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— Pois, meu caro — dizia Lucas ao seu amigo Lopes —, fiz essa asneira, casei-me.
— E tudo quanto produz o teu trabalho some-se em bugigangas, leite, farinha, cueiros,
fraldas, cavalinhos de pau...
“— É isto. Não presta para nada, não sei por que casou, já que não serve nem para trazer
da cidade um pão de sabão de cinza para a burra da mulher que fica em casa a se matar
de trabalho —, e tá, tá, tá. Não imaginas a minha vida, Lopes...”
— Mas, Lucas, estás a exagerar. Dou de barato que seja assim. Mas há compensações. Os
filhos, por exemplo, as sãs alegrias da paternidade...
“E não é só ele.
“O Eduardinho tem a mania de encafuar os talheres nos buracos dos ratos, nas frestas do
assoalho.
“O Lucas, esse chora. Chora doze horas por dia, à toa, por brincadeira. É o rei da manha,
mas daquelas manhas intermináveis que deixam os nervos da gente em carne viva.
“O Bentinho, que é torto, o coitado, já fuma pontas de cigarro e coleciona nomes feios
apanhados na rua.
“O mais velho foge de casa pela janela e entra de madrugada. Anda-me sorumbático,
com umas perebas suspeitas.
“O Juvenal...”
— Para um bocado, Lucas. Deixa-me tomar fôlego e fazer uma observação. Sendo assim
como dizes, travessos, insubordinados, insuportáveis, a culpa é só tua. É que lhes não dás
a devida disciplina, não os corriges, não lhes torces o pepino no tempo propício, homem!
— Será, mas que queres? Não posso, não tenho energia. Sou uma tapera, um homem
arrasado que me fiz fatalista para ter uma filosofia que me dê paz à consciência. Bem me
acusa ela de inépcia e frouxidão extrema... Às vezes vêm - me ímpetos de reagir, entrar
em casa de guatambu em punho e ir deslombando às cegas a escadinha inteira, coisa de
começar no frangote das perebas e acabar nos seis gatos ladrões do Chiquinho, com
escala pelos cães sarnentos do Manuel, pelos canários azucrinantes do Júlio e pelas
bonecas de pano de Mariquinha. Moê-los em massa, a granel e ir entregar-me à polícia e
pedir ao júri, de joelhos, trinta deliciosos anos de paz e silêncio no fundo duma cela. Mas
fica em ímpetos. Sou uma tapera, incapaz dum movimento enérgico...
— Três horas! Minha cara-metade deve estar furiosa. Adeus, Lopes, vou-me ao “repouso
do lar” — concluiu, despedindo-se com um riso amargo.
E foi-se o Lucas apressadamente, cheio de pacotes pelos nós dos dedos; embrulhos nos
bolsos e um queijo sobraçado...
Lopes ficou imóvel no lugar, com os olhos parados, recordando. Veio-lhe à mente o Lucas
de quinze anos antes. Era um rapagão alegre, todo esperanças no futuro e amigo de
arquitetar castelos de Espanha. Poetara. Amara uma dúzia de meninas em duas centenas
de sonetos parnasianos e por fim elegeu como diva a Nonoca Fagundes, uma loura
translúcida, de fala melíflua — Botticelli temperado à moderna, dizia ele.
Era bonitinha, dezessete anos, em pleno viço da beleza do diabo, um mimo de fragilidade
grácil, boazinha como não havia outra — boa, “boa constritor”...
Muito ingênua e amiga de reticências graciosas, corava a todo instante. Dizia ele: Moram
em suas faces duas rosas Bela-Helena. Andar saltitante como de sílfide. Um verso dele
rezava:
Lucas amou-a em regra, e sonetou-a inteira dos cabelos aos pés, parnasianamente,
nefelibatamente, com lirismo de comover as pedras. Não a tratou antropofagicamente,
porque a antropofagia guindada à escola estética ainda não fora inventada.
Sonhou-a ao seu lado, “amiga peregrina de alma e coração”, num arroubo perene de
felicidade celestial pela estrada da vida afora...
Amou-a três anos seguidos, com o dispêndio duma arroba de versos arrancados à carne
viva da inspiração. Bateu-se a punhadas com vários rivais temíveis. Rompeu com a
família, que desaprovava o casamento. Cantou-lhe à janela, com muito choro de violão,
todas as modinhas do tempo — Quisera amar-te, Acorda donzela —, além de outras
adrede compostas para aquele fim. Amou-a loucamente, “como só se ama uma vez na
vida”. Foi desses que dizem em prosa, verso e cochicho: “Ver-te e amar-te foi obra de
um só momento”. Intercalou em alexandrinos o clássico “anjo, mulher ou visão”. Esgotou
inteirinho o alforje romântico das imagens enluaradas; recorreu à botânica e assolou o
reino vegetal à cata de flores comparativas. Não contente com isso, ainda deambulou
pelos céus e mergulhou no oceano em busca de imagens — que nada era bastante à
imensidade daquele amor.
Em vista do que, Lopes, que andava noivo e irresoluto se casaria ou não, tendo já no
ativo uma dúzia de sonetos amorosíssimos, decidiu-se incontinenti — casou.
Se tinha de acabar como o Lucas, levasse sobre ele, ao menos, a vantagem de menor
cópia de versos à futura cascavel. Porque lhe pareceu que o maior sofrimento do Lucas
havia de ser o remorso da enorme bagagem de versos pré-nupciais.
E era.
Lopes estava noivo, mas ainda muito indeciso quanto ao casamento. Casar ou não
casar, hesitava bem-humorado o personagem. A tragédia particular do amigo levou
Lopes a lembrar de que ele “já tinha no ativo uma dúzia de sonetos amorosos” com o
risco de construir uma história semelhante. Apesar disso, ele se casa. O desfecho do
conto surpreende, jogando com disfunção na lógica de causa e efeito, seja pela
motivação da decisão, seja pela atitude resignada de aceita a fatalidade do casamento,
pautada por uma expectativa fadada ao fracasso.