). Contudo, não
farei qualquer destas coisas; permanecerei voluntariamente água
calma e límpida no meditativo lago. » 26

Nesta parábola, a água não tem consciência de tudo quanto


é necessário para ferver, fazer ondas e assim por diante.
Apenas se recorda de, por vezes, fazer estas coisas. Pensa,
portanto, que pode fazê-las. E atribui a sua calma actual a
uma decisão própria e voluntária. Mas, neste aspecto, está
enganada: se «tentasse» ferver a uma temperatura inadequada
ou fazer ondas quando não há vento, em breve descobriria
que nenhuma destas coisas depende da sua decisão. Com o

26
Schopenhauer, Do Livre Arbítrio, p. 43.

94
LIVRE ARBÍTRIO

mesmo objectivo em mente, Wittgenstein imaginou a queda


de uma folha no Outono que diz a si própria: «Agora vou
seguir nesta direcção; agora vou seguir naquela direcção. »
Schopenhauer nega que a compreensão que possuímos
de nós próprios, ou autoconsciência, possa revelar a nossa
verdadeira liberdade. Podemos interpretá-lo como se esti­
vesse a criticar o seguinte argumento:
Não tenho consciência do pano de fundo causal que me é
necessário para fazer Y.
Sei que por vezes faço Y.
Logo, tenho consciência de que não necessito de qualquer
substrato causal para fazer Y.

O aspecto para que Schopenhauer chama a atenção é a in­


validade deste argumento. Não ter consciência de algo não pode
transformar-se em ter consciência da sua ausência. Quando falo,
não tenho consciência da extraordinária estrutura causal que
me toma possível fazê-lo; os músculos, a coordenação entre
os músculos e o controlo da respiração, o movimento da
língua e do palato, a configuração do meu maxilar. Qualquer
destas coisas é necessária, como depressa se descobre se uma
delas deixar de funcionar.
Neste ponto, talvez estejamos a pensar algo do seguinte
género:
Se limitarmos os nossos pensamentos ao mundo físico, tal­
vez não tenhamos outra opção excepto entre determinismo e
acontecimentos aleatórios; em ambos os casos perdemos de
vista a liberdade. Mas suponhamos que há outro nível. Por
detrás ou além da evolução do cérebro e do corpo há um Eu
Real que recebe informação e ocasionalmente dirige as opera­
ções. Haverá momentos em que, entregues a si mesmos, o cére­
bro e o corpo se orientarão numa certa direcção. Mas, dirigidos
pelo Eu Real, seguirão noutra direcção. Posso tomar o controlo
e interferir com o modo como as coisas seriam sem a minha
intervenção. É aqui que reside a minha liberdade.

95
PENSE

Isto permite conceber a relação entre mim e o meu cérebro


e corpo em termos de urna interacção bidireccional. As men­
sagens são enviadas pelo meu cérebro e pelo meu corpo ao
Eu Real e, em seguida, o Eu Real fornece-lhes instruções.
O Eu Real ocupa a sala de controlo e a pessoa, na sua
globalidade, comporta-se livremente sempre que o seu co­
mando se exerce. Quando não é isto que acontece, o cérebro
e o corpo limitam-se a avançar («cegamente») em função das
suas determinações físicas.
Encontramos aqui de novo o dualismo mente-corpo. O Eu
Real determina os acontecimentos. As mensagens chegam atra­
vés, talvez, da glândula pineal. Um sopro anímico faz agir os
neurónios, as sinapses entram em acção e iniciam-se as cadeias
causais. Há um fantasma instalado na máquina que a faz agir
livremente sempre que assume o comando. Na realidade, já se
nos depararam alguns dos mistérios associados à interacção
mente-corpo que esta imagem acarreta. Mas, neste caso, pode­
mos colocar urna objecção diferente. O dualismo procura com­
preender a liberdade humana pela introdução de um ingre­
diente suplementar, a alma que detém o comando. Mas, se é
assim, corno compreender a liberdade que é atribuída à alma?
Vejamos de novo o dilema do determinismo. Corno pode­
ria um fantasma ou urna alma instalada no interior da má­
quina escapar ao mesmo problema? Haverá leis que regem o
material de que é feito o fantasma, de tal modo que, se o
fantasma se encontrar num ceno estado num momento par­
ticular, essas leis determinam em que estado irá encontrar-se
a seguir? Mas, se essas leis não existem, será que a matéria
de que é feito o fantasma está sujeita ao género de compor­
tamento aleatório atrás observado? Em que medida isto me
ajuda a ser livre e responsável? Recorde-se que não há qual­
quer correlação atribuível a Deus entre a natureza «mental»
de um acontecimento e esse acontecimento estar sob o con­
trolo da minha liberdade: não posso eliminar urna dor, dese­
jos ou obsessões e pensamentos indesejáveis e confusos ape­
nas porque quero fazê-lo.

96
LIVRE ARBITRIO

A abordagem dualis ta do livre arbítrio comete um erro


filos ófico fundamental. Encontramos um p roblema e tenta­
mos s olucioná-lo trazendo à liça um outro género de « cois a» .
Mas es quecemo-nos de p erguntar de que modo ess a « cois a»
es tá imune ao p roblema que afecta as cois as vulgares. No
cap ítulo 5 , a p rop ós ito da filos ofia da religião, dep arar-s e­
-nos -á uma vez mais es te tip o de erro. De facto, s e reflectir­
mos no assun to, des cobrimos que p ens amos na liberdade
de qualquer alma não fís ica - o fantas ma ins talado na má­
quina - segundo o modelo da liberdade humana. A ideia não s ó
não nos aj uda a comp reender a liberdade humana, como
dep ende dela. Na realidade, o fantas ma é ap enas um tip o
esp ecial de p equeno s er humano etéreo, um « homúnculo»
que recebe informação, deli bera, des ej a as cois as mais diver­
s as e é regido, influenciado ou guiado p or p orções de infor­
mação; em virt ude de tudo is to, comp orta-s e de uma certa
maneira. Se não cons eguimos comp reender a liberdade hu­
mana, também não p odemos comp reender como p ode um
homúnculo s er livre.
Sabemos , além diss o, que o p roblema da interacção men­
te-corp o não s e deix a cap tar no quadro do dualis mo car­
tes ia no. Os s is temas fís icos s ão fechados. É necess ária uma
caus a fís ica p ara p roduzir um efeito fís ico.
Com o obj ectivo de tentar conciliar liberdade e deter­
minis mo num univers o comp os to p or p equenos átomos den­
s os e indivis íveis em movimento, o filós ofo grego Ep icuro
(341 -270 a. C.) tinha j á s ugerido que o esp írito de uma p ess oa
p odia entrar em cena e fazer os átomos mudarem de
direcção. De facto, L ucrécio, que, no início do capí tulo, inter­
p reta Ep icuro, fala do momento em que os átomos mudam
de direcção e no modo como « aquilo que origina o momento
em que os átomos mudam de direcção não es tá determinado
no esp aço nem no temp o». In felizmente, as leis do movimento
não s ão muito s imp áticas a es ta mudança de direcção. As leis
que actualmente conhecemos dizem-nos que o movimento
linear, uma função conju nta de movimento e direcção, s e

97
PENSE

conserva fisicamente. Isto significa que admitir a mudança


de direcção proposta estilhaçaria tão duramente as leis da
física quanto admitir que o Eu Real, apenas por intermédio
do pensamento, pudesse fazer a Lua mudar de direcção, ou
pura e simplesmente acelerar ou retardar o seu movimento.
É importante notar, no entanto, como um aparte, que os ato­
mistas gregos e romanos, incluindo Epicuro e Lucrécio, esta­
vam em melhor posição que Descartes a respeito deste pro­
blema. Pensavam, ao invés de Descartes, que o próprio
espírito devia ser entendido em termos mecânicos. E susten­
tavam que a mente ou o espírito era composto por pequenas
partes muito finas dotadas de extraordinária mobilidade, de
modo que não havia, em princípio, qualquer razão para não
se admitir que pudessem influenciar a direcção e a velocidade
das partes maiores que compõem o corpo. Lucrécio explica
de que modo esta matéria subtil é constituída por «sementes
extremamente diminutas entretecidas ao longo das veias, da
carne e dos tendões». A alma é constituída por esta matéria
subtil porque os «sonhos de fumo e névoa podem movê-la».
Tais sonhos são constituídos, presumivelmente, por partícu­
las ainda mais pequenas que o fumo e a névoa. Infelizmente,
Lucrécio é incapaz de nos dizer de que modo essas pequeni­
nas partículas poderiam quebrar as grilhetas do destino e
derrotar a cadeia infinita das causas e dos efeitos. Os antigos
atomistas gostavam de comparar a acção da alma sobre o
corpo com a acção do vento num navio, mas, é claro, o vento
é parte da infinita cadeia de causas e efeitos. Tal como a
alma, neste modelo, não é algo que se situe fora dessa cadeia.

Autodomínio
Haverá uma maneira mais satisfatória de vencer o argu­
mento a favor do incompatibilismo?
O argumento a favor do determinismo radical não refere
os tipos de influência causal que estão em jogo sempre que

98
LIVRE ARBÍTRIO

um agente realiza uma dada acção. Mas, por vezes, aconte ce


que as sequ ên cias causais são totalmente in depen dentes da­
quilo que pensamos. A sequ ên cia causal que, do facto de me
en contrar totalmente imerso na água, con duz ao meu afoga­
mento é uma delas. O mesmo resultado teria lugar com
Einstein ou com um macaco. Mas, por vezes, as cadeias cau­
sais actuam uni camente através de pro cessos neurológi cos
de n ível superior. Isto não é mais do que dizer que muitas
vezes nos movemos do mo do como o fazemos porque o
nosso cérebro est á a fun cionar adequadamente.
Tentemos, portanto, re correr a um mo delo primitivo. Pen­
se-se no cérebro em termos de software, como algo dotado de
v ários «mó dulos». Um deles (um scanner) re colhe informa­
ção sobre uma dada situação. Outro (uma « árvore de de ci­
são») forne ce as opções de comportamento consoante o que
o scanner emite. Um ter ceiro (um avaliador) hierarquiza as
opções em função daquilo para o qual foi programado.
O avaliador po de fun cionar ligan do in di cadores de emoções
aos diversos per cursos. Finalmente, um quarto (um pro­
dutor) fixa a opção que melhor foi cotada pelos pro cessos
anteriores e emite sinais neurológi cos que movem os mús cu­
los e os membros. O diagrama abaixo permite des crever
esquemati camente o pro cesso:

➔ 1 scanner 1 ➔ árvo�e _de ➔ avaliador ➔ 1 produtor 1 ➔


deczsao

Re cor demos que, por hipótese, tu do isto é apenas uma


des crição em termos de software de partes do cérebro. Supo­
nhamos agora que o obje ctivo final que presi de ao fun ciona­
mento destes mó dulos é a tomada de de cisões. Supo nha que
se trata de uma das suas de cisões e que o fun cionamento de
cada uma destas partes se destina a pro duzi-la do mo do
como normalmente aconte ce. Se lhes chamarmos «mó dulos
de de cisão», e se esses mó dulos estiverem envolvi dos na

99
PENSE

produção de uma resposta, poderemos dizer que a resposta


foi escolhida por si. Não lhe foi imposta no sentido em que
o facto de se afogar é imposto a um banhista encurralado.
Suponha que a sua decisão foi a de praticar uma acção
realmente má. Que, por exemplo, entrou no meu quarto e
atirou pela janela o meu velho e pacífico cão. Eu sinto-me
ultrajado e revelo interesse em manifestar o meu desagrado
pelo sucedido. Admita agora que tenta defender-se invocando
o argumento a favor do incompatibilismo.
Repare, esta acção foi o resultado do modo como o meu sis­
tema scanner/produtor foi programado. Talvez certos aconteci­
mentos na minha infância, sobre os quais não possuo controlo,
o tivessem determinado de tal modo que a minha principal
prioridade é agora a de eliminar todos os cães. A minha árvore
de decisão informou-me de que fazê-lo era uma opção disponí­
vel depois de o· scanner me ter indicado a presença do cão e
também de que havia por perto uma janela. O meu avaliador
seleccionou de imediato essa opção e o meu produtor deu
tranquilamente início à acção de atirar o cão pela janela. Porquê
acusar-me a mim?

É muito provável que eu não me deixasse impressionar.


Como resposta talvez eu dissesse o seguinte:
Não estou interessado em saber de que modo você foi «pro­
gramado». O que me aborrece é o facto de você ser esse «pro­
grama». Não me preocupa saber como se tomou naquilo que é
ou que forças fizeram que deterministicamente esse sistema
fosse programado do modo como foi. Tudo o que agora im­
porta, neste fim de tarde, é que tenho na minha frente um crá­
pula a quem vou dar uma sova. Talvez tenha sido azar ter-se
transformado no que é. Mas agora o azar é duplo porque vai
apanhar uma sova por causa disso.

Tenho pelo menos a consolação de saber que, dadas as


características do seu próprio argumento, não poderei ser

100
LIVRE ARBÍTRIO

penalizado por lhe ter dado uma sova! Foi assim que me
programaram: reajo mal quando alguém faz o que você fez
ao meu velho e pacífico cão.
Dar-lhe uma sova pode ter uma vantagem - de facto,
pode ter várias vantagens. Talvez permita reajustar o seu
avaliador. Da próxima vez, talvez este módulo atribua à
acção de atirar o cão pela janela uma cotação inferior à de
admitir calmamente a sua presença no quarto. Num quadro
mais complexo, podemos imaginar que seria assim que as
coisas aconteceriam mediante um certo número de outros
mecanismos: o módulo talvez incluísse o aviso «risco de
levar uma sova» associado à opção de atirar o cão pela janela.
Ou talvez a minha raiva o abalasse ao ponto de o fazer
reavaliar a sua estratégia global de comportamento. Mesmo
que dar-lhe uma sova não o modifique, estou a indicar qual­
quer coisa a outros eventuais lançadores de cães. Além de
que é para mim um imenso alívio.
Esta situação é diferente de culpar alguém por se ter afo­
gado e não o fazer por ter sido apanhado desprevenido no
mar. No primeiro caso, a cadeia causal inclui a psicologia
animal básica que não pode ser modificada pela educação
nem pelas atitudes de outrem. O louvor ou a censura não
podem «suspendê-la». A cadeia causal não inclui módulos
elásticos ou flexíveis capazes de serem elididos pela raiva ou
pela censura. Mas os lançadores de cães podem ser desen­
corajados, modificados e avisados.
Por vezes, os professores dizem coisas assim: «Um aluno
estúpido não me preocupa, mas detesto alunos preguiçosos. »
Se permitiu que o argumento do determinismo radical o con­
vencesse, talvez considere que se trata de um preconceito:
algumas pessoas nascem estúpidas e não podemos senão
lamentá-las; por que razão não lamentar igualmente as que
nascem preguiçosas? Em ambas as situações se trata apenas
de um triste fruto do acaso. No entanto, a atitude do profes­
sor justifica-se se a preguiça responder aos incentivos de uma
forma que a estupidez não pode reagir. Se o respeito pelo

101
PENSE

professor nos fizer trabalhar com maior empenho, ainda que


não permita tomarmo-nos mais inteligentes, justifica-se a
assimetria. A tarefa do professor consiste em condicionar o
funcionamento dos nossos módulos de avaliação. É um facto
empírico, algo que aprendemos com a experiência, que os
módulos podem ser condicionados em função das interac­
ções que estabelecemos com as outras pessoas, incluindo
aspectos tão desagradáveis como sermos confrontados com
a irritação e o desprezo alheios.
Encontramos aqui o início - mas apenas o início - do
programa compatibilista, isto é, a tentativa de mostrar que,
se compreendermos as coisas correctamente, não há qual­
quer inconsistência entre a aceitação do determinismo e
o facto de responsabilizarmos as pessoas pelas suas acções.
O compatibilismo designa-se por vezes por determinismo
«moderado», por oposição ao determinismo «radical». Mas
há duas boas razões para considerar que esta não é uma
etiqueta adequada. Em primeiro lugar, não se trata de um
género diferente de determinismo. O determinismo é aceite
no mesmo sentido em que todas as pessoas o aceitam. Não
há qualquer poder fantasmal que interfira na sequência cau­
sal que determina a ordem dos acontecimentos na natureza.
Em segundo lugar, no plano político ou moral, o determi­
nismo «moderado» pode, afinal, revelar-se particularmente
«radical», no sentido mais impiedoso. Se nos dirigimos a
alguém com a enternecedora desculpa de que a biologia e o
meio ambiente fizeram de nós o que somos hoje, talvez não
sejamos ouvidos e apenas consigamos, como única resposta,
um descarregar de toda a sua cólera. Talvez a equação cri­
me/ doença não seja fácil de ter em conta para certas pessoas.
Há quem prefira ripostar com violência e, caso pareça apro­
priado, recorrer a métodos punitivos ou quaisquer outros
igualmente adequados para nos fazerem reagir do mesmo
mo do.
É evidente que um compatibilista pode aceitar alguns ti­
pos de desculpa. Se formos de algum modo constrangidos

102
LIVRE ARBÍTRIO

por uma situação ao po nto de, s eja como for qu e os nossos


mó dulos fu ncio nem, nenhum r esultado fi nal satisfatório
possa s er alcançado, não h á como r espo nsabilizarmo- nos
pelos aco ntecimentos. A morte do nadador por afo gamento
é um destes casos: qualqu er qu e foss e o s eu grau de ener gia
moral, nada havia qu epu dess efaz er. I denticamente, s e uma
acção é de tal mo do «alh eia à nossa maneira de s er», em
virtu de, por ex emplo, de estarmos so b os efeitos de medica­
ção qu e nos desori enta ou deprime, tal vez s ejamos per doa­
dos quando r ecuperarmos o estado normal.
N este po nto po díamos pensar o s egui nte: a r eacção fac e
ao cr ápula lançador de cã es é muitíssimo natural. Tal vez,
inclusi vamente, s e justifiqu e dadas as suas consequências. Tal­
vez a c ensura e as r eacçõ es a ela associadas des empenh em
uma fu nção, e nós nec essitamos de fu nçõ es dess e tipo. Mas,
ain da assim, não s e dar á o caso de haver aqui uma po n­
tinha de i njustiça? Na r eali dade, nada fiz emos para mostrar
qu e o lançador de cã es poderia ter agido de modo diferente.
A cada momento, os mó dulos são pro gramados para res­
po nder desta ou daqu ela maneira e, portanto, o r esultado
final está determinado. Os compati bilistas par ec em, até ao
momento, dispostos a c ensurar as pessoas por aco nteci­
mentos qu e elas não teriam po di do evitar des encadear.
Os compati bilistas po deriam r espo nder a esta o bj ecção dis­
ti ngui ndo difer entes s enti dos na expr essão «po deria ter
agi do de mo do difer ente». Se a cadeia causal qu e despol etou
a acção i nclui mó dulos de decisão, o agente, num c erto s en­
ti do, «po deria ter agi do de mo do difer ente», facto qu e justi­
fica co nsi der á-lo li vr e. Para compr eendermos o s enti do
corr ecto de «po deria ter agi do de mo do difer ente» i ndicar ei
em s egui da aquilo a qu e vou chamar a primeira definição
compatibilista:
Um sujeito agiu livremente se poderia ter agido de modo
diferente no sentido correcto. O sujeito poderia ter agido de
modo diferente no sentido correcto desde que tivesse agido de
modo diferente se tivesse escolhido outra coisa.

103
PENSE

Isto, defende o compatibilista, é tudo quanto necessita­


mos para justificar que as pessoas sejam responsáveis pelas
suas acções, bem como, possivelmente, as reacções de censu­
ra e cólera que por vezes exibimos.
Quando se apela a algo como um fantasma para comba­
ter o determinismo está-se a postular uma intervenção exte­
rior ao domínio da natureza: uma liberdade capaz de se opor
à causalidade da natureza, em que o fantasma se distingue
da ordem natural, embora se revele misteriosamente habi­
litado a nela intervir. Esta concepção poderia designar­
-se «controlo intervencionista»; mas é por vezes referida na
bibliografia como «concepção libertista da liberdade», em­
bora se trate de uma designação confusa, dado nada ter
que ver com a concepção libertária em política e economia,
que é a ideologia do mercado livre e do governo mínimo27•
Assim, manter-me-ei fiel à expressão «controlo interven­
cionista». O compatibilismo, por sua vez, devolve-nos uma
imagem de nós próprios como agentes situados no inte­
rior da ordem causal da natureza. A nossa liberdade reside
no modo como as acções se projectam em consequência
dos nossos processos cognitivos. Trata-se agora de saber
de que modo responde o compatibilista ao argumento ori­
ginalmente proposto acerca do controlo. O compatibilista
poderia sugerir que o argumento não é melhor do que
isto:

O passado controla o presente e o futuro.


Um termóstato não pode controlar o passado.
Um termóstato não pode controlar o modo como o passado
controla o presente e o futuro.
Logo, um termóstato não pode controlar o futuro.

'Z7 Em inglês usa-se uma única palavra: libertarian. Mas em português


distingue-se o libertismo e o libertista, que se referem à doutrina metafísica
em discussão, do libertarismo e do libertário, que se referem às doutrinas
políticas e económicas a que o autor alude. (N. do R. C.)

104
LIVRE ARBÍTRIO

Há, com certeza, algo de errado nisto, porque um termós­


tato pode controlar o futuro a respeito da temperatura. É isto
que os termóstatos fazem. Um termóstato controla a tempe­
ratura por fazer parte do modo como o passado controla o
futuro. E é assim que, segundo o compatibilismo, controlamos
o futuro. Estamos envolvidos na ordem causal. Somos parte do
modo como o passado controla o futuro. E é no seu interior
que reside a nossa responsabilidade. Esta concepção de con­
trolo pode designar-se «controlo interno», um controlo que se
exerce a partir do interior da natureza. Quando exercemos este
tipo de controlo, defende o compatibilista, somos responsá­
veis por diversos acontecimentos. E, se o exercermos mal,
podemos ser justamente responsabilizados pelo resultado e
ficar sujeitos à censura, se a censura for a reacção apropriada.
Mas será que é a concepção determinista da liberdade que
desejamos? Não atribuímos a um termóstato liberdade al­
guma. O compatibilismo parece dissolver o problema da liber­
dade, e não tanto solucioná-lo. Foi isto que pensou Immanuel
Kant (1724-1804), que desqualificou esta concepção por ser
apenas capaz de nos oferecer a «liberdade dos relógios», ten­
do-a considerado apenas um «miserável subterfúgio»28 •

Bonecos e marcianos
Vejamos agora outra maneira de partilhar as preocupa­
ções de Kant. Os módulos e complexidades do processa­
mento de informação vieram complicar o quadro causal. Mas
será que no fundamental o alteram? Imaginemos um pleito
em benefício da figueira, no qual, por exemplo, se chamaria
a atenção para o facto de ser Inverno, e não Verão. Esta é uma
defesa eficaz em toda a linha. Bom, se eu agi mal, não mostra
isso também que o Inverno agiu mal? Os módulos foram mal
programados, presumivelmente por acontecimentos perten-

28 Kant, Crítica da Razão Prática, pp. 99-101.

105
PENSE

centes a uma cadeia causal que mergulha num passado an­


terior ao meu nascimento. A sua cólera talvez modifique os
meus processos de decisão no futuro, mas não mostra que eu
poderia ter agido diferentemente no passado.
À medida que vamos aprendendo mais acerca das regula­
ridades causais que subjazem às acções e a outros estados
mentais, ficamos aptos a pensar de formas menos moralistas.
É possível que censuremos alguém por estar sempre depri­
mido e descobrir que há um processo químico que o explica.
Talvez nos zanguemos com uma pessoa incapaz de se mexer
até ficarmos a saber que sofre de mononucleose. Mas, de
acordo com a perspectiva determinista, há sempre coisas deste
género para descobrir. Independentemente de qualquer acrés­
cimo de dados neurofisiológicos, poderemos pensar em casos
de «lavagem ao cérebro» e de «condicionamento». Certos pais
poderão sentir-se inclinados a censurar uma filha adolescente
por perder tempo, energia e dinheiro em cosméticos sem qual­
quer valor, mas talvez a melhor reacção consistisse em com­
preender as pressões sociais e comerciais que paralisam as suas
capacidades de avaliação e conduzem a este estado de coisas.
O quadro piora ainda mais para o compatibilista se con­
cedermos a nós próprios um pouco de ficção científica. Ima­
ginemos uma invasão de pequenos marcianos. Estes marcia­
nos são criaturinhas incrivelmente pequenas, organizadas e
maliciosas: suficientemente pequenas para invadirem os
nossos cérebros e passearem neles. Se o fizerem, podem tam­
bém programar os nossos módulos à sua vontade. Tomamo­
-nos bonecos nas suas mãos. (Se este exemplo lhe parecer
demasiado rebuscado, aconselho-o a reflectir no facto de
haver hoje um parasita que sobrevive ao formar colónias no
cérebro das formigas. Sob a sua influência, as formigas con­
seguem subir as folhas das ervas. Isto torna mais fácil serem
ingeridas pelas ovelhas, nos pastos, que, em seguida, são
infectadas [o indivíduo particular que se desenvolveu no
cérebro das formigas perece, mas há outros que lhes seguem
as pisadas]. E, tanto quanto se sabe, as formigas sentem-se

106
LIVRE ARBÍTRIO

tã o l ivr es c omo o ar ao su bir as er vas.) É clar o qu e os pequ e­


n os marc ian os poder iampr ogramar-n os parafazer alg o qu e,
em qualqu er cas o, ter íamos feito. P oder iam, além dis s o, tr o­
car os n os s os disjuntor es qu ímic os de modo qu e fizé s s emos
c oisas terr í veis. Vamos ag ora supor qu e a c iênc ia in ventava
uma s on da capaz de detectar os marc ian os, cas o n os tives­
s em in vadido. S er á qu e nã o s er íamos c ompr een s ivos r elati­
vamente a todos os qu e tives s em s ofr ido esta des ventura?
S er á qu e nã o r ec onh ec er íamos de imediato nã o s er em r es­
pon s áveis pel os s eu s actos?
Mas, dir á o inc ompatibil ista, far á alguma dif er ença falar­
- s e em pequ en os marc ian os ou em ag entes cau sais de um
gén er o mais natural?
E ste tipo de r esposta é dir ig ido à interpr etaçã o c ompatibi­
l ista da afirmaçã o «poder ia ter ag ido de modo dif er ente».
Parec e nã o haver pr obl ema algum quan do dizemos qu e al­
guémpoder ia ter optadopor um cur s o de acçã o diferente. Mas
suponhamos qu e es sa pes s oa foi pr ogramada para qu e não
pudesse esc olh er difer entemente. Suponhamos qu e n o mo­
mento da acçã o os mó dul os de dec isã o foram desactivados
por pequ en os marc ian os, c ertas su bstânc ias quím icas, ou o qu e
qui s ermos. O qu e ac ontec e n este cas o? O c ompatibil ista qu e
enc ontr ámos até aomomento afastar ia aqu estã oc om um enc o­
lh er de ombro s - nã o opre ocupa saber de qu e modoum ag en­
te s e torn ou naqu il o qu e é, mas apenas s e os re sultados sã o
bon s ou mau s. O obj ector c ons idera isto importante e, ao avan­
çarmos na desc oberta dos pr oc es s os cau sais, pel o men os algu­
mas das n os sas reacçõ es mostram qu e c onc or dam os c om el e.

Obsessões e Twinkies
P en s o qu e a melh or defesa qu e o c ompatibil ista pode
adoptar, c onfr ontado c om este c ontra- ataqu e, c on s iste em
discutir apalavra «pr ograma» aofalarmos em mó dul os pr o­
gramados parapr oduzir c ertos r esultados. C om efeito, trata-

107
PENSE

-se de renovar urna estratégia já antes adoptada aquando da


distinção entre tomadas de decisão e afogamento. O compati­
bilista introduziu um grau de flexibilidade nos processos cau­
sais ao chamar a atenção para os módulos que permitem ser
sintonizados ou programados de modos diferentes. Quando o
objector defendeu que, nesse caso, o sujeito se transforma
numa simples vítima se os módulos forem mal «programa­
dos», a resposta consiste em introduzir um novo nível de fle­
xibilidade. Poder-se-ia dizer, é verdade, que, no caso da adoles­
cente que sofreu urna lavagem ao cérebro, ou dos pequenos
marcianos, os módulos podem ser programados. E estamos a
imaginar que o funcionamento dos módulos é adulterado por
processos químicos (ou de outro tipo). Mas os casos deste
género são especiais precisamente porque os sujeitos se tomam
desde logo infle:xíveis: revelam-se imunes a quaisquer argu­
mentos ou à presença de novos dados ou alterações no con­
texto que envolve os processos de decisão. Normalmente, não
é deste modo que os agentes são programados. A sua liberdade
consiste em serem sensíveis a novas informações e em respon­
derem às diferenças que marcam cada situação. Não estão
condenados a lançar cães pela janela nem a ficar especados o
dia inteiro diante da caixa de cosméticos.
Talvez possamos desenvolver esta ideia recorrendo àquilo
a que chamarei definição compatibilista revista:

Um sujeito agiu livremente se pudesse ter agido de modo


diferente no sentido correcto. Isto significa que teria agido de
um modo diferente se tivesse tomado uma decisão diferente e,
sob a influência de outros pensamentos ou considerações, o
sujeito teria tomado uma decisão diferente.

É claro que, numa ou noutra ocasião, seria apenas um


infeliz acaso que os pensamentos apropriados não estives­
sem presentes. Bem, dirá o compatibilista, trata-se realmente
de um acaso infeliz. Mas talvez a minha fúria e o facto de ter
em vista esmurrar alguém previnam a sua recorrência.

108
LIVRE ARBÍTRIO

Alguns filósofos (Benedito Espinosa29 [1632-77] é o exem­


plo mais famoso) associaram a liberdade a um conhecimento
e compreensão crescentes. Somos livres, disseram, na me­
dida em que compreendemos as coisas. Em muitos aspectos,
esta é uma ideia atraente, visto que associa o livre arbítrio às
liberdades políticas: a liberdade de opinião e de ser infor­
mado. Somos livres apenas na medida em que dispomos de
oportunidades, algo de que a falta de informação nos priva.
Poderíamos acrescentar esta ideia à definição compatibilista
revista, especificando que «outros pensamentos e considera­
ções» são, primeiro, uma representação precisa da situação
do agente e das suas opções e, segundo, estão disponíveis ao
agente. De facto, não tem grande utilidade dizer que, sob a
influência de outros pensamentos e considerações, a pessoa
teria agido de modo diferente se essas considerações e pensa­
mentos não estivessem pura e simplesmente disponíveis no
contexto. Imaginemos que me proponho envenenar alguém e
que astuciosamente deposito arsénico no seu café. Digamos
ainda que o café é ingerido. Neste caso, afirmar que a pessoa
era livre de não o fazer nada significa. Embora seja verdade
que teria evitado beber o café se tivesse feito uma escolha
diferente, e também que a ideia de que talvez o café conti­
vesse arsénico a fizesse tomar outra decisão, ainda assim,
dado não haver qualquer razão para este pensamento lhe
ocorrer, a pessoa é apenas uma vítima, e não um agente livre.
Poder-se-ia incorporar isto na definição compatibilista revista:
Um sujeito agiu livremente se pudesse ter agido de modo
diferente no sentido correcto. Isto significa que poderia ter agido
de um modo diferente se tivesse tomado uma decisão diferente
e, sob a influência de outros pensamentos ou considerações dis­
poníveis e verdadeiros, o sujeito teria tomado uma decisão dife­
rente. Pensamentos e considerações verdadeiros e disponíveis
são os que representam com exactidão a situação do sujeito e que
é razoável esperar que o sujeito tenha tido em consideração.

29 Veja-se Espinosa, Ética, parte IV, p. 187, e parte v, pp. 199-224.

109
PENSE

Mas que dizer de uma pessoa a quem estes pensamentos


e considerações simplesmente não ocorreram? Será que se
trata de uma vítima, e não de um agente responsável? Isto
introduz uma nova viragem nas coisas.
Até agora falámos como se a «escolha livre», seja de um
misterioso tipo intervencionista, seja de um tipo de «interior»
simulado ou compatibilista, fosse necessária à responsabili­
dade. Mas será que isto é verdade? Afirmei acima que por
vezes só a um acaso infeliz se fica a dever que certas consi­
derações cruciais não ocorram ao agente no momento da
decisão. Outras vezes, não tratamos este facto como um mero
acaso. Dizemos que esses pensamentos deveriam ter-lhe ocor­
rido. O agente é censurável se isso não acontecer. Alguém
que se divirta a incendiar prédios não pode pretender seria­
mente que nunca lhe ocorreu a possibilidade de magoar
outras pessoas - a menos que se trate de uma criança ou de
um deficiente mental. Ainda que se admita ser verdade que
tal nunca lhe tenha ocorrido, e, portanto, que não se justifica
falar em escolha livre, não deixa de ser verdade que a pessoa
é responsável. A negligência e a imprudência são falhas de
que somos responsáveis, tal como somos responsáveis quando
se trata de decisões que podemos controlar melhor. Alguns
filósofos consideram esta ideia difícil de aceitar. Em deses­
pero de causa, Aristóteles30 defendeu que as pessoas negli­
gentes escolheram tomar-se negligentes talvez na infância,
não havendo outra forma de as responsabilizarmos.
Na verdade, há um vasto conjunto de ideias interessantes
que se abrem perante nós neste ponto. Alguns acontecimen­
tos infelizes são de facto acidentais e não afectam a nossa
relação com o agente. Outros reflectem-se de algum modo no
agente. Imaginemos um jogador de golfe. Suponhamos que
um dia consegue uma excelente tacada, mas, para sua enorme
surpresa, uma gaivota intromete-se no caminho e estraga a
jogada. Um dia depois consegue uma tacada tão boa quanto

30 Aristóteles, Ética a Nicómaco, m. 5 (1114a, 4).


110
LIVRE ARBÍTRIO

a primeira, mas uma brisa ligeira desvia a bola do seu curso


e perde de novo a jogada. Talvez possamos dizer que qual­
quer destes acontecimentos ficou a dever-se a um acaso infe­
liz. No primeiro trata-se apenas de azar. No entanto, o se­
gundo não é assim tão simples. Estamos ainda perante um
caso de azar, mas agora trata-se do género de azar que é de
esperar que um bom jogador preveja e supere. Este aconte­
cimento deveria entrar nas suas previsões. A gaivota, pelo
contrário, representa um puro acto de Deus. Mas, se aconte­
cimentos do segundo tipo se repetirem um certo número de
vezes, a nossa opinião acerca do jogador terá tendência para
se modificar e o mesmo se passa com as nossas acções. Daí
a resposta de um pianista a um admirador quando este ex­
pressou a opinião de que era uma sorte tremenda ter sido
bafejado com um tão grande talento: «Sem dúvida, e quanto
mais pratico mais sorte tenho. »
A engenharia conceptual de que nos estamos a ocupar
neste ponto pretende explicitar e testar elementos típicos da
nossa maneira de pensar. Temos em mente incorporar e lan­
çar alguma luz sobre coisas deste género: fazemos uma dis­
tinção entre modificar o passado (algo que nos está vedado)
e agir de um modo diferente do habitual (algo que por vezes
nos é acessível); temos práticas de censura baseadas em dis­
tinções; distinguimos entre estar doente e ser mau; aceita­
mos certas desculpas e excluímos outras. Presumivelmente,
a análise filosófica deveria conferir-nos algum domínio sobre
tudo isto. Espera-se que nos revele estas práticas, não como
uma salgalhada irracional de hábitos sem relação entre si,
mas como algo que resulta da aplicação de um conjunto de
conceitos e princípios razoáveis que podem ser defendidos.
A dificuldade em fazê-lo é a razão pela qual a análise filosó­
fica desses factos é difícil. A explicação compatibilista é uma
obra de engenharia, ora traçando o mapa dos conceitos
existentes, ora concebendo melhores conceitos. E tem de res­
ponder às maneiras como muitas vezes pensamos, ou como
pensamos quando melhor dominamos os problemas que

111
PENSE

enfrentamos. Quanto a mim, creio que a definição compati­


bilista desempenha esse papel bastante bem, após ter sido
revista pela segunda vez. Mas há quem leve mais a sério a
objecção de Kant. Estas pessoas pensam que as «relações
interpessoais», onde se inclui a maneira como atribuímos
responsabilidade aos outros e a nós próprios, depende de
uma afeição duradoura pela concepção intervencionista da
liberdade. Se esta concepção for metafisicamente insustentá­
vel, as nossas atitudes terão de modificar-se. O problema
filosófico resultaria de o controlo intervencionista ser inde­
fensável e também de a noção de controlo interior ser inade­
quada.
Por vezes, a análise permite resolver casos difíceis. Mas
outras vezes deixa ainda demasiadas zonas cinzentas por
esclarecer, o que talvez em si não seja mau. Regressemos à
adolescente que gastava enormes quantidades de tempo e
dinheiro em cosméticos. Será que poderia proceder de modo
diferente? Recorrendo à definição compatibilista revista pela
segunda vez, compreendemos que a questão consiste em
determinar que outros pensamentos e considerações se en­
contram à sua «disposição». Num certo sentido, talvez se
admita que possa vir a compreender que a sua popularidade
e poder de atracção não sofrem um incremento significativo
em virtude dos cosméticos (o incremento seria superior se
melhorasse o seu lado intelectual, em resultado talvez de ler
um livro como este). Este pode ser um pensamento verda­
deiro e potencialmente à sua disposição. Mas, noutro sen­
tido, talvez não seja assim. Talvez uma pessoa que esteja
sujeita ao tipo de influência a que ela está sujeita não consiga
pura e simplesmente acreditar nisto. A cultura é horrivel­
mente eficaz quando se trata de imunizar adolescentes a ver­
dades como esta. Portanto, não seria razoável esperar que
algo diferente acontecesse com ela. Pela minha parte, incli­
no-me para este diagnóstico e considero-a mais uma vítima
que um agente. No entanto, ainda que a definição compatibi­
lista revista não permita solucionar a questão, permite com

112
LIVRE ARBÍTRIO

certeza enfatizá-la, e este é o aspecto decisivo. Em si, este é


um passo importante para que alcancemos algum domínio
sobre a questão da liberdade e da responsabilidade. Mas, se
quisermos ser justos, é necessário acrescentar que há um
longo caminho a percorrer. Um incompatibilista, por exem­
plo, pode insistir em que os pensamentos só estão disponí­
veis se eles próprios forem objecto de uma escolha livre
(intervencionista), algo que nos reconduziria à estaca zero.
A cultura contemporânea não tem um grande apreço
pela responsabilidade. Considere-se a conhecida «defesa
Twinkie». Um dia, em 1978, um ex-funcionário público da
edilidade de São Francisco, Dan White, entrou na Câmara
Municipal com uma arma, iludindo os detectores de metais
ao penetrar no edifício através de uma janela da cave. Subiu
as escadas e matou o presidente da Câmara, George Mos­
cone, e um supervisor, Harvey Milk. Em tribunal, o psi­
quiatra Martin Blinder testemunhou pela defesa que White
estivera deprimido, facto que o levara a comer demasiado,
em particular um tipo de comida pré-preparada com elevado
teor de açúcar conhecida por «Twinkies». Segundo o teste­
munho de Blinder, isto acentuou ainda mais a sua depressão,
dado White ser um ex-atleta que sabia que este tipo de
comida lhe era prejudicial. Blinder sustentou que o estado
emocional em que White se encontrava tomava impossível
que tivesse agido premeditadamente e com intenção, ambas
condições necessárias para uma acusação de homicídio pre­
meditado intencional. O júri ficou impressionado com este
argumento e ilibou White do homicídio premeditado, consi­
derando-o, em vez disso, culpado de «homicídio voluntário
sem malícia premeditada».
O estado da Califórnia reviu o seu quadro jurídico de
modo a inviabilizar este tipo de defesa, al9o que, dadas as
características do caso, se revelou acertado. E óbvio que W hite
agiu premeditadamente e com intenção, facto que explica
que tenha arranjado uma arma e penetrado no edifício pela
cave. E é fácil observar que a análise duas vezes revista que

113
PENSE

temos vindo a promo ver não é muito hospit a leir a p ar a com


o tipo de defes a proposto. Seri a necess ário a o a dvog a do de
defes a tr a b a lh a r a r du a mente p ar a mostr ar que h á um a qu a n­
ti da de de a çúc a r no s a ngue suficiente p a r a coloc ar o nosso
comport amento for a do a lc a nce dos nossos pens amentos e
mó dulos de decisão. Não p arece ser ver da de que a ingestão
de um a da da qu a nti da de de Twinkies nos tome liter a lmente
inc ap azes de ter certos pens amentos, a o ponto de nos ser
imposs í vel compreender que a ss a ssina r pesso as é um a pés­
sim a i dei a , por exemplo. Mesmo um a gr a nde qu a nti da de de
a çúc a r não permite f azê-lo. (No ent a nto, os júris a ctu a is não
são muito bons em questões de c aus a li da de. No Michigão,
um homem g a nhou recentemente um processo por da nos
subst a nci a is porque, segundo afirmou, um a colisão na tr a ­
seir a do seu c arro o tom a r a homossexu a l.)
Antes de deix ar o comp a tibilismo, convém assina l ar um a
dificul da de rel a ti va a to das as definições propost as. O com­
p atibilismo procur a obter um a noção correct a de controlo com
b ase na i dei a de que em diferentes circunstânci a s o a gente
teria proce di do diferentemente. M as h á c asos b a st a nte des a­
gr a dáveis que sugerem que est a s noções não enc aix am um a s
n a s outr a s de um mo do suficientemente s atisf atório. São os
ch a m a dos c asos de «sobre determina ção c a us a l». Qu a ndo
isto suce de, h á a lgo que determina um certo result a do final,
embor a esse result a do, em virtu de de um mec anismo desti­
na do a pre venir «falh as», ti vesse si do o mesmo noutr a circuns­
tânci a . Assim, um termóst a to po de control ar a temper a tur a
mesmo se, de vi do a este género de mec anismo, a temper a tur a
for a mesm a no c a so de o termóst a to est a r a funcionar m a l.
Se o termóst ato esti vesse a funcionar m a l, outr a cois a qu alquer
teri a m a nti do a temper a tur a no ní vel a propri a do. De form a
semelhante, um a gente po deri a cometer um a m á a cção, est a r
a control ar a situ ação, a gir com respons abili da de e intenção,
embor a, se pretendesse proce der diferentemente, um mecanismo
desconheci do entr a sse em funcionamento com o objecti vo
de a ssegur ar que, em qu a lquer c a so, a m á a cção fosse come-

114
LIVRE ARBÍTRIO

t ida. Imaginemos os pequenos marc ianos tranqu ilamente


sentados sem interfer irem com co isa al guma, mas prepara­
dos para o fazer sempre que o resultado f inal aparentasse ser
diferente do que desejavam. Estes são casos part icularmente
dif íce is de tratar. No entanto, o compat ibil ista po de sempre
responder que estes casos não tomam mais difíc il defin ir o
sent ido correcto do controlo relat ivamente a seres humanos
que relat ivamente a termóstatos. Dado que o pro blema de ve
ter uma solução no caso de controlo mecânico, de verá tê-la
igualmente no .caso dos seres humanos.

Objectivar pessoas
Será que há mais mot ivos de preocupação? Po der íamos
pensar da se guinte mane ira:

A per sp ec ti vacompati bili s tad escr eve o modo d e op erar do s


or gani smo s dotado s d e cére bro em termo s d e mód ulo s d e d eci­
são. No en tan to, faz ê-lo é d escr ever as coi sas segundo o que
acon tec e. Ainda não é d escr evê- las em termo s d e acção, o u d e
ser o «eu» quem age. Por tan to, es ta p er sp ec ti va d eixa d e fora
algo que é essencial relati vam en te ao que faz d e mim um ser
humano e tam bém ao modo como con sid ero o s o utro s s er es
humano s, e que é o fac to d e não sermo s ap enas criaturas pas -
si vas o u vítimas, mas agen tes ac ti vo s.

Esta é a forma como nos cons ideramos a nós própr ios,


como normalmente cons ideramos as outras pessoas e também
o mo do como normalmente desejamos ser cons iderados.
O rece io, neste ponto, é de se estar a per der al go de essen­
c ial para a vida humana. Parece-nos essenc ial que nos con­
s ideremos agentes, e não apenas suje itos pass ivos. É ainda
essenc ial que as outras pessoas nos cons iderem como tal.
Num art igo famoso, o filósofo Peter Strawson (1919-) estabe­
leceu um contraste entre uma atitu de «o bject iva» ou impes-

115
PENSE

soal relativamente às outras pessoas e urna atitude humana


ou «pessoal»31 • Se adoptarrnos a linha objectiva, as outras
pessoas são corno obstáculos ao nosso desenvolvimento,
necessitando de serem «conduzidas, cuidadas, curadas ou
treinadas». Mas não seriam objecto de atitudes pessoais. As
pessoas seriam encaradas corno se fossem loucas, e não agen­
tes inteligentes que podem ser compreendidos.
O quadro traçado por Strawson contém urna interessante
«mudança gestaltista». A princípio pode parecer que as atitu­
des morais associadas à censura seriam duras e desapiedadas;
podemos ser tentados a pensar que seria urna melhoria signi­
ficativa se preferíssemos atitudes mais liberais e compreen­
sivas para com coisas corno crimes e «comportamentos des­
viantes». Tratar as pessoas corno pacientes, e não corno
criminosos, parece um passo numa direcção humanamente
mais correcta. Strawson pede que nos confrontemos com o que
se perde com esta alteração. E sugere que muito daquilo que
faz das relações humanas algo de especificamente humano
se perde. Suponhamos, por exemplo, que pretendo explicar
a alguém as razões de ter adoptado um certo comportamento.
Verifico, afinal, que as pessoas ouvem a minha história
olhando-me de urna maneira que sugere que aquilo que
estou a dizer é apenas mais um sintoma. Tratar-se-ia apenas
de um sinal de que necessito de ser conduzido ou cuidado
ou curado ou educado. Fui, portanto, desumanizado. Quero
que a minha decisão seja compreendida, e não encarada com
paternalismo. Quero que as outras pessoas «ouçam a minha
voz», o que significa compreenderem o meu ponto de vista,
verem de que modo as coisas se me apresentam, e não inter­
rogarem-se quanto às causas que conduziram um organismo
a comportar-se deste modo. Este tipo de objectivação será de
novo referido no capítulo 8, quando, entre outros aspectos,
com ela confrontarmos a indústria terapêutica.

31 A distinção fundamental de Strawson foi apresentada no célebre ensaio


«Freedom and Resentment».

1 16
LIVRE ARBÍTRIO

A respo st a co rrect a à obj ecção ant erio r que co nsidere o


aspecto assinalado po r St raw so n é a segu int e. A int enção do
co mpat ibilista não é negar o agir, mas explicá-lo de um mo do
part icular. Esta ex plicação é dada em t ermo s de módulo s e
funções cerebrais, módulo s no s quais o s dado s são reco lhi­
do s e as alt ernat ivas hierarquizadas, at é, po r f im, uma res­
po st a ent rar «em linha» e se iniciar uma acção. É verdade
que to do s est es aco nt ecimento s são apenas co isas que «aco n­
t ecem» ( passivament e, se quisermo s), mas, de aco rdo co m o
co mpat ibilista, são tamb ém tudo o que aco nt ece quando al­
gu ém - urn a pesso a - desencadeia uma acção. Descrever
uma pesso a co mo algu ém que faz algo aco nt ecer po r uma
cert a razão co nsist e em descrever ao ní vel pessoal o result ado
de to do s est es micro aco nt ecimento s que t êm lugar no s ní veis
int ermédio s.
Alguns pensado res go st am de afirmar que há duas pers­
pect ivas acerca de t udo isto. Há, po r um lado, a po st ura
deliberat iva, que é aquela que ado ptamo s quando nós pró­
prio s to mamo s uma decisão. E há uma po st ura «o bj ect iva»
o u de t erceira pesso a, que é aquela que ser ia ado pt ada po r
um cient ist a ao co nsiderar- no s co mo um det erminado sis­
t ema neurof isio lógico co mplexo. O pro blema co nsist e em
co nciliar estas duas po st uras.
Se o pro blema fo r co lo cado deste mo do, a so lução co rrect a
é co m cert eza a seguint e: haveria apenas uma dif iculdade
em reco nciliá- las se aquilo que enco nt ramo s ao ní vel da
po st ura deliberat iva fo sse inco mpatí vel co m aquilo que en­
co nt ramo s ao nível da t erceira pesso a. No entanto, a po st ura
deliberat iva nada no s permit e desco brir acerca da causali­
dade. Pensar de o ut ro mo do seria co met er o erro que
Scho penhauer assinalo u a pro pósito da águ a: co nfundir a
ausência de co nsciência acerca do funcio namento do cérebro
e do co rpo co m a co nsciência da ausência desse funcio na­
mento. A pr imei ra é universal, enquanto a segunda é sim­
plesment e impo ssí vel: sem esse funcio namento não haveria
co nsciência.

117
PENSE

Portanto, como nada se vê a partir da postura deliberativa


que entre em conflito com a visão científica do mundo, não
há necessidade de pensar que o problema da reconciliação é
difícil. Resta-nos, quando muito, um problema moral: o de
assegurar que as relações que mutuamente mantemos se
estabelecem não a partir da postura objectiva, mas com base
num respeito humano completo, enriquecido, e não envene­
nado, pelo conhecimento que possuímos acerca das condi­
ções que determinam as decisões das outras pessoas.

Destino, oráculos e morte


Conheci um homem já idoso que tinha sido oficial na pri­
meira guerra mundial. Disse-me que um dos seus problemas
fora o de conseguir que os seus homens usassem capacete
quando se encontravam em risco de receber fogo inimigo.
O argumento dos soldados incluía a ideia de todas as balas
terem «um número». Se uma bala tivesse o número de um sol­
dado, não valia a pena tomar precauções, visto que iria matá­
-lo. Por outro lado, se nenhuma bala exibisse o seu número,
o soldado estaria a salvo por mais um dia, tomando-se des­
necessário usar um incómodo e desconfortável capacete.
A este argumento chama-se muitas vezes «sofisma pregui­
çoso». Se vou ter um cancro, bem, então tê-lo-ei, afirma o fu­
mador. Não podemos escapar ao nosso destino. Se é verdade
o que afirma o determinismo, não estará o futuro já estabele­
cido de urna vez por todas, em virtude da cadeia indefinida de
estados em que o mundo se encontrou no passado? Estes
estados dão origem ao futuro e o futuro desenrola-se inevita­
velmente a partir do ventre do passado. Mas, se o futuro se
encontra estabelecido, que outra coisa nos resta excepto resig­
narmo-nos com os nossos destinos? Não se dará o caso de as
nossas acções se tomarem irrelevantes? Não seria preferível
retirarmo-nos e, por exemplo, passar os dias sentados num
tapete cor de laranja a entoar «Om»?

118
LIVRE ARBÍTRIO

Há muitas histórias que sublinham que não podemos


evitar o nosso destino. Eis uma versão de uma famosa pará­
bola islâmica sobre a Morte em Samarcanda:
O discípulo de um sufi de Bagdade estava um dia sentado numa
estalagem quando ouviu duas figuras conversarem. Compreendeu que
uma delas era o Anjo da Morte.
- Tenho várias visitas a fazer nesta cidade - disse o Anjo ao seu
companheiro.
Aterrorizado, o discípulo escondeu-se até que ambos finalmente se
afastaram. Para escapar à morte, aparelhou o mais rápido cavalo que
encontrou e cavalgou dia e noite até Samarcanda, uma distante cidade
do deserto.
Entretanto, a Morte encontrou o seu mestre, com quem conversou
sobre diversos assuntos. «Onde está o teu discípulo?», perguntou a
Morte.
- Suponho que está em casa a estudar, como é o seu dever -
disse o sufi.
- É estranho - disse a Morte. - Tenho-o na minha lista e vou
amanhã visitá-lo a Samarcanda32•

O discípulo tenta escapar ao destino, mas, apesar disso, o


destino acaba por lhe bater à porta. A história deste fútil
combate ressoa um pouco por toda a parte. Na tragédia Édipo
Rei, de Sófocles, dizem ao rei Laio de Tebas que o seu filho
será o assassino do pai e que casará com a mãe. Quando teve
um filho, Laio tentou evitar a terrível profecia mutilando-o
ainda bebé e deixando-o a morrer numa encosta. Édipo foi
salvo por um pastor e cresceu em Corinto, pensando ser o
filho do rei desta cidade. Quando lhe chegaram rumores do
seu destino, consultou o oráculo de Delfos e obteve a confir­
mação. Afastou-se de Corinto, onde supunha que o pai se
encontrava. Em seguida, num descampado onde se cruza­
vam três estradas, deparou-se-lhe Laio ... É nesta dupla ten­
tativa para contrariar o destino que a tragédia se revela.

32 História adaptada de Shah, Tales of the Dervishes.

119
PENSE

O s soldados que o meu ami go comandava pensavam que


t omar precauções era t ão i núti l como o combat e de É di po
para fugi r ao seu t rági co desti no. M as há aqui uma dif erença
cruci al. Por hi pót ese, É di po conheci a o seu desti no, embora
pret endesse evit á- lo. E m cont raparti da, os soldados i gnora­
vam se i ri am ou não morrer nesse di a. Ist o deix a em abert o
uma resposta: que uma bala t enha o seu número poderi a
muit o bem depender de se escolher usar um capacet e. U ma
bala que, de outro modo, t eri a esse número talvez se manti ­
vesse sem qualquer i nscri ção no caso de est a si mples precau­
ção ser adopt ada. Como os soldados i gnoravam se algu ma
das balas ti nha ou não o seu número, associ ado ao fact o de
pref eri rem que t al não sucedesse, seri a razoável que t omas­
sem as precauções recomendadas.
Nada fazer - est ender um tapet e cor de laranj a e recitar
«Om» em vez de colocar o capacet e - é ai nda uma escolha.
Q ue os nossos módulos de deci são sej am programados pelo
sofi sma pregui çoso é est ar di sponível para est e género de
opção. O sofi sma pregui çoso pode ser apresent ado como o
segui nt e argu ment o acerca do curso das acções:

O futuro será o que será. Todos os acontecimentos se encon­


tram já inscritos na origem do tempo.
Logo, nada faças.

No entant o, porquê deix armo-nos i mpressi onar por est e


argument o, e não pelo segui nt e?

O futuro será o que será. Todos os acontecimentos se encon­


tram já inscritos na origem do tempo.
Logo, toca a fazer coisas!

O pri mei ro seri a um argu ment o melhor se soubéssemos


que, em vi rt ude de t odos os acont eci ment os se encont rarem
i nscritos na ori gem do t empo, as acções humanas não de­
sempenhavam um papel det ermi nant e. Se as coi sas se pas-

120
LIVRE ARBÍTRIO

sassem assim, ser ia como assistir a um j ogo através de uma


j anela e nós fô ssemos espectadores ocultos de acontecimen­
tos nos quais nunca poder íamos par ticipar e cuj os j ogador es
se manter iam cegos e sur dos à nossa pr esença. Mas não é
deste modo que as coisas normalmente acontecem. Todos os
acontecimentos emergem da or igem do tempo, mas em
sequências pr evisíveis. Q uando algu ém come uma omeleta,
isso é um acontecimento sempr e pr ecedido por algu ém que
par te um ovo. Alca nçar o cume de uma montanh a fa z- se
pr eceder pelo início da subida. Mas nada fazer é invar iavel­
mente seguido de nenhuma omeleta e nenhuma escalada.
Q ue acontecimentos emergem do fundo do tempo depende
daquilo que decidimos fazer - é isto que queremos dizer
quando fa lamos em controlo interior de uma pessoa ou de
um ter móstato. O s nossos módulos de decisão encontr am- se
envolvidos no pr ocesso, ao contrár io do que acontece com
um mer o espectador.
Mas será que esta r esposta ao «sofisma pr egu içoso» pode,
em definitivo, ser consider ada conclusiva?
Penso que, caso o sofisma pr egu içoso sej a tomado como
um ar gumento par a agir num sentido ou noutr o, a r esposta
é conclusiva. Não há qualquer r azão que possamos conceber
par a pr efer ir a conclusão que nos convida a nada fazer à
conclusão que nos convida a fazer coisas. Colocando o as­
sunto noutr os ter mos, digamos que, na esfera prá tica, aceitar
um dos argu mentos é equivalente a desej ar ser -se uma pes­
soa cuj os módulos de decisão têm uma cer ta configur ação.
Esta configur ação ser ia obtida pela aceitação do seguinte
consel ho: quando pensar es no futuro e na matr iz do tempo,
nada faças. No entanto, por quê admirar algu ém que genui­
namente segu isse este conselho? Pessoas deste tipo são ape­
nas imprestá veis: incapazes de fazer omeletas ou de escalar
montanhas, nem sequer se dando ao tr abalho de o tentar.
C ontudo, esta linha de pensamento pode obter uma inter­
pr etação difer ente. O fatalismo é ger almente consider ado
uma dissolução da pr ópr ia escolha, e não uma r ecomendação

121
PENSE

para agir deste ou daquele modo. A ideia é mostrar que es­


colher é urna ilusão.
Mas, por sua vez, que si gnificado de vemos atri buir a isto?
Ar gumentámos já que existe urna concepção de escolha que
é de facto urna ilusão. Trata-se da noção de escolha inter ven­
cionista, a ideia de urna inter venção em lar ga escala do Eu
Real na ordem dos acontecimentos físicos e neurofisioló gi­
cos. Optámos por urna noção mais modesta, a dos módulos
flex í veis de escolha que estão envol vidos nas nossas acções.
Corno poderiam os nossos pensamentos acerca da passagem
do tempo mostrar que as operações destes módulos são afi­
nal irreais e ilusórias? Isto não parece mais plaus í vel que
su gerir que, em virtude da passagem do tempo, as operações
efectuadas por computadores, terrnóstatos ou serras eléctri­
cas são apenas ilusórias.
Quando i gnoramos o que vai acontecer e pensamos que
os acontecimentos irão ao encontro das nossas acções, deli­
beramos acerca do que fazer. Vimos já que o fatalismo não
dispõe de qualquer ar gumento que nos permita deli berar
num sentido ou noutro. Além disso, não dispõe de qualquer
ar gumento para afirmar que o próprio processo de deli bera­
ção é irreal, a menos que o construamos a partir do exterior,
do modo já considerado e que rejeitámos.
Suponhamos agora que não sabemos o que vai acontecer
mas que is to é do conhecimento de Deus, di gamos. Ou ape­
nas que pode ser conhecido. Quando deli beramos, pensa­
mos que o futuro está em aberto e que apenas o passado está
definido de urna vez por todas. Admitamos agora que o
futuro, tal corno o passado, está fixado. Assim, pensamos da
se guinte maneira:

tempo➔

122
LIVRE ARBÍTRIO

Neste diagrama, as setas representam possibilidades em


aberto que se propagam a partir do presente. No entanto,
esta maneira de pensar talvez seja ilusória. Talvez a verdade
seja apenas acessível à «perspectiva de Deus», ou àquilo a
que habitualmente se chama a «perspectiva intemporal».
Nesta perspectiva, o tempo desenrola-se como um filme de
celulóide: cada fotograma corresponde a acontecimentos que
têm lugar num ou noutro momento do tempo. Dada a ma­
neira como o mundo funciona, só temos consciência dos
fotogramas que correspondem ao passado (por vezes, as
pessoas pensam que os profetas têm acesso aos fotogramas
relativos ao futuro). Contudo, não há qualquer assimetria
metafísica entre o passado e o futuro:

A perspectiva�
de Deus -Q-

1
1
· o movimento do presente

Talvez pensemos que, se isto é verdade, tentar influenciar


o futuro é tão inútil como tentar influenciar o passado. Se
Deus tem realmente esta perspectiva, deve estar a rir-se en­
quanto observa os nossos esforços. É isto que a história sufi
implica. A Morte já tem a sua lista. Esta é a razão pela qual
os soldados do meu amigo recorriam à metáfora de uma bala
«com um número», algo que implica que esse número estava
desde sempre na bala -isto é, independentemente do que
eles pudessem fazer.
Mas por que motivo estarão Deus ou a Morte a rir-se?
Admitamos que Deus possui uma visão intemporal. Ainda
assim, Deus não pode observar uma omeleta numa certa
data sem que, numa data ligeiramente anterior, alguém te-

123
PENSE

nha partido um ovo. E le sabe se iremos ter uma ome leta num
dos fotogramas do fi lme. Mas, nesse caso, sabe também se,
num fotograma ligeiramente anterior, iremos preparar a
ome leta. Não h á, portanto, razão para pensar que saiba o que
ser á o futuro seja o que for que façamos, como não sabe que
a árvore cair á seja o que for que o vento faça. De um ponto
de vista intemporal, tudo o que pode ser observado é o vento
e a destruição. Deus, tanto quanto parece, não é como um
médi co que sabe que vamos morrer de cancro seja o que for
que façamos. Isso signifi caria que haveria fotogramas em
que as pessoas se comportariam de maneiras incrive lmente
variadas, mas morreriam na mesma de cancro. A perspe ctiva
intemporal, situada fora do tempo, permite observar as nos­
sas acções e os seus desfe chos, mas não desfe chos sem
acções. Deus v ê-nos comer ome letas porque os nossos
módu los de de cisão nos levaram a partir ovos. E apenas nos
v ê comer ome letas quando, num fotograma anterior, nos viu
partir os ovos.
A história sufi imp li ca que a Morte ins crevera o dis cípu lo
na lista antes de o dis cípu lo de cidir fugir. Portanto, ao que
pare ce, t ê- lo - ia pro curado onde quer que estivesse - em
Bagdade ou Samar canda. É esta a razão pe la qual a sua fuga
se reve lou inúti l. No entanto, talvez a Morte o tivesse in­
clu ído na lista apenas porque o dis cípu lo fugiu - por exem­
p lo, se, ao chegar a Samar canda, se enfiasse debaixo de um
auto carro. A fuga permitiu que o seu destino se consumasse,
ainda que nada acres cente quanto à razoabi lidade da sua
acção. Se a Morte estivesse o cupada em Bagdade, devido a
um surto de peste, fugir seria a de cisão mais racional, em­
bora infe liz. E poderia aconte cer que a Morte não o tivesse
inclu ído na lista pre cisamente devido ao facto de ter fugido.
Mas que dizer da assimetria entre passado e futuro? Se,
aos o lhos de Deus, o passado e o futuro são simétri cos, por­
qu ê considerar racional tentar modifi car o futuro? Como
compreender que esta atitude seja mais racional que a ten­
tativa para mudar o passado? Bem, como afirmei, mesmo

124
LIVRE ARBÍTRIO

Deus não nos vê preparar uma omeleta tendo ocorrido li­


geiramente antes o acontecimento em que comemos uma
(a menos que nos visse gulosamente preparar e devorar
uma segunda omeleta). Portanto, é realmente inútil tentar
influenciar o passado. No entanto, este facto deixa em
aberto um formidável problema filosófico, particularmente
difícil de resolver. Será que a nossa incapacidade para in­
fluenciar o passado é apenas uma questão de facto, algo
que, sendo meramente contingente, poderia ser diferente do
que é, por exemplo, noutras regiões do espaço e do tempo?
Se a questão se limita aos padrões que podem ser observados
de um ponto de vista intemporal, parece que deveria sê-lo.
Será que estes padrões poderiam ser diferentes num outro
lugar?
Por agora deixo o problema a título de exercício (um exer­
cício extremamente difícil). E, voltando ao fatalismo, a ver­
dade é que não há uma justificação racional ou filosófica de
âmbito geral em que se apoie. O fatalismo corresponde a
uma disposição, a um estado de espírito em que nos julga­
mos desprovidos de todo o controlo, a um sentimento de que
somos apenas espectadores da nossa própria vida. Este es­
tado de espírito nem sempre se justifica. Somos em larga
medida impotentes, política e também psicologicamente
(porque não somos flexíveis, porque sofremos uma lavagem
ao cérebro e nos deixamos dominar por estranhas obsessões
que não conseguimos afastar). Quando somos impotentes,
pode tomar-se bastante natural a adopção do quadro mental
fatalista. Se os nossos melhores esforços redundam em nada
com alguma frequência, precisamos de consolo, e os pensa­
mentos acerca de um destino infinito e inflexível são por
vezes consoladores.
Todavia, estes pensamentos não são apropriados quando
se trata de agir. Não é seguro pensar, enquanto conduzimos
um carro, que tanto faz virar o volante ou carregar nos tra­
vões. Não é verdade que os nossos melhores esforços redun­
dem em nada.

125
PENSE

Flexibilidade e dignidade
A ideologia do dualismo mente-corpo está muito en­
raizada. Por ideologia quero dizer não um argumento espe­
cífico ou conjunto de argumentos, mas um quadro geral no
interior do qual pensamos: um ponto de referência ou uma
ideia orientadora. É frequente supor-se que o dualismo toma
possível a liberdade, a dignidade e até a própria experiência
humana. Subjaz também às grandes palavras: o género de
palavras que inscrevemos nas nossas bandeiras. Nos últimos
dois capítulos tentei desligar estas coisas do dualismo. Mas
as pessoas receiam a alternativa. Será que não estaremos a
reduzir as pessoas, com toda a sua colorida complexidade, a
monótonas máquinas monocromáticas, condicionadas a se­
rem deste modo ou daquele, ou, pior ainda, a veículos pas­
sivos dos nossos genes egoístas?
Não, de maneira alguma.
O problema é que, neste caso, as alternativas se apresen­
tam como se esgotassem todo o domínio de investigação: ou
um espírito livre, flutuando ditosamente acima da ordem
natural, ou uma máquina determinada, como um autocarro
ou até um eléctrico.
Voltaremos a encontrar a falácia que consiste em apresentar
incorrectamente as alternativas em capítulos subsequentes. Não
é a filosofia compatibilista que denigre a natureza humana; é
esta forma de apresentar as alternativas. Ao colocar assim o
problema está-se a presumir que a natureza é de tal modo hor­
rível que é necessário um momento mágico, uma faísca divina
lançada pelo fantasma na máquina, para a fazer cantar. Tratar­
-se-ia, afinal, de relógios (mortos-vivos) ou fantasmas. Mas é
esta a visão que denigre a natureza, incluindo a natureza hu­
mana. Devemos pensar como Wittgenstein quando escreveu:
É humilhante ter de parecer um tubo vazio, pura e simplesmente
animado por uma mente33.

33
Wittgenstein, Culture and Value, p. 11.

126
LIVRE ARBÍTRIO

A palavra-chave a reter é «flexibilidade» (recordemos uma


vez mais os mortos-vivos inflexíveis e programados que
encontrámos antes). Na verdade, não se pode dizer a priori
em que medida o comportamento humano é flexível. Diga­
mos que a nossa biologia nos fornece os módulos. Mas, de­
pois, em que resultam esses módulos - de que modo são
programados de maneiras diferentes, consoante as diferen­
ças do meio ambiente - é outro aspecto do problema. Se
quisermos fazer uma comparação, a biologia fornece-nos as
estruturas e depois, quaisquer que estas sejam, aprendemos
a falar. Trazemos essas estruturas connosco; nenhuma outra
espécie animal as possui num grau remotamente análogo.
Mas a linguagem que aprendemos não é determinada pela
biologia, mas pelo meio ambiente, à medida que as crianças
imitam a linguagem das suas mães e dos seus familiares.
Do mesmo modo, a nossa consciência, a nossa capaci­
dade para pensar em alternativas, a avaliação que delas faze­
mos e as nossas rotinas comportamentais poderiam ter sido
altamente inflexíveis. Mas os dados disponíveis sugerem que
se verifica o inverso. As pessoas podem muito naturalmente
desenvolver-se e crescer interessando-se por variadíssimas
coisas. É extremamente difícil detectar padrões universais: é
a flexibilidade que domina. Os seres humanos tanto podem
fazer campos de morte como jardins.
Os teorizadores e gurus gostam de evocar um padrão:
todas as pessoas são egoístas; são influenciadas por interes­
ses de classe; odeiam os pais; podem ser condicionadas; os
homens são agressivos; as mulheres são afáveis; as pessoas
não conseguem ajudar-se a si próprias, e por aí fora. Mas,
neste caso, não se trata tanto de seguir os dados disponíveis
como de lhes impor uma interpretação. Como qualquer este­
reótipo, as interpretações deste género podem ser perigosas,
uma vez que as pessoas poderão ser levadas a adaptar-se­
-lhes, e, em resultado disso, tomam-se com frequência piores
do que seriam se o não tivessem feito. A tarefa da engenharia
conceptual é, neste caso, a de fornecer um esboço claro das
estruturas de pensamento alternativas - e há muitas.

127
4
O eu

Abordámos a consciência dos conteúdos das nossas men­


tes. E abordámos o agir e a liberdade - as nossas actividades
no mundo. Mas o que se passa com o eu em si, o «eu» que
eu sou? Vimos que, de entre os destroços da dúvida uni­
versal, Descartes só salvou o eu. E também vimos que
Lichtenberg questionou mesmo o seu direito a fazê-lo. Qual
deles tinha razão e como havemos de pensar sobre o eu?

Uma alma imortal?


Eis algumas das coisas que pensamos efectivamente so-
bre nós próprios:
■ Lista 1
Já fui muito pequeno.
Se escapar a acidentes e à pouca sorte, chegarei à velhice.
Quando chegar a velho, provavelmente deixarei de ter uma
boa parte das minhas memórias. Também mudarei na medida

129
PENSE

em que, por exemplo, irei querer fazer coisas diferentes. O meu


corpo mudará igualmente.

A matéria orgânica do meu corpo (excepto o meu cérebro)


muda aproximadamente em cada sete anos.

Se o meu corpo sofrer em resultado de um acidente, perdendo


algumas partes, por exemplo, terei de arcar com essa situação.

Eis a gor a a lgumas cois a s poss í veis p a r a pens a r sobre


nós próprios. Qu a n do digo que são poss í veis, apen a s quero
dizer que a s compreen demos, e não que a cre dit amos nel a s.
As possibili da des po dem surpreen der-nos por serem a lgo
estranhas, ma s isso pou co import a neste momento:
■ Lista 2
Eu poderia ter nascido noutra época e noutro lugar.

É possível que eu sobreviva à minha morte corporal e viva


outro tipo de vida enquanto espírito.

Eu poderia ter tido a sorte ou o azar de ter um corpo dife­


rente.

Eu poderia ter tido a sorte ou o azar de ter capacidades


mentais diferentes - uma mente diferente.

Eu poderia ter tido a sorte ou o azar de ter simultaneamente


um corpo e uma mente diferentes.

Eu poderia ser a reencarnação de uma personagem histó­


rica.

É possível que eu tenha de viver novamente, por exemplo


como cão, a não ser que me comporte bem.

De fa cto, há pesso a s que a cre dit a m, ou dizem que a cre di­


t a m, nest a s cois a s e, efe cti vamente, há religiões inteir a s que
sustent a m a lgum a s del a s. O cristi anismo sustent a que a se-

130
O EU

gunda desta lista é, de facto, verdadeira e o hinduísmo sus­


tenta a última. E, ainda que as recusemos todas, julgamos
saber o que todas elas querem dizer.
A diferença entre as duas listas anteriores é a seguinte: a
primeira lista é compatível com uma visão simples do que
sou. Sou um animal humano e grande. A minha biografia é
como a dos outros animais, começando por um parto natu­
ral, passando por mudanças naturais e terminando com uma
morte natural. Estou firmemente localizado e delimitado no
espaço e no tempo. Sobrevivo às várias mudanças naturais,
como a de envelhecer. Mas isto é tudo.
A segunda lista sugere que sou qualquer coisa muito mais
misteriosa, algo que só contingentemente está «preso a um
animal mortal». De acordo com as possibilidades da segunda
lista, sou uma coisa que pode mudar de aspecto e de forma,
de corpo e de mente, e que poderia existir mesmo sem um
corpo. A biografia do «eu» poderia ter a amplitude de sécu­
los e incluir intermináveis mudanças de personagem, como
um actor.
Como vimos nos dois primeiros capítulos, Descartes pen­
sava ter a percepção «clara e distinta» de que o eu era dis­
tinto do corpo. E as possibilidades que considerámos na se­
gunda lista parecem vir em favor dele. É como se houvesse
uma coisa - a minha alma, ou o eu, ou uma essência - que
se sujeitasse a uma série de mudanças (lista 1), mas que po­
deria sujeitar-se a acontecimentos ainda mais invulgares.
Mas, afinal, o que vem a ser o eu? Eis David Hume de novo:
Por mim, quando entro com maior intimidade naquilo a que
chamo o eu, tropeço sempre numa ou noutra percepção, de calor
ou de frio, de luz ou de sombra, de amor ou de ódio, de dor ou
de prazer. Nunca consigo atingir o eu sem uma percepção e nunca
consigo observar o que seja a não ser a percepção. Quando as
minhas percepções desaparecem por algum tempo, como acontece
num sono profundo, fico insensível ao eu e posso em verdade
dizer que não existo. E, se todas as minhas percepções desa­
parecessem devido à minha morte e não pudesse sequer pensar,

131
PENSE

nem sentir, nem ver, nem amar, nem odiar depois da dissolução
do meu corpo, estaria completamente aniquilado, sendo-me im­
possível conceber qualquer outro requisito para me tornar um
não ente34•

Hume sublinha que o eu é um tanto esquivo. É inobser­


vável. Se alguém «olhar para o interior da sua mente» para
tentar captá-la, falha, pois tudo o que encontra é aquilo a
que Hume chama «percepções particulares», ou experiências
e emoções. Também não vislumbra o «eu» que é o sujeito
destas experiências. Porém, todos pensamos conhecer-nos
com uma intimidade especial. Como vimos, Descartes pen­
sava que este conhecimento de si resistia até à dúvida «hiper­
bólica».
Esta preciosidade do eu pareceu ainda, a muitos filósofos,
ter outra propriedade assinalável: a simplicidade. O eu não
é composto. Eis um filósofo contemporâneo de Hume, o filó­
sofo escocês do «senso comum» Thomas Reid (1710-96):
Uma parte de uma pessoa é um absurdo. Quando um homem
perde os seus bens, a sua saúde ou a sua força, é ainda a mesma
pessoa e nada perdeu da sua personalidade. Se perder uma perna
ou um braço, continuará a ser a mesma pessoa que era antes.
O membro amputado não é uma parte da sua pessoa, pois, de
outro modo, esse membro teria direito a apartar-se do seu proprie­
tário e seria responsável por uma parte dos compromissos deste.
Teria direito a uma parte dos méritos e deméritos do seu proprie­
tário, o que é manifestamente absurdo. Uma pessoa é algo indi­
visível ... Os meus pensamentos, acções e sentimentos mudam em
cada momento; não têm uma existência contínua, mas sucessiva;
mas esse ser, ou eu, a quem eles pertencem é permanente e tem
a mesma relação com todos os pensamentos, acções e sentimentos
sucessivos a que chamo meus35•

34 Hume, Tratado, I. N. 6, p. 252.


35 Reid, Ensaios sobre as Faculdades Intelectuais do Homem, p. 202.

132
O EU

Este «eu» simples e contínuo é o que Hume lamentava


nunca conseguir encontrar. Reid dá um murro na mesa e
anuncia a sua existência.
A simplicidade da alma abre convenientemente a porta a
um argumento tradicional em favor da sua imortalidade.
Toda a mudança e degradação consistem na reunião ou se­
paração de coisas compostas. Logo, nada do que não for com­
posto pode mudar ou degradar-se. A alma não é composta.
Logo, a alma não pode mudar ou degradar-se.

Tal como se apresenta, a primeira premissa pode não pa­


recer muito aceitável. Pode carecer de alguma defesa. A ideia
é que, em cada mudança natural (física), podemos detectar
alguma coisa que é conservada. Se partirmos um biscoito, a
matéria do biscoito é conservada. Era costume pensar-se que
os átomos são aquilo que se mantém, de tal forma que as
alterações químicas seriam apenas um arranjo novo dos áto­
mos numa substância. Actualmente temos motivos para pen­
sar que devemos ir um pouco mais fundo: talvez o que se
conserva seja a energia, ou talvez seja o rearranjo das partí­
culas subatómicas o responsável pela mudança na matéria
composta. A «matéria» real (partículas fundamentais, ener­
gia) perdura.
Se pudermos defender realmente que a primeira premissa
é uma verdade a priori e pensarmos que Reid nos deu boas
bases para a segunda premissa (a alma não é composta), o
argumento parece bastante bom. É evidente que é também
um argumento a favor da existência do eu antes do meu
nascimento natural, o que pode ser um pouco desencora­
jador.
Poderão estes pensamentos ser ilusões? Deveremos real­
mente aceitar a ideia de que a lista 2 nos apresenta possibi­
lidades? É indiferente, de momento, saber se tais possibilida­
des efectivamente se verificam, como muitos acreditam. Em
vez disso, interroguemo-nos se elas são sequer coerentes.

133
PENSE

Carvalhos e navios
É bom reflectir sobre quão estranhas são algu mas d as
convicções d a segu nd a lista. Elas retiram o eu d e tudo o que
parece d ar- lhe uma id entid ad e, sej a o corpo, a história, a
memória ou até a mente. Será que isto faz sentid o? Para o
esclarecermos, afastemos a atenção d e nós próprios e pense­
mos sobre a id entid ad e d e outras coisas. Pod eremos regres­
sar a J ohn L ocke, que fez uma observação interessante sobre
os vegetais ou as plantas:

Sendo isso então uma planta que tem uma tal organização de
partes num corpo coerente partilhando uma vida comum, continuará
a ser a mesma planta enquanto partilhar a mesma vida, mesmo que
essa vida seja comunicada a novas partículas de matéria, vitalmente
unidas na planta viva, numa organização contínua análoga que se
conforme a esse tipo de plantas36•

L ocke realça a id eia d e pod ermos, por ex emplo, ter o


mesmo carval ho num d ad o períod o d e tempo, embora os
«átomos» , ou células, ou moléculas constituintes mud em.
O requisito é o d e que «partilhe m a mesma vid a» ou, d ito d e
outro mod o, o que pod eríamos conceber como uma u nid ad e
organizacional ou funcional. Não importa que os ped aços
sej am os mesmos d esd e que esta u nid ad e funcional se man­
tenha. E, d esd e que assim sej a, é correcto falar d o mesmo
carval ho. Assim, temos o mesmo carval ho quer sej a uma
árvore nova, quer uma árvore velha, quer lhe tenham caíd o
alguns ramos, e assim por d iante.
L ocke pod e usar esta id eia para ex plicar por que razão
id entificamos o mesmo ser humano apesar d as mud anças
normai s d a vid a. O «mesmo homem ou mulher» é como «o
mesmo carval ho» ou «o mesmo macaco». O crescimento e a
mud ança são acomod ad os enquanto houver continuid ad e

36 Locke, Ensaio, II. XXVII. 4, p. 331.

134
O EU

funcional, ou vida organizada. Enquanto tal acontecer, tudo


bem. Locke encontrou uma boa explicação para o que nos
permite reidentificar o mesmo ser humano (enquanto grande
mamífero - aquilo que vemos ao espelho) ou a mesma
planta ao longo do tempo. Por que razão deverão as coisas
ser diferentes quando nos voltamos para o eu?
Se olharmos para a segunda lista de coisas com que come­
cei este capítulo, veremos que, se confinarmos a atenção às
plantas e animais, nenhum daqueles pensamentos tem razão
de ser. Nenhum fará sentido. No que respeita a um carvalho
não pensamos «Aquela árvore poderia ter sido um ácer», a
não ser que com isto queiramos dizer que poderíamos ter
plantado uma árvore diferente, um ácer, onde efectivamente
plantámos um carvalho. Mas, nesse caso, teria sido uma ár­
vore diferente. Não seria aquele mesmo carvalho disfarçado,
por assim dizer, de ácer. Analogamente, não imaginamos
árvores que sobrevivam a uma morte orgânica de tal maneira
que essas mesmas árvores pudessem renascer como narcisos
amarelos. Assim, se não há qualquer diferença entre ser «o
mesmo eu» e ser «o mesmo ser humano», e se estabelecemos
a identidade dos seres humanos da mesma maneira que esta­
belecemos a identidade dos animais, parece que nenhum
dos pensamentos da lista 2 deverá fazer qualquer sentido.
Não é necessário que o mesmo carvalho, em dois momen­
tos diferentes, tenha o mesmo agregado de moléculas idên­
ticas. E o mesmo é verdade até das coisas inorgânicas. Con­
sideremos a nuvem que se desloca no pico do Evereste. Para
o montanhista, é a mesma nuvem que se afasta do pico du­
rante algumas horas ou dias. Mas ela muda a sua composi­
ção segundo a segundo, posto que o vento desfaz as molé­
culas de água contra o pico a 100 quilómetros por hora. É a
mesma nuvem durante todo esse tempo. Pelo menos até
certo ponto, toleramos diferenças na constituição. Pensamos
desta maneira quando consideramos colectivos humanos,
como clubes e equipas. Apoiamos «a mesma equipa» ano
após ano, se bem que os seus jogadores mudem (e, possível-

135
PENSE

mente, também a direcção e o seu apoio). A gloriosa história


do colecti vo não seria tão gloriosa assim se só pudéssemos
identificar o seu passado com o momento a partir do qual os
seus membros presentes o integram. Também pensamos
assim quando o que est á em causa são coisas inanimadas
com determinada função: ainda se trata do mesmo compu­
tador, se bem que lhe tenha aumentado a memória, mudado
de monitor, actualizado o sistema e assim por diante.
Somos muitas vezes descuidados sobre a questão de sa­
ber que quantidades de mudança estamos dispostos a tolerar
sem deixar de considerar que algo é ainda a mesma «coisa»;
repare - se na piada do machado irlandês que pertence à famí­
lia h á várias gerações, apesar de ter j á tido três cabeças no vas
e cinco no vos cabos. Por vezes ficamos confundidos: um
exemplo disto é o «barco de Teseu». Teseu sai para uma longa
viagem ao longo da qual algumas partes do seu barco preci­
sam de ser substituídas. De facto, no fim da viagemj á deitou
borda fora velas, mastros, cordas e tabicas usadas, substi­
tuindo tudo isso. Ser á que ele regressa no mesmo barco?
Pro va velmente diríamos que sim. Mas suponhamos que al­
guém que seja industrioso lhe vai no encalço, apanhando
todas as peças substituídas e reconstruindo o barco. Pode
este indi víduo dizer que est á na posse do barco original?
Mas certamente que não podemos ter dois barcos diferentes,
cada um dos quais idêntico ao original - ou podemos?

Almas e bolas elásticas


Para que os pensamentos da lista 2 tenham sentido, tal vez
pudéssemos in vocar uma «substância imaterial» - a miste­
riosa e simples alma do Eu. Poderia ainda parecer que estes
pensamentos são suficientemente sólidos para nos fornecerem
um tipo qualquer de argumento a fa vor do dualismo
cartesiano, sendo apenas nesse quadro que teriam sentido. Mas
eis que Locke faz, então, uma jogada interessante. Vunos que

136
O EU

as plantas e os animais sobrevivem à mudança da substância


material. Mas então por que razão não podem as pessoas (eu
e o leitor) sobreviver à mudança da substância da alma?
Mas a questão é: pode a mesma substância pensante, ao mudar,
ser a mesma pessoa, ou podemos, mudando ela, ter pessoas dife­
rentes?
E a isto respondo: primeiro, que isto não pode ser de modo
algum um problema para quem atribui ao pensamento uma cons­
tituição material, animal, isenta de substância imaterial. Porque,
quer a sua suposição seja verdadeira quer não, é claro que con­
cebem uma identidade pessoal preservada em algo diferente da
identidade da substância; porque a identidade animal é preser­
vada na identidade da vida, e não na da substância. E, por con­
seguinte, aqueles que situam o pensamento apenas na substância
imaterial devem mostrar por que razão a identidade pessoal não
pode ser preservada, em caso de mudança, nas substâncias
imateriais, ou em várias substâncias imateriais, tal como a iden­
tidade animal é preservada apesar da mudança das substâncias
materiais, ou pluralidade de corpos particulares37•

A maravilhosa jogada de Locke é mostrar que, mesmo que


estejamos preocupados com a sobrevivência pessoal ao longo
do tempo e da mudança, invocar as «almas de substância
imaterial» não ajuda. E porque não? Porque, da mesma ma­
neira que falamos das plantas ao longo do tempo independen­
temente da mudança dos elementos materiais, falamos das
pessoas ao longo do tempo sem qualquer referência a «subs­
tâncias imateriais». Kant apresenta um bom exemplo disto. Na
seguinte citação da sua obra-prima, a Crítica da Razão Pura, as
«representações» são coisas como experiências e pensamentos
- aquilo que Descartes teria englobado com o termo cogita­
tiones -que são o conteúdo mental:
Uma bola elástica que bata contra outra, numa linha recta,
comunica à última todo o seu movimento e, portanto, todo o seu

37
Locke, Ensaio, II. XXVII. 12, p. 337.

137
PENSE

estado (isto é, se só tomarmos em consideração as posiçoes no


espaço). Se, por analogia com estes corpos, postularmos subs­
tâncias tais que uma comunique representações à outra, em con­
junto com a consciência delas, poderemos conceber uma série
de substâncias em que a primeira transmite o seu estado e a
respectiva consciência à segunda, esta transmite o seu estado,
mais o da primeira, à terceira, e esta, por sua vez, os estados de
todas as substâncias anteriores, em conjunto com o seu, bem como
a sua consciência e a das anteriores, a outra. A última substân­
cia teria consciência dos estados de todas as substâncias pre­
viamente modificadas como se fossem os seus estados, porque
teriam sido transferidos para si em conjunto com a consciência de
todos eles38•

O problema é que nada sabemos acerca de «substâncias


imateriais». Talvez a nossa substância imaterial seja substi­
tuída todas as tardes, como a mudança de uma drive de
disquetes num computador, que preserva todo o software e os
ficheiros.
Tudo isto é suficiente para que levantemos sérias dúvidas
ao argumento da imortalidade que considerámos, como Kant
mostra:
Pois somos incapazes de determinar, pela nossa consciência, se
somos permanentes ou não, como almas. Visto que consideramos
pertencer à nossa identidade pessoal apenas aquilo de que temos
consciência, devemos necessariamente julgar que somos apenas
um e o mesmo ao longo de todo o tempo em que temos consciên­
cia. No entanto, não podemos pretender que este juízo seja válido
do ponto de vista de um observador exterior. Posto que a única
imagem permanente que temos da alma é a representação «eu»
que acompanha e liga todas as imagens, somos incapazes de
demonstrar que este «eu», um mero pensamento, não esteja no
mesmo estado de fluxo em que estão outros pensamentos que, por
meio dele, estão ligados entre si.

38
Kant, Critica da Razão Pura, A 364, p. 342.

138
O EU

P odemos r esumir o aspect o negati vo dizendo qu e na da


nas noss as medit açõ es a c erc a do « eu» nos permit epens ar em
t ermos de uma su bstânci a int ern a perma nent e c apaz de r e­
sistir até às mais si gnific ati vas mu da nç as e possi bili da des.
M as t a nt o L ock e c omo K a nt t êm um a spect o mais positi vo a
apr es ent a r.

O militar corajoso
L ock e afirma qu e é « a mesma c onsci ênci a qu e faz o h o­
mem s er el e mesmopar a si mesmo» - e nem o suj eit o nem
t erc eir os qu e o obs er vem estã opr eocupa dos em s a ber s e t a l
c onsci ênci a é «tr a nsport a da » por su bstânci as est áveis, ou por
uma suc essã o de su bstânci as difer ent es. O própri o L ock e
apr ofunda a ênfa s e na c onsci ênci a afirma ndo qu e uma pes­
s oa A, num da do moment o, é a mesma pess oa qu e a B, num
moment o a nt eri or, na medi da em qu e A t enh a c onsci ênci a
das experi ênci as de B. P or outr as pal a vr a s, A t er á de l em­
br a r-s e de t er pens a do o qu e B pens ou e de t er perc ep­
ci ona do, s enti do e a gi do c omo B perc epci onou, s entiu e
a giu.
A su gestã o t em al gumas c ons equ ênci a s qu e nos podem
a gr a dar. P or ex empl o, elimina a possi bili da de de eu s er
Cl eópatr a r eenc arn a da , vist o qu e nã o t enh o c onsci ênci a de
t er feit o ou s enti do c ois a a l guma qu e Cl eópatr a t enh a feit o
ou s enti do. O des apa r eciment o da memóri a destrói a i denti­
da depess oa l. Ana l ogament e, poss o t er a c ert eza de qu e nã o
t er ei outr a vi da c omo cã o, pois nenhum cã opoder á r ec or da r
t er feit o as c ois as qu e eu fiz; s e pu dess e r ec or dá-l as (pens e­
mos na c ompl exi da de neur ona l nec ess ári a !), nã o s eri a um
cã o, mas um s er human o em forma c a nina . Só qu e os cã es
nã o sã o s er es huma nos em forma c a nina .
P or outr o l a do, a su gestã o t em outr a s c ons equ ênci a s de
qu e nã o gost a r emos t a nt o. Implic a , por ex empl o, qu e eu nã o
poss o s obr evi ver a uma amnési a t ot al, post o qu e, s ej a qu a l

139
PENSE

for a pessoa que permaneça após um tal acontecimento, não


pode ser eu. Mas também há problemas com uma amnésia
parcial. Suponhamos que cometo um crime, mas que, devido
a um calamitoso fluxo de sangue ou adrenalina, fico sem
memória do momento em questão. Parece seguir-se da teoria
de Locke que eu não sou a pessoa que cometeu o crime. Sou
o mesmo ser humano, mas não a mesma pessoa. Parece que
um ser humano é habitado por múltiplas personalidades à
medida que as memórias vão e vêm.
Thomas Reid apresentou uma versão deste problema, «a
objecção do militar corajoso»:
Suponhamos que um militar corajoso foi punido na escola por
ter roubado um pomar, que na sua primeira campanha derrotou
o inimigo e que foi promovido a general já em idade avançada;
suponhamos também, o que pode ser possível, que, quando derro­
tou o inimigo, tinha consciência de ter sido punido na escola e
que, quando foi promovido a general, tinha consciência de ter
derrotado o inimigo, embora tenha perdido completamente a cons­
ciência da sua punição em criança. Supondo estas coisas, segue­
- se da doutrina do Sr. Locke que quem foi punido na escola é a
mesma pessoa que derrotou o inimigo e que quem derrotou o
inimigo é a mesma pessoa que foi promovida a general. Donde se
segue, caso haja alguma verdade na lógica, que o general é a
mesma pessoa que foi castigada na escola. Mas a consciência do
general já não é tão boa ao ponto de lhe permitir lembrar-se da
sua punição; consequentemente, de acordo com a doutrina do
Sr. Locke, ele não é a pessoa que foi castigada. Por conseguinte,
o general é e não é, ao mesmo tempo, a mesma pessoa que foi
punida na escola39•

De facto, o próprio Locke tinha perfeita consciência deste


problema. E a sua resposta é simples:
Mas, ainda que se faça tal objecção, suponhamos que eu perco
totalmente a memória de algumas partes da minha vida ao ponto
39
Reid, Ensaios sobre as Faculdades Intelectuais do Homem, p. 213.

140
O EU

de ser impossível recuperá-las e, talvez, de não poder voltar a ter


consciência delas; não serei eu a mesma pessoa que praticou
aquelas acções e teve aqueles pensamentos de que tive, em tem­
pos, consciência, ainda que os tenha agora esquecido ? Ao que
respondo que deveremos ter em consideração aquilo a que a
palavra eu se aplica e que, neste caso, é apenas ao homem.
E, presumindo que o mesmo homem é a mesma pessoa, é fácil
supor que eu refere aqui a mesma pessoa. Mas, se for possível
que o mesmo homem tenha consciências distintas e incomuni­
cáveis em momentos diferentes, sem dúvida que o mesmo ho­
mem pode, em momentos diferentes, constituir pessoas dife­
rentes40 .

Uma maneira de reconstruir o argumento de Locke é a


seguinte: Ou «a mesma pessoa» se identifica com «o mesmo
ser humano» ou não. Se se identifica, todos concordaremos
que estamos em presença do mesmo ser humano da infância
à morte, independentemente das respectivas capacidades
mentais. Nesse caso, nenhum dos pensamentos presentes na
lista 2 faz sentido. A razão para defender que «a mesma
pessoa» não se identifica com «o mesmo ser humano», para
Locke, é a de concedermos que, se um homem tem consciên­
cias distintas e incomunicáveis, então temos pessoas diferen­
tes que habitam, sucessivamente, o mesmo corpo (também
poderíamos pensar nos problemas mentais da personalidade
múltipla). Mas, nesse caso, é surpreendente, embora correcto,
dizer-se que o general senil não é o rapazinho traquina.
A razão de Locke em favor da sua perspectiva é, de certa
maneira, aquilo que desagradava a Reid. Locke pensava que
precisamos, antes de mais, de uma noção de «a mesma pes­
soa» ao longo do tempo, de modo a justificar as atribuições
de responsabilidade. Pensava que a identidade pessoal era
uma noção «forense», ou seja, uma noção cujo lugar próprio
é nos tribunais. Podemos ver o ponto fundamental da sua
ideia ao considerar casos em que um vacilante octogenário é

40 Locke, Ensaio, II. xxvn. 20, p. 342.

141
PENSE

subi tamente acusad o d e cri mes, di gamos, d a guerra d e há


sessenta anos, quand o era um i ngénuo recruta ad olescente.
Se rá i sto j usto? Suponhamos que ele não se lembra, si ncera­
mente, d e quai squer d os seus cri mes. E ntão, para ele, é como
se estiv esse a ser cond enad o por actos realiz ad os por uma
pessoa completamente dif erente. E i sto parece i nj usto: se
uma pessoa não tem consci ênci a, então não pod e «arrepen­
d er- se» d os seus actos porque eles não faz em parte, pura e
si mplesmente, d a sua autoconsci ênci a. Não pod e ter a cons­
ci ênci a pesad a.
L ocke sabi a, é claro, que não geri mos os nossos tri bunai s
assi m. A am nési a não é, afi nal d e contas, uma d esculpa v á­
lid a. Mas L ocke pensav a que i sto apenas ref lecte as nossas
suspei tas, j á que é d emasi ad o f áci l alegar amnési a. Aos olhos
d e Deus, a v erd ad ei ra amnésia é realmente uma d esculpa
v álid a. Deus tratari a o v erd ad ei ro amnési co octogenári o
como uma pessoa diferente d o anti go cri mi noso d e guerra.
I sto pod e parecer atraente, mas não será assi m tão bom no
caso d o cri me cometid o por causa d e um súbi to af lux o d e
sangue à cabeça, si tuação em que pod emos diz er que não f oi
aqui nem ali que o agente se esqueceu d o cri me. Pod emos
querer di sti ngui r graus d e perd a d e memóri a.
E quanto à alegação d e R eid d e que a teori a d e L ocke
contradiz a própri a lógi ca, i mpli cand o uma contradi ção?
C hama- se a essa contradição «falha d e transi tivid ad e» d a
id entid ad e. A transi tivid ad e é a lei lógi ca segund o a qual se
A = B e B = C , então A = C. Neste caso, aluno = ofi ci al e
ofici al = general, mas para L ocke não é v erd ad e que aluno =
= general. É a i sto que R eid chama uma contradi ção.
I sto parece sem d úvid a estranho, mas talv ez a estranhez a
prov enha d e se abstrai r a «id entid ad e» quand o aqui lo d e
que estamos realmente a falar é d e «é a mesma pessoa que» .
C onsid ere-se nov amente qualquer coi sa composta, como
uma bi ci cleta ou um barco. Suponhamos que a id ad e d os
barcos i mporta, por ex emplo, para a i ntegração num escalão
fiscal. Talv ez os barcos anti gos, com mai s d e ci nquenta anos,

142
O EU

sej am meno s o ner ado s no s i mpo sto s. Q uando é então um


barco u ma anti gui dade genuín a? (Neste mo mento po demo s
i magi nar Teseu e o i ndustrio so que r ecolh eu as peças ori gi ­
nai s tentando , ambo s, r ec lamar a i senção fi sc al.) Se estes
per si stentes i ndustrio so s se to m assem co mu ns, po der íamo s
ter de aprovar uma lei estabelec endo qual o navio ori gi nal.
U ma lei po deri a di zer algo co mo o seguinte:

Os barcos têm de se registar todos os anos e, para que um


dado barco seja o mesmo que o do ano anterior, deve conter
pelo menos 55 % do material que compunha o barco no dia em
que foi registado no ano anterior.

Po demo s então repro duzir a estr utura ( do ar gumento) de


R ei d: po demo s faci lmente veri fic ar que, so b esta lei , Argos
po der á ser o mesmo barco que Argos e Argos o mesmo barco
qu e Argosy mas Argos não ser o mesmo barco que Argos3 •
Mas a lei em si par ec e bastante sensata, um po uco co mo as
lei s que especificam o que algo tem de co nter par a co nsi de­
r ar mo s que é mantei ga o u par a co nsi derar mo s que foi ali ­
mentado a c er eai s. E sem dúvi da que uma lei sensata não
po de dar ori gem a uma contradição - o u po de?
Bo m, o s barco s são coi sas co mpo stas, fei tas de par tes, e
po de ser i sso que está na origem do pro blema. Assi m, talvez
o argumento de R ei d de que não po demo s ter A = B, B = C ,
mas não A = C , só faça senti do se c ada A, B, C for si mples,
e não co mpo sto. Ora, co mo vi mo s, R ei d sustentava que a
alma é simples, mas Loc ke não , por tanto talvez o argumento
não sej a aplic ável co ntra este últi mo .

O eu como feixe
Vu no s Hu me sublinhar que, quando refl ec ti mo s sob re o
co nteúdo da no ssa própri a mente, desco bri mo s recordaçõe s
i ndivi duai s, pensamento s, paixõe s, exp eri ênci as, mas nenhum

143
PENSE

eu. Hume pensava que, se não encontrássemos (e não pudésse­


mos encontrar) qualquer coisa na experiência, então não tínha­
mos o direito de falar disso. A nossa mente não podia abarcar
ou mesmo «tocar» tal coisa. Assim, de forma consistente, de­
fendeu que o eu não é mais do que um agregado das suas
«percepções» ou experiências, juntamente com quaisquer liga­
ções que existam entre elas. Há conteúdo, mas nada para o
conter. A isto chama-se por vezes uma teoria da «não proprie­
dade» do eu, ou teoria do eu como feixe. Para Hume, como
para Lichtenberg no capítulo 1, «há pensamentos». Mas não há
um proprietário, detentor ou «eu» que pensa.
O problema desta ideia é exigir que tomemos compreen­
sível a ideia de uma experiência sem proprietário. Mas
objecta-se que isto é incoerente. Esta ideia trata as experiên­
cias como «objectos» ou coisas autónomas: o tipo de coisas
que poderiam flutuar por aí, sem dono, à espera de serem
unidas num feixe com outras, como ramos caídos numa flo­
resta. Mas, prossegue a objecção, isto é um erro, porque as
experiências são parasitárias, ou adjectivas, das pessoas que as
têm. O que quer isto dizer?
Pensemos numa amolgadela de um carro. Podemos falar de
amolgadelas: esta é pior do que aquela, ou a sua reparação será
mais cara do que a da amolgadela que sofremos o ano passado.
Mas é logicamente impossível que pudesse existir uma amol­
gadela «sem proprietário», uma amolgadela sem uma super­
fície que é amolgada. As amolgadelas correspondem, por
assim dizer, aos adjectivos. No princípio há uma superfície, a
superfície muda ao tomar-se amolgada, e então nós abstraí­
mos, usamos um substantivo e falamos da amolgadela. O subs­
tantivo «amolgadela» resulta logicamente do adjectivo «amol­
gado». Analogamente, um sorriso resulta de um rosto que sorri,
que é a piada por detrás do gato de Cheshire, de Lewis Carroll,
que desapareceu deixando apenas o seu sorriso.
Portanto, a objecção a Hume é que as «experiências» são
igualmente parasitárias em relação às pessoas. Não podemos
imaginar a dor, por exemplo, como uma «coisa» vogando por

144
O EU

aí à espera de ser apanhada num feixe de outras experiências,


de modo a ser acidental que essa mesma dor se prenda a um
ou outro feixe. No princípio há a pessoa e o aparecimento de
uma dor é apenas o acontecimento em que um pedaço da
pessoa começa a doer, assim como o aparecimento de uma
amolgadela é um pedaço de uma superfície que fica amolgada.
Kant defende esta ideia ao falar do «eu penso » que acom­
panha todas as minhas representações. Por outras palavras, as
minhas experiências vêm assinaladas como «minhas». Não me
familiarizo primeiro com a experiência, procuro depois o pro­
prietário, e só então anuncio que a experiência é uma das
minhas (desde que, contra Hume, esta última busca seja bem
sucedida). Pelo contrário, quando sinto uma dor, isso é em si
e por si ter consciência de que sou eu que tenho uma dor.
Mas como é isto possível se Hume tiver razão ao dizer
que nós nunca temos consciência de um «eu » ? Está muito
bem comparar dores com amolgadelas e é certamente ver­
dade que, quando tenho consciência de uma amolgadela, é
só porque tenho consciência de uma superfície amolgada.
Mas pelo menos temos consciência de superfícies, amolgadas
ou não. Ao passo que, se Hume tiver razão, parece que não
temos consciência da nossa alma ou eu.
Talvez a única maneira de avançar seja negar que o «eu» é
o tipo de coisa de que podemos ter consciência. Wittgenstein
fala de casos em que nos descrevemos como sujeitos de expe­
riência: «Estou a ouvir a chuva» ou «Tenho uma dor de den­
tes» . E sublinha que neste tipo de casos «não se põe a questão
de reconhecer uma pessoa ». «É tão impossível que, ao fazer a
afirmação 'Tenho uma dor de dentes', eu possa confundir outra
pessoa comigo como é impossível gemer de dor por engano,
tendo confundido alguém comigo mesmo. » Não posso identi­
ficar erradamente o sujeito da dor como se fosse eu. Wittgenstein
pensa que isto dá origem a uma ilusão:

Sentimos então que, nos casos em que a palavra «eu» é usada


como sujeito, não a usamos por reconhecermos uma determinada

145
PENSE

pessoa pelas suas características corpóreas; e isto cria a ilusão de


que usamos esta palavra para referir algo incorpóreo, que, no
entanto, está situado no nosso corpo. De facto, isto parece ser o
nosso verdadeiro ego, aquele de que se disse «Cogito ergo sum».
«Então não há uma mente, mas apenas um corpo? » Resposta: a
palavra «mente» tem significado, isto é, tem um uso na nossa
linguagem; mas dizer isto ainda não diz que tipo de uso fazemos
dela41 •

De vemos tentar pensar na auto cons ci ência de outro


mo do. De que mo do?

O eu como princípio organizador


Imaginemos o problema em termos de intelig ência artifi­
cial. Imaginemos um robot equipado com uma câmara de
ví deo e capaz de se mo ver numa sala na qual estão dispostos
vários obje ctos. Suponhamos que o nosso plano é conseguir
que o robot faça um relatório des cre vendo a disposição dos
obje ctos na sala. Que género de coisa teríamos de fazer? Se
o robot dirigir a sua câmara para um obje cto, os pixeis dispa­
ram. Tem o tipo de «fulgor interior» que as pessoas por vezes
ligam à cons ci ência. Mas, se isso é tu do o que tem, o robot
tem apenas o que Kant chamou «rapsó dia de per cepções»,
ou o que o pioneiro psi cólogo ameri cano William James
(1842-1910) chamou depois uma «flores cente e barulhenta
confusão». Por outras palavras, o robot ainda tem de organi­
zar os seus dados de mo do a po der interpretar o cenário.
Suponha que o écran mostra uma forma re donda. Estar á ele
perto de um pequeno obje cto re dondo, ou longe de um gran­
de obje cto re dondo? Estar á a olhar de viés para um obje cto
elípti co? Para solu cionar estes problemas o robot po deria
mo ver-se e obter uma no va imagem. Mas tem então de «sin-

41 Wittgenstein, O Livro Azul, p. 69.

146
O EU

tetizar» as várias imagens obtidas, de modo a construir uma


representação tridimensional da sala. Que capacidades esta­
riam envolvidas nesta síntese? Como irá unificar as diversas
imagens obtidas em diferentes momentos?
Os ingredientes mínimos parecem ser os seguintes: pre­
cisa de um modo de determinar se ele próprio está em mo­
vimento. Em particular, precisa de uma capacidade de dis­
tinguir se está em movimento e a obter novas perspectivas
de objectos imóveis, ou se está parado e os objectos à sua
volta estão em movimento. Para fazer isto precisa de se lem­
brar de como o cenário era, de modo a compará-lo com o que
agora é. Precisa de ser capaz de representar a ordem das
diferentes imagens e depois de um modo de integrar as cenas
do passado e a cena presente. Por outras palavras, para de­
terminar a posição dos objectos no espaço tem de determinar
o seu próprio ponto de vista e o tempo decorrido durante o qual
pode registar os seus próprios movimentos.
Isto sugere que um mínimo de autoconsciência é um requi­
sito estrutural em qualquer tipo de interpretação da experiên­
cia. Se o programador puder resolver este problema relativa­
mente ao robot, não poderá fazê-lo fornecendo-lhe apenas outro
elemento no écran (como se a câmara apanhasse sempre um
vislumbre de uma das suas rodas, na parte de baixo do écran).
Isso seria apenas mais «informação recebida». Não faria parte
da programação necessária para transformar a informação re­
cebida numa descrição da sala e do lugar do robot nela.
De facto, o robot nunca precisa de obter qualquer vislum­
bre de si mesmo. A câmara pode estar rigidamente apontada
para a cena na sua frente. É por isso que Hume nunca estaria
mais perto de se apanhar a si mesmo ainda que, de cada vez
que voltasse a atenção para dentro, captasse um elemento
contínuo de experiência, como um zumbido de fundo. Do
que o robot realmente precisa em vez disso é de uma maneira
de registar a sua própria deslocação ao longo do espaço e a
ordem temporal das imagens que recebe. A solução terá de
ter um ponto de vista «egocêntrico» ou, por outras palavras,

147
PENSE

terá d e apresentar o espaço centrado em «si» . Dado q ue o


robot pod e ago ra interpretar uma cena d izendo q ue tem uma
mesa a do is metro s d e d istâ ncia, pod e também d izer «a mesa
está a do is metro s d e d istâ ncia d e mim» - tod avia, o robot
não precisa d e ter q ualq uer co ntacto co m um ego interno
nem co m uma alma imo rtal.
Se a sala fo r suficientemente caótica, o pro blema pod e
to m ar-se inso lúvel. Po r ex emplo , se co lo carmo s cruelmente
o robot num ambiente no qual o s o bj ecto s and em num vai­
vém ao acaso o u co m surpreend ente rapid ez, então ele esbar­
rará num pro blema inso lúvel: terá apenas pixeis a d isparar ao
acaso , mas tão po uca co ntinuid ad e d e um mo mento para o
seguinte q ue não terá o nd e se agarrar.
Po rtanto , pensar em termo s d e um «eu» parece ago ra um
req uisito fo rmal o u estrutural para interpretar uma ex periên­
cia do modo co mo o fazemo s - co mo ex periência d e um
mundo trid imensio nal d e o bjecto s co m co ntinuid ad e entre
o s q uais no s mo vemo s. O «eu» é o po nto d e vista a partir do
q ual a interpretação co meça. Não é mais uma co isa d ad a na
ex periência, po is nad a d ado na ex periência pod eria reso lver
o pro blema fo rmal para o q ual um «eu» é necessá rio. Mas é
sempre necessá rio um po nto d e vista: representar uma cena
para si mesmo é, d e uma fo rma o u o utra, representar-se a si
mesmo tendo ex periência d ela.

Delírios da imaginação
Devemo s a linha d e argumentação q ue acabei d e apresen­
tar a I mmanuel Kant42• É uma d as grand es jo gad as d a f ilo so ­
f ia, co m implicaçõ es em muitíssimas á reas, a algumas d as
q uais vo ltaremo s mais tard e. Mas, para o s no sso s o bjectivo s,

42 As passagens centrais da Crítica da Razão Pura encontram-se na secção


intitulada «Dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento»,
B 130-B 170.

148
O EU

o seu interesse neste momento é sugerir um diagnóstico dos


pensamentos da lista 2 do início deste capítulo.
Estes pensamentos ocorrem porque pareço capaz de me
imaginar no lugar de outros, inclusivamente no lugar de
personagens históricas, cães, ou anjos. E então penso que
tenho de transportar o misterioso eu, a minha própria alma,
para a cena imaginada. E a alma toma-se uma coisa muito
estranha, porque parte da minha imaginação pode ser ima­
ginar-me num tempo diferente, com um corpo diferente, ou
com diferentes propriedades mentais, com diferentes expe­
riências e aí por diante. Por outras palavras, abstraio de tudo
quanto me dá a minha identidade como ser humano, mas
continuo a supor que alguma coisa, a minha essência, per­
manece. Daí a «distinção real» de Descartes.
Mas suponhamos, em vez disso, que nada transporto na
minha imaginação. Tudo o que faço é representar para mim
mesmo como seria ver o mundo de um ponto de vista diferente,
num tempo diferente, ou qualquer outra coisa. Se não há
qualquer essência de Mim transportada para as diferentes
cenas, então o facto de as poder imaginar não mostra de
modo algum que «eu» possa ter tido experiência delas, ou
que possa sobreviver para ter experiência delas. A título
ilustrativo, consideremos o primeiro pensamento da lista: eu
poderia sobreviver à morte do corpo. Que actos de imagina­
ção estão por detrás disto? Bem, talvez eu possa imaginar­
-me a olhar para o funeral, com o meu caixão e a família de
luto. Talvez eu esteja emboscado ao fundo da igreja. Talvez
eu esteja zangado por a congregação não parecer assim tão
entristecida. Talvez gostasse de lhes dizer que afinal de con­
tas não é assim tão mau. Talvez, estando morto, tenha visão
de raios X, pelo que deito uma olhadela para o meu corpo
jazendo no interior. Tudo muito triste. Como pareço velho.
Mas esperem! Aqui estão os portões do Céu e ali está a minha
avó à espera para me saudar ...
Ao imaginar tudo isto, ensaio para mim mesmo a expe­
riência de olhar para o meu caixão e assim por diante. E isto

149
PENSE

posso certamente fazer: posso compreender, afinal de contas,


como seria ver isso (não é diferente de ver outros caixões).
Posso compreender o que seria espreitar para o seu inte­
rior -um espectáculo arrepiante. Mas, e isto é o ponto
crucial, estes exercícios do entendimento não transportam
um «eu» que está a espreitar enquanto o ser humano Simon
Blackbum está morto. Sou eu, aqui e agora, que estou a
imaginar, mas não há eu nenhum que esteja a ser imaginado
a espreitar. O único vestígio de mim no cenário é o cadáver.
O ponto fundamental pode colocar-se assim: a linha de
argumentação de Kant sugere que há uma equivalência en­
tre «posso imaginar ver X» e «posso imaginar-me a ver X».
Mas, como isto é uma equivalência puramente formal, não
há qualquer eu substancial, qualquer alma de Mim envol­
vida em qualquer dos dois actos de imaginação. Assim, é um
erro tomar tais actos de imaginação como se fundamentas­
sem qualquer «distinção real» entre o leitor como sujeito,
como eu ou alma, e o animal que de facto é. Portanto, ima­
ginar X não apoia a possibilidade de que a sua biografia
possa ultrapassar a biografia desse animal, simplesmente
porque X é algo que o animal não irá ver.
Analogamente, suponhamos que faço o que poderia cha­
mar «imaginar-me na pele de Gengiscão». Imagino cavalei­
ros e campos de batalha. Sou pequeno, habilidoso e um cava­
leiro maravilhoso. Meu Deus, as estepes são geladas. Toda
esta política me deixa por vezes abatido. «Outra rodada de
leite de burra fermentado», peço. Eia! Eu devia falar mongol,
e não português.
Neste caso deveria ser mais óbvio que não há qualquer
alma de Mim transportada para a figura de Gengis. De facto,
na medida em que há alguma coisa de mim que resta na
imaginação, tal como o lapso de falar português, a imagina­
ção é um fracasso. É exactamente como um actor que inter­
preta uma figura histórica, mas lhe empresta anacronis­
mos -Camões olha para o seu relógio ou fala acerca do que
está em exibição no cinema.

150
O EU

O que eu realmente faço é visualizar campos de batalha,


as estepes geladas e assim por diante, como se os estivesse
a ver e a fazer coisas de guerreiros, como estar no comando
e saltar para cima de cavalos. Poderia ser mais ou menos
bem sucedido a fazer isto: algumas pessoas são melhores a
imaginar o mundo de diferentes pontos de vista, tal como
algumas pessoas são melhores actores do que outras. Se o
meu Gengiscão ainda fala português, não consegui ir muito
longe.
Será que isto prova que todos os pensamentos da lista
2 são ilusões? Retira o apoio que os simples actos de ima­
ginação lhes fornecem. Se têm qualquer outro funda­
mento, ainda bem. Mas é saudável reflectir no quanto a
lista depende de actos de imaginação na primeira pessoa.
Se eu tentar supor que o leitor foi em tempos Gengiscão,
nada de especial parece acontecer. O leitor chacinando
pessoas em cima de um cavalo? Alheado de supermerca­
dos, automóveis e aviões? O leitor com uma identidade
sexual, idade e mente diferentes (pois é muito improvável
que pense como pensava Gengis)? Tudo o que consigo
fazer, se tento pensar nesta possibilidade, é substituir o
acto de pensar em Gengiscão pelo acto de pensar em si.
É como substituir o pensamento de um carvalho pelo de
um narciso, o que não é certamente pensar que o carvalho
poderia ter sido um narciso. Não consigo pensar em qual­
quer tipo de identidade.
Em poucas palavras, tenho de pem,ar em si apenas como
um animal grande com uma personalidade. Outros animais
humanos com outras personalidades não são o leitor e o
leitor não poderia ter sido um deles. Quanto da sua persona­
lidade poderia o leitor perder e continuar a ser o leitor? Bem,
isso poderia ser um pouco como o problema dos barcos.
Talvez permitamos muitas coisas, mas acabamos por dizer
coisas como «Bem, ele já não é a mesma pessoa». Na pers­
pectiva sugerida por Locke e Kant, isto poderia ser literal­
mente verdade.

151
PENSE

Misturar almas
Há uma di ferença curi osa entre o passado e o futuro
quando pensamos nos nossos própri os eus.
Suponhamos que vi víamos num mundo onde os corpos
humanos e os cérebros eram mai s fácei s de agre gar e desa­
gregar do que são. P odíamos separá- los e voltar a reuni- los,
corn o podemos fazer com os computadores ou os automó­
vei s. Suponhamos que chamamos a i sto « operações de mi s­
tura». P odemos pô r as psi cologi as das pessoas outra vez a
trabalhar depoi s destas operações, corn o quem copi a o pro­
grama e os fichei ros num computador. Ou podemos mudar
as di sposi ções mudando o programa e os fi chei ros, retendo
alguns anti gos e adi ci onando alguns novos. As operações de
mi stura são olhadas como benéfi cas e saudávei s.
Suponhamos que neste mundo lhe di zi am a si que ama­
nhã i ri a fazer uma operação de mi stura. E era- lhe ofereci do
um vi slumbre daqui lo que i rá emergi r. A pessoa A tem nela
mui to da sua substâ nci a e mui tas das suas quali dades: ela
lembra- se de coi sas tal corn o o lei tor agora o faz, parece- se
mui to consi go e assi m por di ante. De qualquer forma, a
pessoa A será envi ada para o Á rcti co ( talvez pertença ao
ex érci to). A pessoa B é também mui to pareci da consi go, mai s
urn a vez i ncorporando em si mui to da sua parte físi ca
- cérebro e células - e tendo mui tas das suas quali dades
( programa e fi chei ros). A pessoa B vai para os tr ópi cos.
Do nosso ponto de vi sta, i sto é um pouco como o barc o de
Teseu. Não preci samos de fazer uma grande questão de saber
se o lei tor se toma a pessoa A ou a pessoa B. P oderíamos dar
connosco a ol har urna das novas pessoas, ou até mesmo as
duas, como se fo sse m o lei tor - ou poderíamos dar connosco
a olhar ambas corn o recém- nasci das. Urn a analogi a utili zada
pelo filósofo contemporâ neo Davi d L ewi s é a da estrada que se
bi furca. Não pensamos que sej a uma grande questão metafísi ca
sà ber se di zemos que apenas uma das bi furc ações é a velha
Estrada da Luz, ou se ambas o são, ou se nenhuma o é.

152
O EU

Mas, d o seu p onto d e vista, p od eria pare cer qu e saber qual


das alternati vas é a verdad eira é cru cial. Ou o l eitor ir á passar
o próximo ano no fri o ou no cal or, ou nem s equ er ir á s obre vi­
ver. H á ap enas três opçõ es r ígidas. Nã o p od e enl ear - s e em
vagu ezas e ind eterminaçõ es: «S er á um p ou co corn o s e esti­
vess e nos trópi cos e um p ou co corn o s e esti vess e no Árcti co»
nã o faz s entid o. Mais tarde nã o h á p ess oa alguma para a qual
exista um tip o d e mistura d e trópi cos e Ár cti co, cal or e fri o.
A está no fri o e B no qu ente. Nã o h á p ess oa algumapara qu em
s eja metad e diss o e metad e d e outra coisa. De igual mod o,
«Ser á um p ou co como s e o l eitor nã o existiss e e um p ou co
como s e existiss e» também nã o s er ve. Ou o l eitor estar á num
d os síti os a suar d esalmadamente, ou no outr o a g elar, ou ter á
id o fazer companhia aos s eus antepassad os. «Estar á pr es ente
na p el e d e ambos» s oa pura e simpl esmente a conversa oca,
como s e alguém procurass e dar - me algum cons ol o p or nunca
ter visto Veneza dizend o «Estar ás l á na p el e d o teu filh o». Qu e
s e lix e iss o. (C omo Woody All en diss e d e um cons ol o anál og o:
«Nã o qu er o al cançar a imortalidad e com a minha obra. Qu er o
al cançar a imortalidad e fi cand o vi vo.)
O estranh o é p erd ermos este s entid o d e clar eza quand o
p ensamos no passad o. Sup onha qu e d es cobr e s er o r esultad o
d e uma op eraçã o d e mistura qu e envol veu duas p ess oas,
C e D, cada urna das quais contri buiu com isto ou aquil o
para a p ess oa qu e o l eitor é. Iss o é inter essante, mas nã o lh e
d á a mesma impulsi va e urg ente necessidad e d e saber. S e
s ou ber qu e C pass ou o Natal d e 1990 num bar co e D o pas­
s ou numa montanha, mas nã o s e pud er l embrar d e uma nem
d e outra coisa, nã o pr ecisa d e fi car obcecad o com a qu estã o
«Ond e estava eu no dia d e Natal d e 1990?». S e a mistura lh e
d eu uma vaga cons ciência d e ambas as exp eriências, iss o
também está bem: o l eitor é alguém para qu em é um p ou co
como s e ti vess e es calad o urna montanha ness e dia e um
p ou co como s e ti vess e id o navegar.
É arr epiante p er ceber qu e mais tarde nã o tem d e haver
alguém p ertur bad o quanto à sua id entidad e. A p ess oa A no

153
PENSE

Árctico tem agora uma continuidade parcial consigo, assim


como a pessoa B nos trópicos. Cada uma delas pode olhar
com nostalgia para algumas das suas realizações. E, se assim
o quiserem, podem ansiar por mais ou menos partes dos
seus traços psicológicos e recordações, assim como nós po­
demos olhar com nostalgia os nossos eus anteriores e desejar
ser mais ou menos como eles. Podemos lamentar poderes e
recordações perdidos, ou alegrarmo-nos com a maturidade
e conhecimento adquiridos, segundo o gosto de cada um.
Algumas pessoas pensam que há soluções definidas
quando olhamos para o futuro. Poderão apostar a sua fé na
sobrevivência da sua identidade desde que o cérebro que têm
actualmente sobreviva em condições funcionais. Locke, é claro,
negava isto, uma vez que a continuidade de funcionamento do
cérebro não garante de forma alguma a continuidade da cons­
ciência: o cérebro pode ser «reprogramado», ou reconfigurado,
de modo que a memória e a personalidade mudem inteira­
mente. E, em qualquer caso, podemos imaginar que algumas
das operações de mistura escolham e determinem para onde
vão alguns pedaços do cérebro. Outras pessoas poderão apos­
tar a sua fé numa continuidade lockeana do software ou dos
programas em vez da continuidade do hardware ou dos mate­
riais. Mas enfrentam a dificuldade seguinte: num mundo mis­
turado, poderíamos ser capazes de copiar os programas como
quiséssemos, criando muitas pessoas do futuro com traços de
«memória» e personalidade idênticas.
Em resumo, parece não haver qualquer correspondência
metafísica entre a simplicidade que imaginamos ao olhar
para o futuro e as complexidades e vaguezas que as misturas
podem trazer.
Alguns pensadores ficam impacientes com este tipo de
cenário. Afirmam que as nossas noções de identidade estão
talhadas para o mundo real, onde, talvez afortunadamente,
as operações de «mistura» são impossíveis. Afirmam que
deveríamos deixar a identidade cuidar de si mesma nestes
bizarros casos inventados. A minha opinião é que isto está

154
O EU

e rrado. C oncordo com estes pensadores que de ve ríamos


pe rde r o inte resse em questões de i denti dade quando int ro­
duzimos p ossibili dades bizarras. Mas nã o pens o que de va­
mos pe rde r o inte resse nestafaceta do pensament o s ob re nós
p róp ri os: a de que as opções que enfrentamos pare cem te r
uma natu reza rí gi da e dete rminada qualque r que seja a
vagueza que rodeia as nossas caracte rísti cas e partes ani­
mais. Suspeit o que seja uma caracte rísti ca que impele os
pensament os de muitas pess oas s ob re os p roblemas da vi da
e da morte. M oti va espe ranças e convi cções. Le va al gumas
pess oas a col ocar os seus cé reb ros em suspensã o cri ogéni ca,
na espe rança de que p ossam um dia se r des congelados e
come cem uma nova vi da quando a te cnol ogia assim o pe r­
miti r. E moti va a convi cçã o de Rei d de que a alma é simples.
Uma alma simples, que nã o p ossa se r di vi di da, é justamente
o ne cess ári o para p rese rvar as t rês opções claras. Vai para
um lu gar ou para out ro.
Tal vez, no entant o, a nossa li gaçã o às opções claras assente
numa ilusã o, no mesmo tip o de ilusã o em que assentam as
fantasias que ab ordámos na última se cçã o. Nessa se cçã o
insistimos que nã o t ransfe rimos qualque r «eu» para os cená­
ri os imaginados. A gora te remos de insisti r que nã o int rodu­
zimos qualque r «eu» defini do nestes cenári os do futu ro.
Quando os fact os s ob re a questã o de sabe r qual dos animais
humanos vi vos actuais estará p resente se t omam vagos e
indete rminados, o mesmo su ce de com os fact os s ob re a ques­
tã o de sabe r quem agora estará p resente. A nossa p ropensã o
para pensar de out ro modo é uma ilusã o. P ode rá aju dar a
afastar a ilusã o re cordar a razã o pela qual Hume nã o p odia
des cob ri r o seu «eu» e p or que moti vo a expli caçã o kantiana43
da ne cessi dade de pensar em te rmos de um eu nos dá uma
moti vaçã o pu ramente est rutu ral. Uma pepita ou um át omo
de mim, p or mais simples que seja, nã o p ode faze r aquil o
para que p re cisamos de um eu.

43 Veja-se a nota 42.

155
PENSE

Mas penso poder garantir ao leitor que a ideia daquelas


· três opções claras é muito difícil de suprimir. Pensar ajuda,
mas é difícil ao pensamento destruir as ilusões do eu.
Portanto, a «distinção real» que Descartes pensou ter de­
monstrado - o dualismo cartesiano - não morre com faci­
lidade. O leitor pode tentar protegê-lo contra a linha de pen­
samento deste capítulo e dos dois anteriores. Seja como for,
o próprio Kant tentou deixar espaço para a imortalidade da
alma. A sua razão bastante frouxa é que precisamos de supor
que a bondade traz a felicidade e, uma vez que isso nem
sempre acontece ou não é seguro que assim aconteça nesta
vida, era desejável que existisse outra vida na qual isso de
facto tivesse lugar. Então as pessoas alcançam a recompensa
merecida. Muitos filósofos pensam que isto não é Kant no
seu melhor. Mas a dimensão religiosa afecta certamente o
pensamento de muitas pessoas nestas matérias. Assim,
vamos agora olhar mais directamente para essa dimensão.

156
5
Deus

P ara algumas pessoas, pensar sobre a alma é mei o cami ­


nho and ad o para pensar sobre a reli gião. E pensar sobre a
reli gi ão é para elas uma d as ocupações mai s i mportantes d a
vid a. P ara outras, é quase uma completa perd a d e tempo.
Neste capítulo apre sento algun s d os a rgumentos que rod eiam
esta área. O s argumentos, pelo menos, não são uma perd a d e
tempo, uma vez que apresentam i mportantes pri ncípi os d o
pensamento.

Crenças e outras coisas


A id eia d as crenças44 é que sejam verd ad ei ras. As frases
«Eu ach o que p» e «Eu acho que é verd ad e que p» di zem
prati camente a mesma coi sa. Não se pod e di zer «Acho que

44 O termo português «crença» presta-se a confusões. Apesar de neste


capítulo o autor se referir muitas vezes às crenças religiosas, em geral refere­
-se apenas a convicções. «Crença» não é sinónimo de «crença religiosa», mas
sim de «convicção» ou «opinião» - belief, no original. (N. do R. C.)

157
PENSE

existem fadas, mas não acho que seja verdade que elas exis­
tem». E as pessoas religiosas, aparentemente, têm várias cren­
ças que as outras pessoas não têm.
Mas, de facto, não é óbvio que a religião seja uma questão
de verdade, ou que os estados mentais religiosos devam ser
avaliados em termos de verdade e falsidade. Talvez a religião
não seja uma questão de crenças, e esses estados mentais não
sejam crenças. Aderir a uma religião pode ser mais parecido
com apreciar um poema, ou ser adepto de futebol. Pode tra­
tar-se de adoptar um conjunto de práticas. Talvez essas práti­
cas tenham apenas uma função emocional ou social. Talvez
os rituais religiosos sirvam apenas fins psicológicos e sociais
necessários. Os rituais de nascimento e de entrada na maio­
ridade ou os funerais servem esses fins. É patético perguntar
se uma cerimónia de casamento é verdadeira ou falsa. As
pessoas não vão a uma cerimónia fúnebre para ouvir algo
verdadeiro, mas para fazer o luto por alguém ou para termi­
nar o luto ou para meditar sobre a morte. Pode ser tão inapro­
priado perguntar se aquilo que foi dito é verdade como per­
guntar se A Tabacaria, de Álvaro de Campos, é verdadeira.
O poema está ou não bem conseguido numa dimensão com­
pletamente diferente, assim como o Mosteiro dos Jerónimos
ou uma estátua de Buda. São coisas que podem ser magní­
ficas e emocionantes e inspirar um temor respeitoso - mas
não por fazerem afirmações verdadeiras ou falsas.
Algumas pessoas pensam que a religião é só isto. Assim,
se alguém diz «Há um deus», não é como dizer «Há abomi­
náveis homens das neves» (caso em que saber se os há ou
não é uma questão empírica) ou «Há números primos entre
20 e 30» (uma questão matemática). É antes qualquer coisa
como a expressão de alegria ou de medo (ou, o que é mais
sinistro, a expressão de ódio contra os pagãos ou os infiéis).
Por causa disto, o que se diz é imune à crítica enquanto algo
verdadeiro ou falso. Na melhor das hipóteses, podemos exa­
minar os estados mentais envolvidos nas atitudes religiosas,
de modo a tentar ver se elas são ou não dignas de admiração.

158
DEUS

Mas esta não tem sido a maneira corno habitualmente se


entende a religião. Ao mesmo tempo que as pessoas admi­
tem o lado emocional e social da religião, também julgam
fazer afirmações determinadas acerca do mundo - afirma­
ções literalmente verdadeiras, para as quais há argumentos
e provas que as sustentam. Deste ponto de vista, as crenças
religiosas são corno quaisquer outras crenças: urna tentativa
de descrever o modo corno o mundo é, o tipo de coisas que
contém e o que explica os acontecimentos que nele ocorrem.
Deste ponto de vista, urna cerimónia fúnebre não é verda­
deira nem falsa, mas algumas das coisas que nela se dizem
são-no, corno a ideia de que iremos ressuscitar. Deste ponto
de vista, as pessoas que dizem sinceramente que irão ressus­
citar não estão a usar urna metáfora ou algo sonante do ponto
de vista poético corno forma de dizerem algo diferente ou de
darem urna certa cor ao mundo quotidiano. Estão a anunciar
algo que esperam que aconteça e fazem-no tão literalmente
como quando anunciam uma viagem ou a vinda de um
amigo.
Neste capítulo irei discutir as crenças religiosas por meio
de argumentos, razões e provas. Pressuponho que a intenção
é que essas crenças sejam verdadeiras e que respondam às
melhores formas que ternos de chegar à verdade. A maioria
dos filósofos só se interessou em discuti-las quando essas
convicções foram encaradas deste modo, apesar de alguns
filósofos da moral, nomeadamente Friedrich Nietzsche, te­
rem censurado as atitudes morais e os sentimentos (como a
humildade, a auto-humilhação e a compaixão) que julgavam
ser incentivados por certas religiões.
Para me antecipar um pouco, irei avançar um bom número
de razões contra a suposição de que qualquer coisa que
possamos reconhecer corno crença religiosa é verdadeira.
Talvez alguns leitores se sintam ameaçados. Podem colher
algum conforto da tradição teológica segundo a qual quanto
mais improvável for que uma crença seja verdadeira mais
meritório é o acto de fé necessário para ter essa convicção.

159
PENSE

Mas, para o fim do capítulo, o inquieto espírito da reflexão


irá levar-nos a olhar também para essa perspectiva. Con­
tudo, irei começar por considerar os argumentos filosóficos
clássicos a favor da existência de Deus: o argumento ontoló­
gico, o argumento cosmológico, o argumento do desígnio e
os argumentos da revelação e dos milagres. Terminaremos
pensando um pouco mais sobre a natureza da fé, da crença
e do comprometimento.

O argumento de S.to Anselmo:


a mulher dos nossos sonhos e perus
Há uma história de um guru que atraiu uma grande au­
diência para um estádio com a promessa de uma prova de­
finitiva da existência de Deus. Quando todos estavam reuni­
dos, exibiu dramaticamente o Oxford English Dictionary e
mostrou que este continha a palavra «Deus». Uma vez que
a palavra estava lá, com uma definição, tinha de existir qual­
quer coisa que lhe correspondesse. Não sei como se sentiu a
audiência, ou se alguém se lembrou de que o dicionário tam­
bém fala do Pai Natal e de fadas, apesar de ser verdade que
os classificam como figuras míticas ou imaginárias. Mas é
interessante pensar como pode haver palavras com signifi­
cado sem que nada lhes corresponda.
Isto acontece porque podemos definir um conceito, mas
saber se há algo que lhe corresponda é uma coisa completa­
mente diferente. O leitor pode definir aquilo que quer de uma
namorada, se estiver decidido a colocar um anúncio no jornal:
Pessoa atenciosa procura alguém alegre, vegetariano, fã de
futebol que toque banjo e que não fume.

Isto pode definir a sua namorada ideal - chamemos-lhe


«Mulher dos Meus Sonhos». Infelizmente, pode não haver
uma pessoa que seja alegre, vegetariana, que toque banjo,

160
DEUS

sej a fã de futeb ol e nã o fume. O leitorpode deci di r ace rc a do


que que r inclui r na desc riçã o, ma s o mundo deci de se h á
alguém que a s a tisf a ç a . A Mulhe r dos Meus S onh os pode
nã o existi r.
A desc riçã o é pe rfeitamente inteligível. Define uma c on­
diçã o que emprincípi o a lguémpoderi a s a tisf aze r. Só que, tal
c omo as c ois as sã o, nã o h á pess oa a lguma que a s a tisf a ç a .
Uma f orma de f ormul a r isto é dize r que o te rmo tem sentido,
mas nã o tem referência. S abemos do que estamos a f al a r, mas
nã o s abemos se há alg o que lhe c orresponda . Nã opodemos
a rgumenta r que, se tem senti do, entã o tem refe rênci a , pois a
questã o de s abe r se existe ou nã o uma refe rênci a que lhe
c orresponda é uma questã o ace rc a do modo c omo o mundo
é, a qu a l nã opode se r respondi da num esc ritó ri o ou c om a
c onsulta de um dici onári o.
P ode se r- lhe difícil aceita r que nã o h ápess oa a lguma que
c orresponda à desc riçã o da su a namora da i de a l. M a s o leitor
pode a rra nj a r um pl a no pa ra res olve r o problema . P or que
razã o nã o a c rescenta um P. S. a especific a r que a pess oa i de al
tem de existi r?
Pessoa atenciosa procura alguém alegre, vegetariano, etc.,
que exista.

E a g ora , pode o leitor pens a r c om os seus b otões, res olvi


o meu problema por definiçã o.
Bem, é ve rda de que ninguém lhe v a i telef ona rpa ra dize r
que s a tisf az todas as c ondições à excepçã o da última . C on­
tu do, a lguém que lhe lig asse a responde r a o primei ro a nún­
ci o também existi ri a ; «Telef ono, l og o existo» é uma infe rênci a
tã o b oa qu a nto «Pens o, l og o existo». E o f a cto de se te r a di­
ci ona do aquel a cl áusul a nã o pode te r alte ra do em na da a
hipótese de a lguém s a tisf aze r as outras c ondições - aquel a s
c ondições c om as qu ais c omeç ámos. Log o, o leitor pe rdeu o
seu dinhei ro a o a c rescenta r as última s du a s pa l av ra s a o
a núnci o. Ac rescenta r «que exista » nã o é especific a r melh or a

161
PENSE

namorada ideal, nem lhe dá mais hipóteses de ela existir


realmente. Os filósofos costumam por vezes expressar este
resultado dizendo que «a existência não é um predicado»,
querendo com isto dizer que acrescentar «e existe» não é
como acrescentar «e gosta de Sagres». Mandamos no sentido:
podemos acrescentar o que quisermos à descrição. Mas é o
mundo que manda na referência: é ele que nos diz se há ou
não algo que satisfaça as nossas condições.
Depois de termos compreendido isto podemos retomar os
argumentos a favor da existência de Deus. No capítulo 1 já
nos defrontámos com um argumento a favor da existência de
Deus: o argumento da «marca» de Descartes. Esse argumento
não pareceu assim muito forte e, de facto, mais à frente, na
«Quinta Meditação», Descartes complementa-o com outro.
Esse segundo argumento é uma versão de um argumento
muito mais antigo, o argumento ontológico, de S.10 Anselmo
(1033-1109). S. 10 Anselmo define Deus como aquele ser
«maior do que o qual nada pode ser concebido». E dirige-se
ao «Néscio» (do Salmo 14), que diz no seu coração que Deus
não existe:
Mas quando este mesmo néscio me ouve dizer «algo maior do
que o qual nada pode ser pensado», ele certamente compreende o
que ouve e aquilo que compreende existe no seu entendimento;
mesmo que não compreenda que existe (na realidade) [. . . ] Assim,
mesmo o néscio tem de admitir que algo maior do que o qual
nada pode ser pensado existe pelo menos no seu entendimento,
uma vez que ele compreende isto quando o ouve, e o que quer que
seja que é compreendido existe no entendimento. E certamente
que aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado não pode
existir somente no entendimento. Pois, se existe apenas no enten­
dimento, também pode ser pensado como existindo na realidade,
o que é maior [. . .] Logo, não há qualquer dúvida de que algo
maior do que o qual nada pode ser pensado existe tanto no pen­
samento como na realidade45 •

45 Anselmo, Proslogion, pp. 99-100.

162
DEUS

O que há de notável neste argumento é ser puramente a


priori. Parece demonstrar a existência de Deus considerando
apenas o conceito ou definição de Deus. É como a demons­
tração matemática habitual, a qual deduz, a partir do con­
ceito de círculo, que as linhas traçadas a partir dos extremos
opostos de um diâmetro e de modo a juntarem-se na linha de
circunferência formam sempre ângulos rectos. O argumento
não precisa de qualquer premissa empírica - nenhuma
medição nem resultados da experiência.
O argumento de S.10 Anselmo pode ser apresentado em
dois estádios:

preende existe no entendimento. Logo, Deus existe no entendi­


Compreende-se o conceito de Deus. Tudo o que se com­

mento.

E depois:
Suponha-se que Deus existe apenas no entendimento, e não na
realidade. Então pode conceber-se um ser maior do que Deus: um
que exista na realidade. Mas Deus foi definido como o ser maior
do que o qual nada pode ser concebido. Logo, por definição, ne­
nhum ser maior pode ser concebido. Mas assim ficamos com uma
contradição. Logo, a nossa suposição original era falsa.

Esta forma de argumentação chama-se reductio ad absurdum


e irei descrevê-la mais pormenorizadamente no próximo
capítulo. S. 10 Anselmo fez-nos admitir a suposição ateia origi­
nal, mas apenas com o objectivo de mostrar que é falsa, uma
vez que implica uma contradição.
A versão cartesiana do argumento usa a «perfeição » em
vez da grandeza, mas a estrutura é semelhante. Define-se
Deus como perfeito, mas não existir seria uma imperfeição
para as outras qualidades de Deus: «a existência é uma per­
feição.» Assim, a existência pertence à essência de Deus e
Deus não pode ser concebido como algo que não existe.

163
PENSE

Um monge chamado Gaunilo atacou o argumento quando


S. 1o Anselmo o apresentou. Gaunilo chamou a atenção para o
facto de, se o argumento fosse bom, poder ser usado para
demonstrar todo o tipo de conclusões, que são boas de mais
para serem verdadeiras: por exemplo, que existe uma ilha
perfeita maior do que a qual nada pode ser concebido. Vol­
tando à Mulher dos Meus Sonhos, podemos ver o argumento
de Gaunilo da seguinte maneira: suponha-se que acrescen­
távamos cuidadosamente às especificações da Mulher dos
Meus Sonhos que ela devia não apenas ser uma grande
namorada, mas também uma namorada melhor do que a
qual nenhuma se possa imaginar. Em seguida podemos ar­
gumentar de modo paralelo:
Compreende-se o conceito de Mulher dos Meus Sonhos.
Tudo o que se compreende existe no entendimento. Logo, a
Mulher dos Meus Sonhos existe no entendimento.

E depois:
Suponha que a Mulher dos Meus Sonhos existe apenas no
entendimento, e não na realidade. Assim, pode conceber-se uma
namorada melhor do que a Mulher dos Meus Sonhos: uma que
exista na realidade. Mas a Mulher dos Meus Sonhos foi definida
como aquela namorada melhor do que a qual nada pode ser
concebido. Logo, por definição, nenhuma namorada melhor do
que a Mulher dos Meus Sonhos pode ser pensada. Mas assim
temos uma contradição. Logo, a nossa suposição original era
falsa.

A Mulher dos Meus Sonhos existe na realidade. Que


maravilha! Mas é melhor não festejar cedo de mais. Podere­
mos também infelizmente demonstrar, pelo mesmo método,
que existe um rival melhor do que o qual nada se pode
imaginar, que compete pelo afecto da Mulher dos Meus So­
nhos. A premissa crucial será a de que os rivais reais são
mais perigosos do que os meramente imaginados - o que é

164
DEUS

mesmo verd ad e. E o argumento ontológi co também é ad e­


quad o p ara d emonstrar a exi stênci a d o Demóni o - d efi nid o
como aqui lo pi or d o que o qual nad a p od e ser concebid o.
Afi nal, p ara que algo seja d e tal mod o que nad a pi or p ossa
ser concebid o, não p od e exi sti r ap enas na i magi nação, p oi s
nesse caso p od e conceber-se algo pi or, nomead amente um
ser que é tão mau quanto esse, mas que também exi ste ( note­
-se que a exi stênci a num di abo é uma imperfeição: fá-lo pi or).
A mai or p arte d os fi lósofos reconheceu a exi stênci a d e
algo susp ei to no argumento ontológi co - algo tão susp ei to
quanto tentar assegurar a exi stênci a d a Mulher d os Meus
Sonhos escrevend o a d escri ção ap rop ri ad a. Mas esses fi lóso­
fos nem semp re concord aram sobre qual seri a o erro. Parte
d o p roblema é o p asso em que se trata a «exi stênci a como um
p redi cad o». O p roblema é soluci onad o p ela teori a que va­
mos tratar no p róxi mo capí tulo e a que se chama «teori a d a
quanti ficação». Mas é di fí ci l garanti r que é esse p asso que
i ntrod uz o erro fatal.
Na mi nha opi ni ão, o p roblema cruci al está numa ambi­
guid ad e oculta na comp aração entre «realid ad e» e «entendi ­
mento». No argumento, as coi sas «na realid ad e» são comp a­
rad as com as coi sas «no entendi mento» (i sto é, d e acord o
com uma d efi ni ção, ou na i magi nação ou em sonhos) , co:tn
resp ei to a p rop ri ed ad es como a grand eza ou a p erfei ção. I sto
p arece si mp les, como se esti véssemos a comp arar coi sas em
di ferentes re gi ões geográfi cas, sabend o nós que aquelas que
estão numa regi ão são mai ores ou menores d o que as que
estão noutra regi ão. Seri a como se p erguntássemos se as
gali nhas d a Alemanha são mai s p esad as que as gali nhas d a
França. Mas, d e facto, não é nad a assi m. C onsid ere-se esta
frase:

Os perus reais são mais pesados que os perus imaginados.

Parece haver um sentid o no qual i sto é verd ad e. Nesse


sentid o, os p erus i magi nad os não têm p eso ( afinal, não p o-

165
PENSE

demos fazer nem sequer uma refeição ligeira com eles). Mas
também há um sentido no qual isto é falso, porque podemos
imaginar um peru mais pesado que os perus reais - por
exemplo, um peru de 250 kg, do tamanho de um pequeno
celeiro. No argumento ontológico, o «Deus» na imaginação é
comparado com o Deus na realidade, tal como o peru ima­
ginado é comparado com um peru real, o qual se verifica
1
pesar menos. No argumento supra, a Mulher dos Meus So-
nhos na realidade é comparada com a Mulher dos Meus
Sonhos imaginada, a qual se verifica ser melhor: pois certa­
mente que mesmo as namoradas reais medíocres são muito
melhores que as imaginadas! E isto contradiz, por hipótese,
a definição. Mas esse tipo de comparações nada mostra, de
facto, que contradiga a definição.
É como se um professor pedisse aos seus alunos que
imaginassem um peru mais pesado do que qualquer peru
real. E os seus alunos assim faziam: imaginavam um peru de
250 kg. Mas depois o professor queixa-se de que, uma vez
que os perus imaginários pesam menos que os reais, os alu­
nos não conseguiram imaginar aquilo que lhes foi pedido.
O peru imaginado não tem peso (não podemos comê-lo), e
assim os alunos «contradisseram a definição» e chumbam.
E os alunos terão razão em se sentirem injustiçados. Não
foram eles que erraram, mas o professor.
Isto sugere que não devemos pensar em «perus imagina­
dos» ou «perus no entendimento» como se fossem perus cujo
peso, em princípio, se pode comparar com o peso de perus
reais, os quais pesariam sempre mais. Contudo, o argumento
ontológico requer precisamente este tipo de comparação.
É aqui que falha. Pois, mesmo que Deus apenas existisse na
imaginação, como a Mulher dos Meus Sonhos ou o peru de
250 kg, não se segue que se poderia descrever ou imaginar
um ser maior do que ele. Afinal de contas, a descrição já tem
os superlativos. Mas, infelizmente para a demonstração de
S. 10 Anselmo, isto não responde à questão de saber se há algo
que corresponda à sua definição.

166
DEUS

Elefantes e tartarugas
O argumento ontológico sempre pareceu suspeito. S. To­
más de Aquino (cerca de 1225-74), o maior teólogo e filósofo
medieval, não o aceitou. Preferiu argumentar que precisa­
mos de Deus de modo a podermos explicar como apreende­
mos o mundo ou o cosmo. Este argumento, o argumento
cosmológico, é muito mais apelativo para a imaginação. Há
várias versões do argumento cosmológico. Todas requerem
que se mostre que as coisas no universo físico, as coisas que
conhecemos pelo tacto, pela visão e pelos outros sentidos,
são seres dependentes. E depois argumenta-se que os seres
dependentes acabam por pressupor, para serem explicados,
um ser que não dependa, ele próprio, de coisa alguma. Uma
versão deste argumento, e talvez a mais fácil de compreen­
der, é o argumento da causa primeira. Eis a personagem
Démea, dos Diálogos sobre a Religião Natural, de Hume (estes
Diálogos, publicados em 1779, dois anos depois da morte de
Hume, são a análise filosófica clássica dos argumentos teo­
lógicos tradicionais e irei citá-los bastante neste capítulo):
O que existir tem de ter uma causa ou razão da sua exis­
tência, uma vez que é absolutamente impossível para qualquer
coisa produzir-se a si própria, ou ser a causa da sua própria
existência. Remontando, portanto, dos efeitos às causas, temos de
continuar a percorrer uma sucessão infinita, sem qualquer causa
final, ou temos finalmente de recorrer a uma causa última qual­
quer, que exista necessariamente. Ora que a primeira suposição é
absurda pode demonstrar-se assim: na cadeia ou sucessão infinita
de causas e efeitos, a existência de cada efeito é determinada pelo
poder e eficácia da causa imediatamente precedente; mas a tota­
lidade da cadeia ou sucessão eterna, tomada no seu todo, não é
determinada ou causada por coisa alguma. Todavia, é evidente
que exige uma causa ou razão, tanto quanto qualquer objecto
particular que comece a existir no tempo. É ainda razoável per­
guntar por que razão esta sucessão particular de causas existiu
desde sempre, e não qualquer outra sucessão, ou nenhuma.
Se não houver um ser necessariamente existente, qualquer supo-

167
PENSE

s1çao que possamos conceber é igualmente possível; nem é mais


absurdo que nada tenha existido desde sempre do que essa suces­
são de causas que constitui o universo. O que foi, então, que
determinou que algo existisse, e não o nada, concedendo ser a
uma possibilidade particular, em detrimento das outras ? Causas
externas, estamos a supor que não as há. Acaso é uma palavra
sem significado. Terá sido nada? Mas isso nunca poderá produzir
coisa alguma. Temos, portanto, de recorrer a um Ser necessa­
riamente existente, que tem em si mesmo a razão da sua existên­
cia; e que não podemos supor não existir sem exprimirmos uma
contradição. Consequentemente, há um tal Ser - isto é, uma
Divindade46 •

O argumento está apresentado de forma poderosa, mas


será válido?
Diz-se que Russell terá comentado que o argumento da
primeira causa era mau, mas excepcionalmente, terrivel­
mente mau, uma vez que a conclusão não só não se segue
das premissas, como na realidade as contradiz. A sua ideia
era que o argumento parte da premissa «tudo tem uma causa
[prévia e distinta]», mas acaba na conclusão de que tem de
haver algo que não tem uma causa prévia e distinta, mas
«que tem em si a razão da sua própria existência». Logo, a
conclusão nega o que as premissas afirmam.
A rejeição de Russell é um pouco fraca. Pois o objectivo
do argumento, da perspectiva teológica, é mostrar que, ape­
sar de as coisas materiais ou físicas terem uma causa prévia
distinta, este mesmo facto nos leva a postular que há algo
diferente que não tem uma causa prévia distinta. Na gíria
teológica, isso seria algo que é «necessário» ou «causa sui»:
algo que é a sua própria causa. E, uma vez que isto não se
verifica no caso das coisas comuns que nos rodeiam, precisa­
mos de postular a existência de algo extraordinário, uma Di­
vindade, como titular desta extraordinária auto-suficiência.

46 Hume, Diálogos, parte 9, p. 54.

168
DEUS

Nos Diálogos de Hume, o problema que esta concepção


envolve é rapidamente exposto.

Afirma-se que a Divindade é um ser necessariamente exis­


tente; e procura-se explicar esta necessidade da sua existência
afirmando que, se conhecêssemos toda a sua essência ou natureza,
compreenderíamos que é tão impossível que ele não exista como
é impossível que duas vezes dois não seja quatro. Mas é evidente
que isto nunca pode acontecer enquanto as nossas faculdades forem
o que são. Ser-nos-á ainda possível, a qualquer momento, con­
ceber a não existência do que anteriormente concebemos como
existente; nem pode o espírito jamais ficar obrigado a supor que
qualquer objecto exista sempre, como está obrigado a conceber
sempre que duas vezes dois são quatro. Logo, as palavras «exis­
tência necessária» não têm significado; ou, o que é o mesmo,
nenhum que seja consistente47•

O representante de Hume neste momento do diálogo, a


personagem chamada Cleantes, continua dizendo que, tanto
quanto sabemos, talvez o próprio mundo material ou o uni­
verso como um todo seja o ser necessariamente existente,
apesar da maneira como algumas das suas partes dependem
de outras. Pois têm de ser «qualidades desconhecidas e
inconcebíveis» que fazem de algo um «existente necessário».
E, tanto quanto sabemos, tais qualidades inconcebíveis e des­
conhecidas podem estar ligadas ao universo físico comum,
em vez de a qualquer coisa ou pessoa ou divindade imaterial
que esteja para além dele.
É importante recordar que, no que respeita à nossa expe­
riência quotidiana, as mentes carecem tanto de explicação,
são seres tão dependentes, como os objectos físicos. Postular
a existência de uma mente que é de algum modo indepen­
dente de qualquer outra coisa é afastarmo-nos da experiên­
cia tão violentamente como postular uma coisa física que
seja também independente.

47 Hume, Diálogos, parte 9, p. 55.

169
PENSE

O argumento daprimeira causa responde apreo cupações


que são naturais, ou mesmo ine vit áveis, de acordo com
alguns filósofos, em espe cial Kant. Quando pensamos retro­
cedendo até ao big bang, a nossa próxima questão é a de
saber afinal por que razão se deu esse aconte cimento. A res­
posta «por nenhuma razão» não nos satisfaz porque não
nos satisfazemos com aconte cimentos que se limitam a acon­
te cer: o ímpeto de expli car atrai-nos. Assim, postulamos
a existên cia de algo diferente, outra causapara l á desta. Mas
o ímpeto ameaça agora continuar para sempre. Se apelar­
mos para Deus neste momento, teremos de perguntar o que
causou Deus ou de terminar arbitrariamente a regressão.
Mas se exer cermos um direito arbitr ário de parar a regres­
são neste momento, poder íamos muito bem tê-lo feito
antes, parando no cosmo físi co. Por outras palavras, estamos
na situação do filósofo indiano que, quando lhe pergun­
taram em que assentava o mundo, ele respondeu «num
elefante», e quando lhe perguntaram em que assentava o
elefante, ele respondeu «numa tartaruga», e quando lhe per­
guntaram em que assentava a tartaruga, ele pediu que mu­
dasse de assunto.
H á versões do argumento cosmológi co que não se ba­
seiam na causaprimeira, em termos temporais. Consideram
antes a ordem cont ínua do uni verso: a uniformidade da
natureza. Pode pare cer um facto espantoso que as leis da
natureza não se alterem, que a estrutura da natureza não se
desintegre. Podemos pensar que estes factos têm de «depen­
der» de algo e que requerem uma causa ne cess ária que os
sustenha ( como Atlas sustenta o mundo). Mas, mais uma
vez, ou h á uma regressão infinita ou um simples de creto de
que algo tem «propriedades des conhe cidas in con ceb í veis»
que a tomam auto-sufi ciente. Algo cuja uniformidade con­
t ínua não ne cessitasse de mais expli cações para l á de si
mesma. E isso tanto poderia ser o mundo como um todo,
como outra coisa qualquer. Mas voltaremos à uniformidade
da natureza nos próximos dois capítulos.

170
DEUS

O arquitecto sábio
O mesmo Cl eant es a qu em foi dada a tar efa de r efutar o
argument o ont ológ ic o é o r epr es entant e de uma t entat iv a
dif er ent e para demonstrar a ex istênc ia de uma div indade: o
argument o do desígnio - a ideia de qu e o Céu e a Terra pr o­
clamam a glór ia do Cr iador. Est e argument o foi a pér ola da
t eol og ia do sécul o XVIII e ainda ex erc e uma fort e influênc ia.
Ir ei s egu ir a discussã o cl áss ica apr es entada nos Diálogos, de
Hume. Cl eant es apr es enta o argument o:

Observa o mundo em redor; contempla a sua totalidade e todas


as suas partes; verás que não é senão uma grande máquina, sub­
dividida num número infinito de máquinas mais pequenas, que
admitem uma vez mais subdivisões que ultrapassam o que os
sentidos e as faculdades humanas conseguem registar e explicar.
Todas estas várias máquinas, e mesmo as suas partes mais ínfi­
mas, se ajustam entre si com uma precisão que impõe admiração
a todos os homens que as contemplaram. A curiosa adaptação de
meios a fins, em toda a natureza, assemelha-se exactamente, ape­
sar de exceder em muito, aos produtos do artifício humano: ao
desígnio, pensamento, sabedoria e inteligência humanos. Portanto,
uma vez que os efeitos se assemelham entre si, somos conduzidos
a inferir, segundo todas as regras da analogia, que as causas
também são semelhantes: e que o Autor da Natureza é de algum
modo análogo ao espírito humano, apesar de estar dotado de fa­
culdades muito maiores, proporcionais à grandiosidade da obra
que executou. Demonstramos imediatamente por este argumento
a post eriori, e só por ele, a existência de uma divindade e a sua
semelhança ao espírito e inteligência humanos48•

H á duas c oisas imp ortant es ac erca dest e argument o.


Em pr imeir o lugar trata-s e de um arg ument o p or analogia.
O mundo ass emelha-s e aos obj ect os de c onc epçã o humana.
P or iss o, tal c omo s er ia razoáv el, ao deparar-s e-nos um r eló-

48
Hume, Didlogos, parte 2, p. 15.

171
PENSE

gio, postular a existência de um projectista humano, também


é razoável, ao deparar-se-nos toda a estrutura da natureza,
postular a existência de um projectista divino. Em segundo
lugar, o argumento é a posteriori. Ou seja, é um argumento
que parte da experiência ou daquilo que sabemos do mundo
tal como o vemos. É aqui que brilham as provas da existên­
cia de desígnio.
Depois de o darwinismo ter começado a oferecer uma
explicação natural do modo como os sistemas biológicos
complexos se foram ajustando entre si, o argumento do de­
sígnio começou a perder algum do seu brilho. Mas, na ver­
dade, Hume (e Kant) fez as observações correctas sem se
apoiar em explicação alguma alternativa acerca de coisas
como a adaptação biológica. E o mesmo se aplica aos outros
casos, pois o argumento não é apenas sobre a biologia, que
exemplifica apenas um tipo de ajustamento na natureza.
A cosmologia oferece-nos outros. (Por exemplo, segundo
uma nova estimativa fidedigna, as hipóteses de as várias
constantes cosmológicas se terem ajustado de modo que a
vida organizada fosse possível no universo são de 1 em 10
elevado a 10125 - um número inimaginável. Por isso, talvez
tenha sido necessário um arquitecto sábio para as ajustar.)
Assim, como responde Hume, na pessoa de Fílon, o seu
representante nos Diálogos, ao argumento do desígnio? Fílon
chama a atenção para o facto de o argumento tomar uma das
operações que encontramos na natureza, a operação do pen­
samento, como uma «regra para o todo».
Mas, permitindo que possamos tomar as operações de uma
parte da natureza sobre outra como o fundamento do nosso juízo
com respeito à origem do todo (o que nunca se pode admitir),
porquê, todavia, seleccionar um princípio tão minúsculo, tão fraco,
tão limitado como a razão e o desígnio dos animais que encon­
tramos neste planeta? Que privilégio peculiar tem esta pequena
agitação do cérebro a que chamamos «pensamento» que temos
assim de Jazer dela o modelo de todo o universo? A nossa par­
cialidade a nosso próprio favor apresenta-a de facto sempre que

172
DEUS

pode; mas a filosofia sólida deve proteger-se cuidadosamente de


uma ilusão tão natural49•

Um argumento por analogia requer que certas condições


sejam satisfeitas para podermos confiar nele. Em primeiro
lugar, as bases da analogia devem ser extremamente seme­
lhantes. Em segundo lugar, devemos ter uma experiência
que abranja as explicações prováveis. Isto é, devemos saber
o mais possível sobre o tipo de causa que produz este tipo de
efeito. Por exemplo, um buraco numa árvore é bastante pa­
recido com um buraco num corpo humano. Mas supor «por
analogia» que, uma vez que um ser humano pode morrer
por ter um buraco no corpo, a árvore também pode, é levar
o nosso raciocínio longe de mais. Precisamos de mais infor­
mação, uma compreensão mais refinada do modo como as
coisas acontecem antes de fazermos uma tal inferência.
É este segundo tipo de experiência que infelizmente falta na
teologia, pois não temos a menor ideia dos tipos de «coisa»
que causam a existência de universos físicos completos.
Além disso, é muito fácil encontrar semelhanças, e Fílon
diverte-se bastante a inventá-las. Em primeiro lugar, mesmo
que o universo se assemelhe a um relógio, mais ainda se
assemelha a um vegetal:
O mundo assemelha-se mais a um animal ou a um vegetal do
que a um relógio ou tear. É mais provável, portanto, que a sua
causa se assemelhe à causa dos primeiros. A causa dos primeiros
é a geração animal ou vegetal. Podemos inferir, portanto, que a
causa do mundo é algo semelhante ou análogo à geração animal
ou vegetal50•

É claro que um teísta replicaria de imediato que isto não


nos leva a lado algum, pois apenas nos faria retroceder a

49 Hume, Diálogos, parte 2, p. 19.


50
Id., ibid., parte 7, p. 44.

173
PENSE

outra causa de tipo ve getal, sobre a qual ir íamos per guntar


a sua ori gem. Mas o mesmo aconteceria se fôssemos le va dos
a al go semelhante a uma mente. Se Cleantes, que defende o
ar gumento, p ára a re gressão a í, não po de culpar F ílon, o
opositor do ar gumento, por parar a re gressão no ve getal.
Como diz F ílon:

Se baseio o meu sistema de cosmogonia no primeiro, de pre­


ferência ao segundo, é por escolha minha. A questão parece com­
pletamente arbitrária. E, quando Cleantes me pergunta qual é a
causa da minha grandiosa faculdade de geração animal ou vege­
tal, tenho igualmente o direito de lhe perguntar qual é a causa do
seu grande princípio racional. Concordámos em pôr de parte, de
ambos os lados, estas questões; e é sobretudo do seu interesse na
presente ocasião honrar este compromisso. A julgar pela nossa
experiência, limitada e imperfeita, a geração tem alguns privilé­
gios sobre a razão; pois todos os dias vemos esta última surgir da
primeira, mas nunca a primeira da última51 •

Este aspecto final é de veras de vasta dor. Cleantes or gulha-se


da natureza «cient ífica» do seu raciocínio: um ar gumento
por analo gia, basea do na experi ência. Mas depois a experi ência
mostra-nos quão fr ágil e dependente de outras coisas é a
exist ência da inteli gência. Se gundo a nossa experi ência, as
mentes precisam de cérebros, os quais são fr ágeis, dependen­
tes, tar dios e invul gares na natureza A geração, isto é, o
desenvol vimento animal ou ve getal a partir da vi da ve getal
ou animal anterior, é, por contraste, comum; e, tanto quanto
podemos al guma vez obser var, é necess ária para a exist ência
da inteli gência. Lo go, se ar gumentarmos baseando-nos na ex­
peri ência, é muito menos pro vável que exista uma mente auto­
-subsistente do que outra causa física respons ável por tu do.
Uma vez que o ar gumento de F ílon parece irreplic ável,
tal vez seja bom especularmos um pouco acerca da se dução

51 Hume, Diálogos, parte 7, p. 47.

174
DEUS

que o argumento do desígnio possui. Por que razão as pes­


soas não gostam da réplica de Fílon? Suspeito que a causa
profunda é a mesma que é responsável por alguns dos pro­
blemas do livre arbítrio. Pensamos que é mais satisfatório
parar a regressão na «inteligência» do que na «geração»,
porque pensamos que na nossa experiência temos um exem­
plo de um acontecimento mental sem causa, por exemplo, a
minha decisão de iniciar uma acção, a qual dá origem a um
acontecimento físico. Assim, tomamos isso como um modelo
para a criação arbitrária do universo por uma divindade in­
teligente. Ao pensar deste modo, esquecemos o argumento
de Schopenhauer (veja-se o capítulo 3): por vezes, quando
agimos, não temos consciência da causalidade, mas daí não
se segue, e não é verdade, que tenhamos consciência da
ausência de causalidade. Esta interacção entre o argumento
do desígnio e a concepção intervencionista do livre arbítrio
tem um aspecto moral interessante. É defensável que as
imagens de Deus como sobrenatural e dos nossos «eus»
como coisas que ultrapassam igualmente a natureza se ali­
mentam mutuamente. E cada uma delas leva as pessoas a
negar a supremacia da natureza. Leva as pessoas a verem o
mundo como algo que dominamos, tal como Deus o faz.
Enquanto a verdade é que o mundo é algo do qual nós so­
mos uma pequeníssima parte.
Afirmei que as semelhanças são baratas e Fílon tem um
dia em cheio com semelhanças de outro tipo. Suponha-se
que nós abdicávamos de todas estas objecções e permitíamos
a existência do «projectista» de Cleantes. E depois? Os desíg­
nios são por vezes o produto de uma mente. Mas, na maior
parte das vezes, e no caso de grandes projectos, como os
barcos, são o produto de muitas mentes agindo em conjunto.
Alguns são o produto de projectistas melhores do que ou­
tros:

Numa palavra, Cleantes, um homem que siga a vossa hipótese


é talvez capaz de afirmar ou de conjecturar que o universo surgiu

175
PENSE

a dado momento de algo como o desígnio; mas, além dessa posi­


ção, não poderá asseverar uma circunstância única e pode depois
fixar todos os pontos da sua teologia com toda a licença da fan­
tasia e do hipotético. Este mundo, que ele saiba, tem muitas fa­
lhas e imperfeições, comparado com um padrão superior; e foi
apenas a primeira tentativa rude de uma qualquer divindade
infantil, que mais tarde o abandonou, envergonhado com o seu
deficiente desempenho; é a obra apenas de uma divindade depen­
dente e inferior, e é objecto de troça dos seus superiores; é o
produto da idade avançada e da senilidade de uma qualquer
divindade aposentada, e desde a sua morte tem continuado por
inércia, a partir do primeiro impulso e força activa que dele recebeu
[ . .. ] E, pela minha parte, não posso pensar que um sistema de
teologia tão selvagem e instável seja, sob qualquer aspecto, prefe­
rível a nenhum52•

E isto leva-nos inevitavelmente ao problema do mal.

O problema do mal
Muitos sistemas religiosos querem mais dos seus deuses
do que as muito abstractas qualidades de «existência neces­
sária». Querem amor e solicitude. Um deus que criou o
mundo e depois o abandonou entregue a si próprio não é um
objecto digno de culto nem uma fonte de autoridade moral.
Assim, os atributos tradicionais de Deus incluem a perfeição
moral. Deus deve ser todo-poderoso, claro, omnisciente, mas
também sumamente solícito. Mas então surge o argumento
clássico contra a existência de Deus: o problema de que, no
mundo que ele (ou ela ou eles) criou, essa solicitude parece
infelizmente não existir. Como Fílon diz:
Admitimos que o seu poder é infinito: o que ele quer execu­
ta-se. Mas nem o homem nem qualquer outro animal são felizes;

52 Hume, Diálogos, parte 7, p. 37.

176
DEUS

logo, ele não quer a sua felicidade. A sua sabedoria é infinita;


nunca se engana na escolha de meios para qualquer fim. Mas o
curso da natureza não é favorável à felicidade humana ou ani­
mal; logo, não foi estabelecido para esse propósito. Em todo o
domínio do pensamento humano não há inferências mais certas e
infalíveis que estas. Em que aspecto, pois, a sua benevolência e
misericórdia se assemelham à benevolência e misericórdia dos
homens ?
As velhas questões de Epicuro estão ainda sem resposta.
Quer ele impedir o mal, mas não pode? Então é impotente.
Pode, mas não o quer? Então é malévolo. Será que pode e quer?
Donde vem então o mal?53

O problema de Cleantes é que o mundo que temos é, na


melhor das hipóteses, uma mistura com respeito à felicidade
das suas criaturas. A vida é dura, e para muitos é curta,
brutal e repleta de carências e sofrimento. O bem-estar de
muitas criaturas depende da doença e morte de outras. Mas
é absurdo argumentar a partir de uma criação mista de coi­
sas boas e más a favor da existência de um criador perfeito.
Mesmo uns pais moderadamente bons não escolheriam pro­
positadamente pôr os seus filhos num meio brutal se pudes­
sem pô-los num meio melhor. Exactamente as mesmas ana­
logias em que Cleantes se apoia para demonstrar a existência
de Deus podem ser usadas contra ele.
Suponha-se que estamos num dormitório de uma escola
ou de uma universidade. As coisas não são lá muito boas.
O telhado pinga, andam por lá ratazanas, a comida é quase
intragável e alguns estudantes morrem de facto à fome. Há
uma porta fechada, atrás da qual está o gerente, mas o geréhté ·
nunca aparece. Começamos então a especular sobre como
será o gerente. Será que podemos inferir, a partir do dormi­
tório tal como o vemos, que o gerente, primeiro, sabe
exactamente em que condições se encontra o dormitório,

10 Hurne, Diálogos, parte 10, p. 63.

177
PENSE

segundo, que se interessa muito pelo nosso bem-estar e, ter­


ceiro, que possui recursos ilimitados para o arranjar? A in­
ferência é disparatada. Poderíamos inferir quase de imediato
que o gerente não sabia corno estavam as coisas, ou que não
se importava, ou que nada podia fazer para as melhorar.
Nem melhoraria em nada as coisas se, por acaso, encontrás­
semos um estudante que afirmasse ter ficado íntimo do ge­
rente e assegurasse que o gerente de facto sabia o que se
passava, se interessava e tinha os recursos e a capacidade de
fazer o que quisesse. A inferência mais imediata que pode­
ríamos fazer a partir disto não é que o gerente é corno o
estudante diz ser, mas que o estudante está a delirar. Talvez
as privações que sofre o façam delirar. Nunca ninguém infe­
riu dos vários defeitos do Windows que Bill Gates é infini­
tamente benevolente, omnisciente e capaz de arranjar tudo.
Observações semelhantes aplicam-se à convicção de que
este mundo «é um vale de lágrimas», que funciona corno urna
espécie de teste para o que ainda está para vir. Os estudantes
do dormitório podem pensar que o gerente está a testar corno
se comportam eles, de modo a mudá-los no ano seguinte para
um dormitório melhor ou pior -na verdade, para um dormi­
tório perfeito ou infernal. Se forçarmos as coisas, podemos pen­
sar que isto até pode ser verdade. Mas, segundo as informa­
ções de que dispõem, os estudantes não têm a mínima razão
para acreditar nisto. Tudo o que sabem acerca do gerente é o
que viram dele. E, se ele, ou ela, ou eles, não fornecem boas
condições neste dormitório, por que razão haveriam os estu­
dantes de supor que o iria fazer noutro sítio qualquer? Seria o
mesmo que supor que, urna vez que está calor neste dormitó­
rio, deve haver um dormitório algures onde está um calor
perfeito e outro onde está um frio perfeito. A inferência é dis­
paratada.
Cleantes é particularmente vulnerável a isto, porque ten­
tou fazer urna inferência razoável com base na analogia,
partindo das características do mundo para a natureza do
Criador. Mas mesmo que deixemos de lado as outras dificul-

178
DEUS

dades com o argumento do desígnio, a partir de um mundo


misto e desigual, ele sujeita-se a ficar, na melhor das hipóte­
ses, com um criador misto e desigual. Ou:
A verdadeira conclusão é que a fonte original de todas as coisas
[. . .] não dá mais atenção ao bem sobre o mal do que ao calor sobre o
frio, ou ao seco sobre a humidade, ou ao leve sobre o pesado-54.

Démea - a personagem que simpatiza com o argumento


ontológico e com o argumento cosmológico - tem um pro­
blema diferente. Ele não tenta raciocinar a partir do modo
como o mundo é para a sua divindade, e por isso o seu
argumento não é vulnerável nesse aspecto. A diferença é que,
uma vez que Cleantes está a argumentar a partir do mundo
tal como o vemos para a natureza de Deus, precisa de mos­
trar que o mundo é aquilo que seria de esperar a partir da su­
posição de um Deus todo-poderoso, omnisciente e suma­
mente solícito. Ele precisa que o mundo se ajuste à ideia de
um tal ser. Démea pode admitir que o mundo não é bem
aquilo que nós esperaríamos, mas que é compatível com a sua
divindade. O mundo não refuta a ideia de um tal ser.
Contudo, tem de enfrentar as «velhas questões de Epicuro».
A estratégia seguida por Démea tomou-se mais popular nos
séculos subsequentes. Consiste em refugiar-se na natureza
misteriosa e incompreensível da mente divina. Démea opõe-se
a tentativas ímpias de compreender a bondade de Deus com
base no modelo da bondade humana, ou as intenções, percep­
ções e compreensões de Deus com base no modelo das inten­
ções ou percepções ou compreensões humanas.
O problema agora é explicar por que razão acreditar num
Deus incompreensível há-de ter consequências. Como
Wittgenstein disse mais tarde, com respeito a outro tema:
Um nada servirá tão bem como uma coisa acerca da qual nada se
pode dizer55.

54 Hume, Diálogos, parte 11, p. 75.


55 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 304, p. 102.

179
PENSE

Mesmo Hurne, o «grande infiel», não se preocupa por


deixar mistérios. No fim dos Diálogos, Fílon, o céptico, está
perfeitamente preparado para aceitar um:

Se a totalidade da teologia natural, como algumas pessoas pa­


recem sustentar, se reduz a uma simples proposição, ainda que
algo ambígua e pelo menos indefinida: É provável que a causa
ou causas da ordem no universo seja remotamente análoga à
inteligência humana; se esta proposição não é susceptível de ser
alargada, de sofrer variações ou de ser explicada em termos mais
particulares; se não permite qualquer inferência que afecte a vida
humana, nem pode ser a fonte de qualquer acção ou renúncia; e
se a analogia, por ser imperfeita, não se pode levar mais longe do
que à inteligência humana e não pode ser transferida, com alguma
aparência de probabilidade, às outras qualidades da mente; se
isto é mesmo assim, o que pode fazer o homem mais inquisitivo,
contemplativo e religioso além de aceitar clara e filosoficamente a
proposição, tantas vezes quantas ela ocorrer, e pensar que os argu­
mentos que a estabelecem excedem as objecções contra ela? Na
verdade, irá surgir naturalmente alguma surpresa, dada a ampli­
tude do tema; alguma melancolia, dada a sua obscuridade; algum
desprezo pela razão humana por não poder dar qualquer solução
mais satisfatória a respeito de uma questão tão extraordinária e
magnífica56•

O problema de Dernea será que, depois de ter chegado a


urna divindade completamente misteriosa, não pode retirar
quaisquer consequências. Podemos entrar nas Brumas Mis­
teriosas, se quisermos, mas à saída não podemos trazer mais
do que levámos quando entrámos. As convicções religiosas,
reduzidas ao seu núcleo de respeitabilidade, acabam por ser
completamente inertes. Não têm consequências.
Isto é surpreendente para as pessoas - tão surpreendente
que muitos comentadores ficaram na dúvida se Hurne era de
facto um teísta ou um ateu. Muitas pessoas acham que a

56 Hume, Diálogos, parte 12, p. 88.

180
DEUS

diferença entre ser teísta, ou crente, e ateu, ou não crente, é


incrivelmente importante. Mas, se o nada é tão bom como
qualquer coisa acerca da qual nada se pode dizer, não há
diferença. Se a única coisa que podemos pensar com alguma
plausibilidade é que a causa do universo tem provavelmente
alguma analogia remota e inconcebível com as outras opera­
ções da natureza, então não ganhamos qualquer compreen­
são que possamos usar, nenhuma compreensão real, com a
nossa incursão nessas regiões brumosas. Podemos dizer, se­
guindo a observação de Wittgenstein, que Hume, nesta
passagem, «desconstrói» a aparente diferença entre teísmo e
ateísmo.
Em particular, se a «bondade de Deus» não deve ser com­
preendida do mesmo modo que aquilo que pensamos ser
bom (de modo que, por exemplo, neste sentido diferente de
«bom», pode ser «bom» para Deus lançar a peste bubónica
sobre crianças indefesas), então não tem quaisquer implica­
ções sobre o modo como hei-de viver a minha vida. Não me
permite decidir se hei-de preferir a dor ao prazer, ou dar a
outra face a tomar olho por olho, do mesmo modo que não
me permite decidir se devo preferir o calor ao frio. Mas a
religião deve fazer esse tipo de coisas. E é importante, pois
as pessoas consideram que a religião interfere na maneira
como agimos. Contudo, acabámos de descobrir que, se se­
guirmos o conjunto tradicional de argumentos, não faz qual­
quer diferença.
A teodiceia é o ramo da teologia que lida com o problema
do mal. Uma saída é defender que alguns valores parecem
pressupor a dor. Podemos animar os estudantes do dormitó­
rio misto e desigual, enaltecendo as virtudes da resignação
ou da força de espírito - bens que requerem privações e
dificuldades para florescerem. A dificuldade desta proposta
é que nós próprios pensamos que as coisas estão a melhorar
quando as situações que requerem essas virtudes perdem
alguma da sua acuidade. As imperfeições do Windows leva­
ram sem dúvida às virtudes de resignação e força de espírito,

181
PENSE

mas nem mesmo a Microsoft usou isso para defender a per­


feição do produto, e na verdade é por isso que continuam a
tentar melhorá-lo.
Uma vez mais, reagindo ao problema, as pessoas defen­
dem por vezes a sua crença numa divindade genuinamente
boa, boa num sentido que podemos compreender, recorrendo
ao que é conhecido como a «defesa do livre arbítrio». A ideia
é que Deus criou um universo bom e, por bondade, nos criou
com livre arbítrio. Mas, ao fazermos um mau uso da liber­
dade assim concedida, nós próprios trouxemos o mal a um
mundo que de outro modo seria perfeito. O mito da queda
e expulsão do jardim do Éden expressa esta ideia.
Há muitas objecções a esta réplica. Em primeiro lugar,
parece depender de uma concepção de livre arbítrio que
parece incoerente: a concepção intervencionista de acordo
com a qual algo que não faz parte da ordem natural (o meu
Verdadeiro Eu) interfere ocasionalmente com a ordem natu­
ral. Pois, sem isto, se o livre arbítrio for entendido de uma
forma compatibilista, as minhas decisões são tomadas com
um dom natural que, em última análise, para o teísta, se
deve a Deus. Se Deus não quisesse que Estaline chacinasse
milhões de pessoas, não deveria ter criado a natureza que
acabou por dar origem aos modelos de tomada de decisão de
uma tal pessoa.
Em segundo lugar, não é pura e simplesmente verdade
que todos ou mesmo muitos dos males que afectam os seres
humanos sejam de algum modo provocados pelas decisões
humanas. Devem-se a doenças, dores, carências e acidentes.
Afectam a criação animal, assim como os seres humanos, e
isso já era assim muito antes de existirem seres humanos.
Em terceiro lugar, mesmo que a metafísica do livre arbí­
trio fosse aceite, seria de esperar que um Deus bom prote­
gesse alguns dos mais fracos dos maus usos que alguns dos
mais fortes fazem do livre arbítrio. Uma mãe poderá reco­
nhecer o valor de deixar as crianças fazerem as suas próprias
escolhas e de lhes dar alguma liberdade. Mas se algumas das

182
DEUS

crianças mais velhas mostrarem tendências alarmantes para


matar ou mutilar algumas das crianças mais novas, seria
prudente os pais delas vigiarem-nas, ou protegerem os mais
novos, afastando os mais velhos dos seus planos. Infeliz­
mente, Deus não faz tal coisa no mundo em que vivemos.
Não há na natureza parques infantis nos quais os mais fracos
fiquem afastados dos mais fortes. Teremos de tentar criar as
nossas próprias áreas de segurança.
A minha opinião acerca disto é que as tradições religiosas
estão no seu melhor quando se afastam das virtudes clássi­
cas de Deus. Algumas tradições colocam Deus acima do bem
e da virtude, ou, na expressão terra-a-terra de Hume, Deus
não dá mais importância ao bem sobre o mal do que ao calor
sobre o frio. Noutras tradições, Deus não é de modo algum
omnipotente, estando antes sujeito a forças que não foram
criadas por ele. Qualquer uma destas tradições permite pelo
menos algum tipo de teodiceia. Mas se quisermos realmente
compreender a natureza da mente de Deus a partir da natu­
reza da sua criação, podemos encarar seriamente a ideia de
que ele (ela, ou eles) é um Deus com um sentido de humor
arrevesado. Afinal, como se diz na anedota judaica, Deus
conduziu o povo eleito pelo deserto durante quarenta anos
para depois o deixar no único sítio do Médio Oriente onde
não há petróleo.

Milagres e testemunho
Talvez os argumentos centrais que estudámos falhem.
Mas muitas pessoas pensam que a fé religiosa está bem fun­
damentada com base na ocorrência de acontecimentos mila­
grosos. Um profeta pode estabelecer credenciais divinas pre­
vendo o futuro, ou fazendo curas milagrosas, ou aparecendo
depois de morto, ou por meio de outros sinais desse género.
Quase ninguém tem o privilégio de assistir directamente
a tais acontecimentos. Em vez disso, apoiamos a nossa crença

183
PENSE

em relatos desses acontecimentos: em testemunhos. Lemos


testemunhos na Bíblia, ou no Alcorão, ou na obra As Vidas
dos Santos, ou mesmo no Jornal do Incrível. Por exemplo, não
assistimos pessoalmente a um membro amputado que volta
ao normal, mas podemos ter ouvido dizer que há a confir­
mação absolutamente inabalável de que se viu algures tal
coisa. As pessoas podem não ter sido pessoalmente raptadas
por alienígenas, mas acreditar de todo o coração noutras
pessoas que lhes dizem que o foram, ou que os seus irmãos
ou primos o foram. Ainda que não tenhamos avistado recen­
temente o há muito enterrado Elvis Presley, podemos ler e
acreditar que algumas pessoas o avistaram.
Hume fez a seguinte pergunta notável: quando será ra­
zoável acreditar em tais testemunhos?
Suponha-se que deixamos de lado o elemento «mila­
groso»: a questão de saber se um tal acontecimento se deve
a poderes invisíveis ou à intervenção divina. Ainda assim,
qualquer candidato a milagre tem de ser não apenas sur­
preendente, mas o tipo de coisa que, no curso normal de
acontecimentos, pura e simplesmente não acontece (não
estamos a falar no sentido no qual toda a criação é milagrosa,
uma vez que isso nos iria conduzir novamente ao argumento
cosmológico). Para estabelecer credenciais divinas não é
suficiente que alguém seja o herói de acontecimentos
invulgares. São precisos acontecimentos verdadeiramente
invulgares: pessoas que se elevam no ar, chumbo que flutua,
águ a que se transforma em vinho, mortos que ressuscitam.
O desafio ao verdadeiro milagreiro é: vá lá, espanta-me.
Assim, quando será razoável acreditar nos testemunhos de
tão estranhos acontecimentos, de acontecimentos completa­
mente fora do normal?
Hume começa por fazer uma afirmação perfeitamente
óbvia sobre os relatos humanos. É um facto, pensamos nós,
que esses relatos são geralmente verdadeiros. Hume diz que
se inferirmos de uma premissa do género «Esta pessoa está
a diz-me que p» a conclusão «Então p é provavelmente ver-

184
DEUS

dadeira» , estamos a fazer ex actamente o mesmo tipo de coisa


que quando inferimos de um acontecimento, por ex empl o
«A bol a está a voar em direcção à ja nel a» , um outro: «A j anel a
vai provavel mente partir- se. » E stas inferências são empíricas
(a posteriori) e baseiam- se na nossa ex periência acerca do
modo como o mu ndo se comporta. A veracidade dos teste­
mu nhos humanos é uma questão de facto e tem por base a
ex periência. E , qua ndo as coisas correm mal , de facto não
confiamos nel es. Podem ex istir «indícios contrários» , ou, por
outras pal avras, al gumas coisas podem apontar para um
l ado, e outras para um l ado diferente:

Esta contrariedade de indícios, no presente caso, pode derivar


de várias causas diferentes; da oposição de testemunhos contrá­
rios; do carácter ou do número de testemunhas; do modo como
dão o seu testemunho; ou da união de todas estas circunstâncias.
Podemos suspeitar da ocorrência de uma qualquer questão de facto,
quando as testemunhas se contradizem mutuamente; quando são
poucas ou de carácter duvidoso; quando têm interesses em jogo
no que afirmam; quando os seus testemunhos são hesitantes, ou,
pelo contrário, demasiado violentos. Há muitos mais pormenores
deste género, derivados do testemunho humano, os quais podem
danificar ou destruir a força de um argumento57.

Por outras pal avras, a ex periência mostra- nos quando não


devemos ser demasiado crédul os. Mas agora suponha- se que
aquil o que é testemunhado é absol utamente assombroso,
aprox ima ndo- se do mil agroso. E ntão:

O mesmíssimo princípio de experiência que nos dá um certo


grau de certeza no relato de testemunhas dá-nos também, neste
caso, outro grau de certeza contra o facto que eles se esforçam por
estabelecer; desta contradição resulta necessariamente um contra­
peso e a destruição mútua da crença e da autoridade58 •

57
Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. x, parte 1, p. 112.
58 Id., ibid., cap. x, parte 1, p. 113.

185
PENSE

Antes de fazermos uma pausa para analisar esta linha de


argumentação vale a pena ver onde ela nos leva. Hume retira
uma conclusão famosa:

A consequência clara é (e é uma máxima geral que merece a


nossa atenção) «Que nenhum testemunho é suficiente para estabe­
lecer um milagre, a não ser que o testemunho seja tal que a sua
falsidade seja mais milagrosa do que o facto que esse testemunho
procura estabelecer; e mesmo nesse caso há uma destruição mútua
de argumentos, e o superior só nos dá uma certeza adequada ao
grau de força que fica depois de deduzido o grau de força do in­
ferior. » Quando uma pessoa me diz que viu um morto voltar à
vida, pergunto-me imediatamente se a probabilidade de esta pessoa
me estar a enganar ou de estar enganada será superior à probabi­
lidade de ter realmente acontecido o que ela relata. Comparo a
probabilidade dos milagres entre si; e, de acordo com a superiori­
dade que descobrir, pronuncio a minha decisão, rejeitando sempre
o maior milagre. Se a falsidade do seu testemunho for mais mila­
grosa do que o acontecimento que ele relata, então, e só então, pode
ele pretender guiar a minha convicção ou opinião59•

O argumento pode ser analisado de diversas maneiras.


É útil concebê-lo da seguinte maneira:
Suponha que alguém me fala de um acontecimento a,
altamente surpreendente ou improvável. De facto, seja a um
acontecimento tão improvável quanto se consiga imaginar.
Assim, a minha justificação para a é que «esta pessoa diz que
a aconteceu». Tenho agora uma escolha entre duas hipóteses
no que respeita a esta questão:

1) Esta pessoa diz que a aconteceu. Mas a não aconteceu.


2) Esta pessoa diz que a aconteceu. E a aconteceu.

Ora, cada uma das alíneas anteriores contém um elemento


surpreendente. A hipótese 1) contém uma surpresa: a pessoa

59 Hurne, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. x, parte 1,

pp. 115-116.

186
DEUS

disse uma falsidade. A hipótese 2) contém a surpresa de a


ocorrer. Assim, tenho de pesar qual das duas é mais surpreen­
dente ou improvável, rejeitando então «o maior milagre».
O problema, corno Hum.e elegantemente faz notar, é que
é muito comum os testemunhos serem falsos. Há casos ób­
vios de mentiras deliberadas. Há casos de ilusões. Há lapsos
notórios de memória. Onde há transmissão de informação
há erros: tradução e compreensão erradas, pessoas que en­
tendem metáforas corno se fossem verdades literais, e assim
por diante. Logo, 1) não envolve o mesmo tipo de improbabi­
lidade que 2). A hipótese 2) implica um milagre: um aconte­
cimento tão improvável quanto se possa imaginar. A hipó­
tese 1) só implica o tipo de coisa que nós sabemos que
acontece em qualquer caso: as pessoas enganam-se. Logo, a
barreira «nenhum testemunho é suficiente para estabelecer
um milagre, a não ser que o testemunho seja tal que a sua
falsidade seja mais milagrosa do que o facto que esse teste­
munho procura estabelecer», é um obstáculo que qualquer
testemunho tem urna enorme dificuldade em ultrapassar.
E, mesmo assim, tudo o que ganhamos é urna espécie de
confusão: ficamos sem saber em que devemos acreditar, de
modo que a opção sábia é suspender o juízo.
De facto, Hum.e defende depois que jamais os indícios
usados para estabelecer um sistema religioso estiveram perto
de ultrapassar a barreira. Hum.e chama a atenção para várias
coisas: os relatos de milagres tendem a ter origem em tempos
e lugares remotos e bárbaros; ou em pessoas cujas paixões
estão inflamadas; ou em pessoas que têm interesse em ven­
der urna história:
O sábio concede uma fé muito académica a todos os relatos
que favorecem a paixão da testemunha; que ampliem o seu país,
a sua família, ou a si próprio, ou encaixem de qualquer outro
modo nas suas inclinações e propensões naturais. Mas haverá
tentação maior do que parecer um missionário, um profeta, ou
um embaixador do Céu ? Quem não enfrentaria perigos e dificul­
dades de modo a obter um carácter tão sublime? Ou, se um ho-

187
PENSE

mem, com a ajuda da vaidade e de uma imaginação fogosa, começa


por se converter, entrando seriamente no delírio, que escrúpulos
terá ele para usar piedosas fraudes para sustentar uma causa tão
sagrada e meritória? 6º

Hume faz notar como as pe s soas go stam de tai s relato s:


A paixão pela surpresa e pelo encanto que resulta dos milagres,
sendo uma emoção agradável, favorece uma tendência sensível a
favor da crença naqueles acontecimentos da qual ela deriva. E isto
vai de tal modo longe que mesmo quem não pode desfrutar imedia­
tamente deste prazer, nem pode acreditar nesses acontecimentos
milagrosos de que ouve falar, adora participar em segunda mão ou
por empréstimo na satisfação, orgulhando-se e deliciando-se ao pro­
vocar a admiração alheia.
Com que avidez são recebidos os relatos milagrosos dos viajan­
tes, as suas descrições dos monstros do mar e da terra, os seus
relatos de aventuras maravilhosas, homens estranhos e costumes
invulgares? Mas, se o espírito da religião se juntar ao amor pelo
maravilhoso, acaba o senso comum; e o testemunho humano, nestas
circunstâncias, perde todas as pretensões a constituir-se como auto­
ridade61 .

E Hume su blinha um aspe cto mai s su btil quanto à rela­


ção ent re as dife rente s reli giõe s, cada uma das quai s tem a
sua cole cção de milagre s:
Consideremos que, em matérias religiosas, o que é diferente é
contrário; e que é impossível as religiões da antiga Roma, da
Turquia, do Sião e da China estarem, todas elas, estabelecidas em
fundamentos sólidos. Logo, todos os milagres que estas religiões
advogam que aconteceram (e todas elas abundam em milagres), e
uma vez que o seu objectivo directo é estabelecer o sistema reli­
gioso particular ao qual os milagres são atribuídos, têm por isso
a mesma força, apesar de mais indirecta, para deitar por terra

60
Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. x, parte 2, p. 125.
61
Id., ibid., cap. x, parte 2, p. 117.

188
DEUS

todos os outros sistemas religiosos. Ao destruírem um sistema


rival destroem igualmente o crédito desses milagres no qual esses
sistemas se apoiam; assim, todos os prodígios das diferentes reli­
giões devem ser encarados como factos contrários e os indícios
desses prodígios, sejam fortes ou fracos, devem ser encarados como
mutuamente opostos62 •

Esta seria também a resposta de Hume ao protesto de que


não pode ser verdade que tantas pessoas estejam enganadas.
Seja qual for a forma como se corta o bolo, um grande nú­
mero de pessoas tem de estar enganado.
O argumento de Hume neste caso é maravilhosamente
económico. Um filósofo menos subtil poderia ter tentado apre­
sentar uma conclusão metafísica, tal como a impossibilidade
absoluta da ocorrência de milagres. Hume nem precisa desta
conclusão, nem tenta argumentar a seu favor. Ele admite a
possibilidade metafísica de uma divindade interveniente.
Pode existir uma divindade que pode em certas ocasiões dei­
xar alguém andar sobre a água, ou alimentar cinco mil pes­
soas com meia dúzia de pães e peixes. Todavia, a experiência
é o nosso único guia para sabermos se tais acontecimentos
ocorreram. Se estivermos inclinados a acreditar neles por
causa dos testemunhos de que dispomos, então esses teste­
munhos têm de ser bons: muito bons -de facto, miraculo­
samente bons. Mas nunca encontramos testemunhos do tipo
certo.
As pessoas às quais se depara pela primeira vez o argu­
mento de Hume suspeitam por vezes que é excessivamente
cínico, exprimindo um certo tipo de atitude de desconfiança
e suspeição quanto aos relatos de outras pessoas. Não penso
que isto seja verdade ou, pelo menos, que a suspeição seja
maior do que as atitudes das pessoas justificam. Afinal, tería­
mos de ser muito ingénuos para negar, por exemplo, que é
sensato desconfiar dos relatos que lisonjeiam as paixões de
62 Hurne, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. x, parte 2, p. 121.

189
PENSE

quem os rel ata. Aqui está um a citação do jorn a l britâni co


Independent que comenta um rel a tório do Colégio Re a l de
Psiqui a tr a s:

De acordo com o Colégio Real de Psiquiatras, uma em cada


seis pessoas são neuróticas. Também devem pensar que 100 %
das pessoas são ingénuas. Exibe-se um relatório - a forma
politicamente correcta de publicitar o nosso serviço. E a seguir?
O Instituto de Construtores Civis diz que sete em cada dez casas
precisam de ser reconstruídas, ou a Associação de Mecânicos de
Automóveis diz que em trinta carros vinte precisam de ser repa­
rados ?

De fa cto, a dis cussão na segund a pa rte do notável ens a io


de Hume é um a nte cessor de todo um estudo a ca démi co. Os
psi cólogos investig a m hoje disfunções cogniti vas comuns
(falh a s de per cepção, de memóri a , a s influênci a s que a s ou­
tr a s pesso a s exer cem sobre nós, a contagi a nte qu a lid a de d a
confi a nç a e a paixão pelo m ar a vilhoso) como influênci a s que
interferem com as capa cid ades d a s pesso as pa r a distinguir a
verd a de d a falsid ade. Nós somos sobretudo muito bons ins­
trumentos par a registar a verd a de e rejeitar a falsid ade. M a s
não somos a ssim tão bons como gostamos de pens ar, e mui­
tas vezes não somos mesmo nad a bons.
O argumento de Hume pode ser eleg antemente formul ado
em termos do teorem a de B ayes, que iremos expli ca r no pró­
ximo capítulo. O leitor poder á querer voltar a este modo de
formul ar o argumento de Hume depois de compreender a
expli cação d a d a nesse capítulo. Em termos b ayesi a nos, faze­
mos h ser a hipótese de um mil agre ter ocorrido e e o f a cto de
um a pesso a ou vári as terem dito que ele ocorreu. Assim, a
prob abilid ade a priori de o mil agre ter ocorrido é muitíssimo
pequena . A «tax a de b ase» é aproxim ad a mente zero. Isto por­
que os mil agres são o tipo de cois a que nunca ou qu ase nunca
a conte ce. Qu a ndo vou par a o es critório de m a nhã, a minh a
mulher pode a vis ar-me de que está frio, ou de que h á trânsito,

190
DEUS

ou que tenha cuidado com os meus colegas. Mas ela não me


avisa que tenha cuidado com elefantes voadores, nem com mar­
cianos que podem fazer de mim um escravo sexual, nem com
as conversas do Elvis Presley ressuscitado. Mas agora consi­
dere-se o facto de alguém ou algum texto dizer que o milagre
ocorreu. Pois bem, isto é infelizmente o tipo de coisa que
muitas vezes acontece. A probabilidade antecedente de que tal
informação venha a existir nunca é muito pequena, porque há
muitas outras hipóteses, naturais, que a explicam - as fragili­
dades humanas comuns: enganos, ilusões, paixões inflamadas,
erros e assim por diante. Mesmo os defensores de um determi­
nado conjunto de milagres têm de acreditar nestas fragilidades,
de modo a excluir os impostores. A igreja romana tem um
departamento que se dedica unicamente a desmascarar falsos
milagres. Os cristãos fazem bem em não acreditar que Maomet
empreendeu a sua viagem noctuma de Jerusalém a Meca uma
vez que as suas credenciais de milagreiro contradizem as de
Jesus. Mas isto significa que a probabilidade a priori de e é
relativamente alta. Há muitas formas de gerar «falsos positi­
vos». Bayes, como iremos ver, exige que comparemos estas
probabilidades a priori de modo a estabelecer quão provável é
a hipótese, dados os indícios. O ideal seria uma hipótese que
não fosse assim muito improvável e indícios que não surgis­
sem facilmente, excepto no caso de a hipótese ser verdadeira.
Mas, neste género de casos, as probabilidades a priori são
exactamente o contrário disto. As hipóteses são imensamente
improváveis, e os indícios podem surgir facilmente por outras
razões. Assim, o cálculo bayesiano acaba sempre por se revelar
contra a verdade do testemunho e a favor da uniformidade da
natureza.
Isto não significa que os relatos de coisas que até agora se
revelaram bastante além da nossa experiência tenham de ser
falsos. A ciência ocupa-se de descobrir tais coisas. Mas nós
pensamos correctamente quando mantemos urna atitude
céptica, até os novos fenómenos se repetirem e estabelece­
rem, tomando-se parte das uniformidades da natureza.

191
PENSE

Quando pensamos na teologia dos milagres, as coisas


tomam-se ainda piores. Pois uma divindade que põe em
marcha as leis da natureza e que nunca se cansa tem pelo
menos uma certa dignidade. Mas uma divindade que per­
mite ocasionalmente sobressaltos e interrupções e truques
glorificados é menos impressionante. E porquê esses mila­
gres precisamente nessa altura? Não é o que seria de esperar.
Um pequeno milagre ou outro que fizesse os Hitleres e os
Estalines desaparecerem parece ser de longe bem mais útil
que um milagre que transforma a água em vinho numa certa
festa de casamento. Sem dúvida que é muito bom que Deus
tenha deixado S. Giuseppe levitar em frente das suas ima­
gens, mas, em igualdade de circunstâncias, teríamos prefe­
rido, digamos, a quarentena milagrosa ou a destruição do
vírus da sida. Isto é o que seria de esperar a priori, sabendo
que o mundo estava sob o regime de um Deus bom. Mas o
mundo tal como o conhecemos não confirma isto. Em breve
veremos como este raciocínio também pode ser analisado de
uma forma bayesiana. Neste caso, o ponto fraco é o grau de
ajuste entre os indícios e as hipóteses, a segunda das três
variáveis cruciais do teorema de Bayes.

Infini-rien
Nenhum dos argumentos metafísicos que vimos até agora
serve de muito para confirmar a hipótese de que o universo
é a criação de um Deus tradicional. E a análise de Hume dos
testemunhos de milagres destroem o seu valor probatório.
Confrontada com estas lacunas, a fé religiosa pode tentar
encontrar outros argumentos.
Devemos ao matemático e teólogo francês Blaise Pascal
(1632-62) um argumento interessante e engenhoso, conhe­
cido por «aposta de Pascal». Ao contrário do que temos
vindo a considerar, este argumento não é a favor da verdade
das crenças religiosas, mas a favor da utilidade de acreditar

192
DEUS

em algumas versões de um Deus monoteísta, ou judaico, ou


cristão, ou islâmico.
O argumento é o seguinte: em primeiro lugar, Pascal tam­
bém confessa ignorância metafísica:
Falemos agora de acordo com a luz natural.
Se Deus existe, é infinitamente incompreensível, uma vez que, não
possuindo partes nem limites, não tem qualquer afinidade connosco.
Somos portanto incapazes de saber o que Ele é, ou se Ele é [. . . ] Quem
irá então criticar os cristãos por não serem capazes de dar uma razão
para a sua crença, uma vez que seguem uma religião para a qual não
podem dar uma razão ?63

Não é muito claro por que razão se oferece esta desculpa


aos cristãos, e não às outras fés, ou aos que acreditam em
fadas, fantasmas, no Elvis vivo e em L. Ron Hubbard.
Mesmo assim, suponha-se que a escolha é entre a crença reli­
giosa e uma vida de dúvida ou rejeição religiosa:
Temos de apostar. Não temos saída. Qual delas iremos escolher
então? [. . . ] Pesemos quais as vantagens e desvantagens de apostar na
existência de Deus. Calculemos as duas hipóteses. Se ganharmos,
ganhamos tudo, se perdermos, nada perdemos. Apostemos então, sem
hesitações, que Ele existe.

Com grande clareza, Pascal mostra ter consciência de que


isto é uma razão muito estranha para escolher uma crença.
Mas Pascal também diz, com perspicácia, que
a nossa incapacidade para acreditar é o resultado das nossas
paixões, uma vez que a razão nos leva a isto e, mesmo assim, não
podemos acreditar [ . . . ] É preciso saber dos que têm sido limitados
como nós e que agora arriscam todas as suas posses [ . . . ] Sigamos
a forma como eles começaram; agindo como se acreditassem,
tomando a água benta, indo à missa, etc. Mesmo isto irá fazer-

63
O argumento de Pascal encontra-se nos seus Pensées, pp. 149-155.

193
PENSE

-nos acreditar naturalmente e enfraquecer a nossa agudeza de


espírito.

Depois de nos termos «estupidificado», tornarno-nos


crentes. E depois iremos recolher as recompensas por termos
acreditado: recompensas infinitas, se o tipo de Deus em que
acreditamos existir. E se não existir? Pois bem, perdemos
muito pouco, em comparação com o infinito: apenas aquilo
a que Pascal chama os «prazeres venenosos» de coisas corno
jogar golfe aos domingos em vez de irmos à missa.
A forma de apresentar este argumento consiste em fazer
urna caixa com duas colunas e duas filas onde colocamos as
opções:
Deus existe Deus não existe
Acredito em Deus ...................... + infinito! O
Não acredito em Deus ............... - infinito! O

Os zeros da direita correspondem à ideia de que nada


melhora ou piora nesta vida, quer acreditemos quer não.
A importância desta vida é praticamente nenhuma compa­
rada com o que é prometido aos crentes. O mais infinito cor­
responde à felicidade infinita. O menos infinito corresponde
ao Deus ciumento tradicional, que envia para o Inferno todos
aqueles que não acreditaram nele e, claro, também encoraja
todos os seus seguidores para lhes tomarem a vida difícil.
Mas a importância do menos infinito pode ser atenuada.
Mesmo que puséssemos um zero no seu lugar, a aposta pa­
rece boa. Será boa mesmo que Deus não puna os descrentes,
porque ainda há aquela recompensa espectacular de
«+ infinitude» que força a nossa escolha. Em termos de teo­
ria da decisão, a opção de acreditar é «dominante», porque
pode ganhar e não pode perder. Logo, vamos a isso!
Infelizmente, o problema letal deste argumento é simples,
uma vez expresso.

194
DEUS

P ascal parte de uma pos1 çao de ignorâ ncia metafí sica.


Nós nada sabemos pura e simplesmente para lá do domí nio
da ex periência. Mas a formulação da aposta presume que
sabemos algo. Supõe que nós sabemos quais as recompensas
e as penalidades anex adas à crença num deus cristão. Este é
um deus que ficará agradado e nos recompensará por com­
parecermos à missa e que ficará indiferente ou, na hipótese
de menos infinito, ex tremamente assarapantado por não
comparecermos à missa. Mas este é um caso de falsas op­
ções. P ois repare-se que, se metafí sicamente somos realmen­
te ignora ntes, então é pelo menos igualmente provável que
as opções acabem por ser as seguintes:

Há sem dúvida uma divindade muito poderosa e benevo­


lente. Ele (ou ela ou eles) determinou as coisas da seguinte
maneira: os seres humanos bons são aqueles que seguem a luz
natural da razão, a qual lhes é dada para controlarem as suas
vidas. Estes seres humanos bons seguem os argumentos, e por
isso evitam as convicções religiosas. Os que têm a força de es­
pírito para não acreditarem em tais coisas vão para o Céu. 0s
restantes para o Inferno.

Esta não é u ma divi ndade tão fa mil iar como o ciumento


Deus tradi cional, que aci ma de tudo se preocupa com que as
pessoas acreditem nele. (Por que raz ão é Deus tão ciumento?
Não poderá o seu ciú me ser u ma projecção facciosa das ambi­
ções e emoções huma nas? O u estás connosco ou contra nós!
O céptico fra ncês Vol tai re disse que De us criou a huma nidade
à sua imagem e a huma ni dade devolveu a honra.) Mas o pro­
blema pa ra Pascal é que, se nós de facto nada sabemos, então
não sabemos se o cenário que acabámos de descrever é menos
pro vável que o cená ri o cristão por ele apresentado. De facto, na
mi nha opi nião, um Deus que pu ne a crença é tão provável e
muito mais raz oável que um que pu ne a descrença.
E, claro, poderí amos acrescentar a sugestão humea na de
que, enquanto para P ascal era uma questão simples com

195
PENSE

duas hipóteses, a missa contra a des crença, num mundo mais


alargado é também urna questão de Al corão contra a missa,
ou L. Ron Hubbard contra Swarni Maharishi, ou de No va
Ordem Di vina da Comunidade de Conceitos Aqu ários con­
tra a Primeira Igreja Internet de Todos. A aposta tem de fi car
em silêncio quanto a estas es colhas.

Emoção e vontade de acreditar


Podemos agora considerar bre vemente a linha «fideísta»,
segundo a qual, apesar de os argumentos serem negligen­
ciá veis, as pessoas têm, mesmo assim, o direito de a creditar
no que querem, e pode até ha ver algum mérito na fé cega,
análogo ao mérito da mãe que se re cusa a re conhe cer a culpa
do filho apesar das pro vas condenatórias.
Os filósofos profissionalmente dedi cados à verdade e à
razão não podem re comendar esta atitude. A fé que desafia
a razão pode ser apelidada de bênção pelos que a partilham,
mas de credulidade e superstição pelos que não a partilham,
e pode ser algo inquietantemente sus cept í vel de trazer con­
sigo fanatismo e ex cesso de zelo. No cap ítulo 2 do famoso en­
saio Sobre a Liberdade, John Stuart Mill (1806-73) fala de forma
inesque cí vel da atmosfera de «es cra vidão mental» que se ins­
tala na ausência do intele cto críti co e inquisiti vo. Mesmo a
verdade, diz Mill, quando a ceite corno um pre conceito in­
dependente de pro vas e sem argumentos, «não é mais do
que urna superstição, a cidentalmente agarrada às pala vras
que enunciam urna verdade»64• Urna dis cussão cl ássi ca (do
es critor inglês, dos finais do sé culo xrx, W. K. Clifford65) com­
para as crenças mantidas com pro vas insufi cientes a prazeres

64 Mill, Da Liberdade, p. 41.


65 Clifford faz a comparação em «Toe Ethics of Belief», que se encontra
na sua antologia Lectures and Essays; veja-se p. 346.

196
DEUS

roubados. Uma citação apropriada é a de Samuel Taylor


Coleridge:
Aquele que começa por amar a cristandade mais do que a
verdade passará a amar a sua seita ou igreja mais do que a pró­
pria cristandade e acabará por se amar mais a si próprio do que
aos outros66•

Mas, apesar de estas opiniões serem atraentes, é de facto


bastante difícil mostrar que o hábito da fé cega é necessaria­
mente assim tão mau. Se, chegados à proposição inerte de
Hume, lhe atribuirmos as esperanças, receios, resoluções e
adornos dos nossos credos particulares, que mal tem isso?
Não é a simples piedade uma Coisa de Deus?
Algumas pessoas pensam sem dúvida que as crenças
aleatórias são uma boa coisa. Tenho à minha frente a publi­
cidade de uma empresa que se auto-intitula «supermercado
metafísico». É especialista em livros e música New Age, em
essências de flores, em óleos de essências e aromaterapia, em
terapias magnéticas, em terapias pelo equilíbrio luminoso,
em astrologia e numerologia, em taró e leituras de cartas de
runas, em cristais e gemas e, por fim, como se fosse uma nota
pesarosa de algo que se aproxima da sanidade, em ervas com
poderes curativos. Por que razão escarnecem os pensadores
dos sentimentos piedosos e simples das pessoas?
Claro que há sentimentos piedosos e simples que não têm
esta protecção. Se eu indagar a Bruma Misteriosa e ficar con­
vencido de que a mensagem que Deus me dirigiu era que eu
devia matar mulheres novas, ou pessoas com cores da pele
diferentes, ou pessoas de igrejas diferentes, ou pessoas que
têm relações sexuais da forma errada, isso já não seria tão
bom. Assim, temos de usar os nossos valores humanos, o
nosso próprio sentido do que é bom ou mau, ou certo ou
errado, de modo a distinguirmos um regresso da montanha
digno de admiração de um regresso lunático.

66 Coleridge, Aids to Refiection, aforismo xv, p. 107.

197
PENSE

Aqui parecemos e star irremediavelmente n o d omíni o da


ética. E ser á imp os s í vel e stabelecer rapidamente os preju íz os
e benefíci os da crença religi osa, tal c omo é difícil (ape sar de
nã o ser imp os s í vel) calcular os benefíci os ou preju íz os da
crença na terapia magnética ou n o Peng Shui, ou seja n o que
for. É cert o que tem alguma funçã o, re sp ondend o a algun s
de sej os e nece s sidade s humanas. Algumas de s sas nece s sida­
de s p odem ser uma parte c omum a t od os os sere s human os:
j á menci onei a nece s sidade d o cerimonial em moment os
cruciai s da vida, ou a nece s sidade da p oe sia, de s ímb ol os, de
mit os e de mú sica para expre s sar emoçõe s e de relaçõe s s o­
ciai s a que preci samos de dar voz. I st o é b om. Infelizmente,
algun s d os n os s os de sej os p odem ser um p ouc o men os dig­
n os de admiraçã o: o de sej o de separati smo, de ci smas, de
imp osiçã o da n os sa forma de vi ver aos outros, de enc ontrar
uma ju stificaçã o moral para o c ol oniali smo, ou para o
tribali smo, ou para o imperiali smo cultural - t od os sem
sentiment os de culpa p orque foram feit os em n ome d o Se­
nh or. P or cada mí stic o bene volente e pac ífic o h á um capelã o
armad o, que c on vence as tr opas de que Deu s e st á d o seu
lad o. P or mim, nunca vi um crach á que di s se s se «Odeia se
amas Deu s», mas p or veze s pergunt o- me p or que razã o
nunca vi tal c oi sa. Seria um b om lema para a direita reli­
gi osa.
É, tal vez, surpreendente ver e ste as sunt o c omeçar a t or­
nar- se uma e spécie de que stã o pr ática ou moral. P ode pare­
cer um cas o puramente intelectual de Razã o (b oa) c ontra a
Fé (má, ou pel o men os su speita). Mas o própri o Hume é
re sp on s ável p or ob scurecer a que stã o. P or razõe s que iremos
ver, parece haver bastante c onfiança bruta ou fé em muit os
d os element os qu otidian os d o sen s o c omum. J á se n os depa­
r ou, n o cap ítul o 1, a n os sa fé «de fazer figas» n o mund o
exteri or ou n o pas sad o. E n os próximos d oi s cap ítul os ir - se­
- n os - ã o deparar outras áreas onde Hume foi o primeir o a
verificar que a c onfiança d o dia- a- dia parece ser mai s uma
que stã o de fé d o que de razã o.

198
DEUS

Obviamente que a atitude que assumimos em relação ao


«fideísmo», deixando pura e simplesmente que certas cren­
ças religiosas possam livremente ir além da razão, pode de­
pender fortemente do que tem recentemente acontecido
quando permitimos tal coisa. Hume nasceu menos de vinte
anos depois das últimas execuções legais na Inglaterra e ele
próprio sofreu a hostilidade entusiástica dos crentes. Se hoje
em dia tudo o que vemos são piqueniques e campanhas
religiosas de caridade, não ficaremos assim tão preocupados.
Mas já desceram pessoas da montanha em número sufi­
ciente, empunhando as suas próprias certezas práticas, para
sugerir que nos devemos preocupar.
Talvez um dia encontremos algo que responda às neces­
sidades sem ser conivente com maus desejos, mas a história
da humanidade sugere que seria insensato contar com isso.

199
6
Raciocínio

Este capítulo põe-nos em contacto com algumas catego­


rias básicas a usar quando pensamos sobre o raciocínio.
Queremos que os nossos raciocínios sejam bons. Queremos
seguir métodos fidedignos para distinguir a verdade da fal­
sidade e para formar convicções acerca do mundo. Mas que
métodos fidedignos são estes e quais as suas credenciais?
Neste capítulo iremos abordar muito rapidamente a lógica
formal para depois passarmos aos problemas relacionados
com o raciocínio indutivo e com alguns dos elementos do
raciocínio científico.

Um pouco de lógica
As partes relevantes de um argumento são, em primeiro
lugar, as suas premissas. As premissas são o ponto de partida,
ou o que se aceita ou presume, no que respeita ao argumento.
Um argumento pode ter uma ou várias premissas. A partir
das premissas, os argumentos derivam uma conclusão. Se
estamos a reflectir sobre um argumento, talvez por termos

201
PENSE

relutância em aceitar a sua conclusão, temos duas opções.


Em primeiro lugar, podemos rejeitar uma ou mais das suas
premissas. Em segundo lugar, podemos também rejeitar o
modo como a conclusão é extraída das premissas. A primeira
reacção é que uma das premissas não é verdadeira. A segunda
é que o raciocínio não é válido. É claro que o mesmo argu­
mento pode estar sujeito a ambas as críticas: as premissas
não são verdadeiras e o raciocínio aplicado é inválido. Mas
as duas críticas são distintas (e as duas expressões, «não é
verdadeira» e «não é válido», marcam bem a diferença).
No dia-a-dia, os argumentos também são criticados noutros
aspectos. As premissas podem não ser muito sensatas. É uma
tolice apresentar um argumento intrincado a partir da premissa
de que eu vou ganhar a lotaria da próxima semana se não
houver qualquer hipótese de isso acontecer. É muitas vezes
inapropriado recorrermos a premissas que sejam, elas mesmas,
controversas. Não revela qualquer tacto nem é de bom gosto
argumentar a favor de certas coisas em certas circunstâncias.
Mas «lógico» não é um sinónimo de «sensato». A lógica inte­
ressa-se em saber se os argumentos são válidos, e não se são
sensatos. E vice-versa, muitas das pessoas a que chamamos
«ilógicas» podem até usar argumentos válidos, mas que são
patetas por outros motivos.
A lógica só tem uma preocupação: saber se não há maneira
de as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa.
Foi Aristóteles (384-322 a. C.) quem primeiro tentou forne­
cer uma taxonomia sistemática dos argumentos válidos e invá­
lidos. Aristóteles compreendeu que qualquer tipo de teoria pre­
cisaria de classificar os argumentos pelos padrões de raciocínio
que estes exibem, ou aquilo a que se chama a sua forma. Por
exemplo, uma das formas argumentativas mais famosas, que
se regozija sob o título modus ponendo ponens ou,
abreviadamente, modus ponens, é simplesmente a seguinte:

p;
Se p, então q;
Logo, q.

202
RACIOCÍNIO

p e q estão no lugar de qualquer pedaço de informação, ou


proposição, que quisermos. A forma argumentativa será a
mesma, quer o argumento seja sobre vacas, quer sobre filó­
sofos. Assim, a lógica estuda formas de informação, e não os
seus exemplos particulares. Os argumentos particulares são
exemplificações das formas, mas um lógico está interessado
na forma ou estrutura, do mesmo modo que um matemático
está interessado nas formas numéricas e na estrutura, mas
não em saber se estamos a contar bananas ou os lucros.
Queremos que o nosso raciocínio seja válido. Dissemos o
que isso significa: queremos que não haja maneira de a nossa
conclusão ser falsa se as nossas premissas forem verdadei­
ras. Deste modo, precisamos estudar se há «alguma maneira»
de um conjunto de coisas, as premissas, serem verdadeiras
sem que outra coisa, a conclusão, também o seja. Para inves­
tigarmos isso precisamos de construir uma ciência acerca das
maneiras como as coisas podem ser verdadeiras. Em relação
a algumas maneiras simples de acumular informação pode­
mos fazer tabelas de verdade.

Tabelas de verdade
As suposições clássicas são, em primeiro lugar, que todas
as proposições (p, q, etc.) têm apenas um de dois valores de
verdade. Têm de ser ou verdadeiras ou falsas, mas não ambas
as coisas. («Mas suponha-se que eu não concordo com isso?»
Paciência.) A segunda suposição é a de que os termos com
que a lógica lida - essencialmente «e», «não», «ou» e «se ...,
então ... » - podem caracterizar-se em função daquilo que
fazem aos valores de verdade. («Mas suponha-se que eu não
concordo com isso?» Paciência outra vez.)
Considere-se «não p». Não p, que se costuma escrever
como -,p, é a rejeição ou negação de p: é aquilo que o leitor
diz quando não concorda com p. Seja sobre o que for de que
se esteja a falar, p, de acordo com a nossa primeira suposição,

203
PENSE

é ou verdadeira (V) ou falsa (F). E não ambas. O que faz o


«não»? Converte simplesmente os valores de verdade. Se p é
verdadeira, então -,p é falsa. Se p é falsa, então -,p é verda­
deira. E isto é o que faz o «não». Podemos resumir este re­
sultado na seguinte tabela de verdade:
p -,p
V F
F V

A tabela dá o resultado, em termos de verdade ou falsi­


dade, para cada atribuição de valores de verdade aos seus
componentes (a esta atribuição chama-se uma interpretação).
Podemos fazer uma tabela semelhante para «e», só que neste
caso há mais combinações a considerar. Supomos que «e» é
a conjunção de duas proposições, podendo cada uma delas
ser verdadeira ou falsa. Assim, temos duas situações ou in­
terpretações a considerar:
p q p&q
V V V
V F F
F V F
F F F

Esta tabela dá-nos os valores de verdade de todas as com­


binações, da conjunção, como uma função da combinação
dos valores de verdade dos seus componentes: as diferentes
quatro interpretações da fórmula.
Resumimos o facto de podermos fazer estas tabelas di­
zendo que a conjunção e a negação são verofuncionais, ou que
são operadores verofuncionais. A lógica proposicional ele­
mentar estuda os operadores verofuncionais. Além do «não»
e do «e» temos também o «ou» como operador verofuncional
(p ou q, é tida como verdadeira excepto quando p e q são
ambas falsas) e uma versão da expressão «Se p, então q», tida

204
RACIOCÍNIO

como ver dadeira, ex cepto no caso em qu e p é ver dadeira e q


falsa. S e es cr evermos esta expr essão como «p ➔ q», a sua
tab ela de ver dade é a s eguint e:

p q p➔q
V V V
V F F
F V V
F F V

Est es op erador es são também conh eci dos por «op erado­
r es de Bool e». Qu em esti ver familiarizado com bas es de
dados e folhas de cál culo j á ou viu falar de bus cas bool eanas,
as quais apli cam exactam ent e a m esma i deia. Pro curar um
coisinho com mais de cinco anos qu e est eja em armazém em
Iorqu e devol ve um r esultado quando encontra um coisinho
qu e ob edeça a ambas as condiçõ es. Pro curar cli ent es qu e não
pagaram a 1 de D ezembro devol ve pr ecisam ent e o r esultado
inverso de uma bus ca aos cli ent es qu e pagaram a 1 de D e­
zembro. Pro curar cli ent es qu e compraram uma m áquina de
lavar ou um cortador de r el va dá-nos aqu el es cli ent es qu e
compraram uma coisa e os qu e compraram a outra.
Po demos agora ver a razão de s er de algumas das r egras
de inf er ência. Consi der e-s e a r egra qu e a partir de «p & q»
nos p ermit e deri var p (ou q). D est e mo do, não po der á partir
de uma ver dade e ch egar a uma falsi dade, pois a úni ca in­
t erpr etação (a prim eira linha da tab ela) qu e t em «p & q» ver­
dadeira t em também cada um dos ingre di ent es ver dadeiros.
Por est e moti vo, esta é uma boa r egra. Também po demos ver
por qu e razão o modus ponendo ponens, apr es entado em cima,
é uma boa r egra. É constituí do por duas pr emissas, «p» e «Se
p, então q». S er á qu e po demos encontrar uma int erpretação
(uma «maneira») na qual ambas as pr emissas s ejam ver da­
deiras e em qu e q (a conclusão) s eja falsa? Não. Isto porqu e,
uma vez qu e p é ver dadeira, a úni ca int erpretação qu e toma
p ➔ q ver dadeira também toma q ver dadeira.

205
PENSE

Há alguns animais interessantes nesta selva. Um deles é


a contradição. Considere-se a seguinte fórmula:
p & -,p

Isto exprime uma contradição - o derradeiro não-não. Já


podemos ver com exactidão em que sentido isto é um não­
-não. É fácil ver, a partir das duas tabelas de verdade que
temos, que, seja qual for o valor de verdade de p, o valor de
verdade desta fórmula resulta F. Não há maneira de ela ser
verdadeira. Isto porque, quando um dos conjuntos é verda­
deiro, o outro é falso: há sempre um elemento que é falso.
E a tabela de verdade para a conjunção mostra que nesse
caso a fórmula, toda ela, é falsa.
Agora suponha-se que complicamos as coisas negando a
nossa fórmula:
-,(p & ,p)

Os parênteses mostram que o ---, de fora nega toda a fór­


mula. Desempenham o mesmo papel que os parênteses em
3 x (4 + 2), o que mostra que o resultado tem de ser 18, e não
o que obteríamos se tivéssemos (3 x 4) + 2, o qual é 14. O uso
de parênteses é extremamente importante na lógica, tal como
o é na aritmética: muitas falácias no raciocínio formal e in­
formal podem ser evitadas se soubermos usar os parênteses.
A isto chama-se saber qual o âmbito da operação de nega­
ção, conjunção, etc. Neste exemplo, a negação de fora opera
em relação ao resto da fórmula. Uma leitura bastante dife­
rente seria dada por ---,p & -.p, que faz simplesmente a con­
junção de ---,p consigo próprio e que, a propósito, é falsa
no caso em que p é verdadeira (dizer duas falsidades ao
mesmo tempo não melhora as coisas). Uma das mais es­
pantosas virtudes da lógica formal é sensibilizar as pessoas
para detectaran ambiguidades, que surgem quando não é
claro onde estão os parênteses, ou, por outras palavras, o que

206
RACIOCÍNIO

rege o quê. Sem sabermos isto, não sabemos de que maneiras


as nossas premissas e as nossas conclusões poderão ser ver­
dadeiras, e portanto se há alguma maneira de as nossas pre­
missas serem verdadeiras sem que as nossas conclusões o
sejam.
A nova fórmula, --,(p & --,p), inverte os valores de verdade
da antiga contradição. Deste modo, ela é verdadeira, sejam
quais forem os valores de verdade dos seus componentes.
A isto chama-se uma tautologia. Esta é uma noção impor­
tante. Na lógica proposicional, se temos como premissas blá­
-blá e como conclusão blu-blu, queremos que «Se blá-blá,
então blu-blu» seja uma tautologia. Não há qualquer inter­
pretação (nenhuma forma de atribuir valores de verdade)
que torne as premissas verdadeiras e a conclusão falsa.
Quando isto acontece, o argumento é válido exactamente
neste sentido em que temos estado a falar.
Uma das maneiras de descobrir se um argumento é vá­
lido é suficientemente comum para merecer um nome. O lei­
tor pode descobrir se «blá-blá, logo blu-blu» é um argumento
válido adicionando «não blu-blu» a «blá-blá» e vendo se daí
resulta uma contradição. Se resulta, é porque o argumento
era válido. Isto corresponde directamente ao facto de não
haver maneira de as premissas serem verdadeiras e a conclu­
são falsa. Não há qualquer interpretação ou modelo para
esse estado de coisas. A contradição impede o caminho.
A isto chama-se «método de redução ao absurdo», ou apenas
reductio, que resulta do nome latino para este tipo de proce­
dimento: reductio ad absurdum. O argumento ontológico de
S.10 Anselmo, apresentado no capítulo 5, tinha essa forma.
Na matemática podemos ter não apenas 2 + 2, mas tam­
bém 3 x (2 + 2) e ((2 + 3) x (2 + 2)) - 5 e assim por diante, o
mesmo se passando com a informação. Desde que dêmos
origem a pedaços complexos de informação aplicando e
reaplicando combinações verofuncionais, podemos controlar
perfeitamente as interpretações que resultam verdadeiras e
as que resultam falsas.

207
PENSE

Não há que ter medo


A lógica estuda a estrutura da informação. Tem por
objectivo exibir essa estrutura e, desse modo, o que se segue
do quê: o que é suficiente para demonstrar p e o que se segue
de p, para qualquer p, seja qual for a sua complexidade. A li­
gação entre a estrutura e a demonstração de um argumento
é a seguinte. A estrutura mostra-nos se há ou não maneira de
as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Isto por­
que compreender a estrutura da informação não é mais do
que compreender as maneiras como a informação pode ser
verdadeira.
Até agora temos estudado a complexidade da informação
que surge a partir da negação de proposições, ou da sua
conjunção, ou de estarem ligadas por meio de implicações.
Mas ainda não entrámos no interior das proposições. Até
agora, «Algumas pessoas são filósofas» e «Todas as pessoas
são filósofas» acabam por ser semelhantes. Cada uma é ape­
nas um exemplo de uma proposição, p. Mas não podemos
ainda entrar no interior das proposições e compreender de
que modo têm diferentes significados.
A descoberta que resolveu este problema criou a lógica
moderna. Foi o matemático e lógico alemão Gottlob Frege
(1848-1925) que fez esta descoberta na sua marcante obra
Begriffsschrift («escrita conceptual»), de 1879. Considere-se o
seguinte argumento: toda a investigação pára algures; logo,
há um algures onde toda a investigação pára (por vezes
supõe-sé que os fundacionalistas que abordámos no capítulo
1 afirmam algo do género). Algo tem de estar errado, uma
vez que um argumento paralelo seria: toda a gente tem uma
mãe; logo, há alguém que é a mãe de toda a gente. Ou: toda
gente ata os atacadores dos seus próprios sapatos; logo, há
alguém que ata os atacadores dos sapatos de toda a gente.
Antes de Frege, as pessoas conseguiam ver que algo de
errado se passava, mas, ao não compreenderem como esta
informação está construída, não conseguiam ver o que era.

208
RAOOCÍNIO

A chave para compreender a descoberta de Frege é pensar


em termos de dois tipos completamente diferentes de infor­
mação. O primeiro é muito familiar. Corresponde a ligar um
termo a um nome ou a outra expressão que refere uma pes­
soa particular ou coisa: Joaquim é rico, António sorri ironi­
camente, isto é uma laranja. Temos um termo sujeito (os
nomes «Joaquim» e «António» e o demonstrativo «isto»}, e
dizem-se coisas acerca daquilo que o termo sujeito identifica:
«é rico», «sorri ironicamente» e «é uma laranja». Estes termos
exprimem condições a que certos objectos podem obedecer e
chamam-se «predicados»: as coisas ricas satisfazem o predi­
cado «é rico» e as outras coisas não. Esta é a forma básica
sujeito-predicado da informação.
Agora podemos fazer algo de surpreendente. Suponha-se
que apagamos o termo que corresponde ao sujeito. Ficamos
apenas com uma frase incompleta, um predicado: «é rico», e
assim por diante. Podemos assinalar melhor o que falta com
uma expressão chamada variável, que normalmente se es­
creve x, y, z, ... , como na álgebra. Assim temos «x é rico». Isto
já não é uma frase que contenha informação, porque não
estamos a dizer que alguém é rico. É uma frase com um
buraco; na gíria dos lógicos, é um predicado ou uma frase
aberta.
Agora vem a magia. Suponha que lhe peço que leve uma
frase aberta para um dado domínio, como uma sala de aula
ou a cidade de Nova Iorque, fornecendo-me depois alguma
informação acerca desse domínio. O leitor poderia limitar-se
a reconstruir um pedaço de informação, como a do nosso
exemplo, nomeando um objecto particular, dizendo que ele
é rico. Mas não tem de o fazer. Pode fazer algo completa­
mente diferente. Pode dizer-me a quantidade de vezes que o
predicado é satisfeito. E pode dizer-me isso sem dizer quem
o satisfaz. É como se usasse a frase aberta fazendo o «x»
apontar uma a uma para todas as diferentes pessoas do
domínio e anotando quantas vezes consegue acertar. Supo­
nha-se que simbolizávamos o predicado com <p (a letra grega

209
PENSE

«fi»). Depois perguntava: «É este um cp, é este um cp?», e assim


sucessivamente para cada membro do domínio. Depois pode
dizer-me o que aconteceu.
Talvez a coisa mais simples que me poderia dizer é que
acertou pelo menos uma vez, algures. Isto é equivalente a
«Há algo que é cp». Ou também poderia dizer-me que obteve
algures uma resposta negativa: «Há algo que é não cp» . Com­
pare este último caso com o caso em que não obteve qual­
quer resposta positiva: «Nada é cp. » Ou pode ter obtido uma
resposta positiva para todos os elementos: «Tudo é cp.»
«Há algo que é cp» é dado por um novo tipo de simbo­
lismo: o quantificador existencial. Escreve-se (3x)cpx (o facto de
a variável aparecer depois do predicado em «cpx», enquanto
em português os predicados vêm geralmente no fim das fra­
ses e termos como os nomes no início, é irrelevante). Se
nunca obteve uma resposta positiva, pode escrever -,(3x)cpx:
nada é <p. Se obteve algures um resultado que não corres­
ponde a uma resposta positiva, fica com algo completamente
diferente, (3x)-,cpx. Se não obteve qualquer resultado que não
fosse positivo, tem -,(3x)-,cpx. Isto diz que em lado algum
existe algo que não seja um cp. Ou, por outras palavras, no
que respeita a este domínio, tudo é cp. Este último tipo de
informação é suficientemente importante para ter o seu pró­
prio símbolo, o quantificador universal, que se escreve (Vx)cpx:
«Tudo é cp».
Leibniz pensava que, se tivéssemos uma notação suficien­
temente lógica, acabariam as disputas e confusões e os seres
humanos sentar-se-iam em conjunto e resolveriam as suas
disputas por meio do cálculo. A invenção dos quantificado­
res não deu lugar a esta utopia, mas aproximou-nos extraor­
dinariamente dela. É quando temos quantificações múltiplas
que exibimos todo o seu poder. Isto é, quando temos infor­
mação construída com mais de um quantificador. Quando
temos mais de um quantificador, usamos diferentes variá­
veis (x, y, z, ... ) para indicar os diferentes buracos a que elas
correspondem. Para ilustrar a ideia podemos ver quão facil-

210
RACIOCÍNIO

mente isto disseca o seguinte argumento inválido: toda a


gente tem uma mãe; logo, alguém é a mãe de toda a gente.
Se escrevermos «x é a mãe de y» como «xMy», simbolizamos
a primeira parte como (Vy)(3x) xMy. A segunda parte é
(3x)(Vy) xMy. Em que diferem as duas partes?
Comece-se com uma frase que afirme a maternidade en­
tre duas pessoas diferentes: a Beatriz é a mãe do Alberto.
Retire-se a referência a Beatriz, e ficamos com a frase aberta
xMa (em que <<a» abrevia Alberto). Sabemos que este predi­
cado é satisfeito (é satisfeito por Alberto), por isso sabemos
que (3x) xMa. Alguém é mãe do Alberto. Agora retira-se a
referência ao Alberto: (3x) xMy. Temos mais uma vez um
buraco, ou uma frase aberta, com y a marcar o buraco. Este
corresponde ao predicado «ter alguém como mãe». Podemos
levar isto para o domínio, apontando a variável a cada um
dos seus elementos em vez de apontarmos só para Alberto:
tem esta pessoa uma mãe?, e esta?, etc. Se obtivermos como
resposta «sim» de cada vez que fazemos isto, podemos
quantificar universalmente: (Vy)(3x) xMy. Todos têm uma
mãe.
Veja-se agora a segunda fórmula. Para a obtermos, come­
çamos de modo similar com Beatriz (b) como a mãe de
Alberto. Mas desta vez retiramos primeiro a referência a
Alberto: bMy. Levamos isto para o domínio. Se pudéssemos
escrever (coisa que no mundo real não faz sentido) (Vy) bMy,
isto seria porque Beatriz é a mãe de toda a gente (para quem
quer que seja que aponte a variável y, verifica-se que Beatriz
é sua mãe!). O que supusemos acerca de Beatriz poderíamos
supor de quem quer que seja (e não apenas de Beatriz): nesse
caso retiraríamos a referência a Beatriz, levando o predicado
«ser mãe de toda a gente», ou, por outras palavras, (Vy) xMy,
para o domínio até encontrar alguém que respondesse que
sim. Nesse caso poderia escrever (3x)(Vy) xMy. Mas aquilo
que devemos ter em conta é que isto é um modo de proceder
completamente diferente. Dá-nos um tipo completamente di­
ferente de informação (falsa, no domínio dos seres huma-

211
PENSE

nos). E a estrutura quantificacional mostra imediatamente a


diferença, porque a disposição dos quantificadores mostra
corno a informação está construída.
No mundo real ninguém é a mãe de toda a gente. Antes
de compreendermos corno funciona a quantificação, aquilo
poderia parecer estranho, corno se a espécie humana tivesse
surgido do Nada. Isto poderia parecer urna tese metafísica
arrepiante. Mas agora foi domesticada. Quer apenas dizer
que ,(3x)(Vy) xMy. E isto é urna verdade simples. A não ser
que o leitor quisesse usar a relação «mãe» de modo a incluir
ancestrais mais remotos, caso em que poderia querer afirmar
que existe alguém, urna Eva biológica, a primeira mulher
Homo sapiens, que é mãe de toda a gente. Mas isso é algo que
eu tornaria corno um uso ilegítimo ou metafórico do termo
«mãe». A minha avó não é literalmente minha mãe.
Podemos fornecer informação mais precisa acerca da
quantidade de vezes que urna certa condição é satisfeita num
domínio. Podemos dizer que há exactarnente urna coisa a
satisfazer a condição. Isto significa que cada vez que acertar­
mos, ao levarmos a variável ao resto das coisas do domínio,
acabaremos por ter sempre o mesmo indivíduo. Sempre que
acertamos, é o mesmo indivíduo. Este é o núcleo da famosa
teoria das descrições definidas de Russell. Para ser verdade
que o único rei de França tem barba será necessário que
exista alguém que governe a França e que mais ninguém
governe a França, e que quem quer que governe a França
tem barba. Caso contrário, a afirmação é falsa.
A estrutura quantificacional é só urna coisa, mas urna
coisa muito importante a que devemos dar atenção. A lin­
guagem comum é boa a gerar ambiguidades que a quantifi­
cação resolve facilmente. «Todas as raparigas bonitas gostam
de um marinheiro», diz a canção. Será que há um marinheiro
sortudo de quem todas elas gostam? Todas elas gostam de
um marinheiro, mas talvez cada urna goste de um marinheiro
diferente? Torne-se um qualquer marinheiro: então, todas as
raparigas bonitas gostam dele? Ternos coisas bem diferentes,

212
RACIOCÍNIO

verdadeiras em circunstâncias bem diferentes. Uma ambigui­


dade relacionada com esta é responsável por cerca de trinta
mil mortes por ano nos Estados Unidos. «Sendo necessária
uma milícia bem regulamentada para a segurança de um
estado livre, o direito do povo de ter e usar armas não será
infringido. » Quem não verá os direitos infringidos? Cada
pessoa? Ou todas enquanto colectividade, como no caso
«A equipa pode ter um autocarro »? Se os fundadores dos
Estados Unidos tivessem sido capazes de pensar em termos
de uma estrutura quantificacional, poderia não se ter derra­
mado tanto sangue.

Linguagem e lógica
O lógico estuda as formas de informação que acabámos
de descrever e, claro, outras formas complexas desse género
à medida que surgem. Mas o trabalho do filósofo tem outro
aspecto, que é decidir quando a informação expressa nos
idiomas da linguagem comum exibe uma ou outra des­
tas formas. Isto revela-se uma tarefa surpreendentemente
difícil.
Por exemplo, considere a diferença entre «Ela era pobre e
honesta» e «Ela era pobre mas honesta ». A primeira ilustra
claramente a forma «p & q». E quanto à segunda? Certamente
que sugere algo mais, qualquer coisa como o facto de ser
surpreendente ou notável que alguém pobre seja honesto.
Mas será realmente isso que diz? Uma sugestão mais simples
é que, estritamente falando, exprime o mesmo que a primeira,
mas fá-lo de forma a insinuar ou sugerir que a combinação
é surpreendente ou notável. Talvez só a informação mais
simples seja estritamente expressa, mas é expressa de uma
forma que sugere algo (que pode, como neste exemplo, ser
bastante desagradável). Assim, os filósofos da linguagem são
levados a distinguir aquilo que é estritamente dito ou afir­
mado - a informação veiculada pela elocução, a que se

213
PENSE

chama condições de verdade - daquilo que é sugerido ou


implicado, não como consequência lógica, mas pelo modo
como as coisas são ditas, a que se chama ímplicatura67•
A linguagem é um instrumento tão flexível e subtil que
não há praticamente limites quanto ao modo como as nuances
na apresentação da informação afectam as implicaturas. Um
exemplo famoso é a forma como ao não dizer algo podemos
estar a fazer fortes insinuações:

- O que pensas do novo professor de Lógica?


- Disseram-me que é um óptimo cozinheiro.

Aquilo que é estritamente dito nada ou quase nada tem a


ver com a competência do professor. Mas o facto de esta ter
sido a única resposta dada mostra claramente que a pessoa
que deu aquela resposta acha que o professor não é bom.
A escolha de terminologia pode ter as suas próprias implica­
turas; veja-se a diferença seguinte:

O João é irmão do Francisco.


O João e o Francisco são .filhos dos mesmos pais.

Neste caso, a segundo forma de pôr aquilo que é a mesma


informação sugere um certo significado - talvez uma sinis­
tra nuance psicanalítica. A ordem como se diz tem também
implicaturas quanto à ordem dos acontecimentos . Seria en­
ganador, apesar de aquilo que é dito ser estritamente ver­
dade, relatar a vida de uma criança que aprendeu a ler e que
depois escreveu poesia, dizendo que ela escreveu poesia e
aprendeu a ler.
A forma como se geram implicaturas faz parte do estudo
da linguagem a que se chama pragmática, enquanto a estru­
tura da informação é da competência da semântica.

67 Estas noções foram profundamente estudadas por Paul Grice. Os seus


ensaios estão coligidos em Studies in the Way of Words.

214
RACIOCÍNIO

Considere a temida pergunta do advogado, usada para


confundir testemunhas masculinas casadas: «Já deixou de
bater na sua mulher? Sim ou não?» A testemunha não pode
responder «Sim» sem admitir ao mesmo tempo que já o tinha
feito; também não pode responder «Não» sem transmitir a
forte impressão que continua a fazê-lo. Logo, fica embara­
çado e o truque resulta. Como podemos melhorar isto?
Suponha-se que analisamos «X deixou de fazer Y» como a
conjunção «X já fez Y & X agora não faz Y». Isto explica por
que razão dizer «Sim» ao advogado é mau: segue-se que ele
bateu na mulher. Por sua vez, dizer «Não» é interessante. Se
olharmos para a tabela de verdade da conjunção, podemos
ver que a conjunção pode ser falsa em três circunstâncias
diferentes: quando p é verdade e q falsa, quando p é falsa e
q verdadeira e quando são ambas falsas. E cada uma destas
três circunstâncias é uma circunstância em que a negação da
conjunção pode ser verdadeira (a negação inverte o valor de
verdade). No caso do advogado é vital para o marido ino­
cente provar que o seu caso é o do meio: é falso que tenha
batido na mulher e verdade que agora não bate. O problema
é que só a palavra «não» é insuficiente para demonstrar qual
é o seu caso e o risco é o júri pensar que ele não parou de
bater na mulher porque ainda o faz (é verdade que ele já o
tinha feito, verdade que ainda o faz e, assim, falso que tenha
parado de o fazer).
A testemunha inocente precisa de palavras suficientes
para especificar qual das combinações o descreve. Por isso,
não pode ficar com a resposta de uma só palavra: «Não»
(apesar de ser verdadeira). O que a testemunha tem a dizer
(de uma só vez) é «Não, já não bato porque nunca bati», ou
algo do género. Se reagirmos deste modo à pergunta do
advogado, podemos dizer que a pergunta «pressupõe» que
a testemunha já bateu na sua mulher, mas apenas no sentido
pragmático, segundo o qual qualquer pessoa que faça essa
pergunta daria normalmente isso como garantido. Pôr a
descoberto as pressuposições escondidas por detrás de certas

215
PENSE

perguntas e opiniões é uma parte importante do pensa­


mento.
Algumas pressuposições chegam mesmo a levantar ques­
tões acerca das suposições que fizemos ao interpretarmos
«e», «não», «ou» e, sobretudo, «se ..., então ...», como funções
de verdade adequadamente descritas pelas tabelas. Estas
expressões parecem por vezes fazer coisas mais complexas.
Por exemplo, considere-se uma festa para a qual Francisco
foi convidado, mas a que de facto não vai. Suponha-se que
dois assassinos estão a tentar descobrir o paradeiro de Fran­
cisco. Um deles diz: «Se o Francisco for à festa, vai de táxi.»
O outro diz: «Se o Francisco for à festa, vai de elefante.»
Intuitivamente, no máximo, uma delas é verdadeira - no
Ocidente seria provavelmente a primeira. Mas, se olharmos
para «O Francisco vai à festa➔ ...», vemos que são ambas
verdadeiras. Isto porque é falso que o Francisco vai à festa
e a tabela para ➔ dá o resultado como verdadeiro, seja qual
for o valor de verdade da outra proposição. Os filósofos cos­
tumavam discutir bastante se este tipo de resultado mostra
ou não que a condicional portuguesa «Se ..., então ... » tem o
mesmo significado que a função de verdade ➔. Hoje em dia
há uma atitude ligeiramente mais descontraída; concedeu-se
que em todo o caso ➔ nos dá o âmago da noção, podendo
o resto ser tratado de um ponto de vista semântico ou prag­
mático.
Antes de terminarmos esta breve apresentação da lógica
formal podemos fazer uma pausa para considerar um certo
tipo de reacção que esta por vezes provoca. Por vezes as
pessoas acham que a lógica é coerciva («masculina») ou favo­
rece um certo tipo de «pensamento linear» por oposição a
um «pensamento lateral». Ambas as acusações estão total­
mente erradas. A lógica formal é demasiado modesta para as
merecer.
Em primeiro lugar, que se quer dizer com «coerciva»?
A lógica formal permite-nos determinar se um conjunto de
proposições implica uma contradição. Também interpreta as

216
RACIOCÍNIO

contradições como falsas. Quase todos nós queremos evitar


sustentar conjuntos de proposições que implicam falsidades,
uma vez que é para nós importante que as nossas convicções
sejam verdadeiras. Se alguém pensa de modo diferente, en­
tão podemos de facto estar dispostos a dar-lhe uma lição de
moral. Mas, ao fazê-lo, não estamos a usar os uniformes dos
lógicos formais. O trabalho dos lógicos formais acabou com
o resultado.
Talvez alguém se sinta coagido pela suposição mencio­
nada logo no início - que toda a proposição é verdadeira ou
falsa e nenhuma proposição é ambas as coisas. Talvez devês­
semos tentar arranjar suposições mais complexas. Por exem­
plo, podíamos permitir proposições vagas que têm um certo
grau de verdade, ou proposições que não são nem verdadei­
ras nem falsas, mas que têm um terceiro estatuto. Isto tam­
bém está bem: estas são ideias respeitáveis e há lógicas alter­
nativas que as desenvolvem. Mas devo advertir que, por
várias razões, elas se tomam estranhas e desconfortáveis.
É em geral sensato estar-se grato pela suposição simples dos
«dois valores».
Uma terceira origem do sentimento de coerção levanta
problemas maiores. Se alguém expressa um certo número de
opiniões, ou aparece com um certo raciocínio, pode ser gros­
seiro e coercivo insistir em vê-las como se exibissem uma
certa forma, a qual as toma contraditórias, ou, no caso do
raciocínio, inválido. Isto pode muito bem ser insensível aos
outros factores que já mencionámos: pressuposições, premis­
sas escondidas e assim por diante. Mas isto não é uma falha
da lógica, mas na falta de caridade ao pensar-se naquilo que
foi dito. Por si mesma, a lógica é indiferente, mesmo a afir­
mações que parecem exprimir contradições óbvias. No conto
«A Senhora com o Cão de Estimação», de Chekhov, Anna
Sergeyevna diz ao marido que irá a Moscovo regularmente
para ir ao médico «e o seu marido acreditou e não acreditou
nela». A lógica formal não nos diz que devemos imedia­
tamente saltar em cima de Chekhov por causa desta con-

217
PENSE

tradição óbvia. Nós sabemos que Chekhov está a sugerir


algo diferente, que o seu marido acredita mais ou menos
nela, ou alterna entre confiar e desconfiar dela. É precisa­
mente a contradição óbvia que nos leva a procurar outras
interpretações.
E quanto à acusação de que a lógica privilegia o raciocí­
nio «linear»? Isto também é um disparate. A lógica formal
não dirige o rumo dos pensamentos de ninguém, do mesmo
modo que a matemática também não nos diz o que contar ou
medir. É gloriosamente indiferente à origem das proposições,
sejam elas o resultado da especulação, da imaginação, da
pura fantasia, da ciência sóbria, ou de qualquer outra coisa.
Tudo o que nos diz é se há maneira de as proposições de um
conjunto, independentemente da sua origem, serem todas
verdadeiras. Mas isto pode ser uma pérola sem preço.

Raciocínios plausíveis
A lógica formal é excelente para nos ajudar a evitar con­
tradições. Do mesmo modo, é excelente para nos mostrar
aquilo que podemos derivar a partir de conjuntos de premis­
sas. Mas temos de ter as premissas. Além disso, não racio­
cinamos apenas para deduzir certas coisas a partir de certa
informação dada, mas para aumentar as nossas convicções,
ou aquilo que consideramos constituir informação. Assim,
muitos dos raciocínios mais interessantes do nosso dia-a-dia
não pretendem ser válidos pelos padrões que temos vindo a
descrever. Pretendem ser plausíveis ou razoáveis, em vez de
completamente explícitos e sem ambiguidades. Há maneiras
nas quais um tal argumento poderia ter premissas verdadei­
ras, mas a conclusão falsa, mas é pouco provável que isso se
verifique.
Todavia, podemos ir um pouco mais longe na aplicação
de algumas das ideias que tratámos, aplicando-as a argu­
mentos plausíveis. Por exemplo, por que razão é uma tolice

218
RACIOCÍNIO

estar confiante em que vou ganhar algo com a minha aposta


na roleta? Porque a única informação de que disponho é que
apostei no x e a roleta pode parar em muitos outros sítios, a
maioria dos quais não são x. Estamos a lidar aqui com o espaço
das possibilidades, e se pudéssemos mostrar que a maioria
das possibilidades deixadas em aberto pelos dados de que
dispomos são aquelas nas quais a conclusão também é ver­
dadeira, então teríamos algo que corresponde a um raciocí­
nio plausível. No caso da roleta, a conclusão de que vai sair
x é falsa na maioria das possibilidades deixadas em aberto
pelos dados de que dispomos.
A roleta e outros jogos de azar são precisamente pequenos
campos concebidos de modo que tenhamos conhecimento
das possibilidades e possamos calcular as probabilidades.
Há cinquenta e dois resultados possíveis quando tiramos
uma carta e, se o fizermos a partir de um baralho novo e bem
baralhado, cada possibilidade tem a mesma probabilidade
de sair. Os raciocínios probabilísticos podem ir mais longe:
por exemplo, podemos calcular se, para cada conjunto de
sete cartas tiradas à sorte do baralho, a maioria delas contém
duas cartas do naipe de copas, ou coisa do género. Neste tipo
de raciocínio probabilístico trata-se precisamente de medir o
conjunto de possibilidades deixadas em aberto pela especifi­
cação e de ver que proporção dessas possibilidades é exibida
num dado resultado.
O que subjaz às nossas atribuições de probabilidades no
mundo real? Suponha que pensamos na nossa situação deste
modo: ao longo da nossa vida temos experiência do modo
como as coisas acontecem. Na nossa experiência, muitas
generalizações parecem ser correctas: a relva é verde, o céu
é azul, a água refresca, o chocolate alimenta. Por isso toma­
mos essas experiências como um guia acerca de como as
coisas são em domínios mais alargados do espaço e do tempo.
Eu não tenho qualquer experiência directa sobre se no século
XVIII o chocolate alimentava, mas suponho que sim; não te­
nho qualquer experiência directa sobre se o chocolate ama-

219
PENSE

nhã vai continuar a alimentar as pessoas, mas suponho que


vai continuar a fazê-lo. As nossas convicções e a nossa con­
fiança ultrapassam o círculo limitado de acontecimentos que
pertencem ao nosso campo imediato de experiências.
Hume coloca o problema deste modo:
Quanto à Experiência do passado, só podemos permitir que
nos dê informação directa e certa desses objectos precisos e desse
preciso período de tempo, que é compreendido pelo seu reconhe­
cimento; mas por que razão deve esta experiência alargar-se ao
futuro e a outros objectos que, tanto quanto sabemos, só aparen­
temente podem ser análogos - esta é a questão principal em que
eu insistiria [ ... ] Pelo menos, temos de reconhecer que há aqui
uma consequência retirada pelo espírito; que se dá um certo passo;
um processo de pensamento e uma inferência, que carece de expli­
cação. Estas duas proposições estão longe de ser as mesmas: Des­
cobri que um dado objecto sempre foi acompanhado por um certo
efeito, e Prevejo que outros objectos, que são aparentemente aná­
logos, serão acompanhados por efeitos análogos. Permitirei, se me
deixarem, que uma das proposições seja justamente inferida da
outra: sei que, de facto, é sempre inferida. Mas, se o leitor insiste
em que a inferência se faz por uma cadeia de raciocínio, desejo
que apresente esse raciocínio68•

A experiência não vai além de porções limitadas do


espaço e do tempo. Em particular, todas as nossas experiên­
cias pertencem ao passado e ao presente. Se fazemos infe­
rências acerca do futuro, então são inferências, e Hume quer
saber qual a «cadeia de raciocínio» que elas empregam.
À inferência a partir daquilo que é verdadeiro no que
respeita a uma região limitada do espaço e do tempo para
uma conclusão verdadeira no que respeita a diferentes par­
tes do espaço e do tempo chama-se «inferência indutiva».
Aquilo que preocupa Hume ficou conhecido como «o pro­
blema da indução».
68 Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. rv, parte 2,
pp. 33-34.

220
RACIOCÍNIO

A lotaria da Harpa de Ouro


Eis uma ficção científica: o leitor é um espírito incorpóreo
que habita uma espécie de Céu. Eu sou Deus. Eu digo-lhe
que estou prestes a dar-lhe um corpo e uma vida para ser
vivida num universo físico que preparei: a Terra. Terminado
o seu tempo no universo, voltará para o Céu. Ao contrário da
vida humana, toda a gente irá viver o mesmo período de
tempo: nove actos, digamos.
Para tornar as coisas interessantes, vou oferecer-lhe uma
espécie de lotaria. Será dado um bilhete a cada pessoa. Os
bilhetes correspondem à cor do céu limpo do meio-dia em
cada um dos nove actos. Eu faço um acordo consigo e todas
as outras pessoas, como os deuses fazem, comprometendo­
-me a não alterar as cores do céu em nenhuma altura a não
ser no início de cada acto. Só uma pessoa irá ter um bilhete
que corresponde realmente à cor do céu em todos os actos.
Também declaro que essa pessoa, o vencedor, irá ganhar a
Harpa de Ouro quando regressar ao Céu. Este é um prémio
muito valioso. O Céu é bom, mas o Céu com a Harpa de Ouro
é ainda melhor. Assim, um bilhete pode ter o seguinte aspecto:
vermelho
laranja X

amarelo X X

verde X X X

azul X X

violeta X

Tempo 1 2 3 4 5 6 7 8 9

Este bilhete corresponde à situação em que o céu começa


por ser azul, muda para verde, depois para amarelo e cor de
laranja antes de começar a escurecer para se tomar de novo
azul e finalmente violeta. Chame-se «Ondulado» ao dono
deste bilhete.

221
PENSE

Algumas das pessoas (seis) têm bilhetes com séries com­


pletas:
vermelho
laranja
amarelo
verde
azul X X X X X X X X X

violeta
Tempo 1 2 3 4 5 6 7 8 9

Chame-se «Direitinho» ao dono deste bilhete.


Se só houver um bilhete para cada pessoa, terá de haver
69 pessoas, o que é de facto um número muito grande, para
haver um bilhete que corresponda a cada uma de todas as
distribuições possíveis das cores. E, em consequência disto,
a probabilidade de o leitor ser o vencedor é apenas de 1/69,
o que é um número muito pequeno.
Hume insiste em que no início desta situação nada pode­
mos saber. Não podemos saber a priori qual o bilhete que irá
ganhar. No início, quando ainda estamos todos animados a
discutir os bilhetes, não há razão alguma para preferir um
em vez de outro. Tanto quanto sabemos, Deus pode favore­
cer as ondas ou as linhas. Ou pode favorecer o Esquisitinho:
vermelho
laranja
amarelo X X X X

verde
azul x x x x x
violeta
Tempo 1 2 3 4 5 6 7 8 9

222
RACIOCÍNIO

O céu limpo do meio-dia começa por ser azul e assim


permanece durante os primeiros cinco actos e depois muda
para amarelo e assim permanece até ao fim. Assim, no Céu,
antes de termos qualquer experiência sobre o mundo em que
Deus está prestes a colocar-nos, nenhum bilhete tem mais
hipóteses de ganhar do que outro.
E agora vamos para a Terra.
Para começar, 5 / 6 de nós podem atirar fora os bilhetes.
Os bilhetes que não têm o azul assinalado no primeiro qua­
drado perdem. Analogamente, no primeiro dia de cada acto
subsequente, 5 / 6 dos sobreviventes podem atirar fora os
seus bilhetes, até que no início do nono acto só restam seis.
E um dia depois disso só há um vencedor.
Voltemos ao fim do quinto acto. Tanto o Direitinho como
o Esquisitinho estavam a sair-se bem. Viram cinco vezes os
seus concorrentes perder. De facto, o número de sobreviven­
tes da lotaria desceu de 69 para 64 e as hipóteses de se toma­
rem vencedores subiu de modo inversamente proporcional.
Suponha-se que eles começavam a discutir um com o
outro. Suponha-se que o Direitinho argumenta que o seu bi­
lhete é de longe o que tem maiores hipóteses de ser premiado
e que ele está disposto a trocá-lo com o Esquisitinho, mas por
um preço exorbitante. Iríamos muito provavelmente concor­
dar com o Direitinho. Mas suponha-se que o Esquisitinho
resiste, argumentando que não há qualquer razão até à data
para achar que deve apostar no bilhete do Direitinho em vez
de apostar no dele. O que poderiam eles dizer?
Cada um deles pode falar no sucesso alcançado até àquele
momento. Mas ambos alcançaram o mesmo. Ambos acertaram
cinco vezes. Não há mais nada que eles possam dizer. Afinal,
nenhum deles pode espreitar para o futuro. Tal como nós, eles
estão presos no tempo e não podem espreitar para fora dele.
O que o Direitinho gostaria era de um argumento a favor
da uniformidade da natureza. Por outras palavras, de um argu­
mento que mostrasse que, uma vez que Deus começou com
o céu azul e continuou com ele até à data, provavelmente

223
PENSE

não o vai mudar. Mas o Esquisitinho pode chamar a atenção


para o facto de Deus ter começado com um céu conforme­
-ao-bilhete-do-Esquisitinho e do mesmo modo argumentar
que provavelmente assim vai continuar.
O Direitinho quer o argumento que Hume afirma não
conseguir encontrar. Mas, como eu já disse, nós temos a sen­
sação de que devemos alinhar pelo Direitinho. Qual é o mal
em argumentar que, uma vez que a natureza, até à data, tem
sido uniforme, muito provavelmente irá continuar assim?
É impossível, por consequência, que quaisquer argumentos basea­
dos na experiência possam demonstrar esta semelhança entre o pas­
sado e o futuro, uma vez que todos esses argumentos têm por base a
suposição dessa semelhança69•

É evidente que Hume sabe que nós aprendemos a partir


da experiência e que todos confiamos na uniformidade da
natureza. Hume pensa que partilhamos esta propensão natu­
ral com os animais. Acontece apenas que isso é tudo o que
ela é: um exercício da natureza. É um costume ou um hábito,
mas não tem uma base racional. Quando raciocinamos
indutivamente, há uma maneira de as nossas premissas se­
rem verdadeiras e a conclusão falsa. A natureza pode mudar.
De facto, há muitas circunstâncias nas quais isso pode acon­
tecer, uma vez que a natureza pode mudar de muitas manei­
ras. Não há qualquer contradição em imaginar isto. E assim
parece que nem sequer podemos argumentar que tais mu­
danças são improváveis. Apenas pensamos isso porque nunca
nos aconteceu assistir a tais mudanças. Contudo, tomar a
nossa experiência como representativa, neste aspecto como
em qualquer outro, pressupõe a uniformidade da natureza.
Parece que projectamos uma ponte entre o passado e o fu­
turo, mas não podemos argumentar que a ponte é de con­
fiança.

69 Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. N, parte 2, p. 38.

224
RACIOCÍNIO

Coisas hipotéticas
Voltemo-nos para um problema bem diferente do problema
da indução, mas que introduz um instrumento extremamente
útil para pensar acerca de muitas outras coisas. É um problema
que a maior parte das pessoas compreende mal.
Suponha que vai ao médico para saber se tem uma certa
doença. Suponha que essa doença é muito rara, que apenas
uma pessoa em mil sofre dela. Mas o seu médico diz ter um
bom exame para a detectar. O exame é de facto fidedigno em
mais de 99 % dos casos! Face a isto, o leitor decide fazer o
exame. Depois - horror! - o seu exame deu positivo. O seu
exame deu positivo e o exame é de confiança em mais de
99 % dos casos. Quão má é a sua situação ou, por outras
palavras, quais são as hipóteses de ter a doença?
A maioria das pessoas diria que é terrível, que é pratica­
mente ponto assente que o leitor tem a doença.
Mas suponha que, sendo um pensador, pergunta ao mé­
dico mais coisas acerca desta fidedignidade de 99 %. Supo­
nha que lhe é dada esta informação:
1) Se tem a doença, o exame dir-lhe-á que a tem.
2) Os exames por vezes, mas muito raramente, dão «falsos
positivos». Só em muitos poucos casos - por volta de
1 % - dizem que alguém tem a doença sem a ter.

São 1 e 2 conjuntamente que justificam que o exame seja


fidedigno em mais de 99 % dos casos. O leitor pode pen­
sar que ainda está praticamente convencido de que contraiu
a doença. Contudo, isto é completamente errado. Dados
os factos, a hipótese de ter a doença é um pouco inferior
a 10 %.
Porquê? Suponha que mil pessoas fazem o exame. Dada
a taxa de incidência da doença, é de esperar que uma dessas
pessoas tenha a doença. O exame dirá que assim é. O exame
também dirá que 1 % das restantes pessoas que foram exa-

225
PENSE

minadas, isto é, mais ou menos dez pessoas, têm a doença.


Logo, é de esperar que em onze dessas pessoas o resultado
do exame seja positivo, mas apenas uma delas terá a doença.
É verdade que a notícia foi má - da hipótese de ser 1 em
1000 pessoas a ter contraído a doença passou para a hipótese
de 1 em 11 -, mas continua a ser muito mais provável que
seja saudável. À má compreensão deste facto chama-se «fa­
lácia da ignorância da taxa de incidência».
Como pensar rigorosamente sobre hipóteses num caso
como este?
Devemos começar com uma fórmula para a probabili­
dade de uma coisa dada outra. Suponha-se que perguntamos
qual a probabilidade de a) uma pessoa numa turma usar
calças de ganga Levi's. Talvez 20 %. E qual a probabilidade de
b) uma pessoa usar um blusão Levi's? Talvez também seja
20 %. Assim sendo, qual a probabilidade de uma pessoa usar
ambas as coisas, o blusão e as calças de ganga Levi's? Pode­
ria pensar que a probabilidade é de 20/100 x 20/100 = 4 %.
Mas isso estaria errado, uma vez que os dois acontecimentos
não são necessariamente independentes. Isso significa que a
hipótese de alguém estar a usar o blusão é provavelmente
muito diferente se também estiver a usar as calças de ganga.
Talvez quase toda a gente que usa esse tipo de calças de
ganga use também esse tipo de blusão, e vice-versa. Nesse
caso, a probabilidade de a e b se aplicarem ambas a uma
mesma pessoa seria também de 20 %. Ou talvez os gurus da
moda digam que nunca devemos usar as duas peças. Nesse
caso, a probabilidade de a e b serem ambas verdadeiras pode
ser O.
Para compreender isto bem precisamos de uma expressão
que traduza a probabilidade de alguém usar o blusão dado
que também usa calças de ganga. A probabilidade de a dado
que b escreve-se Prob (a/b). A probabilidade de b dado que a
é Prob (b/a). A expressão correcta é a seguinte:

Prob (a & b) = Prob (a) x Prob (b/a)

226
RACIOCÍNIO

Ou, de modo semelhante:

Prob (a & b) = Prob (b) x Prob (a/b)

A primeira equação diz-nos que a probabilidade de uma


pessoa usar calças de ganga e blusão = à probabilidade de
usar calças de ganga x a probabilidade de usar blusão dado
que está a usar calças de ganga. A esta última expressão cha­
ma-se «probabilidade condicional». A segunda equação diz­
-nos que a probabilidade de que aquilo aconteça também é
igual à probabilidade de usar o blusão x a probabilidade de
usar calças de ganga dado que está a usar o blusão. Isto tem
de ser idêntico, por simetria (uma vez que a & b é a mesma
proposição que b & a).
Um sacerdote inglês chamado T homas Bayes (1702-61)
examinou este resultado atentamente. Uma vez que cada
uma das equações é igual à Prob (a & b), então são iguais
entre si:

Prob (a) x Prob (b/a) = Prob (b) x Prob (a/b)

Deste modo, podemos escrever uma expressão que ex­


prime a probabilidade de b dado a:

Prob (b,'ª
1)=
Prob (b) x Prob (a/b)
Prob (a)

Esta equação assustadora é uma versão simplificada da­


quilo que ficou conhecido como «teorema de Bayes».
A aplicação deste resultado é a seguinte: suponha-se que
temos algumas hipóteses e alguma informação a seu favor.
Estamos interessados na probabilidade das hipóteses h, dada
a informação e. Podemos escrever isto como Prob (h/e). A isto
chama-se «probabilidade a posteriori da hipótese» - a proba-

227
PENSE

bilidade da hipótese depois de termos obtido informação.


Portanto, o teorema diz-nos o seguinte:

1) = Prob (h) x Prob (e/h)


Prob (h,e
Prob (e)

Isto chama-nos a atenção para três coisas diferentes das


quais depende a probabilidade a posteriori:
Prob (h). Isto é conhecido como a probabilidade a priori ou
antecedente de h.

Prob (e/h). Isto é a probabilidade da informação e, dado h.


Calcula o ajustamento entre a hipótese e a informação.

Prob (e). Isto é a probabilidade a priori ou antecedente da


própria informação.

Intuitivamente, podemos pensar nisto do seguinte modo.


Há três factores. Primeiro: qual a probabilidade da hipótese
no momento zero? Segundo: em que medida a informação se
ajusta correctamente à hipótese? Terceiro: qual a probabili­
dade da informação no momento zero?
É muitas vezes útil tratar este terceiro resultado em ter­
mos das diferentes maneiras como a informação pode ter sur­
gido. É um resultado que aumenta em função do número de
explicações prováveis das possíveis alternativas da informa­
ção. E, quando aumenta, diminui a probabilidade da hipótese
dada sobre a informação. Tem demasiados concorrentes.
Portanto, na prática, a fórmula de baixo calcula quantas
maneiras há nas quais essa informação pode ser explicada e
quão prováveis são. Intuitivamente, reconhecemos a impor­
tância disto. Quando disseram à meretriz Mandy Rice­
Davies que um certo membro da aristocracia havia negado
ter tido um romance com ela, ela respondeu: «Bem, ele não
o iria admitir, pois não?» Ela estava de facto a recordar às

228
RACIOCÍNIO

pessoas que a probabilidade antecedente deste testemunho


em particular era alta, independentemente de qual das hipótese
é a verdadeira, e isto retira-lhe valor como informação. É de
esperar que, seja qual for a sua relação com o aristocrata, ele
dissesse aquilo que disse. Logo, ter dito aquilo que disse não
tem valor enquanto informação.
O ideal seria: a hipótese é a priori provável. A informação
é aquilo de que à partida se estaria à espera, dada a hipótese.
E não há muitas maneiras ou outras maneiras prováveis nas
quais a informação pudesse surgir.
No caso da doença, o teorema de Bayes coloca a taxa de
incidência à frente: é a probabilidade antecedente de ter con­
traído a doença, que é de 1 em 1000. O resultado seguinte, o
ajustamento entre o resultado do exame e a hipótese de ter
a doença, é excelente: de facto, é 1, uma vez que, se tiver a
doença, o exame diz que a tem. Mas, no fundo, temos o
número de maneiras em que a informação poderia surgir.
Informalmente, há 1 hipótese em 1000 de o resultado do
exame ser correcto mais a hipótese de 10 em 1000 de obter um
resultado positivo incorrecto. É daqui que se extrai a proba­
bilidade total, dada a informação, que é (aproximadamente)
de 1 em 11.
Dispomos agora de uma boa maneira de representar a
situação difícil entre o Direitinho e o Esquisitinho na lotaria
da Harpa de Ouro. Suponha-se S em todos os nove actos
- sempre azul - no bilhete do Direitinho. E suponha-se que
E é a parte do bilhete apoiada pela nossa experiência: os
cinco resultados de azul que se obtiveram até à data. Então,
Prob (S) x Prob (E/S)
Prob (s/E) =
Prob (E)

A probabilidade antecedente ou a priori de S era de 1 /69•


Contudo, o segundo resultado é bom. Se S descreve de facto
a forma como os acontecimentos se dão, então a informação
E, isto é, os cinco primeiros resultados, é apenas aquilo

229
PENSE

que seria de esperar. A probabilidade é de facto 1, dado S.


E quanto à probabilidade a priori de E? Temos apenas os
cinco resultados de azul, os quais, dado que o azul é uma
entre as seis cores rivais, é de 1/65• Ao calcularmos isso,
descobrimos que a Prob (S/E) é 1/64, que é precisamente o
resultado a que intuitivamente tínhamos chegado.
O problema é que exactamente a mesma fórmula nos dá
exactamente o mesmo resultado no caso do bilhete do
Esquisitinho, D. Pode-se ver facilmente que a informação
tem a probabilidade 1, dado que D, e a probabilidade a priori
da informação é a mesma em ambos os casos.
Note-se que o problema não é «demonstrar» que S irá ga­
nhar, ou que D não irá ganhar. É apenas o de encontrar uma
b oa razão que explique por que motivo é de esperar que seja
S a ganhar, e não D. Trata-se de comparar as probabilidades.
A posição de Hume é que nem sequer isto pode ser feito a
favor de S. A razão permanece completamente muda nestes
casos. E, segundo a análise de Bayes, Hume parece ter razão.
A discussão entre o Direitinho e o Esquisitinho continua tão
empatada como nunca. De facto, se não houver qualquer
razão a priori para preferir o bilhete S ao bilhete D no Céu,
então não há qualquer razão para o preferir depois de a in­
formação ter surgido. Ou pelo menos assim parece.
Poderíamos agora revisitar vários temas: a possibilidade
da existência de mortos-vivos, o argumento do desígnio, a
possibilidade de um deus criar ou permitir o mal e, especial­
mente, a discussão acerca dos milagres, usando o teorema de
Bayes. É um instrumento de extrema importância. As falá­
cias contra as quais nos previne - não atender à taxa de
incidência, não atender às possibilidades de falsos positi­
vos - são perigosas e surgem por todo o lado quando as
pessoas tentam pensar.
É claro que é muitas vezes difícil ou mesmo impossível
qualificar as probabilidades «a priori» com alguma exactidão.
E importante compreender que isto não é assim tão impor­
tante quanto possa parecer. Há dois factores que suavizam o

230
RACIOCÍNIO

problema. Primeiro, mesmo que atribuamos um valor a cada


um dos resultados, pode ser que todas as maneiras de calcu­
lar o resultado final nos dêem um resultado suficientemente
parecido. E, segundo, pode ser que, perante suficiente infor­
mação, as diferenças entre opiniões a priori sejam reduzidas.
Investigadores que comecem com opiniões a priori muito di­
ferentes acerca da Prob (h) podem acabar atribuindo valores
muito semelhantes à Prob (h/e), quando (e) for suficiente­
mente impressionante.
A propósito, vale a pena dizer que há métodos bastante
ortodoxos de inferência estatística que tentam ignorar as
ideias bayesianas. Parte da investigação científica limita-se a
asseverar que um dado resultado só ocorreria por acaso
numa pequena percentagem do tempo (menos de 5 %, ou
menos de 1 %, por exemplo). Mas depois infere-se que o resul­
tado não se deve provavelmente ao acaso - isto é, há um
factor causal significativo ou um tipo qualquer de correla­
ção. Este raciocínio prevalecente é de facto altamente duvi­
doso e Bayes mostrou porquê. Se a probabilidade antece­
dente de que um resultado se deve a algo mais do que ao
acaso for muito baixa, então mesmo resultados altamente
improváveis não a irão afectar completamente. Se eu retirar
de um saco, ao acaso, sete cartas de Scrabble e as colocar
numa mesa, voltadas para baixo, baralhando-as e colocando­
-as então em linha, virando-as de seguida, o resultado alcan­
çado (PQAERTU, por exemplo) será realmente muito impro­
vável. Podia fazer a mesma coisa durante 100 anos sem
nunca mais voltar a obter o mesmo resultado. Mas foi o
acaso, apesar de tudo. Neste caso, qualquer resultado seria
muito improvável, e não devemos voltar atrás para inferir
que algo mais além do acaso foi responsável pelo resultado.
Este é o mesmo tipo de raciocínio que alimenta as tentativas
lunáticas de demonstrar que a melhor explicação para o
padrão de ocorrência de vogais nas peças de Shakespeare é
a hipótese de que ele estava a escrever o Nome da Besta 666
vezes, ou algo do género. Em suma, não é apenas o facto de

231
PENSE

um resultado ser improvável que nos deve levar a procurar


uma qualquer explicação especial. Precisamos de uma razão
adicional para achar que o resultado improvável, afinal, não
se devia apenas ao acaso. O acaso é tão bom quanto o desíg­
nio a apresentar improbabilidades.

Explicações e paradigmas
A indução é o processo de tomar as coisas da nossa expe­
riência como se fossem representativas do mundo que a
ultrapassa. É um processo de projecção ou extrapolação.
Mas é apenas parte de um processo mais vasto para tentar
aumentar a nossa compreensão das coisas. Na secção final
deste capítulo pretendo apresentar alguns dos raciocínios
que isto envolve.
Suponha-se que temos um sistema complexo. Temos várias
características, que parecem interagir entre si. Podemos encon­
trar as maneiras nas quais elas parecem interagir entre si, obser­
vando as mudanças e as variações. Podemos ser capazes de
comparar estas mudanças e variações e de encontrar relações
fidedignas. Um exemplo disso é a lei de Boyle que nos diz que
a pressão de uma dada massa de gás, a uma certa temperatura,
é inversamente proporcional ao seu volume. Isto é uma lei me­
ramente empírica. Verificou-se isto na experiência e tomamo-la
como verdadeira num mundo mais vasto. Algumas disciplinas
ficariam extremamente satisfeitas se conseguissem ir tão longe.
Por exemplo, a economia pretende descobrir as características
correctas de um sistema económico e ser capaz de traçar de
modo fidedigno as relações entre elas, o que se tem mostrado
extremamente difícil. É necessário engenho e arte, e a maioria
das tentativas fracassam. Temos tendência para esquecer que
isso também aconteceu na física. Por exemplo, foi preciso um
século de esforços para os cientistas aprenderem a identificar a
energia de um sistema mecânico como a sua característica si­
lenciosa, cuja conservação permite prever o seu comportamento.

232
RACIOCÍNIO

Este é um facto histórico que os professores de Ciência deviam


repetir vezes sem conta, em vez de repreenderem as crianças
como «burras» por não compreenderem imediatamente a ideia.
Se um economista tiver uma história acerca das variáveis
correctas e das relações entre elas, podemos chamar-lhe
«modelo económico». Mas mesmo que tivéssemos tal coisa,
poderíamos continuar a sentir que não compreendíamos o
que se estava a passar. Isaac Newton (1642-1727) tinha uma
lei que pretendié;l explicar a atracção gravitacional entre
quaisquer corpos como uma função das suas massas e da
distância entre eles: a famosa lei do quadrado inverso -
segundo a qual dois corpos quaisquer se atraem com uma
força proporcional ao produto das suas massas e inversa­
mente proporcional ao quadrado da sua distância. Tanto ele
como os seus contemporâneos sentiram que isto não lhes
fornecia uma verdadeira compreensão da razão pela qual a
gravidade opera como opera. Tal como com a lei de Boyle,
podemos dizer que, apesar de ser tudo o que temos, sabemos
algo sobre o sistema. Mas não compreendemos verdadeira­
mente por que razão se comporta como tal. Por que razão
varia a pressão inversamente com o volume? Se isso acontece
sempre desse modo, por que razão assim é? E por que razão
é a constância da temperatura importante?
Estas perguntas foram respondidas fornecendo-se um
modelo num sentido mais robusto. A teoria cinética dos ga­
ses apresenta-os como volumes de moléculas em movimento.
A pressão é o resultado do impacte destas moléculas nas
paredes do contentor. As moléculas aumentam de velocidade
a temperaturas elevadas. Depois de vermos o gás deste
modo, temos um mecanismo e, conjuntamente com as supo­
sições adequadas, as leis empíricas, como a de Boyle, podem
derivar-se a partir da natureza do mecanismo.
Encontrar um mecanismo não evita o problema da indu­
ção. O comportamento uniforme contínuo de itens é uma
projecção ou extrapolação daquilo que encontrámos até à
data, como tudo o resto. Mas reduz o número de suposições

233
PENSE

independentes que precisamos de fazer. Um pequeno nú­


mero de características estáveis das coisas e as interacções
fidedignas entre elas podem explicar outras características.
Se aceitarmos sem discussão as características estáveis, po­
demos explicar as outras com base nestas. Isto representa os
ideais explicativos e simplificadores da ciência.
Mas que tipo de coisas contam como «mecanismos» satisfa­
tórios? Coisas cujo comportamento compreendemos «clara e
distintamente»? Ou outra coisa qualquer? A resposta a esta
questão abre um dos mais emocionantes capítulos do pensa­
mento moderno. Quase toda a gente está inclinada a pensar que
existem certos tipos de sistemas que compreendemos melhor
do que outros. Para a maior parte das pessoas, alguns tipos de
causalidade, como a dos circuitos eléctricos, parecem particular­
mente inteligíveis, ao passo que outros, como a acção à distân­
cia, ou os efeitos do corpo na mente, parecem muito misteriosos.
De facto, até Hume, quase toda a gente - tanto os filósofos
como os cientistas, como Newton - pensava deste modo. Pen­
sava que tínhamos um conhecimento a priori acerca do que causa
o quê e, mais ainda, daquilo que não poderia causar certa coisa.
Já vimos isto. Até mesmo Newton pensava ser claro que a
atracção gravitacional não podia ser um caso de acção à distân­
cia Achava que qualquer imbecil poderia ver que, se o Sol
exercesse uma força de atracção sobre a Terra, isso devia ser por
causa de uma espécie qualquer de corrente entre eles. A cau­
salidade tinha de ser uma questão de puxões e empurrões:
Que a gravidade seja inata, inerente e essencial à matéria, de
modo que um corpo possa agir à distância sobre outro através de
um vácuo, sem a mediação de mais nada, e pelo qual e através do
qual a sua acção e a sua força possam ser transmitidas de um
corpo para outro, é para mim de tal modo absurdo que julgo que
nenhum homem que tenha uma boa capacidade para pensar em
questões filosóficas pode aceitar tal coisa70•

70
Este excerto foi retirado de uma carta de Newton para Bentley. Esta é
citada em Kemp Smith, The Philosophy of David Hume, p. 61.

234
RACIOCÍNIO

Sem dúvida que «é evidente» ou «claro e distinto» ou «a


priori» que um corpo não pode agir onde não está! Ainda racio­
cinamos deste modo quando, por exemplo, tentamos mostrar
por puro raciocínio que o universo tem de ser a criação de um
deus. Estamos a supor que sabemos que tipo de coisa tem de ser
a causa de certo efeito e o que não poderia ser a sua causa.
Hume destroçou este tipo de racionalismo:

Ouso afirmar, como uma proposição geral que não admite


excepções, que o conhecimento desta relação não é, em caso algum,
alcançado por raciocínios a priori; mas resulta inteiramente da
experiência quando descobrimos que quaisquer objectos particulares
estão em conjunção constante. Apresente-se um objecto a um ho­
mem com a mais poderosa razão natural e capacidades; se esse
objecto for para ele inteiramente novo, ele não será capaz, através
do exame mais apurado das suas qualidades sensíveis, de descobrir
quaisquer das suas causas ou efeitos. Adão, ainda que suponhamos
que as suas faculdades racionais fossem inteiramente perfeitas desde
o primeiro instante, não poderia ter inferido da fluidez e transpa­
rência da água que esta o sufocaria, ou da luz e do calor do fogo
que este o consumiria71 •

Como é dever de um bom psicólogo, Hume oferece uma


explicação para o preconceito de que podemos argumentar a
priori acerca de causas e efeitos:
Imaginamos que, se tivéssemos sido subitamente trazidos a
este mundo, nos seria possível inferir imediatamente que uma
bola de bilhar comunicaria o seu movimento a outra quando lhe
batesse; e que não precisaríamos de ter esperado pelo aconteci­
mento para nos pronunciarmos sobre ele com toda a certeza. Tal
é a influência do hábito que, quando se manifesta com toda a sua
força, não apenas esconde a nossa ignorância natural, como se
esconde a si próprio, parecendo não ter lugar, unicamente porque
está presente no mais alto grau72•

71 Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. IV, parte 1, p. 27.


72 Id., ibid., cap. IV, parte 1, p. 28.

235
PENSE

Hume sabia que os filósofos e os cientistas ansiavam arden­


temente por um ideal de «intuição» das leis da natureza: algo
corno uma álgebra ou geometria que lhes permitisse ver por
que razão os acontecimentos seguem padrões necessários e
matematicamente certos. Queriam uma percepção cartesiana
«clara e distinta» da razão pela qual as coisas são corno são.
Mas Hume pensava que este objectivo era uma ilusão. Nada
do 9ue os cientistas fazem poderia conseguir tal coisa.
E bom relembrar que, quando Newton publicou a obra
Principia Mathematica, em 1687, revelando as leis do movi­
mento, houve cientistas que ficaram desapontados. Queriam
urna intuição quanto ao que é a atracção gravitacional, mas
Newton apenas lhes disse o que ela Jazia. Newton diz-nos
corno os corpos se aceleram em direcção uns aos outros e é
tudo. Hume argumentou que o género de coisa que Newton
fez era o único tipo de coisa que a ciência podia fazer. Defen­
deu que tudo o resto representa um ideal incoerente. Na
citação que se segue, «filósofos» são os cientistas e «filosofia
natural» significa o que agora se chama «ciências da natu­
reza», especificamente a física e a química:

Por esse motivo, podemos descobrir a razão pela qual nenhum


filósofo que seja racional e modesto alguma vez pretendeu apon­
tar a causa última de qualquer operação natural, ou mostrar dis­
tintamente a acção desse poder, o qual produz todos os efeitos do
universo. É notório que o mais elevado esforço da razão humana
seja o de reduzir os princípios que produzem os fenómenos natu­
rais a uma maior simplicidade e dissolver os muitos efeitos par­
ticulares em algumas causas gerais por meio de raciocínios por
analogia, experiência e observação. Mas, quanto às causas dessas
causas gerais, é em vão que tentamos descobri-las; nem nunca
seremos capazes de nos satisfazer a nós mesmos por qualquer
explicação particular destas. Estas causas e princípios estão total­
mente fechados à inquirição e descoberta humanas. Elasticidade,
gravidade, coesão de partes, comunicação do movimento por
impulso são provavelmente os princípios e causas últimas que
iremos alguma vez descobrir na natureza; e podemos considerar­
-nos suficientemente satisfeitos se, por meio de um raciocínio cui-

236
RACIOCÍNIO

dadosa, conseguirmos levar os fenómenos particulares até estes


princípios gerais ou perto disso. A mais perfeita filosofia natural
apenas adia um pouco mais a nossa ignorância73•

O que aqui temos é uma magnífica rejeição do ideal racio­


nalista. Em seu lugar parece que ficámos apenas com siste­
mas mais ou menos familiares. A cada momento, os sistemas
com os quais nos sentimos confortáveis fornecem «paradig­
mas», ou sistemas com os quais comparamos outros siste­
mas. Determinam o nosso critério do que poderá contar
como explicação satisfatória. Mas, sem o ideal racionalista,
tomamos consciência de que esse critério é em si variável.
Será que, se substituirmos «razão» por «hábito e costume»,
não poderão mudar também os nossos hábitos e costumes?
O famoso filósofo da ciência T homas Kuhn74 (1922-96) defen­
deu que, na verdade, podem mudar. A ciência «normal» de­
senvolve-se à luz de um conjunto de paradigmas, ou de
perspectivas implícitas acerca do tipo de explicações que
devemos procurar. Os períodos de ciência revolucionária
ocorrem quando os próprios paradigmas são colocados em
causa. A ciência deve ser vista como «uma série de interlú­
dios pacíficos interrompidos por revoluções intelectualmente
violentas». Depois das revoluções muda a nossa concepção
do que é uma explicação satisfatória da razão pela qual as
coisas encaixam umas nas outras.
Algumas pessoas ficam muito emocionadas demasiado de­
pressa com este tipo de pensamento. Interpretam-no como se
sugerisse uma espécie de «relativismo», segundo o qual algu­
mas pessoas têm os seus «paradigmas» e outras pessoas têm
outros, não sendo possível avaliar qual é o melhor. Mas isso
não se justifica. Pode haver paradigmas melhores ou piores.
Ver o céu como um véu opaco com buracos através dos quais

73
Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. IV, parte 1, p. 30.
74
A obra-prima de Kuhn foi The Structure of Scientific Revolutions,
publicada em 1962.

237
PENSE

vemos pedaços dos céus foi um paradigma ou modelo da


natureza dos céus. Nós pensamos que conhecemos melhor as
coisas e eu também penso isso. Pode-se exigir aos paradigmas
que mostrem o seu valor e alguns não conseguem fazê-lo.
Assim, suponha-se que é verdade que abordamos inevita­
velmente o mundo com um conjunto particular de categorias
preferidas, estabelecidas parcialmente pela nossa cultura e pela
nossa história. Não se segue que todos esses conjuntos são
igualmente «bons». Alguns conjuntos foram abandonados por
razões boas e suficientes. Um ambiente científico é (idealmente)
um ambiente no qual o processo constante de fazer experiên­
cias, previsões e testes elimina as ideias más. Só as ideias que
sobrevivem passam à geração seguinte. Isto não quer dizer que
os ambientes científicos efectivos são assim tão ideais: sem
dúvida que a ciência pode a qualquer momento alardear a sua
quota-parte de cegueiras, preconceitos e distorções. Mas o pro­
cesso contém em si os mecanismos de correcção. Podemos
recordar aqui a discussão do capítulo 1, onde criticámos Des­
cartes por não ter em conta a natureza «autocorrectiva» dos
sentidos, pela qual as ilusões são detectadas enquanto tais.
Analogamente, a ciência contém em si os dispositivos para
corrigir as ilusões da ciência. É essa a sua maior glória. Quando
se nos deparam práticas intelectuais que não contêm tais dis­
positivos - poderíamos citar a psicanálise, as grandes teorias
políticas, a ciência new age, a ciência criacionista -, não vale a
pena perder tempo com elas.
Neste capítulo descobrimos alguns dos elementos a ter
em conta nos nossos raciocínios. Vimos algumas das ideias
que subjazem à lógica formal. Distinguimos processos de
raciocínio indutivo e vimos quão dependentes estamos de
uma fé bruta na uniformidade da natureza. Temos uma ideia
de como pensar acerca da probabilidade das coisas. E olhá­
mos um pouco para os processos de construção de modelos
e de explicação, tendo sido levados a desconfiar de raciocí­
nios a priori acerca de causas e efeitos. Tudo isto nos deu
instrumentos para serem usados quando pensarmos sobre o
mundo e o nosso lugar nele.

238
7
O mundo

Nos seis capítulos que já percorremos visitámos as se­


guintes seis áreas de problemas: pensamentos sobre a nossa
própria fiabilidade global, a mente e o corpo, a liberdade e o
destino, o eu, Deus e a ordem da natureza. Cada uma delas
é uma notável área de dificuldades, na qual a estrutura dos
nossos pensamentos, ou o modo apropriado de pensar, é
difícil de discernir. Podemos ter a esperança de que, compa­
rativamente, o pensamento sobre o mundo que nos rodeia
esteja relativamente isento de problemas. Neste capítulo visi­
tamos áreas nas quais um pouco de pensamento dá origem
a problemas também quanto ao mundo.

Cores, cheiros, sons, sensações e gostos


Eis um grande contemporâneo de Descartes, o físico Ga­
lileu Galilei (1564-1642):
Ora afirmo que, sempre que concebo qualquer substância mate­
rial ou corpórea, sinto imediatamente a necessidade de pensar que
ela é limitada e que tem esta ou aquela forma; que é grande ou

239
PENSE

pequena relativamente a outras coisas e que em qualquer momento


dado está localizada num lugar específico; que está em movimento
ou em repouso; que está em contacto ou não com outro corpo; e
que é una, múltipla ou numerosa. Nenhum esforço da imaginação
me permite dissociar uma tal substância destas condições. Mas
que tenha de ser branca ou vermelha, amarga ou doce, ruidosa ou
silenciosa, com um odor doce ou repugnante - o meu espírito
não se sente compelido a introduzir tais coisas como acompanha­
mentos necessários. Sem os sentidos por guias, a razão ou a
imaginação por si jamais chegariam provavelmente a qualidades
como estas. Por isso, penso que os gostos, odores, cores e assim
por diante não são mais do que meros nomes no que respeita ao
objecto no qual os colocamos, e que tais coisas residem apenas na
consciência. Por isso, se a criatura viva fosse removida, todas
estas qualidades desapareceriam e seriam aniquiladas75 •

Galileu refere-se aqui ao que veio a chamar-se a distinção


entre qualidades primárias e secundárias das coisas materiais.
As qualidades secundárias são o objecto imediato dos senti­
dos: cores, gostos, sons, odores, sensações. Estas qualidades,
segundo Galileu, «residem» somente no animal senciente
(isto é, dotado de percepção). Além disso, segundo Descar­
tes, não há razão para supor que elas são «semelhantes»
àquilo que na natureza é a sua causa - a afectação do olho
por fotões, no caso das cores, por exemplo.
Do mesmo modo, Descartes tinha os sentidos em fraca
conta enquanto veículos para chegar à verdade (recorde-se a
bola de cera do capítulo 1):

Pois o propósito próprio das percepções sensoriais que me foram


dadas pela natureza é unicamente o de informar a mente sobre o
que é benéfico ou prejudicial para o composto de que a mente é
uma parte [ . . .] mas uso-as incorrectamente ao tratá-las como
pedras-de-toque de juízos imediatos sobre a natureza essencial
dos corpos localizados fora de nós76•

75 Galileu, The Assayer, in Discoveries and Opinions of Galileo, p. 274.


76
Descartes, «Sexta Meditação», p . 57.

240
O MUNDO

Um exemplo que Descartes apreciava era a percepção de


uma dor identificada no pé, depois de os «espíritos animais»
terem conduzido a sua energia, o seu «jacto ardente», ao
longo dos nervos e em direcção ao cérebro. Deus providen­
ciou para que a mente recebesse a melhor sensação possível
(o bel-prazer de Deus, novamente). O movimento particular
do cérebro poderia ter fornecido outra coisa à mente. No
entanto, «nada teria sido tão propício ao contínuo bem-estar
do corpo». Por outras palavras, se Deus tivesse procedido de
modo que eu interpretasse os movimentos no cérebro como
um sinal, por exemplo, de uma perturbação localizada no
cérebro, eu seria mais lento a retirar o pé ferido da fonte que
o afecta. Repare-se que a posição de Descartes é, neste aspecto,
uma negação do epifenomenalismo. É porque os aconteci­
mentos mentais são uma coisa ou outra que movemos o pé
com rapidez. Se o mental fosse inerte, Deus poderia ter dei­
xado que as coisas acontecessem de qualquer maneira sem
com isso afectar o nosso bem-estar.
A linguagem algo peculiar de Descartes oculta uma pers­
pectiva surpreendentemente moderna. Se substituirmos Deus
pela evolução, podemos colocar a questão assim: para que uma
criatura se desenvolva, necessita de extrair informação do meio
ambiente que vá ao encontro das suas necessidades efectivas.
Para que isto aconteça é indispensável que a informação a
estimule a agir do modo correcto. Por exemplo, se um preda­
dor se aproxima, urna ave necessita de informação que esti­
mule o voo. No entanto, para esta função é irrelevante a expe­
riência que se recebe. Se um predador avança ao longo de
um ramo, o «movimento» que induz no ouvido da potencial
vítima poderia traduzir-se num som estridente, harmónico, de
alta ou fraca intensidade ou apenas num mau cheiro; desde
que a vítima percepcione algo que a assuste, os seus sentidos
estão a fazer o seu trabalho. Os sentidos só nos fornecem dados
«confusos» (e não claros e distintos).
Isto também iliba Deus. Se perguntarmos por que razão
os sentidos por vezes nos enganam, fazendo-nos acreditar

241
PENSE

que as cores existem independentemente de nós, quando não


é isso que acontece, a resposta inclui duas partes distintas.
Em primeiro lugar, Deus criou o «melhor sistema que podia
ser concebido» para produzir sensações especialmente ade­
quadas à preservação de indivíduos saudáveis. Os sentidos,
como vimos, podem enganar-nos. Descartes, no entanto, in­
siste que somos nós, e não a natureza, ou o desígnio de Deus,
que estamos em causa sempre que interpretamos incorrec­
tamente os dados que os sentidos nos fornecem, sem os
corrigirmos com a ajuda da inteligência. Não deveríamos,
portanto, considerar os dados fornecidos pelos sentidos in­
formação fidedigna acerca das verdadeiras propriedades das
coisas. Ao fazê-lo, cometemos o erro de considerar dados
confusos como se fossem claros e distintos.
Quando usamos realmente os nossos intelectos, abstraindo
dos dados dos sentidos, que imagem do mundo nos resta?
Descartes, o matemático, pensava que a verdadeira proprie­
dade da res extensa era, como o nome sugere, a extensão
espacial. O resto não ia além de um «preenchimento» pelos
sentidos, possivelmente ilusório, do volume espacial com
cores e impressões - algo que, como pensava Galileu, reside
apenas na mente. Tal como deram origem ao problema do
dualismo mente-corpo, Descartes e os seus contemporâneos
estão na origem do dualismo entre o mundo tal como se nos
apresenta (por vezes designado a «imagem manifesta») - o
mundo familiar habitado por cheiros, cores e ruídos - e o
mundo tal como é objectivamente (a «imagem científica») -
um mundo que apenas contém partículas físicas e forças
distribuídas ao longo de um espaço cósmico ilimitado.
O que terá conduzido a ciência a restringir à mente as cores
e o resto? O argumento mais convidativo é o da relatividade
perceptiva. As pessoas têm tendência para pensar que o
«relativismo» é uma ameaça, ou tentação, própria da filosofia
moral, área em que estamos desconfortavelmente familiariza­
dos com a maneira como as situações afectam pessoas diferen­
tes de maneiras diferentes. Mas perfila-se agora no horizonte

242
O MUNDO

um relativismo mais geral. Baseados no relativismo no que


respeita a gostos, odores, cores, sons e sensações, podemos
apresentar um argumento como o seguinte:
Suponhamos que uma parte do mundo ou um objecto nele
situado liberta, para um observador O, um certo cheiro, etc.
O modo como essa porção do mundo ou objecto cheira, etc.,
será uma função das estruturas sensoriais de O. Assim, há ou
poderia haver um outro indivíduo O* com diferentes estruturas
sensoriais para o qual a mesma porção do mundo ou o mesmo
objecto nele situado teria um cheiro muito diferente. O e O*
podem, ambos, ter vidas perfeitamente adaptadas. Portanto,
não há razões para afirmar que apenas O ou apenas 0* apreen­
dem correctamente o cheiro. Não há, portanto, uma só distri­
buição de cheiros, etc., que possamos considerar correcta. Logo,
os cheiros, etc., dependem inteiramente da mente.

Este argumento era já conhecido no mundo antigo, ainda


antes de se tomar proeminente no século XVII. Convém assi­
nalar vários aspectos que lhe estão associados.
Em primeiro lugar, o argumento não depende de existir
de facto um indivíduo O*. Basta pensar na possibilidade de
esse indivíduo existir: alguém cuja receptividade às cores
seja distinta da nossa, ou cujo aparato auditivo seja sensível
a diferentes frequências de som ou a diferentes tipos de ener­
gia. Claro que o argumento ganha vivacidade quando repa­
ramos em exemplos gritantes. Ninguém que tenha um cão
acredita que o mundo de cheiros em que o cão habita tem
uma grande semelhança com o nosso. E alguns de nós ainda
nos lembramos, por exemplo, de como a cerveja ou o vinho
seco sabiam antes de nos termos habituado a estas bebidas.
Há claramente diferentes sensibilidades: para começar, ne­
nhuns mamíferos, excepto alguns primatas, vêem cores. Há
substâncias (o fenol é um exemplo) que têm um pronun­
ciado gosto amargo para uma ampla maioria de seres huma­
nos, ainda que para os restantes não apresentem qualquer
sabor. E assim por diante.

243
PENSE

Mas, além dos casos que acabámos de observar, é fácil


conceber formas de vida perfeitamente adaptadas, mas equi­
padas com «preenchimentos» sensíveis bastante diferentes.
Algumas pessoas regulam os televisores para obterem cores
que a muitas outras parecem berrantes, ainda que o resul­
tado seja o de observarem exactamente as mesmas cenas.
Também a segunda premissa parece incontestável. Na
verdade, limita-se a evocar uma porção do conhecimento
que possuímos acerca do mundo. Sabemos, por exemplo,
que certas condições podem fazer-nos percepcionar diferen­
tes sabores ao provar a mesma substância. Quando nos cons­
tipamos, perdemos grande parte do olfacto. Sabemos ainda,
como foi indicado no capítulo 2, que a visão das cores de­
pende da sensibilidade de três géneros diferentes de recep­
tores instalados no olho. E sabemos que os morcegos se mo­
vimentam devido a factores acústicos cujo acesso nos está
vedado.
Dir-se-ia, portanto, que a conclusão inicial é inevitável.
Façamos a seguinte comparação: dois aparelhos de televisão
podem receber o mesmo sinal. Contudo, a imagem depende
da estrutura particular de cada televisor. Assim, é possível
conceber televisores que emitam diferentes dados de saída,
cu outputs, com base no mesmo sinal (facto que, aliás, se
verifica).
A premissa seguinte é crucial, ainda que por vezes seja es­
quecida em discussões sobre o relativismo noutras áreas -
por exemplo, em ética. Qualquer argumento que deseje
estabelecer uma conclusão final necessita de proceder do
seguinte modo. Não basta assinalar que diferentes indiví­
duos percepcionam o mundo diversamente ou defender,
em particular, que apenas um certo conjunto de indivíduos
o faz correctamente. A analogia com os televisores é eluci­
dativa neste aspecto. É possível dizer que o modo como um
aparelho de televisão emite uma imagem como resposta a
um sinal pode variar. Se a televisão for inadequada para
receber esse sinal, então a imagem apenas mostra, digamos,

244
O MUNDO

«chuva». No entanto, isto apenas significa que o televisor é


incapaz de processar a informação disponível, informação
que o sinal objectivamente contém. O argumento não per­
mite concluir que essa informação não está de facto disponí­
vel, independentemente do receptor. Se o transmissor emite
eficazmente um discurso de tomada de posse, o aparelho de
televisão que nos mostrar «chuva» estará a executar deficien­
temente a sua função em comparação com outro que emita
o discurso. Não se limita a fazê-lo igualmente bem, ainda
que de forma diferente. No entanto, é isto que o argumento
relativista pretende mostrar. Portanto, o argumento tem uma
falha.
Esta falha deixa de existir se a premissa assumir que di­
ferentes indivíduos podem ter vidas igualmente bem adap­
tadas. A falha é colmatada se aceitarmos que diferentes ob­
servadores estão potencialmente bem adaptados em idêntico
grau aos mundos que habitam. Para Descartes, esta convic­
ção teria um suporte teológico. No nosso caso, tem uma
explicação evolucionista. Os indivíduos incapazes de rece­
ber a informação de que necessitam sucumbem inevitavel­
mente. Portanto, ao contrário das televisões, O e 0* podem
ser igualmente bem sucedidos, ainda que as suas vidas en­
volvam diferentes experiências sensoriais: vêem, cheiram,
ouvem, saboreiam e sentem de modos distintos. Esta igual­
dade sugere, como Russell77 mais tarde observou, que seria
apenas um gesto de «favoritismo» afirmar que uma das
maneiras representa melhor o mundo do que a outra.
Ainda assim, assumir como premissa graus idênticos de
adaptação pode não ser suficiente. Poderíamos pensar nos
seguintes termos: é óbvio que os cães, por exemplo, são indi­
víduos bem adaptados; os sistemas sensoriais que possuem
satisfazem as suas necessidades naturais. Tentemos agora
distinguir as diferentes dimensões envolvidas na experiência

77 Russell levanta rapidamente a objecção do «favoritismo» em Os Pro­


blemas da Filosofia, cap. 1, p. 10.

245
PENSE

sensorial. Os cães estão equipados com narizes espantosos.


Conseguem sentir cheiros que nós não podemos. São eles,
portanto, as «autoridades» em matéria de distribuição de
cheiros. Por outro lado, os cães não vêem cores. A sua «au­
toridade» a respeito das cores encontra-se seriamente dimi­
nuída. Os seres humanos podem discriminar visualmente os
objectos sob uma ampla variedade de condições de luz de
forma mais aguda que os cães. É para isto que serve ver
cores. Por que razão não defender, então, que as verdadeiras
cores são aquelas que os indivíduos melhor adaptados rela­
tivamente às cores podem ver? E que os verdadeiros cheiros
são aqueles que os indivíduos melhor adaptados neste
campo podem discriminar? Se for possível defender este
ponto de vista, então a conclusão inicial não se segue.
O que acabo de referir aponta uma falha no argumento tal
como foi formulado. Para colmatar a falha necessitamos de
uma premissa mais forte. Uma maneira de o fazer é conside­
rar separadamente cada dimensão sensorial D (visão, tacto,
cheiro, som, paladar), uma de cada vez. Teríamos, neste caso,
cinco argumentos diferentes e em cada um deles a premissa
crucial seria a seguinte:
O e 0* podem exibir a respeito de uma certa dimensão sen­
sorial D vidas igualmente eficientes e bem adaptadas.

Se aceitarmos esta premissa, o resto do argumento é claro


como a água. A razão de ser da jogada final é perfeitamente
óbvia. Considere-se o fenol. Esta substância não pode, em si
mesma, ser saborosa e não ter sabor. Analogamente, não
podemos conceber que o mundo contenha o mesmo número
de cheiros que o número de aparatos sensoriais possíveis,
adaptados para registar apenas algumas moléculas (ou a sua
ausência) em algumas combinações e concentrações. Um tal
mundo iria conter um número infinito de cheiros coexisten­
tes, dado que não há limite para os diferentes tipos possíveis
de detector.

246
O MUNOO

O desfecho do argumento chama-se «idealismo das quali­


dades secundárias». Dá-nos o resultado de Galileu, segundo
o qual as qualidades que são os objectos imediatos da expe­
riência sensorial são «reconduzidas à mente».

Um robusto bom senso


Descartes não considerou este resultado demasiado
desencorajador e o mesmo aconteceu com muitos dos seus
sucessores. Pela sua parte, como vimos, para ter informa­
ção acerca das propriedades que os objectos realmente pos­
suem, Descartes dispunha da «razão»; não se preocu­
pava com os aspectos ilusórios do mundo da aparência - o
facto de as cores, digamos assim, ficarem a dever-se a nós,
e não às coisas que vemos. A sua posição a este respeito
foi canonizada na filosofia de expressão inglesa por John
Locke.
Locke foi bastante explícito. Há
qualidades originais ou primárias dos corpos, que penso poder­
mos ver produzirem ideias simples em nós, a saber, a solidez, a
extensão, a figura, o movimento ou o repouso e o número.

Há ainda
qualidades que, não existindo nos próprios objectos, têm o poder
de produzir em nós diferentes sensações em virtude das suas qua­
lidades primárias, isto é, devido ao volume, figura, textura e mo­
vimento das suas partes insensíveis, como as cores, os sons, os
paladares, etc. A estas chamo qualidades secundárias78•

Nesta imagem há o mundo científico, constituído por


objectos tal como realmente são no tempo de Locke, um
78
Locke, Ensaio, II. vm. 9 e 10, p. 135.

247
PENSE

mundo de pequenas partículas que se ligam entre si para


formar corpos maiores, cada uma delas dotada de quali­
dades primárias e científicas. Esta é a imagem científica.
Há também a imagem manifesta: o mundo de cores, odo­
res, gostos, barulhos, calor e frio que pensamos habitar. Mas
a imagem manifesta está na mente, ou pelo menos é em
grande medida um produto da mente. O mundo científico
não.
Será que, na perspectiva de Locke, os objectos não são
realmente coloridos nem possuem cheiro? Há um sentido
em que o são: os objectos têm o poder de provocar em nós
cores e cheiros. Apesar disso, estes poderes não são as pró­
prias cores e cheiros em si.
O que acabei de afirmar acerca das cores e dos cheiros pode
dizer-se dos sons e dos paladares, e das restantes qualidades sen­
síveis; qualquer que seja a realidade que por engano lhes atri­
buamos, a verdade é que estas qualidades não existem nos pró­
prios objectos, mas apenas o poder de produzirem em nós as
várias sensações; dependem, como disse, das qualidades primá­
rias, por exemplo, o volume, a figura, a textura e o movimento
das partes79•

Nenhuma das várias sensações que encontramos em nós


está perto de se assemelhar aos poderes que as produzem.
A perspectiva de Locke é frequentemente considerada um
realismo científico natural e de senso comum. É possível
substituir as suas pequenas partículas de matéria com figu­
ras e volumes peculiares por energias, forças e campos ou
partículas subatómicas. No entanto, a oposição essencial
entre o mundo da ciência e a imagem manifesta continua no
espírito de muitas pessoas fundamentalmente como Locke a
apresentou.
Bem, qual é o problema desta perspectiva?

'79 Locke, Ensaio, II. VII. 14, p. 137.

248
O MUNDO

Os problemas de Berkeley
Em França, vários autores manifestaram alguma dificul­
dade em aceitar a concepção cartesiana do mundo. Em par­
ticular, se Deus afinal nos engana acerca das qualidades se­
cundárias (ainda que, bem entendido, para nosso próprio
bem), não poderia também enganar-nos acerca das qualida­
des primárias? Se lhe pareceu adequado que víssemos cores,
ainda que as cores não tenham qualquer semelhança com os
objectos do mundo físico, não poderia parecer-lhe igual­
mente adequado que víssemos o mundo como uma colecção
de objectos espacialmente extensos, ainda que a realidade
física não fosse extensa? As cores desempenham o papel de
um novo cavalo de Tróia cujo propósito é reintroduzir o cep­
ticismo do génio maligno que Descartes supôs ter vencido
em definitivo.
Este é um problema epistemológico. No entanto, o
desconforto torna-se ainda mais óbvio se pensarmos
na metafísica subjacente à concepção científica do mundo.
Pense-se, por exemplo, naquilo que preenche o espaço.
Descartes banira da realidade física todas as qualidades
excepto a extensão. Mas, em geral, isto foi considerado
insustentável. A «extensão» é algo inteiramente abstracto.
Um metro cúbico de espaço é uma coisa; um metro cúbico
de espaço com um corpo lá dentro é outra muito dife­
rente. Seria necessário conceber a realidade física em ter­
mos de objectos que ocupam espaço, e não apenas em
termos de espaço.
Óptimo, poder-se-ia pensar. Locke admite objectos dota­
dos de propriedades como a «solidez» e o «movimento».
O movimento, no entanto, não constitui uma grande
ajuda, a menos que se admitam também objectos que se
movem. Concentremo-nos nos objectos. Temos conheci­
mento de um certo volume espacial que inclua um objecto
pela solidez e resistência que oferece. É esta a diferença
entre um metro cúbico de espaço ocupado por um bloco de

249
PENSE

granito e um metro cúbico de espaço vazio. Em que con­


siste, portanto, a solidez? Locke é bastante preciso a este
respeito:
A ideia de solidez tem origem no tacto: é despertada pela
resistência que encontramos nos corpos à penetração de outros
corpos no espaço que ocupam, até o haverem abandonado.
Nenhuma outra ideia decorrente da sensação é tão constante como
a solidez. Quer nos movimentemos, quer estejamos em repouso,
qualquer que seja a postura que adaptemos, sentimos que algo
nos serve de suporte e impede de nos afundarmos. Os corpos que
diariamente seguramos nas mãos permitem-nos percepcionar,
enquanto aí se mantêm, que tal sucede devido a uma força
incontornável exercida sobre as mãos que os pressionam. Designo
por solidez aquilo que serve de obstáculo à aproximação de dois
corpos que se desloquem em direcção um ao outro [ . . . ] Caso
alguém prefira chamar-lhe impenetrabilidade, tem o meu con­
sentimento. Creio, no entanto, que o termo solidez é mais apro­
priado para expressar esta ideia, não apenas porque é geralmente
empregue neste sentido, mas também porque inclui um elemento
positivo que não encontramos na impenetrabilidade, que é uma
ideia puramente negativa e, além disso, uma consequência da
solidez, e não a própria solidez. Entre todas as outras, é esta
ideia que parece mais intimamente associada aos corpos, de uma
forma que lhes é essencial, ao ponto de não a podermos encontrar
ou imaginar, excepto na matéria80 •

A solidez dos objectos parece decorrer do seu «poder»


para excluírem do espaço que ocupam os outros objectos.
Mas poderemos ficar satisfeitos com uma concepção do
mundo segundo a qual só há diferentes regiões do espaço
dotadas de diferentes poderes? Não será necessário algo
mais, uma substância, digamos, que se encontre na posse
destes poderes?
Locke concede-nos, pelo menos, o conhecimento da soli­
dez, o que talvez signifique que a sua epistemologia não é
80 Locke, Ensaio, II. VI. 1, p. 122.

250
O MUNOO

problemática. Parece claro que conhecemos a solidez através


dos sentidos. Este aspecto é enfatizado por Locke:

Se alguém me perguntar em que consiste a solidez, reconduzo-o


aos seus próprios sentidos, de modo que possa informar-se.
Deixemo-lo segurar entre as mãos uma pedra de isqueiro ou uma
bola de futebol e diligenciar juntá-las; então saberá. Caso essa
pessoa não considere suficiente esta explicação do que é e em que
consiste a solidez, prometo dizer-lhe o que é e em que consiste
quando me explicar o que é o pensamento e em que consiste; ou
quando me explicar o que é a extensão ou o movimento, que
talvez pareçam mais fáceis81 •

Ainda que Locke não mostrasse ser-lhe particularmente


sensível, o problema estava latente no seu tempo e estalou no
início do século xvm com os escritos de Pierre Bayle (1647-
1706), em França, e do filósofo escocês George Berkeley
(1685-1753). Berkeley levantou várias objecções devastado­
ras à concepção do mundo de Descartes e Locke. A sua po­
sição é que esta concepção não é sustentável, quer metafísica
quer epistemologicamente. A argumentação que apresenta é
complexa e tem vários ângulos, mas podemos compreender
a sua força geral considerando dois aspectos:

1) Consideremos de novo a concepção que Locke tem da


solidez e do modo como a conhecemos. Se isto é tudo o que
podemos dizer, como não colocar a solidez a par das cores,
da impressão de calor ou dos cheiros? Se estas sensações não
nos permitem formar qualquer ideia objectiva das qualida­
des dos objectos reais, sendo, como de facto são, produzidas
em nós pelos «poderes» desses objectos, por que razão o
mesmo não se verifica com a solidez? Como passar da sen­
sação de solidez que encontramos na mente para uma even­
tual propriedade que se lhe assemelhe no mundo? Seja o que
for que constitua a solidez, enquanto dado mental, não é

81 Locke, Ensaio, II. IV. 6, p. 126.

251
PENSE

idêntica à solidez existente no mundo. As nossas ideias não


são sólidas; logo, que sentido tem dizer que se «assemelham»
a objectos sólidos?
E, se a solidez desaparecer do mundo real, que resta dele?
A resposta de Berkeley a este problema é absolutamente
notável: nada. O mundo reduz-se à mente - uma doutrina
conhecida por «idealismo subjectivo ».
2) A filosofia de Locke exige que o mundo seja concebido
em termos de qualidades primárias, abstraindo de tudo
quanto, segundo ele, reside apenas na mente. Mas será que
podemos fazê-lo? Berkeley diz-nos o seguinte: «Nego que
possamos abstrair umas das outras, ou conceber separada­
mente, qualidades que é impossível existirem em separado.»
Pense-se num objecto físico tão vulgar como um tomate.
Se «abstrairmos » da sua cor, do cheiro, do paladar e das sen­
sações que recebemos ao segurá-lo nas mãos, o que resta?
Um tomate invisível, intangível, que não podemos detectar,
não muito mais que tomate nenhum! Hume formulou esta
objecção de forma soberba (na citação seguinte, «filosofia
moderna » refere-se à posição de Locke):
A ideia de solidez consiste em dois objectos que, tendo sido
impelidos por uma força extrema, ainda assim não conseguem
penetrar-se mutuamente, mantendo ambos uma existência distinta
e separada. A solidez é, pois, algo que não pode ser concebido em
separado, independentemente dos corpos sólidos cujas existências
permanecem distintas e separadas. Ora, que ideia possuímos dos
corpos? As ideias de cor, som e restantes qualidades secundárias
estão excluídas. A ideia de movimento depende da ideia de exten­
são e esta depende da ideia de solidez. É, portanto, impossível
que a ideia de solidez dependa de qualquer uma das anteriores. Se
não fosse assim, seríamos confrontados com um círculo no qual
uma ideia dependeria de outra e a segunda dependeria ainda da
primeira. A filosofia moderna não nos oferece, portanto, qualquer
ideia satisfatória de solidez e, em consequência, de matéria82 •

82 Hume, Tratado, I. IV. 4, p. 228.

252
O MUNDO

Por outras palavras: «Após se excluir as cores, os sons, o


calor e o frio do âmbito da existência externa, nada resta que
nos permita formar uma ideia justa e consistente de corpo. »83
Berkeley e Hume negaram que possamos de facto compreen­
der as alegadas propriedades de um alegado mundo exterior,
excepto em termos da nossa experiência - da nossa própria
mente. A «filosofia moderna », ou concepção científica do
mundo, exige que atribuamos sentido a uma concepção «cien­
tífica» ou «absoluta» da realidade, concebida em termos de
objectos situados no espaço e independentes de nós, cujas
combinações seriam suficientes para explicar o universo na
sua totalidade, incluindo nós e as nossas experiências. No
entanto, se esta concepção se encontra ferida na sua base, é
necessário procurar outra noutro lado.

Forças, campos e coisas


Na passagem citada, Hume interrogava-se sobre a con­
cepção que nos resta de impenetrabilidade dos «corpos »,
argumentando que sem o «material » fornecido pelas quali­
dades secundárias não havia resposta. No entanto, isto coloca
um problema mais geral: que concepção poderíamos ter dos
corpos independentemente do poder para interagirem entre
si e connosco?
Este não é o lugar adequado para entrar em pormenores
sobre teorias físicas, mas podemos retomar o curso da nossa
história recorrendo às palavras de um dos mais importantes
físicos de sempre, Michael Faraday (1791-1867). Suponha­
mos que se pretende distinguir uma partícula física a das
forças ou poderes m pelos quais a sua influência é conhecida;
então, escreve Faraday:

Parece-me que [. . .] a partícula a, ou núcleo, desaparece e que


a substância consiste nos seus poderes, ou seja, m; é esta a noção
83 Hume, Tratado, 1. IV. 4, p. 229.

253
PENSE

que podemos formar do núcleo independentemente dos seus pode­


res: que ideia nos resta na qual basear a imagem de a sem recor­
rer às forças já conhecidas? Porquê pressupor a existência de algo
que ignoramos, que não podemos conceber, e para o qual não há
qualquer necessidade filosófica?84

A objecção de Hume a respeito dos corpos considerados


independentemente da solidez é frontalmente admitida. Não
necessitamos de pensar nos objectos como algo distinto dos
seus poderes.
Neste caso, o mundo da física, a «imagem científica»,
transforma-se num vasto fluxo de forças: forças gravita­
cionais, atracções e repulsões electromagnéticas, ou, indo um
pouco mais longe, interacções fortes e fracas entre partículas
elementares. No entanto, algo bastante desconfortável tem
agora lugar. Recordemos que o argumento tem um carácter
geral e, por isso, que estas «partículas» se reduzem a outras
«forças» . Há aqui um problema porque, normalmente,
quando pensamos em forças, ou em campos magnéticos e
gravitacionais, consideramos que a noção de «partícula» está
garantida. Compreendemos a existência de um campo ou
força num ponto determinado do espaço em virtude da ace­
leração que teria lugar se uma partícula experimental fosse aí
colocada. Se colocássemos um íman sobre uma mesa, a exis­
tência de um campo magnético em seu redor traduzir-se-ia
no modo como certos «objectos» (partículas) teriam tendência
para se mover se fossem colocados a várias distâncias do
íman . Nas experiências que efectuamos na escola, a limalha
de ferro toma o lugar das partículas experimentais.
Mas, se formos consequentes com o pensamento de
Faraday e reduzirmos estas partículas a novos poderes, dis­
posições ou forças, a imagem que obtemos do mundo não
consegue satisfazer-nos. Necessitamos de tentar compreen-

84 Faraday, «A Speculation touching Electrical Conduction and the Nature


of Matter». Devo a citação a Langton, Kantian Humílíty, p. 101.

254
O MUNDO

der o que o cosmo contém sem recorrer à muleta fornecida


por «objectos» de qualquer género. A observação de Hume
sobre a impenetrabilidade - segundo a qual temos de saber
o que não consegue penetrar o quê - vira-se uma vez mais
contra nós. Dir-se-ia que a concepção de senso comum acerca
da diferença entre uma porção de espaço ocupada por um
corpo e uma não ocupada foi substituída por um espaço
acerca do qual alguns ses são verdadeiros, por oposição a um
espaço no qual são verdadeiros outros ses. Ansiamos, no
entanto, por algo que ocupe realmente espaço e cuja presença
explique as diferenças entre os ses, diferenças de potencial e
de poder.
O problema pode ser colocado nos termos do capítulo 2.
Se Deus criou o universo físico, que coisas foi obrigado a
criar? Poderia ter criado apenas forças? Neste caso, o uni­
verso parece reduzir-se a um gigantesco conjunto de ses. Ou,
pelo contrário, precisou de criar objectos, os objectos sobre os
quais as forças actuam e nos permitem explicar de que modo
estas surgiram? Se adoptarmos o último ponto de vista, que
concepção formar destes objectos? O primeiro permite-nos
olhar o universo como um formidável potencial, uma espé­
cie de gigantesco tremeluzir. Talvez o matemático Descartes
se sentisse feliz com esta concepção (é fascinante interrogar­
mo-nos se Descartes antecipou a perspectiva de Faraday).
Mas o senso comum parece exigir algo (algo sólido) para
preencher as porções de espaço que contêm matéria.
Este é um problema que muito preocupou Kant, um dos
pioneiros da redução de matéria a «forças». Kant pensava
que esta concepção era tudo quanto conseguiríamos alcan­
çar. Em parte porque conhecemos o mundo através dos sen­
tidos e os sentidos são essencialmente receptivos. Apenas
conseguem oferecer-nos o produto das forças e poderes e
não estão adaptados a informar-nos acerca daquilo que sub­
jaz à sua distribuição no espaço. Os sentidos limitam-se a
dar-nos a conhecer o resultado dessa distribuição. Seja o que
for que lhes subjaza, teria de ser inteiramente «numénico» -

255
PENSE

algo situado para além do alcance da investigação científica


e, nessa medida, para além do alcance da experiência e do
pensamento humanos.
Hume pensava que este problema da impenetrabilidade
causava dúvidas a toda a metafísica da «filosofia moderna»,
embora o idealismo subjectivo de Berkeley lhe parecesse
inverosímil. Kant também estava convencido de que este
problema exigia um completo repensar da filosofia moderna.

Coletes-de-forças e leis
Há outra maneira de compreender o problema colocado
na secção anterior. Consiste em reflectir sobre outro recurso
à disposição do conhecimento científico, o conceito de lei
natural. Para isso é necessário retomar algo que referimos no
capítulo precedente: a Harpa de Ouro.
Após reconsiderarmos essa experiência mental, podemos
avançar no problema nos seguintes termos. A experiência
mental é impressionante, mas talvez enganadora. Ela repre­
senta a situação como se o estado do mundo em cada inter­
valo fosse independente do estado do mundo em qualquer
outro intervalo. Tudo se passa como se Deus lançasse ao ar,
no final de cada período, um dado de seis faces, de modo
que existiria uma hipótese em seis de cada uma das cores
ficar virada para cima. Caso fosse esta a situação, seria real­
mente falacioso argumentar que, dado um número (azul) ter
saído cinco vezes, seria de esperar que voltasse a sair na vez
seguinte. Argumentar desta forma é cair na falácia do
apostador. No entanto, não sabemos se no mundo tal como o
conhecemos este género de lotaria tem lugar a cada instante .
Não encontramos nele o caos que o argumento faria prever.
Encontramos apenas regularidades. Portanto, é mais prová­
vel que exista algo que garante a ordem ao longo do tempo. Não
há um lançar de dados de tempos a tempos: tudo se passa
como se Deus tomasse uma decisão e se mantivesse fiel ao

256
O MUNDO

que decidiu. Tem de haver uma solução metafísica para o


problema da indução, ainda que não haja uma solução pura­
mente probabilística ou matemática.
Isto parece uma ajuda, mas sê-lo-á?
Parte do problema é o seguinte: ainda que o universo
realize uma única lei, como uma decisão de Deus, pode ter
sido «Adoptemos o padrão K» em vez de «Adoptemos o
padrão S». A lei imutável pode ser extravagante. Afinal de
contas, só temos conhecimento dos segmentos que acontece­
ram até agora. E argumentar que, porque até agora a natureza
tem sido uniforme num dado aspecto, é provável que irá
continuar a ser uniforme nesse aspecto particular, não é senão
fazer outra inferência indutiva, como Hume fez notar.
Mas, uma vez mais, há o lado metafísico do problema.
Designemos por Colete-de-Forças seja o que for que garanta a
ordem. Um Colete-de-Forças é uma espécie de lei que opera
ao longo do tempo: uma directiva ou garantia que fixa a
ordem das coisas. A ideia é que, devido a esta directiva ou
garantia, as coisas continuam a processar-se de acordo com,
digamos, a velha maneira familiar. O problema é o seguinte:
poderemos conceber o que seria um tal Colete-de-Forças?
Este problema é bastante semelhante ao que analisámos
no capítulo 5 a propósito do argumento cosmológico. Pode­
mos até considerá-lo uma variação do primeiro. As coisas
que encontramos no espaço e no tempo, incluindo as resolu­
ções dos seres humanos, têm um carácter inerentemente
volúvel. Podem perdurar por longos períodos, mas, na prá­
tica, vêm e vão. Um Colete-de-Forças não tem esta caracterís­
tica. Pois, se, em princípio, estivesse sujeito à mudança, seria
necessário explicar a sua sobrevivência ao longo do tempo e
estar-se-ia perante uma regressão ao infinito.
Encontramo-nos na situação de tentar captar a perpetua­
ção das regularidades que observamos vulgarmente recor­
rendo a «algo mais», algo que torne verdadeiro o facto de os
acontecimentos terem de ocorrer como ocorrem. Em seguida,
tentamos compreender a regular perpetuação desse «algo

257
PENSE

mais». Se este é um facto bruto, nada acrescenta ao ponto


inicial - a ordem empírica. Mas, se ele necessita de outro
tipo de sustentação, confrontamo-nos com uma nova regres­
são. Se defendemos que se trata de algo «necessário» ou que
contém em si mesmo a sua própria explicação, enfrentamos
o género de cepticismo dirigido ao argumento cosmológico.
Não compreendemos o que queremos dizer nem dispomos
de princípios que permitam saber a que tipo de coisas esta
descrição se pode aplicar.
Por outras palavras, se um Colete-de-Forças é o género de
coisa que vem e vai, nada justifica esperar que se perpetue.
Mas teremos a mínima concepção acerca de algo cuja exis­
tência não esteja sujeita à mudança e ao tempo? Será que o
nosso entendimento poderia sequer aflorá-la, para não dizer
abarcá-la? Não estaremos uma vez mais a braços com a ob­
servação de Wittgenstein de que «Um nada servirá tão bem
como uma coisa acerca da qual nada se pode dizer»? Ou, nas
palavras de Hume,

As cenas que compõem o universo mudam continuamente e


os objectos sucedem-se ininterruptamente; mas o poder ou força
que impulsiona todo o mecanismo permanece inteiramente oculto,
sem que se manifeste em qualquer das qualidades sensíveis dos
corpos85•

Parece que também neste aspecto o nosso entendimento é


confuso. Não temos qualquer concepção sobre o que signi­
fica existir uma lei da natureza. Podemos compreender os
modos como os acontecimentos ocorrem, mas nunca ter se­
quer uma concepção mínima da razão pela qual têm de ocor­
rer como ocorrem.
Na última secção, ao seguirmos Faraday e Hume, verifi­
cámos que a concepção «absoluta» do mundo fornecida pela
ciência acerca de uma realidade independente desembocava

85
Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, cap. vn, parte 1, p. 63.

258
O MUNDO

no problema do contraste entre os objectos e os seus poderes.


Descobrimos agora que a concepção que possuímos desses
poderes, sustentados por leis da natureza, é o mais frágil que
poderia ser.

A revolução de Kant
As dificuldades que Berkeley encontrou na «filosofia
moderna» fizeram-no retirar-se para o interior da mente.
Decidiu que o mundo, tal como o entendimento o represen­
tava, estava confinado às nossas próprias ideias e à nossa
natureza, entendida como «espírito» ou alma. Felizmente,
não estamos sós neste universo subjectivo; podemos ter a
certeza (pensava Berkeley) de que as nossas experiências são
injectadas em nós por outro grande espírito: Deus (não é
difícil antecipar a indignação de Hume perante este espé­
cime de raciocínio causal a priori). Contudo, ninguém susten­
tou que a solução de Berkeley fosse satisfatória: demasiado
parecido, neste aspecto, com o génio maligno, de Descartes,
o Deus de Berkeley limita-se a colocar-nos frente a frente
com uma realidade virtual inteiramente ilusória.
Kant foi um dos filósofos que concordavam cm;n o diag­
nóstico da situação elaborado por Berkeley. Kant pensava
que a «filosofia moderna» de Locke defendera o que desig­
nou por «realismo transcendental» e que esta posição era
insustentável. Considerou-a uma forma de «realismo», dado
que insistia num mundo de objectos independentes situados
no espaço e no tempo. E realismo «transcendental», porque
esse mundo está situado para lá da nossa experiência, sendo
apenas objecto de inferência. Contudo, Kant concordou com
Berkeley ao considerar a inferência demasiado precária. Es­
creveu o seguinte acerca da posição de Locke:

Não estou, portanto, em posição de percepcionar os objectos


externos, podendo apenas inferir a sua existência com base nas

259
PENSE

minhas percepções internas e tomar estas percepções como efeito


de algo externo que constitui a sua causa aproximada. Como
um efeito pode resultar de diferentes causas, uma inferência a
partir de um dado efeito para uma causa determinada é sempre
incerta. Assim, no que diz respeito à relação entre a percepção e
a sua causa, permanece a dúvida a respeito de a causa ser in­
terna ou externa; se, por outras palavras, não serão as chamadas
percepções externas uma simples ilusão provocada pelo sentido
interno, ou se mantêm uma relação com os objectos externos que
seriam a sua causa. Assim, seja qual for o acontecimento, a sua
existência é apenas inferida, estando por isso sujeita aos perigos
que envolvem estas inferências, enquanto o objecto do sentido
interno (o eu e todas as suas representações) é percepcionado de
forma imediata, não estando a sua existência sujeita a idênticas
dúvidas86 •

A prioridade de Kant consistiu em abandonar o modelo


do «teatro interno». Vimos no capítulo 4 algo sobre a sua
abordagem do eu. Vimos que a autoconsciência exige uma
ampla variedade de competências para a sua organização,
em geral bastante complexas. Necessitamos de organizar a
experiência não em termos de uma «rapsódia» ou «caleidos­
cópio» de percepções87, como lhe chamava Kant, mas em
termos de uma ordem espacial e temporal. Apenas deste
modo é possível concebermo-nos como seres que habitam
um mundo de objectos independentes situados no espaço.
A questão consiste em saber de que modo esta intuição pôde
ser usada por Kant para ultrapassar a dificuldade legada
pela tradição, a partir de Descartes.
Uma parte do sucesso de Kant decorre de ter notado que a
posição de Locke envolve uma concepção insustentável sobre
o entendimento. Para Locke, o paradigma do entendimento é
o seguinte: a mente encontra em si algo «semelhante» às carac­
terísticas dos objectos que são a sua causa, como numa ima-

86
Kant, Critica da Razão Pura, A 368, p. 345.
87
Id., ibid., A 137/B 196, p. 193.

260
O MUNDO

gem. Este ideal era partilhado por Berkeley. É verdade que


Berkeley pensava que esta semelhança nunca pode realmente
ocorrer («Uma ideia não pode assemelhar-se senão a outra
ideia.») Contudo, extraiu daqui a conclusão que apenas com­
preendemos o mundo formado pelas nossas próprias ideias.
Kant notou que, no que diz respeito ao espaço e ao tempo, à
dimensão, forma e ordem objectiva, possuir um conceito não é
a mesma coisa que possuir uma imagem. É dispor de um prin­
cípio ou regra de organização: uma maneira de lidar com o
fluxo de dados. Possuir os mesmos princípios ou regras de
organização pode fornecer-nos uma mesma compreensão do
mundo, apesar das diferenças da experiência subjectiva.
A conclusão a extrair daqui é que os problemas que
enfrentámos nas duas últimas secções resultam de termos
procurado que certas «coisas» desempenhassem certos pa­
péis: o papel de objectos que permanecessem por detrás dos
poderes e forças e que se mantivessem deles independentes,
ou o papel de algo responsável pelas leis físicas e causais.
Mas, se conseguirmos que o nosso entendimento vença esta
dependência, talvez consigamos ir mais longe. Suponhamos,
em vez disso, que os nossos pensamentos acerca de leis e de
causalidade, dos objectos situados no espaço e no tempo e os
próprios espaço e tempo, são categorias do pensamento. As
categorias fornecem-nos os princípios gerais que utilizamos
para organizar e sistematizar a experiência. Não nos forne­
cem um conjunto de coisas que «inferimos» a partir da expe­
riência. Esta ideia é muito semelhante às ideias acerca do
«eu» que encontrámos anteriormente em Kant; na verdade,
constitui a outra face da mesma moeda. Se quisermos com­
preender em que consiste o «eu» com base em impressões
sensoriais, como um objecto de experiência, confrontamo­
-nos com o problema de Hume, isto é, o de que ele não é tal
objecto. Mas, se, em vez disso, pensarmos no modo como um
ponto de vista pessoal ou egocêntrico organiza a experiência, a
função que o eu desempenha no nosso pensamento toma-se
mais clara - tal como as ilusões associadas a essa função.

261
PENSE

A revolução efectuada por Kant é anunciada numa passa­


gem famosa no início da Crítica da Razão Pura:
Até hoje admitiu-se que o nosso conhecimento se devia regular
pelos objectos. Porém, aceitando-se este pressuposto, falharam todas
as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que
ampliasse o nosso conhecimento. Tratemos, pois, de experimentar
se não se resolverão melhor as tarefas da metaffsica admitindo que
os objectos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que
concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de
um conhecimento a priori desses objectos, isto é, que estabeleça
algo sobre eles antes de nos serem dados. Encontramos aqui uma
semelhança com a principal hipótese de Copérnico. Não podendo
prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admi­
tisse que as estrelas se moviam em torno do observador, pensou se
não seria melhor sucedido fazendo girar o espectador e deixar imó­
veis os astros. Uma experiência semelhante pode ter lugar em
metafisica a respeito da intuição dos objectos. Se a intuição tivesse
de se guiar pela natureza dos objectos, não vejo como deles se
poderia conhecer algo a priori. Se, pelo contrário, o objecto (en­
quanto objecto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa facul­
dade de intuição, não tenho qualquer dificuldade em conceber essa
possibilidade88•

É esta a base daquilo que Kant designa por «idealismo


transcendental». Kant é bastante veemente quanto ao facto
de não se tratar do «idealismo subjectivo» de Berkeley. É ób­
vio, também, que não se trata do «realismo transcendental»
de Locke. De que se trata então?
Dir-se-ia, à primeira vista, que, ao termos uma experiên­
cia, «criamos» um mundo que com ela deve concordar. Esta
é uma ideia bastante peculiar. Fomos criados pelo universo
há treze milhões de anos, e não o contrário. Kant não pre­
tende negá-lo. Pretende apenas compreender de que modo
os conceitos de objecto, força, espaço, tempo, causalidade,
etc., determinam a maneira como pensamos (e somos obriga-
88
Kant, Crítica da Razão Pura, prefácio à 2.ª edição, p. 22.

262
O MUNOO

dos a pensar) a respeito do mundo. A sua intenção não con­


siste em negar algum aspecto particular do conhecimento
científico ou do senso comum, mas explicar de que modo
esses aspectos formam um todo no nosso pensamento. E são
estes pensamentos que estruturam o que designamos por
«mundo fenoménico»: o mundo tal como é descrito pela
ciência e se manifesta na experiência.
Kant nunca pensou que a experiência sensível estivesse
na origem do mundo. Nem era isto que pensava, por exem­
plo, acerca das qualidades secundárias:
As cores não são propriedades dos corpos a que estamos ligados
pela intuição, mas apenas alterações do sentido da visão ao ser
afectado de diferentes formas pela luz. O espaço, por outro lado,
enquanto condição dos objectos externos, pertence necessariamente
à sua manifestação ou intuição. O gosto e as cores não são condi­
ções necessárias sob as quais os objectos podem ser para nós objectos
dos sentidos89•

A ideia é que o espaço, ao contrário da cor, é uma condi­


ção necessária para que os objectos possam ser objectos de
experiência. O espaço tem a seu favor o facto de possuir
maior objectividade que as cores.
A principal dificuldade em interpretar Kant consiste em
saber se, neste aspecto, ele foi capaz - como ele próprio
pensava - de ultrapassar Berkeley. Admitamos que Berkeley
lhe concede três ideias:

1. Temos de abandonar a concepção lockeana do entendi-
mento e considerar os conceitos que utilizamos para des­
crever o mundo como regras, princípios e estruturas
organizativas, e não como imagens mentais.
2. A experiência tem de ser ordenada (na expressão do filó­
sofo contemporâneo Jonathan Bennett, tem de haver um
«limite de velocidade») para que possamos ser auto­
conscientes.

89 Kant, Crítica da Razão Pura, A 29, p. 73.

263
PENSE

3. Para que a experiência seja ordenada temos de pensar em


nós próprios como um ponto de vista situado no espaço,
em função do qual observamos objectos que perduram
no espaço e no tempo e cujo comportamento exibe pa­
drões determinados pelas leis da natureza.

Tudo isto parece fácil de digerir por Berkeley. Berkeley


sabia que interpretamos as nossas experiências em termos
objectivos e espácio-temporais. Contudo, pensava que deve­
ríamos «falar como as pessoas vulgares e pensar como indi­
víduos cultos»: por outras palavras, tínhamos de aprender a
considerar esta interpretação uma mera façon de parler, e não
uma descrição do mundo objectivo, tal como é na realidade,
sem depender do observador.
Um factor de confusão decorre do facto de algumas afir­
mações de Kant revelarem uma simpatia considerável por
posições não muito distantes do «idealismo subjectivo» de
Berkeley. A propósito da «revolução copemicana», Kant faz
afirmações do seguinte género:
No nosso sistema, por outro lado, os objectos externos, nomea­
damente a matéria, com as suas configurações e modificações, são
apenas aparência, isto é, representações de uma realidade de que
estamos imediatamente conscientes90•

O ingrediente que separa Kant do idealismo subjectivo


decorre de ter pensado que Descartes e os seus sucessores
pegaram no problema pelo lado errado. Tinham admitido
que a «experiência interna» constituía algo cuja solidez era
inquestionável, enquanto o mundo externo, pelo contrário,
era problemático. Para fazer melhor
é necessário demonstrar, portanto, que temos experiência, que não
imaginamos apenas os objectos externos; e isto, ao que parece,

90
Kant, Critica da Raz.ão Pura, A 372, p. 347.

264
O MUNDO

não pode ser alcançado excepto demonstrando que até a expe­


riência interna, para Descartes indubitável, apenas é possível
pressupondo a experiência externa91 •

Por «experiência externa» entende-se aqui a consciência


imediata de uma realidade que se estende para além de nós.
Determinar se Kant foi bem sucedido, e como, constitui uma
das grandes questões que se colocam ao pensamento moderno.

Os olhos de quem a vê
Um verdadeiro realista ou oponente do idealismo defende
a existência de factos e estados de coisas totalmente indepen­
dentes da mente. O idealista chama constantemente a aten­
ção para o papel que a mente desempenha ao seleccionar e
moldar a concepção que temos do mundo que habitamos.
Para o idealista, a mente cria o mundo em que vivemos, o
«Lebenswelt» dos nossos pensamentos, das nossas percep­
ções e imaginação. Kant, é claro, está comprometido com
esta concepção até aos ossos; o nosso quadro mental, os
nossos «esquemas conceptuais» de espaço, tempo, objectos,
causas e eus devem-se aos princípios organizadores da mente.
Ainda assim, sem que nos tomemos dualistas cartesianos,
podemos simpatizar com esta consciência do papel que a
mente desempenha ao gerar o mundo que somos capazes de
compreender. De facto, um grande número de pensadores
do século xx (seguindo uma tendência do século XIX) pega­
ram na ideia de Kant e desenvolveram-na ainda com mais
entusiasmo. Celebraram, em particular, algo que encontrá­
mos já sob a designação de «paradigma»: a ideia de que há
lentes culturais e historicamente mutáveis através das quais
observamos as coisas, palácios ou prisões conceptuais que
são o produto da nossa própria engenharia.

91
Kant, Crítica da Razão Pura, B 275, p. 244.

265
PENSE

Uma vez mais, portanto, introduzirei os modernos socor­


rendo-me dos clássicos; e, uma vez mais, podemos começar
por Berkeley. No primeiro dos seus Três Diálogos encontra­
mos uma passagem célebre onde Filonous representa a pers­
pectiva defendida por Berkeley:
FILONOUS. [ • • • ] Mas (ignorando tudo o que dissemos até
agora, e reconhecendo que não tem valor, se assim quiseres)
fico satisfeito por colocar tudo nesta questão. Se te for possível
conceber qualquer mistura ou combinação de qualidades, ou
qualquer objecto sensível, em que a mente não intervenha,
aceitá-lo-ei como tal.
HJLAS. Se tudo se resume a isso, a disputa estará em breve
decidida. Que existirá mais fácil de conceber que uma árvore ou
casa existindo por si mesma, sem uma mente que a percepcione
e dela independente? É desta maneira que concebo a sua exis­
tência.
FIL. Queres dizer, Hilas, que consegues ver um objecto que
em simultâneo não estejas a ver?
HIL. Não. Isso seria contraditório.
FIL. Não será uma contradição conceber uma coisa que não
concebemos?
HIL. Sim.
FIL. A árvore ou casa que imaginas é, portanto, concebida
por ti.
HIL. Como poderia ser outra coisa?
FIL. E aquilo que concebemos está seguramente na mente.
HIL. Sem dúvida. Aquilo que concebemos encontra-se na
mente.
FIL. Mas, nesse caso, como podes afirmar que imaginaste
uma casa ou árvore cuja existência é exterior e independente de
qualquer mente?
HIL. Concedo que foi por distracção; vejamos, deixa-me de­
terminar o que pôde conduzir-me a isso. Trata-se, na verdade,
de um erro bastante curioso. Enquanto imaginava uma árvore
num local isolado, sem que ninguém estivesse presente para a
observar, julguei que isto era o mesmo que imaginar uma
árvore que existisse sem que ninguém a percepcionasse ou nela
pensasse, descuidando o facto de que eu próprio a concebia e

266
O MUNDO

nela pensava. Na realidade, posso conceber a ideia de uma ár­


vore, de uma casa ou de uma montanha no meu pensamento,
eis tudo. Mas isto não demonstra que possa conceber a existên­
cia destas coisas independentemente de qualquer mente, como
algo que exista fora de todas elas.
FIL. Concordas, então, que não é possível conceber que um
objecto corpóreo exista excepto na mente.
HIL. Concordo.
FIL. No entanto, defendeste há instantes a verdade de algo
que agora confessas não poder conceber.
HIL. Admito que não sei o que pensar. Ainda assim, sinto
alguns escrúpulos em aceitar a conclusão92•

Hilas tem provavelmente razão em exibir alguns escrúpu­


los; o argumento de Filonous atraiu um grande número de
críticas e até algum desprezo. Também neste caso podemos
tentar aplicar algumas das armas usadas contra o argumento
ontológico e perguntar-nos se Filonous não está sub-repti­
ciamente a interpretar de forma incorrecta expressões como
«na mente». Podemos ainda questionar a força da conclusão
de Filonous. Mesmo que Filonous pense que Hilas é incapaz
de conceber de que modo uma casa ou uma árvore poderiam
existir excepto «em» uma mente, o argumento pode igual­
mente ser posto de pé para demonstrar a conclusão aterrori­
zante e mais forte de que Hilas não consegue conceber de
que maneira uma casa ou árvore poderiam existir a não ser
na sua própria mente. E esta é uma consequência demasiado
radical, mesmo para Berkeley.
Ainda assim, como em geral sucede com os grandes pen­
sadores, podemos pensar que existe um grão de verdade na
posição de Filonous. Eis uma maneira de simpatizar com ela.
Admitamos que Hilas tem em vista mostrar que podemos
compreender a noção realista de um objecto «independente»
das diversas formas de o pensarmos. Decide «abstrair» das

92
Berkeley, Três Diálogos, «Primeiro Diálogo», § 398, p. 35.

267
PENSE

contingências da sua experiência perceptiva, modos de pen­


samento, ou das suas opções conceptuais. Então podemos
observar Berkeley, na pessoa da Filonous, a chamar-lhe a
atenção dizendo que este género de abstracção é impossível.
Seja o que for que consiga imaginar ou conceber, está conde­
nado a incluir nisso as suas próprias percepções.
Talvez Hilas imagine, por exemplo, uma árvore com o
tronco castanho e as folhas verdes. Neste caso, Berkeley pode
insistir em que esta imagem não responde ao desafio de
imaginar um objecto do exterior de uma perspectiva humana;
as cores são apenas artefactos decorrentes dessa perspectiva.
Esta é uma ideia bastante clara se pensarmos nas qualida­
des secundárias, mas no primeiro dos Três Diálogos Berkeley
preparou o leitor de modo a aplicá-la com um mais elevado
grau de generalidade. Uma curiosa experiência mental capaz
de ilustrar esta posição é a seguinte: suponha que lhe peço
que imagine um quarto com um espelho numa das pare­
des e uma mesa frente ao espelho, com uma jarra de flores
em cima. E peço-lhe que não se imagine a si próprio nesse
quarto. Digamos que o leitor pensa ser capaz de o fazer.
Agora pergunto-lhe se a jarra de flores está reflectida no
espelho. Se a sua resposta for «sim», então adoptou sub-rep­
ticiamente uma certa perspectiva; se responder «não», isso
significa que adoptou outra perspectiva (as flores irão apare­
cer reflectidas no espelho de um certo ângulo e de outros
não). No entanto, dificilmente poderá dizer «nem uma coisa
nem outra», nem o problema se resolve dizendo que a ima­
gem vai e vem, dado que isso corresponde a deslocar o ponto
de vista de um lado para o outro. O leitor parece estar encur­
ralado - sempre que exercita a imaginação, o ponto de vista
faz-se notar.
Berkeley chama a nossa atenção para a influência univer­
sal da nossa própria perspectiva sobre o que imaginamos ou
compreendemos. Podemos ver a força e a importância da
sua posição se atentarmos rapidamente num filósofo que a
ignorou, nomeadamente G. E. Moore. Este filósofo preten-

268
O MUNDO

deu refutar a ideia de que a beleza está nos olhos de quem


a vê - por outras palavras, pretendeu defender o realismo
quanto à beleza. Moore argumentou a favor da sua ideia
recorrendo a uma experiência mental de «isolamento»93•
Moore pede-nos que imaginemos dois mundos. Um deles
está cheio de nuvens fofas, árvores verdes, torrentes de água
e outras delícias pastoris. O outro é um monte de escórias e
lixo. Agora especificamos que não há pessoa alguma em
qualquer desses mundos. São mundos inobservados. Mas
sem dúvida que um é mais belo do que o outro, não? E não
mostra isso que a beleza é independente dos olhos de quem
a vê?
Filonous torna-nos imunes ao ilusório argumento de
Moore. Somos nós quem aceita o convite para imaginar esses
mundos. Ao fazê-lo, observamo-los através das nossas pró­
prias respostas estéticas, respostas que sem dúvida incluem
um gosto especial por paisagens campestres e um desagrado
acentuado por escórias e lixo. Mas não fomos a/,ém dessas
respostas nem as suspendemos ao imaginar esses mundos.
Pelo contrário, são essas respostas que transparecem no
nosso veredicto. Tudo quanto o argumento de Moore conse­
gue mostrar é que podemos considerar um objecto belo in­
dependentemente de o estarmos a ver; e isto é insuficiente
para refutar a perspectiva idealista ou subjectiva segundo a
qual a beleza está nos olhos de quem a vê.
Suspeito que a maior parte das pessoas acha o argumento
de Moore bastante duvidoso; neste aspecto, consideram
Filonous com simpatia. Mas, ainda assim, também conside­
ram duvidoso o argumento de Filonous. Se, em simultâneo,
quisermos rejeitar Moore e Filonous, necessitamos de traba­
lhar arduamente para encontrar algo onde nos apoiarmos.
Talvez acreditemos que o caminho a seguir foi já indicado
por Kant. Este filósofo admitiu que Filonous tem razão a

93 O argumento do isolamento de Moore percorre todo o cap. 6 de Prin­


cipia Ethica.

269
PENSE

respeito de coisas como a beleza ou as qualidades secundá­


rias, mas sustentou que os «olhos de quem a vê» não estão
envolvidos em categorias do pensamento mais importantes,
como as noções de espaço, tempo, objectos físicos, eu e cau­
salidade. Na próxima secção veremos brevemente de que
modo esta promessa de síntese desemboca em águas agita­
das.

Regras, universais
A tradição idealista em filosofia enfatiza a inevitabilidade
e importância crucial do papel que a configuração das nos­
sas mentes desempenha na «construção» do mundo tal como
o compreendemos. Isto é compatível com diferentes selec­
ções das características que configuram a mente. Berkeley e
a tradição empirista começam com a experiência sensorial,
em particular a experiência das qualidades secundárias. É o
facto de «residirem nos olhos de quem as vê» que se toma
embaraçoso.
Hoje, os factores culturais, especialmente linguísticos, são
mais proeminentes. Preocupam-nos as variações culturais, e
não tanto a subjectividade da experiência. Assim, muitos filó­
sofos contemporâneos aplaudem uma linha de pensamento
que encontramos em Wittgenstein: as chamadas conside­
rações acerca de seguir regras94• A Wittgenstein interessa o
momento em que compreendemos um conceito que, ao ser
explicado, nos permite tomar consciência de que «Agora é
possível continuar» ou «Agora sei o que significa». Tanto
quanto parece, isto acontece ao apreendermos a regra ou
princípio que distingue a aplicação correcta de um termo de
uma aplicação incorrecta desse termo. Trata-se de uma faça-

94 As considerações acerca de seguir regras são apresentadas por


Wittgenstein nas Investigações Filosóficas, §§ 137-203 (aproximadamente, já
que a discussão se mistura com outros temas).

270
O MUNDO

nha notável. Algumas pessoas e animais são demasiado pa­


tetas para isso (vimos o modo como os cães são incapazes de
compreender o que se lhes aponta, dado concentrarem toda
a atenção no dedo que aponta). A maneira como realizamos
esta façanha e o facto de o fazermos do mesmo modo com
suficiente frequência pertencem à história natural. É isto que
toma possível a comunicação e a partilha do conhecimento.
Mas não é evidente, ou algo que possamos considerar garan­
tido, que o façamos todos da mesma forma. Para isso seria
necessário que as nossas mentes estivessem configuradas de
modo idêntico. A questão é saber o que determina que as
nossas mentes estejam configuradas de uma ou de outra
maneira.
Na realidade, este é o antigo tópico dos universais, sobre
o qual os filósofos gregos reflectiram. A tarefa de compreen­
der e descrever o que nos rodeia requer conceitos que se
regem por regras da forma minimalista já descrita. Contudo,
o que é a «realidade» subjacente a estas regras? Tradicional­
mente, podemos distinguir a este respeito três posições prin­
cipais:

■ REALISMO (por vezes chamado PLATONISMO). Estas regras têm


uma existência objectiva. Determinam a correcta aplicação dos
conceitos a casos do passado, presente e futuro, tal como a casos
possíveis. Tomamos contacto com elas através de um miste­
rioso acto de apreensão que não pode compreender-se facil­
mente em termos naturalistas.

■ coNCEPrUALISMO. Estas regras são criadas pela mente. O seu


surgimento pode explicar-se pelas respostas que partilhamos;
emergem de um fundo comum, que é a natureza humana, ou
em virtude da nossa natureza tal como é configurada pela edu­
cação e pela cultura. Todos os conceitos dependem, deste modo,
das nossas respostas: são artefactos produzidos pelas nossas
disposições de resposta ao mundo que nos rodeia.

■ NOMINALISMO. Na realidade, não há quaisquer regras. Só há


seres humanos com as suas disposições para aplicar as palavras

271
PENSE

ou se recusarem a fazê-lo. Não há realmente qualquer «correc­


ção» ou «incorrecção», ainda que as pessoas que aplicam as
palavras de um modo diferente da maioria vejam com fre­
quência essas aplicações serem consideradas incorrectas.

Talvez um exemplo no qual cada uma das posições revele


os seus pontos fortes possa ajudar. Considere-se um conceito
tão duvidoso quanto o de «histeria» ou «neurastenia». Ao
usar este conceito, um realista supõe que existe um
fenómeno ao qual o conceito se aplica, algo que possui limi­
tes claros (algumas pessoas são histéricas e outras não). Ao
empregar o termo, «talhamos a natureza nas suas articula­
ções», para usar uma metáfora bastante desagradável. Um
conceptualista rejeitará a metáfora. Poderá, no entanto, ad­
mitir o conceito de histeria e considerá-lo um princípio ou
categoria capaz de traçar os limites de um género particular
de condição médica ou psicológica. Permite classificar casos
que nos parecem semelhantes e, no fim de contas, é isso que
qualquer conceito faz. Finalmente, um nominalista dirá que
esta palavra é tão boa como qualquer outra. As pessoas estão
dispostas a usá-la, e isso é tudo o que merece ser conside­
rado a respeito de quaisquer palavras.
Cada uma destas posições pode ser defendida em versões
ligeiramente diferentes e todas têm virtudes e fraquezas pró­
prias. Para o realista ou platonista, as restantes abrem a porta
ao idealismo: é a mente que constrói a realidade (se não
existe realmente um fenómeno a que chamamos histeria, não
há razão para descrever o mundo recorrendo a este conceito.
Não é possível obter uma verdade objectiva se o fizermos).
Para o platonismo e o conceptualismo, a posição nominalista
é insustentável: ao assumi-la estaríamos a negar realidade
não apenas ao significado das palavras, como à aplicação de
conceitos e ao próprio pensamento. Tratar-se-ia de uma espé­
cie de «eliminativismo», a negação do acto de pensar. Con­
tudo, uma mente que se limite a proferir respostas verbais
em consequência de certos estímulos, sem critérios de ver-

272
O MUNDO

dade e de correcção, não é equivalente a qualquer outra.


Para o nominalista, o platonismo é demasiado incrível para
ser aceite, enquanto o conceptualismo se limitaria a adoptar
a retórica associada a seguir uma regra sem estar preparado
para assumir a sua substância. Afinal, qual a diferença entre
regras que são «constituídas» pelas nossas disposições ou
respostas e regras que construímos à medida que reconhece­
mos a sua necessidade? E qual a diferença entre regras deste
tipo e nenhuma regra? Deste ponto de vista, um conceptua­
lista é apenas um nominalista demasiado cobarde para o
admitir.
Diz-se que os estudantes da Paris medieval chegavam a
lutar nas ruas por causa dos universais. Está muita coisa em
causa, uma vez que é a nossa capacidade para descrever o
mundo de modo verdadeiro ou falso que está em questão,
bem como a objectividade de qualquer opinião que tenha­
mos. Este é, possivelmente, o mais profundo e complexo
problema da filosofia. Foi este problema que estruturou a
reacção (realista) de Platão aos sofistas (nominalistas). O que
hoje designamos por «pós-modernismo» é apenas uma ver­
são do nominalismo, apresentado como a doutrina de que só
há textos. Esta versão pitoresca de nominalismo, que encon­
tramos nas modernas humanidades, paralisa qualquer apelo
à razão e à verdade. A filosofia «analítica» está do lado de
Platão contra esta nova sofistica, procurando resistir ao seu
canto de sereia.
Nos últimos anos, muitos filósofos consideraram plausí­
vel uma forma de realismo «naturalizado» que permite evi­
tar os mistérios do platonismo. Segundo esta doutrina, há de
facto propriedades que as coisas possuem, independente­
mente de as considerarmos desta ou daquela maneira. As
nossas mentes constituíram-se em resposta a estas proprie­
dades. A evolução e o sucesso obtido configuraram-nos de
modo a permitir-nos responder aos géneros a que as coisas
pertencem. Apesar de os conceptualistas terem razão quando
sublinham a contingência inerente à configuração das nossas

273
PENSE

mentes, enganam-se porque esquecem que as mentes não


existem no vácuo. As nossas mentes estão naturalmente con­
figuradas pelas estruturas causais do mundo em que vive­
mos. Em circunstâncias favoráveis, todos evoluímos da
mesma maneira porque, no contexto do mundo que habi­
tamos, essa é a maneira correcta de evoluir. Este tipo de rea­
lismo pode, por exemplo, ser confrontado com o esboço da
ciência das cores que efectuámos no capítulo 2. Tentar-se-ia
mostrar que até a classificação das qualidades secundárias
está longe de ser arbitrária. E, se as qualidades secundárias
reconquistarem um estatuto «realista», as outras seguirão
rapidamente o mesmo caminho.
Esta é uma perspectiva confortável, que se conjuga facil­
mente com o «fundacionalismo naturalista» ou evolucionista
que inspirou a defesa da harmonia entre as nossas mentes e
o mundo que encontrámos no final do capítulo 1. Podemos
efectivamente ter a esperança de que sobreviva ao oceano de
ideias que tentei agitar neste capítulo. Mas isso exige que
estejamos confiantes em que acabaram as nossas dificulda­
des e que a imagem absoluta ou científica do mundo encon­
trou o seu lugar próprio ao lado da sua imagem manifesta.
Teríamos de pensar que Kant ou um sucessor seu nos guiou
argutamente entre Filonous e Moore ou resolveu com su­
cesso o problema de Hume a respeito da «filosofia moderna»
sem ceder demasiado ao idealismo. Nem toda a gente está
convencida disto.

274
8
O que fazer

Até agora tratámos do nosso conhecimento do mundo.


Considerámos a natureza das coisas, o nosso conhecimento
delas e as formas de raciocinar a seu respeito. Mas grande
parte do nosso raciocínio não é tanto teórico, ou sobre como
o mundo é, como prático, ou sobre o modo como se age no
mundo. Pensamos no que fazer e invocamos considerações
e argumentos a favor de uma ou outra direcção. Como pode­
mos pensar acerca disto? Há tratados e enciclopédias inteira­
mente dedicados a este assunto - a ética e a filosofia moral
formam o seu núcleo, embora não o esgotem, uma vez que
os raciocínios práticos não possuem, de forma alguma, uma
natureza exclusivamente moral. A par dos problemas mo­
rais, é necessário considerar também questões técnicas e es­
téticas. Neste capítulo final não é minha intenção abranger
completamente a área que tais tratados ocupam. Isso não
poderia fazer-se num espaço tão limitado. Mas penso que há
peças fundamentais para o pensamento adequado nestas
áreas, e tentarei apontá-las.

275
PENSE

Preocupações reais
Muito do pensamento prático possui uma natureza
tecnológica. Temos um objectivo e o nosso problema reside
em saber como alcançá-lo. Tentamos adaptar os meios aos
fins, sendo os fins dados de antemão. O fim está estabele­
cido: queremos consertar o frigorífico, plantar flores ou cons­
truir uma ponte. É claro que podemos fazer estas coisas
melhor ou pior. Não há um «modo de pensar» único que nos
permita alcançar todos os nossos objectivos, da mesma for­
ma que a pessoa que sabe consertar o frigorífico não sabe
necessariamente plantar flores ou construir a ponte. A aqui­
sição das competências necessárias implica o conhecimento
do sistema em questão, saber que alterações efectuar e como
as efectuar de forma a obter o fim desejado.
Geralmente, diz-se que os nossos objectivos são determi­
nados pelos nossos desejos, de modo que no raciocínio meios/
/ fins se trata de satisfazer eficientemente os nossos desejos.
Isto é muitas vezes verdadeiro, pelo menos aproximadamente.
Mas pode ser enganador. Se se considerarem os desejos esta­
dos de entusiasmo relativo a um fim - as coisas que nos
põem um brilho nos olhos -, agimos frequentemente porque
temos preocupações específicas, casos em que «desejo» não é
a palavra certa. Aqui estou eu a cortar a relva, quando gosta­
ria de estar a velejar. Porquê? Na verdade, não por ter dese­
jado cortar a relva. Talvez até deteste fazê-lo. Mas estava na
altura de o fazer, ou era necessário fazê-lo. Tenho a preo­
cupação de que a relva seja cortada e decidi adoptar um
meio eficiente para esse fim. Ter uma preocupação, neste sen­
tido, significa ser impelido pelo pensamento de que a relva
tem de ser cortada. Posso pensar que o meu papel é cortar a
relva. Ou posso apenas pensar que «está na altura de o fazer»,
sem pensar conscientemente em mim mesmo enquanto pro­
prietário, ou outra coisa qualquer. Apesar disso, geralmente
reconheço que a relva de outra pessoa precisa de ser cortada
sem me sentir impelido a fazê-lo. Portanto, foi o meu papel

276
O QUE FAZER

de proprietário que me tomou particularmente sensível ao


pensamento de que a minha relva precisava de ser cortada,
mesmo que não pense constrangidamente nesse papel.
A distinção entre agir com base numa preocupação e agir
com base num desejo é muito importante. Por vezes, esta dis­
tinção é deliberadamente ignorada quando as pessoas discu­
tem. Imagine uma relação que atravessa tempos difíceis. Annie
sente necessidade de deixar Bertie por uma razão qualquer:
talvez devido a compromissos assumidos perante terceiros ou
a um plano de vida que exige essa mudança. Bertie pode piorar
o clima emocional ao insistir em que Annie não o deixaria se
não quisesse. «Tens de o querer; de outra forma não o farias.»
Estas palavras são cruéis, uma vez que a acusação que está a
ser feita é a de que deixar Bertie coloca um brilho nos olhos de
Annie ou conta como elemento positivo na sua decisão. E isto
pode não ser nada assim. Annie pode ficar muito triste com a
ideia de deixar Bertie, mas isso, como cortar a relva, é uma
coisa que tem de ser feita.
Poderia sugerir-se que, quando temos uma preocupação, há
algo subjacente que desejamos. Estou preocupado com o corte
da relva, mas não o quero fazer; se acabo por fazê-lo, é porque
quero outra coisa: talvez apenas paz de espírito, por exemplo.
Isto introduz outro erro muito perigoso, que consiste em pen­
sar que, sempre que uma pessoa tem uma preocupação, o que
«realmente» deseja é um estado relativo a si mesma, tal como
a sua paz de espírito. Os psicólogos, em particular, têm-se in­
clinado a pensar no desejo em termos de uma espécie de acu­
mulação de tensão, sendo aquilo que o agente é levado a fazer
uma libertação da tensão. A seguir, é fácil ver o alívio da tensão
como o verdadeiro objecto do desejo. Também isto pode dar
azo a palavras cruéis: «Não estavas realmente preocupado com
as crianças que morrem à fome, querias apenas sentir-te bem. »
E todo o comportamento é diagnosticado como sendo essen­
cialmente egoísta, como se fosse sempre o nosso próprio estado
que nos preocupasse e os outros objectivos e fins constituíssem
uma espécie de disfarce.

277
PENSE

Este conjunto de pensamentos (por vezes designado como


«egoísmo psicológico»95) está completamente errado. Suponha­
mos que queremos comer. Seguindo a linha de pensamento do
último parágrafo, teríamos de interpretar isto como um desejo
do alívio da tensão provocada pelo desejo de comida. Portanto,
dávamos um murro no estômago, o que nos faria sentir tão mal
que deixaríamos de querer comida. Teríamos, assim, conse­
guido o que queríamos? Claro que não (mesmo ignorando o
facto de o murro poder ter sido doloroso). Nós não queríamos
qualquer alívio da tensão. Queríamos comida. De forma seme­
lhante, uma pessoa normal excitada por uma paixão sexual
não pretende um alívio da tensão. Um brometo dar-lhe-ia isso,
mas ela não quer um brometo, quer ter relações sexuais.
Consideremos agora preocupações de alcance mais vasto.
Suponhamos que eu era um padrinho da Mafia e pensava ter
sido insultado por Luigi. Ordenava que os meus homens de
confiança matassem Luigi. Eles partem um pouco intimida­
dos com o perigo que a missão envolve, mas pensam que o
que eu quero realmente é libertar-me da tensão que a exis­
tência de Luigi me provoca. E podem libertar-me dessa ten­
são de outra forma: dando-me, de uma forma completamente
bem sucedida, a ilusão de que mataram Luigi. E é isto que
fazem, combinando uma história convincente. Será que me
deram o que eu queria? Claro que não. Eu não queria viver
num paraíso artificial, acreditando erradamente que Luigi
estava morto (e imaginem a minha reacção quando desco­
brisse o que tinham feito!). Queria que matassem Luigi.
Poderíamos dizer: uma das nossas preocupações é não
sermos enganados relativamente ao modo como as nossas
preocupações são resolvidas.

95 É difícil encontrar um egoísta psicológico puro, mas por vezes afirma­


-se que Thomas Hobbes o foi. A análise clássica encontra-se em Joseph
Butler, nos seus Fifteen Sermons Preached at the Ralis Chapei em 1726, em
especial no Sermão XI. Discuto toda a questão de forma mais completa nos
capítulos 5 e 6 do meu livro Ruling Passions.

278
O QUE FAZER

Mais uma vez, revela-se assim uma causa central de fric­


ção e mal-entendidos. Na verdade, na comunicação trata-se
muitas vezes de ter em consideração as preocupações de
cada um. Isto não se consegue se um dos lados tem uma
preocupação e o outro lado a vê apenas como uma espécie de
problema ou obstáculo em si - algo a ser gerido ou curado.
Suponhamos que Annie está preocupada com a sua carreira
e o seu desenvolvimento pessoal e Bertie reage, não pensando
em formas de fazer progredir ambos, mas pensando em
modos de abafar essa preocupação. «Não estejas triste, que­
rida. Vais esquecer isso se formos jantar fora/ se me deres a
mão/ se tivermos um filho ...» A reacção é inadequada da
mesma forma que é inadequado o murro no estômago como
forma de eliminação da fome. Mas, provavelmente, a sua
inadequação não é assim tão óbvia, pelo menos para Bertie e,
provavelmente, mesmo que ela o deixe. Nos termos que
expus no capítulo 3 podemos formalizar isto dizendo que
Bertie «objectivou» a preocupação de Annie, tratando-a, a ela
própria, como um problema, em vez de ver o que realmente
preocupava Annie. Ao invés, da perspectiva de Annie, é a
carreira de Annie que constitui o problema, e não a preocupa­
ção de Annie com a sua carreira. Na medida em que Bertie não
partilha esta perspectiva, a relação de ambos deteriora-se.
Este aspecto tem grandes repercussões relativamente a toda
a cultura e indústria da «terapia». Regressarei a isto depois de
ter apontado mais uma ou duas peças fundamentais.
Afirmei que uma das nossas preocupações é não sermos
enganados relativamente ao modo como as nossas preocupa­
ções são resolvidas. Uma questão que está relacionada com
este aspecto é frequentemente, mas não sempre, uma das
nossas preocupações ser não perder as nossas preocupações.
Suponhamos que dizem ao padrinho que quer realmente ver
Luigi morto que, se ele esperar dez anos, esse desejo desapa­
recerá («Portanto, tudo acabará em bem», poderia alguém
dizer-lhe). Isto é como dizer à companheira preocupada com
a carreira que, se esperar até ter um filho, essa preocupação

279
PENSE

diminuirá. A pessoa não quer que a preocupação diminua.


Podemos formalizar isto dizendo que o padrinho se identifica
com o seu desejo de vingança e a mulher com a sua preo­
cupação com a carreira.
Mas há casos em que não nos identificamos com os nos­
sos desejos e preocupações. Podemos mesmo desejar ver-nos
livres deles a qualquer preço. Uma pessoa que deseje um
cigarro pode desejar não apenas o cigarro, mas também
livrar-se desse desejo de qualquer forma possível. Seria bom
conseguir uma terapia ou uma espécie de remoção cirúrgica
desse estado de espírito. Se sentirmos obsessão por alguém
ou por algo, poderemos chegar a considerar essa obsessão
como qualquer coisa de que precisamos de nos libertar e
decidir talvez iniciar esse processo. A categorização de um
desejo ou preocupação com que nos identificámos enquanto
vício ou obsessão é uma forma de nos distanciarmos e ini­
ciarmos o processo de objectivação, sendo o passo seguinte
a busca de uma estratégia de libertação. A mulher preocu­
pada com a sua carreira, no exemplo acima, pode vir a parti­
lhar a percepção do marido de que é essa ambição que deve
ser encarada como problema, procurando livrar-se dela com
mais entusiasmo, recorrendo a outras distracções. Por outro
lado, pode não o fazer e cometer um erro se o fizer, pois a
preocupação pode ser mais importante para a sua identidade
do que ela terá sido levada a pensar.
Isto mostra que a diferença existente entre preocupações
com as quais nos identificamos e preocupações que pode­
mos objectivar nem sempre é evidente. Podemos não saber,
até o experimentarmos, se é possível (ou adequado) sacudir
uma preocupação, ou se não será apenas possível, ou ade­
quado, ir em frente e tentar resolvê-la.
O que são então preocupações? Afirmei que ter uma preo­
cupação é ser impelido por um pensamento. Há um aspecto
das coisas que apela às nossas motivações e se toma um
aspecto de peso ou interesse para nós (é interessante que as
metáforas que ocorrem sejam do campo semântico do peso

280
O QUE FAZER

ou pressão). É claro que os aspectos das coisas adquirem


peso quando estamos a decidir como agir. Também podem
adquirir peso ao influenciar as nossas atitudes, como a admi­
ração ou o desprezo, ou as nossas emoções, como o medo ou
a esperança. Ao ler uma obra de ficção, por exemplo, posso
sentir repulsa por uma determinada personagem, signifi­
cando isso que a personagem em questão é descrita de uma
forma que adquire peso para mim. Sinto admiração pelas
virtudes do herói ou repulsa pelos vícios do vilão.
Quando temos preocupações, podemos descrever os as­
pectos das coisas a que somos sensíveis como as nossas ra­
zões para a escolha de uma coisa ou outra, ou para sentir
uma determinada atitude ou emoção. A minha razão para
cortar a relva é o facto de ela estar a precisar disso. A razão
para Annie deixar Bertie é o facto de a sua carreira exigir que
ela mude de vida. Neste sentido, as nossas razões são aque­
les aspectos de uma situação que tomam peso quando delibe­
ramos quanto ao que fazer, ou quanto ao que sentir relativa­
mente a algo. Num sentido ligeiramente mais abrangente, as
nossas razões podem exceder aquilo que consideramos
quando decidimos: podem incluir aspectos de situações que,
na verdade, nos afectam, mesmo que não tenhamos cons­
ciência, ou tenhamos apenas uma semiconsciência, do que
está a suceder. Neste sentido mais abrangente, a razão para
Annie deixar Bertie pode ser o facto de ele a aborrecer,
mesmo que ela não admita isto perante si própria.
Quando falamos das razões que movem as outras pes­
soas, é necessário fazer uma distinção importante. Podemos
falar descritivamente ou normativamente. Ou seja, podemos
descrever o que há numa situação e o que motiva as pessoas
em causa. Ou podemos dizer que o que as preocupa é ou não
é verdadeiramente uma razão, expressando a nossa própria
aceitação ou rejeição da preocupação. É importante ter em
mente esta distinção. Se afirmarmos que Annie não tinha
razões para deixar Bertie, podemos estar a fazer uma obser­
vação (provavelmente falsa) sobre a psicologia de Annie: que

281
PENSE

ela agiu apenas impulsivamente, sem pensar e na ausência


de desejos ou preocupações que quisesse satisfazer ou resol­
ver. Ou, mais provavelmente, podemos estar a rejeitar as
preocupações que realmente motivaram Annie: deixou Bertie
porque tinha a preocupação de prosseguir a sua carreira
como bailarina, mas, dadas as circunstâncias, essa ambição
era disparatada ou algo que não devia ter pesado na sua
decisão . Quando falamos normativamente, devemos tomar
isso claro, utilizando palavras como «dever» e «bom». Mas,
por vezes, em vez de dizermos: «Ela não tinha uma boa ra­
zão», dizemos coisas como: «Ela não tinha qualquer razão»,
e isto pode ser mal interpretado.
Na verdade, as nossas preocupações podem ser muito va­
riadas. A morte de um inimigo, a progressão na carreira, o
estado da relva e o bem-estar da farm1ia e dos amigos são tipos
comuns de preocupações, assim como muitos outros: o facto
de se ter feito uma promessa, o de alguém ter em tempos feito
algo por nós, o de se ser casado, médico ou advogado. As
pessoas têm preocupações diferentes, tal como existem pessoas
diferentes e tipos diferentes de pessoas. Recusámos já uma
tentativa de redução desta diversidade a um certo tipo de
unidade. Essa tentativa via-nos como seres preocupados ape­
nas com os nossos próprios estados mentais (com o nosso alí­
vio ao sermos libertados da tensão provocada por uma preocu­
pação). Mas isso não está correcto, pois ignora completamente
a distinção entre preocupações com as quais nos identificamos
e preocupações das quais nos conseguimos efectivamente dis­
tanciar e que desejamos ver cessar.

A voz interior
Muitas preocupações são privadas e opcionais . Suponha­
mos que me interessava por engenhos a vapor. Nesse caso,
a característica de um local - a de ali passarem comboios a
vapor - adquire peso para mim. A meu ver, é uma razão

282
O QUE FAZER

para me deslocar até lá. Não tem necessariamente esse peso


para si. E não me sinto particularmente incomodado por isso
não ter peso para si. Posso até sentir-me contente por isso ser
assim: consigo ver melhor quando não há muitas pessoas.
Mas há outras preocupações que esperamos as pessoas
possuam. Isto é, uma das nossas preocupações é que certas
coisas afectem as pessoas de uma determinada forma. Há
características de coisas que temos a expectativa de que in­
fluenciem decisões e atitudes: o facto de que fazer algo a
alguém seria enganá-lo, ou não cumprir uma promessa, ou
ser desonesto ou manipulador, e por aí fora. De forma seme­
lhante, temos a expectativa de que o facto de uma determi­
nada acção provocar infelicidade tenha peso para as pessoas.
Surpreender-nos-ia ou chocar-nos-ia que assim não fosse.
Isto coloca-nos no domínio tradicional da ética. Quais são as
preocupações de cada um relativamente às quais podemos
ter expectativas?
Podemos distinguir duas formas diferentes de abordar a
questão. Uma interroga-se quanto às preocupações que cons­
tituem uma vida ideal. Qual o modo correcto de viver? As
várias tradições éticas respondem a isto de diferentes for­
mas. A vida ideal de um herói homérico está repleta de preo­
cupações relativas à sua honra, ao seu estatuto e aos seus
feitos bélicos. A vida ideal de um santo cristão conhece preo­
cupações que incluem o amor a Deus, a ausência de orgulho
e vários ideais de amor fraternal. Segundo o confucianismo,
a vida ideal contém uma elevada dose de respeito pelos mo­
dos tradicionais de proceder. Todos estes ideais podem ser
resumidos e apresentados de forma mais ou menos aliciante.
No entanto, há algo de incomodativo em todos eles, quanto
mais não seja por não existir razão para supor que há alguma
coisa que se possa designar como a vida ideal. Uma vez que
as diferentes pessoas têm gostos e interesses diferentes e as
diversas culturas incentivam preocupações diferentes, parece
natural que qualquer «vida ideal» tenha de ser fortemente
contextualizada: talvez ideal para esta pessoa, nestas circuns-

283
PENSE

tâncias, mas não muito mais do que isso. Mesmo os com­


ponentes de uma vida boa, ao invés de uma vida «ideal»,
não são evidentes. Há alguns componentes nucleares que
são geralmente aceites. A maior parte das pessoas referiria a
saúde (e os meios para a manter), a felicidade (mas do tipo
certo, que não resulte de se viver num paraíso artificial),
as conquistas (mas, uma vez mais, do tipo certo, e não a
satisfação de ambições vãs ou disparatadas), a dignidade, a
amizade, o amor e a família. Além disto, coisas como a ri­
queza ou o lazer já seriam controversas e algumas varie­
dades dos elementos nucleares podem ser consideradas uma
maldição, e não uma bênção. Por exemplo, uma pessoa
poderia ter tido uma vida melhor se não tivesse sido aben­
çoada com uma saúde de ferro, que a tornou insensível às
fragilidades alheias.
Mas somos confrontados com algo mais rígido ao consi­
derarmos de modo diferente a questão relativa às expectati­
vas que temos de cada um. Seguindo esta interpretação,
interrogamo-nos sobre os limites certos impostos à conduta.
Neste sentido, se não conseguirmos corresponder às expec­
tativas, isso quererá dizer que fizemos algo de errado. De­
cepcionámos e tornámo-nos alvo de vários tipos de recrimi­
nações possíveis. As pessoas têm a expectativa de que os
outros sejam honestos, cooperem, sejam sensíveis às necessi­
dades alheias, sejam justos e tenham boa-fé, etc. Se falhar­
mos num destes aspectos, não estaremos a corresponder às
expectativas e poderemos ser censurados. Os outros passam
a ter razão de queixa de nós: preocupa-os o facto de sermos
como não deveríamos ser.
Pode ser que alguém fique agastado com isto. É possível
que a pessoa tente menosprezar a má opinião que os outros
têm dela. Por que razão é isto motivo de preocupação? Por
que razão não somos espíritos livres, despreocupados quanto
ao que o mundo possa pensar? Nalguns casos há algo digno
de admiração nisto: o visionário, o santo ou o herói poderão
não se preocupar com a opinião do mundo, ao mesmo tempo

284
O QUE FAZER

que a tentam modificar, talvez para melhor. Mas a questão é


saber por que motivo somos alvo da má opinião dos outros.
Se a razão se prende com o facto de, por exemplo, não nos
importarmos absolutamente nada com o cumprimento das
promessas ou com a utilização do dinheiro alheio, poderá ser
difícil menosprezar a censura dos outros. Fazer isso - ser
capaz de os olhar nos olhos e dizer que não se vê o motivo
por que se queixam - exige não só a total inexistência de
preocupação quanto ao cumprimento de promessas e à
honestidade, corno também a ausência de reconhecimento
das preocupações dos outros relativamente a estas coisas.
Em pessoas normais é raro encontrar tal grau de insensibili­
dade. Urna coisa é ser-se o vilão do bairro, que diz: «Não me
importo de vos ter enganado, faltando à palavra ou rou­
bando-vos os bens »; outra coisa é atingir o extraordinário
grau de torpeza que afirma: «Nem sequer reconheço a vossa
razão de queixa. » Geralmente, é mais fácil assumir essa ati­
tude desafiadora do que sentir conforto nessa pele, embora
a moral sexual conheça áreas em que, por vezes, as pessoas
que agiram mal não conseguem ver a razão de queixa do
outro - o que torna as coisas ainda piores. Urna sociedade
em que todas as pessoas fossem incapazes de reconhecer as
razões de queixa dos outros, fizessem elas o que fizessem,
seria desprovida de ética - mas, por esse mesmo motivo,
seria difícil reconhecê-la sequer corno urna sociedade.
Os pensadores tentaram articular estas ideias de várias
formas. A «interiorização » de um conjunto de valores apro­
xima-se bastante da interiorização do olhar ou da voz dos
outros. O reconhecimento do motivo de queixa contra nós é
a consideração de que nós próprios não correspondemos ao
que era de esperar e a interiorização da voz dos outros sig­
nifica que ela passa a ter peso para nós. O incómodo revela­
-se sob a forma de auto-recriminação ou de emoções como a
vergonha e a culpabilidade. A maioria dos sistemas éticos
possui no seu fulcro uma versão da regra de ouro: «Faz aos
outros o que gostarias que te fizessem a ti. » Alguns pensado-

285
PENSE

res sublinham a emergência de um «ponto de vista comum »;


outros acentuam a afinidade ou empatia através da qual a
nossa perspectiva reflecte aquilo que podemos considerar a
perspectiva dos outros. Para mostrar quão fácil e natural­
mente nós incorporamos as perspectivas dos outros nas nos­
sas preocupações, Hurne fornece um exemplo esplêndido:
«Um homem ficará desgostoso se lhe dissermos que tem um
hálito horrível, embora isso não constitua, evidentemente,
um incómodo para si próprio. »96 Vemo-nos do ponto de vista
dos outros, podendo isso resultar em conforto ou descon­
forto.
Podemos descrever este aspecto da nossa psicologia em
termos da consideração das razões de cada um. Se um piano
estiver em cima do seu pé, urna das suas preocupações será
retirá-lo rapidamente do sítio em que se encontra. Se eu me
aperceber desta situação, partilharei certamente essa preocu­
pação - e não corresponderei às expectativas se o não fizer.
Nesta situação não ocupo o mesmo lugar que você, pois,
afinal, o piano está a magoá-lo a si, e não a mim. Mas a
expectativa é que eu me envolva, que assuma a sua preocu­
pação, que o ajude e que encare o seu problema corno se
fosse também meu. O que é urna razão para o leitor agir
torna-se urna razão para eu ajudar. Alguns filósofos da moral
gostam de pensar que há aqui urna espécie de imperativo da
própria razão. Consideram que algo haveria de deficiente na
minha racionalidade, ou na minha compreensão, se eu não
assumisse a sua preocupação e a tornasse igualmente minha.
Não aconselho este modo de ver a questão. A pessoa que fica
indiferente perante esta situação é certamente má. Pode ha­
ver coisas erradas nos seus raciocínios ou nas suas formas de
compreender o mundo. Pode ser um psicopata, incapaz de
compreender a realidade dos outros. Ou pode fazer um cál­
culo errado, julgando que, no longo prazo, pode ser bom que
você sofra. Mas o mais comum é que, ao desviar o olhar ou

96 Hume, Tratado, m. III. 1, p. 589.


286
O QUE FAZER

passar ao lado, nada exista de errado na sua compreensão do


mundo nem nos seus raciocínios acerca dele. Terá um cora­
ção de pedra, mas não um cérebro mole. Isto é igualmente
mau, ou pior. Mas, ao colocar-se o defeito no sítio exacto,
mostra-se que o que é necessário para que ele melhore é uma
espécie de educação dos sentimentos, e não um qualquer
tipo de explicação adicional da estrutura das razões.

Verdade e bondade
Todavia, há aqui uma questão que divide os pensadores
em dois campos.
Considere esta equação:
Uma das preocupações de X é conseguir/promover/apoiar cj> =
X pensa que cp é bom/pensa que cp é uma razão para agir.

A divisão faz-se entre os pensadores que lêem esta equa­


ção «da esquerda para a direita» e aqueles que a lêem «da
direita para a esquerda». Ou seja, há pensadores que supõem
que a direcção correcta da explicação é partir das preocupa­
ções, tomadas como já compreendidas, em direcção a «ver
algo como uma razão», a qual se explica desse modo. E há
pensadores que crêem que a direcção certa da explicação é
partir do pensamento de que algo é uma razão, considerada
como uma convicção pura acerca do caso, para as preocupa­
ções, que se explicam desse modo.
Esta diferença é por vezes designada como uma diferença
entre «não cognitivismo» e «cognitivismo» em ética. A ideia
é que, se a equação for lida da esquerda para a direita, falar
de alguém como bom ou de algo como uma razão para agir
é uma espécie de reflexão de um estado mental motivador:
o facto de algo ter peso para si. Este estado mental motivador
não constitui uma convicção simples. Não é uma represen­
tação de um qualquer aspecto do mundo. É uma reacção às

287
PENSE

representações dos factos da questão. Não escolhe por si um


facto da questão. Portanto, estritamente falando, não é um
estado mental verdadeiro ou falso, tal como o desejo de café
não é verdadeiro nem falso. A direcção não cognitivista foi
elegantemente formulada por Santo Agostinho:
Há o impulso da vontade e do amor, através do qual surge
o valor de tudo o que se deve procurar, ou evitar, ou ponderar
como mais ou menos valioso97•

Se a equação for lida no sentido inverso, da direita para


a esquerda, verifica-se a existência de uma convicção na sua
base: a convicção de que q, é uma razão para agir. É um tipo
especial de convicção, pois selecciona ou representa razões.
Mas é uma convicção que acarreta uma preocupação. Diz-se
frequentemente que Aristóteles acreditava nesta direcção da
explicação: o seu lema é que desejar algo é vê-lo como bom.
É como se o desejo respondesse a uma verdade apreendida.
A questão em apreço é importante para muitos pensado­
res, sobretudo os que se situam na ala cognitivista. Estes
temem que, sem a estrutura fornecida pelo cognitivismo, tudo
o que nos reste no raciocínio prático sejam «meras» preocupa­
ções, desejos e atitudes. Ao passo que, se conseguirmos de
alguma forma fazer ser tudo controlado pela Verdade, obte­
remos uma base de sustentação para as afirmações éticas. As
preocupações que correspondem da forma certa a estas verda­
des são as correctas e merecem supremacia sobre as outras.
Por mim, penso que esta é uma das áreas em que a van­
tagem está definitivamente num dos lados: no lado não
cognitivista.
A razão principal para esta minha convicção reside na
inevitabilidade da existência de algo além das convicções ou
cognições - representações de aspectos das coisas. Há o

97 Santo Agostinho, O Significado Literal do Génesis, liv. 4, cap. 4, § 8.


Alterei ligeiramente a tradução.

288
O QUE FAZER

«impulso da vontade e do amor». A pessoa que tem uma


preocupação é alguém para quem uma certa característica
duma situação é importante no raciocínio prático. O peso
que lhe é atribuído mede-se através da força motivadora, na
sua disposição para fazer essa pessoa alterar as suas acções
e atitudes. Será que «ver que <I> é uma razão para agir» poderá
ter esse peso?
Há várias sugestões possíveis acerca do que é aquilo que
se vê ou sabe. Uma delas seria tratar-se de um facto pura­
mente natural. Por exemplo, «ver que o piano está em cima
do seu pé constitui uma razão para o retirar dessa posição»
poderia interpretar-se como «ver que o facto de o piano se
encontrar em cima do seu pé lhe provoca dor». Mas, neste
caso, coloca-se o problema de ser obviamente contingente isso
ter ou não peso para o agente. Se este tiver um coração de
pedra, for um inimigo ou tiver um sentido de humor dema­
siado agreste, isto pode não ter qualquer peso para ele. Por­
tanto, ver ou saber não é equivalente a possuir a motivação
nem a ter a preocupação, que, por definição, tem peso. G. E.
Moore resumiu tudo isto afirmando que, sejam quais forem
as características das coisas naturais que discernimos, per­
manece sempre como uma «questão em aberto»98 o modo
como pensamos que elas constituem razões para agir. Assu­
mi-las como tal consiste em dar um passo - o próprio passo
que começa por nos colocar no domínio da prática.
Outra linha de pensamento poderia sugerir que aquilo de
que temos consciência é um facto peculiar, não natural e
«normativo». Esta é a perspectiva do próprio Moore e poderá
ter sido a de Platão99• É como se vislumbrássemos algo que

98 O argumento de Moore relativo à «questão em aberto» é retirado da


sua obra Principia Ethica, pp. 10-20.
99
Platão enaltece os vislumbres da ordem normativa e ideal em termos
da compreensão das «Formas». Contudo, há um intenso debate sobre o que
Platão pretenderia dizer com isto e até que ponto as suas opiniões perma­
necem inalteradas de diálogo para diálogo.

289
PENSE

não as vulgares características empíricas ou científicas das


coisas: entrevemos a ordem normativa.
Isto parece muito misterioso. A equação lida da direita
para a esquerda, se for isto que se encontra do lado direito,
é muito estranha. Suponha que a referida ordem normativa
é entendida segundo o modelo das leis humanas. Neste caso,
é como se nos deparasse uma lei cuja letra afirmasse que os
pianos são para retirar de cima dos pés das pessoas. O pro­
blema é que o modo como encaramos uma lei depende sem­
pre de nós, como, aliás, tudo o resto. Eu poderia, em princí­
pio, ignorar a lei. Poderia rejeitá-la inequivocamente. Não há
uma relação necessária entre deparar-se-me uma lei e ela ter
peso para mim. Por conseguinte, não é claro que esta linha
de pensamento nos forneça qualquer explicação. Aliás, isto
aplicar-se-ia mesmo que a referida lei fosse considerada uma
«lei divina». Posso não me importar absolutamente nada
com isso. Se não me importar, o instrumento tradicional para
aplicação do castigo é o Temor da Ira Divina. Mas o cogniti­
vista não pretende recorrer a um estado emocional contin­
gente como este, pois isso seria transportar a questão para
fora do domínio da razão. Pretende, ao invés, pensar em
termos do que se entende como necessariamente motivador,
necessariamente atraente.
Posto perante isto, o cognitivista pode ficar em pânico.
Pode reagir negando a equação com que iniciámos esta aná­
lise. Dirá: «Está bem, admito que há uma grande diferença
entre apreender verdadeiramente a ordem normativa e estar
motivado. Mas isso está certo: é necessário que haja boa
vontade ou um bom coração para haver motivação para se
fazer aquilo que vemos que temos razão para fazer. » Desig­
nei isto como pânico porque permite que o cognitivista pro­
teja o seu querido envolvimento com a ideia de Verdade -
mas assumindo o custo de colocar esta força motivadora fora
do domínio da verdade. Isto porque, nesta linha de argu­
mentação, seja o que for que há de errado nas pessoas des­
providas de boa vontade ou de bom coração, não será o facto

290
O QUE FAZER

de verem as verdades erradas. Mas o objectivo do cogniti­


vismo era justamente colocar o raciocínio prático no interior
dos limites da verdade, permitindo-nos afirmar que a pessoa
com as preocupações erradas ou más desafia a razão e com­
preende mal o mundo. Se, no fim de tudo, o cognitivista é
incapaz de dizer isto, não serve de nada vencer batalhas
individuais admitindo-o.
Do meu ponto de vista, todos estes problemas desapare­
cem se lermos a equação no sentido inverso. Quando as
pessoas têm preocupações, exprimem-se referindo razões e
vendo as características a que atribuem peso como desejá­
veis ou boas. Fazem-no sob o «impulso da vontade e do
amor». É minha convicção que inventamos proposições
normativas («Isto é bom», «Essa é uma razão para agir»,
«Tens o dever de fazer isto») para pensarmos nas preocupa­
ções que exigimos a nós próprios e aos outros. Falamos nes­
tes termos para clarificar os nossos estados motivadores, para
os expormos à admiração, à crítica e a melhorias. Não há
uma ordem normativa misteriosa a que estejamos ligados.
Então não há conjuntos de preocupações melhores do que
outros? Certamente que sim. Mas a sua superioridade não se
baseia na conformidade a uma ordem normativa autónoma.
A sua superioridade reside nos modos de vida que lhes dão
corpo. Um conjunto de preocupações que conduza a uma
vida leal, amigável, grata, prudente, compreensiva e justa é,
na verdade, superior a outro que leve a uma vida de traição,
suspeita, malícia, indiferença, frieza e injustiça. As nossas
vidas correm melhor quando podemos ser incluídos na pri­
meira categoria. E uma das nossas preocupações devia ser a
de as vidas correrem melhor.

Bons maus sentimentos


Muitos trabalhos sobre ética apresentam o assunto de
forma bastante diferente: introduzem um dualismo. Por um

291
PENSE

lado, há a massa agitada do desejo. Por outro, acima desta e


separada dela, há os importantes princípios da ética, que
existem para a controlar. Creio que desta representação só
resulta confusão, pois faz os importantes princípios éticos pare­
cerem totalmente misteriosos: coisas que talvez exijam uma
origem divina ou um certo tipo de capacidade platónica para
agir em consonância com a Natureza das Coisas. Proponho,
em lugar dela, um modelo no qual exista simplesmente uma
pluralidade de preocupações. No entanto, entre estas preocu­
pações há algumas que possuem o tipo de estatuto que nos
leva a falar de virtude e vício, de dever e obrigação. São estas
as preocupações que esperamos cada um tenha, de forma que,
se não as partilharmos ou não as tivermos na devida conta,
os outros irão considerar que deixamos muito a desejar.
Podemos afirmar, em termos gerais, serem estas as preocu­
pações que consideramos deverem as pessoas ter em relação
umas às outras. Se alguém me fizer um grande favor, ficarei
a dever-lhe um sentimento de gratidão: é-lhe devido e é meu
dever senti-lo ou expressá-lo. Se me mostrar insensível ou
indiferente, decepcionarei a pessoa em questão. Perderei o
direito à admiração dos outros e, na medida em que possuo
uma voz interior que reflecte a voz dos outros, sentir-me-ei
mal comigo mesmo. Se isto não me suceder, isso poder-se-á
tomar motivo de censura, sendo, por vezes, mais importante
do que a falha inicial. O facto de alguém ignorar uma dívida
de gratidão pode ser mau. Mas se, quando tal lhe for apon­
tado, a pessoa ignorar o reparo ou não compreender a sua
razão, isso pode ser mais chocante do que o erro inicial. Daí
a importância que atribuímos à contrição e, nos casos graves,
ao arrependimento. Estes maus sentimentos são bons.
Podemos regressar agora à queixa acima formulada a
propósito da obsessão contemporânea com a «terapia». No
nosso exemplo, a preocupação de Annie era a sua carreira,
não sendo essa preocupação abordada ou partilhada por
Bertie, que encarava a própria preocupação como o pro­
blema. Os casos morais são semelhantes. Sentirmo-nos mal

292
O QUE FAZER

connosco próprios ou com a nossa conduta é, na verdade,


desagradável. Podemos desejar que esses sentimentos desa­
pareçam. Mas, nos casos em que estes se justificam, o desejo
de libertação destes sentimentos implica urna auto-aliena­
ção, não constituindo a reacção adequada. Suponha que
Annie sabe que magoou ou insultou Bertie. Poderá sentir
gratidão por um terapeuta que lhe diga que há um processo
simples que pode apagar a sua auto-recriminação. Em pri­
meiro lugar, a sua preocupação é corrigir as coisas perante
Bertie: pedir desculpa ou fazer as pazes, dizer-lhe o quanto
é ele importante, etc. Ou a sua preocupação pode centrar-se
na depravação do seu próprio carácter ou conduta, que ela
desejaria que fosse melhor. Mas a sua preocupação não diz
respeito a essas preocupações em si. E, se um terapeuta pres­
crever um comprimido que as afaste, não está necessaria­
mente a ajudar Annie. Não está a corrigir as coisas perante
Bertie nem a melhorar o carácter de Annie. Na verdade, está
a transformar Annie no tipo de pessoa que atrai o grau mais
elevado de censura, não apenas por ter tido um comporta­
mento incorrecto, mas também por não ter consciência, no
seu íntimo, de ter agido mal. O que o terapeuta faz, com esse
procedimento, é alienar Annie da sua consciência daquilo
que fez e do desejo de o não ter feito.
Claro que, com o tempo ou com má sorte, pode chegar a
haver casos em que a auto-recriminação se toma urna chaga.
Não produz nada de bom, toma-se urna obsessão, e Annie
pode desejar ver-se livre dela. Mas o importante é perceber
que não é este o caso mais comum ou fáoil de compreender.
Trata-se de urna situação em que as coisas se descontrola­
ram: não é a culpa ou a vergonha que constitui o problema,
mas as acções que as convocaram.
As nossas preocupações têm peso para nós (isto é urna
tautologia: é isso que as toma preocupações). Mas o seu peso
é susceptível de se alterar e urna das coisas que pode, por
vezes, provocar essa alteração consiste nos debates, nas dis­
cussões e numa consciência da direcção do impulso de ou-

293
PENSE

tras preocupações. Temos, assim, o argumento prático, assu­


mindo a forma de conjectura sobre o que se deverá fazer, que
princípios adoptar, ou que traços de carácter admirar ou
rejeitar. O que podemos pensar sobre isto?

Raciocínio prático
No início deste capítulo referimos os raciocínios tecnoló­
gicos, nos quais é dado um objectivo e o problema consiste
em encontrar os meios para o alcançar. Mas é óbvio que
muito do raciocínio prático se dedica a alterar os objectivos
das pessoas. Procuramos colocar a situação sob uma luz
diferente, de forma que as pessoas passem a partilhar os
objectivos que aprovamos ou que abandonem objectivos que
desaprovamos.
Grande parte de tal raciocínio consiste, obviamente, em
pura persuasão. Esta é a arte do vendedor e da agência pu­
blicitária. Utilizamos a retórica como forma de estimular as
emoções das pessoas e de as orientar para os rumos deseja­
dos. O pregador que pinta os horrores do Inferno ou o polí­
tico que aponta as virtudes do seu partido e os vícios do
outro não estão verdadeiramente a procurar aumentar o co­
nhecimento das pessoas sobre o que quer que seja. Podemos
dizer que a preocupação, nestes casos, é manipular, e não
instruir. O seu objectivo é atribuir pesos emocionais a vários
modos de agir, conduzindo as pessoas na direcção desejada.
No seu pior, isto poderá traduzir-se em fazer corresponder
castigos e ameaças a modos de agir, ao invés de outros tipos
menos explícitos de pressões persuasivas.
Quando assumimos esta atitude para com os outros,
estamos, na verdade, a tratá-los como meios para alcançar os
nossos próprios fins. Por uma qualquer razão, queremos que
eles tenham um objectivo. Queremos que eles comprem o
nosso produto, votem no nosso partido ou se convertam à
nossa fé. Se estivermos dispostos a adoptar qualquer modo de

294
O QUE FAZER

os levar a fazer isto, estaremos a tratá-los como aquilo que Kant


designou como «mero meio»100 para os nossos fins. Ao manipu­
lá-los - o que pode incluir o logro, assim como outras artes de
persuasão -, temos a expectativa de desviar o rumo das suas
acções, tal como poderíamos esperar desviar qualquer outro
obstáculo que se interpusesse entre nós e os nossos objectivos.
Grande parte da vida pode ser assim, mas não a melhor
parte, pois podemos adoptar uma atitude mais cooperante e de
respeito perante os outros. Se eu estiver convencido de que a
sua vida está a ir por caminhos errados, poderei não o mani­
pular para o levar a tomar outra direcção. Se eu possuísse uma
injecção mágica que o levasse a tomar o rumo por mim dese­
jado, ao contrário do vendedor e do pregador, não a adminis­
traria. Se o fizesse, estaria a desrespeitar o seu ponto de vista
ou a não o respeitar enquanto pessoa. A minha intenção é con­
seguir que partilhe o meu entendimento da sua situação de
uma forma correcta, não através da manipulação, do subterfú­
gio, de ameaças ou da força. Então qual é esta forma correcta?
Em termos gerais, trata-se de uma forma que visa e tem
em consideração o seu ponto de vista. Existem coisas que tal
forma claramente rejeita: logro e manipulação. E há coisas
que claramente inclui: melhor compreensão da situação,
por exemplo. Se eu conhecer a situação e você não, estarei a
cooperar, ao mesmo tempo que o tento mudar, se partilhar
esse conhecimento consigo.
Podemos pensar que isto é tudo: que a razão, enquanto
algo que se opõe à retórica se deve limitar simplesmente a
apontar os factos da situação. Um possível argumento favo­
rável a esta conclusão teria a seguinte forma: suponha que
ambos compreendemos da mesma maneira a situação tal
como se apresenta. Suponha ainda que eu tenho um conjunto
de preocupações que acabariam por se resolver se eu tivesse

100 O argumento de Kant relativamente ao tratamento dos outros en­


quanto «meros meios» encontra-se exposto de forma mais acessível na Fun­
damentação da Metafísica dos Costumes.

295
PENSE

um objectivo. Como poderia tentar mudar-me senão através


de um processo de persuasão e manipulação? Por muito que
seja defensor de uma atitude cooperante, não estaremos nós
verdadeiramente numa posição de conflito, uma vez que as
minhas preocupações definem a minha visão da situação e
você deseja acabar com uma delas? Não poderá modificar­
-me visando essas preocupações, pois o pressuposto é que
elas apontam na direcção que lhe desagrada.
Felizmente, há duas falhas neste argumento. A primeira
reside no facto de as nossas preocupações nem sempre serem
evidentes para nós próprios. Portanto, a maneira como o leitor
vê a situação pode não reflectir adequadamente tudo o que
verdadeiramente tem importância para si. Quando «revolve­
mos» as coisas no nosso espírito, o que estamos a fazer é tentar
perceber se há aspectos que não vislumbrámos e que têm um
papel a desempenhar nas nossas motivações. Simultaneamente,
tentamos perceber se há forças desconhecidas activas: se nos
preocupamos mais ou menos com algo do que admitimos a
nós próprios. Podemos estar cegos em relação à nossa própria
natureza, assim como a aspectos do mundo que nos rodeia.
Uma conversa que procure descobrir motivações que podemos
ter reprimido ou ignorado é cooperante, e não manipuladora.
Em segundo lugar, mesmo quando o leitor compreende
correctamente a sua situação, e as suas preocupações são
suficientemente transparentes para si mesmo, não é necessá­
rio que eu o manipule ou tente simplesmente persuadi-lo de
algo: basta que lhe exponha a minha visão das coisas para
que a tenha em consideração. Pense num caso que tenha
uma dimensão moral. Digamos que o leitor está inclinado a
seguir um determinado rumo de acção que, na minha pers­
pectiva, não reflecte adequadamente o dever de gratidão ou
de lealdade que tem para com um terceiro. Digo-lhe isso
mesmo. Ponho as minhas cartas na mesa: não há manipula­
ção ou logro. Posso modificá-lo, pois, se me respeitar sufi­
cientemente, a minha boa opinião de si será importante; se se
arriscar a perder essa boa opinião, insistindo no seu rumo,
este torna-se mais um factor de que terá conhecimento.

296
O QUE FAZER

Assim, este segundo mecanismo é, num certo sentido, uma


forma de lhe apresentar outro factor a ter em consideração na
sua situação: o de que o seu rumo de acção é objecto da minha
desaprovação. Mas é claro que não se pretende que fique por
aqui. Se ficasse, a minha desaprovação funcionaria como um
«objecto»: um mero obstáculo ao rumo que escolheu, a ser
considerado numa análise de custo/benefício. Mas não é isto
que se pretende. Numa discussão moral cooperante pretende­
-se que alcancemos uma perspectiva comum, incluindo a apro­
vação e desaprovação comuns. A minha desaprovação é colo­
cada na mesa como algo para você partilhar ou discutir, mas,
em qualquer dos casos, como algo que deve ser considerado
nos seus próprios termos. De outra forma, a minha desaprova­
ção estaria a ser objectivada, tal como a preocupação de Annie
pela sua carreira, no exemplo dado.
Assim, a análise centra-se agora em saber se a minha in­
sistência no dever de gratidão ou lealdade deve ou não ser
respeitada ou se representa outra coisa: talvez um fetiche a
ignorar ou desprezar. Para responder a esta questão revolve­
mos ainda outras coisas que têm peso para nós. Podemos,
por exemplo, considerar como seria o mundo se as pessoas
não tivessem aquela preocupação. Ou podemos tentar
relacioná-la com outras coisas que têm importância aos nos­
sos olhos, como a amizade ou a honestidade.
Há outra preocupação fundamental que subjaz a este
método: a de que as nossas atitudes práticas devem ser coe­
rentes. E talvez devam também ser outras coisas, tais como
imaginativas e objectivas.

Coerência, objectividade, imaginação


Muito do raciocínio prático consiste em procurar as carac­
terísticas gerais que têm importância para nós. Quando apre­
sentamos uma razão ou justificação a outrem, tentamos reve­
lar a luz favorável à qual a acção ou atitude decorreu. Alguns

297
PENSE

autores desconfiam de todos os requisitos de sistematização


e ordenação que se pretendem aplicar a este processo. Ten­
tam negar que a vida prática se reja por «regras» ou «princí­
pios». Talvez seja mais como a estética. Podemos olhar para
uma pintura e falar sobre ela sem invocar quaisquer princí­
pios articulados e gerais em defesa do nosso veredicto. Po­
demos também recordar-nos do exemplo fornecido no capí­
tulo 1, relativo à nossa capacidade de reconhecer as coisas e
à nossa capacidade de reconhecer que uma frase está grama­
ticalmente correcta, sendo que ambas parecem não derivar
da nossa utilização de princípios ou regras gerais, pelo me­
nos conscientemente.
Mas o raciocínio prático não é geralmente assim. E isto
porque precisamos de saber em que pé nos encontramos. É se­
melhante a um sistema legal. Não seria de grande utilidade
adoptar um sistema legal que se recusasse a articular princí­
pios e regras gerais, insistindo, ao invés, em «tratar cada caso
de acordo com o seu mérito». Se não fosse possível saber de
antemão o que iria ser considerado um mérito, não podería­
mos regular as nossas vidas segundo tal «sistema». Não
haveria sequer lei. O mesmo se passa no domínio da ética.
Precisamos de saber em que pé estamos, o que significa ser­
mos capazes de discernir características de uma situação em
que há escolha ou de um cenário que é favorável ou desfa­
vorável a decisões e atitudes práticas. Isto significa que, ao
passo que os nossos desejos e ambições podem, presumi­
velmente, ser tão instáveis quanto nos aprouver, as preo­
cupações que exigimos dos outros não o podem ser: é
necessário que se insiram num qualquer tipo de sistema de­
fensável.
No capítulo 6 vimos como a lógica valoriza a coerência
acima de tudo. Tem de haver uma maneira segundo a qual
as nossas convicções possam ser verdadeiras. Na vida prá­
tica, a virtude equivalente é ter de haver uma maneira se­
gundo a qual todos os nossos valores possam ser postos em
prática. Um sistema legal seria incoerente se fosse impossível

298
O QUE FAZER

obedecer aos seus ditames (suponha, por exemplo, que proi­


bia o consumo de álcool ao domingo, mas também prescre­
via a participação na missa, que tem de incluir a ingestão de
vinho). Ora a vida fornece-nos imensos casos em que há
uma incoerência aparente entre valores simples. Diz sempre
a verdade; nunca magoes ninguém. Mas, em determinada
ocasião, a verdade pode magoar. Respeita o direito de pro­
priedade; nunca coloques o estado em perigo. Mas, em de­
terminada ocasião, a protecção do estado exige a requisição
da propriedade individual. Assim, grande parte do pensa­
mento prático consiste em ajustar as obrigações e fronteiras
simples que queremos exigir aos outros, em harmonizar cho­
ques e complexidades e em tentar perceber que ajustamentos
serão melhores para conseguirmos um sistema de vida
abrangente e coerente. Este não é um processo fácil e os re­
sultados obtidos têm tendência a revelar-se experimentais,
provisórios e dependentes de novos casos e problemas.
Felizmente há instrumentos que nos ajudam. Um deles é
a história, pensada em termos de sobrevivência do mais forte.
Os ajustamentos e as soluções incorporadas na forma de
vida que herdámos têm a seu favor isso mesmo: terem sobre­
vivido ao teste do tempo. Temos de ser cautelosos relativa­
mente ao tipo de culto conservador das formas herdadas que
se encontra associado a pensadores como Edmund Burke 101
(1729-97). Mas é muito menos inteligente recuar até ao outro
extremo e pensar que o teste do tempo nada revela. No mí­
nimo, fornece-nos um ponto de referência a partir do qual é
possível pensar em mudança. Outro dos instrumentos úteis
é a imaginação. Não é preciso esperar que as crises surjam,
quando podemos ter mais ou menos de borla a ficção, a
imaginação e a simples decisão de repensar os nossos valores
e a sua importância relativa. Este pensamento pode ocorrer
quando temos uma visão relativamente objectiva da nossa

101O conservadorismo de Burke é visível na sua obra Reflections on the


Revolution in France.

299
PENSE

situação - quando conseguimos ver-nos como os outros nos


vêem; no calor da discussão ou da acção, isto é muito mais
difícil de alcançar. Com este tipo de reflexão podemos ga­
nhar algum conhecimento das nossas ideologias e dos nos­
sos disfarces.

Relativismo
Então, afinal, tudo se resume a «apenas nós»? Os nossos
gloriosos imperativos e valores morais não passam, todos
eles, de um conjunto de preocupações contingentes, situadas
e talvez variáveis, que, por acaso, exigimos uns aos outros?
Bem, é, na verdade, nós, mas pode não ser «apenas» nós.
O «apenas» sugere a existência de outras soluções igualmente
boas, ou igualmente «válidas» ou valiosas. Em certos casos,
podemos pensar isso. Os Britânicos conduzem pela esquerda
e os Americanos fazem-no pela direita. Cada um chegou a uma
solução igualmente boa para o problema da coordenação do
tráfego. A condução por um dos lados é «apenas nós». Mas não
é «apenas nós» a razão para conduzirmos eJectiva e exclusiva­
mente por um ou outro lado. A condução arbitrária ou no meio
da via não é uma boa solução - não é sequer solução - para
o problema da coordenação.
Uma vez entendida uma solução como uma de muitas
soluções igualmente boas para o mesmo problema, podemos
apreciá-la como «apenas nossa» e deixamos de ter tendência
para moralizar contra os outros. As línguas diferentes têm
palavras diferentes para designar coisas diferentes e gramá­
ticas diferentes e diferente colocação das palavras na frase,
mas todas servem igualmente bem o propósito de possibili­
tar a comunicação. Os diferentes costumes, ritos, regras e
convenções sociais podem ser vistos como diferentes solu­
ções para os problemas da expressão, coordenação e comu­
nicação públicas. Não temos de os classificar. Em Roma sê
romano.

300
O QUE FAZER

Mas suponha que uma sociedade resolve os seus proble­


mas de uma forma que interfere com as nossas preocupa­
ções. Suponha que, como fazem os taliban no Afeganistão
dos nossos dias, se nega o ensino às mulheres. Ou que o
tempo nos tinha legado um sistema de castas que negava a
existência de igualdade de tratamento perante a doença, o
ensino e mesmo os meios de subsistência a toda uma classe
de pessoas, segundo o seu nascimento. Ou mesmo que o
tempo nos tinha legado um sistema no qual algumas pessoas
pertenciam de corpo e alma a outras. Estes sistemas cons­
tituem um tipo de solução para os problemas que se põem
sobre como viver. Mas não temos de os ver como igualmente
bons («apenas diferentes») ou sequer toleráveis. Podemos
considerar com justeza que violam limites que são importan­
tes para nós. Transgridem as fronteiras de preocupação e
respeito que pensamos ser imprescindível proteger. Nestas
circunstâncias, é natural apelar à linguagem dos «direitos»,
significando isso não apenas que é bom ou simpático as
pessoas manifestarem preocupação ou respeito, mas também
que, se não o fizerem, as partes prejudicadas têm direito a
sentir-se lesadas e a apelar ao mundo no sentido de rectificar
o seu estado.
Ao afirmar isto, damos voz às nossas próprias afinidades,
preocupações e valores. Mas isso é o que o raciocínio prático
deve ser. Não há razão para sentir culpa quanto a isto, como
se tivéssemos apenas direito a exprimir as nossas opiniões
munidos de uma procuração divina ou da Verdade Nor­
mativa (que Platão designava por «Formas» ) . Vemos
correctamente as nossas preocupações éticas se as virmos
segundo o modelo do barco de Neurath (capítulo 1). Temos
de examinar cada parte e fazê-lo com base nas outras partes.
Todavia, o resultado desse exame pode, se formos coerentes
e imaginativos, revelar-se perfeitamente capaz de enfrentar o
mar. E, se, baseando-nos nele, entrarmos em conflito com
outros barcos que naveguem em direcções diferentes, não
teremos razão para lamentar o facto de não estarmos senta-

301
PENSE

dos numa espécie de doca seca, aprovada pela Razão ou por


Deus. Afinal, eles também não se encontram em tal lugar.

Despedida
Este livro tentou apresentar alguns dos grandes temas, as
coisas a pensar acerca deles e as que acerca deles outros
pensaram. Não tentei forçar as pessoas a adoptar um con­
junto de doutrinas ou perspectivas . Na verdade, o leitor pers­
picaz pode ter reparado que o resultado dos argumentos é
muitas vezes uma espécie de pessimismo. A harmonia entre
os nossos pensamentos e o mundo, a ponte que construímos
entre o passado e o futuro, o sentido daquilo que o mundo
físico contém e do modo como as nossas mentes se inserem
nele são tópicos aos quais se dedicaram os pensadores mais
perspicazes, tendo conseguido como resultado apenas a frus­
tração. Parece haver sempre palavras melhores um pouco
mais além, à espera de serem encontradas.
A este respeito poderíamos ser cínicos - sabe-se de filó­
sofos profissionais que o foram -, como se a defesa da refle­
xão crítica que tentei avançar na «Introdução» se tivesse
revelado vã . Não creio que tal se justifique. Penso que o
próprio processo de compreensão dos problemas é, em si,
um bem. Se o desfecho é aquilo a que Hume chamou um
«cepticismo mitigado» 102, ou o sentido do quanto uma mo­
déstia decente nos fica bem no decurso das nossas especu­
lações intelectuais, isso não é certamente uma coisa má.
O mundo está repleto de ideias e uma consciência exacta do
seu poder, dificuldade, fragilidades e falibilidade não é de
modo algum o que menos lhe faz falta.

102 Hume fala aprovadoramente do cepticismo mitigado em Investigação


sobre o Entendimento Humano, cap. XII, p. 161.

302
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306
Glossário inglês-português

aboutness - acerca-de aliorelative relation - relação irrefle­


acceptance - aceitação xiva, relação hetero-relativa
acquaintance - contacto ali things being equal - em igual­
acquaintance, knowledge by - con- dade de circunstãndas
tacto, conhecimento por anecdotal evidence - indícios ca-
acquaintance, principie of- contacto, suais
princípio do apodeitic - apodíctico
acrolect - acrolecto apodosis - apódose
actuality and potentiality - acto e approximating confabulation - con-
potência ciliábulo aproximativo
act utilitarianism - utilitarismo dos aseity - asseidade
actos assertability - assertibilidade
aestheticism - estetismo assumption - pressuposto, suposi-
aeviternity - evitemidade ção (lógica)
after-image - imagem residual avowals - exteriorização
agent-causation - causalidade do
agente backwards causation - causalidade
agent-neutral - neutro em relação invertida
ao agente basilect - basilecto
agent-relative - relativo ao agente belief- crença, convicção
AI - IA bleen - azerde
akoluthic - acolutia Boolean algebra - álgebra de Boole
Al-Farabi - Alfarrabi boundary condition - condição de
Al-Ghazali - Algazel fronteira
alienans - adjectivo pseudoquali­ bundle theory - teoria do feixe
ficativo burden of proof- ónus da prova

307
PENSE

cancel out - neutralizar denoting phrase - expressão deno­


cataphora - catáfora tativa
categorial grammar - gramática ca­ descriptive meaning - significado
tegorial descritivo
causation - causalidade desert - merecimento
central state materialism - materia­ differentia - diferença específica
lismo de estados centrais diffraction grating - rede de difrac-
circumstance surveyor - inspector ção
de circunstâncias disconfirmation - infirmação
claim-right - exigência domain - domínio
cognitive achievement word - termo dominance (decision theory) - domi­
de consecução cognitiva nância (teoria da decisão)
coherentism - coerentismo downward rules - regras descen­
commensurable - comensurável dentes
commitment - comprometimento drawing the line, fallacy of - fronteira
common-sense realism - realismo de imprecisa, falácia da
senso comum dyslogistic - dislogístico
compactness theorem - teorema da
compacidade economism - economismo
connected relation - relação conexa effective procedure - processo efec­
connectionism - conexionismo tivo
consent - consentimento egalitarian - igualitarista (partidá­
conservatism - conservadorismo rio do igualitarismo), igualitário
consilience - consiliência (adjectivo)
context-free grammar - gramática egocentric predicament - dificuldade
independente do contexto egocêntrica
coordinative definitions - definições eigenfunction - função própria
coordenadoras eigenvalue - valor próprio
coreferential - co-referencial eightfold path - caminho das oito
counterpart theory - teoria das con­ vias
trapartes eliminativism - eliminativismo
count-noun - termo contável endurance/perdurance - permanên-
covering law model - modelo da co­ cia/ persistência
bertura por leis entailment - derivabilidade
crossing over - sobrecruzamento entrenchment - entrincheiramento
equinumerous sets - conjuntos equi-
deceit - dolo potentes
deconstruction - desconstrução equivalence class - classe de equiva-
defeasible - revogável lência
definist fallacy - falácia da defini­ erotetic - erotemática
ção ESP - PES
delusion - delusão eudaimonism - eudemonismo
demonstration - prova eulogistic - eulogístico

308
GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS

evidence - dados, indícios (em pro­ free-Jloating rationale - base racio­


babilidades: informação); justifi­ nal descomprometida
cação free will - livre arbítrio
exaptation - exaptação frequency theory of probability - teo­
exchangeability - permutabilidade ria frequencista das probabilida­
excluded middle - terceiro excluído des
existential import - implicação exis- functional kind - categoria funcio­
tencial nal
expected utility - utilidade espe- fuzzy logic - lógica difusa
rada
experience - experiência gambler's argument - argumento do
experiment - experiência científica apostador
explanation - explicação ghost in the machine - fantasma na
explication - explanação máquina
great circles (geometry) - geodésicas
Jactive - factivo (geometria)
Jailure - fracasso greatest happiness principie - princí-
Jallacy of drawing the line - falácia pio da maior felicidade
da fronteira imprecisa grue - verdul
Jalsifiability - falsificabilidade
Jalsifiable - falsificável haecceity - ecceidade
Jalsified - falsificado halting problem - problema da pa­
Jalsifying - falsificação ragem
felicific calculus - cálculo da felici- hard determinism - determinismo
dade puro
field theory - teoria de campo hardware - suporte físico
fine tuned - perfeitamente ajustado high/low redefinition - redefinição
finitary methods - métodos finitis- forte/ fraca
tas horns of dilemma - alternativas do
first cause argument - argumento dilema
da causa primeira Hume's fork - dilema de Hume
Jlourishing - prosperar hylozoism - hilozoísmo
folk psychology - psicologia popu­
lar ideational theory of meaning - teoria
Jollow - seguir-se ideativa do significado
formula variable - variável de fór­ identity theory of mind - teoria iden­
mula titativa da mente
foundationalism - fundacionalismo ideolect - idiolecto
frame (physics) - sistema de refe­ idiographic methods - métodos idio-
rência ou referencial gráficos
Jrame problem - problema do en­ illocutionary act - acto ilocutório
quadramento immunity right - imunidade
framework - enquadramento implicature - implicatura

309
PENSE

incongruent counterparts - contra- many-onefunction - função de mui­


partes incongruentes tos para um
indexical - indexical many questions fallacy - falácia das
inductivism - indutivismo várias perguntas
inertial frame - referencial de inér­ many-sorted logic - lógica multi-es­
cia pécie
inertial frame of motion - referencial many-valued logic - lógica poliva­
móvel de inércia lente
infirmation - desconfirmação many worlds theory - teoria dos
inhomogeneity - inomogeneidade mundos múltiplos
intensive magnitude - grandeza in- mapping (function) - aplicação
tensiva (função)
intentional stance - postura inten- mass-noun - termo de massa
cional matter of fact - questão de facto
interval scale - escala de intervalos maximin principie - princípio maxi-
intuition pump - sonda de intuição min
inverse methods - métodos da in- mean (ethical) - meio-termo
versão meaning - significado
means-ends reasoning - raciocínio
knowledge by acquaintance - conhe­ instrumental
cimento por contacto measurement - medida
mechanism - mecanicismo
labour theory of value - teoria do median - mediana
mereology - mereologia
valor-trabalho
merit - mérito
lattice - reticulado
method of agreement - método da
lawlike - legiforme
concordância
least upper bound - supremo
method of doubt - dúvida metódica
lect - leeto
metric tensor - tensor métrico
left-right machine - dispositivo de
mind - mente
alinhamento horizontal m nemic causation - causalidade
libertarian (metaphysical) - libertista mnésica
libertarian (political) - libertário monkeywrenching - encravamento
libertarianism (metaphysical) - liber- monophysite - monofisismo
tismo moot - litigiosa
libertarianism (political) - liberta­ motivational set - conjunto de moti­
rismo vações
liberty-right - liberdade motive of an action - motivação de
lo aded question - pergunta trai­ uma acção
çoeira multi-valued logic - lógica poliva­
locutionary act - aeto locutório lente

manifold topologies - topologias das narrow content - conteúdo estrito


variedades natural kind - categoria natural

310
GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS

need-to-know principie - princípio phatic - fático


da informação suficiente phenomenalism - fenomenismo
neural net - rede neuronal phoronomy - foronomia
neustic - nêustico phrase - expressão
no false lemmas principie - princípio phrastic/neustic - frástico /nêustico
da recusa de lemas falsos picture theory of meaning - teoria
nomic - nómico pictórica do significado
nomological dangler - conexão no- pleonotetic logic - lógica pliotética
mológica plurative logic - lógica plurativa
nomothetic - nomotético point particles - pontos materiais
nonaptation - inaptação posit - suposto
non-standard analysis - análise não posterior probability - probabili-
standard dade a posteriori
no-ownership theory - teoria da des­ power-right - poder
possessão power set - conjunto potência
noun phrase - sintagma nominal pragmatics - pragmática
pragmatism - pragmatismo
observation statement - enunciado prediction - previsão
observacional preposterous - disparatado
one-one function - função injectiva principie of acquaintance - princípio
one-to-one correspondence - corres­ do contacto
pondência biunívoca prior probability - probabilidade a
operation letter - símbolo funcional priori
ordering relation - relação de or­ procedural semantics - semântica
dem procedimental
ordinal-interval scale - escala ordi­ procedure - modo de proceder, pro­
nal de intervalos cesso, procedimento
orthocomplemented modular lattice - projection function - função de pro-
reticulado modular ortocomple­ jecção
mentado proof- demonstração
other minds - mentes alheias protasis - prótase
other-regarding - hetero-relativa protocol statements - proposições
protocolares
parochial - situado proxy function - função de repre­
Pascal's wager - aposta de Pascal sentação
performance - desempenho pseudo-statement - pseudopropo­
performative utterances - elocuções sição
performativas
peritrope - perítropo range (function) - imagem (função)
perlocutionary acts - actos perlocu­ range (interpretation) - domínio de
tórios variação
perseity - perseidade range property - propriedade de
perspectival - perspectívico base geral

311
PENSE

range theory of probability - teoria sentenciai function - função frásica


do âmbito da probabilidade sentience - senciência
ratio scale - escala de proporção sequent - sequente
reduction sentence - frase de redu- sequent-instance - sequente de in­
ção serção
relevance logics - lógicas relevantes set-theoretic hierarchy - hierarquia
reliabilism - fiabilismo cumulativa dos conjuntos
reliability - fiabilidade Sheffer's stroke - traço de Sheffer
representationalism - representacio- sign - sinal, signo
nalismo significant form theory - teoria da
rest-mass - massa em repouso forma significante
retrodiction - retroprevisão singlet - singleto
reverse discrimination - discrimina­ situation semantics - semântica de
ção positiva situações
reverse engineering - engenharia slingshot - catapulta
analítica slippery slope - situação escorrega­
ring laser gyro - giroscópio laser de dia, derrapagem
anel slippery slope a rgument - argu­
rule utilitarianism - utilitarismo das mento derrapante
regras soft determinism - determinismo
moderado
satisfiable - satisfazível software - suporte lógico
scope - âmbito sorta/ - categorial
self-deception - auto-engano soul - alma
seif-intimating - auto-intimador sound argument - argumento sólido
self-regarding - auto-relativa soundness (of a formal system) - ade-
self-respect - respeito-próprio quação (de um sistema formal)
semantic ascent - ascensão semân- speciesism - especismo
tica spirit - espírito
semantic consequent - consequência statement - afirmação, asserção,
semântica enunciado
semantic engine - dispositivo se­ state of mind - estado de espírito
mântico stress-energy tensor - tensor das
semantic sequent - sequente semân­ tensões-energia
tico sub-clause - oração subordinada
semantic turnstile - martelo semân- substantivalism - substantivismo
tico substituted for (x is substituted for
sense - sentido y) - x substitui y (ou y é substi­
sense-data - dados dos sentidos tuído por x)
sensible knave - patife discreto substitution instance - caso de subs­
sentence - frase tituição
sentence-forming operator - opera­ success word - termo factivo
dor de formação de frases sum set - conjunto união

312
GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS

supererogatory - supererrogatório truth-Junctional sentence-Jorming ope­


superstring theory - teoria das cor­ rator - operador verofuncional
das de formação de frases
supervenience - superveniência truth-table - tabela de verdade
sure thing principie - princípio da turnstile (semantic/syntactic) - mar­
coisa certa telo (semântico/ sintáctico)
surjection - sobrejecção two-way interactíonism - interac-
survey - levantamento cionismo reflexivo
synderesis (synteresis) - sindérese tychism - tiquismo
syntactic consequent - consequência type/token - tipo/espécime
sintáctica
syntactic turnstile - martelo sintác­ unbounded quantifiers - quantifica-
tico dores ilimitados
unit set - conjunto singular
term variable - variável de termo universalizability - universalizabi­
theorem-instance - teorema de in- lidade
serção up-down machine - dispositivo de
theory-laden - subordinação teórica alinhamento vertical
thick terms - termos densos upper bound - majorante
think of ... as ... - conceber ... como ... upward rules - regras ascendentes
thisness - istidade utilitarian - utilitarista
thought experiment - experiência utilitarianism - utilitarismo
mental utter - proferir
time-lag argument - argumento do utterance - elocução
lapso de tempo
time-slice - corte no tempo vagueness - vagueza
tit for tat - pagar na mesma moeda variable realization - realização va-
token - espécime riável
token reflexive - espécime-reflexiva vindication - vindicação
toné - tom
topic-neutral - tópico-neutral warrant - garantia
trademark argument - argumento warranted assertability - assertibi-
da marca lidade garantida
transcendental signified - transcen­ wave equation - equação de onda
dental assinalado wave Junction - função de onda
triai (probability) - ensaio, lança­ wave packet - pacote de ondas
mento (probabilidade) well-ordering - boa-ordem
triplet - tripleto wickedness - perversidade
trolley problem - problema do eléc­ wide and narrow content - conteúdo
trico lato e restrito
truth-apt - susceptível de verdade
truth-functional - verofuncional zoroastrianism - zoroastrismo

313
,.
Indice analítico

a posteriori, 77, 171-172, 185, 227- cepticismo, 9, 22, 28, 34, 48-49, 51,
-228 53-54, 56, 64, 76, 249, 258, 302
a priori, 19, 41, 64, 67, 72, 74, 77, 127, cérebro numa cuba, 35
133, 163, 190, 192, 222, 228-230, Chekhov, Anton, 217
234-235, 238, 259, 262 coerentismo, 52-53
Agostinho, S.'0, 288 Cogito, ergo sum, 28, 35
Allen, Woody, 153 colete-de-forças, 257, 258
análise, 73 compatibilismo, 102, 104-105, 114
Anselmo, S.'º, 162-164, 166, 207 contradição, 142-143, 163-164, 168,
aposta de Pascal, 192 185, 206-207, 216-217, 224, 266
argumento cosmológico, 160, 167, Copérnico, Nicolau, 18, 24, 262
170, 179, 184, 257-258
argumento da marca, 42, 44 darwinismo, 172
argumento do desígnio, 160, 171- Descartes, 12, 24-33, 35-50, 52-53,
-172, 175, 178, 230 55-60, 67, 70, 72, 98, 129, 131-132,
argumento ontológico, 160, 162, 137, 149, 156, 162, 238-242, 245,
164-167, 171, 179, 207, 267 247, 249, 251, 255, 259-260, 264-
Aristóteles, 110, 202, 288 -265
Arnauld, Antoine, 46 descrições, teoria das, 212
determinismo, 91-92, 95-98, 101-
Bayes, Thomas, 191, 227, 230-231 -102, 104, 118
behaviourismo, 74-75 disfunções cognitivas, 190
Berkeley, George, 12, 251-253, 256,
259-264, 266-268, 270 egoísmo psicológico, 278
Burke, Edmund, 299 empirismo, 50

315
PENSE

engenharia conceptual, 11, 14, 21, Leibniz, Gottfried Wilhelm, 66, 68-
111, 127 -72, 76, 79, 80, 82, 85, 210
Epicuro, 97-98, 177, 179 leis da natureza, 91, 170, 192, 236,
epifenomenalismo, 66, 241 259, 264
Espinosa, Benedito, 109 Lichtenberg, Georg Christoph, 38,
experiência mental, 34-35, 85, 256, 39, 129, 144
268-269 linguagem privada, 81
livre arbítrio, defesa do, 182
falácia da taxa de incidência, 226 Locke, John, 50, 66-72, 76, 79-82,
fantasma na máquina, 126 134-137, 139-143, 151, 154, 247-
Faraday, Michael, 253-255, 258 -252, 259-260, 262
fideísmo, 199 Lucrécio, 89, 91, 97, 98
filosofia analítica, 273
força, 254 mal, problema do, 176, 181
Frege, Gottlob, 208-209 Malebranche, Nicolas, 68
funcionalismo, 75 milagres, 183-92
Mill, John Stuart, 196
Galileu Galilei, 24, 239-240, 242, Montaigne, Michel, 24
247 Moore, G. E., 73, 268-269, 274, 289
Gaunilo, 164
génio maligno, 27, 33-35, 37, 39, 44- Neurath, Otto, 52, 301
-46, 48, 50-54, 249, 259 Newton, Isaac, 67, 233-234, 236
Goya, Francisco de, 20, 22 Nietzsche, Friedrich, 38, 159
nominalismo, 271, 273
Hamlet, 22 ocasionalismo, 68
Hume, David, 12, 48-53, 131-133, operadores de Boole, 205
143-145, 147, 155, 167-169, 171-
-172, 180-181, 183-190, 192, 197- Pascal, Blaise, 192-195
-199, 220, 222, 224, 230, 234, 235- Platão, 15-16, 47, 273, 290, 301
-236, 252-259, 261, 274, 286, 302 platonismo, 271-273
ideais, 283 pós-modernismo, 273
idealismo transcendental, 262 premissa suprimida, 31
implicatura, 214 probabilidades, 219
incompatibilismo, 98, 100
indução, 220, 225, 232-233, 257 qualia, 76, 85, 90
qualidades primárias e secundárias,
James, William, 146 240
quantificador, 210
Kant, Immanuel, 105, 112, 137-139, questão em aberto, 289
145-146, 148, 150-151, 156, 170, Quine, W. V., 73
172, 255-256, 259-265, 269, 274,
295 racionalismo, 41, 79, 235
Kuhn, Thomas, 237 razão suficiente, 71

316
ÍNDICE ANALÍTICO

reductio ad absurdum, 163, 207 teodiceia, 181, 183


Reid, Thomas, 132-133, 140-143, 155 teorema de Bayes, 190, 192, 227,
relativismo, 237, 242, 244 229, 230
Russell, Bertrand, 54, 55, 73, 168, Tomás de Aquino, S., 167
212, 245
Ryle, Gilbert, 60 uniformidade da natureza, 170, 191,
223-224, 238
Schopenhauer, Arthur, 94, 95, 117, universais, 26, 127, 271, 273
175
seguir regras, 270 validade, 30, 202
Sócrates, 15, 47 variáveis, 209
sofistas, 273 Voltaire, 195
Strawson, Peter, 115-117
Wittgenstein, Ludwig, 63, 65, 81-82,
tabelas de verdade, 203, 206 95, 126, 145-146, 179, 181, 258,
tautologia, 207 270

317

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