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e
Clínica Ampliada
1. EMENTA
A saúde mental como área do conhecimento da Psicologia. Os movimentos de luta
antimanicomial no mundo e no Brasil. As contribuições da Psiquiatria, da Psicanálise e da
Psicologia Social no campo da saúde mental. Estratégias individuais e coletivas de promoção
da saúde mental. Instrumentos de mediação simbólica como promotores de saúde mental.
Perspectiva multidisciplinar na promoção da saúde. A saúde mental e os modelos
comunitários de atendimento psicológico. A intervenção psicológica no contexto
interdisciplinar.
2. OBJETIVOS
2.1. Geral
Analisar o processo saúde-doença mental e suas articulações nos diversos eventos da vida,
bem como os processos de cuidado a partir do modelo psicossocial e de clínica ampliada.
2.2. Específicos
• Desenvolver a capacidade de análise dos processos psicossociais e a clínica ampliada;
• Compreender o processo saúde-doença mental nos diversos eventos da vida;
• Analisar o sofrimento psíquico como fenômeno inerente à condição humana;
• Discutir a interdisciplinaridade e sua aplicação no campo da saúde mental;
• Avaliar o processo de reabilitação psicossocial no contexto da reforma psiquiátrica;
• Observar o cuidado em saúde mental nos dispositivos da rede de atenção psicossocial;
• Compreender o vínculo terapêutico como ética do cuidado na clínica ampliada.
3. CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
4. METODOLOGIA
5. ATIVIDADES DISCENTES
• Pesquisa bibliográfica
• Pesquisa interativa (internet)
• Pesquisa de campo
• Material audiovisual
• Leituras complementares
6. AVALIAÇÃO
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
8. CRONOGRAMA
DATAS ATIVIDADES/TEMAS TEXTOS
AGOSTO
04 – Terça-feira Acolhimento dos alunos: Atividade: Exposição da ementa e plano de ensino
apresentação do professor, da
disciplina e plano de ensino
05 – Quarta-feira Introdução ao conceito de clínica Atividade: Exposição do conceito de Clínica
ampliada Ampliada
08 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
11 – Terça-feira TEXTO 1 – HIRDES, Alice. A reforma psiquiátrica
Introdução à Reforma Psiquiátrica no
no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. saúde coletiva,
Brasil
Rio de Janeiro , v. 14, n. 1, p. 297-305, Feb. 2009.
12 – Quarta-feira TEXTO 1 – HIRDES, Alice. A reforma psiquiátrica
Introdução à Reforma Psiquiátrica no
no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. saúde coletiva,
Brasil
Rio de Janeiro , v. 14, n. 1, p. 297-305, Feb. 2009.
15 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
18 – Terça-feira TEXTO 2 - ALES, André Luis Leite de Figueiredo;
DIMENSTEIN, Magda. Psicólogos no processo de
Psicologia e Reforma Psiquiátrica reforma psiquiátrica: práticas em
desconstrução?. Psicol. estud., Maringá , v. 14, n.
2, p. 277-285, Jun 2009.
19 - Quarta-feira TEXTO 3 - Do manicômio à desinstitucionalização.
História da Reforma Psiquiátrica
PUC-RIO.
22 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
25 – Terça-feira TEXTO 4 – CAMPOS, G. W. S. A clínica do
sujeito: por uma clínica reformulada e
Clínica Reformulada e Ampliada
ampliada. In: Campos GWS. Saúde Paidéia. São
Paulo: Hucitec; 2003.
26 - Quarta-feira TEXTO 5 - LANCETTI, A. Clínica Peripatética.
Clínica Peripatética
São Paulo: Hucitec, 2014
29 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
SETEMBRO
01 – Terça -feira Clínica Peripatética TEXTO 5 - LANCETTI, A. Clínica Peripatética.
São Paulo: Hucitec, 2014
02 - Quarta-feira Clínica Peripatética TEXTO 5 - LANCETTI, A. Clínica Peripatética.
São Paulo: Hucitec, 2014
05 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
08 – Terça -feira TEXTO 6 - DHEIN, Gisele. A clínica ampliada
(Cap. 3). In: Pausa!: Clínica. Clínica política.
Clínica ampliada : a produção do sujeito autônomo.
Clínica Política e Clínica Ampliada
2010. 190 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2010.
09 - Quarta-feira Clínica Política e Clínica Ampliada TEXTO 6 - DHEIN, Gisele. A clínica ampliada
(Cap. 3). In: Pausa!: Clínica. Clínica política.
Clínica ampliada : a produção do sujeito autônomo.
2010. 190 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2010.
12 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
15 – Terça-feira TEXTO 7 –NASI, C.; CARDOSO, A. S. R.;
SCHENEIDER, J. F.; OLSCHOWSKY, A.;
Integralidade na atenção à Saúde WETZEL, C. Conceito de integralidade na atenção
Mental em saúde mental no contexto da reforma
psiquiátrica. Rev. Min. Enferm. v. 13, n. 1, p. 139-
146, jan./mar., 2009.
16 - Quarta-feira TEXTO 8 - TRAJANO, M. P.; BERNARDES, S.
M.; ZURBA, M. C. O cuidado em saúde mental:
Cuidado em Saúde Mental caminhos possíveis na rede de atenção psicossocial.
Cadernos Brasileiros de Saúde Mental,
Florianópolis, v. 10, n. 25, p. 20-37, 2018.
19 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
22 - Terça-feira Revisão para Avaliação P1
23 – Quarta-feira Avaliação P1
26 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
29 – Terça-feira TEXTO 9 – MERHY, E. E.; FRANCO, T.B., Por
Devolutiva de P1/ Tecnologias leves uma composição técnica do trabalho centrada nas
na atenção à saúde tecnologias leves e no campo relacional. Saúde em
Debate, v.27, n. 65, p. 316-323, Set/Dez, 2003.
30 - Quarta-feira TEXTO 9 – MERHY, E. E.; FRANCO, T.B., Por
uma composição técnica do trabalho centrada nas
Tecnologias leves na atenção à saúde
tecnologias leves e no campo relacional. Saúde em
Debate, v.27, n. 65, p. 316-323, Set/Dez, 2003.
OUTUBRO
03 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
06 – Terça-feira TEXTO 10 – ALVES, Edvânia dos Santos;
FRANCISCO, Ana Lúcia. Ação psicológica em
Psicologia e Atenção Psicossocial saúde mental: uma abordagem psicossocial. Psicol.
cienc. prof., Brasília , v. 29, n. 4, p. 768-779,
2009 .
07 - Quarta-feira TEXTO 11 - PIETROLUONGO, Ana Paula da
Cunha; RESENDE, Tania Inessa Martins de. Visita
Psicologia e Atenção Psicossocial domiciliar em saúde mental: o papel do psicólogo
em questão. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 27, n.
1, p. 22-31, mar. 2007.
10 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
13 – Terça-feira TEXTO 12 - DE SOUZA, Mayra Silva;
BAPTISTA, Makilim Nunes. ASSOCIAÇÕES
Atenção Psicossocial e Família ENTRE SUPORTE FAMILIAR E SAÚDE
MENTAL. Psicologia Argumento, v. 26, n. 54, p.
207-215, nov. 2017.
14 - Quarta-feira TEXTO 13 - DIMENSTEIN, Magda et al .
Estratégia da Atenção Psicossocial e participação
Atenção Psicossocial e Família
da família no cuidado em saúde mental. Physis,
Rio de Janeiro , v. 20, n. 4, p. 1209-1226, Dec.
2010
17 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
20 – Terça-feira PESQUISAR
21 - Quarta-feira PESQUISAR
24 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
27 – Terça -feira TEXTO 14 - SHIMOGUIRI, Ana Flávia Dias
Tanaka; SERRALVO, Fernanda Silveira. A
importância da abordagem familiar na atenção
Atenção Psicossocial e Família
psicossocial: um relato de experiência. Nova
perspect. sist., São Paulo , v. 26, n. 57, p. 69-
84, abr. 2017.
28 - Quarta-feira TEXTO 14 - SHIMOGUIRI, Ana Flávia Dias
Tanaka; SERRALVO, Fernanda Silveira. A
importância da abordagem familiar na atenção
Atenção Psicossocial e Família
psicossocial: um relato de experiência. Nova
perspect. sist., São Paulo , v. 26, n. 57, p. 69-
84, abr. 2017.
31 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
NOVEMBRO
03 – Terça -feira TEXTO 15 – KARAM, Maria Lúcia. Proibição às
drogas e violação a direitos fundamentais. Revista
Saúde mental de drogas
Brasileira de Estudos Constitucionais. Belo
Horizonte, v. 7, n. 25, jan./abr. 2013
04 - Quarta-feira TEXTO 16 - MOREIRA BARBOSA, V. L.
Facilitando uma Conversa sobre Álcool e outras
Saúde mental de drogas
Drogas – um Convite à Reflexão. Nova
Perspectiva Sistêmica, v. 21, n. 42, p. 28-41, 2012.
07 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
10 – Terça -feira TEXTO 17 – NESS, O.; BORG, M.; SEMB, R.;
KARLSSON, B. “Caminhando lado a lado:” práticas
Saúde mental de drogas colaborativas nos tratamentos de saúde mental e
uso de substâncias. Nova Perspectiva Sistêmica, v.
27, n. 61, p. 6-21, 8 jan. 2019.
11 - Quarta-feira TEXTO 18 - PASSOS, Eduardo Henrique;
SOUZA, Tadeu Paula. Redução de danos e saúde
Estratégias de Redução de Danos pública: construções alternativas à política global
de "guerra às drogas". Psicol. Soc., Florianópolis ,
v. 23, n. 1, p. 154-162, Apr. 2011.
14 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
17 – Terça -feira TEXTO 19 – BARROS, Erika Bernardino.
SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS E A ATUAÇÃO
Estratégias de Redução de Danos DO PSICÓLOGO COMO REDUÇÃO DE
DANOS. REVISTA UNINGÁ, [S.l.], v. 56, n. S1,
p. 172-185, mar. 2019.
18 - Quarta-feira TEXTO 20 - DIAS, Marcelo Kimati; FERIGATO,
Sabrina Helena; FERNANDES, Amanda Dourado
Souza Akahosi. Atenção à Crise em saúde mental:
Atenção à Crise em saúde mental
centralização e descentralização das
práticas. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v.
25, n. 2, p. 595-602, Feb. 2020
21 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
24 – Terça -feira TEXTO 21 - MARTINS, Aline Gomes. A noção de
crise no campo da saúde mental: saberes e práticas
Atenção à Crise em saúde mental
em um centro de atenção psicossocial. Mental,
Barbacena , v. 11, n. 20, p. 226-242, jun. 2017
25 - Quarta-feira TEXTO 22 - DORSA FIGUEIREDO, Mariana.;
ONOCKO CAMPOS, Rosana. Saúde Mental e
Saúde Mental e Atenção Básica Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na
construção de uma rede multicêntrica. Saúde em
Debate, v. 32, n. 78-80, p. 143-149, 2008.
28 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
DEZEMBRO
01 - Terça -feira Revisão para Avaliação P2
02 – Quarta-feira Avaliação P2
05 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
08 – Terça -feira Devolutiva de P2
09 - Quarta-feira Entrega de notas de N2
12 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
15 – Terça -feira Lançamento de notas no sistema
16 - Quarta-feira Atendimento aos alunos
19 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
22 – Terça -feira Atendimento aos alunos
23 - Quarta-feira Encerramento do semestre
_________________________________________________________
Mayk Diego Gomes da Glória Machado
Professor responsável pela disciplina
297
REVISÃO REVIEW
The psychiatric reform in Brazil: a (re)view
Alice Hirdes 1
Abstract This paper aims at contextualizing the Resumo Este artigo tem por objetivo contextuali-
Brazilian Psychiatric Reform by reviewing theoret- zar a reforma psiquiátrica brasileira, a partir da re-
ical and practical milestones in the country’s poli- visão dos marcos políticos, teóricos e práticos. Fo-
cies. Theses, dissertations, papers published in a da- ram pesquisadas dissertações, teses, artigos em bases
tabase (Scielo), books on the theme, and official doc- de dados (Scielo), livros sobre a temática e documen-
uments (conference reports, laws, bills) published tos oficiais (relatórios de conferências, leis, portari-
between 1990 and 2007 were studied. The results show as) de 1990 a 2007. Os resultados evidenciam os avan-
the advances and challenges of the Psychiatric Re- ços e desafios da reforma psiquiátrica, apontam para
form and point to the immediate need of a program a necessidade urgente da capacitação dos operadores,
for qualifying personnel; the need to use primary care, a utilização da atenção básica, particularmente a
mainly the Family Health Program; the need to fi- estratégia do Programa de Saúde da Família; o fi-
nance primary care; the adoption of the principles of nanciamento da atenção básica; a adoção dos prin-
the psychiatric reform; the need to individualize cípios da reforma psiquiátrica; a articulação trata-
treatment, psychosocial rehabilitation; integrated mento, reabilitação psicossocial; clínica ampliada;
care; and therapeutic project constructed collectively projetos terapêuticos individualizados, construídos
through the use of interdisciplinary and trans-disci- coletivamente, mediante abordagens inter/transdis-
plinary approaches, as well as constant assessment of ciplinares; e a avaliação das práticas em curso. Fina-
the current practices. It is also pointed out that Re- liza apontando que os projetos de reforma não são
form projects are not homogeneous, i. e., practices homogêneos, as práticas são executadas conforme a
happen according to the professionals’ theoretical concepção teórica dos trabalhadores de saúde men-
conception. This means that there are general guide- tal, ou seja, existem princípios orientadores gerais,
lines, but that they are subordinated to the specific mas que, em última análise, estão subordinados aos
settings where the practices are carried out. settings específicos onde ocorrem as práticas.
Key words Mental health, Primary care, Mental Palavras-chave Saúde mental, Atenção primária à
health services, Rehabilitation, Rehabilitation cen- saúde, Serviços de saúde mental, Reabilitação, Cen-
1
ters, Health services evaluation tros de reabilitação, Avaliação de serviços de saúde
Universidade Luterana do
Brasil, Unidade
Universitária de Gravataí.
Av. Itacolomi 3.600, São
Vicente. 94170-240
Gravataí RS.
alicehirdes@gmail.com
298
Hirdes A
formações qualitativas no modelo de saúde e não serviços de saúde mental, traz a necessidade do
meramente de reorganização administrativa. deslocamento essencial da perspectiva da interven-
Para Amarante10, a produção de Basaglia foi e ção dos hospitais psiquiátricos para a comunida-
continua sendo um marco importante de referên- de; o deslocamento do centro do interesse somente
cia para os projetos de reforma psiquiátrica e para da doença para a pessoa e para a sua desabilidade
o redimensionamento atual da desinstitucionaliza- social e o deslocamento de uma ação individual
ção em psiquiatria. Coloca que “o projeto de de- para uma ação coletiva nos confrontos dos pa-
sinstitucionalização volta-se para a superação do cientes com seus contextos9.
ideal de positividade absoluta da ciência moderna Pela inquestionável importância que assume a
em sua racionalidade de causa e efeito, para voltar- produção prático-teórica basagliana, estas idéias e
se para a invenção da realidade enquanto um pro- conceitos deverão sempre estar presentes no coti-
cesso histórico”10. diano dos trabalhadores de saúde mental que se
espelham nos pressupostos da reforma psiquiá-
Princípios para a organização dos serviços trica. Igualmente, pensamos que estes conceitos
devem ser uma linguagem universal, acessível a
A seguir, citamos os princípios de Rotelli9 para todos os profissionais, técnicos e não-técnicos. Isto
um trabalho efetivo de desinstitucionalização. Pen- evitaria as “derrapagens” eventuais que porventu-
samos que estes indicam um caminho norteador, ra possam ocorrer.
que deveria estar presente na prática dos serviços O projeto de desinstitucionalização busca a re-
de saúde mental e, periodicamente, deveria ser con- construção do objeto (enquanto sujeito histórico)
sultado, para corroborar a prática executada com que o modelo tradicional reduziu e simplificou
a teoria e ver se há congruência e pertinência entre o (causalidade linear doença/cura – problema/solu-
desenvolvido e o anunciado. ção). Mas para alcançar este objetivo, faz-se neces-
Rotelli9 vê a desinstitucionalização como um sário que as novas instituições estejam à altura do
trabalho prático de transformação que contem- objeto que está em constante reconstrução na sua
pla: a ruptura do paradigma clínico e a reconstru- existência – sofrimento: esta é a base da instituição
ção da possibilidade – probabilidade; o desloca- inventada9.
mento da ênfase no processo de “cura” para a “in- Os projetos de atendimento surgidos nos últi-
venção de saúde”; a construção de uma nova polí- mos anos têm de saída a recusa do modelo sinto-
tica de saúde mental; a centralização do trabalho mático em benefício da criação de uma clínica psi-
terapêutico no objetivo de enriquecer a existência quiátrica renovada, deslocando o processo do tra-
global; a construção de estruturas externas total- tamento da figura da doença para a pessoa doente.
mente substitutivas à internação no manicômio; a Nestes novos espaços, as ações antes centradas nos
não-fixação dos serviços em um modelo estável, sinais e sintomas, na classificação dos diferentes
mas dinâmico e em transformação; a transforma- quadros nosográficos, em suma, na medicaliza-
ção das relações de poder entre a instituição e os ção da loucura, passam a ter outro enfoque, que é
sujeitos; o investimento menor dos recursos em o de falar de saúde, de projetos terapêuticos, de
aparatos e maior nas pessoas. cidadania, de reabilitação e reinserção social e, so-
Além destes aspectos, o autor refere o cuidado bretudo, de projetos de vida11.
como elemento-chave para transformar os modos
de viver e sentir o sofrimento do “paciente” em sua Os Centros de Atenção Psicossocial
concretude, no cotidiano; a mobilização de todos e demais serviços substitutivos
os atores envolvidos – técnicos e pacientes –, isto
irá produzir comunicação, solidariedade e confli- De acordo com dados do Ministério da Saúde,
tos, ingredientes fundamentais para a mudança das existem no país 918 CAPS em funcionamento, 120
estruturas e dos sujeitos; a promoção da capacida- deles voltados, exclusivamente, ao atendimento de
de de auto-ajuda e de autonomia das pessoas; o dependentes de álcool e drogas. Os CAPS, os 475
enriquecimento das competências profissionais e serviços residenciais terapêuticos e os 350 ambula-
dos espaços de autonomia e decisão; a demolição tórios, ao lado dos 36 Centros de Convivência e
da compartimentalização das terapias (médica, Cultura e do Programa de Volta para Casa e Inclu-
psicológica, social, farmacológica, etc.); a valoriza- são Social pelo Trabalho, compõem a rede extra-
ção da dimensão afetiva na relação terapêutica, de hospitalar que substitui, aos poucos, o atendimento
figuras não profissionais no campo, utilização de prestado pelos hospitais psiquiátricos, no Brasil12,13.
esforços sociais e; a liberdade é terapêutica9. O maior número de CAPS por 100 mil habi-
Dentre os princípios para a organização dos tantes localiza-se na Região Sul – Rio Grande do
301
teoria, de uma prática e de uma ética, mediante o mental para um contexto comunitário, a vontade
estabelecimento de um acordo político. Saúde men- política para a implantação de estruturas substi-
tal e PSF implicam transformações profundas nas tutivas à internação será crucial e, concretamente,
práticas do Estado, em todos os seus níveis27. irá redimensionar novos espaços para o sofrimen-
to psíquico, a partir da produção de uma nova
cultura de saúde/doença mental e das relações es-
Considerações finais tabelecidas neste campo. Entretanto, estas ações
devem transpor a centralização das ações no mo-
Muitos avanços ocorreram com as experiências de delo biomédico, na doença, através de uma abor-
desinstitucionalização. Entretanto, pensamos que, dagem que articule tratamento, reabilitação psi-
a despeito de muitos serviços que trabalham sob a cossocial, clínica ampliada e projetos terapêuticos
égide da reforma psiquiátrica em nosso país, há a individualizados.
necessidade de constantemente redimensionarmos Cabe destacar a necessidade de investimento na
o olhar para as práticas em curso, para que aos instrumentalização dos profissionais para alavan-
novos serviços correspondam as balizas propos- car a inclusão do cuidado à saúde mental no Siste-
tas, no nosso caso, o referencial da reforma psi- ma Único de Saúde, com vistas à reversão do mode-
quiátrica italiana. Há que lembrar, também, que lo assistencial. A inserção das ações de saúde men-
os dispositivos como os Centros de Atenção Psi- tal no PSF perpassa fundamentalmente a capacita-
cossocial (CAPS) deverão se constituir como luga- ção e apropriação de conceitos de clínica ampliada
res de passagem; do contrário, sem esta revisão e dos profissionais para a mudança do paradigma.
crítica, a tendência dos novos serviços que traba- A reforma psiquiátrica brasileira, através da cri-
lham no contexto da reforma psiquiátrica poderá ação dos novos dispositivos em saúde mental, as-
encaminhar-se para a institucionalização. Para que sim como através da inserção das ações de saúde
isto não ocorra, torna-se crucial a instrumentali- mental na saúde pública, possibilita novas aborda-
zação dos trabalhadores de saúde e de saúde men- gens, novos princípios, valores e olhares às pessoas
tal, a sensibilização dos gestores de saúde e a per- em situação de sofrimento psíquico, impulsionan-
manente preocupação com a qualidade dos servi- do formas mais adequadas de cuidado à loucura
ços oferecidos. no seu âmbito familiar, social e cultural. Os proje-
A inserção das ações de saúde mental no PSF tos de reforma não são homogêneos, as práticas
constitui-se em estratégia adotada pelo Ministério são executadas conforme a concepção teórica dos
da Saúde. A ênfase das ações de saúde mental no trabalhadores de saúde mental. Concluímos, enfa-
território constitui-se na própria essência da de- tizando que existem princípios orientadores gerais,
sinstitucionalização da psiquiatria. Para que efeti- mas que, em última análise, estão subordinados
vamente haja o deslocamento das ações de saúde aos settings específicos onde ocorrem as práticas.
305
1. Organização Mundial de Saúde/Organização Pana- 16. Bichaff R. O trabalho nos centros de atenção psicossoci-
mericana de Saúde. Declaração de Caracas. Conferên- al: uma reflexão crítica das práticas e suas contribuições
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quiátrica na América Latina no Contexto dos Sis- ção]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem, Uni-
temas Locais de Saúde (SILOS). 1990 nov 14; Cara- versidade de São Paulo; 2006.
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PSICÓLOGOS NO PROCESSO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA:
PRÁTICAS EM DESCONSTRUÇÃO?
*
André Luis Leite de Figueiredo Sales
#
Magda Dimenstein
RESUMO. Esse trabalho é resultado de uma investigação realizada com psicólogos da rede de CAPS do município de
Natal/RN. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo feita a partir de entrevistas semiestruturadas e observações
sistemáticas orientadas por um olhar cartográfico. Os focos da investigação foram: a relação entre a formação acadêmica
recebida nos cursos de graduação e as demandas de trabalho, e um mapeamento das atividades realizadas no cotidiano dos
serviços. No primeiro eixo encontrou-se um distanciamento entre os conteúdos discutidos na universidade e as questões
presentes no cotidiano do serviço, apontando para as fragilidades da formação dos profissionais para atuação nestes espaços.
As principais atividades realizadas foram: acolhimento dos usuários, triagens, coordenação e participação de oficinas diversas,
grupos operativos e terapêuticos, além de atendimentos individuais, sendo esse último alvo de análise.
Palavras-chave: Psicólogos; formação profissional; trabalho em saúde.
ABSTRACT. This work is the result of an investigation conducted with psychologists of the CAPS network in the
municipality of Natal/RN. It is a qualitative study that utilized semi-structured interviews and systematic observations with a
cartographic perspective. The investigation focused on the relation between the academic formation obtained in the
undergraduate courses and the work demands, and on the mapping of the daily activities conducted in the service settings. In
the first point of focus, a distance was observed between the contents discussed in the university and the questions presented
in the service environment, indicating weaknesses in the formation of health professionals for practice settings. The main
activities conducted were: reception of service users, triage, coordination of, and participation in, diverse workshops and
operational therapeutic groups, and individual assistance, with the latter being the focus of analysis.
Key words: Psychologists; professional formation; health work.
RESUMEN. Ese trabajo es resultado de una investigación hecha con psicólogos de la red de CAPS de la provincia de
Natal/RN. Es una investigación cualitativa hecha a partir de una entrevista estructurada y observaciones sistemáticas
orientadas por una perspectiva cartográfica. Los ejes de análisis fueron: la relación entre formación académica recibida en los
cursos de grado y las demandas de trabajo, y una identificación de las actividades hechas en el cotidiano de los servicios de
salud. Hay problemas en relación a los contenidos discutidos en la universidad y las cuestiones del cotidiano indicando una
fragilidad de la formación de los profesionales para actuación en estos espacios. Las principales actividades son: recepción de
los usuarios, coordinación y participación en oficinas, grupos operativos y terapéuticos, además de las consultas individuales,
que fueron foco de análisis.
Palabras-clave: Psicólogo; formación profesional; trabajo en salud.
O presente trabalho visa discutir os resultados de CAPS do município de Natal. Trata-se de uma
uma investigação realizada com psicólogos da rede de pesquisa de cunho qualitativo feita a partir de
Alicerçadas nas diretrizes da reforma visando à mudança das relações entre a sociedade e loucura
psiquiátrica nacional, garantindo dispositivos que esse artigo se propõe a discutir as práticas dos
assistenciais para clientela dessa linha de psicólogos na rede de saúde mental do município de Natal.
cuidado, através de uma rede articulada de
Essa discussão se justifica não só pelos desafios
serviços a partir da atenção básica, Centros
Psicossociais – CAPS, residência terapêutica,
enfrentados na construção de projetos políticos terapêuticos
leitos em hospitais gerais e ambulatórios para efetivar a desinstitucionalização, mas também pelas
(SMS, 2007, p. 53). constantes críticas dirigidas à atuação dessa categoria
profissional nos serviços públicos de saúde.
O Plano Municipal de Saúde de Natal (SMS, Um levantamento da bibliografia acerca desses
2006) estabelece como metas estratégicas a serem profissionais nesse campo nos mostra que a sua atuação
alcançadas nos próximos três anos está pautada em um modelo de atendimento
predominantemente clínico e preferencialmente individual,
A expansão da rede extra-hospitalar, buscando com pouca ênfase na realidade sociocultural de onde os
ampliar a rede de Saúde Mental em 100%, usuários provêm, bem como nas peculiaridades decorrentes
reestruturar 50% dos serviços existentes, criar disso. Outras questões apontadas são a falta de articulação
leitos de observação para urgências psiquiátricas da prática com as demandas sociais e dificuldades em
em cada pronto atendimento, ampliar em 100%
relação o trabalho multidisciplinar (Benevides, 2005;
os leitos psiquiátricos em Hospital Geral e
implementar o serviço de urgência móvel Dimenstein, 2001 e 2004; Lima, 2005). Sendo assim,
psiquiátrica. Além disso, serão implantados os interessou-nos mapear as ações que esses profissionais têm
projetos das Oficinas Itinerantes de Arte e Saúde desenvolvido cotidianamente nos CAPSs. Especificamente,
Mental e de Apoio Matricial às unidades básicas propusemo-nos pensar as relações entre as práticas e as
de saúde (p.30). ideias que norteiam a reforma; conhecer sua formação
acadêmica e a forma como se percebem enquanto
Atualmente estão em funcionamento no município trabalhadores do campo da saúde mental, de modo a traçar,
dois CAPSs II, dois CAPSad’s, um CAPSi, um pela via da inspiração cartográfica, um mapa de como esses
ambulatório, uma residência terapêutica e um APTAD2, elementos produzem os territórios onde se concretiza o
distribuídos entre os cinco distritos sanitários da cidade. trabalho.
Embora sejam notórios os avanços no campo da reforma,
sabemos que ainda são muitos os impasses que precisam
ser vencidos a fim promover cuidado em liberdade para PERSPECTIVA METODOLÓGICA
aqueles que por tanto tempo foram condenados ao
isolamento e à exclusão. Alverga e Dimenstein (2006) O trabalho de pesquisa no campo da saúde
apontam como problemáticos: coletiva é algo que impele o pesquisador a explorar a
sua criatividade e as diversas formas possíveis de
A forma de alocação dos recursos financeiros do interagir com o campo, e acessá-lo em sua dimensão
SUS e suas repercussões no modelo assistencial de trabalho vivo tal como pensado por Merhy3.
proposto para os serviços substitutivos; aumento
considerável da demanda em saúde mental (...)
diminuição importante, mas ainda insuficiente, 3
Merhy (2002) utiliza a noção de trabalho vivo e trabalho
dos gastos com internação psiquiátrica (...); morto para pensar os atos produtivos humanos tanto em sua
fragilidade em termos de abrangência, dimensão de produção de materiais e artefatos – como um
acessibilidade, diversificação das ações, sapato ou uma bicicleta – como também para problematizar
qualificação do cuidado e da formação a dimensão das relações interpessoais. O trabalho morto
profissional, bem como um imaginário social seria aquele oriundo de ações anteriores na quais foi
calcado no preconceito/rejeição em relação à produzido conhecimento, saber, tecnologia e que hoje se
loucura (p.300). colocam como parte de um dado ato produtivo e
pressupostos orientadores para realizá-lo. Já o trabalho vivo
seria aquele no qual o trabalhador executaria um ato
É, principalmente, no que tange à diversificação das intencional e criador a partir das diversas combinações
formas de assistência que tem sido oferecidas e no trabalho possíveis que lhe são permitidas pelo acúmulo das
tecnologias e saberes oriundos dos trabalhos mortos
anteriores. Seria o momento no qual, tendo consigo uma
2
APTAD - Ambulatório de prevenção e tratamento do intenção implícita ou explícita, aquele que age tem diante
tabagismo, alcoolismo e outras drogadições. Realiza o de si a oportunidade de agenciar algo, algo que não estava
atendimento preventivo e tratamento de dependência posto. Ou que mesmo que já o estivesse isto agora poderá
química para usuários a partir de 14 anos, promovendo ser feito de modo particular, singular e próprio daquele que
também, orientação para os familiares (Natal, 2007, p. 54). realiza a ação.
Construir conhecimentos tendo em vista os inúmeros Nosso campo de intervenção foi constituído dos
determinantes políticos, sociais e ideológicos que dois CAPSs II e dois CAPSs Ad localizados na cidade
perpassam esse campo é uma tarefa complexa, do Natal. Os participantes foram 10 psicólogos que
cabendo ao pesquisador inventar tanto seu arsenal compõem o quadro de técnicos desses serviços
metodológico quanto sua forma de estar em campo Conforme já ressaltamos anteriormente, tais encontros
(Silveira, 2003). Nesse sentido, o olhar cartográfico foram norteados por um roteiro onde abordávamos
pode contribuir para problematizar a construção de quatro eixos temáticos, a saber: relação da formação
conhecimento nessa área. Nessa perspectiva busca-se acadêmica recebida nos cursos de graduação e as
traçar um mapa das diversas linhas que compõem um demandas dos serviços; mapeamento das principais
dado território existencial. A cartografia se contrapõe atividades desenvolvidas; conhecimento dos princípios
“a uma topologia quantitativa que categoriza o terreno ordenadores da reforma psiquiátrica e autopercepção
de forma estática e extensa” (Andreoli, Costa, Ribeiro, enquanto trabalhadores do campo da saúde mental.
Giacomel, Kirst, 2003, p.92), propondo outra “de Vamos restringir nossa discussão aos dois primeiros
cunho dinâmico, que procura capturar intensidades, ou eixos, em função dos limites presentes nas normas da
seja, disponível ao registro do acompanhamento das revista em termos da extensão do artigo.
transformações decorridas no terreno percorrido e à
implicação do sujeito percebedor no mundo
cartografado” (op.cit, p.92). RESULTADOS
É preciso ressaltar que a cartografia não é uma
metodologia de pesquisa como esta se entende Formação acadêmica e atuação profissional: algumas
interfaces
usualmente. Trata-se bem mais de uma disposição do
pesquisador, de um modo de conceber, de elaborar Encontramos um perfil profissional semelhante
questões e discutir os efeitos do seu encontro com seu àquele descrito por Oliveira et al. (2004) em sua
campo. Sendo assim, caberia ao cartógrafo tentar caracterização da psicologia no Estado do Rio Grande
construir conhecimentos a partir de um referencial do Norte. Dentre os dez profissionais entrevistados,
ético-estético-político, valorizando os afetos, dois eram homens e oito mulheres, em sua maioria,
localizando virtualidades e acreditando na formados pela Universidade Federal do Rio Grande do
inseparabilidade do par sujeito pesquisador/objeto da Norte. Os quesitos área de estágio e direcionamento
pesquisa. Cartografar é, pois, uma tentativa de do currículo durante a graduação estão marcadamente
apreensão do mundo em sua dimensão de força, e não voltados para o trabalho clínico com enfoque teórico
de forma, tentando preservar ao máximo o da Psicanálise. O tempo de formação é superior a dez
processualidade da realidade (Kastrup, 2007). anos 4.
As ferramentas através das quais foi viabilizado o Um dos pontos da entrevista visava conhecer as
nosso encontro com o campo foram entrevistas relações entre a formação e as práticas profissionais
semiestruturadas e observação participante. A função que hoje constituem as rotinas de trabalho.
da entrevista foi servir de elemento disparador para Observamos uma defasagem entre os conteúdos
uma conversa a partir da qual fosse possível captar discutidos na formação e o que esses profissionais
com maior liberdade a forma como o profissional se atualmente vivem e observam no seu cotidiano. Os
posicionava em relação às questões levantadas pela participantes referem-se à graduação como o momento
pesquisa. O nosso pressuposto para isso era que o em que receberam apenas as bases para o trabalho.
acesso ao relato verbal de um sujeito acaba por dar Afirmam que ela foi insuficiente especialmente pela
visibilidade a uma construção de realidade que se dá ausência de conteúdos vinculados à saúde pública e à
de forma coletiva e compartilhada. No discurso de um reforma psiquiátrica. Observamos, assim, uma
é possível captar o jogo de sentido, valores, normas e fragilidade no que diz respeito à formação acadêmica
ideias que perpassam o dia-a-dia do grupo ou da desses profissionais para o trabalho específico nos
instituição (Silveira, 2003). Sobre a observação serviços substitutivos.
participante no nosso trabalho, buscamos aquilo que O fator “tempo de formação” poderia justificar a
escapa às palavras, que vai além do dito, que se ausência de tais conteúdos, pois no fim da década de
inscreve nas práticas mais simples e mais corriqueiras; 1980 e início dos anos 1990 a discussão sobre saúde
ou seja, atentamos para tudo aquilo que faz parte do
cotidiano dos serviços (as práticas, os movimentos) e 4
Apenas uma das entrevistadas não atende a este critério,
compõe o cenário no qual estão inseridos os tendo concluído a formação no ano de 2002 e ingressado na
psicólogos que entrevistamos. rede há pouco tempo via concurso público.
pública e reforma psiquiátrica ainda era muito sociais, e como sendo incapaz de dar respostas
incipiente, dado o pouco tempo de implementação do eficazes a parcelas significativas da população. As
SUS e a pouca difusão da luta antimanicomial. práticas são ancoradas em um discurso que assume
Entretanto, o fato de ter profissionais formados em uma posição de neutralidade, como se as pessoas,
2002 indica que não se trata de tempo, mas do não- alvos de suas intervenções, não fossem sujeitos
acesso a essas discussões de forma sistemática e políticos em uma sociedade conflituosa. A inserção do
constante no curso de Psicologia da UFRN, já que se psicólogo em contextos de luta como o da reforma
trata da instituição mais citada. psiquiátrica implica na desconstrução desses modos
conservadores de atuação e a proposição de novos
Quando eu tava na graduação o meu único modos de trabalho.
contato com o CAPS e com o tema da Localizando historicamente alguns dos pilares que
reforma foi em uma visita a esse serviço. sustentam a cisão entre psicologia e política,
Agora, se os profissionais da saúde não têm
Nascimento, Manzine e Bocco (2006) assim se
conhecimento, você imagina o resto do povo.
[E4] expressam:
entrevistados referem-se aos atendimentos individuais posição, temos a fala de uma das entrevistadas sobre
nos moldes de uma escuta clínica tecnicamente sua ação ante uma crescente demanda de crianças com
qualificada como sendo a especificidade da atuação do problemas de comportamento. Ao invés de procurar o
psicólogo dentro da instituição. É preciso ressaltar problema em um âmbito individual, ela resolveu ir à
mais uma vez que boa parte das críticas dirigidas à escola, onde encontrou professoras despreparadas,
inserção dos psicólogos nos serviços de saúde pública crianças ociosas e um clima de total desorganização.
refere-se ao fato de suas práticas serem eminentemente Sua intervenção acabou sendo uma oficina de
individuais e alicerçadas em modelos identitários, em acompanhamento para as professoras, que findou por
teorias descontextualizadas. Dimenstein (2000), sanar o problema. Para exemplificar a segunda
alertando-nos sobre os riscos de tais procedimentos, posição traremos a fala de um entrevistado:
afirma que tal ação decorre do fato de que os
profissionais psi Em saúde pública, você não pode fazer o
trabalho que você faz no consultório,
Partem de uma perspectiva universalista- infelizmente, porque o serviço público requer
essencialista em torno da natureza humana e uma dinamicidade muito maior do que
de uma crença na eficácia intrínseca dos aquela do consultório (E2).
procedimentos psicoterápicos de qualquer
natureza. Desta forma, ficam inabilitados Entender a dinâmica e as demandas específicas
para perceber que nem sempre esse arsenal dos serviços públicos de saúde como um problema, na
teórico-técnico é adequado para as ações medida em que é preciso rever o arsenal teórico e
específicas do campo da assistência pública à metodológico hegemonicamente empregado pelo
saúde e para a clientela que freqüenta estas psicólogo, indica os embates enfrentados pela
instituições (p.111).
categoria profissional. Alguns se referem ao fato de
que o cotidiano tem pressionado no sentido de rever
Ao longo das entrevistas, foi ficando claro que o
tais posturas e de que fazer uma avaliação e autocrítica
olhar e escuta diferenciados, definidores da atuação do
é fundamental ao trabalho clínico.
psicólogo, seriam fruto da apropriação de uma dada
teoria a partir da qual fosse possível empreender a A clínica (...) não é estática, não é estanque,
“análise psicológica dos movimentos psíquicos, de ela é dinâmica, é movimento. Toda hora está
como a pessoa está internamente estruturada, de se transformando, trazendo novas
como tem se colocado diante da vida” (E8). Diante da informações, novos signos e te fazendo
importância atribuída à apropriação de um referencial pensar sobre o que você está vendo. O que é
possível pensar a partir das minhas teorias
teórico que oriente e sensibilize a escuta, tornou-se
sobre isso que eu estou vendo? (...) Nem
fundamental problematizarmos como tem se dado no prática, nem teoria se sustentam por si só.
dia-a-dia a prática clínica desses profissionais. Que Quando eu falo técnicas, estou falando de
modelos de subjetividade embasam tais perspectivas práticas, de teorias e de experiências do dia
clínicas? Qual a clínica que tem sido desenvolvida no a dia. É viver, pensar, refletir e se perguntar
contexto da reforma? a toda hora o que raios se está fazendo aqui
(E7).
No discurso dos técnicos há uma preocupação em
demarcar que o atendimento realizado no serviço é
A dinamicidade do trabalho clínico força uma
diferente daquele que boa parte realiza em seus
mudança nas concepções que sustentaram por muito
consultórios particulares. As razões apontadas para
tempo as intervenções junto aos portadores de
isso passam pela noção, oriunda dos anos de
transtornos mentais. Tais práticas já não devem ser
experiência profissional nos serviços públicos, de que
norteadas por referenciais de normatização e
o modelo de atendimento da clínica privada não se
adaptação, de silêncio e exclusão das diferenças, tão
sustenta dentro da proposta do CAPS. As justificativas
presentes ainda. Fonseca e Kirst (2004) denunciam as
para tal inadequação foram de duas ordens. De um
fragilidades do modelo clínico hegemônico ao mostrar
lado, havia a ideia de que o modelo clínico não
que ele parte de bases e princípios epistemológicos
respondia às demandas que eram apresentadas, sendo
que
necessárias intervenções diferentes das da clínica
tradicional; de outro, a ideia de que os usuários não se Privilegiam a dicotomização entre sujeito e
engajam no tratamento, de que são resistentes e que a vida, consciente e inconsciente, interioridade
dinâmica do serviço não permite a realização de e exterioridade, clínica e política. Fundado na
atendimentos eficazes. Como exemplo da primeira crença de uma postura neutra busca produzir
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Municipal de Saúde de Natal: Natal, RN.
Endereço para correspondência : Magda Dimenstein. UFRN, CCHLA, Deptº de Psicologia, Campus Universitário, Lagoa Nova,
CEP 59.078-970, Natal-RN, Brasil. E-mail: magda@ufrnet.br
Para refletir sobre a atuação dos agentes comunitários de saúde junto aos
portadores de transtorno mental a partir do paradigma preconizado pela Reforma
Psiquiátrica necessário se faz abordar o processo de construção do paradigma
psiquiátrico convencional, buscando conhecer e resgatar um pouco da trajetória do
cuidado com a loucura. Assim, neste capítulo fazemos um breve resgate histórico
da loucura; do movimento da Reforma Psiquiátrica; da trajetória da Reforma
Psiquiátrica no Brasil e da reestruturação da rede psiquiátrica tendo em vista as
exigências do processo de desinstitucionalização.
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2.1.
Breve resgate histórico da loucura
de isolar o louco no asilo para que recebesse um tratamento digno de acordo com
os princípios humanitários e libertários do período revolucionário em questão.
(Amarante, 1996)
Desse modo, percebe-se a passagem da visão da loucura para uma esfera
crítica e destaca-se Foucault (2005) que historiciza criticamente as condições que
possibilitam a construção do saber sobre a loucura.
Conforme Basaglia (2005), o doente mental era uma figura que deveria ser
mantida à distância, para que não perturbasse o cotidiano e a ordem da sociedade.
A necessidade de isolar o doente mental também resulta no fato da sociedade
buscar a eliminação do que limita sua expansão. Além disso, a doença mental é
vista como um problema social que necessita ser resolvido “fora” da sociedade,
uma vez que o doente mental significa uma ameaça à ordem social.
Nesse sentido,
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3
Refiro-me ao livro Manicômios, prisões e conventos, Ed. Perspectiva, 2206.
21
2.2.
O movimento da Reforma Psiquiátrica
A praxiterapia dos anos vinte, estabelecida por Simon, retomou o mito de que o
trabalho será a forma básica para a transformação dos doentes mentais, pois
mediante o trabalho se estabeleceria um sujeito marcado pela sociabilidade da
produção. (1992, p. 74)
Desinstitucionalização na Itália.
Nesse sentido, com o objetivo de modificar o modelo de tratamento
destinado aos doentes mentais, surge na Europa o Movimento de Reforma
Psiquiátrica, liderado pelo psiquiatra Franco Basaglia. A experiência do
Movimento da Reforma Psiquiátrica, a princípio, segundo Barros (1994) iniciou-
se em 1961 com a transformação do hospital psiquiátrico de Gorizia em
comunidade terapêutica. A partir de Gorizia, inúmeras experiências tiveram início
sendo a mais famosa a que foi realizada em Trieste. A referida autora revela que
na Itália em 1965, havia mais de 100 mil pessoas internadas. No início da década
de sessenta um grupo de psiquiatras iniciou atividades de humanização no
hospital de Gorizia. O modelo visava abandonar a violência como recurso,
eliminando práticas repressivas, sistemas de punições, eletro-choques e
impregnação provocada pelo excesso de psicofármacos. Ambas as experiências
(Gorizia e Triste) iniciaram-se sob o olhar de Franco Basaglia.
O Movimento de Reforma Psiquiátrica visava à extinção dos manicômios,
das práticas de exclusão social e violência. Ainda nesse contexto, foi aprovada a
Lei 180, em 13 de maio de 1978, que determinou o fim dos manicômios em todo
o território italiano, ocasionando o progressivo esvaziamento dos manicômios,
definindo a necessidade da criação de estruturas territoriais que respondessem às
26
1991, p. 120).
Amarante (1995) revela que a Reforma Psiquiátrica Italiana refere-se a um
conjunto de iniciativas operado nos campos legislativo, jurídico, administrativo e
cultural visando à transformação da relação entre sociedade e loucura. Além disso,
representa a desconstrução de saberes e formas de lidar com o doente mental e
demonstra a possibilidade de responsabilizar-se com o sofrimento de sujeitos,
através de um paradigma centrado em um cuidar humano, solidário, afetivo e na
(re) construção da cidadania.
No contexto contemporâneo, a Reforma Psiquiátrica intervém no campo
das relações da sociedade com a loucura, transformando as relações desta para
com o transtorno mental. Segundo Amarante (2003) isso ocorre através de
práticas contra a exclusão e, por outro lado, de estratégias de inclusão social dos
sujeitos. Trata-se de um processo com princípios éticos, de inclusão, solidariedade
e de cidadania.
Amarante (1995) explicita que:
2.3.
A trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil
Nos anos 70, proliferaram os ambulatórios com o intuito de internar pacientes nos
leitos privados. É sabido o que ocorreu a partir daí: tempo exagerado de
permanência nos hospitais, atendimento desumano, uso abusivo e quase exclusivo
de psicofármacos como alternativa de tratamento, investimento na hotelaria dos
hospitais. (Machado, 2004, p. 4)
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A crise da DINSAM foi efetivada a partir da denúncia realizada por três médicos
bolsistas do CPPII ao registrarem no livro de ocorrências do plantão do pronto-
socorro as irregularidades da unidade hospitalar, trazendo ao público a trágica
situação existente naquele hospital. Este ato mobilizou profissionais de outras
unidades e recebeu o apoio imediato do Movimento de Renovação Médica.
(Amarante, 1995, p.52)
4
“Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o
oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas com transtorno mental, mas não institui mecanismos claros para a progressiva
extinção dos manicômios. A Lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o progresso da
Reforma Psiquiátrica no Brasil.” (Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde
Mental, 2005, p. 3)
33
2.4.
Reestruturação da rede psiquiátrica e o processo de
desinstitucionalização
5
Dentre os principais instrumentos que definem a Política Nacional de Saúde no Brasil, de acordo
com o Ministério da Saúde, incluem-se: a) Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS /
SUS) 2001/2002; estabelece o processo de regionalização como estratégia de hierarquização dos
serviços de saúde e de busca de maior eqüidade; b) Lei nº 10.216 de 06/04/2001, redireciona o
modelo da assistência psiquiátrica, regulamenta cuidado especial com a clientela internada por
longos anos e prevê possibilidade de punição para a internação involuntária arbitrária ou
desnecessária; c) Lei nº 10.708 de 31/07/2003, Lei do Programa de Volta para Casa estabelece
um novo patamar na história do processo de reforma psiquiátrica brasileira, impulsionando a
desinstitucionalização de pacientes com longo tempo de permanência em hospital psiquiátrico,
pela concessão de auxílio reabilitação psicossocial e inclusão em programas extra-hospitalares de
atenção em saúde mental; d) Portaria SNAS nº 224 de 29/01/1992, regulamenta o funcionamento
de todos os serviços de saúde mental. Estabelece normas para o funcionamento de serviços
ambulatoriais e hospitalares; e) Portaria GM nº 106 de 11/02/2000, cria e regulamenta o
funcionamento dos Serviços Residenciais Terapêuticos. Esta Portaria tem papel importante na
consolidação do processo de substituição do modelo tradicional, pois possibilita desenvolver uma
estrutura de acolhimento ao paciente egresso de internação psiquiátrica de longa permanência e
sem suporte sócio-familiar; f) Portaria GM nº 251 de 31/01/2002, estabelece diretrizes e normas
para a assistência hospitalar em psiquiatria reclassificam os 39 hospitais psiquiátricos, define e
estrutura a porta de entrada para as internações psiquiátricas na rede do SUS; g) Portaria GM nº
336 de 19/02/2002, acrescenta novos parâmetros para a área ambulatorial, ampliando a
abrangência dos serviços substitutivos de atenção diária; estabelece portes diferenciados a partir de
critérios populacionais e direciona novos serviços específicos para área de álcool e outras drogas e
infância e adolescência; h) Portaria GM nº 2.391 de 26/12/2002, notificação das internações
psiquiátricas involuntárias; define critérios e mecanismos para acompanhamento sistemático, pelo
Ministério Público e instâncias gestoras do SUS, das internações psiquiátricas involuntárias,
configurando-se como um dos pontos necessários de regulamentação da Lei 10.216; i) Portaria
GM nº 2.077 de 31/10/2003, define os critérios de cadastramento dos beneficiários do Programa
de Volta para Casa, de habilitação dos municípios e de acompanhamento dos benefícios
concedido; j) Portaria GM nº 52 de 20/01/2004, cria o Programa Anual de Reestruturação da
Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS – 2004 reafirmando a diretriz de redução progressiva
de leitos; k) Portaria GM nº 1.608 de 03/08/2004, constitui o Fórum Nacional sobre Saúde
Mental de Crianças e Adolescentes, tendo em vista, a grave situação de vulnerabilidade deste
segmento em alguns contextos específicos, exigindo iniciativas eficazes de inclusão social; l)
35
A) Residências Terapêuticas
O Programa de Volta para Casa foi instituído pelo Presidente Lula, por
meio da assinatura da Lei Federal 10.708 de 31 de julho de 2003 e dispõe sobre a
regulamentação do auxílio-reabilitação psicossocial a pacientes que tenham
permanecido em longas internações psiquiátricas. O objetivo deste programa é
contribuir efetivamente para o processo de inserção social dessas pessoas,
incentivando a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0811995/CA
Clínica do Sujeito? Sim uma clínica centrada nos Sujeitos, nas pessoas
reais, em sua existência concreta, inclusive considerando-se a doença como
parte destas existências. No entanto, a medicina não somente trabalha com uma
ontologização das enfermidades - as doenças são o verdadeiro objeto de
trabalho da clínica -, como acaba por tomar as pessoas por suas doenças. Seria
como se a doença ocupasse toda personalidade, todo o corpo, todo o Ser do
doente. Seu João da Silva desapareceria para dar lugar a um psicótico, ou a um
hipertenso, ou a um canceroso, ou a um poliqueixoso, quando não se acerta
imediatamente com algum diagnóstico. Fala-se até em uma arte psicopatológica
para se referir a pinturas elaboradas por doentes mentais, como se a doença
substituisse a mente, o cérebro, a vontade, todo o Ser do enfermo. Para a
medicina a essência do Sujeito seria esvaziada pela doença, a qual ocuparia o
seu lugar a posteriori.
Fazendo uma analogia com o conceito de Instituição Total de Goffman
(Goffman;1996) poder-se-ia falar em Doença Total. Para a medicina haveria
um apagamento de todas as outras dimensões existenciais ou sociais do
enfermo, a doença o recobriria como uma segunda pele, uma nova identidade.
As pessoas deixariam de ser velhas, jovens, pais ou mães, trabalhadores,
aposentados ou desempregados, músicos ou professores, e todos seriam
enfermos de alguma coisa, assim, pouco importaria lidar com a doença como
um dos componentes destas existências concretas. Não são sequer levantadas
questões sobre como combinar uma dada enfermidade e o Ser concreto
acometido, como combinar o enfrentamento de uma determinada doença com a
luta contra o desemprego, o combate a uma certa enfermidade com o
cumprimento de funções maternas, o cuidado e tratamento de um dado mal-
estar com a conservação de algum conforto e de algum prazer.
Esta polêmica haveria que se estabelecer com a Clínica, sem o que nunca
haveria Clínica reformada e muito menos ampliada. Uma enfermidade perturba,
transforma e até mata Sujeitos, contudo, apenas raramente, liqüida com todas
as demais dimensões da existência de cada um. Assim, hipertensões arteriais
semelhantes segundo critérios clínicos tradicionais, teriam conseqüências e
gravidades distintas conforme o Sujeito e o Contexto em questão. A clínica se
empobrece toda vez que ignora estas inter-relações, perdendo capacidade de
resolver problemas estritamente clínicos, inclusive.
Sugere-se, portanto, uma ampliação do objeto de saber e de intervenção
da Clínica. Da enfermidade como objeto de conhecimento e de intervenção,
pretende-se também incluir o Sujeito e seu Contexto como objeto de estudo e
de práticas da Clínica.
Entretanto, tratar-se-ia de uma ampliação, não de uma troca. O objeto a
ser estudado e a partir do qual se desdobraria um Campo de Responsabilidades
para a Clínica, seria um composto, uma mescla, resultante de uma síntese
dialética entre o Sujeito e sua Doença. Considerar a doença é muito importante
porque influie inclusive na definição sobre a que clínica se deveria recorrer. Em
casos de enfermidades ou de deficiências crônicas, de longa duração e, em
geral, incuráveis, pensar-se na Clínica do Sujeito. Em geral, estas pessoas
estariam quase sempre muito dependentes de algum tipo de apoio técnico
(medicação, hormônios, insulina, reabilitação física, etc), sujeitas a variação de
humor em virtude de suas enfermidades que os inferiorizam em relação à média
da espécie ou do contexto socio-cultural (terapia individual, trabalho em
grupo), e ainda mais expostas às dificuldades do contexto e que se
beneficiariam de programas sociais específicos(cooperativas de trabalho, apoio
educacional, viagens, habitações coletivas, etc). Enfim, pessoas com qualquer
destas características se beneficiariam de uma Clinica reformulada e amplida.
Nesta relação entre doença e Sujeito há, portanto, muitas posições
possíveis. Desde aquelas em que a doença ocupa grandes espaços na existência
do Sujeito, até outras em que a enfermidade é um risco na água, um evento
transitório e fugaz. Por outro lado, doenças semelhantes do ponto de vista
classificatório podem incidir de forma diferenciada conforme a história e os
recursos subjetivos e materiais de cada Sujeito. Os serviços de saúde deveriam
operar com plasticidade suficiente para dar conta desta variedade.
Sobra a questão: haveria mais de uma Clínica? O que seria a Clínica?
Haveria uma Clínica somente Clínica, uma Clinica sem adjetivos que a
qualificasse?
Bibliografia:
- Amarante, Paulo; 1996. O homem e a serpente. Rio de Janeiro, editora
FIOCRUZ.
- Basaglia, F et al;1985. A instituição Negada, tradução de Heloísa Jahn. Rio
de Janeiro, editora Graal.
- Campos, Gastão W.S.;1992. Reforma da Reforma: repensando a saúde. São
Paulo, editora Hucitec.
- Canguilhem, G.;1982. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro, editora
Forense.
- Camargo, Jr.;1990. (Ir)racionalidade Médica: os paradoxos da clínica. Rio
de Janeiro, dissertação de mestrado Instituto de Medicina Social da UERJ.
- Foucault, M.;1980. O nascimento da Clínica. Rio de Janeiro, editora
Forense universitária.
- Goffman, E.;1996. Manicômios, prisões e conventos, tradução de Dante
Leite. São Paulo Editora Perspectiva.
- Gramsci, Antonio; 1978. Concepção dialética da história tradução de Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, editora Civilização Brasileira.
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Janeiro, Nova Fronteira.
- Mendes-Gonçalvez, R.B.;1994. Tecnoloiga e Organização Social das
Práticas de Saúde. São Paulo, Hucitec.
- Sartre, J.P.;1963. Crítica de la razón dialética. Buenos Aires, ed. Lousada.
1
Gisele Dhein
Porto Alegre
2010
53
3 A CLÍNICA AMPLIADA
sujeitos produzidos por ela, os manuais do Ministério da Saúde Clínica Ampliada (2004a) e
Clínica Ampliada e Compartilhada (2009) nos servem enquanto analisadores, uma vez que
saúde.
material é composto por dezoito páginas, nas quais encontramos, primeiramente, uma
contextualização faz-se necessária, pois esta cartilha compõe um conjunto de oito cartilhas
que foram emitidos por este núcleo, enquanto diretrizes para a implantação da PNH. As
ampliada com o qual os profissionais da saúde devem trabalhar, trazendo exemplos e dicas
maior, onde em suas sessenta e quatro páginas encontramos os eixos nos quais a clínica
2004, o qual apresenta-se muito mais enquanto uma apresentação – pois está confeccionado
54
em forma de slides – este material desenvolve os conceitos de forma mais explicativa. Novos
itens são incorporados à discussão, como, por exemplo, o projeto terapêutico singular.
Ampliada e Compartilhada.
forma contundente e tem muito a nos dizer sobre as práticas de atenção à saúde: a
melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos profissionais” (Brasil,
2004b, p. 6). O HumanizaSUS aparece enquanto política nacional norteadora para atenção e
governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (década de 2000), o programa recebeu
(PNH)6.
6“Tanto a política como o programa dizem respeito a uma forma epistemológica e uma forma substantiva,
55
ações integradas com o objetivo de alterar os padrões de assistência aos usuários no ambiente
ambiente hospitalar. Esta deveria ser orientada pelo atendimento humanizado ao usuário,
entendendo que resultaria em maior qualidade e eficácia das ações desenvolvidas (Reis,
Em 2003, a nova gestão do Ministério da Saúde inicia a condução de uma proposta que
pretende ter um caráter transversal, visando atingir todos os níveis de atenção à saúde,
gestão de processos de trabalho que deve perpassar todas as ações e serviços de saúde (Brasil,
2004b).
de saúde, aspectos que se tornam fundamentais para proporcionar adequadas condições para o
construção do SUS, contidos nas leis e atos regulamentadores, tais como assistência integral,
al., 2004).
porém as políticas são diretrizes do sistema de saúde, enquanto os programas são modos de operacionalizar essas
diretrizes” (Bernardes & Guareschi, 2007, p. 464).
56
usuários na produção de saúde. Éticas porque tomam a defesa da vida como eixo de
suas ações. Estéticas porque estão voltadas para a invenção das normas que regulam a
relação aos demais seres vivos. Políticas porque é na pólis, na relação entre os homens
que as relações sociais e de poder se operam, que o mundo se faz (Brasil, 2004b, p. 8).
que esta dá conta do compromisso com o sujeito e seu coletivo, estimulando diferentes
discursivas produzidas pelo SUS” (p. 464), ou seja, ao ser uma prática discursiva, ela produz
sujeitos, produz modos de viver em um determinado espaço-tempo. Dessa forma, ela é uma
“tecnologia de vida” (p. 466), uma vez que produz maneiras de o indivíduo/usuário
si edificado pela relação que se estabelece entre saúde, vida e tecnologias” (p. 466).
subjetivação no campo da saúde, percebemos que os sujeitos que são produzidos por essa
política dizem de sujeitos de “uma racionalidade que possibilite ao sujeito dar-se a conhecer a
si mesmo” (Bernardes & Guareschi, 2007, p. 466). Como veremos mais adiante, a
humanização é a 'porta de entrada' para uma clínica ampliada onde os sujeitos que se
57
Guareschi, 2007).
sujeito da razão, nos séculos XIX e XX, com a necessidade de uma neutralidade científica
objetiva, a humanização passa a ser algo também passível de controle. Como já vimos
anteriormente, torna-se necessário criar formas de governo que dêem conta desta nova
estratégia. É por meio de disciplina e de biopolíticas, que são estratégias de biopoder, que se
o fazer viver. O controle das populações investe na humanidade, no controle dos modos
p. 467).
São através das políticas públicas que os governos conseguirão administrar a população.
nos algumas outras formas de objetivação da humanização. Nesse sentido, a diferença entra
em jogo, sendo “a vida humana” (Brasil, 2004b, p. 9), “e as condições de vida da população”
(p. 9), isto é, as diferentes histórias de vida, que “criam a necessidade de diferentes
Ao ser uma política que tranversaliza diferentes práticas – sejam elas de atenção ou
gestão –, caracteriza-se enquanto uma diretriz que atravessa todas as instâncias e ações em
saúde. Assim, enquanto biopolítica, a humanização “não se volta para a vida, mas para as
58
distintas formas de vida” (Bernardes & Guareschi, 2007, p. 469). Dessa forma, ao considerar
a humanização uma biopolítica, não há como escapar das regras que as constituem e, nesse
gestão no campo da saúde” (Brasil, 2004a, p. 4), acaba por subjetivar sujeitos “conhecedores
de si”, reforçando a “noção de um 'eu', de uma autoria nos processos de saúde (Bernardes &
Para Rose (2001a), essa forma de pensar, onde os indivíduos são vistos como “eus”,
emerge apenas no século XIX. É somente neste momento histórico que o ser humano é
compreendido desta forma, isto é, “como uma entidade naturalmente singular e distinta” (p.
33).
sempre este conceito esteve presente. A clínica ampliada é um conceito que surge em meio à
estavam sendo formuladas sob uma ótica mais democrática. Paralelamente, vê-se,
mundialmente, um movimento muito forte na saúde mental, especificamente, na luta por uma
sociedade sem manicômios. Com isso, no Brasil, surgem os Centro de Apoio Psicossocial,
mais conhecidos como CAPs, que iniciam uma nova forma de assistência/atenção à saúde.
Em 1987 vemos aparecer as primeiras referências à clínica ampliada, muito mais vinculadas a
atendimento.
de Barros e Eduardo Passos remetem suas produções a também estes temas. Além de
políticas públicas à saúde, são teóricos de referência nesta área (Benevides, 2005; Passos &
Barros, 2000).
como se a clínica fosse campo somente dessas duas disciplinas, evidenciando uma incoerência
Passos e Barros (2000), por exemplo, remetem suas discussões aos modelos de clínica,
da clínica ampliada.
7 Ressaltamos que nos materiais/documentos do Ministério da Saúde, em suas políticas e programas,
encontramos referência a interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade. Sabe-se que epistemologicamente há
diferenças entre o entendimento das fronteiras entre as disciplinas. Quanto à transdisciplinaridade,
encontramos em alguns documentos sua referência, mas sempre atrelado à “equipe transdisciplinar”,
remetendo ao trabalho em equipe. Autores como Benevides, Passos e Campos, no entanto, discutem e
problematizam estas políticas pelo viés epistemológico da transdisciplinaridade. Segundo Passos (2002), a
multidisciplinaridade é resultado de uma maneira de articular diferentes disciplinas na tentativa de dar conta
da complexidade do objeto e cuja complexidade faria dele como que um sólido de muitas faces e, para cada
face, seria exigido uma perspectiva disciplinar, um diagnóstico. Na multidisciplinaridade há a manutenção
dos limites identitários; os regimes identitários das disciplinas que estão articuladas e o regime identitário do
próprio objeto. Já a interdisciplinaridade tem-se um objeto que convoca duas ou mais disciplinas a se
articular. Esta articulação vai pressupor a criação de uma zona de intersecção, que vai tornar-se independente
e formar uma terceira disciplina, como é o caso, por exemplo, da Psicopedagogia. Tanto na
multidisciplinaridade quanto na interdisciplinaridade se tem a manutenção dos sistemas identitários, uma vez
que mantenho os sistemas de identidade, isto é, não há a desestabilização das fronteiras e sim, sua
multiplicação. No entanto, a transdisciplinaridade, para o autor, é pensada através do conceito de intercessor
de Deleuze, onde “a potência de diferenciação que um outro produz sobre um determinado regime identitário
desestabilizará o que nele havia de identidade” (p. 42).
60
Percebe-se que mesmo sendo um campo novo dentro da discussão da saúde coletiva, os
textos8 sobre o tema preocupam-se mais com as críticas à saúde pública e seus modelos do
saúde) e na clínica médica, deixando de lado muitas vezes as demais profissões da área da
Promoção à Saúde entre os anos de 2003 e 2005. Interessante percebermos, que foi neste
período que foram lançadas as Cartilhas da Humanização, sendo a Clínica Ampliada uma
delas. Este foi o primeiro material oficial do Ministério da Saúde sobre a temática. Em 2005,
interfaces?9, onde coloca a Psicologia no entrecruzamento daqueles que ela considera os três
Talvez esses artigos trazidos até agora evidenciam uma transição quanto ao objeto da
psicologia. No momento em que ela passa a ocupar um lugar na saúde, mais especificamente
na saúde coletiva, algumas novas questões se colocam a ela. Questões que vão além do
intervenção não é mais o psíquico, não é mais a patologia, e sim, a promoção de saúde de um
8 Por exemplo, Paim e Almeida Filho (1998); Luz (1991); Campos (2003).
9 Este texto e fruto de uma palestra realizada pela autora no V Fórum Social Mundial, em 2005, em Porto
Alegre.
61
descontentamento frente a algumas produções científicas sobre a clínica. Ainda não nos
sentimos – aqui falo especificamente dos profissionais psi – autorizados a falarmos daquilo
que não conhecemos, e continuamos fazendo críticas a conceitos e teorias que não dizem mais
respeito da psicologia nesta nova ordem discursiva e institucional na qual ela está inserida.
Benevides (2005) nos dá algumas pistas sobre a despolitização das práticas psi10. Talvez
estas mesmas pistas podem ser pensadas para a Psicologia enquanto disciplina da saúde:
do social, que a clínica se separou da política, que o cuidado com a saúde das pessoas se
separou do cuidado com a saúde das populações, que a clínica se separou da saúde
coletiva, que a Psicologia se colocou à margem de um debate sobre o SUS (p. 22).
Não é mais nem somente o biológico, nem somente o social, nem somente o psíquico
que estão em jogo. São todos eles e mais alguns outros atravessamentos que constituem
aquilo que nomeamos de “condições de vida de uma população”, isto é, aquilo que nomeamos
na saúde coletiva enquanto promoção de saúde. Nesta esfera, são outros olhares e outras
práticas que estão sendo demandadas. Talvez resida aí a transdisciplinaridade tanto sugerida
pelos autores outrora citados. Talvez a questão epistemológica sobre a constituição do objeto
No entanto, Gastão Wagner de Sousa Campos é quem começa a nos dar os primeiros
indícios daquilo que se entende por clínica ampliada – ou talvez seja ele quem começa a
nomear a clínica enquanto ampliada, que começa a se apropriar do termo. Segundo o autor, a
10 Antes de Benevides, Cecília Coimbra (1995, 2005) já trazia o debate sobre a despolitização das práticas psi.
62
Centrar a ação clínica sobre o Sujeito, tudo bem, no entanto, este Sujeito seria um
Sujeito concreto, não somente marcado por biografia singular, mas também seu corpo e
sua dinâmica corporal estariam marcados por uma singularidade: algum tipo de
um dado contexto social específico. Pôr a doença entre parênteses é um ótimo exercício
para quebrar a onipotência dos médicos, mas nem sempre ajuda o enfermo. Evita que
relação com o mundo. Como ressaltar o Sujeito trazendo junto sua integralidade
humana; humanidade que, no caso, inclui também distúrbios, sofrimentos, dores, risco
contexto como objeto de estudo e de práticas da clínica (Campos, 2003). Dessa forma, ao
adjetivarmos o substantivo clínica, estamos acrescentando algo a ele. No nosso caso, estamos
Campos e Amaral (2007) sugerem duas ampliações fundamentais à clínica: uma diz
se “aquilo sobre o que aquela prática se responsabiliza” (p. 852), ou seja, diferentemente da
medicina tradicional (à qual se vincula o 'velho' conceito de clínica), onde a doença é o foco
de tratamento, temos uma ampliação para também os problemas de saúde, onde o risco e a
vulnerabilidade das pessoas entram em jogo. Isto é, “não há problema de saúde ou doença
compreender e lidar com a rede de dependência que será submetido. Além da produção de
compreenderem e atuarem sobre si mesmo e sobre o mundo da vida” (Campos & Amaral,
2007, p. 852). Ou seja, essas duas ampliações trazidas desafiam os trabalhadores em saúde a
lidarem não mais somente com a dimensão biológica da vida, para abarcarem também as
e tomando corpo num Brasil em face de construção de suas políticas públicas. Uma resposta à
que são favoráveis a estimular essa abertura cultural de médicos e de outros profissionais.
biológica” (Campos & Amaral, 2007, p. 853), como, por exemplo, a Psicologia, a
Antropologia, as Ciência Sociais, a própria Saúde Coletiva, há, também, programas e políticas
Fim da pausa.
64
produzem o(s) sujeito(s) da clínica através de alguns enunciados. Diríamos que esta pausa
talvez tenha nos trazido as maiores evidências para identificarmos os elementos que compõem
a “ampliação da clínica”. As dúvidas e colocações nela trazidas, são indícios para algumas
Segundo Campos (2003), “[...] a Clínica segue sendo uma instituição importante e
produzem valores de uso e, inevitável, disputa-se poder” (p. 63). No campo da saúde, vê-se os
jogos de poder através das diversas disciplinas que compõem seu campo. Esses jogos são
(Foucault, 2007) e as práticas que emanam muitas vezes dizem de uma articulação estratégica
seguir, a clínica – que antes era uma clínica médica, voltada ao biológico – amplia-se com a
Veremos que a clínica ampliada nada mais é que uma clínica “biopsico”, onde a
entra na área da saúde através da psicanálise. É através daquela que talvez seja sua
65
ter espaço na saúde. Ou mais ainda, como nos diz Rose (2008), “[porque] a psicologia através
do século XX ajudou a construir a sociedade em que nós vivemos e também o tipo de pessoa
acontecer psíquico. Vale dizer que enquanto a Psiquiatria procedia pelo estabelecimento
sentido possível para eles. Torna-se mais claro que a questão sobre a qual se desenrola o
embate não incide sobre o indivíduo, mas sobre a singularidade do sujeito em sua
Por que precisamos de Clínica Ampliada. Acentua dois aspectos importantes para a resposta:
Interessante apontar, que não somente nesta resposta, mas nas demais respostas às
psicológicos. Como o modelo biomédico tem sofrido muitas críticas dos teóricos da saúde
coletiva, a ênfase dada neste documento recai aos aspectos psicológicos. É nesse sentido que
passaremos a descrever e evidenciar alguns marcadores que nos permitem afirmar que o que
amplia na clínica é a psicologia, isto é, a clínica passa a ser não somente mais uma clínica
66
médica, mas também uma clínica psicológica, ou seja, uma clínica biopsico.
documento nos apresenta talvez de forma mais objetiva aquilo que entende por ampliação da
cada matriz disciplinar (Brasil, 2009, p. 14)”. É através deste enunciado que o documento
evidencia aquilo que ele denomina “compreensão ampliada do processo saúde-doença” (p.
14) – primeiro eixo fundamental descrito. Compreensão ampliada que se limita aos aspectos
psicológicos e biológicos.
Interessante observar que o primeiro material emitido pelo Ministério da Saúde, em 2004,
sobre a clínica ampliada, era nomeado tão-somente de Clínica Ampliada. Em 2009 vimos
Clínica Ampliada vimos ainda uma concepção de sujeito ligada muito mais à crítica ao
causadas por tratamento médico e para não iludir as pessoas (Brasil, 2004a, p. 16).
ampliação, o compartilhamento sugerido pelo documento remete às trocas que podem ser
área, uma vez que Sigmund Freud, médico de formação, e precursor da psicanálise, demonstra
[...] por mais que frequentemente não seja possível, diante de uma compreensão
“profissionais que apresentem algum sintoma para os serviços de saúde mental”, “capacidade
de ajudar cada pessoa a transformar-se”, “sentimentos inconscientes”, “perguntar por que ele
acredita que adoeceu e como ele se sente quando tem este ou aquele sintoma”, “vínculos e
projetos e desejos do usuário”, “fazer a 'história de vida', permitindo que se faça uma
narrativa” – são alguns enunciados que nos permitem falar numa ampliação da clínica através
da psicologia.
da saúde, salientando que os profissionais são “responsáveis por pessoas” (p. 16), não
PNH, que no material emitido em 2004 não apresenta esta interlocução. Vê-se, assim, que a
ampliação da qual o documento nos fala é de uma ampliação no nível das relações, dos
sujeitos.
de sujeitos, produção de subjetividade são discursos que, de modo geral, são atrelados à
psicologia. Como afirma Canguilhem (1972), “[o] declínio da física aristotélica, no século
XVII, marca o fim da psicologia como para-física, como ciência de um objeto natural, e
Rose (2008) nos mostra em seu artigo Psicologia como uma ciência social a
“'psicologização' da vida coletiva” (p. 156), isto é, a forma como problemas sociais são
Assim [...], isso não foi apenas uma questão da psicologia se estabelecer como uma
profissões nas ciências sociais, como disciplinas que tentam exercer sua autonomia
não foi assim. A psicologia foi uma disciplina muito generosa, ela se doou para todos os
pensar e agir, pelo menos de alguma maneira, como psicólogos (p. 156).
gestão em saúde remetem a modelos de dinâmica de grupos propostos pela psicologia. Não é
à toa que a PNH traz em seu subtítulo a humanização enquanto “eixo norteador das práticas
69
(Rose, 2008, p. 157), a psicologia passa a ser incorporada pela saúde coletiva, de forma
estratégica, uma vez que ela poderá dar conta de lacunas ainda existentes no projeto do SUS,
A psicologia ganhou seu poder [na saúde], precisamente pela necessidade desses órgãos
isso, ajudou a dar uma nova legitimidade à autoridade: a autoridade deixou de ser
capacidade de lidar com condutas automatizadas de forma crítica, de lidar com a expressão de
problemas sociais e subjetivos, com família e com comunidade” (Brasil, 2009, p. 17) são
Por fim, o quinto eixo, trata do “suporte para os profissionais da saúde”. Talvez mera
necessário criar instrumentos de suporte aos profissionais da saúde para que eles possam lidar
com as próprias dificuldades, com identificações positivas e negativas, com os diversos tipos
70
ao usuário. Na medida em que governar é exercer uma ação sobre ações possíveis, age-se
sobre os sujeitos que devem ser considerados como livres, como autônomos.
participação e adesão do sujeito no seu projeto terapêutico, maior será o desafio de lidar
com o usuário enquanto sujeito, buscando sua participação e autonomia em seu projeto
de ajudar a pessoa doente a ganhar mais autonomia e lidar com a doença de modo
[...] E poder ajudar a pessoa doente a ganhar mais autonomia e lidar com a doença de
E não são somente as práticas específicas – como a clínica ampliada, por exemplo – que
documento Cartilha Ampliada, reitera que “os valores que norteiam esta política são a
71
autonomia e o protagonismo dos sujeitos” (Brasil, 2004a, p. 3). Ou seja, enquanto uma
democracia liberal de governo, as políticas públicas seguem uma racionalidade onde “noções
racionalizadas que procuram moldar, transformar e reformar indivíduos” (Rose, 2008, p. 158).
1980 e 1990, aparecendo articulada à doutrina neoliberal, pois esta visa maior respeito à
potente para estimular correções de rota, já que seriam eliminados os modelos de gestão
uma vez que proporciona tanto tecnologia humana quanto intelectual para regular cidadãos
modelando essas relações de acordo com uma concepção de como elas funcionam – alinhando
o governo com a dinâmica social daquilo que será governado” (Rose, 2008, p. 159). É a
controle social.
Nesse sentido, “analisar política públicas significa, muitas vezes, estudar o 'governo em
ação'” (Souza, 2006, p. 39). No nosso caso, estudar os efeitos de algumas instituições – como
Interessante perceber que os elementos principais que compõem as políticas públicas nos
ajudam e evidenciar aquilo que Souza (2006) nos coloca como 'governo em ação'. Quais são
eles:
- a política pública permite distinguir o que o governo pretende fazer daquilo que de
fato faz;
72
- a política pública, embora tenha impacto a curto prazo, é uma política de longo prazo.
buscando evidenciar suas intencionalidades. Neste caso, a busca pela produção de uma
possam auxiliar na produção deste sujeito, através de uma clínica não mais focada na doença
si próprios como os sujeitos de suas próprias práticas e das práticas de outros sobre eles
Dessa forma, ao entender a clínica ampliada como “um compromisso radical com o
sujeito doente visto de modo singular; assumir a responsabilidade sobre os usuários dos
serviços de saúde; buscar ajuda em outros setores, reconhecer os limites do conhecimento dos
ético profundo” (Brasil, 2004a, pp. 8-9), as ações governamentais já começam a dar indício de
evidências – tanto no plano acadêmico quanto no plano governamental – que agora passam a
73
tomar outro sentido. Pensar que os teóricos que são reconhecidos no campo da saúde coletiva
foram (e são) vinculados ao governo, faz-nos ler e refletir sobre seus escritos de outra forma.
No momento que escrevem as e sobre as políticas públicas, suas produções seguem uma
dessa forma, quando trazíamos do estranhamento dela não falar sobre a clínica ampliada em
seus artigos, permite-nos pensar que não havia necessidade para isso. Não havia necessidade,
pois a intencionalidade da política era de formar cidadãos autônomos e, dessa forma, falar em
implicação política diz muito mais desta intenção do que falar propriamente o que é a clínica
ampliada. A clínica ampliada é a própria psicologia no espaço das políticas públicas. E isto,
Para mim, o que está em jogo aqui não é a questão psicológica de produção de
“relacionam com seu eu”. Para mim, isso aprece ser uma questão aberta à investigação
histórica – uma história das relações que os indivíduos têm consigo mesmos. A
psicologia nasceu, como uma disciplina, dentro de uma variedade de projetos políticos
para o controle de indivíduos: teve uma vocação social desde o início (Rose, 2008b, p.
158).
terapêuticos singulares, onde há a possibilidade “de uma gestão mais centrada nos fins
(coprodução de saúde e de autonomia) do que nos meios (consultas por hora, por exemplo) e
2009, p. 32).
74
práticas em ato, gerando experiência para ambos os profissionais envolvidos” (Brasil, 2009, p.
33). Além disso, há uma responsabilização da equipe pelo usuário. Ao mesmo tempo em que
entendem que o usuário não será mais atendido, “aos pedaços” (p. 34), o sujeito é de
Vêem-se, mais uma vez, os discursos – que também são práticas – direcionando-se e
minimizar as diferenças)” (Brasil, 2009, p. 40). Uma forma encontrada para também “cuidar
do cuidador”, uma vez que este projeto abre espaço para as trocas entre a equipe e o
participa da construção, pois “o caminho do usuário ou do coletivo é somente dele, e é ele que
dirá se e quando quer ir, negociando ou rejeitando as ofertas da equipe de saúde” (p. 47).
enquanto solução para casos de difícil resolução que esbarram na clínica tradicional. A busca
por autonomia, tanto de usuários quanto trabalhadores, é intensificada nos discursos que
75
circundam o material de 2009. Governar por meio de estratégias de produção de si tem sido,
Cíntia Nasi1
Adriana Serdotte Freitas Cardoso2
Jacó Fernando Schneider3
Agnes Olschowsky4
Christine Wetzel5
RESUMO
A integralidade, no campo da saúde mental, visa permitir o contato e o acolhimento do sujeito em sofrimento
psíquico, com destaque na vertente assistencial, para a construção de redes de atenção integral em saúde mental.
O objetivo com este estudo é refletir sobre o princípio da integralidade e sua inserção na área da saúde mental.
Também se discute sobre esse princípio na rede de serviços substitutivos em saúde mental como dispositivo indicador
de uma nova maneira de pensar e de atenção em saúde mental. Para tanto, faz-se necessário que os profissionais
dos serviços de saúde desenvolvam um atendimento integral aos seus usuários, compartilhando experiências, com
a participação da família e da comunidade.
Palavras-chave: Saúde Mental; Assistência Integral à Saúde; Serviços de Saúde Mental.
ABSTRACT
In mental health care, integrality aims to enable an initial contact of patients with mental suffering. It emphasizes
the assistential service and the construction of full attention networks in mental health. This article aims to reflect
about the concept of integrality and its application in mental health care. It also discusses the importance of integrality
in the network of substitute mental health services as a means of promoting new ways of thinking about mental
health. With this goal, it is necessary that healthcare professionals provide an integral assistance to the patients by
sharing their experiences and stimulating the participation of the family and the community.
Key words: Mental Health; Comprehensive Health Care ; Mental Health Services.
RESUMEN
La integralidad, dentro del campo de la salud mental, tiene por finalidad permitir el contacto y la acogida al sujeto
en sufrimiento psíquico, sobre todo en el aspecto asistencial, para construir redes de atención integral en salud
mental. Este estudio tiene por objetivo reflexionar sobre el principio de la integralidad y su inserción en el ámbito
de la salud mental. Se debate también este principio en la red de servicios sustitutivos en salud mental como
dispositivos indicadores de una nueva forma de pensar y de asistencia en salud mental. Es necesario que los
profesionales de los servicios de salud dispensen atención integral a sus usuarios, compartiendo experiencias con
participación de la familia y de la comunidad.
Palabras clave: Salud Mental; Atención Integral de Salud; Servicios de Salud Mental.
1
Enfermeira. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: cintianasi@yahoo.com.br.
2
Enfermeira. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: aserdotte@hcpa.ufrgs.br.
3
Enfermeiro. Doutor em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). E-mail: jaco_schneider@uol.com.br.
4
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). E-mail: agnes@enf.ufrgs.br.
5
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Departamento de Assistência e Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: cwetzel@ibest.com.br.
Entretanto, a integralidade talvez só se realize com o Torna-se necessário assumir a integralidade como um
estabelecimento de uma relação sujeito-sujeito, quer eixo norteador de novas formas de agir social em saúde,
nas práticas nos serviços de saúde, quer nos debates de uma nova forma de gestão de cuidados nas
sobre a organização dos serviços, quer nas discussões instituições de saúde, permitindo o surgimento de
sobre as políticas.1 experiências inovadoras na incorporação e no
desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais. É
Há necessidade de investimento na rede de serviços de preciso exercitar a prática de compartilhar saberes e
saúde mental tanto em relação a criação de serviços olhar os problemas em conjunto para, assim, cuidar de
que se contraponham à lógica manicomial como na forma integral.
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The Mental Health Care: possible paths in the psychosocial attention’s net
RESUMO: O presente estudo tem como objetivo apresentar reflexões sobre o tema
cuidado em saúde mental. Será discutido o conceito de Clínica Ampliada e a
trajetória da Psicopatologia, perpassando sua posição tradicional, como entidade
que estuda os transtornos mentais e intervém através das práticas curativas, até sua
posição crítica, onde promove uma nova forma de pensar o cuidado com pessoas
em sofrimento psíquico. Muitos desenhos do cuidado já foram pensados e
planejados. Todavia, os diversos olhares transbordam na prática e iluminam os
desencontros epistemológicos. Os caminhos possíveis neste cenário onde tantas
perspectivas se entrelaçam e se chocam são, em alguns momentos, invisíveis, mas
estão lá, à espreita de uma oportunidade para tomar conta do espaço. Neste
sentido, faz-se necessário pensarmos em premissas para que os conflitos
epistemológicos e práticos não absorvam o cuidado em saúde mental à um lugar
ineficaz e perigoso.
Palavras-Chave: Cuidado em Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica. Clínica.
ABSTRACT: The present study aimed to present reflections about mental health
care. The concept of extended clinic and psychopathology trajectory will be
discussed, extending its traditional position as an entity that studies mental disorders
and intervene through curative practices, to its critical position, where it promotes a
new way of thinking about caring for people in distress psychic. Many models of care
have already been thought out and planned. However, the various glances overflow
in practice and illuminate epistemological mismatches. The possible paths in this
scenario where so many perspectives are intertwined, and clashing are at times
invisible, but there are, on the lookout for an opportunity to take charge of space. In
this sense, it is necessary to think of premises so that epistemological and practical
conflicts do not absorb mental health care into an ineffective and dangerous place.
Keywords: Mental Health Care. Psychiatric Reform. Clinic.
Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 1984-2147, Florianópolis, v.10, n.25, p.20-37, 2018.
1 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES
A Ciência da Saúde, assim como qualquer outra área do conhecimento,
evolui, desenvolve-se, ganha novos atores, perde outros, promove discussões
diferentes. Esta ciência percorreu um caminho importante e o positivismo fez parte
da construção do conhecimento da saúde. Para tanto, o pensamento positivista
atravessou a ciência e não seria diferente no que tange as práticas de saúde mental.
Os manuais de classificação dos transtornos mentais fizeram e ainda fazem parte
deste contexto. Assim, o CID-10 e o DSM-V, por exemplo, trazem ainda a busca por
uma classificação dos transtornos mentais, porém devem ser usados com cautela e
não como único instrumento de compreensão dos transtornos mentais. Logo, no
cuidado em saúde mental, buscamos compreender o sujeito em seu sofrimento
psíquico, sua dimensão histórica e social e não o transtorno mental em si,
dissociado da pessoa.
A herança estigmatizante e normativa das classificações servem de
exclusão e enquadramento social, sem compreender a história de vida do sujeito
que sofre e desconsiderando a construção vivencial e familiar. As formas de
avaliação, como nos manuais classificatórios, e mesmo nas práticas terapêuticas,
carregam em sua trama padrões normativos até os dias de hoje (AMARANTE, 1996;
AMARANTE e TORRE, 2007).
O surgimento do movimento da Reforma Psiquiátrica possibilitou um novo
olhar para a saúde mental, para a loucura, para o diferente. Busca ainda uma
mudança epistemológica da compreensão das pessoas que estão em sofrimento
psíquico e uma transição de paradigma. A loucura pode ser compreendida enquanto
fenômeno social. Retomaremos adiante alguns entraves surgidos também com
ideologias vindas da Reforma Psiquiátrica; pois corremos o risco de negar a doença,
idealizar a loucura e minimizar o sofrimento sentido pelo sujeito (CAMPOS, 2001).
De acordo com Bachelar (1996) não podemos invalidar os conhecimentos e
as ciências tradicionais. Para o autor, o surgimento de novas tendências, modelos e
posturas epistemológicas não significa que as antigas serão abandonadas de uma
hora para outra. Isto porque é difícil abrir mão do conhecido, do usual, do habitual.
Contribuindo com esta ideia de Bachelar (1996), Vasconcellos (2002)
também traz discussões epistemológicas importantes para a Ciência da Saúde. A
autora busca apresentar o novo paradigma da ciência, nomeando-o como
pensamento sistêmico. Isto se dá pelo fato de olhar o fenômeno com uma postura
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21
diferente da tradicional. O pensamento sistêmico favorece o pensamento complexo,
onde o foco é relacional; instável, disseminando a ideia de que não existe uma
causa e um efeito único para os acontecimentos e/ou fenômenos.
Neste sentido, suspender a doença e deixá-la entre parênteses, possibilita
compreender a história da pessoa e sua construção social e histórica. Esta postura
frente ao processo saúde/doença promove olhar para o sujeito, transformando a
clínica tradicional da exclusão social e instituindo a ruptura epistemológica com o
modelo hospitalocêntrico e medicalizante. (AMARANTE e TORRE, 2007).
2 CIÊNCIA TRADICIONAL
O nascimento da Psicopatologia ocorre no século XIX e é concomitante com
a história da loucura, que tem a área médica, mais especificamente a psiquiatria,
como sua detentora. Nesse período, a doença mental tinha como referência o
homem natural e normal, e este era o estado que precedia a doença. Essa
compreensão desvela o caráter positivista da Psicopatologia da época (MOREIRA,
2002).
A função da Psicopatologia Positivista era a teorização dos transtornos
mentais e da psiquiatria e da Psicologia clínica era a terapêutica, a explicação era
necessária, por vezes havia confusão em relação as finalidades de cada área. A
classificação a que a Psicopatologia da época proponha era identificar os sintomas
como normal e patológico. Estudos realizados por Canguilhem (1946), apontavam
que não era a ciência detentora do saber sobre o normal e patológico e sim a vida
enquanto um sistema de valores (MOREIRA, 2002).
As formas de avaliação, como os manuais classificatórios, e mesmo as
práticas terapêuticas são normativas ainda hoje. “Desta forma, é possível perceber
com clareza uma história dos processos avaliativos que demonstra a natureza
normativa e positivista do campo da avaliação e suas práticas” (AMARANTE e
TORRES, 2007, p. 42)
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com o tratamento despendido aos pacientes com transtornos psíquicos nos hospitais
e busca serviços substitutivos à internação psiquiátrica (AMARANTE, 2007).
A busca pela desinstitucionalização acontece devido à prática de poder
exercido pela psiquiatria da época, sendo que os pacientes ficavam longos períodos
internados e eram rendidos a coerção e submissão do modelo psiquiátrico . Assim,
há uma negação do saber psiquiátrico como ideologia e superação do paradigma
psiquiátrico (AMARANTE, 1996; COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2003):
No Brasil, o movimento aconteceu no final dos anos 80. Surge, então, a
possibilidade de cuidar das pessoas denominadas loucas longe da clausura dos
hospitais. Impossível desconsiderar os impactos dos movimentos da Luta
Antimanicomial e Reforma Psiquiatria em nosso contexto atual.
As Políticas de Saúde Mental, que promovem a reinserção psicossocial,
estão em concordância com as inquietações de Amarante (1996) quando o autor
discute sobre a desinstitucionalização da saúde mental e dos sujeitos em sofrimento
psíquico. Para o autor, a desinstitucionalização se dá a partir de algumas facetas:
epistemológica, técnico-assistencial, jurídico-política e cultural.
Entretanto, é na dimensão cultural, segundo Amarante (1996), que se
concretiza a desinstitucionalização. Neste lugar que está a transformação do
imaginário social sobre a loucura. Isto se dá através da aproximação do cuidado em
saúde mental nos diversos níveis de cuidado em saúde (UBS e outros espaços); dos
movimentos sociais, da inclusão social do sujeito em sofrimento psíquico nos
espaços sociais, etc.
No entanto, muito ainda é necessário para avançar no cuidado do sujeito em
sofrimento psíquico. Estudos demonstram a dificuldade dos profissionais em
compreender o processo de cuidado e de atenção psicossocial e ampliado. Isto se
dá pelo novo olhar e prática pensados nesse contexto, incluindo também nova
formação profissional e treinamentos nos dispositivos de saúde (DIMENSTEIN et.
al., 2012; RÉZIO et. al., 2015; PEIXOTO et. al., 2016; VASCONCELOS et. al., 2016;
LIMA et. al., 2013; ELY et. al., 2014; PEREIRA e SANTOS, 2012; CHAVES e
PEGORARO, 2013).
A transição paradigmática em que estamos vivendo pode ser compreendida
quando atentamos para a história da loucura e do cuidado das pessoas em
sofrimento psíquico até os tempos atuais. Estamos numa constante contradição e
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tensionamento entre as práticas positivistas e as práticas psicossociais. Como
afirma os autores,
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24
4 O CAMINHO DA CLÍNICA PSICOSSOCIAL: A CLÍNICA AMPLIADA
A palavra clínica apresenta diversos significados. Apresentaremos aqui o
significado que contribui para os fins da Reforma Psiquiátrica. Assim, como o
desenvolvimento da ciência, como discutimos no início deste artigo, o significado de
clínica também passou por transições importantes, seguindo assim a potencialidade
das práticas e fazeres que vislumbram o cuidado com os sujeitos em sofrimento
psíquico.
A clínica ainda é vista por muitos profissionais da Reforma Psiquiátrica e
mesmo pelos profissionais da Saúde Pública como terapêutica, ineficiente e elitista.
Isso talvez decorra dos resquícios vindos da clínica psiquiátrica e da sua construção
de uma clínica voltada para a pessoa, para o individual.
Num primeiro momento, onde a ciência da saúde se dá de forma positivista,
objetiva e pragmática, a interrupção dos sintomas tem maior importância do que o
cuidado do sujeito na sua integralidade. A eficiência e a produção são vistas como
objetivo primordial na degradação da clínica. Esta clínica trabalha com a produção
de saúde de modo padronizado, ou seja, o interesse volta-se à economia
corporativa, independente da necessidade e da vontade da pessoa (CAMPOS,
2001).
A clínica tradicional trata o indivíduo, o interno, fazendo uma cisão entre
“dentro” e “fora” da pessoa. Essa forma de pensar se apóia numa ideologia de
construção biológica da loucura e culpabilização do sujeito por ser louco. No século
XX Freud com a psicanálise faz o resgate da escuta, nesse mesmo momento faz
uma cisão da subjetividade e do biológico e até hoje proporciona esse olhar
(CAMPOS, 2001).
Na década de sessenta, na América Latina, surgem os trabalhos da
epidemiologia social, decorrentes da medicina social, o que de alguma forma
persiste cindindo o homem, seu olhar é voltado para os grupos e comunidade com
bases epidemiológicas, criticando o fazer clínico. Criou-se um tensionamento entre a
clínica individual e as práticas coletivas e ambas acabam por exercer um
reducionismo frente ao sujeito. Ou só o individual está em questão ou só a
construção coletiva (CAMPOS, 2001).
Muitas vezes, quando falamos da influência social na construção da doença,
compreende-se, erroneamente, que a doença não faz parte do sujeito ou não deve
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ser levada em conta. Não podemos negar a doença, esta faz parte do contexto de
vida da pessoa, mas não só a doença, mas sim o sofrimento psíquico do sujeito.
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26
O radical Klin traz a ideia de inclinação, não para baixo, mas para os lados,
no sentido de bifurcação, divergir, de buscar novos sentidos. E é a partir deste
significado que a Clínica Ampliada vai tomando forma. Teríamos assim uma das
acepções fundamentais, alcançando uma dimensão criativa, oportunidades de
transformação de estados e situações insustentáveis (COSTA-ROSA, LUZIO e
YASUI, 2003).
Aqui também não se trata mais de uma clínica do olhar, mas da escuta, ou
do ‘olhar’ que vai além do sintoma. A clínica como encontro, capaz de produzir
senso, sentidos; produção de sentidos no lugar de reprodução; como lugar onde as
identidades dos participantes já não estão predefinidas (COSTA-ROSA, LUZIO e
YASUI, 2003)
Seguindo esta discussão, Campos (2013) evidencia as ideias de Basaglia ao
discutir o que é a Clínica e qual o papel que esta tem no processo terapêutico do
sujeito que apresenta sofrimento psíquico. Segundo o autor, Basaglia fundamenta
sua teoria, prática e discussões nas ideias de Antônio Gramsci e de Sartre.
Basaglia procurou em Gramsci suporte para repensar as instituições e as
práticas sanitárias. Antônio Gramsci acreditava no potencial criativo das massas,
dos agrupamentos e dos indivíduos. Ressaltava a importância em pensar nas
diversas possibilidades em fazer história incluindo os espaços da sociedade como
lugares onde se dá a criação de novas ou o enrijecimento das velhas formas de
dominação (CAMPOS, 2013).
Porém, a leitura de Gramsci dá conta da complexidade das relações sociais
e não aprofunda-se sobre como se dá a produção dos sujeitos. Desta forma,
Basaglia ampara-se na teoria de Sartre para discutir o papel do sujeito quanto à
construção de Sentido ou de Significado para as coisas ou para os fenômenos. O
sujeito, então, seria responsável por tudo àquilo que acontecera com ele (CAMPOS,
2013).
Partindo destas ideias, Basaglia repensa políticas e práticas em saúde. A
partir destas reflexões, o autor, segundo Campos (2013), considera a doença como
fazendo parte de um contexto maior, o Sujeito e seu mundo. A clínica aqui se dá
através da reprodução social do paciente, trabalhando junto ao paciente seu
protagonismo e considerando este sujeito com direitos, cidadão.
Nessa perspectiva, trabalha-se pela busca da autonomia e reformulação de
suas vivências. Logo, para a prática da Clínica Ampliada ou clínica psicossocial, é
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preciso partir da compreensão da Psicopatologia Crítica que entende o sofrimento
da pessoa por meio da sua existência e de suas relações com o mundo. Passa-se a
compreender a integração da dimensão social nas enfermidades (COSTA-ROSA,
LUZIO e YASUI, 2003).
5 OS CAMINHOS TRILHADOS
Os caminhos trilhados para o desenvolvimento do cuidado em Saúde Mental
começam muito antes da Reforma Psiquiátrica no Brasil. O Sistema Único de
Saúde, conforme Lei nº 8080 (Brasil, 1990), prioriza a saúde como direito civil de
todos - dever do Estado – e norteia todas as ações da Saúde Mental nos
dispositivos de saúde; sejam eles na atenção básica ou na alta complexidade (PAIM,
2009).
Os princípios norteadores do SUS, que promovem o cuidado, são:
universalidade, integralidade e equidade. Estes princípios garantem aos cidadãos o
acesso livre aos serviços, com um olhar para o ser humano como ser total e
conforme suas necessidades e realidades. O SUS também estabelece diretrizes a
fim de fundamentar o processo de cuidado: regionalização, hierarquização,
descentralização, racionalização e resolução, complementaridade do setor privado e
a participação da comunidade na construção e fiscalização do SUS (PAIM, 2009).
O trabalho em saúde se difere do trabalho das ciências exatas. Para Merhy
(2014), o processo de cuidado em saúde acontece por meio do encontro do
profissional e sujeito que busca os serviços de saúde. Assim, os atos de cuidar 1 se
dão a partir do manejo do profissional no desenho deste encontro.
Campos (2013) deixa claro que a Clínica Ampliada não se dá através do
esquecimento dos saberes médicos, das generalidades diagnósticas, mas sim pela
escuta qualificada dos sintomas e do contexto do usuário que está no encontro com
o profissional. Para além da categorização, indo ao encontro da construção coletiva
da compreensão dos casos na equipe de saúde, diluindo as responsabilidades nos
dispositivos, com coparticipação das diversas áreas da saúde que permeiam o
cuidado em saúde.
A Política Nacional de Saúde Mental tem conquistado espaço no campo das
Políticas Públicas voltadas às pessoas em sofrimento psíquico a partir da Luta
1
Expressão utilizada pelo autor (MERHY, 2014) para designar os atos dos profissionais que visão
cuidar do usuário.
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Antimanicomial e com a Reforma Psiquiátrica. Desde a Lei 10.2016 de abril de 2001,
que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas em sofrimento psíquico e
redireciona o modelo assistencial em Saúde Mental, a atenção psicossocial vem
sofrendo mudanças significativas. A construção de Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) inicia com o intuito de prestar cuidado às pessoas em sofrimento psíquico.
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), conforme a Portaria N 3.088, de
dezembro de 2011, surge com o objetivo de descentralizar o cuidado em Saúde
Mental e o direciona para o território. Atualmente a RAPS é constituída pela atenção
básica em saúde, atenção psicossocial estratégica, atenção de urgência e
emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar,
estratégias de desintustionalização, estratégia de reabilitação psicossocial.
Com a constituição da RAPS outros serviços passam a fazer parte da
atenção psicossocial, buscando atender a pessoa em seu território. Dessa forma,
além do CAPS, é possível acessar outros serviços de cuidado em atenção
psicossocial em seu território.
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29
A compreensão de RAPS do Conselho Federal de Psicologia inclui outros
componentes em relação ao Ministério da Saúde. O CFP (Conselho Federal de
Psicologia) tem como ponto de partida, como exposto na figura 1, incluindo além das
esferas da saúde, também áreas da Educação, Assistência, Social, Segurança
Pública, Recursos Comunitários, Idosos, Associações e Ong`s, Mulheres, Cultura,
Lazer e Esporte. Assim, podemos pensar a Atenção Psicossocial de modo mais
ampliado e com a participação de outras áreas.
Figura 1 – Rede de Atenção Psicossocial na concepção do CFP:
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30
Desta forma, os dispositivos da rede, assim como os profissionais de saúde, são
direcionados a um movimento de tessitura de suas práticas, intervenções e
compreensão do sofrimento psíquico a partir da lógica de cuidado ampliado.
6 OS CAMINHOS POSSÍVEIS
Muitos desenhos do cuidado já foram pensados e planejados. Todavia, os
diversos olhares transbordam na prática e iluminam os desencontros
epistemológicos. Os caminhos possíveis neste cenário onde tantas perspectivas se
entrelaçam e se chocam são, em alguns momentos, invisíveis, mas estão lá, à
espreita de uma oportunidade para tomar conta do espaço.
Neste sentido, faz-se necessário pensarmos em premissas para que os
conflitos epistemológicos e práticos não absorvam o cuidado em Saúde Mental à um
lugar ineficaz e perigoso. Começaremos pelo território, onde “é o lugar psicossocial
do sujeito; é onde a vida acontece” (BRASIL, 2005, p. 13). Trazer o território como
balizador do cuidado em Saúde Mental nos proporciona pensar o sujeito em uma
totalidade. Um território, uma comunidade, um bairro, uma rua, uma vizinhança, um
número da casa. Instiga, desta forma, o olhar singular, cuidadoso para a história do
sujeito que experiência o sofrimento psíquico.
Pensar sobre o território nos obriga a questionar o cuidado através do
diagnóstico e da normatização de sintomas. Uma vez que eu olho o sujeito singular
e único, eu incluo no meu diagnóstico e na minha prática as minúcias desta
construção social do sofrimento psíquico e introduzo na minha prática as perguntas
para além dos sintomas, por exemplo, como acontece esse sofrimento? Para que
este sofrimento neste lugar? De que forma este sofrimento atinge este lugar, esta
família? De que forma isto foi construído? Será que existem outras pessoas que
apresentam sofrimentos semelhantes a estes? Como a família vê e lida com este
sofrimento? São questionamentos que vão tecendo uma nova perspectiva
epistemológica do cuidado.
Como você pôde observar, destacamos os “estes” e “istos” das perguntas
instigadoras. Por quê? Para quê? Bom, discutiremos, então, sobre outra premissa
importante para guiar a prática do cuidado em Saúde Mental com cuidado.
Pensamos que o diagnóstico faz parte do cuidado. Negar o diagnóstico e os
sintomas é o descuidado. Aproximarmo-nos de Amarante (1995) para refletir sobre
Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 1984-2147, Florianópolis, v.10, n.25, p.20-37, 2018
31
este tema. O autor contribui no que diz respeito ao cuidado para além da
administração de fármacos e sintomas/diagnósticos:
O que quer dizer tudo isto? O novo caminho do cuidado em Saúde Mental
busca agregar novas práticas, sem deixar de lado o já conhecido pelas Ciências da
Saúde. Não nega o conhecimento construído do cuidado biologicista, onde o foco do
cuidado é eliminação de sintomas. Mas promove uma reflexão sobre a construção
social e histórica do sujeito, construindo possibilidades diferentes de se colocar no
mundo.
A próxima premissa seria a participação e autonomia do sujeito para
construir possibilidades, estratégias, planos terapêuticos. Ou seja, estar presente e
se fazer presente nas escolhas do seu cuidado. Neste sentido, se apoiando no seu
conhecimento adquirido durante a formação profissional e prática, a equipe torna-se
facilitadora e mediadora do cuidado. O profissional não é o processo, mas sim faz
parte do processo de cuidado.
Vasconcelos (2003) busca através do empoderamento o “aumento do poder
e autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações
interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de
opressão, dominação e discriminação social” (p. 20). Pensar o empoderamento da
pessoa em sofrimento psíquico, no cuidado em Saúde Mental, possibilita a ela fazer
parte do seu processo de cuidado, refletindo, pensando, criando, visualizando novos
olhares sobre o seu território, suas escolhas, sua família e sobre si mesmo. Assim, o
empoderamento promove a mudança do sujeito.
Outro caminho importante para o cuidado em Saúde Mental é o trabalho em
equipe. Trabalhar em equipe no cuidado em saúde, e não somente em Saúde
Mental, é muito mais do que o envolvimento de conjunto de profissionais de áreas
diferentes que atuam num espaço em comum com uma população específica. O
cuidado em equipe requer um afinamento respeitoso. Não significa que o
profissional A precisa pensar igual ao profissional B, muito pelo contrário.
No entanto, existem parâmetros e normas reguladoras do cuidado inerentes
a cada classe profissional. Desta forma, o cuidado, primeiramente, deve ser pautado
Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 1984-2147, Florianópolis, v.10, n.25, p.20-37, 2018.
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conforme a ética dos conselhos regionais e federais das respectivas áreas de
conhecimento. À exemplo, partindo da experiência das autoras deste artigo,
trazemos a Psicologia enquanto ciência e profissão que, apesar da multiplicidade de
olhares à respeito do cuidado em Saúde Mental, traz diversas normas reguladoras
das práticas em saúde do profissional psicólogo. Segundo o material construído pelo
CREPOP (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas, 2013),
a atuação nos espaços de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e de
rompimentos paradigmáticos do dito louco e da saúde/doença, tem de visar suas
estratégias de reinserção psicossocial para a cidade e não institucionalizar
novamente o cuidado e o tratamento no CAPS.
A interdisciplinaridade deve entrar como viabilizador da própria
desinstitucionalização. De acordo com o material do CREPOP (2013), a atuação do
profissional no serviço deve ser guiada não por teorias ou áreas do conhecimento,
mas sim pela desconstrução social da loucura e do dito louco. Não obstante, as
práticas devem ser pensadas para além do espaço físico do CAPS, porém com uma
equipe que secretaria este sujeito viabilizando o empoderamento e o protagonismo
social.
Desta forma, Bachelar (1996) discute que é impossível invalidar os
conhecimentos e as ciências habituais. Quando surgem novas tendências
epistemológicas, torna-se difícil abrir mão das compreensões e práticas ensinadas e
vivenciadas, uma vez que é irresistível presumir o jeito aprendido como o jeito mais
correto. Para tanto, o cuidado em saúde, aqui mental, é esse conjunto de saberes e
práticas, onde existe o biológico, o emocional, o ocupacional, o físico, a arte. É um
híbrido de saberes que juntos proporcionam o cuidado.
Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 1984-2147, Florianópolis, v.10, n.25, p.20-37, 2018
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construída na família e na comunidade. Somos sujeitos e sujeitados. Ao mesmo
tempo que construímos, também somos construídos.
A busca por um novo fazer na clínica, possibilita uma compreensão mais
ampliada da vivência de quem sofre. Neste sentido, refletir sobre o que baliza este
novo cuidado e esta nova clínica nos coloca em um lugar de constante busca e
compreensão. Apresentamos neste artigo as premissas para o caminho do cuidado
em Saúde Mental como partindo do território, do cuidado para além da
administração dos fármacos (desinstitucionalização), do empoderamento do sujeito
em sofrimento psíquico e do trabalho em equipe com uma postura respeitosa e
agregadora.
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37
MERHY, Emerson Elias & FRANCO, Túlio Batista
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
RESUMO
Emerson Elias Merhy1
Túlio Batista Franco2 A idéia central do artigo sugere que, ao realizar o cuidado, o trabalhador
opera um núcleo tecnológico no seu processo de trabalho, composto por
‘trabalho morto’ (instrumental) e ‘trabalho vivo’ em ato. Os dois formam
uma certa razão entre si, à qual chamamos de Composição Técnica do Trabalho
(CTT), que pode trazer a hegemonia do ‘trabalho morto’, quando o modelo
assistencial se caracteriza como médico-hegemônico, produtor de
procedimentos. A mudança do modelo assistencial pressupõe impactar o
núcleo do cuidado, compondo uma hegemonia do ‘trabalho vivo’ sobre
o ‘trabalho morto’, quando então se caracteriza uma ‘transição tecnológica’,
que no conceito aqui trabalhado, significa a produção da saúde, com base
nas tecnologias leves, relacionais, e a produção do cuidado de forma
integralizada, operando em ‘linhas de cuidado’ por toda a extensão dos
serviços de saúde, centrado nas necessidades dos usuários.
ABSTRACT
1 Médico sanitarista, professor livre The core idea of this article suggests that when performing care, the worker
docente da Universidade Estadual de operates a technological core within his/her work process, composed of a
Campinas (UNICAMP)
Dead Work (instrumental) and a Live Work. Both types form a certain reason
Departamento de Medicina Preventiva da
UNICAMP between them, which we call Technical Work Composition (CTT), that can
Rua Ana Fratta de Paula, 176 turn Dead Work homogeneous when the assistance-based model is
CEP 13104-028 – Rio de Janeiro – RJ characterized as a hegemonic physician, producer of processes. The change in
e-mail: emerhy@fcm.unicamp.br
the assistance-based model must cause impacts on the care core, turning
2
Psicólogo sanitarista, doutor em Saúde Live Work hegemonic over Dead Work, and this moment is called Technological
Coletiva pela Universidade Estadual de
Transition, which in the concept handled here means the production of health
Campinas (UNICAMP)
Assessor da Secretaria Municipal de based on light and relationship-based technologies and the production of
Saúde de Belo Horizonte care in an integral way, operating in “lines of care” throughout the health
Rua das Flores, 365/103 services, based on the users’ needs.
CEP 30460-210 – Belo Horizonte – MG
e-mail: tuliofranco@uol.com.br
316 Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003
Por uma Composição Técnica do Trabalho em Saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças para os modelos tecno-assistenciais
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003 317
MERHY, Emerson Elias & FRANCO, Túlio Batista
como o saber da análise institucio- duz centrada no ato prescritivo, com- gular como cada profissional aplica
nal, que recentemente vem sendo in- pondo um modelo que tem, na sua seu conhecimento para produzir o
corporado ao campo de debate em natureza, o saber médico hegemôni- cuidado (M ERHY, 1997).
torno da saúde (L’ABBATE, 2003). co, produtor de procedimentos. Por Historicamente, a formação do
outro lado, estas podem se dar como modelo assistencial para a saúde
A MICROPOLÍTICA DE ORGANIZAÇÃO relações intersessoras estabelecidas
1
esteve centrado nas tecnologias du-
DO TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO no trabalho em ato, realizado no cui- ras e leve-duras, visto que, aquele
DO MODELO ASSISTENCIAL dado à saúde (MERHY, 2002). A estas, se deu a partir de interesses corpo-
chamamos de tecnologias leves, pelo rativos, especialmente dos grupos
Olhando sobre a conformação seu caráter relacional, que a coloca econômicos que atuam na saúde.
dos modelos assistenciais, com foco como forma de agir entre sujeitos tra- No plano da organização micropo-
na micropolítica de organização dos balhadores e usuários, individuais e lítica do trabalho em saúde, este
processos de trabalho, temos como coletivos, implicados com a produ- modelo produziu uma organização
primeira referência as contribuições do trabalho com fluxo voltado à
de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves consulta médica, em que o saber
(1994) que trouxe para este campo médico estrutura o trabalho de ou-
de análise, os conceitos de ‘tecnolo- tros profissionais, ficando a produ-
gias materiais’ para os instrumen- O TRABALHO EM SAÚDE É SEMPRE ção do cuidado dependente de tec-
tos e ‘tecnologias não-materiais’ para nologias duras e leve-duras.
RELACIONAL , PORQUE DEPENDE DE
o conhecimento técnico usados na Observando o fazer cotidiano de
produção da saúde. ‘TRABALHO VIVO ’ EM ATO , ISTO É, um trabalhador da saúde, no seu
Nossas observações têm concluí- O TRABALHO NO MOMENTO EM micro-espaço de trabalho, em espe-
do que, para além dos instrumentos cial a micropolítica que ali se desen-
QUE ESTE ESTÁ PRODUZINDO
e conhecimento técnico, lugar de tec- volve, temos constatado que, ao re-
nologias mais estruturadas, há um alizar o cuidado, ele opera, no seu
outro, o das relações, que se tem processo de trabalho, um núcleo tec-
verificado como fundamental para a nológico composto de ‘trabalho mor-
produção do cuidado. Partimos do ção do cuidado. As tecnologias ins- to’ (TM) e ‘trabalho vivo’ (TV) (FRAN-
pressuposto que o trabalho em saú- critas nos instrumentos, identifica- CO, 2003). No caso, ‘trabalho morto’
de é sempre relacional, porque de- mos como tecnologias duras, porque são os instrumentos, e é definido as-
pende de ‘trabalho vivo’ em ato, isto já estão estruturadas para elaborar sim porque sobre eles já se aplicou
é, o trabalho no momento em que este certos produtos da saúde, e ao co- um trabalho pregresso para sua ela-
está produzindo. Estas relações po- nhecimento técnico, identificamos boração. ‘Trabalho vivo” é o traba-
dem ser de um lado, sumárias e bu- uma parte dura (estruturada e outra lho em ato, campo próprio das tec-
rocráticas, onde a assistência se pro- leve, que diz respeito ao modo sin- nologias leves (MARX , 2001; MERHY,
1
“Intersessoras está sendo usado aqui com sentido semelhante ao de Deleuze, no livro Conversações, que discorre sobre a interseção que
Deleuze e Guattari constituíram quando produziram o livro Antiedipo, que não é um somatório de um com outro e produto de quatro mãos,
mas um ‘inter’, interventor. Assim, uso esse termo para designar o que se produz nas relações entre ‘sujeitos’, no espaço das suas interseções,
que é um produto que existe para os ‘dois’ em ato e não tem existência sem o momento da relação em processo, e na qual os inter se colocam
como instituintes na busca de novos processos, mesmo um em relação ao outro” (M ERHY, 2002. p. 50-51).
318 Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003
Por uma Composição Técnica do Trabalho em Saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças para os modelos tecno-assistenciais
2003). Este encontro em TM e TV no miliares, uma dada subjetividade que campos de necessidades relaciona-
interior do processo de trabalho re- expressa sua história e, portanto, este dos acima. Observamos que o ins-
flete uma certa correlação entre eles, conjunto deve ser olhado. Aqui ele tra- trumental e o ‘trabalho vivo’ estão
no núcleo tecnológico do cuidado. A balha com a transferência de conhe- juntos no processo de trabalho, mas,
esta correlação chamamos de Com- cimentos para o auto-cuidado, formas ao mesmo tempo, o TV exerce hege-
posição Técnica do Trabalho (CTT), diversas de intervir sobre sua subjeti- monia sobre o TM.
isto é, a CTT é a razão entre TM e TV. vidade, valorizando-o e aumentando Importa registrar que a CTT não é
Inferimos daí que a Composi- sua auto-estima e, assim, de forma mensurável, é um analisador quali-
ção Técnica do Trabalho, quando criativa, o projeto terapêutico deve ter tativo das tecnologias de cuidado
favorável ao ‘trabalho morto’, re- o objetivo de realizar ganhos de au- presentes no processo de trabalho
flete um processo de trabalho, tec- tonomia para viver a vida. (F RANCO, 2003). Se a razão existente aí
nologias duras dependente, volta- No segundo caso, há um proces- estiver centrada no ‘trabalho vivo’, é
do à produção de procedimentos e so de trabalho cujo núcleo de tecno- indicador que a relação entre traba-
quando, ao contrário, houver pre- lhador e usuário, para a produção da
dominância do ‘trabalho vivo’ em saúde, se dá sob parâmetros de im-
ato, haverá uma produção do cui- plicação mútua, no reconhecimento
dado centrado nas tecnologias le- que ali há o encontro de sujeitos que
ves. Como exemplo, utilizamos o O MODELO ASSISTENCIAL têm juntos protagonismos na produ-
trabalho de um profissional da
QUE ADVOGAMOS, PORTANTO, ção da saúde e, sobretudo, estão pre-
saúde, para atender à necessidade sentes diretrizes de intervenção/rela-
do usuário, no cuidado à hiperten-
DEVE OFERTAR TODOS OS ção de acolhimento, estabelecimento
são arterial. Aqui podemos dizer que RECURSOS TECNOLÓGICOS de vínculo e responsabilização.
pode haver duas alternativas de O modelo assistencial que ad-
AOS CUIDADO DOS USUÁRIOS
projeto terapêutico: 1 ) ele cuida do
a
vogamos, portanto, deve ofertar
problema de saúde, utilizando quase todos os recursos tecnológicos aos
exclusivamente dos exames e medi- cuidado dos usuários e mesmo
camentos, e tem um processo de tra- que este necessite, para sua assis-
balho centrado no ato prescritivo. Nes- logias está centrado no ‘trabalho tência, de insumos de alta tecno-
te caso, o núcleo tecnológico do cui- vivo’, formas de abordagens mais logia, o processo de trabalho pode
dado está centrado no ‘trabalho mor- relacionais, operando dentro da ainda ter no seu núcleo de cuida-
to’ (instrumental); 2 ) ele trabalha um
a
idéia de que no encontro entre tra- do, a hegemonia do ‘trabalho vivo’,
projeto terapêutico mais relacional balhador e usuário, este é também desde que aquela seja a necessi-
com o usuário e, mesmo utilizando- sujeito da produção da saúde e dade real do usuário e o acesso à
se do instrumental (exames e medi- pode, desta forma, ser também pro- mesma e sua utilização sejam sus-
camentos), reconhece que aquele usu- tagonista de atos cuidadores, gera- tentados pelo encaminhamento se-
ário, além de apresentar um proble- dores de autonomia. Esta forma de guro e trânsito tranqüilo em uma
ma de saúde, traz consigo uma certa agir para a produção do cuidado é dada ‘linha do cuidado’ que garan-
origem social, relações sociais e fa- capaz de intervir sobre os quatro ta a integralidade da atenção 2, isto
2
Sobre Integralidade e Linhas do Cuidado, ver Cecílio e Merhy (2003); Franco e Magalhães Júnior (2003).
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003 319
MERHY, Emerson Elias & FRANCO, Túlio Batista
é, o seu ‘caminhar na rede assis- vas tecnologias na produção da as- do modo de produzir saúde, no en-
tencial’ acompanhado pelo profis- sistência em dois hospitais, um pú- tanto, a micropolítica de organiza-
sional ou pela equipe com a qual blico e outro privado. No caso anali- ção do trabalho revela, especialmen-
formou seu vínculo, onde esta se sado, é notório o impacto que cau- te na atividade clínica, um núcleo
responsabiliza pelo encaminhamen- sa a incorporação tecnológica no do cuidado que continua operando
to do seu projeto terapêutico. É hospital, mudando o processo de um processo centrado na lógica ins-
como se houvesse um lastro de cui- trabalho, mas ao mesmo tempo, o trumental de produção da saúde
dado, sustentando todos os atos as- núcleo tecnológico do cuidado per- (F RANCO ; MERHY , 2003).
sistenciais ao usuário, o que pres- manece inalterado, isto é, centrado A saúde suplementar tem rees-
supõe a freqüente presença do ‘tra- no trabalho morto, pouco relacio- truturado sua produção, com o ob-
balho vivo’, a sustentar o princípio nal, o que revela a captura do ‘tra- jetivo de impactar os custos da as-
da integralidade da assistência e a balho vivo’ pelo instrumental, a sistência à saúde. Isto vem sendo
operação das linhas de cuidado. feito, introduzindo no campo da
micro-regulação do trabalho, dire-
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E trizes do managed care, que pres-
TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA: PENSANDO supõe o controle do ato prescritivo
A MUDANÇA NA SAÚDE, A PARTIR DA do médico, com base em protocolos
MICROPOLÍTICA DO PROCESSO A SAÚDE SUPLEMENTAR técnicos e a auditoria de um admi-
DE TRABALHO nistrador, ao qual, muitas vezes, é
TEM REESTRUTURADO SUA
delegado o poder de autorizar pro-
O debate em torno da reestrutu- PRODUÇÃO, COM O OBJETIVO cedimentos que fogem à norma pre-
ração produtiva da saúde vem se DE IMPACTAR OS CUSTOS viamente estabelecida. No entanto,
colocando em torno da discussão a produção do cuidado continua ten-
DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE
dos modelos tecno-assistenciais. do a hegemonia das tecnologias
Entendemos que a Reestruturação duras, apesar de haver impacto im-
Produtiva é caracterizada por um portante no processo de trabalho do
modo de produzir saúde, diferente médico, especialmente pela captura
de um certo modelo adotado em não valoração da tecnologia leve no do seu micro processo decisório.
momento anterior, em uma dada processo produtivo. (IRIART, 1999; MERHY , 2002).
unidade produtiva de saúde, que Outro processo de Reestrutura- Em todos estes casos, observa-
impacta processos de trabalho, sem ção Produtiva pode ser verificado mos que há mudanças em curso, a
no entanto operar uma mudança na no Programa Saúde da Família, que partir da alteração verificada no pro-
Composição Técnica do Trabalho em muitos casos, muda a forma de cesso de trabalho, mas ao mesmo
(CTT). Identificamos que há vários produzir, sem no entanto alterar o tempo, a Composição Técnica do
processos de Reestruturação Produ- processo de trabalho centrado nas Trabalho, isto é, a razão entre ‘tra-
tiva da saúde, em curso no Brasil. tecnologias duras. A formação da balho vivo’ e ‘trabalho morto’, no
Para ficarmos em três exemplos, de equipe, o deslocamento do traba- núcleo do cuidado, permanece sob
lugares diferentes, mencionamos o lho para o território e o incentivo hegemonia do segundo, nos revelan-
trabalho de Pires (1998) que relata ao trabalho de vigilância à saúde, do que não há uma alteração estru-
o processo de incorporação de no- dão uma idéia de que há mudança tural no modo de produzir saúde.
320 Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003
Por uma Composição Técnica do Trabalho em Saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças para os modelos tecno-assistenciais
O trabalho executado a partir da re- dutiva e Transição Tecnológica), mas ção secundária não teve o mesmo
lação entre sujeitos, acolhedor e pro- ao debruçarmos sobre os efeitos que tratamento por parte dos formula-
dutor de vínculo com responsabili- têm no cuidado ao usuário, um pro- dores das políticas de saúde, tendo
zação sobre a clientela, acompa- cesso produtivo guiado por uma ló- as formulações para gestão deste
nhando projetos terapêuticos cuida- gica instrumental e outro, por ‘tra- nível de cuidado, centrado sua aten-
dores, é suprimido por uma lógica balho vivo’ em ato, que pressupõe ção na questão da oferta e deman-
instrumental, tecnologias duras cen- uma lógica relacional, tecnologias da, sem no entanto avançar para
tradas, realizado a partir do ato leves dependentes, observamos que imaginar um cenário de construção
prescritivo. A mudança verificada são dois mundos muito distintos. de um modelo mais interativo com
nestes casos não chega a alterar de os outros equipamentos. A integra-
fato as estruturas do modelo assis- O TRABALHO VIVO COMO lidade pressupõe e, portanto, exige
tencial vigente, médico hegemônico POTÊNCIA INSTITUINTE PARA A um esforço em entender este outro
produtor de procedimentos. MUDANÇA DO MODELO ASSISTENCIAL conjunto de saberes e práticas no
A reestruturação produtiva pode cuidado à saúde. Ao mesmo tempo
vir a produzir mudanças no núcleo estes serviços têm sido um ‘nó críti-
tecnológico do cuidado, compondo co’ para gestores e usuários, onde
uma hegemonia do ‘trabalho vivo’ esses têm o seu ‘caminhar na rede’
e, neste caso então, passamos a tra- O TEMA DA INTEGRALIDADE dificultado por falta de integração
balhar com outro conceito, que aju- destes recursos assistenciais.
DA ATENÇÃO À SAÚDE GANHA
da a pensar a mudança neste nível, O tema da integralidade da aten-
no modo de produzir saúde, que é o RELEVÂNCIA E VEM SE PRODUZINDO ção à saúde ganha relevância e vem
de Transição Tecnológica. Esta é EM TORNO DE UMA IMAGEM DE se produzindo em torno de uma ima-
caracterizada por mudanças no gem de construção de ‘linhas do cui-
CONSTRUÇÃO DE ‘LINHAS DO CUIDADO’
modo de produzir saúde, impacta dado’, que significam a constituição
processos de trabalho, alterando a de fluxos seguros a todos serviços
correlação das tecnologias existen- que venham atender às necessidades
tes no núcleo tecnológico do cuida- dos usuários (CECILIO; MERHY, 2003;
do, a Composição Técnica do Tra- FRANCO ; MAGALHÃES JÚNIOR , 2003). Sur-
balho. É sempre um processo de O debate em torno da organiza- ge como um tema que é transversal
construção social, política, cultural, ção da assistência à saúde ocupou- ao conjunto de necessidades de saú-
subjetiva e tecnologicamente deter- se, até o momento, principalmente de, já mencionados neste texto. As-
minado. Assim deve configurar um da discussão em torno do equipa- sim, a integralidade aparece em todo
novo sentido para as práticas assis- mento hospitalar, pela flagrante he- núcleo de competências que se es-
tenciais tendo como conseqüência o gemonia do hospital na história da truturam em unidades produtivas
impacto nos resultados a serem ob- formação do modelo assistencial, e que ofertam cuidados à saúde. A ‘li-
tidos, por intermédio dos usuários de outro lado, a atenção básica sur- nha do cuidado’ disponibilizada aos
e na resolução dos seus problemas. giu como um projeto contra-hegemô- usuários movimenta-se acionada por
A princípio pode-se imaginar que há nico, ao qual se dedica grande par- certos projetos terapêuticos que re-
uma tênue linha divisória entre os te dos estudos e da literatura dispo- quisitam recursos para a assistên-
dois conceitos (Reestruturação Pro- nível. Entre estes dois pólos, a aten- cia aos usuários, e aí forma-se o en-
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003 321
MERHY, Emerson Elias & FRANCO, Túlio Batista
contro entre o mundo das necessida- tre unidades produtivas em diversos CECILIO , Luis Carlos de Oliveira. As
des com o das intencionalidades dos níveis de atenção depende, fundamen- Necessidades de Saúde como Con-
trabalhadores protagonistas de cer- talmente, do esforço e vontade polí- ceito Estruturante na Luta pela In-
tas cartografias que vão se desenhan- tica em integrar estes serviços. Em tegralidade e Equidade na Atenção
do e dando forma à integralidade na outro nível, aparecem como funda- em Saúde. Rio de Janeiro: UERJ /IMS/
saúde. Este agir na saúde traz consi- mentais a rede de conversas que se ABRASCO , 2001.
go inúmeros elementos, inclusive os estabelece em cada serviço deste, que
FRANCO, Túlio B.; M AGALHÃES, J. R.
das tecnologias de cuidado, as quais vão compor a ‘linha do cuidado’.
Atenção Secundária e a Organiza-
sugerimos que tenham a hegemonia Esta deve ocorrer entre os trabalha-
do ‘trabalho vivo’ em ato, calçando dores, como parte integrante de uma ção das Linhas de Cuidado. In:
um trabalho mais relacional, tecno- rede de petição, onde há mútua im- MERHY, Emerson Elias et al. “O Tra-
logias leves centradas. Isto significa plicação com o processo produtivo balho em Saúde: olhando e experi-
romper com a lógica prescritiva da que é, por natureza, formado a par- enciando o SUS no cotidiano”. São
atividade assistencial, que a captu- tir dos saberes e fazeres, que vão se Paulo: HUCITEC, 2003.
ra do ‘trabalho morto’ exerce, em to- expressar em atos como o do acolhi-
FRANCO, Túlio B. Processos de traba-
dos os níveis da assistência. mento em cada serviço deste, a vin-
lho e transição tecnológica na saú-
Entendemos que para conseguir culação de clientela e responsabili-
de. Tese (Doutorado) – Universida-
operar satisfatoriamente a integra- zação com seu cuidado e sobretudo,
de Estadual de Campinas (UNICAMP ),
lidade, nos campos de necessidades para um trânsito seguro na linha do
SP, 2003.
descritos aqui, o espaço da micro- cuidado, é necessária uma gestão
política do processo de trabalho, eficaz por parte da equipe de saúde, GONÇALVES, R. B. M. Tecnologia e Or-
como vimos, aparece com evidên- à qual o usuário está vinculado, do ganização Social das Práticas de
cia na medida que este é um lugar seu projeto terapêutico. Isto se dá, Saúde. São Paulo: HUCITEC , 1994.
por excelência de encontro entre os com objetivo de garantir que os atos
IRIART, A. C. Atenção Gerenciada:
sujeitos trabalhadores e usuários, cuidadores sejam de fato eficazes
Instituinte a Reforma Neoliberal. Tese
portanto, onde se dá o agir no coti- para conseguir os resultados de au-
(Doutorado) – Universidade Estadual
diano do cuidado à saúde. tonomização, fazendo da integrali-
de Campinas (UNICAMP), SP, 1999.
Uma pergunta que surge freqüen- dade um importante dispositivo
temente em coletivos de trabalhado- para a abertura de muitos proces- L’ABBATE, S. A análise institucional e a
res e gestores dos serviços de saúde sos de mudança em toda rede as- saúde coletiva. Ciência & Saúde Co-
é: como isto se dá, ou seja, como sistencial. Sobretudo, age assim letiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, 2003.
operar para constituir ‘linhas de cui- como dispositivo instituinte do pro-
MARX , Karl. O Capital – Livro 1,
dado’ que agem interessadamente em cesso de trabalho e da produção do
Vol. 1. Civilização Brasileira, Rio
defesa da vida, centradas nas neces- cuidado em saúde.
de Janeiro, 2001.
sidades dos usuários? Aqui aparece
como fundamental, a necessária pac- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MENDES , Eugênio Vilaça et al. Dis-
tuação entre os diversos gestores dos trito Sanitário: o processo social de
serviços implicados em ofertar os re- CAMPOS , Gastão Wagner de Souza. A mudança das práticas sanitárias do
cursos em produzir o cuidado aos Saúde Pública e a Defesa da Vida. Sistema Único de Saúde. São Paulo:
usuários. A definição dos fluxos en- São Paulo: HUCITEC, 1994. HUCITEC, 1994.
322 Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003
Por uma Composição Técnica do Trabalho em Saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças para os modelos tecno-assistenciais
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003 323
768 768
Universidade
Católica de
Pernambuco
Artigo
Resumo: Este artigo se propõe refletir sobre aspectos pertinentes à clínica dos transtornos mentais, com
base na abordagem psicossocial. Nesse sentido, a prática complexa do saber/fazer, no contexto da referida
abordagem, apresenta-se no âmbito de uma clínica ampliada, ratificando a importância de se contemplar
a cultura e o cotidiano daqueles que buscam por atenção psicológica, o que implica o fazer clínico voltado
para a interlocução e a avaliação contínua de intervenções comprometidas com o sujeito sociohistórico.
Assim, tem-se uma clínica voltada para as múltiplas faces do humano – em sua singularidade e coletividade
–, problematizando as ações psicológicas em instituições e nas comunidades.
Palavras-chave: Abordagem psicossocial. Saúde mental. Práticas interventivas. Redes sociais.
Abstract: This article has as proposal to reflect about aspects that are related to the mental disorders clinic
in a psychosocial approach. In this direction, it presents the complex work in the context of the psychosocial
approach, considering the transdisciplinary perspective and ratifying the importance of contemplating the
culture and the daily life of those who demand for psychological attention, which means a clinic work that
includes dialogue and the continuous assessment of assistance committed to the social and historical subject.
Therefore, this is a clinic that takes into account the human being in his multiple aspects – individually and
collectively –, examining the psychological actions in institutions and communities.
Keywords: Psychosocial approach. Mental health. Psychological practice. Social nets.
Resumen: Este artículo se propone reflexionar sobre aspectos pertinentes a la clínica de los trastornos
mentales, con base en el abordaje psicosocial. En ese sentido, la práctica compleja del saber/hacer, en el
contexto del referido abordaje, se presenta en el ámbito de una clínica ampliada, ratificando la importancia
de contemplar la cultura y el cotidiano de aquéllos que buscan atención psicológica, lo que implica el hacer
clínico devotado a la interlocución y la evaluación continuada de intervenciones comprometidas con el sujeto
sociohistórico. Así, se tiene una clínica devotada para las múltiples caras del humano – en su singularidad
y colectividad –, haciendo problemáticas las acciones psicológicas en instituciones y en las comunidades.
Palabras clave: Abordaje psicosocial. Salud mental. Prácticas interventivas. Redes sociales.
As relações do sujeito com sua rede familiar consideram o lado empírico, o histórico, o
e comunitária passam a ocupar um lugar cultural e o científico dos agentes sociais.
privilegiado, convocando-se os atores Elas procuram conhecer a realidade desses
sociais envolvidos, em uma dada situação, a agentes em busca de possibilidades para
participarem da compreensão dos processos uma escuta mais analítica e atenta, e, ainda,
que os envolvem e a responsabilizarem-se interagem, refletindo e objetivando os saberes
pela transformação do seu entorno. da realidade atual, porquanto o mundo
interno e suas expressões se constroem nas
No que diz respeito ao transtorno mental, relações sociais.
faz parte dessa perspectiva superar a visão
que o concebe como unicamente da ordem Partindo dessa compreensão, o psicólogo
individual, dissociada das demais instâncias procura, para além do intrapsíquico, caminhar
em que vive o indivíduo. Ao contrário, tal – de forma cautelosa e comprometida com o
perspectiva propõe a criação e a reinvenção político e o ser sujeito em sua singularidade e
de caminhos para contínuas avaliações, coletividade –, alicerçando ações capazes de
a fim de que as ações se reflitam e se romper a individualização. Além do mais, tal
fortaleçam com base nas responsabilidades visão concebe o homem como ser histórico,
compartilhadas. perpassado e, ao mesmo tempo, porta-voz de
sua “época”, um ser autônomo-dependente
O referencial teórico de uma psicologia que reconhece sua cultura e a reconstrói,
voltada para o social norteia seus pressupostos criando e recriando dispositivos constitutivos
para a implicação mútua dos agentes, das relações humanas e institucionais.
considerando o universo simbólico presente
nos âmbitos de relações intra e interpessoais. A complexidade do ser
Por conseguinte, espera-se que os atores humano na abordagem
sociais envolvidos em dada situação e/ou
psicossocial
contexto construam a própria história, o
que implica comprometimento político e
A ação clínica, em uma perspectiva psicossocial,
consciência cidadã. Isso nos impulsiona
tenta compreender a complexidade do
a fazer a reavaliação crítica dos processos
ser humano em seus processos de troca e
relacionados à saúde/doença, à formação
no desenvolvimento de ligações baseadas
profissional e aos modelos assistenciais
nas experiências construídas. A adoção
desenvolvidos ao longo da história;
pressupõe, ainda, a posição de permanente dessa estratégia exige a consideração do
autocrítica sobre a nossa participação, como permanente intercâmbio das áreas social
profissionais, nesses processos. Tal como e psíquica na construção da subjetividade.
afirma Rosa (2003, p. 328): “É preciso assumir Segundo tal concepção, compreende-se o
espaços coletivos de decisão, de construção, mundo objetivo não como fator de influência
e, para tanto, a palavra precisa circular. Isso para legitimar a subjetividade, mas como
significa romper hierarquias, sobretudo a pertinente a sua construção. Assim, acredita-
hierarquia médico-paciente sobre a qual está se, o ser humano é permanentemente afetado
calcada a doença mental”. pelas histórias que o constituem como sujeito
no mundo, histórias que permeiam suas ações
As abordagens psicossociais se respaldam e relações, criando modos de subjetivação e
em campos teóricos diversificados que de sofrimentos.
Torna-se possível discutir os conflitos gerados Nos anos 80, cresceu a necessidade de se
da intercessão entre saberes e disciplinas construir e se fortalecer outras possibilidades
quando se está junto ao outro, partilhando e de relação com o ser-cidadão proveniente
problematizando as situações que emergem de demandas que exigiam abertura para
no cotidiano das experiências. O jogo de diálogos e novas formas de organização
interesses e conflitos, portanto, transforma- na busca de alianças entre o Estado e a
se em elemento positivo e pode auxiliar o sociedade civil. A democratização incitou
desenvolvimento de instrumentos conceituais a ampliação de movimentos dirigidos para
e atuações integradas entre diversos saberes. as transformações, inclusive no campo da
De acordo com Campos (2000), as ações saúde mental. Os aspectos políticos, sociais,
psicológicas não articuladas nem voltadas culturais e econômicos passaram a ser
para a realidade socioeconômica e para cuidadosamente considerados na construção
as condições de vida dos sujeitos não das subjetividades, o que não implicava
reconhecem a condição de autonomia dos negar o aspecto psíquico, ao contrário,
atores sociais como protagonistas de sua permitia contextualizá-lo, possibilitando a
história. compreensão das múltiplas dimensões do
sujeito.
Francisco e Barbosa (2008), ao realizarem
breve reflexão sobre a evolução da Psicologia Na atualidade, o psicólogo que trabalha no
como ciência e profissão, chamam a atenção campo da saúde mental vem sendo convidado
para o fato de que é relativamente recente a participar de inúmeras ações que reivindicam
o questionamento acerca da pertinência do posições éticas e de compromissos mútuos
modelo das ciências naturais sobre as ciências entre profissionais, instituições, usuários e
humanas. Segundo os mesmos autores, familiares. Com certeza, trata-se de postura
que exige criatividade e disponibilidade para
É historicamente reconhecida a influência da lidar com situações de compreensão e de
ciência positivista, sobretudo na Sociologia
reconhecimento de um sujeito multifacetado.
e na Psicologia, influência que produziu um
saber em que sujeito e objeto, observador Segundo Freitas (1998), as influências de
e fenômeno observado deveriam se manter homem e de mundo que recebe o profissional
o mais distantes possível, distanciamento intervêm em sua postura e direcionam-lhe a
validado em nome de um maior controle, prática na ação clínica do âmbito social. Assim,
uma melhor medição e maior certeza em
o seu fazer/saber pode tanto contribuir para
suas possibilidades de previsão. (Francisco
& Barbosa, 2008, p. 12) manter a “ordem” da realidade social cotidiana
quanto para provocar transformações com
Nesse sentido, as ações freqüentes no campo reflexos no grupo.
da clínica eram pautadas em concepções
que, claramente, distanciavam o indivíduo A idéia de uma clínica cujo saber/fazer
de seu entorno. Como lembra Ferreira transgride a ordem vai além da concepção de
Neto (2004, p. 167), “a ética preconizada saúde/doença como dualidades opostas; ao
era da neutralidade asséptica e da atenção contrário, rompe essa lógica, pois compreende
à realidade subjetiva em detrimento da tal relação como necessariamente dialógica,
realidade material”. Tais ações, que não o que possibilita a construção de um sujeito
contemplavam os projetos sociopolíticos, capaz de reinventar-se e reinventar o seu
afastavam-se das experiências daqueles que modo de estar junto à família, nas instituições
solicitavam escuta como partícipes do social. e no corpo social e político que o atravessam.
Clínica psicossocial
Portanto, no espaço de construção, a
interação parece minimizar o sofrimento
Nos espaços de inter-relações, seria
e possibilitar abertura para reflexão e ação
incoerente aprisionar o indivíduo em
sobre a angústia sentida. O profissional
dimensões psicológicas ou sociológicas e
se torna figura facilitadora para a qual os
negar os efeitos destes e de outros campos
afetos se direcionam de forma confiável e
na historicidade do sujeito. “O psiquismo (o
mental) e sua dinâmica”, para Levy (1994, acolhedora. A habilidade de estabelecer
p. 116), “são, por excelência, o lugar da vínculos, considerando a clínica e as
mudança, da possibilidade de desligamentos demandas familiares, constitui importante
e de novas combinações. As condições ferramenta na abordagem psicossocial.
materiais, objetivas, só têm valor de mudança
quando elas são apropriadas mentalmente ao O campo das intervenções psicossociais
nível de suas significações”. direciona-se para a potencialização das
Centro Universitário
de Brasília
Artigo
Resumo: Este artigo tem por objetivo principal discutir a visita domiciliar
em saúde mental, refletindo acerca dos sentidos construídos nas relações
estabelecidas entre os membros da equipe multidisciplinar, entre equipe
e família e intermembros do sistema familiar, e, assim, contribuir para a
capacitação familiar e conseqüente inclusão social do usuário de saúde
mental. Tendo como base a experiência em um hospital psiquiátrico do
DF, foi delineada uma tríade atitudinal para ancorar este trabalho dentro
dos pressupostos da reforma psiquiátrica: a ética, a ação teórica e a
postura reflexiva. Concluiu-se que é a partir do questionamento de
conceitos já naturalizados sobre a doença mental como incapacitadora e
alienante, e a família como culpada e incapaz de cuidar, que o usuário
pode ter a sua cidadania retomada. Por ser conhecedor da importância
das relações para a construção de sentidos e pela sua disponibilidade
para a escuta, definiu-se o papel do psicólogo dentro da equipe, na
visita domiciliar, como precursor dessa mudança relacional.
Palavras-chave: visita domiciliar, tríade atitudinal, capacitação familiar,
inclusão social.
Abstract: This article discusses the home visiting in mental health, bringing
up the meaning of the relationships built among the staff members,
inside the family attended and its members and among the staff and the
family.This way it can contribute to the family development and to the
user social inclusion. The study basis is an experience in a psychiatric
hospital and an attitude triangle was designed inside the psychiatric reform
principles: ethics, theoric action and reflexive atitude. Conclusions are
that questioning concepts as the inability of the psychiatric patient to
deal with the world, the family as the main question leading to the
disease and its inability to take care of the patient can lead the user to
regain his citizenship. Since the psychologist knows the importance of
the relations for the building of meaning and due to his capacity of
listening to others, his role in the home visiting staff was defined as the
forerunner of this relationship change.
Key-words: home visiting, attitude triangle, family development, social
inclusion.
24
Visita Domiciliar em Saúde Mental – O Papel do Psicólogo em Questão
Pode-se dizer que o objetivo primordial da vendo-a como saída existencial legítima, outras
visita domiciliar é buscar a capacitação das facetas do sujeito que sofre começam a surgir,
famílias para que estas possam utilizar recursos seu discurso passa a ser valorizado bem como
próprios, a fim de resolverem os seus a sua capacidade para escolher e para resolver
problemas, incluindo-as no processo de problemas. A família pode começar a ver esse
tratamento (Brandão, 2001), já que é só a partir sujeito como um novo ser, alguém não mais
dessa capacitação que a família pode se sentir idealizado, normatizado, mas sim, um sujeito
segura e confiante para lidar com os problemas que, apesar, por exemplo, de delirar, tem
suscitados com o convívio com a loucura, muito a contribuir para o sistema familiar e
evitando as internações recorrentes e a social. Este novo olhar pode ajudar o sujeito a
conseqüente alienação social e a cronificação encontrar novos lugares nos sistemas aonde
do usuário de saúde mental. está inserido
A partir do paradigma emergente, onde se Com isso, pode-se concluir que um dos
coloca a importância da crítica epistemológica objetivos principais da equipe, na visita
para conseguir alcançar o sujeito que sofre, domiciliar, está na tentativa de integração e
desconstruindo pré-conceitos elaborados e de fazer compreender o discurso psicótico, já
que é só a partir dessa compreensão que novos
construídos socialmente, fala-se da
sentidos para os problemas demandados pela
necessidade de o profissional ter uma escuta A família pode
família podem ser descobertos, ampliando a começar a ver
diferenciada, escuta essa que abarque o
possibilidade de implementação de futuras esse sujeito como
sujeito, sem julgamentos ou tentativas de um novo ser,
ações.
encaixe deste na teoria. É importante salientar alguém não mais
que a crítica epistemológica é um dos princípios idealizado,
A valorização das saídas que a própria família normatizado, mas
norteadores da reforma psiquiátrica. sim, um sujeito
encontra para os impasses suscitados, bem
que, apesar, por
como a busca da habilidade de cada membro exemplo, de
Tenório (2001) destaca que um técnico só
do sistema para resolver os problemas delirar, tem muito a
pode chegar a compreender o sujeito e a contribuir para o
pontuais colocados na visita, também são
família a partir do momento em que ele se sistema familiar e
procedimentos que caracterizam a importância social, com a
permite sempre ser surpreendido com algo
da visita domiciliar. Essa valorização só é possibilidade de
novo que surge no relacionamento, que ele encontre
possível, como já foi explicitado anteriormente,
questionando os seus conceitos a priori. Essa um novo lugar nos
a partir da substituição das imagens sociais sistemas em que
atitude contribui para o surgimento de culpabilizadoras e incapacitadoras que o técnico está inserido.
momentos de subjetivação. em saúde mental, assim como a sociedade,
pode ter da família.
Enfocando a visita domiciliar, para que o
profissional possa abarcar a dinâmica familiar É a partir dessa valorização que a família pode
subjetiva, é necessária a modificação do se sentir segura e autônoma, construindo as
conceito e da culpa dos familiares com a suas saídas para a resolução de problemas.
conseqüente valorização de seus saberes e Com isso, pode-se notar que essa segurança
habilidades e da loucura enquanto doença favorece a sua autonomia e a independência
orgânica e incapacitante, devolvendo o poder com relação à instituição de referência,
de verdade à palavra do louco (Tenório, 2001). atingindo, assim, o objetivo de capacitação
No momento em que a equipe, dentro do familiar.
processo de visita domiciliar, abre a
possibilidade de subjetivação, a partir da De acordo com Silva (2001), a doença mental
desconstrução da psicose enquanto doença, é caracterizada por sua multidimensionalidade
26
Visita Domiciliar em Saúde Mental – O Papel do Psicólogo em Questão
Ana Paula da Cunha Pietroluongo & Tania Inessa Martins de Resende PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2007, 27 (1), 22-31
atribuir sentidos aos fenômenos observados família. Segundo Guidano (1997), o sujeito não
e agir de acordo com esse sentido. observa o objeto, mas sim, experencia-o a
partir de seu próprio corpo. “Como seres
Um dos espaços sociais em que os técnicos humanos, não podemos fugir da nossa maneira
circulam é a própria instituição psiquiátrica, particular de ser” (p. 79).
que reproduz os construtos do paradigma
dominante passados na formação acadêmica A partir do momento em que se entende a
e moral: o técnico tem o saber, o usuário está percepção de um dado fenômeno enquanto
fora de si e precisa ser tutelado e ser paciente, intrinsecamente ligado à configuração subjetiva
a loucura é uma doença orgânica, e a família de quem observa, pode-se dizer que um
é incapaz de cuidar se não tiver a fenômeno nunca é visto de maneira pura, mas
instrumentalização necessária, que se adquire sim, personalizada.
a partir do conhecimento técnico.
Dessa forma, Andersen (1998) cita a existência
Com isso, o técnico constrói os conceitos sobre de tantas versões de uma dada situação
si, enquanto profissional, baseado nesses quantos forem os sujeitos que a observam.
construtos, além de também estar inserido Assim, a reflexão com a família tem por
no senso comum, que reproduz vários mitos objetivo desconstruir a relação ou-ou, onde
relacionados à loucura e à família. Dessa apenas um discurso traz a verdade, para
forma, pode-se dizer que, para se construir construir a relação tanto-como,
uma relação que subjetive a família, é horizontalizando o saber entre equipe e família.
necessária uma reforma pessoal, de reflexão Seria a passagem da atribuição de um saber
acerca dos valores dos próprios profissionais, único para o compartilhamento desse saber
construídos nos seus espaços sociais e (idem, 1998).
concretizados nas atitudes que estes
constroem com a família e com o usuário de Com isso, percebe-se que a postura reflexiva
saúde mental. ou reflexividade é um conceito que está
ancorado em duas dimensões diretamente
É a partir da reflexão de quais valores subjetivos relacionadas e que necessariamente devem
do técnico estão sendo passados no discurso, estar presentes na relação com a família: a
e que lugar está sendo construído para a família auto-reflexão, que permite que cada sujeito
a partir deste discurso, que o técnico pode se perceba de que forma os seus valores estão
diferenciar da família e buscar uma relação influenciando a forma de perceber a família e
onde essa possa surgir enquanto singularidade. de construir um lugar para esta, e a reflexão
É importante lembrar que a ética e a ação conjunta, que proporciona um
teórica só ganham vida na relação pela postura compartilhamento de percepções entre equipe
reflexiva, já que, como já foi discutido e família e amplia a compreensão acerca da
anteriormente, a equipe dá sentido aos dinâmica familiar.
conceitos a priori acerca de um sujeito
específico, sentido esse que é subjetivo e diz Pelo que foi discutido, conclui-se que, a partir
da configuração subjetiva de cada técnico. de uma relação ancorada nas três dimensões
Logo, a teoria e a moral não são puras, mas atitudinais (ética, ação teórica e postura
sim, pessoalizadas. reflexiva), pode-se construir um novo lugar para
a família, lugar onde se possa concretizar o
Além dessa dimensão da auto-reflexão, a objetivo da visita domiciliar de capacitação do
postura reflexiva também deve estar presente sistema familiar e, assim, ajudar na
em uma outra dimensão: a de refletir com a concretização do objetivo principal da reforma
soberano ao psicólogo, já que, da mesma para o sujeito com sofrimento psíquico grave.
forma que no paradigma psiquiátrico, a visão Assim, mesmo com o atendimento domiciliar,
da loucura e da família seria reduzida, nesse é importante que esse sujeito tenha outras
caso, ao viés psicodinâmico. possibilidades de ser assistido, outros projetos
terapêuticos dos quais possa participar.
Na equipe Assim, pode-se dizer que o psicólogo, pelo seu Segundo Tenório (2001), há de haver tantos
multidisciplinar, o papel de escuta, pode ser o precursor do projetos terapêuticos quantos forem os sujeitos
grande desafio
movimento de reflexão e mudança. É que sofrem.
para todos os
técnicos é não só importante ressaltar que essa escuta
poder conhecer o diferenciada e conseqüentes acolhimento, O objetivo de capacitação familiar, como já
seu papel mas foi colocado, só pode ser atingido se o
compreensão e mediação só são possíveis se a
também conseguir
valorizar e formação desse psicólogo, assim como sua profissional de saúde mental buscar uma nova
reconhecer o atuação, privilegiarem o sujeito, o postura relacional, saindo da “objetalização”
papel do outro e normatização do diferente e do seu sistema
conhecimento e a compreensão deste, ao invés
como de
fundamental da pura “objetalização” e “psiquiatrização” do familiar. Essa postura pode estar ancorada, de
importância para social. acordo com este artigo, em três dimensões
se ter uma visão atitudinais: a ética, na busca da transformação
complexa dos
Na equipe multidisciplinar, o grande desafio do social; a ação teórica, que tem por objetivo
fenômenos. Só
assim pode-se ter para todos os técnicos é não só poder a flexibilização teórica para fazer caber a
uma equipe conhecer o seu papel mas também conseguir diferença, e a postura reflexiva, de
horizontalizada,
valorizar e reconhecer o papel do outro como fundamental importância para que as outras
aberta à reflexão e
a novas de fundamental importância para se ter uma duas dimensões possam, de fato, se
alternativas visão complexa dos fenômenos. Só assim concretizar e, assim, atingir a epistemologia
relacionais e de da construção.
pode-se ter uma equipe horizontalizada,
ação terapêutica.
aberta à reflexão e a novas alternativas
relacionais e de ação terapêutica. Além disso, neste artigo, foi discutida a
importância do trabalho em equipe. Segundo
Conclusão Brandão (2001), “a intervenção em equipe
possibilita que diferentes olhares auxiliem a
A partir do que foi discutido, pode-se concluir criação de diferentes hipóteses” (p. 90). Só
que, para ser um sujeito que tem seu lugar assim pode-se tentar vislumbrar a
na comunidade, o louco deve recobrar as suas complexidade do sistema familiar e da loucura.
referências afetivas e sociais. Só assim ele Dessa forma, pode-se dizer que o papel do
pode sair da alienação que a instituição da psiquiatra na reforma foge do lugar central de
exclusão promove. Para ter de volta essas atendimento à loucura, deixando de ser o
referências, é importante que esse sujeito em profissional de referência e passando a ser
sofrimento retorne à sua rede social. Esta deve equiparado aos outros saberes. Diante da visão
se sentir capaz de lidar com esse sujeito, da loucura enquanto complexidade, todos os
sentindo-se parte integrante do tratamento. É aspectos da vivência do sujeito passam a ser
nesse momento que a visita domiciliar pode considerados: sua configuração subjetiva, seu
ter um papel fundamental de capacitação do corpo fisiológico e a relação desse sujeito e
sistema familiar para que este possa se sentir sua família com o social.
seguro e confiante, podendo lidar com os
problemas suscitados pelo convívio com a De acordo com o que foi discutido, pôde-se
loucura sem a dependência dos técnicos. concluir que, para se ter essa visão ecológica
do adoecimento mental e da configuração
Salienta-se que, em muitos momentos, o familiar, faz-se necessária uma horizontalização
atendimento técnico é de grande relevância dos saberes dentro da equipe, horizontalização
essa que pode ser promovida, inicialmente, para ser um profissional transformador desse
pelo profissional da Psicologia. social. Desta forma, sua atuação vai estar
ancorada nas três dimensões atitudinais
Esse profissional, por sua postura diferenciada
discutidas neste trabalho.
de escuta, pode, dentro da equipe, ajudar na
ampliação acerca da percepção de um
É só a partir dessa nova formação que o
problema específico suscitado pela família;
psicólogo pode privilegiar o sujeito, sua
fazer o papel de intermediação entre a equipe
e a família; e incentivar a reflexão técnica configuração subjetiva, subjetivando a
intermembros da equipe.Todos esses papéis demanda do usuário e de seu sistema familiar
só podem ser alcançados se esse profissional e ajudando a buscar as habilidades dentro do
tiver uma formação diferenciada, de crítica sistema para resolver os problemas suscitados,
epistemológica, deixando de ser um e, assim, buscar, propriamente, a saúde mental
profissional de reprodução e controle social ao invés da doença.
SQN 114 Bloco D Ap. 406, Asa Norte Brasília – DF CEP: 70764-040
Tel.: 92677777/ 99771763.
E-mails: anapaula.pietroluongo@gmail.com
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ASSOCIAÇÕES ENTRE SUPORTE FAMILIAR
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Resumo
A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas em ausência
de doença ou enfermidade. A saúde mental constitui-se como parte indispensável da saúde geral,
permitindo ao indivíduo o aproveitamento pleno de suas capacidades cognitivas, relacionais e afetivas,
o enfrentamento de dificuldades na vida, a produção no trabalho e a contribuição para ações em
sociedade. Os critérios para saúde e doença mental não podem ser considerados independentemente,
restritos ao indivíduo, uma vez que sua identidade a todo momento reflete uma experiência grupal. A
saúde mental resulta do bom funcionamento interno do indivíduo, bem como sua capacidade de
estabelecer ótimas relações com pessoas, sociedade e família. No grupo familiar, é possível que haja
uma predisposição à enfermidade, acarretando regressão, desintegração e ruptura na comunicação,
porém, quando as funções familiares primordiais são cumpridas, a possibilidade existente é a de um
potencial de promoção à saúde. O suporte familiar pode ser compreendido como manifestação de
atenção, carinho, diálogo, liberdade, proximidade afetiva, autonomia e independência existente entre os
integrantes da família e pode ser pensado como agente de proteção frente ao risco a doenças mentais,
e agente amortecedor frente aos eventos estressantes, o que sustenta a criação de programas de prevenção
e tratamento, visando ao restabelecimento da saúde.
Abstract
Health is a complete state of physical, mental and social well-being, not consisting only in the
absence of illness or disease. Mental health can be considered an essential part of general health,
allowing the individual full use of his cognitive, relational and affective abilities, coping strategies,
work production and contributions to actions in society. The criteria for health and mental illness
cannot be considered independent ones, restricted to the individual, once his identity, in all
moments, reflects a group experience. Good health is a result of intern good function and the
ability to establish great relations to people, society and family as well. In the family group, the
existence of a tendency to illnesses is possible, resulting in communication’s regression,
disintegration and tearing, however, when primary family functions are fulfilled, the existent
possibility is of a potential to health promotion. Family support may be understood as attention,
care, dialog, freedom, affective proximity, autonomy and independence manifestations occurring
among family members and it can be thought as a protective agent towards mental health’s
risks and also, a softener agent facing stress events, what can support the creation of prevention
and treatment programs, considering health’s reestablishment.
tais substâncias resultava em depressão, ansiedade com a mãe e é demonstrado de várias maneiras,
e alterações bruscas de humor (Holmes, 1997). porém, especialmente da maneira que o bebê é
Na Idade Média, e mais adiante no apoiado. Com o passar do tempo, o suporte se
Renascimento, os doentes mentais não eram expande, se originando cada vez de outros membros
considerados apenas como possuídos pelo demônio, da família, daí então dos colegas de trabalho e da
mas também como ameaça para a sociedade, comunidade, e talvez, em caso de necessidade
devendo ser perseguidos e mortos. Essa concepção especial, de um membro cuja profissão é de ajuda
deve-se à prevalência da religião cristã, que lançava humana. À medida que o fim da vida se aproxima, o
mão da ideia de luta constante entre as forças do apoio social, em determinadas culturas, outra vez se
bem contra as forças do mal (Bastos, 1997). origina, principalmente de membros da família.
As doenças mentais tornaram-se objeto de A primeira e essencial função psíquica da
uma ciência que acabara de surgir, a psiquiatria. As família é dispensar afeto, fundamental à
explicações para as desordens de comportamento, sobrevivência emocional dos recém-nascidos.
afetividade e pensamento, mais uma vez pautavam- Transmitir as experiências individuais e grupais
se numa abordagem orgânica, estudada a partir de acumuladas é uma tarefa psicológica e social, na
descobertas da neurofisiologia e da neuropsiquiatria. medida em que os pais colaboram com a formação
Mais tarde, as explicações para o comportamento da identidade pessoal de seus filhos. Cabe ainda à
anormal, concentraram-se em causas psicológicas e família o fornecimento de um ambiente adequado
as várias abordagens da psicologia explicavam essa para a aprendizagem empírica, assim como a
relação a sua maneira (Holmes, 1997, Ribeiro, 1996). mediação de informações com o universo
A saúde mental, para a Organização circunjacente (Osório, 1996). É fundamental na
Mundial de Saúde (2000) é o estado que permite ao dinâmica familiar a comunicação congruente,
indivíduo o aproveitamento total de suas capacidades direcional, funcional e com carga emocional; regras
cognitivas, afetivas e relacionais, o enfrentamento coerentes e flexíveis; liderança compartilhada com
de dificuldades na vida, a contribuição para ações em filhos de forma democrática; autoestima; relação
sociedade e a produção no trabalho. A partir desse conjugal integrada, porém de forma que possibilite
conceito fica explícito o caráter transdisciplinar da à família atuar como um todo, preservando a
saúde mental, uma vez que esta é influenciada por individualidade de cada um (Féres-Carneiro, 1992).
várias dimensões, inclusive a dimensão social. Sendo Ao cumprir essas funções e sendo
assim, os critérios para a saúde e doença mental não percebida como afetuosa, coesa, com boa
podem ser considerados independentemente, restritos comunicação, com regras flexíveis, mas com limites
ao indivíduo, uma vez que sua identidade, a todo e fronteiras claras, a família consegue fornecer a
momento, reflete uma experiência grupal. A saúde seus membros, instrumentos fundamentais ao
mental resulta do bom funcionamento psíquico crescimento individual e pode ser entendida como
interno do indivíduo, bem como sua capacidade de um sistema de suporte (Lidchi & Eisenstein, 2004).
estabelecer relações adequadas com pessoas, O suporte familiar é traduzido como o
sociedade e família. (Ackerman,1986; Ramos, 2002). cumprimento de determinadas funções da família,
tais como: coletar e disseminar informações sobre
o mundo, transmitir ideologias, ajudar na formação
Família e suporte familiar de identidades, oferecer serviços práticos de ajuda
concreta, apoio emocional, orientação e feedback e
A família é entendida como rede primária ainda guiar e mediar na solução de problemas,
de interação social e provedora de apoio indispensável servindo de refúgio para repouso e recuperação de
à manutenção da integridade física e psicológica do seus membros (Caplan, 1976 apud Campos, 2004).
indivíduo. Assim, a família torna-se referência nas Para Parker, Tupling e Brown (1979) o
crenças, valores e comportamentos do indivíduo, à suporte familiar se traduz na quantidade de cuidados
medida que pune ou premia suas atitudes, orientando- e proteção que os pais delegam a seus filhos, incluindo
o quanto à forma de agir (Campos, 2004). comportamentos de afeto, cooperação, sensibilidade,
De acordo com Cobb (1976), o suporte tem aceitação, indiferença, rigor, rejeição, punição,
início desde o início do ciclo vital, é melhor controle, superproteção, estímulo à autonomia e à
manifestado nas primeiras relações estabelecidas independência. Procidano e Heller (1983) apontam
uma compreensão na qual o suporte é entendido A família, ao mesmo tempo em que é vista
como grau de satisfação pela família diante das como a mais importante fonte de suporte, é também
necessidades de informação, apoio e feedback. Para concebida como fonte mais importante de estresse
Moos (1990), suporte familiar inclui grau de confiança, para seus membros, afetando de maneira poderosa
afeto, apoio e ajuda entre os membros da família. nos processos de saúde e doença. Na família, o
Suporte familiar pode ser entendido como suporte se estrutura de forma mais consistente, pois
a capacidade da família em oferecer a seus membros: é nela que os vínculos tornam-se estáveis e duradouros
constância, cuidado, carinho, atenção, diálogo, e, talvez por isso, as crises que afetam o
informação, autonomia, empatia, afetividade, funcionamento familiar são estressantes. O estresse
aceitação e liberdade (Baptista & Oliveira, 2004). vivenciado na família está ligado ao comportamento,
Sendo assim, esse conceito refere-se às à necessidade e à personalidade de cada membro da
características psicológicas que a família oferece a família, o que gera impacto na interação com os
seu membro, o que se diferencia do conceito de outros membros do sistema familiar, algumas vezes
estrutura familiar, que se refere às características produzindo estresse. Os conflitos entre os membros
físicas tais como o número de pessoas pertencentes da família podem vir de comportamentos
a uma família, sua disposição e composição. De imprudentes, problemas financeiros e de objetivos
acordo com os estudos de McFarlene, Bellissimo e contrários (Campos, 2004).
Norman (1995), não há relação direta entre estrutura Segundo Féres-Carneiro (1992), a
familiar e suporte familiar, uma vez que as diferentes configuração da dinâmica familiar, cujo
estruturas familiares têm capacidade de oferecer funcionamento pode ser facilitador ou dificultador,
suporte familiar adequado. traduz a formação da saúde mental dos membros de
De acordo com Campos (2004), o efeito uma família. Para Zamberlan e Biasoli-Alves (1996),
principal do suporte fundamenta-se à medida que é a promoção de um saudável e adequado
percebido pelo receptor como satisfatório, de maneira desenvolvimento da criança está intimamente
que esse receptor sinta-se valorizado, amado, relacionada com a qualidade das relações e
reconhecido, compreendido, cuidado e protegido e, interações constituídas entre os membros da família.
ainda, fazendo parte de uma rede de informações e De acordo com Steinhausen (1985), mudanças no
recursos que com ele são partilhados. É essa funcionamento da família, no que tange às práticas
percepção que vai permitir ao indivíduo enfrentar o inadequadas de atenção às crianças, estão
ambiente, de forma a lhe trazer resultados positivos relacionadas com a gravidade dos distúrbios infantis.
que contribuam para o seu bem-estar psicológico, O provimento e o recebimento do suporte
aumento da autoestima e redução do estresse. familiar influi diretamente no bem-estar físico,
psíquico e social do indivíduo, sendo que a falta
desse suporte é um dos fatores que traduz
Suporte familiar e saúde mental predisposições à doença mental. A percepção e o
recebimento de suporte pelos membros da família,
As relações estabelecidas na família constituem fontes fundamentais para a manutenção
parecem constituir uma fonte de relações que da saúde mental, no que tange à promoção de
contribui nos processos de saúde ou doença. No benefícios nos processos fisiológicos (sistema
agrupamento familiar é possível que haja uma endócrino, cardiovascular e imunológico), ao
predisposição à enfermidade, ocasionando enfrentamento de situações estressantes, e no alívio
desintegração, regressão e ruptura na comunicação, dos estresses físico e mental. (Basic Behavioral
porém, quando as funções primordiais da família Science Task Force of the National Advisory Mental
são desempenhadas, tais como afeição, proteção, Health Council, 1996; Uchino, Cacioppo e Kiecolt-
formação social, autonomia, etc., a possibilidade Glaser, 1996).
existente é a de um potencial de promoção à saúde O relacionamento que os pais ou
(Féres-Carneiro, 1996). Segundo Osório (1996), o cuidadores estabelecem com a criança durante a
oferecimento de um adequado suporte pelo grupo infância é de suma importância. O afeto, a atenção
familiar favorece a superação das crises vitais, ou e o cuidado constante dispensado permite que a
melhor, da desestruturação causada por essas crises. criança se desenvolva normalmente. Já a não-
transmissão desses cuidados pode aumentar a acolhidas por algum tipo de suporte, e que isso
probabilidade dessa criança manifestar distúrbios serviria então para diminuir as probabilidades destas
mentais e comportamentais, tanto durante a infância desenvolverem sérios problemas psicopatológicos
quanto em fases posteriores da vida (Organização e sentimentos de desesperança.
Mundial da Saúde, 2001). Em um estudo de revisão, Baptista,
Evidências científicas indicam que altos Baptista e Dias (2001), estudaram a estrutura e o
níveis de controle, especialmente a afirmação do suporte familiar como fatores de risco para a
poder (demandas acompanhadas por frequente depressão em adolescentes. Os autores ressaltam
punição física), podem ter consequências que não se pode pensar em uma causa específica
prejudiciais para a criança. Assim, a concepção de para o desenvolvimento da depressão, que é
controle tem sido distinguida de duas formas: a multifacetária, sendo influenciada por fatores
primeira forma de controle proporciona estrutura biológicos/genéticos, psicológicos e sociais.
ao indivíduo, baseia-se em padrões racionais para o Porém, as rápidas mudanças sociais familiares, no
comportamento infantil, envolvendo comunicação que tange às mudanças na composição, estrutura
e encorajando a criança a se desenvolver, ser física e, consequentemente, nas regras e papéis da
independente, cooperar e conviver em sociedade; a família, acabam por colaborar com a prevalência
segunda forma combina rigidez com cumprimento de depressão na população adolescente. A família
de regras fixas com pobre fundamento, ainda deve ser considerada como amortecedora
desencorajando o desenvolvimento de atributos frente aos eventos estressantes, enfrentados no
positivos na criança (Basic Behavioral Science Task cotidiano de adolescentes.
Force of the National Advisory Mental Health O estudo de McFarlene, Bellissimo e Norman
Council, 1996). (1995) avaliou a associação entre a estrutura familiar,
Parker, Tupling e Brown (1979) postularam a integração familiar e o bem-estar dos filhos na
que os pais que dispensam afeto e são empáticos adolescência, estabelecendo o contraste de famílias
permitem que o filho tenha uma maior autoestima e intactas com aquelas que foram afetadas por alguma
isso proporciona proteção contra a depressão na fase mudança. Foi feita uma pesquisa com 810 estudantes
adulta. Os autores explicaram que a superproteção de 11 escolas de um único sistema educacional. Os
está relacionada à depressão através da inibição da resultados indicaram que a configuração familiar não
autonomia e da competência social. Ao desencorajar foi o principal fator determinante na eficiência da parte
a independência e nutrir uma expectativa de que as funcional da família. Em vez disso, a maneira como os
consequências não dependem de respostas, o pais tratam os filhos foi considerado o fator
abandono e a depressão são providos quando são determinante para a integração familiar e o bem-estar
enfrentados os fatores de estresse. dos adolescentes. Os cuidados da mãe e do pai foram
Kashani, Canfield, Borduin, Soltys e Reid associados à integração familiar saudável ao passo que
(1994) investigaram a relação da percepção familiar a superproteção foi negativamente associada a este
em crianças e o suporte social para o comportamento resultado. As famílias nas quais houve morte de um
de desesperança destas. Participaram dessa pesquisa dos pais pareceram funcionar (integrar-se) tão bem
100 crianças pacientes psiquiátricas que como as famílias cujos pais estavam sempre presentes,
responderam uma série de medidas de autorelato, mais uma vez ressaltando a ideia que a função familiar
incluindo o Social Support Questionnaire-Self Report, a não é determinada pela estrutura. No entanto, não está
Scale of Independent Behavior, e a Hopelessness Scale for bem estabelecida ainda a inexistência da associação
Children. Crianças com baixo nível de suporte familiar entre saúde mental e estrutura familiar.
e social mostraram-se mais desatentas, ofensivas e Bassuk, Mickelson, Bissel e Perloff (2002)
não-cooperativas. Em adição, crianças que investigaram o papel de vários membros da família,
relataram menos pessoas suportivas em suas vidas diferenciando os pais e os filhos, e descobriram que
apresentaram alto nível de desesperança. Esses a relação com os irmãos proporcionou resultados
dados enfatizam a conexão entre sistemas de suporte positivos para a saúde mental (frequentemente
social, psicopatologia e desesperança. Esses mais forte que a relação com os pais). Em algumas
relacionamentos poderiam indicar que crianças famílias pobres que compuseram a amostra, as
necessitam sentir que estão sendo cuidadas e relações entre irmãos podem ter assumido um nível
maior de importância por causa de rupturas na composta por 3801 adultos. Os resultados sugerem
família de origem e a falta compreensível de uma que ter um dos pais com doença mental aumenta a
criação consistente por parte dos pais, resultando probabilidade dos eventos de vida estressantes
no estresse inevitável associado à pobreza. Quando resultarem em depressão, porém, ainda não se sabe
os adultos são incapazes de fornecer proteção, a que se deve esse aumento (fatores genéticos ou
segurança, e alimentação, os irmãos podem recorrer ambientais) . A separação por divórcio dos pais,
uns aos outros. associada com eventos de vida estressantes, apontam
Determinadas experiências infantis, como para o aumento da vulnerabilidade para problemas
maus tratos emocionais por parte dos pais ou psiquiátricos e alcoolismo. E a separação por morte
cuidadores, perda dos pais, seja por separação de um dos pais não interage com eventos de vida
(divórcio) ou por morte de algum deles, podem estressantes no sentido de afetar a probabilidade de
resultar em prejuízos duradouros no desen- problemas psiquiátricos, ao menos nesse estudo.
volvimento das crianças e adolescentes, compro- McLeod (1991) concluiu que o evento da
metendo a vida adulta (Heim & Nemeroff, 2001). perda de um dos pais por divórcio estava mais
Bemporad e Romano (1993), em uma revisão acerca fortemente relacionado com consequências negativas
das experiências infantis e depressão na vida adulta, na vida adulta do que a perda por morte. E as
encontraram um alto grau de disfunções nas histórias correlações dos eventos de perda e das consequências
infantis de pacientes deprimidos, quando negativas eram mais fortes nas mulheres do que nos
comparados aos controles. Nesse estudo, a homens. A morte de um cônjuge pode aumentar a
depressão adulta relacionou-se com mau tratamento probabilidade do outro ficar doente ou morrer, ao
na infância, como rejeição e falta de afeto. menos durante dois anos. E os viúvos que não se
Em uma meta-análise, que reuniu dados casam novamente têm maiores taxas de mortalidade
de 2432 sujeitos, foi encontrada uma associação do que os que casam (Ramos, 2002).
significativamente alta entre a perda de um dos pais Kendler, Neale, Keesler, Health e Eaves
com indivíduos que sofriam de depressão, quando (1992), examinaram a relação entre perda dos pais
comparados aos que não sofriam de depressão. A antes dos 17 anos e psicopatologia na idade adulta.
perda de um dos pais antes dos 11 anos relacionou- Essa relação variou de acordo com o tipo de perda
se com mulheres deprimidas; e o fato de ter perdido (por separação conjugal ou morte dos pais) e de
a mãe mais cedo ainda poderia representar um risco acordo com a forma de psicopatologia. A perda dos
aumentado para a depressão. (Patten, 1991). pais por separação conjugal associou-se
Bron, Strack e Rudolph (1991) estudaram principalmente com maior risco para depressão e
328 pacientes com depressão, desordem distímica ansiedade generalizada. Já a perda por morte da mãe
ou desordem de ajuste com humor deprimido. Eles especificadamente relacionou-se ao maior risco para
foram questionados sobre perdas sofridas na infância transtorno do pânico e perda por morte dos pais,
por morte de um ou ambos os pai e também por tanto morte materna como morte paterna, associou-
divórcio dos pais com pelo menos um ano de se a risco maior para fobias.
separação. Não houve estatísticas significativas Em uma amostra japonesa composta por
entre experiências de perda na infância e tipo de 122 pacientes internados com quadro de depressão
depressão, sexo e idade. Contudo, foi encontrado unipolar e 94 que nunca estiveram deprimidos foi
um aumento na incidência de tentativas de suicídio comparada a ocorrência de perda dos pais por morte
naqueles pacientes com experiências de perdas na e por separação conjugal antes dos 17 anos de
infância, por separação dos pais e por morte de um idade. A perda por morte materna foi
deles, sendo o aumento da tendência suicida significativamente mais comum em depressivos
atribuído principalmente à perda do pai. que no grupo controle. E a perda por separação dos
Landerman, George e Blazer (1991) pais teve tendência aumentada no grupo deprimido
investigaram a vulnerabilidade de adultos para (Knugi, Sugawara, Aoki, Nanko, Hirose &
desordens psiquiátricas diante da separação dos Kazamatsuri, 1995).
pais antes dos 10 anos de vida, devido a divórcio ou Luecken (2000) estudou a associação
morte e diante da presença de doença mental nos entre perda por morte de um dos pais, sentimentos
pais durante os primeiros anos da infância. Os de hostilidade, depressão, suporte social e
dados obtidos foram de uma amostra estratificada qualidade das relações familiares em adolescentes.
Participaram dessa pesquisa 30 estudantes mental (Ackerman, 1986; Baptista, 2004; Basic
universitários que experimentaram a morte de um Behavioral Science Task Force of the National
dos pais antes dos 16 anos, e 31 estudantes em Advisory Mental Health Council, 1996; Bassuk,
condição controle. Foram utilizados questionários Mickelson, Bissel, & Perloff, 2002; Campos, 2004;
para medir o suporte social (The Interpersonal Support Féres-Carneiro, 1992; Kashani, Canfield, Borduin,
Evaluation), a hostilidade (Cook Medley Hostility Soltys, & Reid, 1994; OMS, 2001; Ramos, 2002;
Scale), a depressão (Beck Depression Inventory) e a Souza, 2007). Pensando numa forma de
qualidade das relações familiares (Moos Family intervenção para a saúde mental, programas que
Environment Scale). Aqueles com perda de um dos enfatizem o suporte da família podem atuar como
pais apresentaram altos escores de hostilidade, agente preventivo e protetivo frente aos riscos
maior intensidade de sintomas depressivos e menor para doenças mentais, o que sustenta a criação de
suporte social apenas quando apresentavam pobres programas de prevenção e tratamento, visando o
relações familiares atuais. restabelecimento da saúde.
Souza (2007) estudou a relação entre o
suporte familiar e a saúde mental em 520 universitários,
utilizando o Inventário de Percepção de Suporte REFERÊNCIAS
Familiar (IPSF) e o Questionário de Saúde Geral de
Goldberg (QSG). Foram encontradas correlações Ackerman, N. (1986). Diagnóstico e tratamen-
significativas entre os instrumentos, o que demonstra to das relações familiares. Porto Alegre:
que a percepção de demonstrações de afeto, carinho, Artes Médicas.
expressões verbais e não-verbais, habilidade na
resolução de situações-problema, sentimentos Baptista, M. N., Baptista, A. S. D., & Dias, R. R.
positivos, tais como inclusão e compreensão, além do (2001). Estrutura e suporte familiar como fa-
estabelecimento de relações de confiança, liberdade tores de risco na depressão de adolescentes.
e privacidade entre os membros da família, colaboram Psicologia Ciência e Profissão, 21(2), 52-61.
para menor sintomatologia de estresse psíquico, desejo Baptista, M. N., & Oliveira, A. A. (2004).
de morte, desconfiança do próprio desempenho, Sintomatologia de depressão e suporte fami-
distúrbios do sono, distúrbios psicossomáticos e liar em adolescentes: um estudo de correla-
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Basic Behavioral Science Task Force of the National
Advisory Mental Health Council. (1996). Basic
Diante da literatura pesquisada nessa behavioral science research for mental health:
revisão, é possível destacar características Family processes and social networks.
importantes na associação entre o suporte familiar American Psychologist, 51, 622-630.
e a saúde mental, como a investigação da estrutura
familiar, sexo, raça, curso, nível econômico. Outras Bassuk, E. L., Mickelson, K. D., Bissel, H. D. &
variáveis ainda se mostram relacionadas, a saber: Perloff, J. N. (2002). Role of kin and nonkin
eventos de vida estressantes, estratégias de support in the mental health of low-income
enfrentamento (coping), personalidade, resiliência, women. American Journal of Orthopsy-
lócus de controle, autoeficácia, dentre outras. Todas chiatry, 72(1), 39-49.
essas variáveis podem diferenciar os sujeitos quanto Bastos, C. L. (1997). Introdução. In C. Lyra Bas-
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de saúde mental destes, e por isso mostram-se tica à psicopatologia. (pp. 01-25). Rio de
relevantes no estudo com os construtos envolvidos. Janeiro: Revinter.
O estudo da associação entre suporte
familiar e saúde mental fundamenta-se na crescente Bemporad, J. R., & Romano, S. (1993).
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Stricto Sensu em Psicologia, Universidade São
Francisco, Itatiba.
Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir Psicóloga, Doutora em Saúde
1
O uso que fazemos aqui do termo “paradigma” diz respeito também a uma
aproximação da forma como ele é usado por Kunh (2006). Trata-se de um
conjunto de conceitos e arranjos que são tomados como válidos para que seja
possível, a partir dele, construir conhecimento. Um paradigma forneceria os
fundamentos sobre os quais uma dada comunidade científica desenvolve suas
atividades. Ele seria algo parecido com um “mapa” a ser usado pelos cientistas
na exploração da natureza. Este guia de observação, este referencial sobre o qual
as práticas se erigem é algo que modela a produção do conhecimento. É esta
aproximação que nos interessa, na medida em que estão em voga hoje diversos
princípios orientadores para o trabalho em saúde mental, que estão exercendo
uma função paradigmática. Tais princípios são diferentes dos outrora vigentes
e, sendo assim, seus efeitos se materializam de outros modos no cotidiano dos
indivíduos que são alvo desse cuidado (CAMATTA; SCHNEIDER, 2009;
SILVA; SADIGURSKY, 2008; CAMPOS; SOARES, 2005).
Como dito anteriormente, a principal característica do modelo tradicional
hospitalocêntrico e manicomial é estar ancorado no princípio da doença-cura,
atendo-se, preferencialmente, ao aspecto orgânico do sofrimento – fator do qual
decorre a ênfase em terapêuticas medicamentosas. Sua base tende a ser atualizada
cotidianamente pela via de atendimentos centrados em sintomatologias,
classificações nosológicas e pela prática da reclusão – fruto da aliança histórica
entre loucura, pobreza e exclusão (FOUCAULT, 2004). Há no horizonte uma
perspectiva de cura e de normatização/normalização das condutas (COSTA-
ROSA, 2003). O atendimento ao paciente se dá de forma segmentarizada, dentro
de uma perspectiva de especialidades múltiplas, mas atuando em separado. Não
estão previstos atendimentos conjuntos, nem muito menos trocas de informações
e planejamento das ações dos diferentes profissionais. O instrumento a partir
do qual eles se comunicam é o prontuário – muitas vezes preenchido de modo
burocrático e com poucas informações sobre a vida do paciente.
No que diz respeito ao Paradigma de Atenção Psicossocial, situado na
interface entre Saúde Mental e Saúde Coletiva, parte-se do entendimento de
que saúde-doença é resultante de processos sociais complexos, demanda uma
abordagem interdisciplinar e intersetorial e a construção de uma diversidade
Resultados e análise
Sobre os usuários e seus familiares
Os usuários entrevistados nesta etapa específica da pesquisa fazem parte dos 214
cadastrados no ambulatório no momento em que se realizou a investigação. Apesar
da inexistência de muitas informações nos prontuários, observamos que o perfil
predominante no serviço é de usuários do sexo feminino, solteiros e natural de
Natal-RN. A faixa etária da maioria está entre 41 e 50 anos, e o grau de instrução
é bastante diversificado, sendo que o nível fundamental incompleto se destaca.
Quanto à renda, a grande maioria não possui salário ou benefícios sociais. Muitos
usuários residem com familiares e/ou cônjuge e os domicílios localizam-se
predominantemente nos distritos sanitários leste e oeste da cidade de Natal. Muitos
apresentam o diagnóstico de esquizofrenia, têm histórico de internação psiquiátrica,
são oriundos de outros serviços substitutivos como CAPS e Hospital-Dia e fazem
uso do ambulatório, especialmente em função das consultas psiquiátricas mensais.
Dos 214 usuários, 42% utilizam o serviço para consultas psiquiátricas,
participação no grupo Bom Dia – espaço de acolhimento onde os usuários conversam
sobre diferentes temas escolhidos por eles e os técnicos fornecem avisos acerca das
atividades e dinâmica do serviço e oficinas. O restante vai ao ambulatório apenas
Considerações finais
Do complexo panorama exposto, evidencia-se que a construção da corresponsabilidade
entre técnicos e familiares, no que toca ao cuidado no campo da saúde mental,
deve vir acompanhada de ações de suporte às famílias, de mudanças nos modos de
trabalho e gestão, bem como de avanços em relação às políticas de inclusão social
e reabilitação psicossocial, de fortalecimento de mecanismos de controle social, de
estímulo ao empoderamento dos usuários e familiares, no sentido de fazer avançar
o processo de desinstitucionalização em saúde mental.
Referências
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MELMAN, J. Família e doença mental. São Paulo: Escritus, 2001.
Notas
1
Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq na forma de Bolsa de Produtividade em
Pesquisa, Apoio Técnico, Mestrado e Iniciação Científica.
2
Pesquisa de Iniciação Científica vinculada ao projeto de mestrado “A cronificação nos serviços sub-
stitutivos na rede de saúde mental de Natal/RN” (SEVERO, 2009).
RESUMO: A iniciativa de escrever sobre as tera- ABSTRACT: The initiative to write about systemic Ana Flávia Dias
pias sistêmicas de família no contexto da Atenção family therapies in the context of Psychosocial Tanaka Shimoguiri
Psicossocial partiu de experiências de uma das Care cames from the experiences of one of the Doutoranda e Mestra em
pesquisadoras enquanto terapeuta de família e researchers, who is a family therapist and works Psicologia pela Universidade
ao mesmo tempo trabalhadora de um Centro de in a psychosocial alcohol and drug center. This Estadual Paulista “Júlio de
atenção psicossocial álcool e drogas. Este artigo article intended to make a brief contextualization, Mesquita Filho” – Faculdade
se destinou a fazer uma breve contextualização, from the National Policy on Drugs, of the treat- de Ciências e Letras de
partindo da Política Nacional sobre Drogas, das ments offered to the patients and their families in Assis/São Paulo/ Brasil;
ofertas de tratamento disponíveis para os pacien- the psychosocial alcohol and drug center, and, Terapeuta Ocupacional;
tes e suas famílias nos Caps, e, principalmente, mainly, by a case report, from a practical expe- Terapeuta de Família e de
por um relato de caso, a partir de uma experiência rience, the applicability of systemic therapies in Casal
af_tanaka@hotmail.com
prática, buscou-se sublinhar a aplicabilidade das psychosocial establishments was emphasized, as
terapias sistêmicas nos estabelecimentos psicos- a further treatment for drug addiction. The results
sociais, como mais um recurso de tratamento à of the research reiterate the importance of inser- Fernanda Silveira
dependência química. Os resultados da pesquisa ting family care in mental health services. Serralvo
reiteram a importância de inserir o atendimento à Assistente Social; Terapeuta
família nos serviços de saúde mental. Keywords: family therapies, Caps, psychiatric de Família e de Casal;
reform, national policy on drugs. Membro da Associação
Palavras-chaves: terapia de família, Caps, re- Brasileira de Terapia de
forma psiquiátrica, política nacional sobre drogas. Família – ABRATEF
fserralvo@live.com
Sessão 2
Sessão 3
Compareceram apenas Alice e Aline, a
educadora social, informou que, Eliane A assistente social do “Raio de Luz” in-
e Elaine teriam atendimentos no Cen- formou que Cristina falecera devido a
tro de Referência Especializado em As- um quadro de overdose, relatou que Ali-
sistência Social (CREAS), por isso não ce tinha agredido outras crianças e havia
Mais uma vez, introduzimos a cadeira enfrentam impasses intensos para vi- Fernanda Silveira Serralvo
1
Sobre as tendências punitivas contemporâneas, à direita e à esquerda do espectro político, ver Karam (2009.a).
A expansão do poder punitivo incorpora ao controle social exercido através do sistema penal
parâmetros bélicos que exacerbam a hostilidade contra os selecionados sofredores concretos e
potenciais da pena, ao acrescentar às ideias sobre o “criminoso” – tradicionalmente visto como o
“mau”, o “outro”, o “perigoso” – e a seu papel de “bode expiatório” o ainda mais excludente perfil
do “inimigo”2.
Principal instrumento propiciador dessa contemporânea expansão do poder punitivo é a
proibição às drogas tornadas ilícitas, materializada na criminalização das condutas de seus
produtores, comerciantes e consumidores. Globalmente inaugurada no início do século XX, a política
proibicionista subiu de tom a partir da década de 1970, passando a explicitamente associar o
sistema penal à guerra. Com efeito, em 1971, o então presidente norte-americano Richard Nixon
declarava uma “guerra às drogas”, que logo se expandia para o mundo. A disseminada expressão
“guerra às drogas” deixa explícita, em sua própria denominação, a moldura bélica que dá a tônica do
controle social exercitado através do sistema penal nas sociedades contemporâneas.
Materializando-se na criminalização de condutas massivamente praticadas em todo o
mundo, a proibição às drogas tornadas ilícitas forneceu e fornece o impulso requerido pela
consolidação de uma globalmente uniforme tendência punitiva3 e uma expansão do poder punitivo
sem paralelos.
Após a declaração de guerra, o número de pessoas encarceradas nos Estados Unidos da
América por crimes relacionados a drogas aumentou em mais de 2.000%. Em duas décadas, entre
1980 e 2000, o número total de presos norte-americanos passou de cerca de 300.000 para mais de 2
milhões4, transformando a antiga “land of the free” no país que mais encarcera em todo o mundo.
O Brasil segue a mesma tendência, tendo hoje a quarta maior população carcerária do
mundo. São mais de 500 mil presos: conforme dados do Ministério da Justiça eram 548.003 em
dezembro de 2012, o que corresponde a 287,31 presos por cem mil habitantes. A média mundial
(em maio de 2011) é de 146 por cem mil habitantes. Nos últimos vinte anos o Brasil praticamente
quadruplicou sua população carcerária. Se o crescimento do número de presos nos Estados Unidos
da América, após anos de estrondoso aumento, parece ter chegado a seu auge, estancando ou
2
O “inimigo” é aquele que assume o perfil do estranho à comunidade, a quem, por sua apontada
“periculosidade”, não são reconhecidos os mesmos direitos dos pertencentes à comunidade e que, assim,
desprovido de dignidade e de direitos, perde sua qualidade de pessoa, tornando-se uma “não-pessoa”. Ver
Zaffaroni, E.R. (2006).
3
Sobre a globalizada atuação do sistema penal e o lugar de destaque ocupado pela “guerra às drogas”, ver
Andreas, P. e Nadelmann, E. (2006).
4
Em dezembro de 2011, os presos norte-americanos eram 2.239.800. Fontes: US Department of Justice, Bureau
of Justice Statistics; International Centre for Prison Studies.
apresentando ligeira queda nos últimos anos5, no Brasil o crescimento é ininterrupto. Em 1992, eram
74 presos por cem mil habitantes; em 2004, 183 por cem mil habitantes; em junho de 2011, 269 por
cem mil habitantes. Acusados e condenados por “tráfico” que, em dezembro de 2005 (a partir de
quando começaram a ser fornecidos dados relacionando o número de presos com as espécies de
crimes), eram 9,1% do total dos presos brasileiros, em dezembro de 2012, chegavam a 26,9%. Entre
as mulheres, essa proporção alcança praticamente metade das presas (47,35%), tendo chegado a
quase 60% no ano anterior (em dezembro de 2011, eram 57,62%)6.
A “guerra às drogas” não é e nunca foi propriamente uma guerra contra as drogas. Não se
trata de uma guerra contra coisas. Dirige-se sim, como quaisquer outras guerras, contra pessoas: os
produtores, comerciantes e consumidores das selecionadas substâncias psicoativas tornadas ilícitas.
Mas, não exatamente todos eles. Os alvos nessa guerra são os mais vulneráveis dentre os
produtores, comerciantes e consumidores das drogas proibidas; os “inimigos” nessa guerra, são seus
produtores, comerciantes e consumidores pobres, não brancos, marginalizados, desprovidos de
poder.
Nos cárceres dos Estados Unidos da América, repletos de condenados por crimes
relacionados às drogas tornadas ilícitas, sua população não está representada de maneira uniforme.
Os índices de prisões de afro-americanos são muito superiores aos índices de prisões de brancos, em
gritante desproporcionalidade com sua presença na população como um todo. Negros são dez vezes
mais suscetíveis de serem abordados, revistados e detidos do que brancos. Negros formam 13,5% da
população dos Estados Unidos da América, mas 37% dos que são detidos por violações a leis de
drogas são negros; mais de 42% dos que estão em prisões federais e quase 60% dos que estão em
prisões estaduais por violações a leis de drogas são negros. A taxa de encarceramento nos Estados
Unidos da América é de 716 presos por 100 mil habitantes. Quando se consideram apenas os
homens afro-americanos, sobe para cerca de 4.700 presos por 100 mil habitantes. Na África do Sul,
em 1993, à época do apartheid, eram 815 por 100.000 habitantes os homens negros sul-africanos
nas prisões7.
O encarceramento massivo de afro-americanos nos Estados Unidos da América nitidamente
revela o alvo e a função da “guerra às drogas” naquele país: perpetuar a discriminação e a
5
Se em dezembro de 2011, os presos norte-americanos eram 2.239.800, correspondendo a 716 presos por cem
mil habitantes, em 2007, eram 2.298.041, correspondendo a 758 por cem mil habitantes. Fontes: US Department
of Justice, Bureau of Justice Statistics; International Centre for Prison Studies.
6
Fontes: Ministério da Justiça do Brasil; International Centre for Prison Studies.
7
Fontes: FBI; Bureau of Justice Statistics, US Department of Justice; Substance Abuse and Mental Health
Services Administration; Human Rights Watch; The Sentencing Project.
marginalização fundadas na cor da pele, anteriormente exercitadas de forma mais explícita com a
escravidão e o sistema de segregação racial conhecido como Jim Crow8.
O alvo preferencial da “guerra às drogas” brasileira também é claro: os mortos e presos
nessa guerra – os “inimigos” – são os “traficantes” das favelas e aqueles que, pobres, não-brancos,
marginalizados, desprovidos de poder, a eles se assemelham.
A explícita opção bélica deixa claro o descompromisso com os direitos fundamentais dos
indivíduos: guerras e direitos humanos são naturalmente incompatíveis. Violência, mortes, doenças,
encarceramento massivo são o resultado dessa danosa e sanguinária política, institucionalizada nas
convenções internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU)9 que impõem as diretrizes
criminalizadoras adotadas pelas legislações internas dos mais diversos Estados nacionais em matéria
de drogas. Característica marcante de tais diplomas internacionais e nacionais é a sistemática
violação a princípios garantidores positivados em normas inscritas nas declarações internacionais de
direitos e constituições democráticas.
8
Sobre esse ponto é indispensável a leitura da obra de Michelle Alexander (2010).
9
São três as convenções da ONU sobre a matéria, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre
entorpecentes de 1961, que revogou as convenções anteriores e foi revista através de um protocolo de 1972; o
Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de
entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena). Ainda ao tempo da Liga das Nações,
já tinham sido estabelecidas convenções internacionais sobre drogas, a primeira delas a Convenção
Internacional sobre o Ópio, adotada em Haia em 23 de janeiro de 1912. A imposição de criminalização só se
concretiza, porém, com as convenções da ONU.
Situado na base do modelo do Estado democrático e destacadamente positivado em normas
fundamentais inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas10,
o princípio da isonomia exige que o mesmo tratamento seja dado e os mesmos direitos sejam
reconhecidos a todos que estejam em igualdade de condições e situações. Como na feliz afirmação
de Fábio Konder Comparato, direitos nunca podem ser reconhecidos a alguns apenas, ou a uns mais
do que a outros.11
O tratamento diferenciado somente é admissível quando exista uma correlação lógica entre
a peculiaridade diferencial acolhida e a desigualdade de tratamento em função dela conferida. Essa
peculiaridade diferencial há de estar radicada na diferença que as coisas, pessoas ou situações
possuam em si mesmas, não se autorizando a discriminação quando nelas não se encontram fatores
desiguais. Há de se notar ainda que não existem duas situações tão iguais que não possam ser
distinguidas, da mesma forma que inexistem situações tão distintas que não possuam algum
denominador comum em função do qual possam ser equiparadas, por isso não sendo qualquer
distinção entre as situações ou as pessoas que estaria a autorizar a discriminação, a eventual
existência de alguma diferença havendo de ser efetivamente relevante para o tratamento
diferenciado que se quiser introduzir legislativamente12.
Certamente, não há qualquer peculiaridade ou qualquer diferença relevante entre as
arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas e as demais drogas que permanecem lícitas.
Todas são substâncias que provocam alterações no psiquismo, podendo gerar dependência e causar
doenças físicas e mentais. Todas são potencialmente perigosas e viciantes. Todas são drogas. Seus
efeitos mais ou menos danosos dependem, muito mais, da forma como quem as usa se relaciona
com elas do que de sua própria composição. Uma droga mais potente consumida com moderação
pode ter efeitos menos danosos do que uma droga menos potente consumida abusivamente. Como
há muito já mostrou Claude Olievenstein, “o problema da droga não existe em si, mas é o resultado
do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sócio-cultural”13. Se, assim mesmo, se
quisesse levar em conta tão somente o maior ou menor potencial danoso de cada droga em si
mesma (seus efeitos primários), a arbitrariedade do tratamento diferenciado se revelaria ainda mais
10
Declaração Universal dos Direitos Humanos – “Artigo VII. Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem
qualquer distinção, a igual proteção da lei. (...)”.
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – “Artigo 14. 1. Todas as pessoas são iguais perante as
cortes e tribunais. (...)”.
Constituição Federal brasileira – “Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.
11
Comparato, F.K. (1996).
12
Ver Bandeira de Mello, C.A.(1993).
13
Olivenstein, C. (1984).
claramente, pois algumas drogas lícitas são potencialmente mais danosas, em sua própria
composição, do que algumas drogas tornadas ilícitas.14
A violação ao princípio da isonomia estampada na proibição criminalizadora das condutas de
produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas
já demonstra a manifesta incompatibilidade das convenções internacionais e leis nacionais em
matéria de drogas com normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e constituições
democráticas.
Mas, a violação a princípios garantidores inscritos nessas normas fundamentais vai além. As
convenções internacionais e leis nacionais que discriminatoriamente proíbem condutas de
produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas
criam crimes sem vítimas, ao criminalizarem a mera posse daquelas substâncias e sua negociação
entre adultos, assim violando a exigência de ofensividade da conduta proibida.
A criminalização de qualquer ação ou omissão há de estar sempre referida a uma ofensa
relevante a um bem jurídico alheio, relacionado ou relacionável a direitos individuais concretos, ou à
exposição deste bem jurídico a um perigo de lesão concreto, direto e imediato. Condutas só podem
ser proibidas se forem aptas a causar dano ou perigo concreto de dano a um bem jurídico alheio,
isto é quando impedem a possibilidade de seu titular usar ou se servir (isto é, dispor) do objeto
concreto relacionado ao bem jurídico (tais como a vida, a saúde, o patrimônio, etc.)15. Ainda quando
eventualmente reconhecíveis bens jurídicos de caráter coletivo, estes hão de estar sempre
referenciados a direitos individuais concretos.
A desvinculação de regras criminalizadoras da afetação de direitos individuais concretos dilui
o indivíduo em uma abstrata coletividade, despersonalizando-o e conduzindo-o ao anônimo papel
de instrumento a serviço de fins que, divorciados da referência individualizada, sacrificam a
liberdade e alimentam totalitarismos de todos os matizes. A visão de que abstratos interesses de
uma também abstrata sociedade devessem prevalecer sobre os direitos individuais não esconde
essa inspiração totalitária. A sociedade há de ser concretizada. A sociedade não é algo abstrato, mas
sim o conjunto de indivíduos concretos. Os ditos interesses da sociedade só se legitimam quando
referidos a bens individualizáveis.
Em uma democracia, o Estado não está autorizado a intervir em condutas que não envolvem
um risco concreto, direto e imediato para terceiros, não estando assim autorizado a criminalizar a
14
Ver Nutt, D.; King, L.A.; Saulsbury, W.; Blakemore, C. (2007).
15
Conforme a apropriada conceituação de Eugenio Raúl Zaffaroni, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar (2000),
o bem jurídico é uma relação de disponibilidade de um sujeito com um objeto. Embora costumeiramente o bem
jurídico seja identificado ao objeto (como a vida, a saúde, o patrimônio, etc.), o que o direito protege (ou
pretende proteger) não é o objeto em si mesmo, mas sim a possibilidade que o sujeito tem de usar ou de se servir
(ou seja, de dispor) daqueles objetos concretos.
posse para uso pessoal de drogas ilícitas, que, equivalente a um mero perigo de autolesão, não afeta
qualquer bem jurídico individualizável. Também não está o Estado autorizado a intervir quando o
responsável pela conduta age de acordo com a vontade do titular do bem jurídico, não estando
assim autorizado a criminalizar a venda ou qualquer outra forma de fornecimento de drogas ilícitas
para um adulto que quer adquiri-las, conduta que, tendo o consentimento do suposto ofendido,
tampouco tem potencialidade para afetar concretamente qualquer bem jurídico individualizável.
Leis que desconsideram o consentimento do titular do bem jurídico e criminalizam a conduta
do terceiro que age de acordo com sua vontade ilegitimamente criam um mecanismo destinado a
indiretamente impedir que aquele titular do bem jurídico exerça seu direito de dele dispor (no caso
em foco, dispor de sua própria saúde). A proibição de uma conduta teoricamente lesiva de um
direito de um indivíduo não pode servir, ainda que indiretamente, para tolher a liberdade desse
mesmo indivíduo que a lei diz querer proteger.
Como há muito assinalava Bustos Ramírez, “cuando se sanciona el tráfico de droga y
todos los actos relativos o que le sirven de presupuesto, ciertamente lo que se está haciendo
es impedir o prohibir el consumo”16.
A realização dos direitos fundamentais não se compatibiliza com a obstrução e
impedimentos a desejos e direitos dos próprios titulares dos bens para os quais se direciona a tutela
jurídica. A racionalidade indispensável aos atos de governo, em um Estado democrático,
evidentemente, não convive com a contrariedade aos anseios e aos direitos dos próprios titulares
dos bens destinatários da tutela jurídica. O Estado democrático não está autorizado a substituir o
indivíduo em decisões que dizem respeito apenas a si mesmo. Em uma democracia, o Estado não
pode tolher a liberdade dos indivíduos sob o pretexto de pretender protegê-los. Ninguém pode ser
coagido a ser protegido contra sua própria vontade. Intervenções do Estado supostamente dirigidas
à proteção de um direito contra a vontade do indivíduo que é seu titular contrariam a própria ideia
de democracia, pois excluem a capacidade de escolha na qual esta ideia se baseia.
O princípio da legalidade e o princípio das liberdades iguais submetem todo poder estatal ao
império da lei e asseguram a liberdade individual como regra geral, situando quaisquer proibições e
restrições no campo da exceção e condicionando sua validade ao objetivo de assegurar o igualmente
livre exercício de direitos de terceiros. Enquanto não atinja concreta, direta e imediatamente um
direito alheio, o indivíduo é e deve ser livre para pensar, dizer e fazer o que bem quiser. Essa
afirmação, que reproduz o conteúdo do princípio das liberdades iguais, é uma conquista histórica da
humanidade, proclamada nos ideais das revoluções francesa e americana do século XVIII. No artigo
16
Bustos Ramírez, J. (1990).
4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da França de 1789, já se afirmava que “a
liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudica terceiros”.
Daí se extrai o conteúdo do princípio da exigência de ofensividade da conduta proibida, que,
além de se vincular ao postulado da proporcionalidade, extraído do aspecto material da cláusula do
devido processo legal, também claramente se vincula ao próprio princípio da legalidade, dada a
sólida relação deste com o princípio das liberdades iguais.
Partindo da violação ao princípio da isonomia e à exigência de ofensividade da conduta
proibida, as convenções internacionais e leis nacionais que discriminatoriamente criminalizam a
produção, o comércio e o consumo das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, ainda
vão mais além. À medida que cresce o tom repressor, multiplicam-se regras que, estabelecendo
especial rigor penal e processual contra condutas relacionadas àquelas substâncias proibidas, sob a
falaciosa alegação de que tais ilegitimamente criminalizadas condutas não poderiam ser controladas
por meios regulares, reiteram e ampliam a contrariedade a princípios garantidores inscritos nas
declarações internacionais de direitos humanos e constituições democráticas17.
Passados 100 anos da proibição, com seus mais de 40 anos de guerra, os resultados são
mortes, prisões superlotadas, doenças se espalhando, milhares de vidas destruídas e nenhuma
redução na disponibilidade das substâncias proibidas. Ao contrário, nesses anos todos, as
arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas foram se tornando mais baratas, mais potentes,
mais diversificadas e muito mais acessíveis do que eram antes de serem proibidas e de seus
produtores, comerciantes e consumidores serem combatidos como “inimigos” nessa nociva e
sanguinária guerra.
A própria Organização das Nações Unidas que, em 1998, tomada por delirante euforia,
prometia um mundo sem drogas em dez anos18, posteriormente teve de reconhecer a expansão e
diversificação do mercado das drogas ilícitas. Em recente relatório, o Secretariado de seu Escritório
para Drogas e Crimes (UNODC) estimou que, de 153 milhões a 300 milhões de pessoas entre 15 e 64
anos teriam usado uma substância proibida pelo menos uma vez no ano de 201019. O mesmo
relatório, destacando o fato da maconha continuar a ser a droga ilícita mais utilizada, seguida pelas
17
Ver Karam (2009.b).
18
Na Sessão Especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGASS) de 1988 foi lançado o slogan que se
tornou famoso “A Drug-Free World – We Can Do It”, transmitindo a anunciada intenção de erradicar todas as
drogas ilícitas – da maconha ao ópio e à coca – até 2008.
19
Relatório do Secretariado para a 56ª Sessão da Comissão de Drogas Narcóticas (CND), em março de 2013.
anfetaminas, revela que foram identificadas quarenta e nove novas substâncias psicoativas,
consumidas em Estados membros da União Europeia em 2011, número superior às quarenta e uma
novas substâncias identificadas em 2010 e às vinte e quatro em 2009.
Dados da Drug Enforcement Agency (DEA) apontam que, em 1970 – ou seja, antes da
declaração de “guerra às drogas” –, 4 milhões de pessoas nos Estados Unidos da América, maiores
de 12 anos, tinham usado uma droga ilícita, correspondendo a 2 por cento da população de então,
enquanto em 2003 esse número era de 112 milhões, correspondendo a 46 por cento da população20.
Em pesquisas periodicamente realizadas nos Estados Unidos da América entre alunos de escolas
médias as respostas têm sido que é mais fácil comprar drogas ilícitas do que cerveja e cigarros21.
As apreensões realizadas em operações policiais, que, antes da declaração de “guerra às
drogas” se faziam em quilos e, agora, se fazem em toneladas, além de revelarem a expansão da
produção e do comércio, ao reduzirem momentaneamente a oferta, acabam por proporcionar uma
imediata supervalorização das mercadorias, assim criando maiores incentivos econômicos e
financeiros para o prosseguimento daquelas atividades econômicas tornadas ilegais.
Por outro lado, eventuais êxitos repressivos em determinado local conduzem a um mero
deslocamento dos empreendimentos ilícitos. Recentemente, parte significativa da produção de
cocaína na Colômbia se deslocou para o Peru, em movimento que simplesmente inverte o que
aconteceu nos anos 1990, quando houve um deslocamento da produção do Peru e da Bolívia para a
Colômbia22.
Eventuais êxitos repressivos muitas vezes também acabam por incentivar produtores,
comerciantes e consumidores a buscar outras substâncias, podendo conduzir – como, de fato, têm
conduzido – à chegada ao mercado ilegal de novos produtos mais lucrativos e/ou mais potentes em
seus efeitos primários (efeitos derivados da própria natureza da substância). Assim reconheceu o
diretor-geral da Polícia Federal brasileira, por ocasião de conferência internacional realizada no Rio
de Janeiro em 2010: pretendendo louvar um suposto sucesso da repressão, acabou por afirmar que
dificuldades impostas pela repressão à produção de cocaína fizeram com que as “quadrilhas de
traficantes” buscassem uma alternativa que se concretizou no crack.23 Este não é apenas o caso do
crack. O ópio que costumava ser fumado ou bebido acabou sendo substituído pela heroína injetável.
Durante a proibição do álcool nos Estados Unidos da América, no período de 1920 a 1933, o
20
Substance Abuse and Mental Health Services Administration (SAMHSA).
21
Johnston, L.; Bachman, J.; O'Malley, P. (2001).
22
The New York Times (13/06/2010); The Economist (02/04/2013).Veja-se ainda UNODC: World Drug Report
2012.
23
27ª International Drug Enforcement Conference, realizada no Rio de Janeiro em abril de 2010. Veja-se
matéria em O Estado de São Paulo (27/04/2010).
comércio de cerveja e vinho perdeu espaço para vendas de outras bebidas alcoólicas mais fortes,
mais concentradas, lucrativas e perigosas, como uísque e gin.
O fracasso da proibição, além de ser evidente, seria facilmente previsível. Drogas são usadas
desde as origens da história da humanidade. Milhões de pessoas em todo o mundo fizeram e fazem
uso delas. A realidade tem mostrado que, por maior que seja a repressão, esse quadro não muda:
sempre há e haverá quem queira usar essas substâncias. E havendo quem queira comprar, sempre
haverá pessoas querendo correr o risco de produzir e vender. Os empresários e empregados das
empresas produtoras e distribuidoras das substâncias proibidas, quando são mortos ou presos, logo
são substituídos por outros igualmente desejosos de acumular capital ou necessitados de trabalho.
Essa é uma lei da economia: onde houver demanda, sempre haverá oferta. As artificiais leis penais
não conseguem revogar as naturais leis da economia.
O fracasso da política proibicionista demonstra a inadequação das regras constantes das
convenções internacionais e leis nacionais que discriminatoriamente criminalizam as condutas de
produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas
para atingir seu declarado objetivo de eliminar ou pelo menos reduzir a circulação de tais
substâncias psicoativas. Não bastassem, pois, as originárias violações ao princípio da isonomia e à
exigência de ofensividade da conduta proibida e as acrescidas violações a outros princípios
garantidores inscritos em normas fundamentais, a insistência na aplicação de tais ilegítimas regras
criminalizadoras, demonstradamente inadequadas para atingir o fim a que se propõem, ainda se
revela contrária ao postulado da proporcionalidade, já na consideração do primeiro de seus
requisitos.
Mas, o manifesto fracasso da proibição não é o dado mais relevante de sua inadequação. A
proibição não é apenas uma política falida. É muito pior do que simplesmente ser ineficiente. Mais
do que a inaptidão para atingir o declarado objetivo de eliminar ou pelo menos reduzir a circulação
das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, a proibição acrescenta danos muito mais
graves aos riscos e os danos que podem ser causados pelas drogas em si mesmas. O mais evidente e
dramático desses riscos e danos provocados pela proibição é a violência, resultado lógico de uma
política fundada na guerra.
Não são as drogas que causam violência. O que causa violência é a proibição. A produção e o
comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas.
Não há pessoas fortemente armadas, trocando tiros nas ruas, junto às fábricas de cerveja,
ou junto aos postos de venda dessa e outras bebidas. Mas, isso já aconteceu. Foi nos Estados Unidos
da América, entre 1920 e 1933, quando lá existiu a proibição do álcool. Naquela época, Al Capone e
outros gangsters trocavam tiros nas ruas, enfrentando a polícia, se matando na disputa do controle
sobre o lucrativo mercado do álcool tornado ilícito, cobrando dívidas dos que não lhes pagavam;
atingindo inocentes pegos no fogo cruzado.
Hoje, não há violência na produção e no comércio do álcool, ou na produção e no comércio
de tabaco. Por que é diferente na produção e no comércio de maconha ou de cocaína? A resposta é
óbvia: a diferença está na proibição.
Só existem armas e violência na produção e no comércio de maconha, de cocaína e das
demais drogas tornadas ilícitas porque o mercado é ilegal. É a ilegalidade que cria e coloca no
mercado empresas criminalizadas que se valem de armas não apenas para enfrentar a repressão. As
armas se fazem necessárias também em razão da ausência de regulamentação e da consequente
impossibilidade de acesso aos meios legais de resolução de conflitos.
Estudos apontam que o aumento da repressão acaba por aumentar também a violência,
especialmente homicídios24. Sem dúvida, a “guerra às drogas” mata muito mais do que as drogas.
No México, a partir de dezembro de 2006, com a posse do presidente Felipe Calderón, a
“guerra às drogas” foi intensificada, inclusive com a utilização das Forças Armadas na repressão aos
chamados “cartéis”. Desde então, as estimativas são de 60 a 70.000 mortes relacionadas à
proibição25. A taxa de homicídios dolosos no México no período de 2000 a 2006 se mantinha em
torno de 9 a 10 homicídios por cem mil habitantes (em 2006 foi de 9,7). Após uma queda no ano
seguinte (em 2007 foi de 8,1), esse índice começou a subir, chegando em 2009 a 17,7 e em 2011 a
23,7 homicídios por cem mil habitantes26.
No Brasil, a taxa de homicídios é ainda superior à do México – aproximadamente 26
homicídios por cem mil habitantes27. Grande parte desses homicídios está relacionada aos conflitos
estabelecidos nas disputas pelo mercado ilegal. Grande parte desses homicídios está relacionada à
nociva e sanguinária política baseada na guerra. Na cidade do Rio de Janeiro, nos últimos anos, uma
média de vinte por cento dos homicídios dolosos – ou seja, um em cada cinco – tem sido resultado
de execuções sumárias em operações policiais de “combate” ao comércio varejista das drogas nas
favelas28. Policiais brasileiros são autorizados formal ou informalmente e mesmo estimulados a
praticar a violência contra os “inimigos” personificados nos vendedores de drogas das favelas.
Certamente, quem atua em uma guerra, quem deve “combater” o “inimigo”, deve eliminá-lo. Como
24
Werb, D.; Rowell, G.; Kerr, T.; Guyatt, G.; Montaner, J.; Wood. E. (2010).
25
Veja-se matéria do The Observer (08/08/2010), quando as mortes no México ainda estavam no patamar de
28.000. No início de 2012, o patamar subira para 50.000 mortes: The Washington Post (02/01/2012). Em 2013,
já se falava em 70.000 mortes: International Herald Tribune (08/03/2013). A precariedade das informações
conduz a que esses números se refiram a estimativas, podendo, na realidade, ser ainda maior o número de
mortes.
26
Fonte: UNODC (2012).
27
Fonte: Mapa da Violência 2012.
28
Dados sobre homicídios no Rio de Janeiro podem ser encontrados no Instituto de Segurança Pública do
Governo do estado. As mortes resultantes de ações policiais não são computadas nos dados sobre homicídios.
Vêm travestidas nos “autos de resistência”.
se espantar com a violência policial? Do outro lado, os ditos “inimigos” desempenham esse único
papel que lhes foi reservado. Matam e morrem, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade
imposta ao mercado onde trabalham.
A intervenção do sistema penal em um mercado que responde a uma demanda de grandes
proporções, como é a demanda pelas arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, traz
mais uma consequência inevitável: a corrupção. A amplitude do mercado ilegal faz da produção e
do comércio dessas substâncias proibidas a principal oportunidade de lucro vindo de negócios
ilícitos e, consequentemente, o maior incentivo à corrupção de agentes estatais. São bilhões de
dólares em circulação. A ONU estimou o valor desse mercado em US$ 320 bilhões no ano de 2003.29
Assim como a violência, a corrupção também é um acompanhante necessário das atividades
econômicas que se realizam no mercado posto na ilegalidade.
A ilegítima e inadequada proibição da produção, do comércio e do consumo das
arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, tendo por objetivo declarado a eliminação ou
pelo menos a redução da circulação dessas substâncias psicoativas, foi instituída e se mantém sob o
pretexto de proteção à saúde.
Esse pretexto de proteção à saúde já se dissolve, no entanto, na própria arbitrariedade da
seleção das drogas tornadas ilícitas. Como assinala Bustos Ramírez, “no hay argumento para
justificar la función declarada (protección de la salud pública) de la ley penal, pues no se
protege frente a toda droga la salud pública y, por otra parte, tampoco las drogas
ilegalizadas aparecen como aquellas con una mayor dañosidad social, sino todo lo contrario,
esto es, aquellas permitidas.”30
Mas, além de dissolvido na arbitrariedade da seleção das drogas tornadas ilícitas, o pretexto
de proteção à saúde revela o que talvez seja o maior dos paradoxos dessa danosa política: a própria
proibição causa maiores riscos e danos à mesma saúde que enganosamente anuncia pretender
proteger.
Com a irracional decisão de enfrentar um problema de saúde com o sistema penal, o Estado
agrava esse próprio problema de saúde. Com a proibição, o Estado acaba por entregar o próspero
mercado das drogas tornadas ilícitas a agentes econômicos que, atuando na clandestinidade, não
estão sujeitos a qualquer limitação reguladora de suas atividades. A ilegalidade significa exatamente
a falta de qualquer controle sobre o supostamente indesejado mercado. São esses criminalizados
agentes – os ditos “traficantes”, ou os “inimigos” da “guerra às drogas” – que decidem quais as
drogas que serão fornecidas, qual seu potencial tóxico, com que substâncias serão misturadas, qual
será seu preço, a quem serão vendidas e onde serão vendidas.
29
UNODC: World Drug Report 2012.
30
Bustos Ramírez, J. (1990).
No mercado ilegal não há controle de qualidade dos produtos comercializados, o que
aumenta as possibilidades de adulteração, de impureza e desconhecimento do potencial tóxico das
drogas proibidas. Overdoses acontecem, na maior parte dos casos, em razão do desconhecimento
daquilo que se está consumindo.
A ilegalidade cria a necessidade de aproveitamento imediato de circunstâncias que
permitam um consumo que não seja descoberto, o que acaba por se tornar um caldo de cultura para
o consumo descuidado e não higiênico, cujas consequências aparecem de forma dramática na
difusão de doenças transmissíveis como a Aids e a hepatite.
Com a proibição, as arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas são apresentadas
como um mal em si mesmas, sem que se levem em conta as diferentes formas em que pode se dar
seu consumo. Fazem-se campanhas aterrorizadoras, seguidas de imagens de degradação de pessoas
apresentadas como se representassem a totalidade do universo de consumidores, quando a própria
ONU reconhece que apenas 10 a 13% dos que consomem drogas se tornam usuários problemáticos,
sofrendo de dependência ou de outras doenças relacionadas àquelas substâncias.31 A falta de
credibilidade do discurso aterrorizador acaba por levar à desconsideração de quaisquer
recomendações ou advertências seriamente feitas sobre riscos e danos à saúde que realmente
podem advir de um consumo excessivo, descuidado ou descontrolado não só das drogas tornadas
ilícitas, como também de todas as substâncias psicoativas, ou mesmo dos mais diversos produtos
alimentícios.
A proibição sugere a ocultação, assim dificultando o diálogo, a busca de esclarecimentos e
informações, especialmente entre adolescentes e seus familiares ou educadores. Além disso, a
artificial distinção entre drogas lícitas e ilícitas, concentrando sobre estas últimas os medos e os
perigos anunciados, costuma conduzir à total despreocupação familiar e pedagógica com o eventual
abuso das primeiras. Por outro lado, a ideia de estar fazendo algo proibido, o apelo desafiador
daquilo que é ilegal e o lado aparentemente glamouroso da marginalização podem se tornar um
incentivo no que diz respeito às buscas, às descobertas e aos desejos que caracterizam a
adolescência, faixa etária em que as sensações provocadas pelas drogas costumam exercer especial
e natural atração e em que os controles internos são menos atuantes.
A proibição dificulta também a assistência e o tratamento eventualmente necessários, seja
ao impor “tratamentos” compulsórios, que, além de reconhecidamente ineficazes, violam direitos
fundamentais, seja por inibir sua busca voluntária, que pressupõe a revelação da prática de uma
conduta tida como ilícita. Muitas vezes, essa inibição tem trágicas consequências, como em
31
Veja-se, por exemplo, o relatório citado na nota 19.
episódios de overdose em que o medo daquela revelação paralisa os companheiros de quem a sofre,
impedindo a busca do socorro imediato.
A proibição ainda impõe obstáculos até mesmo ao livre emprego das arbitrariamente
selecionadas drogas tornadas ilícitas com fins terapêuticos, como, dentre tantos outros usos
reconhecidamente eficazes, no uso da maconha para aliviar dores, náuseas e perda de apetite em
pacientes com Aids ou sob tratamento quimioterápico.
Ainda com reflexos no campo da saúde, devem ser mencionados os danos ambientais
provocados pela repressão, seja diretamente com a erradicação manual de plantas proibidas e,
ainda pior, com as fumigações aéreas de herbicidas sobre áreas cultivadas, como ocorreu na região
andina, especialmente com o Plano Colômbia, seja indiretamente, na medida em que a erradicação
manual ou química não só provoca o desflorestamento das áreas atingidas, como as multiplica,
levando os produtores a desflorestar novas áreas para o cultivo, geralmente em ecossistemas ainda
mais frágeis. Além disso, como acontece na comercialização dos produtos proibidos, também no que
se refere à produção, a clandestinidade provocada pela proibição impede qualquer controle ou
regulação, o que naturalmente eleva os riscos e danos ambientais. Pense-se, por exemplo, no
despejo no solo ou em rios de resíduos tóxicos resultantes do processamento químico das plantas
colhidas. Agindo na ilegalidade, produtores das substâncias proibidas, além de terem de evitar maior
exposição à repressão, não estão submetidos a quaisquer restrições, despejando os resíduos tóxicos
nos lugares que lhes forem mais convenientes, sem qualquer atenção para com o ambiente.
Mudar esse quadro é necessário e urgente. O fim da insana e sanguinária “guerra às drogas”
e a substituição da proibição por um sistema de legalização e consequente regulação da produção,
do comércio e do consumo de todas as drogas são passos primordiais para conter a expansão do
poder punitivo; para afastar leis violadoras de direitos fundamentais; para eliminar a violência e a
corrupção provocadas pela proibição; para efetivamente proteger a saúde.
Legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas não significa
permissividade, como insinuam os enganosos discursos dos partidários da fracassada e danosa
proibição. Ao contrário. A legalização significa o fim do mercado clandestino e, assim, o começo de
um sistema de regulação daquelas atividades. Legalizar significa exatamente regular e controlar, o
que hoje não acontece, pois um mercado ilegal é necessariamente desregulado e descontrolado.
Legalizar significa devolver ao Estado o poder de regular, limitar, controlar, fiscalizar e taxar a
produção, o comércio e o consumo dessas substâncias, da mesma forma que o faz em relação às
drogas já lícitas, como o álcool e o tabaco32.
Não basta descriminalizar a posse para uso pessoal ou legalizar apenas uma ou outra
substância considerada mais “leve”, como a maconha. É preciso sim legalizar a produção, o comércio
e o consumo de todas as drogas. Quanto mais potente e mais perigosa uma droga, maiores razões
para que seja legalizada, pois não se pode controlar ou regular algo que é ilegal. É preciso que a
produção, o comércio e o consumo de todas as drogas venham para a luz do dia, para assim se
submeterem a controle e regulação.
Legalizar tampouco significa que haveria um aumento incontrolável do consumo, como
insinuam os enganosos discursos dos partidários da fracassada e danosa proibição. Pesquisa
realizada pelo Zogby, nos Estados Unidos da América, em dezembro de 2007, registrou 99% de
respostas negativas à indagação sobre se, uma vez legalizadas drogas como cocaína ou heroína, os
entrevistados passariam a consumi-las, assim se projetando um consumo de tais substâncias em
proporções semelhantes às já ocorrentes. Na Holanda, onde o consumo de derivados da cannabis é
acessível nos tolerados coffee-shops, o percentual de seus consumidores entre jovens é bastante
inferior ao registrado nos Estados Unidos da América33.
Vale notar que a única diminuição significativa no consumo de drogas, nos últimos anos, foi
de uma droga legalizada: o tabaco, cujo consumo, inclusive no Brasil, se reduziu pela metade.34 Esse
resultado foi obtido sem proibição, sem “guerras”, sem prisões. Ninguém foi morto ou preso por
produzir, vender ou usar tabaco. Ao contrário, foram instituídos muito mais eficientes programas
educativos e regulações (vedação de publicidade, restrições ao consumo em lugares públicos, maior
divulgação dos danos provocados pelo tabaco), além de todo um esforço de desconstrução do
glamour do cigarro.
Por outro lado, é preciso ter claro que a legalização não significa que todos os problemas
estarão solucionados. A legalização não é, nem pretende ser, uma panaceia para todos os males. A
necessária legalização apenas porá fim aos riscos e aos danos criados pela proibição, assim
removendo uma grande parcela de violência, o que já significa enorme conquista para o bem-estar
social e a segurança pública. Com efeito, não há como se ter “guerra às drogas” e segurança pública
ao mesmo tempo. Preocupações verdadeiras com a segurança pública também exigem o fim da
proibição. Eliminando a violência provocada pela “guerra às drogas”, a legalização também eliminará
32
Vejam-se sugestões para regulamentação do mercado das drogas em Transform Drug Policy Foundation
(2009).
33
O percentual de consumidores entre jovens de 15 a 24 anos na Holanda gira em torno de 12%, enquanto nos
Estados Unidos da América esse percentual é de cerca de 27% entre os jovens de 18 a 25 anos Fontes: European
Monitoring Center for Drugs and Drug Addiction (2005); National Survey on Drug Use and Health (2004-
2005).
34
Ministério da Saúde (2009).
a maior fonte de renda advinda de atividades ilícitas. Os rendimentos gerados nas atividades de
produção e comércio das drogas legalizadas se integrarão às finanças legais, como são integrados os
rendimentos obtidos com a produção e o comércio das drogas já lícitas. Impostos serão pagos e
recebidos pelos Estados, da mesma forma que são pagos e recebidos os impostos devidos pelos
produtores e comerciantes das drogas já lícitas. E os Estados ainda economizarão o dinheiro gasto
com a repressão e com suas consequências. Os recursos econômico-financeiros assim
redirecionados poderão ser investidos em programas e ações voltados para a promoção da saúde e
da educação, para a construção de moradias decentes, para a criação de postos de trabalho, para a
preparação profissional, enfim, programas e ações efetivamente úteis socialmente.
A realidade e a história demonstram que o mercado das drogas não desaparecerá. As
pessoas continuarão a usar substâncias psicoativas, como o fazem desde as origens da história da
humanidade. Com o fim da proibição, estarão mais protegidas, tendo maiores possibilidades de usar
tais substâncias de forma menos arriscada e mais saudável.
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drug-gangs
ARTIGO
VIRGINIA LUCIA DE RESUMO: Relato da experiência com alunos ado- ABSTRACT: Description of an experience with
MOREIRA BARBOSA lescentes, com a promoção de diálogo em torno teenager students, involving conversations about
do tema álcool e outras drogas, visando ampliar the alcohol issue as well as other drugs, aiming
Psicóloga, grupoterapeuta,
o ponto de vista do jovem para além do binômio to enlarge the point of view of youngsters to a
terapeuta de família,
proibir/legalizar. Partindo do paradigma da com- dimension beyond the forbid/ legalize binomial.
especialista para atendimento
a usuários de álcool e outras plexidade, na trilha do construcionismo social, e Based on the complexity paradigm, on the trail
drogas (Ipub/UFRJ). apoiado na lógica de redução de danos, o artigo of social constructionism, and supported by the
pretende contribuir para a discussão a respeito harm reduction logics, the article intends to fur-
e-mail: virginiabarbosa2@ ther contribute to the discussion concerning pre-
gmail.com das ações de prevenção. Foi utilizada como mé-
vention actions. The method used here was that
todo a facilitação sistêmica de processos cole-
of systemic facilitation for collective processes, in
tivos, na criação de contexto colaborativo e no
the creation of a collaborative context and in the
acompanhamento do processo de construção do
following up of the process for construction of the
saber coletivo. Alunos e professores entraram em collective knowledge. Students and teachers have
Recebido em 05/11/2011. contato com os múltiplos aspectos que envolvem gotten into contact with the multiple aspects that
Aprovado em 10/12/2011. o assunto, exercitaram a reflexão e experimenta- involve the issue, exercised reflection and experi-
ram o sentimento de protagonismo na busca de mented the feeling of protagonism in the pursuit
soluções para o enfrentamento do problema. of solutions to face the problem.
PALAVRAS-CHAVE: Álcool e outras drogas, cons- KEYWORDS: Alcohol and other drugs, social
trucionismo social, redução de danos, prevenção, constructionism, harm reduction, prevention, sys-
facilitação sistêmica de processos coletivos. temic facilitation for collective processes..
o tipo e a qualidade das conversas & Pietilä, 2011; Strong, 2000, Strong, Bengt Karlsson
que podemos ter uns com os outros Sutherland, & Ness, 2011). Todos esses
e, da mesma forma, as conversas que conceitos complexos estão presentes
começamos a ter um com o outro nas “ideologias” dos profissionais e
irão influenciar o tipo e a qualidade em suas aspirações individuais, e en-
dos nossos relacionamentos. frentar essas complexidades pode ser
fundamental para determinar boas
Harlene Anderson práticas colaborativas e conversas dia-
lógicas (Anderson, 2012; Strong, Su-
No contexto atual dos tratamentos therland, & Ness, 2011).
em saúde mental os profissionais bus- Existe uma vasta literatura indi-
cam relações colaborativas e práticas cando que a base fundamental para
que incluam no processo a participa- as práticas colaborativas e conversas
ção ativa dos usuários dos serviços e dialógicas nos tratamentos em saúde
suas famílias (Beresford & Carr, 2012; mental é o relacionamento entre os
Karlsson & Borg, 2013). No centro usuários do serviços e os profissio-
dessas relações colaborativas estão a nais (Bordin, 1979; Sweeney, Fahmy,
competência e a capacidade das pesso- Nolan, Morant, Fox et al. 2014). Esta
as em ouvir, levar a sério um ao outro noção de colaboração tem sido descri-
e respeitar as diversas perspectivas, ta como o “cliente e o terapeuta for-
tanto no que diz respeito às relações mando uma parceria contra o inimigo
quanto à própria parceria em que essas comum, a dor do cliente” (Horvath &
pessoas se engajam (Anderson, 2012; Greenberg, 1994). Assim, o conceito
London, St. George, & Wulff, 2009; de colaboração carrega também um
Strong, Sutherland, & Ness, 2011). sentido de confiança, flexibilidade,
Para que a colaboração seja bem suce- trabalho em equipe, parceria, coope-
dida no tratamento em saúde mental é ração e trabalho conjunto visando ob-
preciso ainda haver um fluxo livre de jetivos compartilhados (Borg, Karls-
informação e compartilhamento dos son, & Stenhammer, 2013; Davidson,
feedbacks recebidos entre todos para Andres-Hyman, Bedregal, Tondora,
que tais informações se alinhem com Frey, & Kirk, 2008). A combinação
as mudanças de rumo que muitas ve- deste tipo de relação colaborativa com
zes acontecem (Sundet, 2011). a ideia de superação passa por um re-
Na literatura voltada para pesquisas posicionamento do profissional, que
sobre serviços e práticas que colocam se torna um expert em ajudar pessoas
a pessoa no centro da tomada de deci- a encontrar suas próprias formas de
são, existem várias premissas ou prin- administrar seus problemas e batalhas
cípios fundamentais. Tais princípios pessoais (Borg, Karlsson, & Stenham-
incluem poder trabalhar com crenças, mer, 2013; Borg & Kristiansen, 2004).
valores e prioridades às vezes antagô- A superação tem a ver com o empe-
nicos; administrar as relações de po- nho e o trabalho da própria pessoa no
der e o equilíbrio de poder; estabele- sentido de tocar sua vida e viver em
cer estratégias para engajar as pessoas; comunidade, apesar dos desafios que
pressupõe enxergar cada cliente como quando pedem ajuda. Esses múltiplos
pessoa singular, e não desistir. Como sistemas acabam criando situações em
disse um dos participantes: “Traba- que os profissionais acabam tendo que
lhamos com pessoas que são diferen- gastar um tempo assessorando os usu-
tes; temos que estar lá para insistir ários em meio a esses sistemas com-
nos pontos fortes e nas possibilidades plexos, da mesma forma que precisam
dessas pessoas. São seres humanos ajudá-los com suas questões cotidia-
que estamos ajudando; não podemos nas. Nas palavras de um participante:
desistir deles”. Eles também disse-
ram que precisam ajudar os usuários Fico frustrado por essas pessoas
do serviço a enxergar suas próprias quando sei que elas têm tantos ob-
forças e possibilidades; “importante jetivos para sua vida, mas quando
que as ideias que os profissionais fa- vão usar os nossos serviços encon-
zem de como viver uma vida boa não tram tamanha burocracia e esse
sejam a medida; são os pensamentos, emaranhado de sistemas. O que
esperanças e sonhos próprios de cada temos que fazer então é ajudar es-
pessoa que precisam estar no foco”. sas pessoas em paralelo para que
Em suma, nas discussões do grupo, os não fiquem perdidas; precisamos
participantes reafirmaram que as prá- fazer quase o mesmo trabalho de
ticas colaborativas têm a ver com não motivação que fazemos quando ofe-
desistir, ser persistente, insistir nas recemos ajuda prática e convida-
relações humanas, mesmo se os sis- mos para as conversas, para que a
temas nos quais trabalham são frag- pessoa não se canse ao se deparar
mentados e difíceis de entender para com este sistema tão complexo e
pessoas que solicitam ajuda. emaranhado.
camente (Strong, Sutherland, & Ness, lhada entre todas as partes interessadas
2011). A abordagem centrada na pes- é essencial nas práticas colaborativas
soa que os profissionais muitas vezes (Deegan, Rapp, Holter, & Riefer, 2008).
usam para construir uma relação co- É o imperativo ético no qual se baseia
laborativa com os usuários influencia o compartilhamento de decisões e a
o tipo e a qualidade das conversas que colaboração (Drake & Deegan, 2009).
eles poderão ter. Da mesma forma, as Manter relações humanas foi outro
conversas que os profissionais come- tema central na revelação dos proces-
çam a ter com cada usuário influen- sos nas práticas colaborativas. Isso sig-
ciarão o tipo e a qualidade da relação nifica que os profissionais sustentaram
que se estabelecerá (Anderson, 2012; a ideia de que os usuários do serviço
Topor & Denhov, 2012). são, em primeiro lugar, seres humanos
Por exemplo, o usuário do serviço e lutando com diferentes problemas de
o profissional trazem seu conhecimen- saúde mental e de uso de substâncias
to e “expertise” para a relação: pessoas (Davidson, 2005, Estroff, 1995). Pesso-
com problemas concomitantes pos- as com estes desafios de vida podem se
suem suas próprias percepções e ex- sentir envergonhadas, tentar por longo
periências significativas para si e para tempo esconder suas dificuldades e,
suas vidas, e os profissionais têm expe- muitas vezes, se sentirem estigmatiza-
riência nos processos de tratamento, das (Davidson, 2005). O estigma e a
na prestação de serviços e atividades discriminação têm um efeito incômo-
especiais. Além disso, também trazem do sobre a vida de muitas pessoas, di-
em sua bagagem conhecimentos pes- minuindo sua esperança e rebaixando
soais e experiências de vida, podendo sua autoestima (Corrigan, Rafacz, &
criar espaço para relações colaborati- Rüsch, 2011). Podem fazer com que se
vas e conversas dialógicas. Juntos de- sintam menosprezadas, suspeitas ou
senvolvem expertise e conhecimento, percebidas como difíceis de ajudar, não
que é uma forma intersubjetiva e com- cooperativas e desmotivadas (Ness,
partilhada de conhecer com base nas Karlsson, Borg, Biong, Sundet, McCor-
respectivas perspectivas. Dessa forma, mack, & Kim, 2014). Os resultados de
podem avançar na construção de di- nosso estudo sugerem a necessidade de
álogos e relações. O foco, no entanto, reconhecer a importância do contexto
está em identificar e nutrir a expertise e das relações. Isso representa uma
do usuário e fortalecer sua capacida- mudança no foco, da identificação da
de de lidar com a vida cotidiana. O doença para a ênfase nas vidas das pes-
usuário também ajuda a orquestrar soas, prestando atenção nos cotidianos
sua própria ajuda, compartilhando a dos usuários, suas atividades, traba-
tomada de decisão em todos os aspec- lhos, parcerias em desenvolvimento,
tos do tratamento. Se os profissionais no sentimento de pertencer e o de
tiverem uma opinião, por exemplo, ‘se sentir em casa’ (Borg, Sells, Topor,
sobre os participantes de uma equi- Mezzina, Marin, & Davidson, 2005;
pe de tratamento, devem expressá-la, Jensen, Borg, & Topor, 2010). Os seres
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Acesso Livre
RESUMO
A Redução de Danos (RD) vem se consolidando como um importante movimento nacional, impulsionando a
construção de uma política de drogas democrática. Neste artigo destacaremos o modo como a RD se constituiu
frente aos embates com as forças totalitárias da política global de “guerra às drogas”. Enfocaremos tanto aspectos
internacionais quanto aspectos nacionais que confluíram para a construção de uma política antidrogas. É dentro
desse cenário político que a RD vem se consolidando como uma outra política de drogas possível. Analisaremos
como a inclusão dos usuários de drogas em arranjos coletivos de gestão é uma importante direção clínica e política
do movimento da RD, definindo uma nova proposta de atenção em saúde. A partir desses espaços coletivos de cui-
dado, os usuários de drogas puderam tecer uma rede nacional de cooperação e de produção de uma luta comum.
Palavras-chave: políticas públicas; saúde pública; uso de drogas.
ABSTRACT
Harm Reduction (HR) has been consolidated as an important national movement, promoting the building of a
democratic drug policy. In this article we will highlight how HR has been shaped in the face of clashes with to-
talitarian forces of the “war on drugs” global policy. We will focus on both international and national aspects that
came together to build an anti-drug policy. It is within this political scenario that HR is consolidating itself as a
different and feasible drug policy. We intend to show the extent to which the inclusion of drug users in collective
arrangements of management is an important clinical and political direction of the HD movement, defining a
new proposal for health care. From these collective spaces of care, drug users have been able to weave a national
network of cooperation and production of a common struggle.
Keywords: public policies, public health, drug use
A Redução de Danos (RD) foi adotada como es- quando, a partir de 2003, as ações de RD deixam de ser
tratégia de saúde pública pela primeira vez no Brasil no uma estratégia exclusiva dos Programas de DST/AIDS
município de Santos-SP no ano de 1989, quando altos e se tornam uma estratégia norteadora da Política do
índices de transmissão de HIV estavam relacionados Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de
ao uso indevido de drogas injetáveis (Mesquita, 1991). Álcool e Ouras Drogas e da política de Saúde Mental.
Proposta inicialmente como uma estratégia de prevenção Esse processo de ampliação e definição da RD
ao HIV entre usuários de drogas injetáveis – Programa de como um novo paradigma ético, clínico e político
Troca de Seringas (PTSs) – a Redução de Danos foi ao para a política pública brasileira de saúde de álcool e
longo dos anos se tornando uma estratégia de produção outras drogas implicou um processo de enfrentamento
de saúde alternativa às estratégias pautadas na lógica e embates com as políticas antidrogas que tiveram suas
da abstinência, incluindo a diversidade de demandas bases fundadas no período ditatorial.
e ampliando as ofertas em saúde para a população de A construção de uma política de Redução de Da-
usuários de drogas. A diversificação das ofertas em saúde nos será analisada a partir da interface entre o processo
para usuários de drogas sofreu significativo impulso nacional de abertura política e a construção de uma
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Psicologia & Sociedade; 23 (1): 154-162, 2011
política global de “guerra às drogas”. O lento processo inimigos transnacionais como são as “drogas” e o
de abertura política no Brasil foi acompanhado de rear- “terrorismo”, ampliando seu alcance temporal e espa-
ranjos macropolíticos que possibilitaram a manutenção cial, tornando seu estado cada vez mais permanente. A
de práticas autoritárias no interior do próprio Estado aposta na guerra como forma de manter a ordem social
Democrático. As políticas de drogas passaram a assumir acaba por torná-la um estado contínuo nas sociedades
uma posição estratégica nesta reforma estatal, impondo contemporâneas, ao invés de um estado de exceção.
impasses para o amplo processo de democratização e A amplitude transnacional do problema gerado
restrições para a atenção equânime, integral e universal pelo tráfico de drogas confere a essa guerra um caráter
as pessoas usuárias de drogas. difuso, ao mesmo tempo em que intensifica o controle
No cenário nacional, vivemos na década de 80, o social, identificando as drogas como a encarnação do
fracasso do, então, “milagre econômico”, o alto índice mal. No campo da guerra global às drogas toda hu-
da inflação, a explosão demográfica nos grandes centros manidade pode, por um lado, unir-se contra o mal e,
urbanos, aumentando os cinturões de pobreza nas perife- por outro lado, qualquer um pode ser um inimigo da
rias e favelas. A falência do modelo econômico nacional humanidade.
e o desemprego conjuntural vieram acompanhados do A guerra às drogas se tornou ao mesmo tempo
aumento do mercado ilícito. Podemos agregar a esse pro- um exercício de controle social e uma estratégia para
cesso econômico o sucateamento da educação pública e a ampliação da economia neoliberal a partir do exercí-
o aumento da violência urbana. É dentro desse contexto cio do poder e da violência. A economia neoliberal se
nacional que, no final da década de 80 e início da década fortalece através da intensificação de uma economia
de 90, o tráfico de drogas, sobretudo de cocaína, ganha bélica, já que a lógica de guerra às drogas e a lógica de
projeção tanto no mercado nacional quanto no mercado consumo não são lógicas opostas, elas se alimentam e
internacional (Batista, 1998, 2001). se fortalecem mutuamente.
As favelas e periferias urbanas passam a ocupar A lógica de guerra às drogas busca combater
um lugar estratégico para o forte mercado de drogas, a produção da substância, dividindo os países entre
recrutando jovens pobres para o tráfico. As disputas produtores, exportadores e consumidores, reprimindo
por pontos de venda de drogas entre facções inimigas a oferta dos países produtores, a procura dos países
e o enfrentamento direto com a polícia agregaram ao consumidores e a exportação nas fronteiras, portos e
mercado de drogas o mercado de armas, dando início aeroportos. Tal estratégia se baseia numa lógica ge-
a uma verdadeira guerra civil que se encontra inserida ográfica e desloca para os países periféricos a fonte
num “ciclo global de guerras”. causadora dos problemas gerados pelo trafico de dro-
No cenário internacional, as drogas - e posterior- gas. Tal estratégia bélica e econômica não inclui como
mente o terrorismo - passaram gradativamente a subs- problema a ser enfrentado a produção de subjetividade
tituir o comunismo como figura ideológica de ameaça consumista que movimenta o mercado internacional de
à democracia mundial (Batista, 2001; Negri & Cocco, drogas e que caminha de mãos dadas ao processo de
2005). A emergência da política global de “guerra às transnacionalização da economia de mercado.
drogas”, liderada pelos EUA, ampliaram e fortaleceram Nas sociedades de consumo os produtos são intan-
a economia bélica, fomentando práticas totalitárias em gíveis, como uma “sensação de bem-estar”, um “estilo
diferentes pontos do planeta, chegando a intervenções de vida”, uma “identidade pré-fabricada”. O marketing
militares diretas, como as ocorridas na Bolívia, no e os meios de comunicação investem, sobretudo, na
Panamá e na Colômbia (Karam, 2003). produção desejante como motor da economia. Dentro
A “guerra às drogas” e a “guerra ao terrorismo” desse contexto, as drogas se inserem numa rede de
trouxeram um novo sentido para o conceito de guerra, produção de substâncias que se agencia a uma ampla
na medida em que essas guerras passam a lidar com um rede de produção de subjetividade. As drogas permitem
“objeto” global que torna cada vez mais imprecisa a dis- acessar de modo prático, rápido e de qualquer lugar a
tinção entre “conflitos externos” e “segurança interna”. rede de produção de subjetividade consumista.
Enquanto as ditas “classes perigosas” eram o alvo da O tráfico de drogas não pode se reduzir à produção
segurança interna, os conflitos externos tinham como da substância, mas deve se estender ao plano de produ-
alvo de intervenção os ditos “inimigos”. Entretanto, ção de subjetividade consumista. Os produtos (drogas)
no mundo contemporâneo, as ameaças externas e as representam uma pequena parte do processo de produ-
ameaças internas tornam-se cada vez mais híbridas e, ção do mercado transnacional de drogas que, apesar de
a um só tempo, alvos de uma guerra globalizada (Negri ser uma prática ilícita, se beneficia e se fortalece dos
& Hardt, 2005). meios lícitos de produção de subjetividade. Da mesma
No atual estado de guerra global, as guerras forma, as favelas representam um pequeno ponto den-
passam a ser declaradas a inimigos não geográficos, tro de uma ampla rede transnacional, que se constitui
155
Passos, E. H. & Souza, T. P. “Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””
como um plano que articula produção lícita e produção economia e do avanço da lógica neoliberal, ampliando
ilícita através de um diversificado cardápio de meios o poder repressivo do Estado-Mínimo e o poder de
de comunicação. Entretanto, ao focalizar esforços em governo do mercado transnacional sobre os próprios
combater a produção das drogas, as estratégias policiais Estados Nacionais. Estabelece-se uma aliança entre ter-
e militares assumem a função de controle social das ca- mos aparentemente contraditórios, mas que comungam
madas pobres, pois passam a localizar geograficamente de interesses comuns, de modo a preservar a lógica de
um processo de produção transnacional: responsabili- mercado. É neste cenário macropolítico que as drogas
zar as favelas e os países periféricos por um mercado tornaram-se um mal a ser eliminado pelo Estado e, ao
que é movimentado por uma lógica de consumo que é mesmo tempo, um produto a ser altamente consumido
acionada pelos países do primeiro mundo. pela classe média e alta.
No Brasil, práticas da ditadura, como a tortura, É nesse mesmo cenário, de constituição de uma
passaram a ser exercidas sobre comunidades pobres política de guerra às drogas, que ocorre a primeira ação
mediante uma intensificação do poder policial. Sobre de Redução de Danos no Brasil, em 1989, no município
a justificativa de defesa da democracia e combate às de Santos-SP. Santos vivia, nesse momento, um das ges-
drogas, forças antidemocráticas constituíram uma tões municipais mais promissoras para a implementação
complexa rede bélica no cerne da própria democracia. do Sistema Único de Saúde (SUS) através de práticas
Mais do que um combate às drogas, esse arranjo vem concretas que animariam o sentido de saúde democrá-
garantindo um exercício de combate às próprias forças tica. Apesar desse cenário, aparentemente favorável a
democráticas emergentes. Não estamos falando de práticas progressistas de atenção e gestão em saúde, o
guerra às drogas, e sim de uma repressão generalizada então secretário municipal de saúde, David Capistrano,
à própria democracia, um “Estado de Guerra” no cerne e o Coordenador do programa de DST/AIDS, Fábio
do “Estado Democrático de Direito” que se apoia ora Mesquita, sofrem uma ação judicial por adotarem a
sobre o eixo drogas, ora sobre o eixo terrorismo. estratégia de Redução de Danos, acusados de incentiva-
É dentro dessa lógica que, em 1998, instituiu-se rem o uso de drogas. Nessa época, Santos era conhecida
a “Secretaria Nacional Antidrogas, que, na sua origem, como “capital da AIDS”, cidade portuária, a maior da
subordinava-se à Casa Militar da Presidência da Repú- América Latina, lugar de trocas e encontros de todas
blica, transformada em 1999, sem perder seu caráter as ordens, ponto estratégico do tráfico internacional de
militarista, em Gabinete de Segurança Institucional do drogas. Dados epidemiológicos indicavam que 51%
Presidente da República” (Karam, 2003, p.79). dos casos de contaminação de HIV/AIDS estavam re-
O exercício de poder gerado no embate entre lacionados ao compartilhamento de seringa para o uso
forças democráticas e forças totalitárias constituiu de drogas injetáveis (Mesquita, 1991).
um jogo de contradições entre uma Constituição que A ação judicial que David Capistrano sofreu não
garante direito a liberdades individuais e uma lei do será tomada como um episódio de uma história pessoal,
Direito Penal que impede que as pessoas usem certas mas sim como um acontecimento político que evidencia
substâncias. Cabe destacar que a lei 6368/762 foi profe- o encontro entre as forças conservadoras que sustentam
rida em pleno período ditatorial e seu caráter autoritário uma política antidrogas e as forças progressistas que
não foi reformulado a partir da Constituição de 1988. adotavam a RD como uma estratégia em defesa da vida
A contradição do próprio arcabouço jurídico remete, e da democracia. A retaliação judicial e policial sofrida
antes de tudo, à conciliação sinistra entre democracia por essa secretaria municipal de saúde pôs em evidência
e totalitarismo sobre o eixo das drogas. a contradição da própria máquina estatal, na medida em
A repressão ao tráfico de drogas que se exerce que o poder judiciário suspende o direito constitucional
de forma mais violenta nas zonas de maior pobreza de acesso universal à saúde. É dentro deste enfoque, da
revela uma “falsa oposição” criada entre Estado Nação problematização entre políticas totalitárias e políticas
e Capitalismo Globalizado, que se atualizam sobre o democráticas que coexistem e compõem o funciona-
eixo drogas. O desafio é poder captar o momento em mento da máquina estatal, que iremos situar os embates
que as aparentes oposições determinam uma aliança travados pela RD no Brasil.
entre o avanço da lógica de consumo produzido pelo A restrição que sofre a RD no Brasil permite não
capital mundial e os modos de sujeição dos Estados só identificarmos atitudes arbitrárias, como a própria
Nacionais, ou seja, uma estranha e paradoxal aliança contradição do arcabouço jurídico do Estado. Essa ação
entre repressão e liberação. inconstitucional não pode ser explicada unicamente a
O modelo repressivo da política estatal contra as partir da Lei 6368/76, mas sim através dos meios pelos
drogas evidencia um modo de operar no qual o Estado quais o autoritarismo mantém práticas que limitam o
se vê às voltas com os efeitos da própria globalização da exercício da democracia.
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Psicologia & Sociedade; 23 (1): 154-162, 2011
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Passos, E. H. & Souza, T. P. “Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””
A moral cristã compõe, junto com a justiça e a de estratégias de mobilização e um sentido de luta para
psiquiatria, uma rede de instituições que tem por finali- as ações de RD. O sentido de luta, comum à RD, coloca
dade única e comum a abstinência. Porém, ao contrário um novo desafio para esse dispositivo. O objetivo da RD
da psiquiatria que se volta mais para a doença mental e não pode mais ser reduzido à prevenção de DST/AIDS,
da justiça que se volta mais para a delinquência, a moral da mesma forma que o objeto de intervenção desse mo-
religiosa inclui um terceiro elemento, a associação do vimento não se reduz a um confronto com a justiça.
prazer ao mal. O prazer da carne, que frequentemente
tem sido associado ao uso de drogas, é objeto histórico Produção e gestão do comum
de intervenção do poder pastoral e, atualmente, se as-
socia ao poder disciplinar; mas a gênese desse poder é Em 1994 boletins do Ministério da Saúde indi-
muito mais antiga do que a própria disciplina. O poder cavam que 25% dos casos de AIDS no Brasil estavam
da Igreja sobre os usuários de drogas se justifica muito associados ao uso indevido de drogas injetáveis (Mar-
mais por uma problemática do “prazer” do que, exclu- ques & Doneda, 1998). Essa realidade epidemiológica
sivamente, pela problemática da “razão”. Enquanto a exigia que a RD deixasse de ser uma ação pontual do
psiquiatria e a criminologia produziam verdades sobre município de Santos e se tornasse uma ação dentro da
a razão e práticas de “cura” do anormal, fosse louco política nacional. A construção dessa política passou
ou criminoso, a moral cristã atém-se aos desvios da por vários desdobramentos e interfaces em função do
“carne”, aos prazeres apetitosos. conjunto de instituições que se construíram ao redor do
A problematização moral do uso de drogas se tema AIDS/drogas.
assenta em certa medida em um conjunto de regras mo- Nesse mesmo ano (1994) iniciou-se um projeto
rais de fundamento cristão, naquilo que o cristianismo de articulação política em torno da interface AIDS e
historicamente definiu como conduta frente aos prazeres Drogas: “Projeto Drogas” do Programa Nacional de
da carne. Coube ao cristianismo situar o prazer sob signo DST/AIDS. Tal projeto contava com o apoio político
do mal e da morte, produzindo, segundo Foucault, uma e financeiro da Organização das Nações Unidas, por
inversão histórica na passagem da Antiguidade para a meio do Programa das Nações Unidas para o Contro-
Era Cristã. Dessa forma, o uso dos prazeres se tornou le Internacional de Drogas (UNDCP)3. Esse projeto
objeto de interdição moral e “poder-se-ia acrescentar buscou articular, em torno do tema drogas, a Coorde-
o alto valor moral e espiritual que o cristianismo, nação Nacional de Saúde Mental, o então Conselho
diferentemente da moral pagã, teria atribuído à absti- Federal de Entorpecentes - CONFEN - do Ministério
nência rigorosa, à castidade permanente, à virgindade” da Justiça e as Secretarias do Ministério de Educação
(Foucault, 1994, p. 17). Trata-se de uma malha fina, e do Desporto (Marques & Doneda, 1998). A RD foi
um poder capilar que, antes de fundar as práticas de inserida em diferentes programas e secretarias que
tratamento, fundou a própria individualidade pecadora. criaram, junto ao Projeto Drogas, diferentes linhas de
Nesta semiótica, o prazer passa a ser identificado a um intervenção estadual e municipal, principalmente a
espaço interior, regido pelos pensamentos, sentimentos: criação dos Programas de Redução de Danos (PRDs).
intenções obscuras da alma. O espaço interior do desejo, Como na Holanda, onde foram criadas as ações de
a vigília e o pecado original redefiniram a própria sub- troca de seringa entre usuários de drogas injetáveis, os
jetividade e as práticas que passaram a reger o prazer: PRDs foram fundados em muitos casos por usuários
confissão, retiro, punição. O poder pastoral sobre a carne de drogas responsáveis tanto pelos processos de gestão
atravessou séculos e constitui o mais longo diagrama quanto pelos processos de atenção, sendo denominados
de poder que Foucault pôde estabelecer. de Redutores de Danos.
É dentro deste eixo de problematização e produ- Ao inserir, no cenário nacional, um conjunto de
ção de verdades sobre o corpo e sobre o prazer que a estratégias de Redução de Danos, o PN - DST/AIDS
RD abre um novo campo de possibilidades clínicas, po- criou um jogo de articulações e tensões no interior da
líticas e existenciais. Sendo assim, não podemos reduzir própria máquina estatal. É esse jogo de tensões e arti-
os desafios que a RD vem enfrentando à sua dimensão culações que ocorreram no interior da máquina estatal
de embate com a Lei. A ação judicial que o Secretário que nos permite acompanhar como a RD vai aos poucos
de Saúde de Santos sofreu revelou um embate com as deixando de ser uma estratégia de prevenção as DST/
práticas de sujeição dos usuários de drogas, relações de AIDS e vai se tornando um novo paradigma, na medida
saber-poder que constituem na contemporaneidade o em que inclui os usuários de drogas como protagonis-
paradigma da abstinência, tecido entre o Direito Penal, tas dessas ações. Os investimentos do PN-DST/AIDS
poder psiquiátrico e a moral cristã. possibilitaram a criação de outro plano de sustentação
O encontro com essas relações de poder, construí- da RD, não mais local, mas sim nacional. A RD tornou-
das em torno do paradigma da abstinência, exige a criação se uma política de governo com pretensão de vir a ser
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política de Estado, encontrando forte tensionamento situada entre as ações locais disparadas pelas ONGs
com outros setores da máquina posicionados a favor de (associações) e a máquina de Estado, criando um atra-
uma política antidrogas. Apesar dos embates no âmbito vessamento entre as mesmas.
federal, foi na esfera municipal, no plano concreto das Mais importante do que localizar as instâncias de
ações que a RD sofreu as maiores restrições. Dessa formulação das ações de RD é analisar o modo como
forma, mesclavam-se um plano de articulação federal essas passaram a serem apropriadas pelos usuários de
e um plano municipal. drogas, gerando um grande efeito de mobilização (Mi-
Diante dessa realidade política, foi fundada, no nistério da Saúde, 2003b). A rede nacional de redutores
ano de 1996, a Associação Brasileira de Redutores de de danos passou a exercer um papel importante de
Danos (ABORDA), com a função de capacitar e arti- mobilização e articulação nacional por uma nova po-
cular os Programas de Redução de Danos. A ABORDA lítica de drogas. Mobilizadas em redes, as associações
mobilizou redutores de danos e usuários de drogas para passaram a lutar pelos direitos dos redutores de danos
que se organizassem politicamente, fundando diversas e dos usuários de drogas. Nesse contexto, algumas
ONGs pelo Brasil. associações foram fundadas por redutores de danos
A direção política da ABORDA foi ao encontro que trabalhavam em PRDs e passaram a se organizar
da necessidade dos redutores de danos de alcançarem politicamente, enquanto outras foram fundadas por
maior autonomia para gerir as políticas de RD, pois os usuários de drogas que lutavam mais abertamente pela
mesmos não encontravam ambiente favorável para se descriminalização do usuário de drogas dentro de uma
expressarem dentro dos PRDs. Por serem, inicialmente, proposta antiproibicionista 4.
aparelhos estatais, os PRDs encontravam-se inseridos As ONGs desempenharam um importante papel
num contexto institucional que impunha obstáculos à na história da RD no Brasil, já que, a partir delas, os
nascente militância dos redutores de danos e usuários redutores de danos puderam construir uma rede coop-
de drogas. A militância política forçou a criação de es- erativa e democrática. Entretanto, a criação das redes de
paços de gestão “exteriores” ao próprio Estado, como redução de danos não representou um desatrelamento
as associações nas quais os usuários de drogas viam a da máquina estatal. Ao invés disso, a mobilização dos
possibilidade de não serem identificados a doentes ou redutores de danos gerou uma estranha e paradoxal
criminosos (Ministério da Saúde, 2003b). A ABORDA relação com o Estado: receber financiamento do Estado
criou junto com as ONGs um método de inclusão das e, ao mesmo tempo, conjurar a política antidrogas ainda
minorias, que foi ativado, principalmente, pelos redu- hegemônica na máquina estatal.
tores de danos. Essa relação paradoxal da RD com o Estado leva à
A ABORDA, por meio de encontros nacionais e construção, na prática concreta dos redutores de danos,
redes de interação virtual (internet), colaborou na fun- de um novo sentido de política pública, não mais iden-
dação e articulação das ONGs. Dessa forma, as diversas tificada à política de Estado ou política de governo. Tal
ONGs, dentre elas a própria ABORDA, teceram uma sentido de público se expressa doravante como gestão
rede nacional de redutores de danos que contava com do comum (Benevides & Passos, 2005).
a participação tanto daqueles que atuavam em ONGs O plano de articulação política criada pelas as-
quanto dos que vinham dos PRDs que não fundaram sociações permitiu que os embates locais fossem in-
ONGs (Ministério da Saúde, 2003b). Redutores de seridos num circuito de trocas e mobilizações através
danos, travestis, usuários de drogas, profissionais de de redes nacionais. A inclusão do usuário de drogas
saúde, pessoas vivendo com HIV, estudantes e pes- nos serviços de saúde não só como um paciente, mas
quisadores criaram uma gestão democrática através de como ator corresponsável pelas políticas, vem sendo o
redes abertas de interação e cooperação, evitando que os desafio da RD. Nas associações de redutores de danos,
PRDs ficassem isolados e restritos a um contexto local. os usuários de drogas participam como agentes políticos
A consolidação dessa rede fez emergir um outro plano colaboradores na produção de redes de cuidado e de
de produção das políticas de RD, que não se reduzia comunicação, criando uma mobilização coletiva, uma
nem ao plano e local, nem ao plano estatal e federal. A gestão do comum.
tecedura dessa rede possibilitou a inclusão de grupos O que estamos chamando de comum? Tomemos,
minoritários num circuito de relação, em que se passou então, o conceito de “multidão” de Negri e Hardt
a trocar muito mais do que seringas descartáveis. O (2005). Segundo os autores, o conceito de multidão
método da RD foi, aos poucos, se descolando do foco se distingue tanto do de povo quanto do de massa. O
específico de prevenir, efetivado através do dispositivo povo preservaria um caráter identitário e unitário do
de troca de seringas, e assumiu objetivos mais amplos, governo. Uma certa tradição da filosofia política define
acionados por novos dispositivos de gestão e atenção. que somente o que é uno pode governar, seja o monarca,
A cooperação em rede fundou uma plataforma política o partido, o povo ou indivíduos. Para essa corrente
159
Passos, E. H. & Souza, T. P. “Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””
filosófica, sujeitos sociais que não são unificados, mas (Campos, 2000, p. 42). Como exemplo, nas associa-
múltiplos, não podem governar, devendo pelo contrário ções de RD os usuários de drogas podem colaborar na
ser governados. produção de projetos, construir projetos, estabelecer
A multidão, ao contrário, é uma multiplicidade contratos, votar e se candidatar para a direção das ins-
composta por diferenças singulares que encontram na tituições em que participam.
gestão do comum um novo modo de governo. A RD in- Observa-se na experiência de gestão da RD que
dicou uma forma de governo da multiplicidade, lutando muitos usuários de drogas abandonam ou diminuem o
pela manutenção da heterogeneidade que se encontra uso de drogas quando experimentam um contexto no qual
numa multidão e ao mesmo tempo pela consolidação de se sentem acolhidos. Além disso, o uso abusivo pode
um compromisso comum, sem reduzir o usuário de dro- comprometer a execução de compromissos assumidos
gas a formas identitárias como o doente ou criminoso. coletivamente: seja o trabalho de campo, acessar outros
Através das associações, os usuários de drogas foram usuários de drogas em situações de vulnerabilidade,
incluídos numa gestão comum organizada em rede. participar de uma reunião nos conselhos municipais
Segundo Negri e Hardt (2005), a mobilização ou nas assembleias da associação de que faça parte. A
do comum segue dois aspectos: um aumento intensivo mobilização introduziu os usuários de drogas em redes
das forças democráticas na esfera local e um aumento locais de gestão comum, nas quais o consumo de drogas
extensivo das lutas, quando passam a se comunicar com é constantemente ressignificado por acordos coletivos.
outras lutas, constituindo uma organização em rede. Podemos observar, a partir da RD, uma construção
O modo como o movimento da RD foi se orga- coletiva e comum para as experiências com as drogas,
nizando permitiu que singularidades locais fossem in- indicando uma inseparabilidade entre atenção e gestão.
seridas numa rede de interação nacional e internacional. Mediante esse modo de organização, além de participa-
Podemos dizer que as associações de redução de danos rem na gestão das políticas, muitas pessoas cessaram ou
são como nós de uma rede que consolidou um movimen- diminuíram o uso de drogas: das pessoas que usavam
to social de grupos minoritários, dando passagem para drogas abusivamente, 70% dos que se tornaram redu-
uma gestão do comum baseada na diferença, articulando tores de danos deixaram de ser dependentes químicos
com outros movimentos sociais: luta antiproibicionista, (Lancetti, 2006). A RD evidenciou que o governo de uma
luta dos portadores de HIV, luta dos gays, travestis e associação, por exemplo, e o governo de si são instâncias
profissionais do sexo e luta antimanicomial. A RD se que se distinguem, porém não se separam.
coloca como uma luta que comunica e, sobretudo, cria Segundo Campos, o método da cogestão realizado
uma plano de comunicação entre lutas. em Espaços Coletivos nos permite pensar uma copro-
Nesse modo de organização, o movimento de RD dução de coletivos e de sujeitos autônomos. “Espaços
propôs e construiu uma gestão do comum exercida por existenciais contíguos, interagindo uns sob os outros,
uma multiplicidade, não reduzindo as singularidades a criando zonas autônomas, mescladas e de mútua in-
um governo unitário: uma gestão de grupos que lutam fluência, a que os Sujeitos estariam constrangidos a
pela expressão das diferenças, constituindo redes de desvendar e a lidar para seguir vivendo” (Campos,
mobilização e comunicação. 2000, p. 68). A gestão comum, ou cogestão, produz
O comum é este plano de comunicação entre lutas uma inseparabilidade entre coprodução de coletivos e
fazendo da gestão do comum o acordo que se tece entre coprodução de sujeitos autônomos, o que nos traz uma
os que estão em luta. Pensar a dimensão pública das importante indicação para analisarmos a inseparabili-
políticas de drogas como gestão do comum é afirmar dade entre governo comum e governo de si enquanto
a um só tempo que a prática democrática no campo da prática ou cuidado de si.
saúde é a condução comunitária da gestão e também a A criação de uma rede coletiva e participativa
gestão que se faz do que nos é comum, isto é, o comum produziu efeitos clínicos altamente significativos.
como agente da gestão e o comum como objeto da Chama a atenção, nesse caso, que a RD não impôs aos
gestão; o comum que gere e é gerido a um só tempo. usuários, como condição de participação coletiva, parar
de usar drogas. No entanto, cabe ressaltar que o método
O método da cogestão e o cuidado de si da RD propõe certas regras de conduta que devem ser
pactuadas coletivamente.
A mobilização em rede introduziu os usuários de Enquanto a abstinência está articulada com uma
drogas em diversos dispositivos de gestão, nos quais era proposta de remissão do sintoma e a cura do doente, a
possível compartilhar interesses singulares e construir proposta de reduzir danos possui como direção a pro-
diretrizes comuns. A gestão do comum é um modo de dução de saúde, considerada como produção de regras
operar com os efeitos gerados pela mobilização, é um autônomas de cuidado de si. No caso da RD, a própria
método de cogestão realizado em Espaços Coletivos abstinência pode ser uma meta a ser alcançada, porém
160
Psicologia & Sociedade; 23 (1): 154-162, 2011
161
Passos, E. H. & Souza, T. P. “Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””
162
Revista UNINGÁ ISSN 2318-0579
RESUMO
Este artigo apresenta reflexões acerca da atuação do psicólogo na área das
chamadas substâncias psicoativas. De que forma o profissional se
responsabiliza pelo cuidado com os indivíduos? Em um primeiro momento,
apresenta-se uma periodização para história das substâncias psicoativas. Faz-
se uma revisão bibliográfica sobre o percurso do homem relacionado às
“drogas”. Em seguida, um apanhado sobre as Comunidades Terapêuticas (CT),
bem como o modo de funcionamento e estrutura dessas instituições. Ainda há
considerações voltadas para as Estratégias de Redução de Danos e seus
planejamentos para a intervenção junto ao usuário. A fim de cumprir os
objetivos propostos nesse trabalho, de pensar a atuação do profissional de
psicologia, finaliza-se com um comparativo pautado no Código de Ética. Assim,
esse artigo aponta olhares sobre a ética na saúde, que sustentam a postura
profissional do psicólogo.
ABSTRACT
This article presents reflections about the performance of the psychologist in the
area of so-called psychoactive substances. In what way the professional is
responsible for beware of individuals? In a first moment a periodization for
history of the psychoactive substances is presented. A bibliographical review is
done on the man's course related to "drugs". Then, a survey on the Therapeutic
Communities (CT) is made, as well as the mode of operation and structure of
these institutions. There are still considerations regarding Harm Reduction
Strategies and their plans for intervention with the user. In order to fulfill the
objectives proposed in this work, to think the performance of the psychology
professional, ends with a comparative guided by the Code of Ethics. Therefore,
this article points to the ethics of health, which support the psychologist's
professional posture.
INTRODUÇÃO
MATERIAL E MÉTODOS
DESENVOLVIMENTO
ESTRATÉGIAS DE CUIDADO
população obediente, mas sim crítica. Nesse sentido, uma sociedade educada
teria acesso às futuras formas de intervenção, com o objetivo de reformular os
métodos de prevenção quanto ao consumo de “drogas”.
A compreensão desses aspectos é fundamental para se refletir sobre o
modelo moral e idealizado. O desejo almejando em alcançar uma sociedade
livre de drogas, não condiz com a história da humanidade. Pode-se assim
pensar em estratégias e cuidados menos nocivos e respeitosos à autonomia
dos sujeitos.
Essas novas possibilidades devem ter como principal objetivo a eficácia
de sua ação: reduzir sintomas, pensar no indivíduo em sua totalidade. Portanto,
a título de explicação, nos deteremos a duas perspectivas de “cuidado”, sendo
estas as comunidades terapêuticas e as estratégias de redução de danos.
Comunidade Terapêutica
Reduções de Danos
DISCUSSÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
opinião opinion
descentralização das práticas
Abstract This article focuses on the attention to Resumo Este artigo desenvolve uma reflexão da
the crisis in mental health within the scope of Bra- atenção às situações de crise em saúde mental no
zilian public health policies. It sets out to show the âmbito das políticas públicas de saúde brasileiras.
theoretical and practical disputes of significance Tem como objetivo analisar as disputas de senti-
about the notions of crisis that unfold in different do teóricas e práticas sobre a noção de crise que
models of care in situations of urgency and emer- se desdobram em diferentes modelos de atenção
gency in mental health, as well as in challenges to às situações de urgência e emergência em saúde
the effectiveness of the care process in the health mental, bem como em desafios para a efetivação
network. The survey began with a descriptive and do processo de cuidado em rede. Partimos de um
exploratory study, with emphasis on the study of estudo exploratório, com ênfase na análise de
protocols and institutional documents in mental protocolos e documentos institucionais em saúde
health, from the sociotechnical standpoint. As an mental, à luz da abordagem sociotécnica. Como
original contribution of this article, the main so- contribuição original deste artigo, foram elen-
cio-technical dichotomies that emerged from the cadas as principais dicotomias sociotécnicas que
processes of attention to the crisis in Brazil (in the emergem dos processos de atenção à crise no Brasil
use of terminologies, clinical practice and atten- (no uso das terminologias, na prática clínica, na
tion models, the main challenges for consolidation conformação dos modelos de atenção em rede e em
of network care and in the vacancy regulation suas estratégias de regulação de vagas).
strategies) were highlighted. Palavras-chave Saúde mental, Saúde coletiva,
Key words Mental health, Public health, Urgen- Urgência, Emergências
cy, Emergencies
1
Departamento de Saúde
Coletiva, Universidade
Federal do Paraná. R. XV
de Novembro 1299, Centro.
80060-000 Curitiba PR
Brasil. kimati@hotmail.com
2
Departamento de Terapia
Ocupacional, Universidade
Federal de São Carlos. São
Carlos SP Brasil.
596
Dias MK et al.
Quadro 1. Documentos.
Autor e ano de publicação Título e Município de Origem
1 Secretaria Municipal de Saúde Belo Horizonte Política de Saúde mental de Belo Horizonte
(2008)
2 Prefeitura Municipal de Curitiba (2016) A Gestão Participativa na Saúde de Curitiba
3 Secretaria Municipal de Saúde de Divinópolis- Protocolo Técnico Operacional de Regulação em
MG- Diretoria de Regulação de Saúde (2015) Saúde- SUS Divinópolis
4 Secretaria Municipal de Saúde de Colombo-PR Protocolo de Saúde Mental
(2011)
5 Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza- CE Protocolos de Regulação das Urgências- Normas de
(2016) Conduta Técnica e Gestora Para Profissionais do SAMU
6 Prefeitura de Londrina-PR, Núcleo de Estudos Protocolo de Saúde Mental de Londrina PR
de Saúde Coletiva (UEL)
7 Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis Protocolo de Atenção em Saúde Mental
SC (2010)
8 Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Protocolos do Programa de saúde mental
Preto (Alexandre F. Souza Cruz, coord de saúde
mental) 2016
09 Secretaria De Estado De Saúde De Minas Gerais Atenção em Saúde Mental
Belo Horizonte, 2006
10 Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (2006) Crise e Urgência em Saúde Mental
11 Secretaria Municipal de Curitiba, Departamento Protocolo de Atendimento Inicial ao Paciente
de Urgência e Emergência (2014) Psiquiatrico da Central de Regulação SAMU 192
12 Secretaria Municipal de Betim (2006) Protocolo De AssistênciaEm Saúde Mental - Agitação
Psicomotora E Abstinência Alcoólica
por um projeto que preveja as situações de crise, cia/emergências se caracterizam como redes pa-
apontando para formas diferentes de abordagens ralelas13,14. Apresentam fluxos próprios, lógica de
com corresponsabilização entre serviços especia- condução própria e terminologia própria. Por
lizados, enfermarias de saúde mental em hospital exemplo, as redes de urgência tendem a ter no tri-
geral, atenção básica, rede de urgência/emergên- nômio SAMU – unidade de pronto atendimento
cia e rede intersetorial. (ou pronto socorro) – Hospital Psiquiátrico sua
Há diversos entraves para o desenvolvimen- rede de atenção preferencial. A utilização des-
to desta última estratégia, especialmente por te fluxo que culmina na internação psiquiátrica
que, cada um desses pontos da rede apresenta ocorre independente do usuário estar ou não em
linguagem, timing e aparelhagem muito diferen- acompanhamento num centro de atenção psi-
te daquela utilizada pela rede de saúde mental13. cossocial (CAPS). Autores apontam para o fato
Em estudo das demandas de saúde mental aten- de que este processo não só “devolve o usuário ao
didas pelo SAMU de Aracaju foi identificada na manicômio” como fortalece uma noção de que
coleta de dados que a maior parte dos pedidos a rede de atenção psicossocial é alternativa e de
de viatura são categorizados como “agitação”. Por baixa capacidade resolutiva13-15.
outro lado, a maior parte dos usuários atendidos A partir destes elementos, sistematizamos
é conduzida a prontos-socorros de urgência, não teórica e didaticamente, 3 modelos principais
para centros de atenção psicossocial, para onde de atenção à crise, com referência na legislação
são levados apenas 1,1% dos casos14. vigente (Portaria 3.088 MS/GM - RAPS) e no bi-
Estes dados se apresentam como um analisa- nômio centralização-descentralização, apresen-
dor da rede nacional a partir do qual é possível tados no Quadro 2.
inferir que as redes de saúde mental e de urgên-
Colaboradores
Referências
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Drogas. Saúde Mental em Dados. Brasília: MS; 2015.
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cional de Saúde Mental. [acessado 2018 Mar 2]. Di- Artigo apresentado em 01/11/2017
sponível em www.saude.gov.br e www.saude.gov.br/ Aprovado em 25/06/2018
bvs/saudemental Versão final apresentada em 27/06/2018
CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons
A noção de crise no campo da saúde
mental: saberes e práticas em
um centro de atenção psicossocial
Aline Gomes Martins1
RESUMO: Este trabalho é originado de pesquisa de mestrado que teve por objetivo
problematizar a noção de crise que dá sustentação à atuação dos centros de atenção psicossocial
(CAPSs), por meio de estudo realizado em uma unidade de atenção nesse formato. Foram
feitos levantamento bibliográfico em torno do tema, observações da rotina do serviço e
entrevistas com técnicos do CAPS. As entrevistas foram gravadas e submetidas à análise de
conteúdo, resultando em categorias de análise. Elas mostram que existe uma multiplicidade
de saberes e de noções convivendo, mas predomina a noção de crise aos moldes da clínica
médica. O sujeito é avaliado com base em seu comportamento, e não se abrem possibilidades
para outros tratamentos que levem em consideração aspectos subjetivos e intersubjetivos.
Palavras-chave: centro de atenção psicossocial; crise; saúde mental; clínica ampliada;
reforma psiquiátrica.
1
Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mestre em Psicologia Social pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Doutoranda em Psicologia Social pela UFMG.
Endereço para correspondência: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Avenida Antônio Carlos,
6.627 – Campus Pampulha, Belo Horizonte, MG. CEP: 31270-901. E-mail: alinepsicomartins@gmail.com
Artigo recebido em: 09/07/2016. Aprovado para publicação em: 02/11/2016.
1
O hospital psiquiátrico como o principal instrumento de atendimento à saúde mental é abordado na
obra de diversos autores. Entre eles, destacam-se no cenário internacional: Michel Foucault (2006),
Erving Goffman (1987), Franco Basaglia (1985), Robert Castel (1978), Manuel Desviat (1999), e no cenário
nacional: Paulo Amarante (1998) e Eduardo Vasconcelos (1992).
3 HIERARQUIZAÇÃO DO SABER
Um dos aspectos centrais encontrados nas observações das práticas e nas
entrevistas está descrito na categoria que denominamos de hierarquização do saber.
O CAPS é composto de saberes multiprofissionais, e cada profissional contribui, de
acordo com sua competência, com o tratamento do usuário. Essa contribuição deve
ser feita de forma conjunta e interativa, sendo fundamental a troca de informações
entre os membros da equipe interdisciplinar. Contudo, a análise das entrevistas
mostra que existe certo conflito entre esses saberes multidisciplinares e o lugar que
ocupam dentro do CAPS.
Como diz o outro, eu faço o que vem de lá, o que me mandar. [...] Eu não
acho nada, eu acho que eu tô aqui, mas vem a hierarquia. Médico, psicólogo
e nós aqui, pra cuidar. [...] Eu acho que é pelo respeito à hierarquia. Eu tenho
opinião, mas eu fico com ela pra mim, entendeu? (técnica de enfermagem).
Quem dá a voz final do tratamento tem que ser o médico, né? Ele é que sabe
manusear as medicações. Se o pessoal insiste eu falo: — então, vamos usar
o seu [tratamento/conhecimento], vamos ver? [Risos.] Quem dá a voz final
do tratamento é o médico. Ele é aquele profissional que se especializou em
fazer a terapêutica (psiquiatra).
um poder maior do que a de qualquer outra pessoa. Desde o início do século XIX
até os dias de hoje, o médico constitui, por meio da clínica, o mestre da verdade.
Na clínica, o doente é obrigado a reconhecer tudo o que se diz sobre ele. As marcas
do saber permitem que o médico reine no interior dos asilos e exerça o sobrepoder.
Esse jogo de saber e poder faz com que a figura de autoridade do psiquiatra se
corporifique no serviço.
Contrária à supremacia médica, Lobosque (2003) explica que os princí-
pios e as propostas dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico modificam
significativamente a forma de presença do psiquiatra nos equipamentos de saúde
mental. Isso porque a demanda deixa de ser endereçada de forma específica ao
psiquiatra. Um traço comum aos serviços substitutivos diz respeito ao fato de o
psiquiatra não ocupar posição central. O CAPS, como um dispositivo de atenção
à crise e aos transtornos graves e persistentes, foi criado a fim de oferecer ajuda
ao sujeito, mas sem exercer controle nem domínio, como o hospital psiquiátrico.
Segundo Lobosque (2003), cabe aos profissionais da saúde oferecer uma ajuda que
se encontre subordinada a um projeto político e social. Essa ajuda é chamada pela
autora de “clínica em movimento”, uma clínica que não caminha para si mesma,
mas combina e se articula com tudo o que se movimenta e se transforma na cultura,
na vida, no convívio entre os homens.
Sobre a fragmentação de saberes, ainda presente nos serviços substitutivos
ao hospital psiquiátrico, Dell’Acqua e Mezzina (1991) afirmam que os CAPSs,
por exemplo, com outros dispositivos, como os centros de convivência, tendem a
efetuar ações especializadas de reabilitação e ressocialização. Porém frequente-
mente essas intervenções são propostas de modo fragmentado e não coordenado.
Ainda que esses serviços contribuam para a diminuição de internação, não preveem
a elaboração do fracasso; são feitos para atender a necessidades específicas, são
seletivos e impermeáveis entre si.
Os profissionais que compõem o CAPS ainda não assumiram cabalmente o
referencial epistemológico da reforma psiquiátrica atual. A dimensão epistemoló-
gica refere-se ao conjunto de questões que se situam no campo teórico-conceitual
e que dizem respeito à produção de conhecimentos que fundamentam e autorizam
o saber-fazer médico-psiquiátrico. A desinstitucionalização proposta pela reforma
não se restringe à reestruturação técnica de serviços, de novas e modernas terapias,
mas torna-se um processo complexo de recolocar o problema, de reconstruir
saberes e práticas, de estabelecer novas relações (AMARANTE, 2009).
4 MEDICALIZAÇÃO
A segunda categoria encontrada na análise das entrevistas expõe a impor-
tância atribuída à medicação no tratamento da crise. Embora o conceito de medica-
lização se refira a um processo mais complexo que apenas o uso excessivo de
medicação, pois significa reduzir à ordem médica problemas de ordem psicossocial
ou afetiva, o remédio é visto como principal agente fomentador da cura do pacien-
te. Essa categoria está intimamente relacionada com a anteriormente descrita, da
supremacia do saber médico.
5 SUPERVALORIZAÇÃO DO PROTOCOLO
Os entrevistados fizerem repetidas referências à necessidade de se ter um
protocolo para orientá-los na forma de agir no serviço. Protocolos são considerados
importantes instrumentos para o enfrentamento de diversos problemas na assistên-
cia e na gestão dos serviços. Orientados por diretrizes de natureza técnica, organi-
zacional e política, têm como fundamentação estudos validados pelos pressupostos
das evidências científicas (WERNECK; FARIA; CAMPOS, 2009).
No CAPS estudado, fica a cargo de cada profissional adotar o protocolo que
lhe convenha, desde que em acordo com as diretrizes do Sistema Único de Saúde
(SUS). Ainda não existe no serviço um protocolo que “organize” o atendimento
e a forma como os profissionais devem proceder, de maneira especial no que diz
respeito à crise. Possivelmente, a dificuldade de comunicação entre os profissio-
nais, de interlocução entre os saberes, como apresentado na primeira categoria,
dificulta a construção do protocolo.
De acordo com os profissionais do CAPS, o protocolo ajudaria a definir
quem está em crise e quem não está. Além disso, determinaria como agir diante da
crise e quais procedimentos adotar.
gente não tem ainda e é o que a gente tá buscando agora, fazer o protocolo de
crise, o que é pra gente receber, o que não é pra gente atender. A gente tá com
essa missão, mas não temos ainda. Somente temos a avaliação do psicólogo
e psiquiatra (coordenadora).
Cada profissional apresentou nas entrevistas sua ideia sobre crise. Por se
tratar de um estudo acerca de significações relacionadas a uma prática instituciona-
lizada de cuidado, as diretrizes do serviço tiveram reflexo no que diz respeito aos
posicionamentos. Desse modo, foi percebida, na fala da maioria dos profissionais,
a noção de crise vinculada à descrição de agudez da sintomatologia psiquiátrica,
que culminaria em comportamentos desviantes da normalidade.
De acordo com Silva apud Silva et al. (2008), o que aparece como crise
são aqueles aspectos que causam certa ordem de estranheza e perturbação social.
Sem ressonância social, o fato psíquico em si é irrelevante. Essa concepção não
perpassa apenas a equipe de profissionais, mas também a sociedade. O ideal de
normalidade ainda está presente em nossa sociedade.
A família, quando chega com o familiar à emergência psiquiátrica ou a
algum serviço substitutivo de atenção à crise, é motivada por aquilo que correspon-
de à perturbação psíquica que gera certa ressonância social, por ser atípica e causar
estranhamento. Em alguns casos, o paciente é levado ao CAPS pela polícia ou
pelo corpo de bombeiros. Motivados pela estranheza do comportamento do sujeito,
esses dispositivos tendem a “recolher” o sujeito e levá-los até o CAPS, atribuindo
ao serviço a ideia de restauração da normalidade2.
2
De acordo com a coordenadora, o sujeito chega ao CAPS por meio de encaminhamento do Programa
de Saúde da Família (PSF), ou é levado pelo corpo de bombeiros, pela polícia e pela família. Quando o
paciente chega ao CAPS por outras vias que não o PSF, é classificado como “demanda espontânea”.
A situação relatada é explicada por Laing (1978), quando o autor afirma que
a experiência de ser no mundo do indivíduo portador de uma patologia rompe com
o que é permitido no grupo social. Ele diz e faz o que não se pode. A loucura, por
não ser compreendida, é cerceada pela sociedade.
Em contrapartida, alguns profissionais, em certos momentos da entrevista,
defendem uma noção de crise para além da dimensão social e comportamental-
-sintomática, abrangendo todo o contexto de relações em que o sujeito está inserido
e levando em consideração aspectos subjetivos.
Tem muito profissional que apenas passa por aqui, que viu um paciente
agitado e foi embora. Tem profissional que questiona. Por que tal paciente
tá aqui? Ele não tá agressivo. Hoje eu consigo compreender isso mais. Tem
funcionário que tá aqui há dez anos, por que ele não consegue compreender
isso, a perceber diferente a crise, que não é apenas estar agitado e eu conse-
gui? Eu acho que meu interesse me fez ver diferente. É isso. (coordenadora).
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na conjectura atual, com o movimento da reforma psiquiátrica, é possí-
vel perceber que vivenciamos uma dicotomia entre os saberes defendidos pela
reforma e o saber biomédico que predominou por muitos anos. A tentativa
incansável da reforma psiquiátrica é desmistificar as ideias que o saber biomé-
dico construiu sobre a loucura. Durante décadas, o louco foi encarado como
desprovido de razão, como um sujeito que deveria ter sua loucura domada por
meio da contenção física ou moral. Hoje, por mais que exista uma militância
objetivando quebrar esse paradigma, ainda convivemos com os resquícios da
época manicomial.
No CAPS onde foi realizada a pesquisa, fica clara essa dicotomia
de saberes, gerando como consequência conflitos de poder que refletem na
prática. Na lógica da clínica ampliada proposta pela reforma, nenhum saber
profissional tem mais valor que o outro. Todos os profissionais trabalham em
conjunto a fim de oferecer um tratamento que leve em consideração as dimen-
sões biopsicossociais que perpassam o sujeito e sua crise. Contudo, o CAPS
em questão encontra barreiras que impedem o serviço de funcionar conforme
essa lógica descrita.
As entrevistas permitem afirmar que a maioria dos profissionais não se
mostra à vontade para falar de crise. O tema parece instalar uma espécie de mal-estar
entre os profissionais. De acordo com Knobloch (1998), a clínica da crise é sempre
uma clínica do mal-estar, no sentido em que entrar no traumático é possibilitar
REFERÊNCIAS
1Mestre; doutoranda em Saúde RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Bdsica
Coleriva pelo Departamento de como uma das necessidades atuaispara a continuidade da Refàrma Psiquidtrica,
Medicina Preventiva e Social da
considerando que a atenção em Saúde Mental deve serfeita dentro de uma rede
Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usudrios. Em
(DMPSI FCMI UNlCAMI'). seguida, éproblematizado oapoio matricial como arranjo de gestãopara organizar
madorsa@hormail.com
as ações de Saúde Mental na Atenção Básica esua potencialidade como disparador
da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva
2 Doutora em Saúde Coleriv3;
professora do DMPS/FCM/UNICAMI'. e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde.
rosanaoC@mpc.com.br
PALAVRAS-CHAVE: Gestão; Saúde Mental; Atenção bdsica à saúde; Apoio
matricial.
à saúde, resultando num cerro descompasso entre as principais problemas de saúde. A questão mencionada
práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua aqui vai além da definição de qual serviço deveria se
acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra- incumbir das demandas de maior gravidade, se os CAPS
mentos imporrantes para o SUS, enquanto sistema ou a Atenção Básica, também, e está na relação a ser
unificado e integral, assim como para a eficácia ranto da construída entre os dois tipos de serviços.
Atenção Básica, quanto dos CAPS, devido a dificuldade O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define
de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção que um CAPS deve:
resolutiva em Saúde Mental.
Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS, responsabilizar-se { ..} pela organização da demanda
e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do
só poderá ser alcançada através da troca de saberes, prá-
seu território e{ ..} desempenhar opapel de regulador
ticas e de profundas alterações nas estrururas de poder da porta de entrada da rede assistencial. (BRASIL,
estabelecidas, instiruindo uma lógica do trabalho inter- 2004, p. 126).
Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menml e Atençáo Básica à Sallde: o apoio mauiciaJ na consrruçáo de uma rede multicêntrica 145
Ora, se os CAPS forem considerados ordenadores da miséria em que se encontra a maior parte da população
rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se
o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação traduz em condições de existência favoráveis às dificul-
àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto dades afetivas, emocionais e relacionais.
almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)
com O conceito e imagem de uma rede multicêntrica, os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da
em que o CAPS pode funcionar como agenciador das carga mundial de doenças (OMS, 2001). No Brasil, o
demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-
lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de
na atenção se destacam, em determinado momento, de cuidados contínuos, intensivos (específicos dos CAPS).
acordo com O andamento do Projeto Terapêutico de cada Nove por cento da população apresenta transtornos
usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-
das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,
movimente para dar sustentação às necessidades dos pelos quais a Atenção Básica que deve responsabilizar-se
usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente (BRASIL, 2003).
para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar Existe, ainda, um componente subjetivo associado
em um suporte efetivo para as dificuldades que esses ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como
, . entrave ao tratamenro, à adesão as práticas preventivas e
usuanos possuem.
Assim, destaca-se a necessidade da integração dos até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,
serviços, há casos com uns entre os serviços, ou si tuações uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais
que dizem respeito tanto aos CAPS quanro à Atenção se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;
• A _ • A •
Básica. Seria o caso do usuário do CAPS, aquele da ou o paciente com cancer que nao encontra reslstenCla
região de abrangência de determinada equipe da UBS para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-
ou o garoto usuário de drogas que em dado momento ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF
precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é (CAMPOS, G.WS., 2003).
fundamental a articulação dos serviços, a discussão do Atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de
caso comum e o envolvimenro dos diversos arores no Atenção Básica vem tencionando a incorporação das
caso em q uestao. - dimensões subjetiva e social na prática clínica, através
É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio
Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade
que tem sido crescente a demanda pela atenção aos aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes
transrornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos se deparem cotidianamente com problemas de Saúde
geralmente sob a forma de queixas somáticas e 'nervosas', Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra
transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio- que 56% das equipes de PSF referem realizar 'alguma
nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do ação de Saúde Mental' (BRASIL, 2003), ainda que essas
abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos, equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com
são diversos os problemas advindos das faltas concretas esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade
na vida, geradas pela ordem socioeconâmica vigente. A com as famílias e as comunidades, elas se constituem
num recurso estratégico para o enfrentamento do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008) aprovou a criação
sofrimento psíquico. dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Similar
Além disso, a OMS e o Ministério da Saúde esti- ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os
mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos NASF são compostos por profissionais de diferentes áreas
profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori, especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de
uma demanda específica que justifique a necessidade Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e
de uma atenção especializada (BRASIL, 2003). É o caso resolutividade dessas equipes.
da senhora que se costuma denominar 'poli-queixosà,
e que representa uma demanda freqüente para a Aten-
ção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar
com sua existência pobre de sentido, com a ausência de O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAÚDE
espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos, E SAÚDE MENTAL
o empreendimento de longos processos psicoterápicos
e a administração de antidepressivos são insuficientes
"Onde a brasa mora e devora o breu
como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros
Como a chuva molha o que se escondeu
dispositivos de atenção, disparadores de produção de O seu olhar melhora o meu"
vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade Arnaldo Antunes e Paulo Tatit
(CAMPOS; NASCIMENTO, 2003).
Assim, na continuidade da Reforma Psiquiátrica Na proposta de Campos (1999), profundas refor-
... ..
e para propIcIar maIOr conSlstenCla as Intervençoes
-,,','
mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde
em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-
estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. O
na Atenção Básica, promovendo a interlocução entre autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo
os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi- que os antigos departamentos especializados (outrora
cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio
ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o especializado às equipes interdisciplinares.
conjunto de relações sociais que determinam desejos, Essas equipes, denominadas pelo autor como
interesses e necessidades, conforme Gastão Wagner de Equipes de Referência, têm como princípio a adscri-
Souza Campos (2000; 2003). ção de clientela, garantindo um sistema de referência
Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.
Atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado A relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-
por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse- tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.
rir a Saúde Men tal e outras áreas especializadas na Atenção Assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele
Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador é atendido por sua Equipe de Referência, o que per-
da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. Trata- mite o acompanhamento do processo saúde/doença/
se de uma importante discussão na atualidade, já que a intervenção (CAMPOS, 1999). Gradativamente, isto es-
estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada timula a responsabilização pela produção de saúde, pois
em nível nacional a partir da Portaria nO 154, na qual o quando o usuário passa a ter um nome e uma história,
Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan.ldez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menral e Atençáo Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede mulricênrrica 147
a implicação da equipe rende a aumentar e as resposras ciplinar. A rransdisciplinaridade que, no sentido dado
profissionais a serem menos esrereoripadas. As Equipes por Passos e Barros (2000) é urna das grandes apostas
de Referência, porranro, seriam responsáveis por realizar do apoio matricial.
os projeros rerapêuricos, promovendo, assim, o vínculo
e a responsabilização. A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de
sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito
Dessa forma, o apoio marricial seria uma ferramen-
de desestabilização {..} da unidade das disciplinas e
ra para agenciar a indispensável insrrumentalização das dos especialismos. (p. 76).
equipes na ampliação da clínica', subverrendo O modelo
médico dominanre que se rraduz na fragmentação do A Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa
rrabalho e na produção excessiva de encaminhamentos, a compor a rede matricial de apoio. Consumi uma linha
muiras vezes desnecessários, às diversas especialidades, de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a
segundo Rosana Onocko Campos (2003). lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e
O apoio marricial se configura como um suporre romper com o sistema de referência e contra-referência,
récnico especializado (CAMPOS, 1999) que é oferrado a que produzem encaminhamenros consecutivos para as
uma equipe inrerdisciplinar de saúde, a fim de ampliar diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-
seu campo de amação e qualificar suas ações. Ele pode sabilização pela produção de saúde (CAMPOS, 1999).
ser realizado por profissionais de diversas áreas especia- A parrir de discussões clínicas conjuntas, apoio para
lizadas, mas esramos romando aqui a especificidade da a construção de projeros terapêuricos ou mesmo inter-
Saúde Mental, considerando que as questões subjerivas venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,
transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser visiras domiciliares, entre outras), os profissionais matri-
abordadas em roda relação rerapêutica. ciais podem contribuir para o aumento da capacidade
A proposta é que os profissionais possam aprender a resoluriva das equipes, qualificando-as para uma arenção
lidar com os sujeiros em sua complexidade, incorporan- ampliada em saúde que contemple a complexidade da
do as dimensões subjeriva e social do ser humano, mas vida dos sujeiros.
que esrejam acompanhados por alguém especializado Os atendimentos conjuntos com o profissional ma-
que lhes dê suporre para compreender e intervir nesre rricial têm uma imporrante função pedagógica, já que as
campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe- equipes podem aprender in loco a inrervir no campo da
cimentos e ações, hisroricamente reconhecidos como Saúde Mental e se aurorizar nas ações que nem sempre
inerentes à área 'psi', são oferrados aos profissionais de cabem nos prorocolos, lidando com situações de exclu-
saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar são social, violência, luro, as mais diversas perdas, que
sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimenro psí- não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a
quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria própria consulta clínica. Ou ainda quando se trata de um
uma oferta do núcleo profissional 'psi' ao campo dos usuário de referência do CAPS que está em tratamenro na
profissionais de saúde (CAMPOS, 2000), na construção Atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se
de um novo saber, um saber que se pretende transdis- inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com
ICampos, G. WS. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para cenrrâ-Ia num
sujeiro concreto e singular, porrador de cerra enfermidade. Ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeiros em sua tota-
lidade, considerando o biológico como dererminanre do processo saúde e doença, mas rambém incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e
cultural como outros determinanres.
quadros psiquiátricos mais graves e o atendimenro Segundo Campos (1999), essa reordenação do
conjunto com O apoiador matricial pode proporcionar desenho institucional da rede de Atenção Básica per-
um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas
da doença mental, ajudando a diminuir O preconceito necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser
e a segregação da loucura. enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo
Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi- a gestão do processo de trabalho e a formação de outra
te distinguir as situações individuais e sociais, comuns subjetividade profissional, centrada no diálogo e na
à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela transdisci plinaridade.
Equipe de Referência e por outros recursos sociais do No entanto, deve-se reconhecer que a mudança
entorno, daquelas demandas que necessitam de uma da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial
atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre
na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-
ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade, lhada junto às equipes, instalando espaços destinados
pelo CAPS da região de abrangência. Pretende-se, com à reAexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e
isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de que possam ser continentes aos problemas na relação
Referência e profissionais matriciais, de modo que o entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,
encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento
de forma dialogada. do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com
Assim, é possível promover a eqüidade e o acesso, a pobreza e a violência. Todas essas questões podem
garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-
vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa- fissionais não tiverem espaços de reAexão e formação
vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção permanentes para processá-las, que sejam capazes de
em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a realimentar constantemente a potencialidade do apoio
articulação entre os profissionais na elaboração de proje- matricial, enquanto arranjo transformador das práticas
tos terapêuticos pensados para cada situação singular. hegemônicas na saúde.
O apoio matricial, portanto, provoca e explicita Assim, afirmamos a importância de espaços
uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual
papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-
as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos cias interligadas e complementares. Uma rede que,
diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais, sobretudo, incite o movimento de acordo com as
a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais
cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao
em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele
tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da
de Auxo, evitar práticas que levam à 'psiquiatrização' e à desresponsabilização, uma rede de salvamento e não
'medicalização' do sofrimento humano. de captura e impotência.
Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menml e Atençáo Básica à Sallde: o apoio mauiciaJ na consrruçáo de uma rede multicêntrica 149
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência TENORIO, F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década
à Saúde. Portaria nO 154, de 24 de janeiro de 200S. de 19S0 aos dias amais: história e conceiros. História,
Disponível em: <http://dtt2004.saude.gov.br/dab/ Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 9, n.
legislacao.php>. Acesso em: 10 mar. 200S. 1, p.25-59, 2002.
Recebido: abr.l2008
_ _ _o Ministério da Saúde. Secretaria Executiva.
Aprovado: nov.l2008
Legislação em saúde mental. 3. ed. Revista e amalizada.
Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004.