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António, a História de Um "Pedincha"

Por A.C.P., PÚBLICO


Domingo, 11 de Janeiro de 2004
António, tal como outros meninos das
Malvinas, joga tudo a dinheiro: loto, barra,
Tem 12 anos e está matriculado na "primeira apanhadas, futebol - "quando a gente não tem
classe", sexto ano da catequese. António dinheiro para jogar, atiramos garrafas para
(nome fictício) acende um cigarro. "Sou o dentro do campo, para os outros não
segundo mais velho da classe". O outro jogarem", diz, no seu sotaque cerrado. Não é
menino tem 13 anos e também pedia esmola, "grande jogador de batota", denuncia o amigo
mas agora "foi internado - a mãe dele e o pai do peito, de 14 anos. Mas poucos o ganham
dele são bêbados e ele andava na droga, já se nos concursos de arrotos. "Sei dizer o meu
injectava e tudo". nome todo, quer ver?", exibe-se, uma noite, no
centro da cidade. Uma proeza que lhe vale,
amiúde, dores de garganta.
O miúdo, magro e encardido, levanta-se cedo,
bem cedo, mas é raro ir às aulas. Tem amigos
que frequentam a escola de manhã e se O menino passa a vida na rua. Por vezes.
metem na "pedincha" à tarde, "ali mesmo, no mete-se em zaragatas, em pequenos furtos -
Pico da Torre" - por onde passam muitos flores para vender, óculos de sol para "brilhar",
"ingleses" (sinónimo de estrangeiros). Mas ele uma carteira ou outra. Farta-se de "perder
prefere apanhar o autocarro, às 8h30, 9h00, noites", no centro de Câmara de Lobos. Aos
para o Funchal. fins de semana, descola-se até ao Funchal,
onde vagueia e arruma uns carros até às
cinco da manhã. Por vezes, acompanham-no
O mealheiro colorido que usa na "pedincha" outros dois irmãos, um de nove anos e outro
não circula, como ele, entre o Funchal e de 13. "Vamos a pé, é só meia hora".
Câmara de Lobos; fica escondido num buraco,
encavado na relva, que acaba por mostrar ao
PÚBLICO depois de alguns dias de "Os velhos porcos não vão para as
convivência. É assim desde que se lembra. discotecas", segreda, num ocasião em que
"Comecei esta vida aos seis, sete anos". tinha fumado um charro e estava menos na
defensiva. "Os velhos vão à procura da gente
ao parque de estacionamento do centro
A confiança de António é uma conquista que comercial". Para quê? "Eles não aguentem
se cumpre, pouco a pouco, com atenção e com uma mulher, uma mulher vai para cima
com prendas - de consumo imediato, mas deles e eles rebentem todos!"(sic), ri-se. Não
também de levar para a casa, um T4 que fala de prostituição. Sobre isso, de modo
partilha com 17 familiares. Os pais "não claro, diz apenas: "Um dia um velho queria-me
perguntam" quem lhas dá, tal como não dar cem escudos para abusar de mim, o
perguntam onde arranja o dinheiro que o porco!" Mostra um pequeno canivete: "Tá a
obrigam a entregar - apesar de dois dos seus ver isto? É pequenino, mas pica!".
irmãos terem entrado, quando crianças, em
filmes pornográficos.
Na rua também se sonha. Não quer acabar
como os dois irmãos que tem na cadeia.
Nos piores dias, o miúdo louro de dentes
cariados angaria "uns dez euros". Nos António - revela, certa noite, à mesa de um
melhores, uns 25. Mas já houve máximas de restaurante - sonha ser guarda-redes. Já
"50 e de 70". "Dou uma coisinha à minha mãe esteve no União da Madeira. Foi expulso,
e fico com uma coisinha". O dinheiro não lhe falta-lhe disciplina. "Um gajo faz qualquer
aquece nas mãos. "Vou para os carrinhos coisa e é logo: 'mudar de roupa e tomar
eléctricos, compro cigarros, às vezes jogo à banho'". Meneia a cabeça: "Tenho de deixar
batota e lá se vai o dinheiro todo!", ri-se. de fumar!" O amigo explode numa
Também compra "comer, roupa e sapatilhas", gargalhada. E ele sorri. "Quando começar ,
essas "coisas que se precisa". vai ser de vez". E a escola? Encolhe os
ombros.

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