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Copyright 2004 © Instituto Noos

Núcleo de Gênero, Saúde e Cidadania


Conversas Homem a Homem: Grupo Reflexivo de Gênero
Coleção Homens e Violência de Gênero – Volume III
Rio de Janeiro / RJ – Brasil 2004

Autores
Fernando Acosta
Antônio Andrade Filho
Alan Bronz

Equipe técnica do Projeto “Prevenção de Violência Intrafamiliar e de Gênero


em Parceria com Homens” e membros do Núcleo de Gênero, Saúde e
Cidadania do Instituto Noos

Coordenador Geral
Fernando Acosta

Coordenador Executivo
Alan Bronz

Técnicos
Antônio Andrade Filho, Fabian Dullens e Roberto Marinho Amado

Estagiários
Amanda Simões e Antônio Schnoor

Voluntário
Adilson Souza da Costa Filho

Revisão e Tradução
Marcelo da Silva Amorim

Agradecimentos
Aos demais membros da equipe técnica do Núcleo de Gênero, Saúde e Cidadania do Instituto Noos: Alex
de Souza Gomes, Carlos Eduardo Zuma, Daniel Macedo, Eliane Messina, Fabian Dullens, Irene Loewenstein,
Jorge Ernesto Zepeda, Juliana Monteiro Maio Pe reira Rosas, Lucas Benevides, Luiz dos Santos Costa, Luiz
Fernando Moreira, Marcos C. Adissi, Marina Teixeira, Nadia Galvão Moritz, Regina Célia Cantini Rezende,
Roberta Luz de Barbosa, Roberto Marinho Amado, Rosana Rapizo,Vera Lúcia D. P. de Souza Mendes.
À Secretaria Executiva do Instituto Noos: André Rego, Carlos Eduardo Zuma, Helena Júlia Monte e
Jorge Bergallo.
À equipe administrativa do Instituto Noos: Fabiana Souza, Louis Albert Klaczko, Lídia Calixto Moreira,
Juliana Rodrigues dos Santos e Waldnei de Abreu.
Agradecimentos Especiais
Barbara Musumeci Soares, Carmelina dos Santos Rosa, Dominique Klaczko Acosta, Elcylene Leocádio,
Fabiana Costa Oliveira Barreto, Gary Barker e Equipe do Instituto Promundo, Joaquim de Almeida Neto,
Julio Javier Espíndola, Karen Giffin, Marcelo Anátocles, Maria Cristina Coelho Duarte, Maria Victória
Ferreira Lobo, Regina Simões Barbosa, Roseane Correa, Tânia Almeida, Thiago Ribas Filho, Vera Regina
Muller e Willer Baumgarten.

Apoio
John D. and Catherine T. MacArthur Foundation

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
A167c
Acosta, Fernando, 1956-
Conversas homem a homem : grupo reflexivo de gênero : metodologia
/ [autores, Fernando Acosta, Antônio Andrade Filho, Alan Bronz]. -
Rio de Janeiro : Instituto Noos, 2004
. - (Homens e violência do gênero ; 3)

Inclui bibliografia
ISBN 85-86132-09-8

1. Violência familiar. 2. Violência conjugal. 3. Crime contra a


mulher. 4. Homens - Psicologia. 5. Masculinidade. 6. Papel social.
7. Grupos de ajuda-mútua.
I. Andrade Filho, Antônio, 1966-. II. Bronz, Alan, 1971-. III.
Título. IV. Série.

04-2979. CDD 362.82


CDU 364.28

ISBN 85-86132-09-8
Dedicamos este trabalho a todos os homens que
generosamente participaram dos grupos
reflexivos de gênero. Acreditamos que estes
homens colocaram em prática a lição que nos
ensinou Octávio Paz:

“(...) lutar contra o mal é lutar contra nós


mesmos. E esse é o sentido da história”.
Índice
Apresentação........................................................................................................7
I - Introdução ...................................................................................................12
II - Metodologia .................................................................................................14
Referências teóricas ..............................................................................15
Experiências e recursos técnicos...........................................................19
Atividades preparatórias .......................................................................19
Grupos de recepção .................................................................19
Entrevistas preliminares...........................................................22
Os grupos reflexivos de gênero: sistemática do trabalho .....................22
Dinâmicas geradoras de conversas...........................................25
Técnicas narrativas ..................................................................25
Actings e linguagem corporal...................................................26
Jogos de aquecimento..............................................................26
Atividades de ligação ...............................................................26
Dramatizações..........................................................................27
Recursos complementares .....................................................................27
Atendimento de apoio .............................................................27
Grupos de acompanhamento – follow-up ................................27
Redes .......................................................................................28
Pesquisa e avaliação: questionário e grupo focal .....................28
III - Equipe técnica: facilitadores, estagiário e/ou
voluntário e equipe reflexiva .............................................................................29
Facilitadores ..........................................................................................29
Estagiário e/ou voluntário.....................................................................30
Equipe reflexiva.....................................................................................30
IV - Capacitação e espaço técnico-reflexivo – "supervisão"...............................31
V - Resultados dos grupos reflexivos de gênero com homens..........................33
VI - Conclusão ....................................................................................................34
Referências bibliográficas ...................................................................................35
APRESENTAÇÃO
OS HOMENS DO SÉCULO XXI

Barbara Musumeci Soares


Coordenadora da Área de Segurança e Gênero
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC)
Universidade Cândido Mendes

Em 1999, quando participei da equipe da tento, um dos policiais resumiu mais ou menos
Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania da Se- assim o processo: “Antes, éramos chamados de
cretaria de Segurança Pública do Estado do Rio ‘Cavalos corredores’ (título que identifica um dos
de Janeiro, tive a oportunidade de conhecer a vários grupos de extermínio da polícia carioca);
equipe do Instituto Noos, que contava, na época, h o j e,nossos colegas do batalhão, que não passa-
com um grupo de homens empenhados em ram por essa experiência, nos chamam, jocosa-
discutir o processo de construção de identidades mente, de ‘gazelas saltitantes’. Isso não nos in-
masculinas. Trabalhavam com grupos de reflexão comoda porque sabemos que continu a m o s
sobre masculinidades e desejavam desenvolver homens, mas agora com outra perspectiva”.
um projeto com homens autores de violência, Fiquei entusiasmada com o que vi. Em pouco
nas dependências das Delegacias Especiais de t e m p o, alguma mudança profunda se hav i a
Atendimento à Mulher. processado nos corações e mentes daqueles
Nossa equipe acolheu a idéia,mas propôs-lhes, homens embrutecidos pela vida e pela profissão
paralelamente,o desenvolvimento de outro pro- e agora tocados por um novo sopro que eu não
grama, que viria a se intitular “Polícia Cidadã”. sabia, naquele momento, identificar exatamente
Como parte de um projeto que já vinham desen- de onde vinha. Como a maior parte dos ho-
volvendo em parceria com o Núcleo de Estudos mens, tradicionalmente adestrados para o
de Saúde Coletiva da Universidade Federal do exercício da objetividade e muito pouco afeitos
Rio de Janeiro e a Escola Nacional de Saúde Públi- à reflexão subjetiva, aqueles policiais pareciam
ca da Fundação Oswaldo Cruz, as equipes das ter descoberto outra arena de constituição de
respectivas instituições reuniram-se, durante um identidades. Segundo os coord e n a d o res do
ano,com um grupo de policiais presos no 9º Bata- projeto, as esposas agradeciam. Mesmo privadas
lhão de Polícia Militar, conhecido, em todo o Rio do convívio diário de seus maridos encarc e-
de Janeiro, por sua tradicional brutalidade e pelo rados, já percebiam os sinais da transformação.
freqüente desrespeito aos direitos humanos. Os Uma forte demanda da Polícia Militar era a
resultados foram simplesmente surpreendentes. provisão de atendimento psicológico aos agen-
Na cerimônia de encerramento do projeto, não tes. Submetidos aos riscos inerentes à atividade
assistimos apenas a uma demonstração técnica policial e aos rigores do código disciplinar, que
dos procedimentos adotados.Tivemos a oport u- pode punir com prisão por um atraso ao tra-
nidade de ver os policiais submetidos ao trabalho balho ou por uma barba malfeita, os policiais
exporem sua própria avaliação. O depoimento viviam sob estresse permanente e não recebiam
de um deles resume o significado desse investi- o correspondente suporte psíquico, por parte
mento até então inédito na Polícia. Em uniforme da corporação. O projeto “Polícia Cidadã” não
impecável, que dissimulava sua condição de de- consistia exatamente em prover atendimento

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psicológico individual aos agentes, mas oferecia- era um recurso contrap roducente para com-
lhes a possibilidade de refletir coletivamente so- bater a violência doméstica. Já havia pesquisas
bre suas experiências, sobre sua saúde, suas emo- internacionais indicando os limites e até os
ções e sobre outros temas freqüentemente ex- riscos, para a vítima, do encarceramento dos
cluídos do re p e rtório masculino (como a cons- acusados1, e qualquer um que conheça mini-
trução da identidade masculina, as relações de mamente o sistema penitenciário brasileiro sabe
gênero, sexualidade, prevenção de DSTs/AIDS, quão remotas são as chances de recuperação
paternidade,maternidade,família, espiritualidade dos criminosos ou contraventores submetidos
etc.). Era uma oportunidade rara para a relati- ao regime de privação de liberdade. Na prisão, a
vização dos valores e símbolos que associam a violência tende apenas a recrudescer, alimentada
masculinidade à violência, à dominação e ao pelos códigos masculinos de sobrevivência na
confronto, e interferia, direta e indiretamente, selva humana e pelo fo rtalecimento dos símbo-
na conformação da auto-imagem e na elevação los da virilidade violenta. Não há como supor
da auto-estima. Não se tratava de uma terapia, que a estada em uma penitenciária possa trans-
como faziam questão de afirmar os condutores formar um homem que controla, humilha e
do projeto, mas de um processo cujos efeitos espanca sua mulher em um marido respeitador
eram freqüentemente terapêuticos. A idéia era e cooperativo. Isso sem falar na irracionalidade
estender a experiência-piloto para outras dos custos envolvidos na manutenção de pri-
unidades da Polícia Militar, o que não chegou a sioneiros que, de modo geral, não oferecem risco
acontecer por falta de suporte financeiro. à população. Foi o que aprendi, acompanhando
Quanto aos autores de violência doméstica, e aplaudindo os esforços pela adoção de penas
avaliamos que as Delegacias da Mulher não alternativas no país.
constituíam o ambiente adequado ao desen- De qualquer forma, nossa cultura jurídica e
volvimento de um trabalho dessa natureza. Em policial sempre tendeu a minimizar os crimes
boa medida porque aquele era, ou deveria ser, domésticos, não reconhecendo a gravidade da
um espaço predominantemente feminino, onde violência, quando perpetrada dentro de casa, e
as mulheres vitimadas deveriam sentir-se livres desqualificando as denúncias das mu l h e re s
de todos os constrangimentos impostos pelos agredidas. S a l vo nos casos de homicídio e
parceiros violentos. A presença dos homens no estupro, os agressores dificilmente eram presos,
local de atendimento às vítimas poderia sinalizar mesmo antes que a Lei nº 9.099/95 instituísse
uma redução do espaço de poder que as DEAMs os Juizados Especiais Criminais, dos quais as
buscavam restituir às mulheres. Além disso, as penas de privação de liberdade foram prati-
Delegacias da Mulher representavam, por sua camente abolidas. Estávamos, pois, no seguinte
natureza, a instância de criminalização da estágio: seja pela negligência das agências policiais
violência de gênero. Havia, portanto, esferas mais e jurídicas, seja pelos novos pro c e d i m e n t o s
apropriadas ao empreendimento de um trabalho instituídos, a partir de 1995, os homens autores
que não se confundia com a ação punitiva. Ainda de violência não recebiam punições efetivas,
não sabíamos qual seria esse espaço e como os tampouco alguma forma de admoestação que
movimentos de mulheres reagiriam à idéia de lhes servisse de freio e que assinalasse a dis-
oferecer aos autores de violência um tratamento posição dos poderes públicos em não tolerar a
que não fosse exclusivamente penal. A mim, ela violência. A não ser que se considerem as
soava promissora. Já estava convencida de que a pequenas multas aplicadas pelos Juizados Es-
prisão dos agressores, salvo nos casos graves, peciais Criminais como medidas punitivas ou

1 BABCOCK, J. & STEINER, R. (1998).“The effect of treatment and incarceration on recidivism of battering”. Paper presented at the Program
Evaluation and Family Violence Research: an International Conference, Durham, NH. Apud Melanie Shepard, s/d – Evaluating Coordinated
Community Responses to Domestic V i o l e n c e.Violence Against Women Office – U. S. Department of Justice.
SHERMAN,L a w rence B E R K,Richard A. (1984). – The Minneapolis Domestic Violence Experiment. Washington D.C.: The Police Foundation.

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restritivas — o que, pela prática, não pare c e por parte dos mais variados setores profis-
plausível —, continuávamos, no Brasil, a tratar a sionais, essa experiência significou uma alterna-
violência contra as mu l h e res com a displicência tiva concreta às soluções estritamente punitivas
de quem lida com uma questão irrelev a n t e. Por e à forma negligente com que a violência
sua ve z , os movimentos de mu l h e re s , que doméstica sempre foi abordada.
durante tantos anos procuraram chamar a O que se queria não era tratar psicologica-
atenção para a gravidade desse problema, não mente os agressores, pois a patologização da
atentaram para o outro lado da moeda. Sim, era violência lhes conferiria o status de enfermos,
preciso proteger as vítimas, e essa deveria ser, eximindo-os de qualquer responsabilidade pelo
sem dúvida, a preocupação central e o objetivo c o m p o rtamento violento e aí sim, nesse caso, as
de qualquer projeto. Mas como protegê-las sem vítimas seriam, mais uma vez,relegadas a segundo
interferir no comportamento dos agressores, plano. Nem se pretendia acusá-los e incriminá-
sem alterar os padrões culturais em que a vio- los por seus atos. Para isso já havia a polícia e a
lência flore s c e,sem atacar, portanto, o cerne do justiça. Em linhas gerais, o programa consistia na
problema? Como continuar apostando somente formação de grupos de re f l e x ã o, concebidos
na via da criminalização, que jamais se realiza de como espaços propícios à assunção de respon-
fato, sem fo r mu l a r, clara e precisamente, um sabilidades, à ampliação do autoconhecimento,
projeto para lidar com os autores de violência? à vocalização de experiências e valores asso-
Como imaginar, finalmente,que qualquer esforço ciados à subjetividade masculina, à expansão de
contra a violência masculina possa prescindir da horizontes, à transformação da auto-imagem e
p a rticipação dos próprios homens? ao reenquadramento das perspectivas indi-
Não era difícil prever que a política de viduais. Em duas palav r a s , um processo de
adoção de grupos re f l e x i vos para homens “reflexão responsabilizante”. Nem a medica-
agre s s o res pudesse gerar resistências. Pe l o s lização indulgente, nem o confronto inquisitório,
debates travados nos Estados Unidos, era mas uma oportunidade, para que os homens
patente que algumas correntes feministas exe- pudessem se comprometer em construir, com
cravam a idéia de oferecer qualquer atendimento suas parceiras, presentes ou futuras, relações
aos autores de violência, por considerá-la um mais cooperativas e solidárias, a partir do
desvio (de foco ideológico e de verbas) do reconhecimento da violência praticada.
ve rd a d e i ro pro b l e m a , que eram as mulheres Como em toda experiência inédita e ino-
vitimadas. Todo investimento humano e eco- vadora, o primeiro grupo reuniu um número
nômico, segundo elas, deveria convergir para os modesto de participantes, já que era formado,
projetos de proteção às vítimas, como os voluntariamente, pelos parceiros das mulheres
abrigos, os centros de atendimento, os pro g r a- recebidas em um centro de atendimento, com o
mas comunitários etc. Focalizar os homens, qual se iniciou uma parceria experimental.
diziam as mais radicais, diminui-lhes a responsa- Quando, seis meses depois, encerraram-se os
bilidade e, à medida que se encontram explica- trabalhos, as perspectivas eram alvissareiras.
ções psicológicas ou culturais para seus atos, Havia indicadores significativos de mudanças de
eles acabam disputando uma vaga no altar dos c o m p o rtamento e de percepção da experiência
seres vitimizados, sob a alegação de terem sido vivida, expressos em depoimentos comoventes
condicionados culturalmente ou sofrido expe- que a mídia em diversas ocasiões pôde registrar.
riências violentas na infância2. Cabia, port a n t o, ampliar e institucionalizar a
A despeito, entretanto, das reações adversas proposta, procedendo a avaliações sistemáticas
e da dificuldade de compreensão do processo, que permitissem uma ap reciação acurada dos

2 Esse debate foi detalhadamente analisado em SOA R E S, Bárbara. Mulheres Invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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resultados, que já começavam a aparecer. Aquele hipóteses, seria tão inócua quanto a antecedente.
viria a ser, assim, o piloto de um projeto mais Na melhor das hipóteses, faria do JECRIM o
amplo e mais ambicioso, do qual a Subsecretaria porta-voz de uma transformação profunda desse
de Pesquisa e Cidadania tornou-se uma parceira cenário de condescendência em que vivemos
entusiasta. O Instituto Noos desejava criar o mergulhados até hoje, quando o assunto é a
Centro de Atendimento e Referência para violência doméstica. Ledo engano: nossas visitas
Homens (CEARH). O objetivo era,de um lado, produziram, inicialmente,muito mais resistências
prevenir e reduzir a violência intrafamiliar e de do que adesões. A despeito da pretendida agili-
gênero e, de outro, complementar, através dos dade e simplicidade processual, os Juizados Espe-
grupos reflexivos, a aplicação de penas alter- ciais já haviam adquirido o peso das grandes
nativas que seriam aplicadas aos homens autores máquinas públicas e relutavam em assimilar qual-
de violência contra a mulher. quer novidade. Quem éramos, afinal, para propor
Nesse ponto devo fazer um parêntese para mudanças tão estapafúrdias e que exigiriam um
explicar outro projeto que, paralelamente, monitoramento que os JECRIMs não queriam e
vínhamos desenvolvendo: há muito, estávamos não estavam preparados a executar? Por outro
convencidos de que as multas que os homens lado, a cada nova visita, surpreendíamo-nos com
denunciados recebiam como punição, nos o grau de desconhecimento dos magistrados
Juizados Especiais, eram inteiramente inócuas. sobre o tema da violência doméstica. Alguns
Inócuas como recurso para refrear o ímpeto de deles compartilhavam os mesmos preconceitos
quem já se tornou um autor de violência manifestados pelos policiais, as mesmas idéias do
contumaz e também para inibir, pelo exemplo, senso comu m , tão distantes da realidade viven-
quem possui inclinações para a violência conjugal. ciada pelas vítimas e seus dependentes, em cujos
Acreditávamos, contudo, que não só as vítimas, destinos interferiam todos os dias. Perguntá-
mas toda a sociedade se beneficiaria, e n o r m e- vamo-nos constantemente: será que eles não
mente, se as penas ou transações penais, t i p i- percebem que o acusado continua a exercer seu
camente pecuniárias, fossem convertidas em poder intimidatório durante as audiências,
prestação de serviços comunitários.Trabalhando induzindo a parte agredida a abrir mão do direito
para sua comu n i d a d e, os autores de violência da denúncia? Será que eles não vêem que as
re c e b e r i a m , sem privação da liberd a d e, uma vítimas continuam desamparadas e sob riscos
punição efetiva e, ao mesmo tempo, simboli- ainda maiores, depois que o acusado re c e b e
camente expressiva de que não se faria mais vista como penalidade uma multa irrisória? Será que
g rossa para os pequenos e grandes delitos eles não se dão conta de que é a própria vítima
cometidos na esfera privada. Mais do que isso, q u e, direta ou indiretamente, paga a penalidade
postulávamos a associação dessa modalidade imposta ao acusado? Não compreendem que
punitiva à participação dos acusados nos grupos uma ameaça tratada com displicência pode se
reflexivos para homens autores de violência — transformar no homicídio do dia seguinte? Não
e aqui volta à cena, finalmente,a equipe do Noos, vislumbram os efeitos nefastos da conversão em
reunida no projeto do CEARH. Queríamos moeda de uma violência que é muito maior do
combinar medidas restritivas de direitos e que suas manifestações tópicas, tipificadas no
processos de reeducação de gênero. A meta, Código Penal?
como não poderia deixar de ser, era a segurança Felizmente,alguns juízes — que, com certeza,
e o bem-estar das vítimas, reais e potenciais. percebiam os limites da atuação dos JECRIMs
Iniciamos um périplo pelos Juizados Especiais nos casos de violência doméstica e dispostos a
Criminais do Estado, imaginando que a exposição consolidar os avanços que eles inegavelmente
racional de motivos fosse suficiente para per- trouxeram ao sistema judiciário — incorporaram
suadir pro m o t o res e juízes a substituir uma nossas sugestões e avançaram na elaboração de
prática reconhecidamente ineficaz por uma nova novos projetos e propostas. Tornaram-se não
medida, perfeitamente legal e que, na pior das apenas defensores das idéias que postulávamos,

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mas protagonistas de uma mobilização nacional, viveu, como teve desdobramentos consideráveis.
pela reforma da Lei nº 9.099/95, no sentido de Desde então, ap roximadamente 420 homens e
torná-la mais condizente com o enfrentamento mu l h e res foram beneficiados por essa metodo-
da violência doméstica. logia de trabalho, que representa, sem nenhuma
Lamentavelmente, em 2000, com a extinção dúvida, uma mudança de paradigma na aborda-
da Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania e a re- gem da violência contra a mulher.
versão da política de segurança que se buscou Hoje esse trabalho vem sendo desenvolvido
implantar no Estado do Rio de Janeiro, a parceria por duas diferentes unidades: o projeto SOS-
entre o executivo e o judiciário não foi adiante, Mulher, do Hospital Pedro II, em parceria com o
e o projeto de criação do Centro de A t e n d i- JECRIM do bairro de Santa Cruz, na Zona Oeste
mento e Referência para homens acabou do município do Rio, e a Central de Penas e
inviabilizado. Entretanto, o Instituto Noos deu Medidas Alternativas de São Gonçalo, um dos
continuidade ao trabalho com os Juizados Espe- maiores e mais populosos municípios da região
ciais e, graças a isso, o projeto não apenas sobre- do Grande Rio.

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I - INTRODUÇÃO

R e s o l vemos denominar esse volume da da saúde reprodutiva; pela violência masculina


coleção Homens e Violência de Gênero de ante a conflitos; e pela violência de gênero contra
“Conversas Homem a Homem” para ressaltar as mulheres.
que os homens também conversam e mu i t a s Nosso trabalho é ainda fruto do processo de
vezes fofocam. Tal fato contradiz um dos ap rendizagem afetiva com as mu l h e re s ; da
estereótipos de gênero, que considera conversar experiência de paternar; da construção e
“coisa de mulher”. Por outro lado, sabemos que, reconstrução da masculinidade com nossos pais,
nessas conversas, normalmente os conteúdos irmãos e amigos; da experiência de solidariedade
são machistas e sexistas. No Brasil, geralmente, e gratidão cultivada entre e com os homens com
essas conversas ocorrem sob a forma de piadas os quais trabalhamos; do questionamento sobre
e apresentam forte conteúdo sexual,que utiliza- o gênero masculino da violência e das relações
mos como geradoras de reflexões de gênero no violentas entre homens e mu l h e res; das lições
nosso trabalho com homens. O título desse ap rendidas com os movimentos de mu l h e res.
trabalho, “Homem a Homem”, é também uma Além disso, é também resultado do processo de
referência à expressão que se utiliza no futebol superação da escassez de políticas, programas,
para denominar a marc a ç ã o, em campo, dos projetos e ações de gênero com homens em
jogadores. Ou seja,queremos esclarecer desde já nosso país. É, em suma, a realização do sonho
que, no nosso trabalho reflexivo de gênero com de ter conversas de homens e com homens que
homens, partimos do universo masculino não sejam somente aquelas em que somos
hegemônico para questionarmos os padrões de sempre heróis, fortes, poderosos, corajosos e
masculinidades e as relações de gênero. bem-sucedidos.
Este trabalho tem seu ponto de origem em Nossa metodologia foi construída a partir da
nossos incômodos pessoais como homens a realização de grupos de gênero com homens de
partir dos “nossos demônios” masculinos, como diversos contextos, faixas etárias, etnias e reli-
diria Edgar Morin3, e de nossos conflitos entre os giões, das diversas camadas sociais da população
modelos de masculinidade tradicional hegemô- da cidade do Rio de Janeiro, dentre eles: meninos
nica e as masculinidades alternativas 4. Esses e ex-meninos de rua, estudantes da rede pública
demônios configuram-se e expressam-se pela e privada,policiais militares, moradores, líderes e
assimetria de poder nas relações entre homens agentes sociais de comunidades empobrecidas,
e mulheres; pela “permissão” de emoções hostis universitários, profissionais de nível superior e
para os homens e suaves para as mu l h e res; pelo autores de violência doméstica e de gênero. Em
i n c e n t i vo à prática sexual aos homens e sua relação aos homens que praticam violência
interdição às mulheres; pela prevalência do papel contra mulheres, a procura tem sido espontânea
de provedor em detrimento do exercício da ou por encaminhamento dos Juizados Especiais
paternidade e demais aspectos ligados à esfera Criminais, Centrais de Penas e Medidas Alterna-

3 MORIN, Edgar. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.


4 Segundo Kimmel, as masculinidades hegemônicas e tradicionais mantêm-se invisíveis para os homens que têm o privilégio de ser brancos, he-
terossexuais e pertencentes às camadas médias da sociedade e, dessa forma, desvalorizam as masculinidades dos outros homens, convertendo-as
em subalternas. Neste sentido, a masculinidade hegemônica e a subalterna são construídas em uma interação mútua, porém desigual, em uma ordem
econômica e social marcada pela assimetria de poder nas relações de gênero. Utilizamos a expressão masculinidades alternativas em substituição
a masculinidades subalternas por entendermos que estas também, ao se constituírem, geram novos modelos de masculinidade, ou seja, são
formas úteis de subversão dos padrões de masculinidades dominantes. (Ver KIMMEL, M i chael S.“El desarrollo (de género) del subdesarrollo (de
género)”. In: VALDÉS,TERESA y OLAVARRÍA, J O S É:Masculinidades y equidad de género en América Latina. Santiago del Chile: FLACSO, 1998.)

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tivas do Estado do Rio de Janeiro, Delegacias “Aplicação de Medidas e Penas Alternativas
Especializadas de Atendimento à Mulher, Varas aos Homens Autores de Violência Intrafa-
da Infância e Juventude, Conselhos Tutelares e miliar e de Gênero ”5 e pela atenção às
Centros de Atendimento à Mulher. mu l h e res vítimas dessa violência: coordena-
Esse trabalho foi desenvolvido por uma equi- do pelo Instituto Noos e operacionalizado
pe técnica multidisciplinar composta por homens em parceria com os Juizados Especiais Cri-
e mulheres que integravam o Núcleo de Gênero, minais – JECRIMs –, das cidades do Rio de
Saúde e Cidadania do Instituto Noos. Esta confi- Janeiro, Duque de Caxias e São Gonçalo/RJ;
guração permitiu-nos compreender a comple- o Centro Especial de Orientação à Mulher
xidade das relações, uma vez que elas são tecidas Zuzu Angel – CEOM/São Gonçalo/ RJ; e o
entre homens, entre mulheres, e entre homens e Instituto PROMUNDO/RJ. Este projeto foi
mulheres, no respeito às diferenças de gênero e executado entre os anos de 1999 e 2003.
na aceitação das semelhanças inter e intragênero. “Gênero, Gerações e Direitos Humanos”:
A interação dos universos masculino e feminino coordenado pelo Instituto Noos e de-
muito enriqueceu nosso trabalho, na medida em senvolvido com o apoio da Secre t a r i a
que os concebemos simultaneamente como Nacional dos Direitos Humanos. O tra-
complementares/suplementares. Além disso, a balho foi implementado entre os anos de
composição mista da equipe favo receu o 2000 e 2001.
questionamento da ineqüidade de poder entre
os gêneros, da ideologia baseada na “ s u p e r i o- Essa metodologia também reflete os estudos
ridade masculina” versus “inferioridade feminina” e pesquisas sobre masculinidades e experiências
e dos nossos preconceitos sexistas que tendem com grupos de homens em diversos países, par-
a manter-nos enclausurados nas redes de signifi- ticularmente aqueles realizados a partir da pers-
cados de nossos próprios gêneros. pectiva dos próprios homens. O desenvolvimen-
Contribuiu para o nosso trabalho a expe- to de políticas, p ro g r a m a s , p rojetos e ações
riência da pesquisa-ação Homens, Saúde e Vida envolvendo homens e relações de gênero vem
Cotidiana desenvolvida pelo Núcleo de Estudos se tornando import a n t e,a partir de meados dos
de Saúde Coletiva da Universidade Federal do anos noventa, no continente latino-americano,
Rio de Janeiro e pelo Núcleo de Gênero da especialmente no Brasil, México, Chile, N i c a-
Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação rágua, Argentina, Colômbia, Peru, Honduras e
Oswaldo Cruz. Nessa pesquisa-ação, o Núcleo Bolívia. Diversas conferências e seminários sobre
de Gênero do Instituto Noos constituiu-se essa temática foram realizados nesses países:
como um dos campos pesquisados.
Nossa metodologia foi sistematizada através Seminário “Homens, sexualidade e repro-
da execução dos seguintes projetos: dução”, São Paulo, Brasil, abril de 1998;
Conferência Regional “La Equidad de
“PM Cidadã: Homens, Cidadania e Saúde”: Género en América Latina y El Caribe:
trabalho realizado em 1999, em parceria desafios desde las identidades masculinas”,
com a Subsecretaria de Pesquisa e Cida- Santiago, C h i l e,junho de 1998;
dania da Secretaria de Segurança Pública do Seminário “Respondendo a violência intra-
Estado do Rio de Janeiro e a equipe do familiar e de gênero: reflexões e propostas
projeto Homens, Saúde e Vida Cotidiana da de trabalho com o parc e i ro masculino”,
ENSP – FIOCRUZ/NESC – UFRJ. Brasília, Brasil, novembro de 1999;

5 Esse projeto remonta à experiência construída coletivamente pelo Núcleo de Gênero do Instituto Noos, Subsecre t a ria de Pesquisa e Cidadania
da Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, com a coordenação da Dra. Barbara Musumeci Soares, CEOM/SG, Instituto
Promundo, Centro Integrado de Atendimento à Mulher do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – CIAM/CEDIM – RJ e I e II JECRIMs de São
Gonçalo, de outubro de 1999 a março de 2000.

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“Simposio 2001: violencia de género, salud y No Brasil, como conseqüência da realização
derechos en las Américas”, Cancún, México, de trabalhos com homens, abordando violência
junho de 2001; intrafamiliar de gênero, saúde sexual e re-
“Oficina de apoio psicossocial a vítimas de pro d u ç ã o, o Instituto Noos e o Instituto
violência nos serviços de saúde”, Brasília, PROMUNDO, em parceria, lançaram em Brasília,
Brasil, setembro de 2001; em novembro de 1999, a Campanha do Laço
“ C o n ferência e oficina internacional: ho- Branco — homens pelo fim da violência
mens jovens como aliados na promoção da contra a mu l h e r6, durante a realização do
eqüidade de gênero”, Rio de Janeiro, Brasil, Seminário “Respondendo a violência intrafamiliar
a gosto de 2002; e de gênero: reflexões e propostas de trabalho
“Segundo Seminário Internacional Homens, com o parceiro masculino”, contando com o
Sexualidade e Reprodução: tempos e vo- apoio da Organização Pan-Americana da Saúde,
zes”, Recife, Brasil, junho de 2003; e Escritório Regional da Organização Mundial da
“Seminário Internacional Homens pelo Fim Saúde — OPAS/OMS, Secretaria Nacional de
da Violência contra a Mulher: contribuições Direitos Humanos — SNDH e da Subsecretaria
para políticas públicas”, Rio de Janeiro, Brasil, de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Segu-
n ovembro de 2003. rança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

II – METODOLOGIA

Aquilo que pode parecer esquemático e/ou Consideramos o uso da violência contra a
mecânico no que abord a remos a seguir tem mulher como uma prática que alguns homens
apenas o propósito de esboçar alguns marcos têm empregado nas relações íntimas quando
o r i e n t a d o res como meio de facilitar a siste- “percebem” seu poder e seu controle ameaça-
matização, a compreensão e a multiplicação dos. Nesses momentos, a própria identidade
dessa metodologia de trabalho. masculina é vivenciada como vulnerável por es-
Entendemos que esses marcos representam tar associada a sentimentos de medo, confusão,
muito menos que os processos grupais com os vergonha, frustração, impotência, insatisfação e
quais trabalhamos. Entretanto, podem servir para c i ú m e.A “negação” desses sentimentos, que de-
os que desejam conhecer essa prática de monstram a fragilidade masculina, favo rece a
prevenção e atenção à violência intrafamiliar e de a c u mulação de estados afe t i vos que, por não
gênero e para os que estão se iniciando em serem expressos,podem culminar em explosões
trabalhos com grupos de homens. de violência, caracterizando-se, desta fo r m a ,

6 A Campanha do Laço Branco, iniciada em 1991, foi originalmente promovida por um grupo de homens de Ontário e Quebec, no Canadá, como
parte de um movimento de reflexão e ação pelo fim da violência contra a mulher. E, embora seja desenvolvida durante todo o ano, suas atividades
concentram-se nos meses de novembro e dezembro. Esse período foi escolhido por incluir o dia 25 de novembro, pro clamado pelo UNIFEM/ONU
como o Dia Internacional pela Erradicação da Violência contra a Mulher, e 6 de dezembro, conhecido como o dia do “Massacre de Montreal”, ocorrido
em 1989, na Escola Politécnica dessa cidade, quando um homem assassinou 14 mulheres que estudavam enge n h a ria num centro univers i t á rio onde
o corpo de alunos era tradicionalmente composto por homens, suicidando-se em seguida. Em nosso país, a partir de 8 de março de 2001, Dia
Internacional da Mulher, a Campanha foi estendida também a outros estados com a adesão de mais cinco organizações não-governamentais: Rede
Acreana de Mulheres e Homens, Rio Branco-AC; Centro de Estudos da Saúde — CES, Santo André-SP; Pró-Mulher, Família e Cidadania, São Paulo/SP;
Estudos de Comunicação em Sexualidade — ECOS, São Paulo, SP; e o Programa Papai, Recife, PE.Também contou com o apoio do POMMAR —
Partners of the Americas/USAID e, atualmente,da Fundação MacArthur, através do projeto Prevenção de Violência Intrafamiliar e de Gênero em
Parceria com Homens, da OPAS/OMS, UNESCO; UNICEF; Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e o Governo Estadual do Acre.

14
como um dos fatores associados à violência de Referências teóricas
gênero. Os grupos possibilitam a continência
desses estados afetivos e a promoção de diá- Para a realização deste trabalho, levamos em
l o go s , tanto internos quanto externos, favo- consideração as experiências e teorias feministas
recendo a compreensão de como as situações de gênero; os estudos, pesquisas, campanhas e
de violência são construídas nas re l a ç õ e s trabalhos com grupos de homens realizados no
interpessoais e re forçadas no cotidiano pela Brasil e em outros países da América Latina,
cultura em que vivemos. Canadá e Estados Unidos; a Pedagogia da Per-
Com esse trabalho, pretende-se: gunta de Paulo Freire; o Pensamento Sistêmico,
o Construtivismo e o Construcionismo Social
desnaturalizar a conduta violenta, traba- com a contribuição de autores como Tom
lhando os diversos contextos em que Andersen,Humberto Maturana,Marcelo Pakman,
o c o rre — familiar, cultural, histórico etc. Carlos Sluzki e Genovino Ferri; e a abordagem
— promove n d o, dessa forma, a trans- Somatopsicodinâmica,de Federico Navarro, com
formação dos padrões da masculinidade base na obra de Wilhelm Reich.
hegemônica; O conceito de gênero usado pelas feministas
pro m over a responsabilização de homens tem sido fundamental para compreendermos os
a u t o res de violência intrafamiliar e de padrões de masculinidades e feminilidades como
gênero, favorecendo a execução de medidas construções sócioculturais e históricas, levando-
e/ou penas alternativas; nos a questionar a determinação biológica desses
promover a prevenção primária, secun- padrões e a rever as relações sociais entre ho-
dária e terciária das violências através da mens e entre homens e mulheres. Ampliar a
construção de recursos e habilidades não- perspectiva de gênero envolvendo as masculini-
violentas no âmbito das relações inter- dades tem contribuído para que os homens
pessoais, especialmente, as conjugais e incluam no seu cotidiano as questões da vida
familiares; privada habitualmente exclusivas, em nossa
contribuir para a construção de uma rede sociedade,ao universo feminino.
de atenção para os homens autores de Os movimentos e grupos de mulheres das
violência de gênero e reforçar as redes de décadas de 1970 e 19807 inspiraram-nos a reunir
atenção a mulheres que se encontram em homens para compartilhar e refletir sobre suas
situação de violência; histórias de vida, sexualidade, cotidiano e vio-
fornecer subsídios para capacitações, lência de gênero, com ênfase nas transformações
pesquisas e publicações através das infor- dos papéis e relações de gênero. Desde o
mações colhidas nas entrevistas prelimi- princípio, em nossos trabalhos, temos consi-
nares, nos grupos reflexivos, questionários e derado gênero enquanto “sexo sociológico”8, o
grupos focais; que se tornou um tema freqüente nas conversas
contribuir para a elaboração e o ap e r fe i- com os homens nos grupos reflexivos.
çoamento de propostas de leis relativas à Os movimentos feministas pretendiam gerar
violência doméstica de gênero; e consciência crítica sobre a condição feminina na
avaliar o impacto da violência intrafamiliar e sociedade. Os grupos de mu l h e res foram funda-
de gênero, favo recendo a elaboração e a mentais para que seus objetivos por uma equi-
implantação de programas e políticas públi- dade de gênero fossem amplamente difundidos.
cas de atenção a esse problema nas áreas de Entretanto, as masculinidades não se incluíam em
educação, s a ú d e,justiça, segurança pública e suas principais reflexões. Ao compreender as
direitos humanos. relações entre homens e mu l h e res, enfatizando

7 ARILHA, Margareth et al. Homens e masculinidades. São Paulo: ECOS / Ed. 34, 1998.
8 CHODOROW, N a n cy. Psicanálise da maternidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990.

15
os aspectos relacionais da perspectiva gênero, dos temas a serem discutidos nos grupos.
foi possível iniciar debates que circ u l a s s e m Quanto à forma de refletir sobre o elenco
p re fe rencialmente pelas construções sociais, temático produzido no âmbito grupal, repor-
tanto das feminilidades quanto das masculinida- tamo-nos à proposta pedagógica de Paulo Freire11,
des, visando a efetiva transformação das relações que tem proporcionado a associação dos temas
de poder entre homens e mu l h e res. e conceitos com a experiência cotidiana do
Os trabalhos com homens, em termos universo masculino, através de perguntas gera-
abrangentes, são classificados pelos teóricos das doras de diálogo para a transformação das
masculinidades em dois grupos: aqueles aliados relações de gênero dos participantes. Diferen-
ao movimento feminista e os estudos autôno- temente da pedagogia tradicional, Fre i re sugere
mos sobre masculinidade9. Aqueles que utilizam que a pergunta seja um instrumento dialógico e
a abordagem de gênero são considerados aliados gerador de novas perguntas e reflexões e não o
do movimento feminista, reconhecendo nesse caminho para se encontrar a resposta única, certa
m ovimento e em suas teorias a base para os e verdadeira. Esse autor pro p õ e, portanto, uma
estudos sobre masculinidades. Já os estudos pedagogia da pergunta e do diálogo, em
autônomos sobre masculinidade levam em conta contraposição à pedagogia da resposta. Todavia,
o movimento de mu l h e res e seus avanços sem, vale salientar que a habilidade para fo r mu l a r
entretanto, reconhecer a sua produção teórica perguntas geradoras de mudanças depende da
como suficiente para o entendimento da cons- capacidade de escuta e do desejo de conhecer.
trução das masculinidades e relações entre No pensamento sistêmico, utilizamos a
homens e entre homens e mulheres. Considera- Proposta Reflexiva, de TomA n d e r s e n12, com o
mos que ambas as visões fazem parte da cons- intuito de reconstruir significados sobre os
trução de um novo modo de vislumbrar o padrões de masculinidades e relações de gênero,
homem e suas relações e que, portanto, não se a partir do contraponto entre estes significados
excluem, mas se complementam. e as ações do cotidiano, ampliando, assim, as
A literatura da área de gênero e mascu- visões de mundo dos participantes dos grupos.
linidades vem descrevendo o homem como Com base em nossa experiência,podemos dizer
aquele que normalmente desempenha o papel que os diálogos compartilhados pelos participan-
do provedor. Da mesma forma, há estudos que tes sobre os significados atribuídos às atitudes,
vinculam a identidade do homem à preocupação aos padrões de comportamentos masculinos e às
e ao exercício da paternidade, à performance relações de gênero analogicamente associadas ao
sexual e ao uso da força e da violência como cotidiano têm possibilitado o conhecimento da
uma das formas na resolução de conflitos. Esses relação de interdependência desses aspectos.
estudos ressaltam que os homens dispõem de A perspectiva articuladora entre linguagem
poucas habilidades e recursos para se expre s- e ação da abordagem reflexiva facilita a ap ro-
sarem verbalmente, sendo seletivos quanto à ximação crítica da realidade vivida. A interação
e x p ressão de determinadas emoções, como reflexiva entre a equipe e os participantes
amor, medo, tristeza, c a r i n h o, privilegiando a possibilita a construção de soluções para os
r a z ã o, dominando ou opondo-se à mulher e problemas. Assim, a articulação entre o proces-
temendo a proximidade com outros homens so grupal, a linguagem e a ação confere visibili-
(homofobia)10. O conhecimento desses aspectos dade às várias concepções sobre os problemas,
tem sido freqüentemente utilizado para funda- possibilita a identificação de diferentes formas
mentar nossos trabalhos e compor o quadro de ação, bem como potencializa práticas

9 ARILHA, Margareth et al. Homens e masculinidades. São Paulo: ECOS / Ed. 34, 1998.
10 NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
11 FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
12 ANDERSEN,Tom. Processos reflexivo s. Rio de Janeiro: Noos/ITF, 1996.

16
transformadoras construídas e implementadas nais de linguagem e atores de uma história in-
pelos participantes. transferível”14. Assim, a dominação e a desigual-
Ao abordarmos a violência intrafamiliar e de dade de poder nas relações de gênero só se tor-
gênero nos grupos de homens, enfatizamos as nam uma “realidade possível” na medida em que
diferenças entre agressividade, conflito, poder, os homens vêm se fixando em determinados pa-
potência e violência. Por agressividade entende- drões, agindo ve rticalmente e impondo suas
mos uma força biopsicológica, sempre acom- crenças e valores. Em geral, os homens cons-
panhada de significados, que usamos para troem suas masculinidades em sociedades cultu-
satisfazer aspectos vitais (fome, por exemplo), ral e historicamente violentas, como nos alerta
não para controlar ou submeter alguém, o que Zingoni15. Esse contexto é um universo favorável
normalmente acontece nas relações marcadas ao exe rcício violento do poder, sendo o am-
pela violência. Já o conflito nas relações entre biente maior em que somos educados e reedu-
parceiros íntimos caracteriza-se por uma disputa cados como homens.
ou controvérsia em que há uma simetria de Como alternativa à violência, contrapomos a
poder e em que os papéis de gênero são inter- construção da democracia do cotidiano: for-
cambiáveis, circulares e horizontais, ocorrendo ma de poder que exercitamos com a finalidade de
diálogos na procura das soluções. organizar as redes sociais16 — pessoais, insti-
Para a diferenciação entre poder e violência, tucionais e comunitárias. A democracia do coti-
utilizamos conceitos do terapeuta de família Mar- diano e a convivência em redes possibilitam o
celo Pakman13. A partir desse autor, entendemos reconhecimento das diferenças étnicas, culturais,
poder “como um contexto de interação que geracionais, religiosas,de gênero e de classe, atra-
permite que certos membros de um dado siste- vés da valorização dos recursos dialógicos, das
ma social definam o que será validado como real habilidades para o trabalho e da construção
para outros membros do sistema. Essa definição, coletiva do conhecimento e da “realidade”, que
que pode ou não ser expressa lingüisticamente, ampliam nos sistemas humanos as alternativas
estará sempre encarnada em práticas cotidianas para se lidar com as crises dos ciclos vitais, sociais
que geram, mantêm ou re forçam a realidade e históricos e a que denominamos de potência.
assim criada”. Nesse sentido, as relações de Em outras palavras, potência é, pois, a capacidade
poder entre os gêneros podem definir contextos de construir diálogos geradores de mudança.
legítimos para o exercício das diferenças entre Nesse caminho de olhar o fenômeno da
homens e mulheres, sem que isso implique re l a- violência intrafamiliar e de gênero pelos aspectos
ções abusivas. que possibilitam sua transformação, faz sentido
Em determinadas situações, o exercício do uma leitura, baseada na metáfora de redes e
poder pode se realizar por intermédio da violên- redes sociais17, não apenas do trabalho específico
cia, que, ainda segundo Pakman, consiste em “um dos grupos com homens autores de violência,
contexto de interação no qual alguns membros como também do conjunto de ações de uma
de um sistema social são negados ou invalidados política de prevenção e responsabilização pe-
como sujeitos sociais, emissores únicos e origi- rante essa violência.

13 PAKMAN,Marcelo. Terapia familiar em contextos de pobreza, violência, dissonância étnica. In:Nova Perspectiva Sistêmica, No 4. Rio de Janeiro:
ITF/Noos,1993.
14 Idem.
15 ZINGONI, Eduardo Liendro. “Masculinidades y violencia desde un prog rama de acción en México”. In: VALDÉS, Teresa; OLAVARRÍA, José.
Masculinidades y equidad de género en América Latina. Santiago: FLACSO, 1998.
16 O constructo “rede social pessoal” ou “ rede social significativa” ou “rede de relacionamentos” foi definido por Sluzki como “todo o conjunto de
vínculos interpessoais do sujeito: família, amigo s,relações de trabalho, de estudo, de inserção comunitária e de práticas sociais”.Também afirma que
a fronteira da rede social pessoal é delimitada pelas informações transmitidas pelos sujeitos que participam das redes por razões práticas e úteis.
Ver SLUZKI, Carlos E. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
17 PAKMAN, Marcelo.“Redes: una metáfora para práctica de intervención social”. In: DABA S,E. NAJMANOVICH, D; (comp.). Redes, el lenguaje de
los vínculos. Buenos Aires: Pa i d ó s,1995.

17
Todos vivemos em redes18. Essas redes po- envolvidos. No caso da violência intrafamiliar e
dem ser descritas como formadas por pessoas de gênero, quais seriam os atores sociais nela
ou organizações de pessoas — grupos ou ins- envolvidos, ainda que potencialmente? Restrin-
tituições —, ou como sistemas de narrativas19, gindo-nos ao recorte da violência contra as
redes comunicacionais que produzem sentido mulheres, teremos os seguintes atores: a família
e significado para a vivência humana. Maturana nuclear, a família extensa, os amigo s , a vizinhança
ensina que “todas as condutas humanas, já que ou comunidade,o policial da delegacia de mulhe-
somos seres na linguagem, surgem desde uma res, os serventuários da justiça, o defensor ou
rede de conversações que é a cultura à qual advogado, o promotor, o juiz, o legislador, o médi-
pertencemos”20. co do pronto-socorro e os profissionais do cen-
Sluzki21 define a rede social pessoal como “a tro de atenção à mulher. Podemos categorizá-los
soma de todas as relações que um indivíduo per- em cinco tipos de rede: a familiar, a comunitária,
cebe como significativas ou define como diferen- a de segurança pública, a de justiça e a de saúde.
ciadas da massa anônima da sociedade”. Neste Imbuídos do espírito de articulação e conexão
conjunto de pessoas, estão aquelas que privam da ótica sistêmica e da metáfora de re d e s ,
de maior ou menor intimidade, estão em conta- ressaltamos que esses cinco subsistemas aqui
to com maior ou menor freqüência e intensidade mencionados formam uma rede de re d e s,que
e podem ser alocadas em pelo menos uma necessita também, por sua vez, que aqueles que
categoria de relação, tais como: amorosa, familiar, a compõem a mantenham devidamente ativada.
de amizade, colegas de escola e/ou trabalho, A A b o rdagem Somatopsicodinâmica de
vizinhos e outras. Podem ainda ser reconhecidas Federico Navarro22,que considera o sujeito como
por partilharem uma identidade social, seja ela uma unidade sistêmica e elimina a dicotomia entre
profissional, religiosa, étnica, minoritária, s o c i e- soma e psique, tem possibilitado trabalhar simul-
tária ou ideológica, ou ainda por terem passado taneamente com a semiologia da linguagem cor-
por experiências de vida semelhantes: divórcio, poral e com a linguagem verbal. Durante os pro-
paternidade/ maternidade, autores ou vítimas de cessos grupais, os facilitadores estimulam os
violência, dependência química etc. participantes a refletirem sobre as analogias entre
Outro aspecto importante que se destaca ao os sinais corporais e as narrativas verbais:analogias
utilizarmos a metáfora de redes para olharmos a entre as sensações físicas, emoções, gestos, olha-
situação de violência intrafamiliar e gênero é a res, expressões físicas e as correlações com os
a rticulação que se pode criar entre os recursos temas e significados narrados e vivenciados pelos
que a sociedade disponibiliza aos que vivem essa participantes. Essa abordagem diferencia-se da
situação, tanto para interrompê-la quanto para ótica psicossomática quanto ao foco de compre-
impedir sua reincidência ou atenuar suas ensão. Aquela privilegia a psique e a comunicação
conseqüências. verbal em detrimento do corpo e sua linguagem,
Da mesma forma que podemos identificar a enquanto esta estabelece uma interdependência e
rede social pessoal de alguém ao perguntar simultaneidade funcional entre corpo e mente. A
s o b re suas relações significativas, podemos concepção somatopsicodinâmica postula
mapear a rede que envolve determinada situação que “uma idéia não pode ser construída se as
ao identificar todos os que nela se encontram emoções e as sensações correspondentes

18 O conteúdo apresentado neste e nos próximos três parágrafos foi originalmente reproduzido no texto de Carlos Eduardo Zuma "A visão
sistêmica e a metáfora de rede social no trabalho de prevenção de violência intrafamiliar em comunidades", contido na revista Nova Perspectiva
Sistêmica, ano XIII, número 23, fevereiro de 2004. No entanto, a primeira versão sofreu uma pequena modificação, pois acrescentamos uma quinta
c a t e go ria de rede, a rede de segurança.
19 SLUZKI, Carlos E.A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo , 1997.
20 MATURANA, H.“ B i o l ogía y violencia”. In.: CODDOU, F. et al.Violencia en sus distintos ámbitos de expresión. Santiago de Chile: Dolmen, 1995.
21 SLUZKI, Carlos E.A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo , 1997.
22 NAVARRO, Federico.A somatopsicodinâmica. São Paulo: Summu s, 1995.

18
estive rem ausentes”23. Nela os pensamentos, recursos complementares: atendimentos de
imagens, fantasias, sonhos e valores também ap o i o, grupos de acompanhamento —
correspondem a sensações corporais. follow-up e redes;
Com base nessa concepção pesquisa e avaliação: questionário e grupo
sistêmico-energética e utilizando a teoria focal;
psicanalítica, a orgonômica e a neuropsicologia24, equipe técnica: facilitadores, estagiário e/ou
Nav a rro sistematizou ações que articulam o voluntário e equipe reflexiva; e
corpo à mente, denominadas actings. Quanto à c apacitação e espaço técnico-reflexivo —
unidade de funcionamento entre corpo e mente, “supervisão”.
vale salientar que “enquanto são os homens
heterossexuais os supostos beneficiários dos Atividades preparatórias
poderes da tradição dualista, eles são também
–– paradoxalmente –– colocados fora destes GRUPOS DE RECEPÇÃO
benefícios pela própria identificação com a
razão”25. Com esta ilusão de benefícios, os Nessa etapa inicial, denominada grupo de re-
homens acabam pagando o preço da negação cepção, a equipe técnica apresenta o trabalho de
do corpo, da afetividade, da capacidade de forma geral aos beneficiários, informando que o
c o municação verbal e da sexualidade. Exce- Instituto Noos faz parte de uma rede de preven-
tuando-se a performance sexual e as emoções ção e atenção à violência intrafamiliar e de gêne-
hostis, o mundo sensível acaba se configurando ro. No grupo de recepção, ressaltam-se o com-
como exclusividade feminina em nossa cultura. promisso institucional com a “não-violência ativa”
e a importância da adesão a essa proposta por
Experiências e recursos técnicos p a rte do usuário.Também, enfatizam-se a promo-
ção de relações eqüitativas de gênero e os pro-
Para a execução do trabalho de gênero com cedimentos legais. Esclarece-se ainda que o traba-
homens, realizamos uma série de atividades e lho visa atender a homens autores de violência
contamos com técnicos e estagiários de diversas intrafamiliar e contra a mulher, através de procu-
áreas do conhecimento com o propósito de ra espontânea, encaminhamentos pelos serv i ç o s
incluir diferentes compreensões sobre as mascu- de atenção à mulher, Delegacias Especializadas
linidades, as relações de gênero, os sistemas de Atendimento à Mulher e instituições vincu-
conjugal e familiar, a violência de gênero, dentre ladas à justiça, tais como Centrais de Penas e
outros temas. As atividades e os recursos técni- Medidas Alternativas — CPMAs, Juizados Espe-
cos da metodologia de grupo de gênero encon- ciais Criminais — JECRIMs,Varas da Infância e
tram-se descritos a seguir e serão explicados Juventude e Conselhos Tutelares.
com maiores detalhes posteriormente. Os homens encaminhados pela Ju s t i ç a
freqüentam os grupos cumprindo medida alter-
atividades preparatórias: grupo de recepção nativa ao processo ou pena alternativa ao encar-
e entrevistas preliminares; ceramento. D e n t re os temas discutidos no
grupos reflexivos de gênero — pré-grupo, o grupo de recepção, destacam-se questões relati-
grupo propriamente dito (compromisso de vas às medidas alternativas, às penas alternativas
c o nvivência e não-violência ativa, l ev a n- e à prisão e suas alternativas, bem como o papel
tamento temático e dinâmicas geradoras de dos JECRIMs no que diz respeito à violência
conversas) e pós-grupo; intrafamiliar de gênero.

23 Idem.
24 ACOSTA, Fernando.“La utilización de los actings como instrumento de la investigación cualitativa en el género y sexualidad masculina”. In: Energía,
carácter y sociedad. No 1 9 ,Valencia: Publicaciones Orgo n , 1995.
25 GIFFIN, Karen.Violência de gênero, sexualidade e saúde. Cad. Saúde Pública, 1994, vol.10, suppl.1, pp.146-155. ISSN 0102-311X.

19
Quanto às alternativas à prisão, discute-se, conciliatória e a possibilidade de aplicação ante-
ao longo dos tempos, que elas têm sido tema cipada de pena não-privativa de liberdade, pro-
polêmico, cujo interesse cresce significativamente cedimento este denominado transação penal.
em nossa sociedade. Esse fato relaciona-se a Também no grupo de recepção, explicamos
grandes temas de justiça, segurança e direitos aos usuários a diferença entre medida alternativa
humanos da atualidade, como a ineficácia do e pena alternativa. Informamos que medida
sistema penitenciário e a questão de como tratar alternativa é qualquer forma ou instrumento
o réu — condenado ou não. legal utilizado para evitar a condenação, enquanto
No encontro de recepção, ao se discutir o pena alternativa é um instrumento para evitar
tema da prisão e suas alternativas, explica-se que a privação da liberdade.
elas têm sido tratadas sob diferentes enfoques. Enfatizamos que, em relação à violência
Há aqueles que defendem penas cada vez mais ri- intrafamiliar de gênero, a suspensão condicional
gorosas e o aumento do tempo de reclusão, do processo é proposta ao réu na audiência de
aliando-se ao movimento da lei e da ordem; de instrução e julgamento pelo Juiz de Direito, que
outro lado, no qual nos inserimos, estão aqueles pode propor ao autor da violência o grupo re-
que defendem que a privação da liberdade deve flexivo de gênero com abordagem respon-
ser aplicada apenas a casos que representam sé- sabilizante como uma medida alternativa.
rio risco social ou àqueles em que crimes violen- Já em relação à pena alternativa e a sus-
tos tenham sido cometidos, sendo tal corrente pensão condicional da pena, salientamos que
denominada de direito penal mínimo, campo no são benefícios que substituem a pena privativa de
qual se incluem as medidas e penas alternativas. l i b e rdade aplicada pelo Juiz de Dire i t o. São
Mencionamos também que a execução das denominadas substitutivas porque primeiro
penas privativas de liberdade consiste em pre o- aplica-se a pena privativa de liberd a d e, que em
cupação da Organização das Nações Unidas, que seguida é substituída por uma pena alternativa.
aprovou, em 1955, as Regras Mínimas para No campo da violência intrafamiliar de gêne-
o Tratamento de Presos e, na década de 1970, ro, nos Juizados Especiais Criminais — para on-
passou a recomendar formas mínimas de penas de se encaminha a maioria dos casos de violência
não-privativas de liberdade, que deveriam ser intrafamiliar de gênero —, o autor de violência
cumpridas em benefício da comunidade. primário, ou seja, que não tenha condenações
Em 1990, em assembléia geral, a ONU aprovou anteriores, terá direito a uma medida alternativa.
a Resolução 45/110, que estabeleceu as Tal medida poderá ser aplicada na audiência
Regras Mínimas para a elaboração de Medidas preliminar, quando poderá ser proposto o grupo
Não-Privativas de Liberd a d e, que ficaram re f l e x i vo de gênero, pagamento de multa ou
conhecidas como as “Regras de Tóquio”. cesta básica, prestação de serviços gratuitos à
Ressaltamos que no Brasil, em 1984, na refor- comunidade, prestação de serviços a entidades
ma da Parte Geral do Código Penal e na Lei de públicas ou uma conjugação desses procedimen-
Execuções Penais — Lei 7.210/84 — estabelece- tos jurídicos. Há ainda, conforme a Lei 9.099/95,
ram-se alternativas à pena privativa de liberdade a possibilidade de composição civil, ou seja, um
como uma política anticriminal. Nessa mesma acordo entre o autor de violência e a vítima.
linha, a Lei 9.099/95, ao criar os Juizados Especiais Caso não sejam aceitas as propostas de
Criminais (JECRIMs), classificou como de “menor transação penal e de acordo com a vítima, será
potencial ofensivo” os crimes com pena privativa realizada a Audiência de Instrução e Julgamento
de liberdade igual ou inferior a um ano. Com a pelo Juiz de Direito. Nessa audiência, provada a
criação dos Juizados Criminais Federais, através agressão, após serem ouvidas a vítima e suas
da Lei 10.259/2001, os crimes de “menor poten- testemunhas, o autor de violência e suas teste-
cial ofensivo” passaram a ser aqueles com pena munhas, procede-se ao julgamento e à conde-
privativa de liberdade igual ou inferior a dois anos. nação do autor de violência. Neste caso, a pena
Para todos estes casos, estão previstas a solução privativa de liberdade aplicada pelo Juiz de

20
D i reito poderá ser substituída por uma das participar de grupos de auto-ajuda ou
penas alternativas mencionadas anteriormente. passar por atendimento especializado caso
Em relação à aplicação do grupo reflexivo em seja dependente químico, portador de
conjunto com outra pena ou medida alternativa, transtornos psiquiátricos e ap re s e n t e
temos proposto ao Poder Judiciário que, para histórico de tentativa de suicídio; e
os casos de violência intrafamiliar de gênero, o não reincidir no uso de qualquer tipo de
grupo reflexivo com abordagem responsabili- violência que acarrete risco de vida e
zante seja, s e m p re que possíve l , associado à ameaça à integridade própria ou de outros.
prestação de serviços gratuitos. Também suge- Vale esclarecer que não temos, com o traba-
rimos que o tempo de participação nos grupos lho de grupo reflexivo com abordagem respon-
seja subtraído do número de horas de prestação sabilizante,a pretensão de policiar ou julgar esses
de serviços gratuitos. homens. Contudo, cremos que a violência de
Dessa maneira os grupos re f l ex i vos de gênero não se justifica sob quaisquer circuns-
gênero com abordagem responsabilizante tâncias ou pretextos, devendo ser interrompida
são um instrumento de prevenção secundária e por esse trabalho e por outros recursos exis-
terciária e uma alternativa à impunidade, ao qual tentes na sociedade. O que pretendemos é que
alguns juízes do Estado do Rio de Janeiro têm os autores de violência reconheçam e se
recorrido como medida alternativa ou substitu- responsabilizem por seus atos violentos, e que
tiva das penas de detenção. Os grupos reflexivos possam ampliar os recursos para a resolução de
de gênero, gradativamente, vêm sendo utilizados crises e conflitos em suas relações, especial-
como medida ou pena alternativa na tentativa mente a violência de gênero praticada nos
de buscar uma resposta penal mais adequada à sistemas conjugal, intrafamiliar e de gênero.
realidade sócioeconômica do país, reduzir as No grupo de recepção os homens têm, no
dificuldades do sistema criminal, proporcionar a Instituto Noos, a primeira oportunidade de
reparação da violência cometida e favorecer a refletir sobre a trajetória pessoal de violência,
recuperação do autor de violência. narrando sua versão da situação em que se
Ainda no grupo de recepção, comunicamos encontram inseridos. Esse relato pode incluir a
aos beneficiários que estabelecemos um acordo denúncia e/ou notificação nas delegacias espe-
de cooperação técnica com o Poder Judiciário cializadas e Conselhos Tutelares, as audiências
através do qual o mantemos informado sobre a nos JECRIMs, Varas da Infância e Juventude, o
freqüência dos participantes, por meio de corres- encaminhamento para as CPMAs e o cum-
pondência oficial. Neste mesmo acordo, também primento das medidas e/ou penas alternativas
foram estabelecidos os critérios de pert i n ê n c i a nas instituições conveniadas com a Justiça.
e exclusão dos beneficiários do trabalho. Caso Em tais grupos, procuramos refletir, com
estes critérios não sejam cumpridos, os usuários os participantes, sobre a magnitude da violência
são redirecionados aos JECRIMs. doméstica de gênero com base em alguns es-
Os critérios são os seguintes: tudos realizados nos JECRIMs. No ano 2000, no
Rio de Janeiro, segundo o antro p ó l o go Roberto
ap resentar ofício de encaminhamento da Kant de Lima26, os dados de dois JECRIMs
justiça determinando o cumprimento da mostram, na média, os conflitos entre “cônjuges
medida alternativa ou pena alternativa; e afins” respondiam por 51,9% do total dos
estar dentro do prazo legal do cumpri- casos encaminhados. Nesse trabalho, ele des-
mento da medida e/ou pena alternativa; taca a situação da mulher como principal vítima
freqüentar todas as atividades referentes a de violência doméstica e o fato de essa vio-
todas as etapas do trabalho reflexivo de lência acontecer sobretudo nas relações ínti-
gênero; mas, tendo como cenário o espaço familiar.

26 LIMA, Roberto Kant de,AMORIM, M a ria Stella, BURGOS, Marcelo.“Guerra e Paz na Família: falso armistício”. Revista Insight Inteligência,AnoV,
número 17, Rio de Janeiro: Insight Enge n h a ria de Comunicação e Marketing Ltda, 2002.

21
Quanto aos tipos de conflito tratados nesses ENTREVISTAS PRELIMINARES
JECRIMs, predominam duas das situações pre-
vistas no Código Penal: a “lesão corporal leve” As três entrevistas pre l i m i n a re s ao grupo
(artigo 129), que corresponde a 28,4% do total reflexivo são realizadas em dupla composta por
de conflitos, e a “ameaça” (artigo 147), a l- facilitador e estagiário ou voluntário. Na segunda
cançando o índice de 36,2%. Em relação ao entrev i s t a , aplicamos um questionário com a
perfil dos homens denunciados, 34% possuem finalidade de colher informações sobre os
no máximo quatro anos de instrução formal, e beneficiários tais como: perfil sóciodemográfico,
cerca de 60% até oito anos; quanto às vítimas, situação conjugal e familiar, atitudes diante de
o perfil é similar. No que diz respeito à renda conflitos, violência de gênero e saúde. Nessas
individual, cerca de 70% dos autores de vio- entrevistas, procuramos realizar o acolhimento e
lência e suas vítimas recebem até três salários estabelecer um vínculo afetivo e de referência
mínimos. com os homens, realizar a triagem e/ou o
É relevante o debate sobre os diversos encaminhamento dos mesmos para a rede de
tipos de violência com base em dados coleta- s e rviços (terapia individual, conjugal e/ou familiar,
dos nos JECRIMs, pois amplia a possibilidade tratamento médico-ambulatorial, mediação,
de compreensão sobre o ciclo da violência assistência jurídica), esclarecer sobre o processo
conjugal, o que ajuda a desfazer determinados de trabalho, reafirmar os critérios de pertinência
mitos, sobretudo aquele que considera a vio- e/ou exclusão aos grupos reflexivos e efetuar o
lência intrafamiliar de gênero como algo espo- encaminhamento dos homens para os grupos.
rádico, pouco letal e, portanto, de menor po-
tencial ofensivo. Os grupos reflexivos de gênero:
Quanto ao destino dos casos, evidencia o sistemática do trabalho
estudo que, na média,apenas 4,6% dos processos
são encerrados em audiências de instrução e Os grupos reflexivos de gênero vêm se
julgamento, com resolução de 33,2% dos litígios configurando como uma forma específica de se
através de composição cível e 22,9% por meio trabalhar com homens e mulheres, especialmen-
de transação penal. Ressalta, entretanto, que, do te no que diz respeito à questão da violência
total dos casos, 39,3% resolvem-se pelo arquiva- intrafamiliar e de gênero. Sua metodologia
mento ante a desistência da mulher em pro s s e- permite que possam ser desenvolvidos por
guir com o processo. No encontro de recepção, profissionais de diferentes áreas do conhecimen-
a situação de violência e sua pre d o m i n â n c i a to, tais como educação, saúde e ciências huma-
entre parceiros íntimos, o perfil dos autores e nas. Os grupos não se constituem em um campo
das vítimas, os tipos de crimes, bem como a privilegiado de nenhuma área, podendo inclusive
resolução dos casos nos JECRIMs são correlacio- ser facilitados por agentes e líderes comunitários
nados à situação dos participantes de cada grupo. previamente capacitados. Os grupos constituem
Além disso, no encontro de recepção, os o eixo do trabalho de prevenção e interrupção
beneficiários são também informados sobre as do ciclo da violência entre parc e i ros íntimos
e t apas do trabalho reflexivo do Instituto realizado pelo Núcleo de Gênero do Instituto
Noos: três entrevistas preliminares de triagem Noos.
e/ou encaminhamento ao grupo; aplicação de Por entendermos a violência de gênero como
questionário sócioeconômico e sobre vio- parte integrante das relações sociais baseadas
lência intrafamiliar de gênero; vinte encontros na desigualdade de poder entre os sexos, cul-
semanais de grupo reflexivo de gênero, com turalmente construída, e não como uma doença
duração de 2 horas e 30 minutos cada; atendi- biopsicológica, podemos dizer que os grupos
mentos de apoio; grupo focal de avaliação do re f l e x i vos de gênero são uma alternativa à
trabalho; e cinco encontros de acompanha- violência. Quando abordada como um problema
mento dos participantes. psicológico e/ou psiquiátrico, a violência reduz-se

22
ao campo da individualidade, não pressupondo a necessário, c o n forme mencionamos anterior-
necessidade de formulação de políticas públicas mente,os participantes são encaminhados à rede
específicas, em vários âmbitos — segurança, local institucional de atenção à violência
justiça,direitos humanos, saúde,educação, cultura intrafamiliar e de gênero para atendimento
e assistência social –– para sua erradicação. Daí jurídico, social, psicoterapia individual, de casal
resulta adotarmos a expressão “ a u t o res de e/ou de família, terapia medicamentosa e
violência”, em substituição à denominação mediação familiar.
“agressores”, usada freqüentemente para desig- A metodologia em questão permite que os
nar os homens que foram ou têm sido violentos sujeitos e suas relações sejam trabalhados no
com suas parceiras, uma vez que a nomeação grupo, que o grupo seja coletivamente trabalha-
agressores possui uma significação que circ u n s- do e, principalmente,que o próprio grupo realize
c reve a atitude desses homens ao terre n o a ação reflexiva. Trabalhamos com processos
biopsicológico ou intrapsíquico, ou seja, como re f l e x i vos, compreendendo que as atitudes,
uma tendência ou prédisposição destrutiva c o m p o rtamentos e falas atuam como estímulos
dirigida ao mundo externo. re c í p rocos entre os participantes. Nesse
O grupo re f l e x i vo constitui-se como um processo, as narrativas e a linguagem não-verbal
espaço de inclusão dos sentimentos, da subje- — atitudes, timbre e tonalidade da voz, dentre
tividade e das relações em um sistema grupal de outros exemplos — promovem ressonâncias
convivência e reflexão. Caracteriza-se como um entre os sujeitos.
contexto para a reflexão sobre temas do Podemos, também, definir os grupos re f l e-
cotidiano dos homens que em geral não são xivos como espaços para compartilhar dores,
abordados, constituindo-se em um modelo temores, feridas e para romper a solidão e o
sistêmico para a prevenção e interrupção da silêncio masculinos sobre a vida privada e públi-
violência intrafamiliar de gênero. Este trabalho ca, tendo como base o desenvolvimento de
não é psicoterápico, ainda que tenha efeitos sentimentos de confiança, fraternidade e solida-
terapêuticos. A c reditamos que não se deve m riedade.Tais sentimentos são alternativos à vio-
propor terap i a s , como primeira medida, para lência e à competição na relação entre homens
autores de violência intrafamiliar e de gênero, e mu l h e res e entre os próprios homens. Os
pois nesses casos a terapia pode descaracterizar grupos são um recurso para se lidar com rela-
a autoria da violência do homem contra a vítima, ções e situações conflitantes e violentas nas quais
podendo levá-la a negociar a situação de vio- os homens percebem suas masculinidades
lência e a re nunciar às ações judiciais. v u l n e r á ve i s , associando-as a sentimentos de
Além disso, os grupos reflexivos de gênero medo, confusão e raiva.
com abordagem responsabilizante não se Alguns autores consideram a hipótese de que
caracterizam como “justiça terapêutica”27. Não os homens que apresentam maior probabilidade
podemos confundir com psicoterapia o fato de para responder com ações violentas às situações
estarmos trabalhando com as relações entre os de conflito têm em comum a masculinidade
homens, entre os participantes e a equipe, as “forjada” sob a cultura de uma hegemonia
relações conjugais e as redes sociais pessoais. machista, em cujo re p e rtório de ações encontra-
D evido ao seu caráter eminentemente se a possibilidade da agressão em resposta a uma
reflexivo e não psicoterápico, compreendemos atitude considerada ofensiva. Conjugado a isso,
que os grupos reflexivos de gênero com homens são esses homens estariam percebendo, à época de
c o m p l e m e n t a res e não substitutivos das ações suas ações violentas, seus padrões de masculini-
policiais, jurídicas,médicas e psicológicas de atenção dades colocados em xe q u e. Os grupos reflexivos
à violência intra familiar e de gênero. Quando permitem a expressão e continência dessas

27 Justiça terapêutica refere-se a um programa judicial destinado a abusadores e/ou dependentes químicos cujo objetivo é evitar o encarceramento,
oferecendo uma proposta de tratamento.

23
percepções, promovendo diálogo s , e podem ser percepções que os membros da equipe apresen-
considerados como espaços de solidariedade e tam sobre o processo grupal, especialmente a
prazer gerado pela companhia, pois “...sem o dinâmica e os padrões de interação dos
prazer da companhia, sem amor, não há participantes promovendo analogias com as
socialização humana, e toda sociedade na situações de violência nas relações íntimas e
qual se perde o amor se desintegra”28. Eles familiares. Após as reflexões, a equipe prepara o
possibilitam a construção de um contexto de e n c o n t ro grupal, escolhendo um dos temas
confiança onde os homens se colocam enquanto definidos no levantamento temático realizado
sujeitos e, sobretudo, onde a afetividade pode pelo grupo, planejando a dinâmica e/ou o recurso
emergir como o principal elo entre eles. técnico a ser utilizado. Essas discussões,
Os grupos reflexivos permitem que os ho- retomadas ao final de cada grupo re f l e x i vo,
mens encontrem pares que vivem ou viveram denominam-se encontros pós-grupo. Os
situações semelhantes e compartilhem suas encontros da equipe — pré e pós-grupo —
histórias e emoções. No processo grupal de constituem-se, portanto, como espaços de
identificação e dife renciação, proporcionadas reflexão e planejamento dos procedimentos que
pelas conversações, os homens percebem dive r- visam à otimização do processo grupal.
sas formas de expressão da masculinidade, o que Nos primeiros encontros, o grupo realiza um
possibilita a cada um construir alternativas para compromisso de convivência e não-violên-
lidar com as diferenças e conflitos vivenciados cia ativa, estabelecendo seus nort e a d o re s
em suas relações íntimas, familiares e cotidianas. éticos, definindo o conjunto de normas e valores
Os grupos reflexivos são realizados sema- que o orientarão, tais como sigilo, pontualidade,
nalmente, por um período de cinco meses, com freqüência, respeito às diferenças e limitações
duração de duas horas e meia cada, totalizando pessoais, dentre outros. I m p o rta ressaltar que a
20 encontros com, no máximo, 12 participantes “ n e gociação” para o estabelecimento do
de diferentes faixas etárias. Para a realização do compromisso de convivência constitui-se num
grupo, conta-se com uma equipe técnica com- ensaio de como “agir” nas relações, com ênfase
posta por dois facilitadores — técnicos e/ou na diversidade de crenças, sentimentos e desejos.
agentes comunitários —, um estagiário e/ou vo- A partir desse compromisso, os homens iniciam
luntário e uma equipe reflexiva. um processo de questionamento dos seus
Os grupos reflexivos são precedidos por uma poderes e de aceitação dos próprios limites, o
reunião da equipe — pré-grupo —, com uma que pode levar à transformação de suas relações
hora de duração, para avaliar as oficinas reflexivas cotidianas. Não raro, observamos que os
com base nos relatórios e narrativas da equipe e homens estendem esse compromisso de con-
seus sentimentos, valores, crenças, expectativas, vivência às suas relações conjugais, familiares e de
dúvidas, preconceitos e princípios éticos. No trabalho. No estabelecimento do compromisso
pré-grupo, a equipe técnica reflete sobre o grau de convivência, ressaltamos novamente, com
de ap rofundamento dos temas, por parte dos cada part i c i p a n t e,o acordo estabelecido entre o
usuários, a necessidade do prosseguimento na mesmo, os demais participantes do grupo e o
reflexão de determinado tema, situações Instituto Noos com relação ao princípio da “não-
individuais agudas, a pertinência da realização de violência ativa”.
atendimentos individuais e/ou encaminhamentos Após o compromisso de convivência,
para outros serviços, as relações e as redes realizamos, juntamente com os participantes de
significativas dos participantes, as concepções cada grupo, um l evantamento temático
s o b re gênero, masculinidades, feminilidades e relacionado ao cotidiano masculino, às relações e
violência. Discutem-se, também, as diferentes à violência de gênero e estabelecemos a ordem

28 MATURANA, Humberto. Emociones y lenguaje en educación y política. Santiago de Chile: H a ch e t t e, 1989.

24
de prioridade para a discussão dos temas. Esses, de singularidade como sendo construída na
em geral, confirmam a literatura disponível sobre relação com as outras pessoas a partir do con-
homens e masculinidades29, destacando-se: texto cultural no qual nos inserimos. A cons-
padrões de masculinidades, os significados de ser trução dessa noção processa-se através da
homem e mulher hoje, relações de gênero, linguagem composta por um conjunto de sig-
sexualidade, saúde, paternidade, família, saúde nificados compartilhados consensualmente.
re p ro d u t i v a , t r a b a l h o, violência e violência Nesse sentido, a linguagem gera narrativas
intrafamiliar e de gênero, d i reitos humanos, pessoais que são as histórias que contamos e
cidadania, religiosidade e/ou espiritualidade. recontamos sobre nós mesmos. Nessas histó-
Temas considerados centrais para a discussão rias, encontramos um vasto repertório de sen-
do grupo, como relações e violência de gênero, timentos, idéias, crenças e valores que orien-
quando não sugeridos pelos participantes, são tam nossa maneira de estar no mundo.
propostos pela equipe como prioritários e Nos grupos reflexivos, os facilitadores utili-
mantidos no elenco temático.Vale salientar que, zam as técnicas narrativas para estimular os
para que o processo de reflexão sobre os temas participantes a encontrarem novos significados
ocorra satisfatoriamente,os mesmos “devem ser associados às experiências violentas que têm
vividos [...] como espaços de ação acessíveis ao vivido, o que pode propiciar novas formas de
seu fazer, seja este prático ou conceitual, em um se relacionar com esse problema, mudando
c o n t í nuo convite a olhar esse fazer e suas suas atitudes e comportamentos. Como exe m-
conseqüências com liberdade para transformá- plo, freqüentemente utilizamos a dinâmica Cra -
los a qualquer momento”30. chá de Gênero, exercício que consiste em solici-
tar a cada participante que escreva seu nome
DINÂMICAS GERADORAS DE CONVERSAS numa folha de papel e, em seguida, escolha duas
letras. A partir delas, pede-se que escrevam pa-
Utilizamos, em nosso trabalho, uma variedade lavras que consideram como as principais ca-
de recursos geradores de conversas para realizar racterísticas de masculinidade e feminilidade.
os grupos reflexivos de gênero. Esses recursos Após essa etapa, os participantes são conv i d a-
incluem técnicas narrativas, actings31 e linguagem dos a compartilhar com os demais os significa-
corporal, jogos de aquecimento, atividades de dos que atribuíram aos gêneros, propiciando a
ligação e dramatizações. reflexão. Em geral, essa técnica é utilizada co-
mo uma forma de gerar conversas sobre temas
TÉCNICAS NARRATIVAS relacionados às questões de gênero. A eficácia
desse exercício encontra-se na sua cap a c i d a d e
Surgidas recentemente e originárias de vá- de explorar os significados associados aos pa-
rios campos do saber, sobretudo da concep- drões de masculinidades, feminilidades e os
ção sistêmica, do construcionismo social, da sentimentos, idéias, crenças e valores pertinen-
crítica literária — oriunda de autores como tes a esses padrões. Dessa forma, cada mem-
Mikhail Bakhtin, Roland Barthes e Ferdinand bro do grupo tem a possibilidade de se deparar
de Saussure — e da Hermenêutica — desen- com a diversidade de significados apresentada
volvida por pensadores como Hans-Georg pelo grupo. Essa pluralidade de significados,
Gadamer, Jurgen Habermas e Paul Ricoeur —, aliada à reflexão, constitui-se em fator impor-
as técnicas narrativas dizem respeito à noção tante para a promoção de mu d a n ç a s .

29 HAMAWI, Rodolfo. “Que querem os homens?” In: NOLASCO, Sócrates (org.). A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, e
ARILHA, Margareth.“Homens, Saúde Reprodutiva e Gênero: o desafio da incl u s ã o ” . In: GIFFIN, Karen; COSTA, Sarah Hawker. Questões de Saúde
Reprodutiva. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.
30 MATURANA, Humberto REZEPKA, Sima Nisis de. Formación humana y capacitación. Santiago: UNICEF Chile/Dolmen Ediciones, 1995.
31 NAVARRO, Federico. Metodología de la Vegetoterapia – Caracteroanalitica. Valencia: Publicaciones Orgon, 1993.

25
ACTINGS E LINGUAGEM CORPORAL mos e o encontro com o outro; e promovem a
comunicação, otimizando a escuta, o compar-
Para cada tema escolhido, selecionamos uma tilhamento das histórias de vida e a expressão de
seqüência de actings que, nos processos grupais, conflitos vinculados ao cotidiano masculino.
são adaptados para serem realizados em duplas Além disso, esse tipo de experiência permite
e/ou coletivamente, funcionando como propul- construir e exercitar novos modos de viver as
sores das conversações. Durante a realização masculinidades e pode favorecer o questiona-
do a c t i n g, a equipe observa a maneira como os mento da socialização masculina tradicional —
p a rticipantes o realizam, registrando a expressão que “condena” a proximidade afetiva e corporal
corporal dos mesmos. Essa “observação” da e n t re homens heterossexuais, restringe o
linguagem corporal é descrita, posteriormente, espectro psicológico às emoções hostis, minimi-
durante a discussão grupal, com o objetivo de zando os sentimentos de medo, culpa ou vergo-
promover uma analogia entre o “jeito” de cada nha. Nesse sentido, a ampliação do espectro
um “fazer” o acting e a forma de contar a expe- emocional retoma a origem do termo emoção:
riência vivida durante o mesmo. Essa forma de mover-se para fora como “ c ó d i go, escritura e
proceder, evidenciando a linguagem corporal e texto incessantemente relido de uma experiên-
relacionando-a a atitudes e comportamentos, cia desaparecida, de um encontro obscuro, de
propicia às pessoas a ampliação dos significados uma história”32.
e o conhecimento sobre si mesmas, incluindo o
próprio corpo como sistema de linguagem. JOGOS DE AQUECIMENTO
Ao se trabalhar com os padrões da mascu-
linidade hegemônica e a homofobia, por exe m- Os jogos de aquecimento são planejados
plo, utilizamos geralmente uma adaptação de considerando os estilos de vida masculinos
dois actings: o “ponto fixo” e a “acomodação- revelados através de manifestações culturais tais
c o nvergência”. A adaptação do ponto fixo como esport e s , danças, músicas, jogos e rituais.
consiste em pedir aos participantes que, em Esses jogos são operacionalizados por meio de
duplas, se olhem nos olhos; já a adaptação do dinâmicas corporais, brincadeiras, piadas e
acting acomodação-convergência reside em diri- ditados populares que evidenciam a forma como
gir o olhar para o próprio corpo, especialmente são construídas, definidas e vividas as masculini-
para o nariz e para o corpo de sua dupla, p r i n c i- dades e as relações de gênero. Por exemplo, em
palmente os olhos. Essas adaptações podem ser relação às piadas, quando essas são contadas
realizadas durante um período que pode variar pelos participantes do grupo, além de contribuir
de seis a dez minutos cada. Em seguida, os mem- para a descontração, seus conteúdos são explo-
bros do grupo relatam o que foi vivido, enfati- rados tendo por base as relações de gênero,
zando as sensações, os sentimentos, as fantasias enfocando principalmente o que significa ser
e as idéias que experimentaram durante a re a l i- homem e ser mu l h e r, levando ao questiona-
zação do acting. Como se trata de uma atividade mento dos seus componentes machistas, m i-
que mobiliza o sistema neuromuscular e as emo- sóginos e sexistas.
ções e que causa estranheza aos homens em
função da cultura masculina dominante, esses ATIVIDADES DE LIGAÇÃO
“exercícios” são gradualmente propostos e têm
o tempo de duração paulatinamente aumentado. Essas atividades, como o próprio nome
Em nossa experiência, os actings facilitam o s u g e re, p ropõem-se a ap rofundar a re f l e x ã o
processo de “grupalização”; proporcionam aos sobre determinado tema discutido nos encon-
homens experimentar o contato consigo mes- tros grupais, sobretudo aqueles relacionados a

32 DADOUN, Roger. Cem Flores para Wilhelm Reich . São Paulo: Mora e s, 1991.

26
questões de gênero; estabelecer ou manter o ções emergenciais que são disponibilizadas aos
nexo entre diferentes temas; e favorecer o pro- participantes do grupo pelos técnicos do núcleo
cesso grupal e o vínculo com a instituição. Elas de gênero, que em geral consistem em três en-
são sempre realizadas envo l vendo contextos contros, com o objetivo de dar suporte e conti-
extragrupais e outras esferas da vida dos part i- nência às necessidades e demandas dos bene-
cipantes — a casa, o trabalho, o lazer, a parceira ficiários atendidos. Quando avaliada a pertinência
íntima, a família, os amigos etc. Para isso, pode- de continuidade do atendimento, os técnicos
mos, por exemplo, solicitar que os participantes realizam o encaminhamento para a rede de pre-
levem para o encontro seguinte objetos que, venção à violência intrafamiliar e de gênero,
para eles, sejam representativos da vida sexual. priorizando a rede pública de saúde e as institui-
Podemos também sugerir que escrevam uma ções não-governamentais, que realizam serviços
mensagem dirigida à parceira íntima,sobre algum de terapia medicamentosa, psicoterapia indivi-
aspecto da gestão doméstica — divisão de dual, conjugal, familiar e mediação. Cabe lembrar
t a re f a s , cuidado dos filhos, finanças, d e n t re que realizamos os encaminhamentos não apenas
outros. Assim, sugerimos observar durante um para atender às necessidades e demandas
tempo a quem cabe a responsabilidade pelos específicas dos beneficiários, mas também para
trabalhos da casa e, após este período, escolher resguardar o modelo reflexivo-responsabilizante
e executar algumas das atividades que não con- e não psicoterápico do trabalho de gênero que
siderava como sendo “tarefa” sua. Esses exercí- realizamos, conjugando intervenções específicas
cios são retomados nos encontros posteriores, com os autores, vítimas e testemunhas de violên-
através de relatos, gerando novas reflexões. cia ao trabalho sistêmico de grupo. Dessa forma,
pretendemos assegurar a atenção das necessi-
DRAMATIZAÇÕES dades de todos os envolvidos, sem concorrer
para o desequilíbrio de poder nas relações con-
Os encontros grupais muito se beneficiam jugais e familiares.
quando lançamos mão de técnicas de dramatiza- Para a realização dos atendimentos de apoio,
ções inspiradas no Teatro do Oprimido, no Psico- os técnicos consideram, sobretudo, os casos de
drama e nos já mencionados recursos narrativos. reincidência, riscos de vida e ameaça à integri-
Inicialmente, estimulamos os participantes a dade própria ou de outros, dependência química
discutirem determinado conflito ou problema e e transtornos psiquiátricos. Entretanto, esse tipo
a descreverem-no da melhor forma possível. Em de atendimento pode ser indicado não somente
seguida, solicitamos que o transformem em uma pelos técnicos. Ele pode ser solicitado também
história e escolham entre si quem e como repre- pelo próprio beneficiário ou sugerido pelo grupo
sentar. Durante a representação, pedimos aos e familiares que vivem em situação de violência.
demais membros do grupo que conversem com
os “personagens”, buscando soluções alternativas G RU P O S DE AC O M PA N H A M E N TO —
ao que foi apresentado. Por último, procuramos FOLLOW-UP
identificar os sentimentos vivenciados pelos
“personagens” e demais membros do grupo, Após a conclusão dos grupos, são realizados
procurando dar voz e significados às emoções, grupos de acompanhamento — follow-up —
correlacionando-os às situações conflitivas. pelo período de um ano, a intervalos que vão
aumentando gradativamente, totalizando cinco
Recursos complementares encontros. Esses encontros de follow-up iniciam-
s e,aproximadamente,40 dias após o término do
ATENDIMENTO DE APOIO grupo reflexivo, podendo incluir participantes de
d i fe rentes grupos realizados na instituição. O
Denominamos atendimentos de apoio às o b j e t i vo do acompanhamento é monitorar e
entrevistas individuais pontuais e/ou em situa- apoiar os participantes, visando prosseguir a

27
avaliação do impacto do trabalho em suas vidas; cia intrafamiliar e gênero, temos como desafio a
verificar a situação atual de cada um, a necessi- complexa articulação em rede entre esses
dade ou não de encaminhamento para outros diversos serviços e setores, disponibilizados pela
serviços; acompanhar a discussão de casos sociedade civil organizada e pelo poder público
específicos e analisar o nível de acolhimento da aos que se encontram nessas situações, no
rede pessoal significativa e a rede de apoio — intuito de promover a prevenção nos diversos
incluindo a rede formada entre os próprios níveis — primária, secundária e terciária — bem
participantes e o Instituto Noos —; checar a como reduzir seu impacto e custos.
reincidência ou não de situações de violência e Quanto a isso, nosso compromisso maior
e m p reender uma discussão e/ou ap ro f u n d a- tem sido o de contribuir para a formulação de
mento de temas. uma política pública e um plano de mobilização
que contemple, pelo menos, cinco tipos funda-
REDES mentais de rede — a familiar, a comunitária, a de
segurança pública, a de justiça e a de saúde —
Nos grupos re f l e x i vo s , os homens são com o intuito de formar um sistema único de
estimulados a estabelecerem vínculos fraternos apoio às vítimas, bem como de responsabilização
e a contarem uns com os outros, como recurso e recuperação dos autores de violência intra-
para evitar a reincidência da violência e, portanto, familiar de gênero.
a formarem uma rede pessoal e grupal de mútua
ajuda. Assim, nesse pro c e s s o, é fundamental PESQUISA E AVALIAÇÃO: QUESTIONÁRIO
promover entre os homens a valorização das E GRUPO FOCAL
suas redes de relações pessoais significativas —
amigos, colegas, familiares ou grupos — para que Na segunda entrevista preliminar ao grupo,
possam construir condições de interrupção da solicitamos aos usuários que respondam um
violência. Procuramos, dessa forma, estreitar a questionário33 de 102 quesitos distribuídos por
ligação entre os membros através dos processos cinco temas: perfil sociodemográfico, situação
de identificação, dinâmicas de integração, com- conjugal, atitudes perante a saúde, conflitos e
promisso de convivência e conotação positiva violência intrafamiliar e de gênero. Em relação
das relações de cooperação, confiança e respeito aos objetivos do questionário, destacamos a
às diferenças. A partir desse processo, é comum realização de estudo de demanda, conhecimento
que os participantes dos grupos se reaproximem do perfil individual e coletivo dos participantes,
da parceira íntima, filhos, netos, parentes, amigos dinâmica do ciclo da violência, tipos de violência
e ampliem sua rede pessoal-social, nela incluindo praticados, sofridos e testemunhados, cuidados
líderes comu n i t á r i o s , orientadores religiosos, com a saúde e a percepção dos homens em
profissionais de saúde e direito. Em alguns casos, relação aos grupos reflexivos de gênero.
passam a fazer parte de grupos de auto-ajuda. Com base nesse questionário, realizamos um
No desenvolvimento do nosso trabalho, primeiro estudo de demanda, em parceria com o
temos contado com a parceria de serviços de Instituto Promundo, no período de setembro de
atendimento a mulheres, Delegacias Especializa- 1999 a abril de 2000, com 67 homens autores de
das de Atendimento à Mulher, Juizados Especiais violência, com o propósito de traçar o perfil dos
Criminais, Centrais de Penas e Medidas Alterna- usuários. Desses, 64,2% estão na faixa de 31 a
tivas, institutos de atendimento a casais e famílias, 45 anos e apresentam baixo grau de instrução
s e rviços de assistência jurídica e de saúde, dentre formal: 34,3% não contam sequer com o ensino
outros. Todavia, em nossa prática, observamos fundamental completo. Quanto à renda, 46,2%
que, trabalhando-se com as situações de violên- recebem entre 1 e 4 salários mínimos mensais, e

33 Esse mesmo questionário é também aplicado à população feminina atendida pelo Núcleo de Gênero do Instituto Noos.

28
19,4%, 8 salários mínimos ou mais. Do total de mercado, nos Estados Unidos, que gradativa-
homens atendidos, 51% encontravam-se casados mente foi sendo adaptada a outros tipos de
à época desse estudo, sendo que 17,9% desses levantamento e ganhando reconhecimento nas
estabeleceram novas relações conjugais após a Ciências Sociais.
ocorrência da situação de violência conjugal, e O grupo focal tem o objetivo de avaliar o
91% do total de homens pesquisados têm filhos. impacto dos encontros reflexivos para os partici-
Esse estudo revelou que, a partir das entre- pantes e fornecer subsídios para o ap r i m o r a-
vistas preliminares, o atendimento humanizado mento da metodologia de grupo reflexivo de
gerou impacto e valoração positiva para 77% dos gênero. Este recurso consiste na realização de
beneficiários quanto à criação de um espaço de um encontro com duração de duas horas,
c o nvivência reflexiva entre homens e para efetuado após a conclusão dos vinte encontros
homens. Entretanto, 6% relataram falta de do grupo re f l e x i vo. Em geral, essa reunião é
interesse pelo grupo. c o o rdenada por uma dupla de pesquisadores
Ainda com base no mesmo estudo, ve r i f i c a- que não participaram de nenhuma das etapas do
mos que a aplicação do questionário possibilitou trabalho, sendo gravada e registrada por escrito,
narrativas de histórias dramáticas nas quais os com a finalidade de elaborar um re l a t ó r i o
homens foram autores e/ou vítimas de violên- d e s c r i t i vo. Esse relatório, posteriormente, é
cias: psicológica, física, sexual, familiar (materna, discutido com a equipe do núcleo de gênero,
paterna, conjugal, filial), policial, racial e econô- p ropiciando atualizações e modificações no
mica. Cerca de 61,5% dos homens atendidos so- trabalho.
freram, freqüentemente,violência física na família Quanto a esse aspecto, elaboramos um
de origem, e 9% deles sofreram abuso ou violên- roteiro de questões a serem propostas ao grupo,
cia sexual na infância, por parentes ou conhe- com o objetivo de avaliar a pertinência e a abran-
cidos34. Nesse sentido, a violência ap resenta um gência do elenco temático, a equipe de facilitado-
caráter cíclico, violência gerando violência, e não res e reflexiva,o impacto do trabalho em diferen-
pode ser analisada apenas de um só ponto de tes esferas da vida de cada um — conjugal,
vista: da vítima, do agressor ou da testemu n h a . familiar, profissional, saúde etc. — e em que
Quanto ao Grupo Focal, trata-se de uma medida a intervenção favoreceu a interrupção e
técnica inicialmente utilizada para pesquisa de responsabilização pela violência cometida.

III - EQUIPE TÉCNICA: FACILITADORES, ESTAGIÁRIO E/OU


VOLUNTÁRIO E EQUIPE REFLEXIVA

nados facilitadores reflexivos porque, em nossa


Facilitadores concepção, as observações não ocorrem a part i r
de interpretações, mas por perguntas, respostas
Em nossa metodologia, os facilitadores são e ações relacionadas às narrativas, histórias de
aqueles que têm como função promover conver- vida, comportamentos, atitudes, sentimentos,
sações e atividades durante os encontros refle- fantasias e pensamentos recorrentes durante o
xivos, p rocurando ampliar os recursos e ha- processo grupal e a vida cotidiana.
bilidades de cada grupo e dos sujeitos, sempre Os fa c i l i t a d o re s são compreendidos como
por meio de uma postura reflexiva. São denomi- sujeitos que, durante o processo grupal, também

34 ACOSTA,F;BARKER,G.et al.Estado de Demanda com Homens Autores de Violência de Gênero.Rio de Janeiro,Instituto Noos / Promundo,2001.(mimeo)

29
compartilham suas experiências pessoais e p re l i m i n a res, dos encontros re f l e x i vos e das
posições quanto a determinados assuntos e/ou reuniões da equipe técnica. Durante os encon-
temas, discutindo seus próprios valores, crenças tros reflexivos, registra o desenrolar do grupo:
e ideários, ro m p e n d o, dessa fo r m a , com a participação dos homens e dos facilitadore s ,
chamada neutralidade técnica. Essa postura freqüência, recursos técnicos, narrativas, expres-
deriva da crença de que somos, a um só tempo, sões corporais, podendo ainda compor a equipe
sujeitos e objetos do processo grupal e não reflexiva e, na ausência dessa, ser solicitado a
meramente profissionais supostamente neutros c o m p a rtilhar suas observações.
no campo de trabalho.
Dessa maneira, o facilitador participa das Equipe reflexiva
reflexões e aprofundamento dos temas, colocan-
do aspas35 em sua objetividade. A “objetividade” A equipe reflexiva,instituída por Tom Andersen,
reflete a complexidade de nossa subjetividade e, é um recurso oriundo da terapia de família. Sua
ao colocá-la em evidência por intermédio de composição pode variar de acordo com as ca-
falas e linguagens, possibilita-se maior diferencia- racterísticas e necessidades das famílias,da equipe
ção entre os facilitadores e demais participantes. técnica e, em nosso caso, dos grupos atendidos.
Essa concepção é oposta à normalmente de- Em nosso trabalho, normalmente,ela é composta
fendida e difundida, que postula aos técnicos por quatro membros: técnicos do Núcleo de
resguardar seus valores no exercício profissional. Gênero do Instituto Noos, alunos em processo
Assim, nos encontros reflexivos, facilitadores e de capacitação em serviço,agentes comunitários e
p a rticipantes são co-responsáveis pela constru- de saúde, operadores do direito, especialistas da
ção de um contexto grupal que favoreça o sur- área de violência de gênero, feministas e ex-
gimento de novas configurações de masculini- participantes de grupos reflexivos.
dades e feminilidades, incluindo a eqüidade entre A equipe reflexiva pode ocupar a mesma sala
homens e mulheres. em que se realiza o encontro grupal ou estar
Dessa forma, o facilitador reflexivo part i c i p a ambientada em uma sala de espelhos. Em qual-
como parte integrante do grupo e tem espaço quer das modalidades, organiza-se como um gru-
para expor suas opiniões e idéias, podendo ser po distinto da equipe de facilitadores e do grupo
questionado quanto às mesmas. Assim, está reflexivo. Sua proposta consiste em realizar uma
aberto a novas contribuições e colabora com o observação participante. Em outras palavras,
grupo na construção de novas formas de se refere-se ao processo de auto-observação de
relacionar, focalizando o que acontece entre os cada membro da própria equipe reflexiva, da
participantes e entre esses e suas re l a ç õ e s observação da dinâmica do grupo, dos facilitado-
conjugais e familiares. res, estagiário e/ou voluntário, dividindo seus
Além disso, o facilitador também estimula os sentimentos, percepções e diálogos internos,
p a rticipantes a se colocarem sempre no lugar das bem como os sentimentos relacionados às
pessoas com as quais ele se relaciona com o ob- narrativas, sentimentos e expressões corporais
jetivo de proporcionar uma visão mais compro- do grupo.
metida com o cuidado e respeito com o outro. Durante sua conversa, os membros da equi-
pe reflexiva expressam seus diálogos internos
Estagiário e/ou voluntário diante do grupo em atendimento. Os diálogo s
ocorrem entre os membros da equipe refle-
O estagiário e/ou voluntário colabora com xiva enquanto sistema autônomo e não entre
os facilitadores participando das entrev i s t a s essa e os participantes do grupo. De acordo

35 Originalmente Maturana utiliza a expressão (objetividade) objetividade entre parênteses. No entanto, prefe rimos lançar mão da expressão
“objetividade”, objetividade entre aspas, por a considerarmos mais próxima da realidade de nossa língua, enquanto a (objetividade) é coerente com
o seu uso em espanhol. (Ver MATURANA, Humberto. Biología de la cognición y epistemología.Temuco: U n i v e rsidad de la Frontera, 1990.)

30
com Andersen, “o processo interno está par- reflexiva com o grupo poderá ser proposto
cialmente a serviço da preservação da integri- pelos facilitadores, pelos membros do grupo e
dade da pessoa, mas serve também como base pela própria equipe reflexiva. Em nossa expe-
para a expansão dos atos de sentir, conhecer e riência, geralmente, a equipe reflexiva compar-
agir. A condição necessária para essa expansão tilha suas reflexões depois de transcorridos
é a união desse processo interno com um pro- dois terços do tempo total do encontro. Em
cesso externo contínuo de trocas”36. O mo- seguida, o grupo reflete sobre o que foi comen-
mento de compartilhar a escuta e observações tado. Esse procedimento não se caracteriza
da equipe reflexiva, através de processos inte- como norma, para não se perderem os mo-
rativos de diálogo s , de cada membro da equipe mentos significativos e úteis aos grupos.

IV-CAPACITAÇÃO E ESPAÇO TÉCNICO-REFLEXIVO – “SUPERVISÃO”

O nosso processo de capacitação abrange melhor interlocução com os autores de violência


um curso teórico e técnico, com carga horária intrafamiliar e de gênero.
de 128 horas, compreendendo o seguinte con- O espaço técnico-re f l e x i vo, comumente
teúdo programático: visão de mundo sistêmica, o denominado superv i s ã o, de acordo com a pers-
construtivismo e construcionismo social; as pectiva sistêmica, é delimitado pela visão
redes sociais: pessoais, institucionais e comunitá- c o m p a rtilhada do trabalho que, em nosso caso,
rias; a abordagem somatopsicodinâmica e a lin- se re fe re ao desenvolvimento dos grupos de
guagem corporal; a perspectiva de gênero — re c e p ç ã o, e n t revistas pre l i m i n a res, grupos
feminilidades e masculinidades, relações de reflexivos — compromisso de convivência, levan-
gênero —; família, transformações históricas e tamento temático, oficinas reflexivas —, constru-
diferenças culturais; a violência intrafamiliar sob ção de recursos técnicos e aprimoramento de
a ótica sistêmica; os direitos humanos e os habilidades, discussão de casos, atendimentos de
direitos das mu l h e res; metodologia de grupo apoio e articulação da rede de prevenção à
re f l e x i vo : recursos técnicos; sistemática de violência intrafamiliar e de gênero, preparo e
trabalho e a participação vivencial em grupo discussão sobre o follow - u p.
reflexivo de gênero. Nesse espaço, compartilhamos as diferentes
Consideramos fundamental a experiência descrições ou explicações de cada membro da
vivencial e pessoal dos facilitadores em grupos equipe sobre o processo de trabalho. Ou seja,
reflexivos de gênero, porque compreendemos essas diferentes visões é que permitem a cons-
que ela possibilita que os futuros facilitadores tituição e a construção permanente do trabalho.
reconheçam, questionem e possam — inclusive Além disso, a possibilidade de promovermos o
— transformar crenças, valores, sentimentos e trabalho também depende da coerência ou
p reconceitos relacionados aos temas neles contradição entre a diferentes visões e as ações
discutidos: relações de gênero, violência, m a s c u- que implementamos. Dessa maneira, o espaço
linidades, feminilidades, direitos, cidadania, sexua- técnico-reflexivo não é concebido como uma
lidade,dentre outros. Além disso, proporcionam supervisão (no sentido de que alguém detém o

36 ANDERSEN,Tom. Processos reflexivos. Rio de Janeiro: Instituto Noos-ITF, 1996.

31
conhecimento total, único e ve rd a d e i ro do a concepção coletiva e a capacidade de explicitar
processo de trabalho), mas implica a responsa- e enfrentar diferenças e desacordos, o que am-
bilidade coletiva de toda a equipe na construção plia os recursos disponíveis para sua execução.
e reconstrução do trabalho. Essa perspectiva A seguir formatamos uma tabela sobre o
pressupõe,portanto, a organização da equipe em nosso trabalho de grupo re f l e x i vo de gênero
torno de um projeto comum, a disponibilidade com o propósito de fornecer uma visão global
para deslocar o foco da concepção pessoal para de suas etapas:

ETAPA / RECURSOS DESCRIÇÃO OBJETIVOS

Realização do primeiro encontro Esclarecer sobre a totalidade do trabalho,


Grupo de recepção entre os candidatos a part i c i p a rem destacando-se os objetivos e os critérios de
do grupo re f l e x i vo de gênero e a p a rticipação e exclusão.
equipe de facilitação.

Coletar, através de um questionário,


informações sobre o candidato, tais como:
perfil sociodemográfico, situação conjugal e
familiar, atitudes diante de conflitos, violência
Realização de três entrev i s t a s de gênero e saúde.
Entrevistas preliminares individuais entre o candidato a
participar do grupo re f l e x i vo de Realizar o acolhimento e estabelecer vínculo
gênero e a equipe de facilitação. entre o candidato e a equipe de facilitação.

Realizar a triagem e o encaminhamento


(quando necessário) dos homens para a rede
de serviços (terapia individual, conjugal e/ou
familiar, tratamento médico-ambulatorial,
mediação e assistência jurídica).

Oficinas temáticas semanais com os Proporcionar aos participantes um contexto


participantes do trabalho, durante propício para que cada um possa adquirir
Grupos reflexivos um período de cinco meses, com uma postura reflexiva em relação ao seu
de gênero duração de duas horas e meia para cotidiano, rever suas atitudes ante os demais,
cada encontro, totalizando 20 sobretudo em relação à violência intrafa-
encontros. miliar e de gênero e possibilitar o fortaleci-
mento da rede pessoal social.

Avaliar o impacto do trabalho para os


participantes.

Checar a reincidência ou não de situações


Cinco encontros re f l e x i vos re a- de violência.
Grupos de lizados num intervalo de um ano
Acompanhamento após o encerramento do grupo Retomar e/ou aprofundar temas que foram
reflexivo. debatidos durante os encontros reflexivos.

Realizar, quando necessário, encaminha-


mento para outros serviços e/ou para um
novo grupo reflexivo de gênero.

Encontro realizado após o último Avaliar o impacto dos encontros reflexivos


Grupo focal e n c o n t ro re f l e x i vo do grupo, por para os participantes e fornecer subsídios
uma dupla de pessoas que não para o aprimoramento da metodologia de
fazem parte da equipe de facilitação. grupo reflexivo de gênero.

32
V - RESULTADOS DOS GRUPOS REFLEXIVOS DE
GÊNERO COM HOMENS

Os resultados descritos a seguir foram siste- questionam as condições e relações de


matizados a partir dos relatórios produzidos em trabalho (remuneração, desemprego, segu-
cada encontro reflexivo e representam o conjun- rança, espaço físico, relações de competição
to de mudanças observadas pela equipe no tra- e ausência de solidariedade);
balho realizado com 298 homens entre 1999 e evidenciam insatisfação quanto ao papel de
2003. Do total de homens atendidos, 138 part i- p rovedor historicamente atribuído aos
ciparam dos Grupos Reflexivos de Gênero, t e n- homens em nossa sociedade;
do sido realizados 13 grupos. Dos resultados al- reconhecem mudanças qualitativas em
cançados podemos destacar que os beneficiários: suas relações interpessoais passando a es-
cutar, dividir cuidados, problemas e tarefas
responsabilizam-se e interrompem as dife- com aqueles com os quais convivem.
rentes formas de violência praticadas: física, Dentre os relatos, destacam-se aqueles
psicológica e sexual; que se referem aos grupos como propi-
questionam as identidades masculinas ciadores da escuta e a interação com suas
dominantes e o processo de construção das companheiras, familiares e os demais par-
mesmas, admitindo que os modelos hege- ticipantes dos grupos;
mônicos de masculinidades põem em risco relatam maior e melhor satisfação amorosa
as suas vidas e a integridade daquelas(es) e sexual;
com os quais convivem; formam redes pessoais sociais e redes de
percebem a existência de um acordo si- solidariedade profissional;
lencioso entre os homens quanto à violên- expressam interesse em participar de tra-
cia de gênero que se relaciona ao machismo balhos de gênero com outros homens.
e a uma cultura de defesa da honra;
revelam a constituição de uma rede de Como fruto desse trabalho e das dis-
relações fratricidas entre homens, especial- cussões com outros agentes sociais, foram ela-
mente nas camadas populares, e que abran- borados novos enunciados criminais e reco-
ge policiais, tráfico de drogas e moradores mendações no ordenamento jurídico, que
de comunidades empobrecidas; orientam as ações dos Juizados Especiais Cri-
conscientizam-se de que a violência é part e minais (Lei 9.099/95) no que se refere à
do repertório masculino na resolução de violência doméstica e de gênero, como, por
problemas, conflitos e na manutenção do exemplo, a de substituir a aplicação de multas
poder; por prestação de serviços comunitários e a
percebem que, de forma geral, os homens participação nos grupos reflexivos de gênero.
não se cuidam, não cuidam de outros e re- Estas sugestões foram transformadas em
conhecem que o cuidado é uma atribuição Projeto de Lei pela Senadora Marina Silva,
feminina em nossa sociedade; em 2001.

33
VI - CONCLUSÃO

Para levarmos adiante o trabalho com ho- dendo-o às mulheres em situação de violência de
mens autores de violência de gênero, temos pela gênero praticada dentro ou fora da família, o que
frente um grande desafio ético, na medida “em nos levou a incluir na equipe profissionais do
que está em jogo a integridade pessoal de mulhe- sexo feminino. Isso se deu porque percebemos
res, crianças, adolescentes, a condição e a quali- as limitações em se trabalhar só com homens
dade de vida dos homens”37. Ao trabalharmos ou mulheres39. Assim, a eficácia de nossa inter-
com a temática da violência masculina, ao contrá- venção poderia ser amplificada e enriquecida
rio de estarmos lidando com a miséria humana, com a extensão do atendimento às vítimas.
como muitos acreditam, nossos trabalhos têm Consideramos outros aspectos para a
revelado a riqueza humana dos seus part i c i p a n- implantação do atendimento à clientela feminina:
tes, ampliando seus recursos internos e externos a ausência de grupos reflexivos de gênero na
para resolução da violência de gênero. rede de atenção às mulheres em situação de
Ravazzola38 argumenta que o tripé vítima, violência. Coerentemente com a nossa aborda-
agressor e testemunha mantém o ciclo e o con- gem sistêmica40, tratamos estes temas das
texto de violência. A nossa proposta pretende relações e da violência de gênero, considerando
ser uma alternativa à violência de gênero que o maior número de sujeitos envolvidos nestes
envolve homens autores de violência, mu l h e res contextos — homens, mu l h e re s , crianças e
vítimas de violência e a rede social significativa. adolescentes — e as diferentes narrativas.
Nesse sentido, é importante esclarecer que com- Essas questões foram inicialmente levantadas
preendemos que somos todos co-responsáveis pelos homens que acreditavam e sentiam que a
pela construção de realidades e pela complexi- participação das mulheres seria essencial para
dade das relações entre homens e mu l h e re s , garantir o sucesso da intervenção na desconstru-
distanciando-nos de uma concepção maniqueísta ção dos padrões inter-relacionados e repetitivos,
que reforça o binômio mulheres vítimas versus mantenedores do ciclo da violência; diminuir os
homens agressores. Por outro lado, considera- prejuízos aos filhos; ampliar as possibilidades de
mos que historicamente as mu l h e res vêm recuperação, manutenção e/ou negociação das
sofrendo violência psicológica, física e sexual. situações conjugais. Além disso, os beneficiários,
Dessa forma, é fundamental continu a r m o s por se sentirem acolhidos no próprio sofri-
trabalhando com as mu l h e res em situação de m e n t o, m a n i festaram o desejo de que suas
violência e que, no trabalho, possam reconhecer companheiras também pudessem usufruir o
que foram vítimas e superar essa situação. mesmo processo.
Inicialmente,a nossa clientela e equipe eram Com base em nossa proposta, a partir de ca-
exclusivamente masculinas. Após dois anos, pacitações realizadas por nossa equipe, alguns
optamos por ampliar o atendimento, esten- s e rviços de atenção a homens em grupo reflexivo

37 Conferência Regional “La Equidad de Género en América Latina y el Caribe: desafíos desde de las identidades masculinas”. Santiago, Chile, 1998,
promovida pelo Fundo de População das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (UNFPA), Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais
(FLACSO) e Fundação Ford.
38 RAVAZZOLA, M. Cristina. “Violência familiar: El abuso relacional como un ataque a los dere chos humanos”. In: Sistemas Familiares. Buenos
Aires,1997.
39 MUSZKAT, Malvina Ester. “Violência de gênero e paternidade”. In: M a r g a reth Arilha e colaboradores: Homens e masculinidades. São Paulo:
ECOS / Ed. 34, 1998.
40 MÉNDEZ, Carmem Luz.“Violencia en la pareja”. In:Violencia en sus distintos ámbitos de expresión. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones S.A.,
1995.

34
de gênero com abordagem responsabilizante essas iniciativas são significativas, na medida em
começam a ser implantados em algumas cidades que demonstram a viabilidade e a importância
do Estado do Rio de Janeiro, como, por exemplo, do trabalho. Esperamos que esses trabalhos e
Resende, através da prefeitura, São Gonçalo, nossas reflexões configurem como práticas de
através da Central de Penas e Medidas Alterna- não-violência ativa para a promoção de relações
tivas e no município do Rio de Janeiro, através de eqüidade entre mulheres e homens, baseadas
do SOS Mulher — Hospital Pedro II. Apesar de na ética da solidariedade, e contribuam para
ainda contarmos com poucos serviços deste tipo, elaboração de políticas públicas nesta área.

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Os autores
Fernando Acosta
Psicólogo;Terapeuta de Família; Orgonoterapeuta; Especialista em Saúde Pública, Medicina Social e
P s i q u i a t ria Social; consultor em masculinidades, saúde e violência de gênero e
coordenador do Núcleo de Gênero, Saúde e Cidadania do Instituto Noos.
Antônio Andrade Filho
Psicólogo;Terapeuta de Família, membro do Núcleo de Gênero, Saúde e Cidadania e
coordenador de projetos do Instituto Noos.
Alan Bronz
Psicólogo;Terapeuta de Família, membro do Núcleo de Gênero, Saúde e Cidadania e
coordenador de projetos do Instituto Noos.

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