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Saúde Mental

e
Clínica Ampliada

Prof. Me. Mayk da Glória Machado


INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA
PLANO DE ENSINO

DISCIPLINA: SAÚDE MENTAL E CLÍNICA AMPLIADA


CARGA HORÁRIA: 80 HORAS - PERÍODO: 8°
PROFESSOR: ME. MAYK DIEGO GOMES DA GLÓRIA MACHADO
COORDENAÇÃO DO CURSO: PROF. DR. VINICIUS NOVAIS G. DE ANDRADE

1. EMENTA
A saúde mental como área do conhecimento da Psicologia. Os movimentos de luta
antimanicomial no mundo e no Brasil. As contribuições da Psiquiatria, da Psicanálise e da
Psicologia Social no campo da saúde mental. Estratégias individuais e coletivas de promoção
da saúde mental. Instrumentos de mediação simbólica como promotores de saúde mental.
Perspectiva multidisciplinar na promoção da saúde. A saúde mental e os modelos
comunitários de atendimento psicológico. A intervenção psicológica no contexto
interdisciplinar.

2. OBJETIVOS

2.1. Geral
Analisar o processo saúde-doença mental e suas articulações nos diversos eventos da vida,
bem como os processos de cuidado a partir do modelo psicossocial e de clínica ampliada.

2.2. Específicos
• Desenvolver a capacidade de análise dos processos psicossociais e a clínica ampliada;
• Compreender o processo saúde-doença mental nos diversos eventos da vida;
• Analisar o sofrimento psíquico como fenômeno inerente à condição humana;
• Discutir a interdisciplinaridade e sua aplicação no campo da saúde mental;
• Avaliar o processo de reabilitação psicossocial no contexto da reforma psiquiátrica;
• Observar o cuidado em saúde mental nos dispositivos da rede de atenção psicossocial;
• Compreender o vínculo terapêutico como ética do cuidado na clínica ampliada.

3. CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

3.1. Aspectos históricos e conceituais da Reforma Psiquiátrica


• Conceito de Reforma Psiquiátrica
• Conceito de clínica ampliada
• Conceito de clínica peripatética
• Cuidado em saúde mental
• Conceito de tecnologias leves e cuidado em saúde

3.2. Atenção Psicossocial, Clínica Ampliada e Saúde Mental


• Integralidade na atenção à Saúde Mental
• Psicologia e Atenção Psicossocial
• Atenção Psicossocial e Família
• Saúde mental de drogas
• Estratégias de Redução de Danos
• Atenção à Crise em saúde mental
• Saúde Mental e Atenção Básica.

4. METODOLOGIA

• Aulas expositivas e dialogadas com utilização de recursos audiovisuais


• Filmes e vídeos explicativos
• Discussão de casos reais e fictícios
• Apresentação de seminários pelos discentes

5. ATIVIDADES DISCENTES

• Pesquisa bibliográfica
• Pesquisa interativa (internet)
• Pesquisa de campo
• Material audiovisual
• Leituras complementares

6. AVALIAÇÃO

• P1: Atividade grupal 1 (4,0) + Atividade individual/PROVA 1 (6,0) = 10,0


• P2: Apresentação de seminário 2 (3,0) + Atividade individual/PROVA 2 (6,0) + AIDE
(1,0) = 10,0

OBS.: Atividade grupal = em grupo, escrita e com consulta


Atividade individual/Prova = individual, escrita e com possibilidade de
consulta
Seminário = apresentação oral e em grupo

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

7.1 Bibliografia Básica

BRUM, R. M. Estudos Sobre a Loucura. Rio de Janeiro: Editora, 2002.


CHENIAUX, E. Manual de Psicopatologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010.
JESUS, A. F. de. Saúde mental no contexto da realidade brasileira: as peripécias de uma
equipe multiprofissional. Curitiba: APPRIS, 2013.

7.2 Bibliografia Complementar


ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA (AAP). Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais – Manual Revisado IV-TR. São Paulo: Artes Médicas,
2002.
CAETANO, D. Classificação de Transtornos mentais na Cid-10: descrições clínicas. São
Paulo: Artmed, 2002.
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Porto
Alegre: Artmed, 2008.
FRAYZE-PEREIRA, J. F. O que é Loucura. 11ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994.
NEVES, R.; PAULON, S. M. Saúde mental na atenção básica: territorialização do cuidado.
Porto Alegre: Sulina, 2013.

8. CRONOGRAMA
DATAS ATIVIDADES/TEMAS TEXTOS
AGOSTO
04 – Terça-feira Acolhimento dos alunos: Atividade: Exposição da ementa e plano de ensino
apresentação do professor, da
disciplina e plano de ensino
05 – Quarta-feira Introdução ao conceito de clínica Atividade: Exposição do conceito de Clínica
ampliada Ampliada
08 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
11 – Terça-feira TEXTO 1 – HIRDES, Alice. A reforma psiquiátrica
Introdução à Reforma Psiquiátrica no
no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. saúde coletiva,
Brasil
Rio de Janeiro , v. 14, n. 1, p. 297-305, Feb. 2009.
12 – Quarta-feira TEXTO 1 – HIRDES, Alice. A reforma psiquiátrica
Introdução à Reforma Psiquiátrica no
no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. saúde coletiva,
Brasil
Rio de Janeiro , v. 14, n. 1, p. 297-305, Feb. 2009.
15 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
18 – Terça-feira TEXTO 2 - ALES, André Luis Leite de Figueiredo;
DIMENSTEIN, Magda. Psicólogos no processo de
Psicologia e Reforma Psiquiátrica reforma psiquiátrica: práticas em
desconstrução?. Psicol. estud., Maringá , v. 14, n.
2, p. 277-285, Jun 2009.
19 - Quarta-feira TEXTO 3 - Do manicômio à desinstitucionalização.
História da Reforma Psiquiátrica
PUC-RIO.
22 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
25 – Terça-feira TEXTO 4 – CAMPOS, G. W. S. A clínica do
sujeito: por uma clínica reformulada e
Clínica Reformulada e Ampliada
ampliada. In: Campos GWS. Saúde Paidéia. São
Paulo: Hucitec; 2003.
26 - Quarta-feira TEXTO 5 - LANCETTI, A. Clínica Peripatética.
Clínica Peripatética
São Paulo: Hucitec, 2014
29 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
SETEMBRO
01 – Terça -feira Clínica Peripatética TEXTO 5 - LANCETTI, A. Clínica Peripatética.
São Paulo: Hucitec, 2014
02 - Quarta-feira Clínica Peripatética TEXTO 5 - LANCETTI, A. Clínica Peripatética.
São Paulo: Hucitec, 2014
05 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
08 – Terça -feira TEXTO 6 - DHEIN, Gisele. A clínica ampliada
(Cap. 3). In: Pausa!: Clínica. Clínica política.
Clínica ampliada : a produção do sujeito autônomo.
Clínica Política e Clínica Ampliada
2010. 190 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2010.
09 - Quarta-feira Clínica Política e Clínica Ampliada TEXTO 6 - DHEIN, Gisele. A clínica ampliada
(Cap. 3). In: Pausa!: Clínica. Clínica política.
Clínica ampliada : a produção do sujeito autônomo.
2010. 190 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2010.
12 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
15 – Terça-feira TEXTO 7 –NASI, C.; CARDOSO, A. S. R.;
SCHENEIDER, J. F.; OLSCHOWSKY, A.;
Integralidade na atenção à Saúde WETZEL, C. Conceito de integralidade na atenção
Mental em saúde mental no contexto da reforma
psiquiátrica. Rev. Min. Enferm. v. 13, n. 1, p. 139-
146, jan./mar., 2009.
16 - Quarta-feira TEXTO 8 - TRAJANO, M. P.; BERNARDES, S.
M.; ZURBA, M. C. O cuidado em saúde mental:
Cuidado em Saúde Mental caminhos possíveis na rede de atenção psicossocial.
Cadernos Brasileiros de Saúde Mental,
Florianópolis, v. 10, n. 25, p. 20-37, 2018.
19 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
22 - Terça-feira Revisão para Avaliação P1
23 – Quarta-feira Avaliação P1
26 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
29 – Terça-feira TEXTO 9 – MERHY, E. E.; FRANCO, T.B., Por
Devolutiva de P1/ Tecnologias leves uma composição técnica do trabalho centrada nas
na atenção à saúde tecnologias leves e no campo relacional. Saúde em
Debate, v.27, n. 65, p. 316-323, Set/Dez, 2003.
30 - Quarta-feira TEXTO 9 – MERHY, E. E.; FRANCO, T.B., Por
uma composição técnica do trabalho centrada nas
Tecnologias leves na atenção à saúde
tecnologias leves e no campo relacional. Saúde em
Debate, v.27, n. 65, p. 316-323, Set/Dez, 2003.
OUTUBRO
03 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
06 – Terça-feira TEXTO 10 – ALVES, Edvânia dos Santos;
FRANCISCO, Ana Lúcia. Ação psicológica em
Psicologia e Atenção Psicossocial saúde mental: uma abordagem psicossocial. Psicol.
cienc. prof., Brasília , v. 29, n. 4, p. 768-779,
2009 .
07 - Quarta-feira TEXTO 11 - PIETROLUONGO, Ana Paula da
Cunha; RESENDE, Tania Inessa Martins de. Visita
Psicologia e Atenção Psicossocial domiciliar em saúde mental: o papel do psicólogo
em questão. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 27, n.
1, p. 22-31, mar. 2007.
10 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
13 – Terça-feira TEXTO 12 - DE SOUZA, Mayra Silva;
BAPTISTA, Makilim Nunes. ASSOCIAÇÕES
Atenção Psicossocial e Família ENTRE SUPORTE FAMILIAR E SAÚDE
MENTAL. Psicologia Argumento, v. 26, n. 54, p.
207-215, nov. 2017.
14 - Quarta-feira TEXTO 13 - DIMENSTEIN, Magda et al .
Estratégia da Atenção Psicossocial e participação
Atenção Psicossocial e Família
da família no cuidado em saúde mental. Physis,
Rio de Janeiro , v. 20, n. 4, p. 1209-1226, Dec.
2010
17 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
20 – Terça-feira PESQUISAR
21 - Quarta-feira PESQUISAR
24 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
27 – Terça -feira TEXTO 14 - SHIMOGUIRI, Ana Flávia Dias
Tanaka; SERRALVO, Fernanda Silveira. A
importância da abordagem familiar na atenção
Atenção Psicossocial e Família
psicossocial: um relato de experiência. Nova
perspect. sist., São Paulo , v. 26, n. 57, p. 69-
84, abr. 2017.
28 - Quarta-feira TEXTO 14 - SHIMOGUIRI, Ana Flávia Dias
Tanaka; SERRALVO, Fernanda Silveira. A
importância da abordagem familiar na atenção
Atenção Psicossocial e Família
psicossocial: um relato de experiência. Nova
perspect. sist., São Paulo , v. 26, n. 57, p. 69-
84, abr. 2017.
31 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
NOVEMBRO
03 – Terça -feira TEXTO 15 – KARAM, Maria Lúcia. Proibição às
drogas e violação a direitos fundamentais. Revista
Saúde mental de drogas
Brasileira de Estudos Constitucionais. Belo
Horizonte, v. 7, n. 25, jan./abr. 2013
04 - Quarta-feira TEXTO 16 - MOREIRA BARBOSA, V. L.
Facilitando uma Conversa sobre Álcool e outras
Saúde mental de drogas
Drogas – um Convite à Reflexão. Nova
Perspectiva Sistêmica, v. 21, n. 42, p. 28-41, 2012.
07 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
10 – Terça -feira TEXTO 17 – NESS, O.; BORG, M.; SEMB, R.;
KARLSSON, B. “Caminhando lado a lado:” práticas
Saúde mental de drogas colaborativas nos tratamentos de saúde mental e
uso de substâncias. Nova Perspectiva Sistêmica, v.
27, n. 61, p. 6-21, 8 jan. 2019.
11 - Quarta-feira TEXTO 18 - PASSOS, Eduardo Henrique;
SOUZA, Tadeu Paula. Redução de danos e saúde
Estratégias de Redução de Danos pública: construções alternativas à política global
de "guerra às drogas". Psicol. Soc., Florianópolis ,
v. 23, n. 1, p. 154-162, Apr. 2011.
14 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
17 – Terça -feira TEXTO 19 – BARROS, Erika Bernardino.
SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS E A ATUAÇÃO
Estratégias de Redução de Danos DO PSICÓLOGO COMO REDUÇÃO DE
DANOS. REVISTA UNINGÁ, [S.l.], v. 56, n. S1,
p. 172-185, mar. 2019.
18 - Quarta-feira TEXTO 20 - DIAS, Marcelo Kimati; FERIGATO,
Sabrina Helena; FERNANDES, Amanda Dourado
Souza Akahosi. Atenção à Crise em saúde mental:
Atenção à Crise em saúde mental
centralização e descentralização das
práticas. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v.
25, n. 2, p. 595-602, Feb. 2020
21 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
24 – Terça -feira TEXTO 21 - MARTINS, Aline Gomes. A noção de
crise no campo da saúde mental: saberes e práticas
Atenção à Crise em saúde mental
em um centro de atenção psicossocial. Mental,
Barbacena , v. 11, n. 20, p. 226-242, jun. 2017
25 - Quarta-feira TEXTO 22 - DORSA FIGUEIREDO, Mariana.;
ONOCKO CAMPOS, Rosana. Saúde Mental e
Saúde Mental e Atenção Básica Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na
construção de uma rede multicêntrica. Saúde em
Debate, v. 32, n. 78-80, p. 143-149, 2008.
28 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
DEZEMBRO
01 - Terça -feira Revisão para Avaliação P2
02 – Quarta-feira Avaliação P2
05 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
08 – Terça -feira Devolutiva de P2
09 - Quarta-feira Entrega de notas de N2
12 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
15 – Terça -feira Lançamento de notas no sistema
16 - Quarta-feira Atendimento aos alunos
19 – Sábado Atividade Acadêmica Discente A escolha do aluno
22 – Terça -feira Atendimento aos alunos
23 - Quarta-feira Encerramento do semestre

_________________________________________________________
Mayk Diego Gomes da Glória Machado
Professor responsável pela disciplina
297

A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão

REVISÃO REVIEW
The psychiatric reform in Brazil: a (re)view

Alice Hirdes 1

Abstract This paper aims at contextualizing the Resumo Este artigo tem por objetivo contextuali-
Brazilian Psychiatric Reform by reviewing theoret- zar a reforma psiquiátrica brasileira, a partir da re-
ical and practical milestones in the country’s poli- visão dos marcos políticos, teóricos e práticos. Fo-
cies. Theses, dissertations, papers published in a da- ram pesquisadas dissertações, teses, artigos em bases
tabase (Scielo), books on the theme, and official doc- de dados (Scielo), livros sobre a temática e documen-
uments (conference reports, laws, bills) published tos oficiais (relatórios de conferências, leis, portari-
between 1990 and 2007 were studied. The results show as) de 1990 a 2007. Os resultados evidenciam os avan-
the advances and challenges of the Psychiatric Re- ços e desafios da reforma psiquiátrica, apontam para
form and point to the immediate need of a program a necessidade urgente da capacitação dos operadores,
for qualifying personnel; the need to use primary care, a utilização da atenção básica, particularmente a
mainly the Family Health Program; the need to fi- estratégia do Programa de Saúde da Família; o fi-
nance primary care; the adoption of the principles of nanciamento da atenção básica; a adoção dos prin-
the psychiatric reform; the need to individualize cípios da reforma psiquiátrica; a articulação trata-
treatment, psychosocial rehabilitation; integrated mento, reabilitação psicossocial; clínica ampliada;
care; and therapeutic project constructed collectively projetos terapêuticos individualizados, construídos
through the use of interdisciplinary and trans-disci- coletivamente, mediante abordagens inter/transdis-
plinary approaches, as well as constant assessment of ciplinares; e a avaliação das práticas em curso. Fina-
the current practices. It is also pointed out that Re- liza apontando que os projetos de reforma não são
form projects are not homogeneous, i. e., practices homogêneos, as práticas são executadas conforme a
happen according to the professionals’ theoretical concepção teórica dos trabalhadores de saúde men-
conception. This means that there are general guide- tal, ou seja, existem princípios orientadores gerais,
lines, but that they are subordinated to the specific mas que, em última análise, estão subordinados aos
settings where the practices are carried out. settings específicos onde ocorrem as práticas.
Key words Mental health, Primary care, Mental Palavras-chave Saúde mental, Atenção primária à
health services, Rehabilitation, Rehabilitation cen- saúde, Serviços de saúde mental, Reabilitação, Cen-
1
ters, Health services evaluation tros de reabilitação, Avaliação de serviços de saúde
Universidade Luterana do
Brasil, Unidade
Universitária de Gravataí.
Av. Itacolomi 3.600, São
Vicente. 94170-240
Gravataí RS.
alicehirdes@gmail.com
298
Hirdes A

Introdução Como marcos práticos de reversão do modelo


manicomial, podemos citar a intervenção na Casa
Marcos políticos, teóricos e práticos de Saúde Anchieta, em Santos, o Centro de Aten-
ção Psicossocial Dr. Luís da Rocha Cerqueira, am-
A superação do modelo manicomial encontra bos localizados em São Paulo, e o Centro Comu-
ressonância nas políticas de saúde do Brasil que nitário de Saúde Mental de São Lourenço do Sul,
tiveram um marco teórico e político na 8ª Confe- Rio Grande do Sul, conhecido como “Nossa Casa”.
rência Nacional de Saúde (1986), na 1ª Conferência Nicácio3, Bezerra Júnior4 e Aguiar5 consideram a
Nacional de Saúde Mental (1987), na 2ª Conferên- intervenção na Casa de Saúde Anchieta, em San-
cia Nacional de Saúde Mental (1992), culminando tos, em 1989, um marco na história da psiquiatria
na 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental (2001). brasileira, por se tratar de uma experiência inova-
Observa-se, na reforma psiquiátrica brasileira, nas dora, em que ocorreu uma intervenção médico-
últimas décadas, intercalação de períodos de inten- legal num asilo. Esta pode ser considerada a pri-
sificação das discussões e de surgimento de novos meira experiência concreta de desconstrução do
serviços e programas, com períodos em que ocor- aparato manicomial no Brasil, e de construção de
reu uma lentificação do processo. Historicamente, estruturas substitutivas.
podemos situar as décadas de 1980 e 1990 como A partir destes marcos, passou-se a privilegiar
marcos significativos nas discussões pela reestru- a criação de serviços substitutivos ao hospital psi-
turação da assistência psiquiátrica no país. quiátrico, quais sejam: redes de atenção à saúde
Um marco histórico para o setor de saúde men- mental, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
tal, possibilitador de mudanças ao nível do Minis- leitos psiquiátricos em hospitais gerais, oficinas
tério da Saúde, foi a Conferência Regional para a terapêuticas, residências terapêuticas, respeitando-
Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, reali- se as particularidades e necessidades de cada local.
zada em Caracas, em 1990. Neste encontro, no qual As iniciativas dos municípios, em que pese a von-
o Brasil foi representado e signatário, foi promul- tade política dos gestores municipais, passaram a
gado o documento final intitulado “Declaração de ser ressarcidas através das portarias ministeriais,
Caracas”. Nele, os países da América Latina, inclu- objetivando o deslocamento dos recursos para
sive o Brasil, comprometem-se a promover a rees- modalidades alternativas à internação psiquiátri-
truturação da assistência psiquiátrica, rever criti- ca e compatibilizando os procedimentos das ações
camente o papel hegemônico e centralizador do de saúde mental com o modelo assistencial.
hospital psiquiátrico, salvaguardar os direitos ci- No Rio Grande do Sul, um marco político im-
vis, a dignidade pessoal, os direitos humanos dos portante foi a aprovação da Lei da Reforma Psi-
usuários e propiciar a sua permanência em seu meio quiátrica, a Lei Estadual nº 9.716, em 1992, que
comunitário1. trata da reforma psiquiátrica em âmbito do esta-
Em 2005, foi retomada a “Declaração de Cara- do, enquanto a Lei nº 10.216, que trata da reforma
cas” sob a forma de um documento intitulado psiquiátrica em âmbito nacional, foi sancionada
“Princípios Orientadores para o Desenvolvimento no dia 06 de abril de 2001, quase dez anos depois6.
da Atenção em Saúde Mental nas Américas”, a Carta O Ministério da Saúde igualmente iniciava, na dé-
de Brasília, com o objetivo de avaliar os resultados cada de 1990, a emissão de uma vasta legislação
obtidos desde 1990. Neste documento, os organi- que viria a nortear todas as ações no sentido de
zadores reconhecem os avanços que se produzi- tratar adequadamente as pessoas acometidas de
ram nos últimos quinze anos na reestruturação da doenças mentais. Deste modo, passados mais de
atenção psiquiátrica, constatam que existem expe- dez anos, o processo de implantação da reforma
riências exitosas desenvolvidas em vários países, psiquiátrica deveria encontrar-se em plena conso-
assim como obstáculos e dificuldades. Reafirmam lidação, em todo o país e, em especial, no Rio Gran-
a validade dos princípios contidos na “Declaração de do Sul7.
de Caracas” em relação à proteção dos direitos Entretanto, o Rio Grande do Sul, um estado
humanos e de cidadania dos portadores de trans- pioneiro na aprovação de uma legislação específi-
tornos mentais e a necessidade da construção de ca na área, e detentor do maior número de CAPS
redes de serviços alternativos aos hospitais psiqui- por estado, apresenta diferenças regionais impor-
átricos. Advertem para o aumento da vulnerabili- tantes na estruturação de serviços8. Enquanto a
dade psicossocial e das diferentes modalidades de metade sul protagonizou experiências inéditas de
violência. Convocam todos os atores envolvidos desinstitucionalização, o norte apresenta carência
para a implementação dos princípios éticos, polí- na estruturação de serviços e na inserção das ações
ticos e técnicos da “Declaração de Caracas”2. de saúde mental nos serviços gerais de saúde. Esta
299

Ciência & Saúde Coletiva, 14(1):297-305, 2009


realidade descortina-se em outros estados e regiões baseada e construída a partir dos projetos de psi-
brasileiras. quiatria preventiva e comunitária. Para Amaran-
te10, “a desinstitucionalização nesta tradição está
Aspectos conceituais voltada principalmente para objetivos administrati-
vos (redução dos custos da assistência para os co-
O termo desinstitucionalização significa deslo- fres públicos) e menos para uma real transforma-
car o centro da atenção da instituição para a comu- ção da natureza da assistência”. Este autor coloca,
nidade, distrito, território. Este termo tem sua ori- também, que o hospital psiquiátrico não é questio-
gem no movimento italiano de reforma psiquiátri- nado nesta formulação de desinstitucionalização.
ca. Para Rotelli e colaboradores9, o mal obscuro da
psiquiatria está em haver separado um objeto fictí- A desinstitucionalização
cio, a “doença”, da “existência global complexa e con- como desassistência
creta” dos pacientes e do corpo social. Sobre esta sepa- Para Amarante, alguns setores entendem a de-
ração artificial se constrói um conjunto de aparatos sinstitucionalização como desospitalização, ou, ain-
científicos, legisladores, administrativos (precisamen- da, como desassistência – abandonar os doentes à
te a “instituição”), todos referidos à “doença”. própria sorte. O autor considera que neste rol estão
A desinstitucionalização tem uma conotação incluídos determinados segmentos atavicamente
muito mais ampla do que simplesmente deslocar conservadores, resistentes a qualquer idéia sobre
o centro da atenção do hospício, do manicômio, direitos de grupos minoritários. Há, ainda, um gru-
para a comunidade. Enquanto este existir como po que tem interesses econômicos em jogo e opõe-
realidade concreta, as ações perpassarão, necessa- se à desinstitucionalização em virtude dos interesses
riamente, por desmontar este aparato, mas não constituídos. Coloca que a tendência contra-des-
acabam aí. Para o autor acima referido e também institucionalizante assume maior magnitude após
ator do processo, é o conjunto que é necessário o Projeto de Lei Paulo Delgado - 3.657/89, que pro-
desmontar (desinstitucionalizar) para o contato põe a substituição progressiva dos hospitais psi-
efetivo com o paciente na sua “existência” doente. quiátricos por outras modalidades de assistência.
Rotelli e colaboradores9 nos fazem ver que con-
cretamente se transformam os modos nos quais as A desinstitucionalização
pessoas são tratadas (ou não tratadas) para trans- como desconstrução
formar o seu sofrimento, porque a terapia não é mais De acordo com Amarante, esta tendência está
entendida como a perseguição da solução – cura [...] caracterizada pela crítica epistemológica ao saber
o problema não é a cura (a vida produtiva), mas a médico constituinte da psiquiatria. É nesta tendên-
produção de vida, de sentido, de sociabilidade, a uti- cia que o movimento pela reforma psiquiátrica
lização das formas (dos espaços coletivos) de convi- brasileira se inspira. E este movimento, por sua
vência dispersa. vez, identifica-se com a trajetória de desinstitucio-
Amarante10 traça três formulações importan- nalização prático-teórica desenvolvida por Franco
tes de desinstitucionalização, a saber: a desinstitu- Basaglia, na Itália. No final da década de 1970, as
cionalização como desospitalização, a desinstitu- idéias de Basaglia chegam ao Brasil, sobretudo em
cionalização como desassistência e, por último, a virtude da repercussão internacional do processo
desinstitucionalização como desconstrução. Esta italiano que englobou a desativação do hospital de
última, abordada acima, nas ponderações de Ro- Gorizia, a criação da “psiquiatria democrática” e
telli e outros9. A compreensão e distinção é funda- de “redes alternativas à psiquiatria”e, posterior-
mental para a compreensão do processo e, de acor- mente, a promulgação da Lei 180 na Itália, conhe-
do com Amarante, irá determinar a forma de lidar cida como Lei Basaglia.
prático e teórico com a desinstitucionalização. Amarante compara o movimento pela refor-
ma sanitária com o movimento pela reforma psi-
A desinstitucionalização quiátrica. Observa que a reforma sanitária, de uma
como desospitalização perspectiva inicial de crítica quanto à natureza do
A noção de desinstitucionalização surge nos saber médico, torna-se um conjunto de medidas
Estados Unidos, no governo Kennedy, mas seus de cunho administrativo, sem o questionamento
princípios e as medidas adotadas são basicamente das abordagens técnicas centradas quase exclusi-
de desospitalização. Nesta modalidade, há uma críti- vamente em sintomas, no especialismo, na cultura
ca ao sistema psiquiátrico, na centralização da aten- medicalizante e no intervencionismo diagnóstico e
ção na assistência hospitalar, mas não é questiona- terapêutico. Considera que o movimento pela re-
do o saber que o legitima. Esta configuração está forma psiquiátrica foi além, porque busca trans-
300
Hirdes A

formações qualitativas no modelo de saúde e não serviços de saúde mental, traz a necessidade do
meramente de reorganização administrativa. deslocamento essencial da perspectiva da interven-
Para Amarante10, a produção de Basaglia foi e ção dos hospitais psiquiátricos para a comunida-
continua sendo um marco importante de referên- de; o deslocamento do centro do interesse somente
cia para os projetos de reforma psiquiátrica e para da doença para a pessoa e para a sua desabilidade
o redimensionamento atual da desinstitucionaliza- social e o deslocamento de uma ação individual
ção em psiquiatria. Coloca que “o projeto de de- para uma ação coletiva nos confrontos dos pa-
sinstitucionalização volta-se para a superação do cientes com seus contextos9.
ideal de positividade absoluta da ciência moderna Pela inquestionável importância que assume a
em sua racionalidade de causa e efeito, para voltar- produção prático-teórica basagliana, estas idéias e
se para a invenção da realidade enquanto um pro- conceitos deverão sempre estar presentes no coti-
cesso histórico”10. diano dos trabalhadores de saúde mental que se
espelham nos pressupostos da reforma psiquiá-
Princípios para a organização dos serviços trica. Igualmente, pensamos que estes conceitos
devem ser uma linguagem universal, acessível a
A seguir, citamos os princípios de Rotelli9 para todos os profissionais, técnicos e não-técnicos. Isto
um trabalho efetivo de desinstitucionalização. Pen- evitaria as “derrapagens” eventuais que porventu-
samos que estes indicam um caminho norteador, ra possam ocorrer.
que deveria estar presente na prática dos serviços O projeto de desinstitucionalização busca a re-
de saúde mental e, periodicamente, deveria ser con- construção do objeto (enquanto sujeito histórico)
sultado, para corroborar a prática executada com que o modelo tradicional reduziu e simplificou
a teoria e ver se há congruência e pertinência entre o (causalidade linear doença/cura – problema/solu-
desenvolvido e o anunciado. ção). Mas para alcançar este objetivo, faz-se neces-
Rotelli9 vê a desinstitucionalização como um sário que as novas instituições estejam à altura do
trabalho prático de transformação que contem- objeto que está em constante reconstrução na sua
pla: a ruptura do paradigma clínico e a reconstru- existência – sofrimento: esta é a base da instituição
ção da possibilidade – probabilidade; o desloca- inventada9.
mento da ênfase no processo de “cura” para a “in- Os projetos de atendimento surgidos nos últi-
venção de saúde”; a construção de uma nova polí- mos anos têm de saída a recusa do modelo sinto-
tica de saúde mental; a centralização do trabalho mático em benefício da criação de uma clínica psi-
terapêutico no objetivo de enriquecer a existência quiátrica renovada, deslocando o processo do tra-
global; a construção de estruturas externas total- tamento da figura da doença para a pessoa doente.
mente substitutivas à internação no manicômio; a Nestes novos espaços, as ações antes centradas nos
não-fixação dos serviços em um modelo estável, sinais e sintomas, na classificação dos diferentes
mas dinâmico e em transformação; a transforma- quadros nosográficos, em suma, na medicaliza-
ção das relações de poder entre a instituição e os ção da loucura, passam a ter outro enfoque, que é
sujeitos; o investimento menor dos recursos em o de falar de saúde, de projetos terapêuticos, de
aparatos e maior nas pessoas. cidadania, de reabilitação e reinserção social e, so-
Além destes aspectos, o autor refere o cuidado bretudo, de projetos de vida11.
como elemento-chave para transformar os modos
de viver e sentir o sofrimento do “paciente” em sua Os Centros de Atenção Psicossocial
concretude, no cotidiano; a mobilização de todos e demais serviços substitutivos
os atores envolvidos – técnicos e pacientes –, isto
irá produzir comunicação, solidariedade e confli- De acordo com dados do Ministério da Saúde,
tos, ingredientes fundamentais para a mudança das existem no país 918 CAPS em funcionamento, 120
estruturas e dos sujeitos; a promoção da capacida- deles voltados, exclusivamente, ao atendimento de
de de auto-ajuda e de autonomia das pessoas; o dependentes de álcool e drogas. Os CAPS, os 475
enriquecimento das competências profissionais e serviços residenciais terapêuticos e os 350 ambula-
dos espaços de autonomia e decisão; a demolição tórios, ao lado dos 36 Centros de Convivência e
da compartimentalização das terapias (médica, Cultura e do Programa de Volta para Casa e Inclu-
psicológica, social, farmacológica, etc.); a valoriza- são Social pelo Trabalho, compõem a rede extra-
ção da dimensão afetiva na relação terapêutica, de hospitalar que substitui, aos poucos, o atendimento
figuras não profissionais no campo, utilização de prestado pelos hospitais psiquiátricos, no Brasil12,13.
esforços sociais e; a liberdade é terapêutica9. O maior número de CAPS por 100 mil habi-
Dentre os princípios para a organização dos tantes localiza-se na Região Sul – Rio Grande do
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Sul, Santa Catarina e Paraná, seguidos pela Região al; alienação dos mesmos em relação ao seu traba-
Sudeste – São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais lho, sendo a medicalização o mecanismo estrutu-
e Espírito Santo. As regiões Sudeste e Nordeste de- rante de todas as práticas analisadas e os instru-
têm, ainda, o maior número de hospitais psiquiá- mentos mais evidentes na abordagem terapêutica.
tricos. O estado do Amazonas é o único estado Arejano18, analisando as relações de poder nos
brasileiro sem nenhuma referência de rede12. serviços de saúde mental, entende que a discussão
Apesar de os hospitais psiquiátricos consumi- sobre o processo da reforma está centrada princi-
rem 88% dos recursos orçamentários do SUS des- palmente no caráter administrativo, sendo as ques-
tinados à saúde mental, e do relatório da III Con- tões técnicas, éticas e políticas contempladas por
ferência Nacional de Saúde Mental prever que até uma pequena parcela dos trabalhadores. A autora
o ano 2004 fossem extintos todos os leitos em hos- realizou o seu estudo na Pensão Pública Protegida
pitais psiquiátricos no Brasil, consolidando o pro- “Nova Vida”, de Porto Alegre, uma moradia tem-
jeto “Por uma Sociedade sem Manicômios”, atra- porária para pessoas portadoras de sofrimento
vés da estruturação de uma rede substitutiva de psíquico que precede a aprovação da Lei no 9.716
saúde mental, a realidade nacional que se descorti- da reforma psiquiátrica do estado do Rio Grande
na ainda contempla o hospital psiquiátrico. Cabe do Sul. Conclui que a instrumentalização do fazer
destacar que os investimentos nos serviços substi- em saúde mental é construída no cotidiano, ob-
tutivos vêm aumentando desde 2004. A reorienta- serva que o comprometimento dos trabalhadores
ção do modelo assistencial em saúde mental de- com o processo de reforma deriva de uma questão
manda investimentos políticos, técnicos, financei- mais pessoal, do que propriamente de conheci-
ros e éticos, entre outros, assim como a articula- mento histórico-político do processo. O estudo
ção com outras instâncias – educação, trabalho, aponta para a necessidade urgente da criação de
cultura, habitação e habilitação profissional, obje- estratégias de cuidado em saúde mental aliadas aos
tivando a cidadania, a emancipação12-15. princípios da legislação; constata uma lacuna en-
Bichaff16 investigou o processo de trabalho nos tre um referencialteórico arcaico e um novo refe-
CAPS, tomando por base o atual momento da re- rencial, ainda incipiente na sua ação prática.
forma psiquiátrica no Brasil. Os resultados apon- Os estudos anteriormente citados trazem à tona
tam que os trabalhadores apresentam uma traje- a questão da instrumentalização dos operadores
tória de formação profissional tradicional, as ações para a mudança do paradigma. Os novos serviços
sendo norteadas, fundamentalmente, por concep- necessitam de profissionais capacitados para ope-
ções coerentes com o modelo hegemônico, cujo rar dentro de novas estratégias. O processamento
objeto de trabalho é o indivíduo e sua doença. A de mudanças em nível de reformulação do modelo
análise evidencia também que as relações entre o de assistência não se dará somente através de me-
saber e o fazer resultam em práticas e intervenções didas de cunho legislativo, mas fundamentalmen-
tradicionais. A autora conclui que as ações que es- te pelas rupturas realizadas nos microespaços e
tariam dirigidas ao contexto concreto de vida des- através da desconstrução do modelo manicomial
ses usuários, além de pouco representativas, estão fortemente arraigado nos profissionais e no senso
fundamentadas no conhecimento advindo da pró- comum. De acordo com Saraceno19, as experiênci-
pria prática e do senso comum. O estudo mostra a as de transformação da assistência psiquiátrica no
necessidade de revisão dos processos de trabalho que chama de sul do mundo (entendemos que es-
da equipe, para possibilitar a construção de novos tamos situados neste contexto), são “inventadas”
saberes, instrumentos e práticas, bem como o en- e obtidas da conjugação da pobreza de recursos
volvimento dos trabalhadores enquanto atores institucionais associada à capacidade de identificar
sociais da reforma. recursos da comunidade.
Outra pesquisadora, Oliveira17, investigando a Para Saraceno19, a história natural das doenças
mesma temática, o processo de trabalho das equi- encontra a história natural dos serviços. Assinala a
pes de saúde mental nos serviços extra-hospitala- importância da revisão e crítica dos serviços para
res de atenção à saúde mental, aponta que a cida- as transformações efetivas na vida dos pacientes,
dania é dissociada da vivência e organização do uma vez que estas variáveis – os serviços – têm um
trabalho de profissionais e usuários. A referência peso significativamente mais importante do que
de cidadania predominante nos processos de tra- as variáveis clínicas. O autor ressalta que um servi-
balho foi a cidadania tutelada. O estudo destaca ço de alta qualidade deverá ser permeável e dinâ-
ainda que não são exploradas as contradições das mico, com uma alta integração interna e externa.
práticas que os profissionais operam: simultanea- Saraceno19 enfatiza que “a organização (seja em
mente restrição de liberdade e atenção psicossoci- termos de acesso da demanda, seja em termos da
302
Hirdes A

não-estereotipia da resposta) orientada às necessi- Para Souza25, a criatividade e individualização


dades do paciente e não às do serviço”. A integração nos cuidados em saúde mental têm se mostrado
interna dos serviços não pode estar voltada para a indispensáveis; porém, questiona as técnicas de tra-
burocratização estandardizada dos próprios pro- balho. O autor defende a ampliação da projeção
cedimentos, mas antes, centrada às especificidades dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) fren-
de cada pessoa. A integração externa é referida como te às políticas sociais de uma forma mais ampla,
a permeabilidade do serviço a saberes e recursos através da articulação e integração com as equipes
existentes que circundam estes saberes e recursos. de saúde da família, para a construção cotidiana
Esta permeabilidade não se restringe somente aos de novos espaços. Traz a necessidade de ter clareza
recursos disponíveis, mas a sua concreta ativação. do referencial, para agenciar o processo de inova-
O autor entende que os muros a serem demolidos ção das práticas, através da solidificação de princí-
são aqueles que impedem a utilização de outros pios fundamentais, para que não se incorra no erro
saberes e recursos. de reproduzir as técnicas tão questionadas do
Os serviços constituem-se, para Saraceno19, modelo hospitalocêntrico ao se aproximar das
como a variável que influi no processo reabilitati- comunidades.
vo. Assinala que somente serviços de alta qualidade Para Rotelli e colaboradores9, a base da institui-
podem garantir programas reabilitativos confiá- ção inventada a partir dos projetos de desinstituci-
veis. Dentre as características de um serviço de alta onalização reside na ruptura da causalidade linear
qualidade, identifica aquelas que se ocupam de to- doença-cura, problema-solução e na reconstrução
dos os pacientes e a todos oferecem possibilidades do objeto enquanto sujeito histórico. O autor res-
de reabilitação. Pontua que os serviços que não ofe- salta que as novas instituições deverão estar à altu-
recem estas possibilidades acabam gerando hierar- ra da complexidade da tarefa de intervir na sua exis-
quias de intervenção e, os menos dotados, acabam tência – sofrimento, remetendo ao processo da cons-
sendo excluídos do processo. Além desta caracte- tante reconstrução deste sujeito.
rística, Saraceno ressalta que um serviço de alta Para que isto ocorra, há a necessidade da confor-
qualidade deverá ser permeável e dinâmico, com mação de espaços coletivos, de lugares de reflexão
uma alta integração interna e externa: “um serviço crítica, de produção de subjetividade e constituição
onde a permeabilidade dos saberes e dos recursos de sujeitos. Espaços coletivos são espaços concre-
prevalece sobre a separação dos mesmos”. tos (de lugar e tempo) destinados à comunicação
Neste sentido, as abordagens a partir de uma (escuta e circulação de informações sobre desejos,
perspectiva transdisciplinar permitem uma multi- interesses e aspectos da realidade), à elaboração
plicidade de intervenções no processo de trabalho (análise da escuta e das informações) e à tomada de
que favorecem a “reformulação ampliada do tra- decisão (prioridades, projetos e contratos)26.
balho em saúde”20 , ou clínica ampliada21 e o tra-
balho vivo em saúde22,23. O paradigma da saúde Saúde Mental
mental, o deslocamento das práticas para a comu- e a Estratégia (Programa) Saúde da Família
nidade, o campo psicossocial remetem ao entre-
cruzamento de saberes e práticas que não pode se Diversos autores têm estudado a questão PSF e
dar pela soma de disciplinas conexas, mas através a reforma psiquiátrica7,21,25,27-32. Scóz e Fenili29 tra-
de uma redefinição da transdisciplinaridade. zem um novo conceito de reforma intitulada de
Para Almeida Filho24, não são os campos disci- reforma substitutiva, que caracterizam por ser todo
plinares que interagem entre si, sendo construídos tipo de ação que visa a apresentar novas formas de
na prática científica cotidiana através dos sujeitos que cuidado da pessoa no seu processo de vida, através
atuam como agentes institucionais representativos. da reorientação do modelo assistencial, com a in-
Uma das problemáticas daí decorrentes diz respeito clusão da família.
ao fato de que as relações transdisciplinares em prin- Tanaka e Lauridsen-Ribeiro32, com o objetivo
cípio tendem mais para o conflito do que para o de avaliar a atenção em saúde mental na atenção
diálogo. O enriquecimento disciplinar depende de básica de saúde, realizaram um estudo comparati-
aportes transdisciplinares que retornam através de vo entre os diagnósticos de problemas de saúde
conhecimento renovado e novas formas de inter- mental feitos pelos pediatras e os prováveis pro-
venção. Os profissionais que operam neste campo blemas de saúde mental identificados por meio da
deverão ser capazes de ultrapassar limites impostos aplicação de um questionário padronizado aos
pela doença, pelo estigma, pelas condições de vida pais. Os resultados encontrados apontam para a
adversas, para construir outros modos de operar, necessidade de mudanças na formação profissio-
mediante as situações específicas que se apresentam. nal do médico, otimizando sua capacidade de di-
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agnósticos precoces e encaminhamentos adequa- produzindo tecnologias diversas que propiciam um
dos, assim como a necessidade do aperfeiçoamen- melhor cuidado. Essa é uma preocupação que en-
to do processo de trabalho, no que tange ao aten- volve as pessoas e as relações. O cuidado requer
dimento em si, como na articulação entre as dife- envolvimento com o outro, está ligado à idéia de
rentes instâncias da rede. co-responsabilizar-se pelo outro, de envolver-se
Campos e Soares30, investigando a produção com o sofrimento do outro, de solidarizar-se com
de serviços de saúde mental, descrevem as concep- o outro. Então, pressupõe vincular-se a alguém e
ções de saúde mental de trabalhadores de diferen- isso requer disponibilidade para o outro, para o
tes serviços de saúde mental do município de São inusitado, para a relação25.
Paulo. No âmbito hospitalar, ambulatorial e da Campos20, contextualizando a co-produção do
unidade básica de saúde, a concepção de saúde- singular no processo saúde-doença, a partir dos
doença é multifatorial e centrada no indivíduo, conceitos de clínica e saúde coletiva compartilha-
enquanto no Centro de Atenção Psicossocial das dentro de uma perspectiva de reformulação
(CAPS), a concepção aproximou-se da teoria da ampliada do trabalho em saúde, defende o méto-
determinação social. Quanto ao processo de tra- do Paidéia: neste conceito, as mudanças são inevi-
balho, o objeto recortado foi predominantemente táveis, mesmo quando em resistência ao novo.
o indivíduo doente e o sintoma da doença. Os au- Neste sentido, o método Paidéia tem a finalidade
tores concluem que o desafio é avançar no enten- de aumentar o coeficiente de intencionalidade dos
dimento da concepção do processo saúde-doença sujeitos, de compreender e interferir na ampliação,
e na formulação de processos de trabalho pauta- na co-responsabilidade pela constituição de con-
dos no âmbito dos determinantes, através da com- textos singulares. A co-produção do singular de-
preensão de que a saúde mental também tem suas corre da interação entre fatores universais e parti-
raízes no âmbito da reprodução social e não so- culares, resultando em sínteses específicas. O sin-
mente nos resultados do processo saúde-doença. gular é o contexto situacional, produto do encon-
Consoli, Hirdes e Costa7 investigaram as ca- tro entre sujeitos em um dado contexto organiza-
racterísticas dos cuidados em saúde mental na re- cional, cultural, político e social. Diferentes fatores
gião do Alto Uruguai, levando em conta as diretri- (biológicos, psicológicos, socioeconômicos) exer-
zes do SUS e da reforma psiquiátrica. Os resulta- cem influência na constituição dos modos de vida
dos apontam a inserção marginal dos profissio- dos sujeitos e nos seus estados de saúde e de doen-
nais na questão da saúde mental, embora a totali- ça. A diferença está no grau com que cada fator
dade dos municípios disponham de Programas de atua em uma dada situação específica. O desafio
Saúde da Família, as consultas clínicas como base consiste em captar esta variabilidade e propor pro-
da intervenção em saúde mental, a utilização da jetos singulares adequados a cada situação.
ambulancioterapia como solução para os casos Lancetti28, ao relatar a experiência no Projeto
agudos e crônicos, a centralização dos atendimen- Qualis, de São Paulo, que introduziu a saúde men-
tos no modelo do dano, da doença. Concluem que tal no Programa Saúde da Família, reforça que no
a questão da municipalização da saúde mental na PSF não é possível passar os casos, apesar do en-
região norte do Rio Grande do Sul é ainda incipi- caminhamento de pessoas para tratamentos mais
ente e sua concretização depende fundamentalmente complexos, em razão de esses pacientes morarem
da vontade política dos gestores, da capacitação no mesmo bairro; assim, o vínculo e a continuida-
técnica dos profissionais e da real inserção das ações de exigem lidar com o sofrimento humano, pro-
de saúde mental no PSF. cesso para o qual a maioria dos técnicos ainda não
Machado e Mocinho31 realizaram um estudo está preparada, exigindo dos profissionais um tra-
com o objetivo de mostrar os limites e possibilida- balho psíquico e uma capacitação continuada.
des da atuação dos profissionais das equipes de As ações precisam estar onde as pessoas estão,
PFS, em um município de pequeno porte do Rio inverte-se o paradigma asilar, o sujeito não é a es-
Grande do Sul. Os resultados apontam que as pecificidade individual, mas o conjunto de víncu-
ações em saúde mental concentram-se em uma clí- los, de relações compartilhadas. A acessibilidade
nica tradicional hospitalocêntrica e medicalizada, geográfica traduz-se pela facilidade de ser atendido,
em razão de os sujeitos do estudo operarem com a a acessibilidade política traduz-se pela capacidade
lógica da exclusão e com conceitos psiquiátricos de planejar e decidir de modo participativo. A par-
reducionistas e organicistas. ceria PSF e saúde mental não quer dizer treinamen-
Tanto a Saúde Mental como a Estratégia de to das equipes de saúde da família em procedimen-
Saúde da Família têm apresentado novas modali- tos simplificados de psiquiatria. Requer, sobretu-
dades de cuidado do processo de adoecimento, do, uma construção recíproca e responsável de uma
304
Hirdes A

teoria, de uma prática e de uma ética, mediante o mental para um contexto comunitário, a vontade
estabelecimento de um acordo político. Saúde men- política para a implantação de estruturas substi-
tal e PSF implicam transformações profundas nas tutivas à internação será crucial e, concretamente,
práticas do Estado, em todos os seus níveis27. irá redimensionar novos espaços para o sofrimen-
to psíquico, a partir da produção de uma nova
cultura de saúde/doença mental e das relações es-
Considerações finais tabelecidas neste campo. Entretanto, estas ações
devem transpor a centralização das ações no mo-
Muitos avanços ocorreram com as experiências de delo biomédico, na doença, através de uma abor-
desinstitucionalização. Entretanto, pensamos que, dagem que articule tratamento, reabilitação psi-
a despeito de muitos serviços que trabalham sob a cossocial, clínica ampliada e projetos terapêuticos
égide da reforma psiquiátrica em nosso país, há a individualizados.
necessidade de constantemente redimensionarmos Cabe destacar a necessidade de investimento na
o olhar para as práticas em curso, para que aos instrumentalização dos profissionais para alavan-
novos serviços correspondam as balizas propos- car a inclusão do cuidado à saúde mental no Siste-
tas, no nosso caso, o referencial da reforma psi- ma Único de Saúde, com vistas à reversão do mode-
quiátrica italiana. Há que lembrar, também, que lo assistencial. A inserção das ações de saúde men-
os dispositivos como os Centros de Atenção Psi- tal no PSF perpassa fundamentalmente a capacita-
cossocial (CAPS) deverão se constituir como luga- ção e apropriação de conceitos de clínica ampliada
res de passagem; do contrário, sem esta revisão e dos profissionais para a mudança do paradigma.
crítica, a tendência dos novos serviços que traba- A reforma psiquiátrica brasileira, através da cri-
lham no contexto da reforma psiquiátrica poderá ação dos novos dispositivos em saúde mental, as-
encaminhar-se para a institucionalização. Para que sim como através da inserção das ações de saúde
isto não ocorra, torna-se crucial a instrumentali- mental na saúde pública, possibilita novas aborda-
zação dos trabalhadores de saúde e de saúde men- gens, novos princípios, valores e olhares às pessoas
tal, a sensibilização dos gestores de saúde e a per- em situação de sofrimento psíquico, impulsionan-
manente preocupação com a qualidade dos servi- do formas mais adequadas de cuidado à loucura
ços oferecidos. no seu âmbito familiar, social e cultural. Os proje-
A inserção das ações de saúde mental no PSF tos de reforma não são homogêneos, as práticas
constitui-se em estratégia adotada pelo Ministério são executadas conforme a concepção teórica dos
da Saúde. A ênfase das ações de saúde mental no trabalhadores de saúde mental. Concluímos, enfa-
território constitui-se na própria essência da de- tizando que existem princípios orientadores gerais,
sinstitucionalização da psiquiatria. Para que efeti- mas que, em última análise, estão subordinados
vamente haja o deslocamento das ações de saúde aos settings específicos onde ocorrem as práticas.
305

Ciência & Saúde Coletiva, 14(1):297-305, 2009


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PSICÓLOGOS NO PROCESSO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA:
PRÁTICAS EM DESCONSTRUÇÃO?
*
André Luis Leite de Figueiredo Sales
#
Magda Dimenstein

RESUMO. Esse trabalho é resultado de uma investigação realizada com psicólogos da rede de CAPS do município de
Natal/RN. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo feita a partir de entrevistas semiestruturadas e observações
sistemáticas orientadas por um olhar cartográfico. Os focos da investigação foram: a relação entre a formação acadêmica
recebida nos cursos de graduação e as demandas de trabalho, e um mapeamento das atividades realizadas no cotidiano dos
serviços. No primeiro eixo encontrou-se um distanciamento entre os conteúdos discutidos na universidade e as questões
presentes no cotidiano do serviço, apontando para as fragilidades da formação dos profissionais para atuação nestes espaços.
As principais atividades realizadas foram: acolhimento dos usuários, triagens, coordenação e participação de oficinas diversas,
grupos operativos e terapêuticos, além de atendimentos individuais, sendo esse último alvo de análise.
Palavras-chave: Psicólogos; formação profissional; trabalho em saúde.

PSYCHOLOGIST IN THE PSYCHIATRIC REFORM PROCESS:


DECONSTRUCTION PRACTICES?

ABSTRACT. This work is the result of an investigation conducted with psychologists of the CAPS network in the
municipality of Natal/RN. It is a qualitative study that utilized semi-structured interviews and systematic observations with a
cartographic perspective. The investigation focused on the relation between the academic formation obtained in the
undergraduate courses and the work demands, and on the mapping of the daily activities conducted in the service settings. In
the first point of focus, a distance was observed between the contents discussed in the university and the questions presented
in the service environment, indicating weaknesses in the formation of health professionals for practice settings. The main
activities conducted were: reception of service users, triage, coordination of, and participation in, diverse workshops and
operational therapeutic groups, and individual assistance, with the latter being the focus of analysis.
Key words: Psychologists; professional formation; health work.

PSICÓLOGOS EN EL PROCESO DE LA REFORMA PSIQUIÁTRICA:


PRÁCTICAS EN DESCONSTRUCIÓN?

RESUMEN. Ese trabajo es resultado de una investigación hecha con psicólogos de la red de CAPS de la provincia de
Natal/RN. Es una investigación cualitativa hecha a partir de una entrevista estructurada y observaciones sistemáticas
orientadas por una perspectiva cartográfica. Los ejes de análisis fueron: la relación entre formación académica recibida en los
cursos de grado y las demandas de trabajo, y una identificación de las actividades hechas en el cotidiano de los servicios de
salud. Hay problemas en relación a los contenidos discutidos en la universidad y las cuestiones del cotidiano indicando una
fragilidad de la formación de los profesionales para actuación en estos espacios. Las principales actividades son: recepción de
los usuarios, coordinación y participación en oficinas, grupos operativos y terapéuticos, además de las consultas individuales,
que fueron foco de análisis.
Palabras-clave: Psicólogo; formación profesional; trabajo en salud.

O presente trabalho visa discutir os resultados de CAPS do município de Natal. Trata-se de uma
uma investigação realizada com psicólogos da rede de pesquisa de cunho qualitativo feita a partir de

* Psicólogo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista de IC/CNPq/PIBIC.


#
Doutora em Saúde Mental. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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entrevistas semiestruturadas e observações cidadania e da inclusão social dos usuários e


sistemáticas orientadas por um olhar cartográfico de suas famílias (MS, 2004; p.12).
(Andreoli, Costa, Ribeiro, Giacomel, Kirst, 2003).
Buscamos conhecer como tais profissionais estão A consolidação desses serviços tanto em âmbito
vivenciando o cotidiano desses serviços e nos nacional quanto estadual é uma realidade, conforme
propomos a pensar o lugar da psicologia enquanto um pode ser visto nos dados do Ministério da Saúde
dos saberes convocados a trabalhar em favor da (2007). Em 2002, a quantidade total de CAPSs
efetivação de mudanças no modelo manicomial de existentes no país totalizava 424 unidades – sendo seis
assistência. no Estado do Rio Grande do Norte. Ao final de 2006,
No fim da Segunda Grande Guerra Mundial se o número total já chegava a 1001 no país, e em âmbito
intensificaram por todo o mundo movimentos de estadual somavam-se 21 CAPSs. Esse serviço se
contestação do modelo asilar predominante em termos encontra em uma posição privilegiada para efetivar a
de assistência aos portadores de transtorno mental mudança no modelo de assistência, na medida em que
(Amarante, 2003). Dentre esses movimentos, destaca- também cabe ao CAPS
se a Psiquiatria Democrática Italiana, cujo ideário
influenciou sobremaneira a construção da proposta de Assumir seu papel estratégico na articulação e no
tecimento dessas redes, tanto cumprindo suas
reforma no Brasil. As propostas terapêuticas postas funções na assistência direta e na regulação da
em ação por Franco Basaglia na Itália visavam abolir rede de serviços de saúde, trabalhando em
os métodos de tratamento dotados de caráter conjunto com as equipes de Saúde da Família e
coercitivo e violento, bem como implementar ações de Agentes Comunitários de Saúde, quanto na
restituição dos direitos civis dos loucos. O pressuposto promoção da vida comunitária e da autonomia
era o de que um tratamento eficaz precisaria reinseri- dos usuários, articulando os recursos existentes
los no jogo das relações sociais (Amarante, 2003). A em outras redes: sociossanitárias, jurídicas,
mudança no foco do tratamento acabou trazendo à cooperativas de trabalho, escolas, empresas etc.
(MS, 2004; p. 12).
tona a vinculação entre produção da “doença mental”
e questões de ordem jurídica, policial e
Uma análise dos dados apresentados no relatório
socioeconômica (Castel, 1978; Foucault, 2005).
de Gestão da Coordenação Nacional de Saúde Mental
No contexto nacional a revisão do paradigma
no período de 2003-2006 (MS, 2007) mostra com que
psiquiátrico de assistência à saúde mental esteve
força se tem apostado nos serviços extra-hospitalares
atrelada às reivindicações da reforma sanitária, com o
como via de implementação da reforma psiquiátrica no
engajamento dos profissionais de saúde e da sociedade
país. Em 1997, 93,14% dos recursos destinados ao
civil na busca da construção de um conjunto de
Programa de Saúde Mental eram empregados em
políticas públicas que assegurassem a saúde da
gastos hospitalares, restando apenas 6,86% para todos
população (Amarante, 1995). Essas lutas sociais
os demais serviços1. Ao longo dos últimos três anos
culminaram na criação do SUS e na aprovação de uma
estes recursos foram progressivamente deslocados,
legislação específica que visava orientar a
tendo em 2006 os gastos com os recursos extra-
desconstrução do modelo manicomial vigente no
hospitalares atingido 51,33% do total investido. Os
Brasil.
crescentes gastos com as APACS – autorização para
A instrumentalização da mudança do modelo de
procedimento de alta complexidade -, elemento
assistência psiquiátrica tem se dado principalmente
importante no financiamento dos CAPSs, deixam
por via dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). ainda mais clara a importância que tem sido dada a
Trata-se de unidades de atendimento em saúde que estes serviços. Em 2006, mais de cento e cinquenta
oferecem aos seus usuários um programa de cuidados milhões de reais foram empregados para pagar tais
intensivos, elaborado por uma equipe multidisciplinar. procedimentos, montante que corresponde a 18,93%
A proposta do Ministério da Saúde (MS) para esse de todos os recursos dispensados para o programa de
serviço especifica, em relação aos usuários, uma forma geral. Em Natal, as ações em saúde mental
desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Saúde
Dar um atendimento diuturno às pessoas que (SMS) estão:
sofrem com transtornos mentais severos e
persistentes, num dado território, oferecendo
cuidados clínicos e de reabilitação 1
Incentivos financeiros destinados aos CAPSs, residências,
psicossocial, com o objetivo de substituir o inclusão social pelo trabalho, qualificação para o CAPS,
modelo hospitalocêntrico, evitando as além dos procedimentos ambulatoriais, medicamentos,
internações e favorecendo o exercício da hospitais-dia, convênios e o Programa de Volta para Casa.

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Psicólogos e suas práticas no contexto da Reforma 279

Alicerçadas nas diretrizes da reforma visando à mudança das relações entre a sociedade e loucura
psiquiátrica nacional, garantindo dispositivos que esse artigo se propõe a discutir as práticas dos
assistenciais para clientela dessa linha de psicólogos na rede de saúde mental do município de Natal.
cuidado, através de uma rede articulada de
Essa discussão se justifica não só pelos desafios
serviços a partir da atenção básica, Centros
Psicossociais – CAPS, residência terapêutica,
enfrentados na construção de projetos políticos terapêuticos
leitos em hospitais gerais e ambulatórios para efetivar a desinstitucionalização, mas também pelas
(SMS, 2007, p. 53). constantes críticas dirigidas à atuação dessa categoria
profissional nos serviços públicos de saúde.
O Plano Municipal de Saúde de Natal (SMS, Um levantamento da bibliografia acerca desses
2006) estabelece como metas estratégicas a serem profissionais nesse campo nos mostra que a sua atuação
alcançadas nos próximos três anos está pautada em um modelo de atendimento
predominantemente clínico e preferencialmente individual,
A expansão da rede extra-hospitalar, buscando com pouca ênfase na realidade sociocultural de onde os
ampliar a rede de Saúde Mental em 100%, usuários provêm, bem como nas peculiaridades decorrentes
reestruturar 50% dos serviços existentes, criar disso. Outras questões apontadas são a falta de articulação
leitos de observação para urgências psiquiátricas da prática com as demandas sociais e dificuldades em
em cada pronto atendimento, ampliar em 100%
relação o trabalho multidisciplinar (Benevides, 2005;
os leitos psiquiátricos em Hospital Geral e
implementar o serviço de urgência móvel Dimenstein, 2001 e 2004; Lima, 2005). Sendo assim,
psiquiátrica. Além disso, serão implantados os interessou-nos mapear as ações que esses profissionais têm
projetos das Oficinas Itinerantes de Arte e Saúde desenvolvido cotidianamente nos CAPSs. Especificamente,
Mental e de Apoio Matricial às unidades básicas propusemo-nos pensar as relações entre as práticas e as
de saúde (p.30). ideias que norteiam a reforma; conhecer sua formação
acadêmica e a forma como se percebem enquanto
Atualmente estão em funcionamento no município trabalhadores do campo da saúde mental, de modo a traçar,
dois CAPSs II, dois CAPSad’s, um CAPSi, um pela via da inspiração cartográfica, um mapa de como esses
ambulatório, uma residência terapêutica e um APTAD2, elementos produzem os territórios onde se concretiza o
distribuídos entre os cinco distritos sanitários da cidade. trabalho.
Embora sejam notórios os avanços no campo da reforma,
sabemos que ainda são muitos os impasses que precisam
ser vencidos a fim promover cuidado em liberdade para PERSPECTIVA METODOLÓGICA
aqueles que por tanto tempo foram condenados ao
isolamento e à exclusão. Alverga e Dimenstein (2006) O trabalho de pesquisa no campo da saúde
apontam como problemáticos: coletiva é algo que impele o pesquisador a explorar a
sua criatividade e as diversas formas possíveis de
A forma de alocação dos recursos financeiros do interagir com o campo, e acessá-lo em sua dimensão
SUS e suas repercussões no modelo assistencial de trabalho vivo tal como pensado por Merhy3.
proposto para os serviços substitutivos; aumento
considerável da demanda em saúde mental (...)
diminuição importante, mas ainda insuficiente, 3
Merhy (2002) utiliza a noção de trabalho vivo e trabalho
dos gastos com internação psiquiátrica (...); morto para pensar os atos produtivos humanos tanto em sua
fragilidade em termos de abrangência, dimensão de produção de materiais e artefatos – como um
acessibilidade, diversificação das ações, sapato ou uma bicicleta – como também para problematizar
qualificação do cuidado e da formação a dimensão das relações interpessoais. O trabalho morto
profissional, bem como um imaginário social seria aquele oriundo de ações anteriores na quais foi
calcado no preconceito/rejeição em relação à produzido conhecimento, saber, tecnologia e que hoje se
loucura (p.300). colocam como parte de um dado ato produtivo e
pressupostos orientadores para realizá-lo. Já o trabalho vivo
seria aquele no qual o trabalhador executaria um ato
É, principalmente, no que tange à diversificação das intencional e criador a partir das diversas combinações
formas de assistência que tem sido oferecidas e no trabalho possíveis que lhe são permitidas pelo acúmulo das
tecnologias e saberes oriundos dos trabalhos mortos
anteriores. Seria o momento no qual, tendo consigo uma
2
APTAD - Ambulatório de prevenção e tratamento do intenção implícita ou explícita, aquele que age tem diante
tabagismo, alcoolismo e outras drogadições. Realiza o de si a oportunidade de agenciar algo, algo que não estava
atendimento preventivo e tratamento de dependência posto. Ou que mesmo que já o estivesse isto agora poderá
química para usuários a partir de 14 anos, promovendo ser feito de modo particular, singular e próprio daquele que
também, orientação para os familiares (Natal, 2007, p. 54). realiza a ação.

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280 Sales e Dimenstein

Construir conhecimentos tendo em vista os inúmeros Nosso campo de intervenção foi constituído dos
determinantes políticos, sociais e ideológicos que dois CAPSs II e dois CAPSs Ad localizados na cidade
perpassam esse campo é uma tarefa complexa, do Natal. Os participantes foram 10 psicólogos que
cabendo ao pesquisador inventar tanto seu arsenal compõem o quadro de técnicos desses serviços
metodológico quanto sua forma de estar em campo Conforme já ressaltamos anteriormente, tais encontros
(Silveira, 2003). Nesse sentido, o olhar cartográfico foram norteados por um roteiro onde abordávamos
pode contribuir para problematizar a construção de quatro eixos temáticos, a saber: relação da formação
conhecimento nessa área. Nessa perspectiva busca-se acadêmica recebida nos cursos de graduação e as
traçar um mapa das diversas linhas que compõem um demandas dos serviços; mapeamento das principais
dado território existencial. A cartografia se contrapõe atividades desenvolvidas; conhecimento dos princípios
“a uma topologia quantitativa que categoriza o terreno ordenadores da reforma psiquiátrica e autopercepção
de forma estática e extensa” (Andreoli, Costa, Ribeiro, enquanto trabalhadores do campo da saúde mental.
Giacomel, Kirst, 2003, p.92), propondo outra “de Vamos restringir nossa discussão aos dois primeiros
cunho dinâmico, que procura capturar intensidades, ou eixos, em função dos limites presentes nas normas da
seja, disponível ao registro do acompanhamento das revista em termos da extensão do artigo.
transformações decorridas no terreno percorrido e à
implicação do sujeito percebedor no mundo
cartografado” (op.cit, p.92). RESULTADOS
É preciso ressaltar que a cartografia não é uma
metodologia de pesquisa como esta se entende Formação acadêmica e atuação profissional: algumas
interfaces
usualmente. Trata-se bem mais de uma disposição do
pesquisador, de um modo de conceber, de elaborar Encontramos um perfil profissional semelhante
questões e discutir os efeitos do seu encontro com seu àquele descrito por Oliveira et al. (2004) em sua
campo. Sendo assim, caberia ao cartógrafo tentar caracterização da psicologia no Estado do Rio Grande
construir conhecimentos a partir de um referencial do Norte. Dentre os dez profissionais entrevistados,
ético-estético-político, valorizando os afetos, dois eram homens e oito mulheres, em sua maioria,
localizando virtualidades e acreditando na formados pela Universidade Federal do Rio Grande do
inseparabilidade do par sujeito pesquisador/objeto da Norte. Os quesitos área de estágio e direcionamento
pesquisa. Cartografar é, pois, uma tentativa de do currículo durante a graduação estão marcadamente
apreensão do mundo em sua dimensão de força, e não voltados para o trabalho clínico com enfoque teórico
de forma, tentando preservar ao máximo o da Psicanálise. O tempo de formação é superior a dez
processualidade da realidade (Kastrup, 2007). anos 4.
As ferramentas através das quais foi viabilizado o Um dos pontos da entrevista visava conhecer as
nosso encontro com o campo foram entrevistas relações entre a formação e as práticas profissionais
semiestruturadas e observação participante. A função que hoje constituem as rotinas de trabalho.
da entrevista foi servir de elemento disparador para Observamos uma defasagem entre os conteúdos
uma conversa a partir da qual fosse possível captar discutidos na formação e o que esses profissionais
com maior liberdade a forma como o profissional se atualmente vivem e observam no seu cotidiano. Os
posicionava em relação às questões levantadas pela participantes referem-se à graduação como o momento
pesquisa. O nosso pressuposto para isso era que o em que receberam apenas as bases para o trabalho.
acesso ao relato verbal de um sujeito acaba por dar Afirmam que ela foi insuficiente especialmente pela
visibilidade a uma construção de realidade que se dá ausência de conteúdos vinculados à saúde pública e à
de forma coletiva e compartilhada. No discurso de um reforma psiquiátrica. Observamos, assim, uma
é possível captar o jogo de sentido, valores, normas e fragilidade no que diz respeito à formação acadêmica
ideias que perpassam o dia-a-dia do grupo ou da desses profissionais para o trabalho específico nos
instituição (Silveira, 2003). Sobre a observação serviços substitutivos.
participante no nosso trabalho, buscamos aquilo que O fator “tempo de formação” poderia justificar a
escapa às palavras, que vai além do dito, que se ausência de tais conteúdos, pois no fim da década de
inscreve nas práticas mais simples e mais corriqueiras; 1980 e início dos anos 1990 a discussão sobre saúde
ou seja, atentamos para tudo aquilo que faz parte do
cotidiano dos serviços (as práticas, os movimentos) e 4
Apenas uma das entrevistadas não atende a este critério,
compõe o cenário no qual estão inseridos os tendo concluído a formação no ano de 2002 e ingressado na
psicólogos que entrevistamos. rede há pouco tempo via concurso público.

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Psicólogos e suas práticas no contexto da Reforma 281

pública e reforma psiquiátrica ainda era muito sociais, e como sendo incapaz de dar respostas
incipiente, dado o pouco tempo de implementação do eficazes a parcelas significativas da população. As
SUS e a pouca difusão da luta antimanicomial. práticas são ancoradas em um discurso que assume
Entretanto, o fato de ter profissionais formados em uma posição de neutralidade, como se as pessoas,
2002 indica que não se trata de tempo, mas do não- alvos de suas intervenções, não fossem sujeitos
acesso a essas discussões de forma sistemática e políticos em uma sociedade conflituosa. A inserção do
constante no curso de Psicologia da UFRN, já que se psicólogo em contextos de luta como o da reforma
trata da instituição mais citada. psiquiátrica implica na desconstrução desses modos
conservadores de atuação e a proposição de novos
Quando eu tava na graduação o meu único modos de trabalho.
contato com o CAPS e com o tema da Localizando historicamente alguns dos pilares que
reforma foi em uma visita a esse serviço. sustentam a cisão entre psicologia e política,
Agora, se os profissionais da saúde não têm
Nascimento, Manzine e Bocco (2006) assim se
conhecimento, você imagina o resto do povo.
[E4] expressam:

No início, quando começou a formar-se


A entrevistada, inclusive, refere que tal lacuna é
enquanto campo específico, [a psicologia]
um dos obstáculos para o avanço da reforma esforçou-se por atingir um status de
psiquiátrica e um indicativo da pouca difusão que as objetividade e rigor, priorizando o psi
ideias do movimento têm alcançado na sociedade, na cientista sobre o psi sujeito no mundo (na
medida em que elas não estão sequer presentes nos cidade, polis) na busca do ideal de ciência.
cursos de formação dos profissionais que participam Mais adiante, com o surgimento da
desses serviços. Diante disso, os profissionais psicanálise no fim do século XIX, insistiu-se
precisam desenvolver algumas estratégias para na importância de que o analista estivesse
orientar seu trabalho nos CAPSs. Mapeamos as desprovido de suas questões pessoais no
atendimento (...). Desse modo, a psicologia
seguintes: formação complementar voltada para a área
foi fazendo uma trajetória na qual não
específica; participação na construção dos próprios parecia haver lugar para o psicólogo político,
serviços, bem como de grupos de estudos sobre a implicado com as questões de sua época
reforma psiquiátrica em Natal junto à Secretaria (p.18).
Municipal de Saúde; participação em fóruns e
capacitações para a abertura de CAPSs. Além disso, o Essa crença na neutralidade, tão cara a um saber
interesse pessoal de cada profissional suscitado pela que almejava se estabelecer dentro dos moldes da
demanda do trabalho faz com que busque ampliar seu ciência positiva, norteia ainda hoje a ação de boa parte
leque de conhecimentos, e a experiência adquirida ao dos profissionais. Muitos perdem de vista seu papel
longo do tempo vai orientando a proposição de novas normatizador dentro de uma sociedade onde o poder
estratégias de trabalho. se exerce, dentre tantas formas, pela via da produção
A literatura da área aponta que tal fragilidade é de subjetividades.
um dos maiores desafios a serem vencidos pela Na perspectiva que adotamos as subjetividades
psicologia, tendo-se em vista a entrada cada vez mais são entendidas “como algo que se faz, se desfaz e se
frequente e numerosa dessa categoria no SUS (Bastos refaz a cada instante, atravessada por uma
& Achcar, 1994; Boarini, 1996; Dimenstein, 2001 e multiplicidade de forças que, também a cada
2004; Oliveira et al, 2004). Esses novos espaços de momento, se compõem, decompõem e recompõem”
atuação pedem um profissional crítico, capaz de (Coelho, 2005, s/n). Para além de modelos estáticos,
refletir sobre as condições socioeconômicas e culturais congelados e fixos, pensamos subjetividades
dos contextos onde trabalha e dos indivíduos reais - dinâmicas, flexíveis, inventivas e diversas que vão se
cujas problemáticas vão além daquelas propostas pelos constituindo como um sistema complexo,
modelos clínicos que norteiam suas práticas - e heterogenético e distante do equilíbrio, sofrendo
habilitado para o trabalho em equipe multidisciplinar constantes bifurcações a partir dos diversos encontros
(Lima, 2005; Ronzano & Rodrigues, 2006). com as várias forças que se apresentam na vida dos
Esses autores, quando questionam o papel do indivíduos (Rolnik, 1999).
psicólogo em um contexto como o SUS, caracterizam Visando dar visibilidade à dimensão de produção
o trabalho de tais profissionais como tendo suas ações subjetiva do trabalho do psicólogo, Nascimento,
voltadas para a normatização das condutas e das ações Manzine e Bocco (2006) apontam que “o fazer da
e para a patologização e naturalização de problemas psicologia não apenas acolhe sujeitos e formas de ser,

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mas também produz subjetividades, reforçando ou cristalizações e adaptações às formas de subjetivação


questionando, favorecendo ou constrangendo, em uma que estão postas, é dada à psicologia a possibilidade
constante interferência com o plano político” (p.18). de sair do lugar de legitimador e normatizador do
Já Romagnoli (2006) nos dá mais elementos para instituído.
problematizarmos essa relação quando, pensando as
práticas “psi” e partindo de elementos de análise Essa proposta é, sem dúvida, um
foucaultianos, vem interrogar o lugar do especialista compromisso político que aposta na criação e
na mudança, em formas diversas de
nas sociedades contemporâneas. Ela explicita o poder existência, de sociabilidade. Trata-se de
normatizador que os discursos e saberes dos mais afirmar as potências, as diferenças, as
diferentes campos disciplinares têm na sociedade, na multiplicidades e possibilidades finitas e
medida em que ganham um estatuto de verdade. ilimitadas do homem, da sociedade, da
Assim, eses discursos e saberes acabam se psicologia e da política (Coimbra & Leitão,
configurando como uma “tecnologia de poder [que] 2003, p.14)
tem como foco a vida dos homens e apresenta-se
como positivo, no sentido de ser constitutivo, Engajar-se em um projeto tão radical como esse é
determinante, de participar ativamente da produção de trabalhar na efetivação da Reforma Psiquiátrica na sua
subjetivação, (...) sujeitando-as a verdades normativas vertente de desinstitucionalização como defendida por
que prefixam suas vidas e suas relações” (p.09). Nesse Rotelli, Leonardis e Mauri (2001); é juntar forças para
sentido, Ferreira Neto (2006) chama a atenção para a mudar o modo como temos convivido com a loucura e
crítica feita por Foucault ao intelectual universal, com a diferença.
portador da verdade e da justiça, na medida em que
Mapeamento das atividades realizadas
representaria a consciência da classe proletária e não
letrada. Avançando nessas ideias, o autor pontua que, Foi solicitada aos profissionais uma descrição de
atualmente, já não cabe aos intelectuais pensarem-se um dia típico de trabalho. Com isso objetivávamos
como portadores de uma verdade universal, mas, captar os principais movimentos na rotina do serviço.
Identificamos os seguintes: acolhimento dos usuários,
Promover a conexão entre o saber erudito e o triagens e re-triagens, coordenação de oficinas
saber comum das pessoas, politizando a ação diversas, participação em oficinas coordenadas por
cotidiana de indivíduos e coletivos nos outros técnicos, grupos operativos, grupos terapêuticos
diversos espaços sociais. E nesse aspecto, e atendimentos individuais. Dois dos nossos
importa menos a pessoa do intelectual e mais
entrevistados atuam como coordenadores dos serviços,
essa função promotora de agenciamentos
(Ferreira Neto, 2006, p. 68). sendo sua atribuição lidar com questões burocráticas e
de logística do funcionamento do CAPS.
O profissional de psicologia deveria ser capaz de Na fala de todos os participantes há uma
fazer um diagnóstico do presente a partir do qual o preocupação em demarcar o tom coletivo das
indivíduo conseguisse não só atentar para aquilo que atividades realizadas:
está posto enquanto materialidade concreta, mas
(...) é um trabalho de equipe onde a gente
também acessar a dimensão das virtualidades, dos
tem um intercruzamento dos saberes,
possíveis, daquilo que ainda se encontra em uma ninguém se fecha no seu mundo, ninguém se
dimensão de possibilidade. fecha no seu saber, é, na verdade, uma
prática cotidianamente construída (E1).
Seguindo as linhas de vulnerabilidade da
atualidade, em conseguir aprender por onde e Os entrevistados ressaltam ainda que a maior
como isso que existe hoje poderia não ser
parte das decisões sobre o funcionamento da
mais o que é na produção de subjetivações
instituintes. Trata-se de buscar uma espécie instituição é tomada na reunião de passagem –
de fratura virtual, que abre um espaço de encontro diário ao meio-dia em que a equipe passa as
liberdade (...) de transformação possível informações do turno da manhã para a do turno da
(Foucault, 1979 citado por Ferreira Neto, tarde. Esse espaço também é usado para troca de
2006, p. 70). informações, discussão de casos e planejamento das
atividades.
Trabalhando na perspectiva de buscar em seu Os atendimentos clínicos são realizados tanto a
cotidiano onde é possível agir para produzir pedido dos próprios usuários do serviço quanto por
interferências na vida das pessoas, para além das recomendação da equipe. Nove dos dez profissionais

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Psicólogos e suas práticas no contexto da Reforma 283

entrevistados referem-se aos atendimentos individuais posição, temos a fala de uma das entrevistadas sobre
nos moldes de uma escuta clínica tecnicamente sua ação ante uma crescente demanda de crianças com
qualificada como sendo a especificidade da atuação do problemas de comportamento. Ao invés de procurar o
psicólogo dentro da instituição. É preciso ressaltar problema em um âmbito individual, ela resolveu ir à
mais uma vez que boa parte das críticas dirigidas à escola, onde encontrou professoras despreparadas,
inserção dos psicólogos nos serviços de saúde pública crianças ociosas e um clima de total desorganização.
refere-se ao fato de suas práticas serem eminentemente Sua intervenção acabou sendo uma oficina de
individuais e alicerçadas em modelos identitários, em acompanhamento para as professoras, que findou por
teorias descontextualizadas. Dimenstein (2000), sanar o problema. Para exemplificar a segunda
alertando-nos sobre os riscos de tais procedimentos, posição traremos a fala de um entrevistado:
afirma que tal ação decorre do fato de que os
profissionais psi Em saúde pública, você não pode fazer o
trabalho que você faz no consultório,
Partem de uma perspectiva universalista- infelizmente, porque o serviço público requer
essencialista em torno da natureza humana e uma dinamicidade muito maior do que
de uma crença na eficácia intrínseca dos aquela do consultório (E2).
procedimentos psicoterápicos de qualquer
natureza. Desta forma, ficam inabilitados Entender a dinâmica e as demandas específicas
para perceber que nem sempre esse arsenal dos serviços públicos de saúde como um problema, na
teórico-técnico é adequado para as ações medida em que é preciso rever o arsenal teórico e
específicas do campo da assistência pública à metodológico hegemonicamente empregado pelo
saúde e para a clientela que freqüenta estas psicólogo, indica os embates enfrentados pela
instituições (p.111).
categoria profissional. Alguns se referem ao fato de
que o cotidiano tem pressionado no sentido de rever
Ao longo das entrevistas, foi ficando claro que o
tais posturas e de que fazer uma avaliação e autocrítica
olhar e escuta diferenciados, definidores da atuação do
é fundamental ao trabalho clínico.
psicólogo, seriam fruto da apropriação de uma dada
teoria a partir da qual fosse possível empreender a A clínica (...) não é estática, não é estanque,
“análise psicológica dos movimentos psíquicos, de ela é dinâmica, é movimento. Toda hora está
como a pessoa está internamente estruturada, de se transformando, trazendo novas
como tem se colocado diante da vida” (E8). Diante da informações, novos signos e te fazendo
importância atribuída à apropriação de um referencial pensar sobre o que você está vendo. O que é
possível pensar a partir das minhas teorias
teórico que oriente e sensibilize a escuta, tornou-se
sobre isso que eu estou vendo? (...) Nem
fundamental problematizarmos como tem se dado no prática, nem teoria se sustentam por si só.
dia-a-dia a prática clínica desses profissionais. Que Quando eu falo técnicas, estou falando de
modelos de subjetividade embasam tais perspectivas práticas, de teorias e de experiências do dia
clínicas? Qual a clínica que tem sido desenvolvida no a dia. É viver, pensar, refletir e se perguntar
contexto da reforma? a toda hora o que raios se está fazendo aqui
(E7).
No discurso dos técnicos há uma preocupação em
demarcar que o atendimento realizado no serviço é
A dinamicidade do trabalho clínico força uma
diferente daquele que boa parte realiza em seus
mudança nas concepções que sustentaram por muito
consultórios particulares. As razões apontadas para
tempo as intervenções junto aos portadores de
isso passam pela noção, oriunda dos anos de
transtornos mentais. Tais práticas já não devem ser
experiência profissional nos serviços públicos, de que
norteadas por referenciais de normatização e
o modelo de atendimento da clínica privada não se
adaptação, de silêncio e exclusão das diferenças, tão
sustenta dentro da proposta do CAPS. As justificativas
presentes ainda. Fonseca e Kirst (2004) denunciam as
para tal inadequação foram de duas ordens. De um
fragilidades do modelo clínico hegemônico ao mostrar
lado, havia a ideia de que o modelo clínico não
que ele parte de bases e princípios epistemológicos
respondia às demandas que eram apresentadas, sendo
que
necessárias intervenções diferentes das da clínica
tradicional; de outro, a ideia de que os usuários não se Privilegiam a dicotomização entre sujeito e
engajam no tratamento, de que são resistentes e que a vida, consciente e inconsciente, interioridade
dinâmica do serviço não permite a realização de e exterioridade, clínica e política. Fundado na
atendimentos eficazes. Como exemplo da primeira crença de uma postura neutra busca produzir

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284 Sales e Dimenstein

a correção daquilo que entende como estar CONSIDERAÇÕES FINAIS


desviado e fora da norma. Alimentam-se pela
representação de modos de ser considerados Este trabalho buscou, entre outros aspectos,
ideais e que, do alto da sua certeza, conhecer e analisar as práticas dos psicólogos que
constituem-se e impõem-se como modelos de
atuam em CAPSs. Como parte integrante das equipes
identificação a serem reproduzidos em nome
da ordem e do bem estar (p.30).
de saúde mental, atualmente em expansão por todo o
país, consideramos que o psicólogo ocupa um espaço
Já Paulon (2004) afirma que as teorias importante nos rumos do processo de reforma
norteadoras das práticas psicológicas já não psiquiátrica no Brasil. Vivemos diversas barreiras à
implantação de novos serviços, de redução do estigma
conseguem acompanhar a velocidade e a
da loucura na sociedade, de ruptura com a reprodução
multiplicidade dos acontecimentos na vida dos
de práticas asilares e de cronificação em curso nos
indivíduos, e que o nível de complexidade das
serviços substitutivos. Para o enfrentamento desses
questões é tamanho, que prender-se a referencias
problemas precisamos conhecer as condições de
construídos há mais de um século e em condições produção de nossos saberes e competências
materiais e históricas completamente diversas pode profissionais e utilizar criticamente esses
levar a atuações pobres e limitantes: conhecimentos. Cumpre não esquecer que eles forjam
verdades, subjetividades, modos de vida, e nesse
Não é definitivamente culpabilizando o
sentido, podem estar a serviço da manutenção de uma
indivíduos pelo próprio adoecimento,
naturalizando o que é da ordem da história, lógica manicomial ou da criação e reinvenção da vida.
enfim, disseminando práticas que só Buscamos contribuir com esse debate trazendo a
aprofundam a ideologia de um “sujeito realidade de um coletivo de trabalhadores de CAPSs
psicológico” que algo no plano da de Natal.
flexibilização dos diferentes modos de existir
poderá se ampliar (Paulon, 2004, p.265).
REFERÊNCIAS
Diante disso, a autora nos convida a pensar o
lugar da clínica como um trabalho de busca constante Alverga, A. R., & Dimenstein, M. (2006). A reforma psiquiátrica e os
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Endereço para correspondência : Magda Dimenstein. UFRN, CCHLA, Deptº de Psicologia, Campus Universitário, Lagoa Nova,
CEP 59.078-970, Natal-RN, Brasil. E-mail: magda@ufrnet.br

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2.
Do manicômio à desinstitucionalização

Para refletir sobre a atuação dos agentes comunitários de saúde junto aos
portadores de transtorno mental a partir do paradigma preconizado pela Reforma
Psiquiátrica necessário se faz abordar o processo de construção do paradigma
psiquiátrico convencional, buscando conhecer e resgatar um pouco da trajetória do
cuidado com a loucura. Assim, neste capítulo fazemos um breve resgate histórico
da loucura; do movimento da Reforma Psiquiátrica; da trajetória da Reforma
Psiquiátrica no Brasil e da reestruturação da rede psiquiátrica tendo em vista as
exigências do processo de desinstitucionalização.
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2.1.
Breve resgate histórico da loucura

Na atual conjuntura brasileira, o campo de saúde mental tem sido


fortemente marcado por debates em torno da Reforma Psiquiátrica e do novo
modelo de tratamento voltado para a promoção e inclusão social do portador de
transtorno mental e que tem como princípio a desinstitucionalização do paciente
psiquiátrico. Com o processo de desinstitucionalização, torna-se necessário
investimento de novos recursos de atenção à saúde mental com o objetivo de
diminuir as demandas de internação psiquiátrica e, assim, possibilitar um
tratamento ambulatorial, setorizado, com vistas a uma não reincidência do quadro
de internação e de isolamento. Este novo modelo, contudo, é fruto de um processo
histórico de desconstrução dos antigos hospitais gerais que tinham no isolamento
e na exclusão a base de suas intervenções e cujos fundamentos são encontrados no
Séc. XVII, em vários países europeus.
Até o século XVIII, na Europa, os hospitais não possuíam finalidade
médicas. Eram grandes instituições filantrópicas destinadas
a abrigar os indivíduos considerados "indesejáveis" à sociedade, como os
18

leprosos, sifilíticos, aleijados, mendigos e loucos, sendo lugares de exclusão social


da pobreza e da miséria produzidas pelos regimes absolutistas da época. No
entanto, as pessoas eram internadas nessas instituições não para serem curadas,
mas, para serem separadas da sociedade à qual poderiam ameaçar, contagiar ou,
ainda, para morrer em um ambiente protegido. A essa estrutura institucional,
Michel Foucault (2005) denominou de Grande Internação ou Grande
Enclausuramento por sua natureza de controle e segregação. Vale sinalizar que o
poder exercido no interior dessas Instituições pertencia à Igreja e ao Estado, mas
em função das revoluções francesa e industrial, do surgimento de novos atores
sociais – a burguesia, a classe média, o proletariado - e do surgimento de uma
nova racionalidade na produção do conhecimento, essas instituições vão
gradativamente se transformando em instituições médicas.
Em fins do século XVIII a loucura passa a ser percebida inicialmente
como uma alienação e mais tarde como doença que precisava ser observada,
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estudada, classificada e tratada. A Psiquiatria surge como uma área de saber


próprio e o manicômio se torna o local privilegiado de tratamento da doença
mental.

A princípio, a Psiquiatria não surge como uma especialização do saber ou


área da ciência médica, mas como um ramo especializado da higiene pública.
Foucault argumenta que:

Antes de ser uma especialidade da medicina, a psiquiatria se institucionalizou


como domínio particular da proteção social, contra todos os perigos que o fato da
doença, ou de tudo o que se pode assimilar direta ou indiretamente à doença pode
acarretar à sociedade. Foi como precaução social, foi como higiene do corpo
social inteiro que a psiquiatria se institucionalizou. (2005, p. 175)

O médico Phillipe Pinel - um dos primeiros alienistas (como eram


chamados os médicos que foram os precursores da psiquiatria), ao ser nomeado
diretor do Hospital de Bicetrê, uma instituição assistencial e filantrópica na França
no final do século XVIII, inspirado nos ideais da Revolução Francesa começou a
separar e classificar os diversos tipos de "desvio" ou "alienação mental" que
encontrava, com o objetivo de estudá-los e tratá-los. A loucura para Pinel era
merecedora de uma atenção especial, pois acreditava-se que as principais causas
da alienação/loucura eram de ordem moral e, no entanto, justificava a necessidade
19

de isolar o louco no asilo para que recebesse um tratamento digno de acordo com
os princípios humanitários e libertários do período revolucionário em questão.
(Amarante, 1996)
Desse modo, percebe-se a passagem da visão da loucura para uma esfera
crítica e destaca-se Foucault (2005) que historiciza criticamente as condições que
possibilitam a construção do saber sobre a loucura.
Conforme Basaglia (2005), o doente mental era uma figura que deveria ser
mantida à distância, para que não perturbasse o cotidiano e a ordem da sociedade.
A necessidade de isolar o doente mental também resulta no fato da sociedade
buscar a eliminação do que limita sua expansão. Além disso, a doença mental é
vista como um problema social que necessita ser resolvido “fora” da sociedade,
uma vez que o doente mental significa uma ameaça à ordem social.
Nesse sentido,
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Foram construídos locais de tratamento, onde se pode isolar o doente mental,


tendo sido delegada ao psiquiatra a tarefa de tutelá-lo em seu isolamento, de
modo a proteger e defender a sociedade do medo que continua a lhe provocar... O
manicômio nasceu para a defesa dos sãos. Os muros, quando a ausência de
terapias impossibilitava a cura, serviam para excluir e isolar a loucura, a fim de
que não invadisse o nosso espaço. Mas, até hoje eles conservam essa função:
dividir, separar, defender os sãos mediante a exclusão de quem já não é são.
(Basaglia, 2005, p. 49)

Deste modo surgiu o hospital psiquiátrico ou manicômio, como instituição


de estudo e tratamento da alienação mental. O chamado "tratamento moral"
praticado pelos alienistas incluía o afastamento dos doentes do contato exterior
com todas as influências da vida social e de qualquer contato que pudesse
modificar o que era considerado o "desenvolvimento natural" da doença. Segundo
Basaglia (2005), o manicômio surgiu nas periferias das cidades, em zonas isoladas
e cercadas por muros. A figura do doente mental deveria ser mantida à distância,
para que não perturbasse a ordem e o ritmo da sociedade. Esse fato retrata que a
sociedade tende a eliminar tudo o que perturba sua expansão, sem refletir sob sua
responsabilidade nesses processos.
De acordo com Basaglia,
20

A institucionalização é o complexo de danos derivados de uma longa


permanência coagida no hospital psiquiátrico, quando o instituto se baseia sobre
princípios de autoritarismo e coerção. Tais princípios, donde surgem as regras sob
as quais o doente deve submeter-se incondicionalmente, são expressão e
determinam nele uma progressiva perda de interesse que através de um processo
de regressão e restrição do EU, o induz a um vazio emocional. (2005, p. 259)

Os estudos de Goffman (1990)3 sobre as instituições totais revelaram que


numa instituição total, mesmo quando o sujeito tinha a capacidade física e mental
para realizar determinadas atividades, não o fazia porque não tinha autoridade
para isso. A submissão dos corpos e mentes era total.
O espaço fechado do hospital psiquiátrico resulta na perda da liberdade e
individualidade do doente mental, além da fragilização dos laços familiares e
sociais. Na visão de Basaglia (2005), quando o doente é internado em uma
instituição psiquiátrica, ele encontra um mundo com novas regras e estruturas que
resultam em uma maior alienação, uma vez que ele encontra-se segregado,
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excluído, isolado da vida em sociedade. O referido autor discorre que a


institucionalização corresponde a um homem imóvel, sem objetivo, sem futuro,
destruído pelo poder da instituição que têm o objetivo de limitar e coagir o doente
mental.
A institucionalização trouxe inúmeras conseqüências para o portador de
transtorno mental como, por exemplo, a fragmentação e/ou extinção do convívio
familiar; perda da identidade, liberdade; negação da subjetividade e de todos os
direitos; incapacidade de exercer a cidadania.
O poder institucionalizante, por conseguinte,

É o conjunto de forças, mecanismos e aparatos institucionais que ocorrem quando


o doente fechado no espaço da sua individualidade perdida, oprimido pelos
limites impostos pela doença, é forçado, pelo poder institucionalizante da
reclusão, a objetivar-se nas regras próprias que o determinam, em um processo de
redução e de restrição de si que, originariamente sobreposto à doença, não é
sempre reversível. (Basaglia 1985, p. 250)

O autor explicita claramente o significado da institucionalização à qual o


doente mental é submetido a opressão e vítima do abuso de poder dos técnicos.

3
Refiro-me ao livro Manicômios, prisões e conventos, Ed. Perspectiva, 2206.
21

Também ressalta que a internação está permeada por situações de exclusão,


distanciamento da realidade social, perda da liberdade e direitos.

2.2.
O movimento da Reforma Psiquiátrica

De acordo com Amarante (2005), existem dois grandes e importantes


períodos que demarcam o campo teórico da psiquiatria. O primeiro refere-se ao
processo de crítica à estrutura asilar, responsável pelo alto índice de cronificação
na qual acreditava-se que o manicômio era uma “instituição de cura” e, nesse
sentido, fez-se necessário uma reforma da organização psiquiátrica. Esta reforma
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envolveu os movimentos de Comunidades Terapêuticas (Inglaterra, EUA) e de


Psicoterapia Institucional (França). O segundo período é marcado pela expansão
da psiquiatria no espaço público, objetivando prevenir e promover a “saúde
mental”. Este momento é representado pelas experiências da Psiquiatria de Setor
(França) e Psiquiatria Comunitária ou Preventiva (EUA).
O termo comunidade terapêutica caracteriza um processo de reformas
institucionais, restritas ao hospital psiquiátrico, e marcadas por medidas
administrativas, democráticas, participativas e coletivas com objetivo de
transformar a dinâmica asilar institucional (Amarante, 1995, p. 28).
Amarante (1995) discorre:

Datada sócio-historicamente do período do pós-guerra, a experiência da


comunidade terapêutica chama atenção da sociedade para a deprimente condição
dos institucionalizados em hospitais psiquiátricos, mal comparada a lembrança
dos campos de concentração com que a Europa democrática daquele período não
tolerava mais conviver. Não mais era possível assistir-se passivamente ao
deteriorante espetáculo asilar: não era mais possível aceitar uma situação, em que
um conjunto de homens, passíveis de atividades, pudessem estar espantosamente
estragados nos hospícios. (Amarante, 1995, p. 28)

Nesse contexto, os asilos psiquiátricos encontravam-se em um quadro de


extrema precariedade e não cumpriam a função de recuperação dos doentes
22

mentais. Perante essa situação, tem início o surgimento de propostas de


reformulações do espaço asilar. Uma dessas propostas é a “terapêutica ativa”
fundada por Hermann Simon na década de 20. Para ele o trabalho do enfermo
mental revelou-se proveitoso e o ambiente do estabelecimento foi todo
transformado. Segundo Amarante (1995), essa foi a primeira referência para o
surgimento da comunidade terapêutica e também da psicoterapia institucional
francesa.
De acordo com Birman

A praxiterapia dos anos vinte, estabelecida por Simon, retomou o mito de que o
trabalho será a forma básica para a transformação dos doentes mentais, pois
mediante o trabalho se estabeleceria um sujeito marcado pela sociabilidade da
produção. (1992, p. 74)

Segundo Amarante (1995), vale destacar que Maxwell Jones foi o


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principal autor e operador prático da comunidade terapêutica, organizando os


internos do Hospital de Belmont (Inglaterra) em grupos de discussão, grupos
operativos e grupos de atividades, objetivando o envolvimento do sujeito com sua
própria terapia e com as demais. As reuniões diárias e assembléias tinham o
intuito de dar conta das atividades, participar da administração do hospital, gerir a
terapêutica, dinamizar a instituição e a vida das pessoas.
Segundo Jones appud Amarante:

A idéia de comunidade terapêutica pauta-se na tentativa de tratar grupos de


pacientes como se fosse um único organismo psicológico. Mais que isso, através
da concepção de comunidade, procurava-se desarticular a estrutura hospitalar
considerada segregadora e cronificadora: o hospital deve ser constituído de
pessoas, doentes e funcionários, que executem de modo igualitário as tarefas
pertinentes ao funcionamento da instituição. Uma comunidade é vista como
terapêutica porque é entendida como contendo princípios que levam a uma
atitude comum, não se limitando somente ao poder hierárquico da instituição.
(1972, p. 55)

Basaglia que administrou a Comunidade Terapêutica do Hospital de


Gorizia, relata que:

A comunidade terapêutica é um local que todos os componentes, doentes,


enfermeiros e médicos estão unidos em um total comprometimento, onde as
contradições da realidade representam o húmus de onde germina a ação
23

terapêutica recíproca. É o jogo das contradições - mesmo no nível dos médicos


entre eles, médicos e enfermeiros, enfermeiros e doentes, doentes e médicos –
que continua a romper uma situação que, não fosse isso, poderia facilmente
conduzir a uma cristalização dos papéis. (1985, p.118)

A comunidade terapêutica foi um momento importante para o início da


superação do modelo hospitalocêntrico, contribuindo para a humanização das
instituições, socialização das ações e convivência e dinâmicas de grupo entre
pacientes, profissionais e familiares.
Além da comunidade terapêutica, é importante citar a psicoterapia
institucional institucionalizada em 1952 sendo utilizada por Daumezon e
Koechlin, em hospitais franceses. Segundo Amarante (1995), o objetivo da
psicoterapia institucional refere-se ao coletivo dos pacientes e técnicos, de todas
as categorias, em oposição ao modelo tradicional da hierarquia e da verticalidade,
uma vez que a mesma produz um campo de alienação social em que é reprimido
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todo o desejo atrás de uma “couraça” de defesa: estatuto, uniforme, poder.


Para Birman (1992), na comunidade terapêutica e na psicoterapia
institucional, “a pedagogia da sociabilidade realiza-se num registro discursivo e
num contexto grupal em que se pretende a regulação do excesso passional da
loucura pelo controle do discurso e dos atos dos internados” (p. 85).
É importante destacar outros movimentos de contestação da psiquiatria
asilar, como por exemplo, a psiquiatria de setor e a psiquiatria preventiva. A
psiquiatria de setor visava dividir o hospital psiquiátrico em várias áreas da
comunidade de tal forma que cada divisão hospitalar correspondesse a uma área
geográfica e social.
De acordo com Amarante (1995), a psiquiatria de setor produz uma
relação direta entre a origem geográfica e cultural dos pacientes com o pavilhão
em que serão tratados, possibilitando uma adequação de cultura e hábitos entre os
de uma mesma região, e dar continuidade ao tratamento na comunidade com a
mesma equipe que os tratavam no hospital. Além disso, a psiquiatria de setor
restringe a internação a uma etapa, destinando o principal momento para a
comunidade e, com isso, o paciente recebe o tratamento em sua própria
comunidade o que se torna um fator terapêutico e, ao mesmo tempo, inclusivo.

Amarante (1995) ressalta:


24

Com a oficialização desta política, os territórios passam a ser divididos em


setores geográficos, contendo uma parcela da população não superior a setenta
mil habitantes, contando cada um deles, com uma equipe constituída por
psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e um arsenal de
instituições que têm a função de assegurar o tratamento, a prevenção e a pós-cura
das doenças mentais. Desta forma, são implantadas inúmeras instituições que têm
a responsabilidade de tratar o paciente psiquiátrico em seu próprio meio social e
cultural, antes ou depois de uma internação psiquiátrica. (p. 35)

Em que pese o avanço apresentado pela psiquiatria de setor, na opinião de


Rotelli (1994),

A experiência francesa de setor não apenas não pode ir além do hospital


psiquiátrico porque ela, de alguma forma, conciliava o hospital psiquiátrico com
os serviços externos e não fazia nenhum tipo de transformação cultural em
relação à psiquiatria. As práticas psicanalíticas tornavam-se cada vez mais
dirigidas ao tratamento dos “normais” e cada vez mais distantes do tratamento
das situações da loucura. (p. 150)
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Percebe-se que se iniciava uma discussão em torno de novas práticas


voltadas para uma psiquiatria que visava instituir uma superação ao modelo
manicomial, mas, todas as práticas discutidas até aqui ainda possuíam resquícios
conservadores quanto à institucionalização dos pacientes.
A proposta da psiquiatria preventiva nasce nos EUA, nos anos de 1960,
propondo intervir nas causas ou no surgimento das doenças mentais, almejando
não apenas a prevenção das mesmas, mas, a promoção da saúde mental. Segundo
Amarante (1995, p. 36) os EUA estavam vivenciando problemas extremamente
graves, tais como a Guerra do Vietnã, o brusco crescimento do uso de drogas
pelos jovens, o aparecimento de gangues de jovens ‘desviantes’, o movimento
beatnik, enfim, toda uma série de indícios de profundas conturbações no nível da
adaptação da sociedade e da cultura, da política e da economia.
Assim, o ponto central dessa perspectiva é o conceito de “crise”, entendido
como momento crucial no qual um sujeito vivencia um problema que poderá ou
não se desdobrar em transtornos mais graves.
No entendimento de Birman & Costa, os três níveis de psiquiatria
preventiva são assim definidos:

1º- Prevenção Primária: intervenção nas condições possíveis de formação da


doença mental, condições etiológicas, que podem ser de origem individual e/ou
25

do meio. 2º - Prevenção Secundária: intervenção que busca a realização de


diagnóstico e tratamento precoces da doença mental. 3º - Prevenção terciária: que
se define pela busca da readaptação do paciente à vida social, após a sua
melhoria. (1994, 54)

O projeto da psiquiatria preventiva determinava que as intervenções


precoces, primária e secundária, evitassem o surgimento ou o desenvolvimento de
casos de doenças, dessa forma, decretando a ineficiência do hospício psiquiátrico.
De acordo com Koda (2002), os movimentos desenvolvidos na Inglaterra,
França e EUA trouxeram avanços significativos no sentido de questionar o modo
como estava estruturada a assistência à doença mental e a desumanidade do
tratamento nos hospitais psiquiátricos. Porém, isso não implicou em um
questionamento mais profundo sobre o próprio papel da psiquiatria como
instrumento de controle social. O percurso de críticas ao saber psiquiátrico e de
suas instituições foi desenvolvido posteriormente pelo Movimento de
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Desinstitucionalização na Itália.
Nesse sentido, com o objetivo de modificar o modelo de tratamento
destinado aos doentes mentais, surge na Europa o Movimento de Reforma
Psiquiátrica, liderado pelo psiquiatra Franco Basaglia. A experiência do
Movimento da Reforma Psiquiátrica, a princípio, segundo Barros (1994) iniciou-
se em 1961 com a transformação do hospital psiquiátrico de Gorizia em
comunidade terapêutica. A partir de Gorizia, inúmeras experiências tiveram início
sendo a mais famosa a que foi realizada em Trieste. A referida autora revela que
na Itália em 1965, havia mais de 100 mil pessoas internadas. No início da década
de sessenta um grupo de psiquiatras iniciou atividades de humanização no
hospital de Gorizia. O modelo visava abandonar a violência como recurso,
eliminando práticas repressivas, sistemas de punições, eletro-choques e
impregnação provocada pelo excesso de psicofármacos. Ambas as experiências
(Gorizia e Triste) iniciaram-se sob o olhar de Franco Basaglia.
O Movimento de Reforma Psiquiátrica visava à extinção dos manicômios,
das práticas de exclusão social e violência. Ainda nesse contexto, foi aprovada a
Lei 180, em 13 de maio de 1978, que determinou o fim dos manicômios em todo
o território italiano, ocasionando o progressivo esvaziamento dos manicômios,
definindo a necessidade da criação de estruturas territoriais que respondessem às
26

demandas, abolindo a ligação entre doença mental e periculosidade social


(Basaglia, 2005). Além disso, consolidou o processo de criação de novas práticas
de atenção psicossocial e de saúde mental, essa lei ficou mundialmente conhecida
como a Lei Basaglia.
A Reforma Psiquiátrica pode ser denominada como o percurso iniciado no
final da década de 1970 e pode ser compreendido como:

Processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e


estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação crítica
do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. (Amarante, 1998, p. 87).

Rotelli discorre sobre a Reforma Psiquiátrica Italiana, explicando que ela


fez parte de um processo de questionamento sobre o lugar das instituições na
sociedade. A vida na comunidade dos ex-internos de manicômios passou a
privilegiar a qualidade de vida, produção de saúde e cidadania plena. (Rotelli
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1991, p. 120).
Amarante (1995) revela que a Reforma Psiquiátrica Italiana refere-se a um
conjunto de iniciativas operado nos campos legislativo, jurídico, administrativo e
cultural visando à transformação da relação entre sociedade e loucura. Além disso,
representa a desconstrução de saberes e formas de lidar com o doente mental e
demonstra a possibilidade de responsabilizar-se com o sofrimento de sujeitos,
através de um paradigma centrado em um cuidar humano, solidário, afetivo e na
(re) construção da cidadania.
No contexto contemporâneo, a Reforma Psiquiátrica intervém no campo
das relações da sociedade com a loucura, transformando as relações desta para
com o transtorno mental. Segundo Amarante (2003) isso ocorre através de
práticas contra a exclusão e, por outro lado, de estratégias de inclusão social dos
sujeitos. Trata-se de um processo com princípios éticos, de inclusão, solidariedade
e de cidadania.
Amarante (1995) explicita que:

Entende-se por Reforma Psiquiátrica um processo dinâmico, plural, articulado


entre si por várias dimensões que são simultâneas e que se intercomunicam, se
complementam. Desta forma, com essa dinâmica e pluralidade é, antes de mais
nada, um processo. Isto é, algo que tem movimento, que não é estático e nem tem
um fim ótimo. É um processo em construção permanente, porque mudam os
27

sujeitos, mudam os conceitos, mudam as práticas, muda a história! (p. 59)


(Grifo meu)

O processo de Reforma Psiquiátrica, conforme Amarante (2003) envolve


diversos atores sociais, que são sujeitos das experiências de transformação,
incluindo o técnico, o familiar e os demais sujeitos sociais que se envolvem no
processo por compreenderem a proposta ética, social e política do processo em
questão.
Para resumir a reflexão desenvolvida até o presente momento, cito
novamente Basaglia (2005), que afirma que a Reforma Psiquiátrica propõe
transformar o modelo assistencial em saúde mental, construir um novo estatuto
social para o louco - o de cidadão como todos os outros e eliminar a prática do
internamento como forma de exclusão social dos indivíduos portadores de
transtornos mentais. Portanto, propõe-se a substituição do modelo manicomial
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pela criação de uma rede de serviços territoriais de atenção psicossocial e de base


comunitária.

2.3.
A trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil

No Brasil, a história da assistência psiquiátrica também apresenta uma


trajetória bastante semelhante à que acabamos de descrever nas páginas anteriores.
O Hospício Pedro II, inaugurado em 1852, tem no isolamento dos considerados
“loucos” a base do tratamento indo de acordo com o pensamento do médico
francês Philippe Pinel, que, como visto, colocava o isolamento, entendido como
institucionalização /hospitalização integral, um imperativo fundamental para que
o alienado pudesse ser tratado adequadamente. Desta forma, o funcionamento do
referido Hospício tem em sua base a segregação, o confinamento e a tutela, com
vistas a conter as pessoas que ameaçam a ordem social. O tratamento dispensado
aos portadores de transtorno mental caracterizava-se pela exclusão da vida em
sociedade, via hospitalização, e cronificação da doença.
28

Após um salto histórico, chegamos no século 20 mais especificamente nos


anos de 1940, quando, de acordo com Machado (2004), houve o surgimento do
Serviço Nacional de Doença Mental, mas com escassas novidades no aspecto
assistencial. A década seguinte foi marcada pela superlotação dos asilos e
surgimento de inúmeros hospitais psiquiátricos que se espalhavam pelo país. A
referida autora relata que nos anos 60, a maioria dos hospitais públicos
encontrava-se em precárias condições de manutenção administrativa e,
principalmente, sem perspectivas assistenciais humanas. Nesse sentido, iniciou-se
a contratação de leitos psiquiátricos privados pelo Estado. Segundo suas palavras,

Nos anos 70, proliferaram os ambulatórios com o intuito de internar pacientes nos
leitos privados. É sabido o que ocorreu a partir daí: tempo exagerado de
permanência nos hospitais, atendimento desumano, uso abusivo e quase exclusivo
de psicofármacos como alternativa de tratamento, investimento na hotelaria dos
hospitais. (Machado, 2004, p. 4)
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Esta realidade em muito contribuirá para o que Amarante (1995) considera


como o estopim do Movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil ou seja, o
episódio conhecido como a “Crise da Divisão Nacional de Saúde Mental
(DINSAM)”, órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação das
políticas de saúde. Os profissionais das quatro unidades da DINSAM, (Centro
Psiquiátrico Dom Pedro II (CPPII), Hospital Pinel, Colônia Juliano Moreira e
Manicômio Judiciário Heitor Carrilho) deflagraram greve em abril de 1978,
seguida da demissão de 260 estagiários e profissionais. Segundo o referido autor:

A crise da DINSAM foi efetivada a partir da denúncia realizada por três médicos
bolsistas do CPPII ao registrarem no livro de ocorrências do plantão do pronto-
socorro as irregularidades da unidade hospitalar, trazendo ao público a trágica
situação existente naquele hospital. Este ato mobilizou profissionais de outras
unidades e recebeu o apoio imediato do Movimento de Renovação Médica.
(Amarante, 1995, p.52)

Esse movimento coincide com o período do processo de redemocratização


brasileira junto com as pressões dos movimentos sociais interligadas à luta pelos
direitos humanos. A partir do processo de redemocratização do país nos anos 70,
verificam-se novas exigências relacionadas ao atendimento das necessidades da
população, aumento da equidade e justiça social na implementação de políticas
29

públicas e melhoria na qualidade do serviço público, principalmente na área da


saúde. (Teixeira, 2006)
No final dos anos 70, no bojo do Movimento da Reforma Sanitária,
constatam-se críticas ao modelo "hospitalocêntrico" em diversas regiões do Brasil,
feitas pelo Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental que nasce da crise da
DINSAM e, posteriormente, é denominado Movimento Antimanicomial. Tais
críticas se pautavam no combate à segregação dos doentes mentais, com ênfase na
mudança das condições de tratamento asilar dispensado aos pacientes.
O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), formado por
trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares,
sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo
histórico de internações psiquiátricas, almejava denunciar a violência ocorrida nos
manicômios, a mercantilização da loucura e a hegemonia de uma rede privada de
assistência ao portador de transtorno mental. Para Amarante (1996), o MTSM
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caracterizava-se por ser: o primeiro movimento em saúde com participação


popular não sendo identificado como um movimento ou entidade da saúde, mas,
pela luta popular no campo da saúde mental. De acordo com o autor,

O MTSM tinha o objetivo de constituir-se em um espaço de luta não


institucional, em um lócus de debate e encaminhamento de propostas de
transformação da assistência psiquiátrica, que aglutinava informações, organizava
encontros, reunia trabalhadores em saúde, associações de classe, bem como
entidades e setores mais amplos da sociedade. (Amarante, 1996, p. 52)

O autor relata ainda que as reivindicações do MTSM giravam em torno da


regularização da situação trabalhista, aumento salarial, redução do número
excessivo de consultas por turno de trabalho, críticas à cronificação do manicômio
e ao uso do eletro-choque, por melhores condições de assistência à população e
pela humanização dos serviços de saúde mental. O MTSM refletia sob um
conjunto heterogêneo de denúncias e reivindicações que oscilava entre
transformação psiquiátrica e organização corporativa.
Nesse contexto, os ideais da Reforma Psiquiátrica no Brasil ganham
visibilidade com o MTSM e, nos anos 80, a crítica à realidade manicomial entra
na discussão da esfera pública e inicia a formulação do Projeto de Lei de autoria
do deputado Paulo Delgado (1989) que propunha a regulamentação dos direitos
30

das pessoas portadoras de transtorno mental e a extinção progressiva dos


manicômios. De acordo com Gondim (2001), o Projeto Paulo Delgado visava em
linhas gerais: a proibição da expansão dos leitos manicomiais públicos; um novo
tipo de cuidado perante o portador de transtorno mental; uma rede de serviços a
ser construída pelas administrações regionais de saúde e o fim das internações
compulsórias.
No contexto da efetivação da Lei 10.216, iniciam-se as Conferências
Nacionais de Saúde Mental. A I Conferência Nacional de Saúde Mental aconteceu
em junho de 1987 e teve como pauta a discussão de uma nova política de saúde
mental, assegurando a cidadania plena ao indivíduo considerado doente mental.
Em 1992 foi realizada a II Conferência Nacional de Saúde Mental, determinando
uma rede de atenção integral à saúde mental, respeitando o portador de transtorno
mental em sua individualidade e direito. Já a III Conferência Nacional de Saúde
Mental (2001) estabeleceu princípios e estratégias para uma significativa mudança
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na área de atenção em saúde mental no Brasil, consolidando alguns objetivos da


Reforma Psiquiátrica.
Assim, a partir do Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil iniciado
nos anos 70 tem início o delineamento de uma nova assistência em saúde mental,
envolvendo princípios como a humanização do atendimento, a integralidade da
atenção e a participação social do usuário, da família e dos técnicos. Estes direitos
serão amparados pela Constituição Federal de 1988, na qual se pode vislumbrar a
defesa do usuário de saúde mental, que passa a ser visto como um cidadão
portador de direitos e digno de receber um tratamento humano visando sua
reinserção na sociedade. Dessa forma, é enfocada a humanização no atendimento
hospitalar, a partir da década de 1980, com vistas à constituição de um projeto que
garanta a operacionalização de um serviço de saúde mental, considerando a
dignidade do usuário e respeitando-o como cidadão.
É importante apresentar as diversas dimensões que a Reforma Psiquiátrica
envolve no interior do seu processo. Amarante (1996) aponta quatro dimensões da
Reforma Psiquiátrica, quais sejam:
• Dimensão teórico-conceitual: no processo da Reforma
Psiquiátrica questionam-se os conceitos de doença, de normalidade, de cura, de
periculosidade, a questão do hospital psiquiátrico, as relações entre os técnicos de
31

saúde, a sociedade e os indivíduos considerados loucos. Nesse sentido, a Reforma


Psiquiátrica propõe o que denomina de desconstrução das teorias e conceitos da
psiquiatria tradicional e o processo começa a operar no modelo de atenção
psicossocial. O paciente que no modelo tradicional era visto como louco e
incapaz, passa a ser compreendido como um sujeito portador de direitos e com
deveres e responsabilidades.
• Dimensão técnico-assistencial: essa dimensão possui três
aspectos básicos, sendo eles: o primeiro destina-se ao planejamento das novas
estruturas assistenciais que são os novos serviços de atenção psicossocial; o
segundo refere-se ao tipo de atendimento às diferentes demandas de tratamento e
o último associa-se com o modelo de atendimento, tipos de terapia
medicamentosa, psicoterápica e de sociabilidade. Vale sinalizar que ao mudar a
lógica de tratamento, mudam-se as propostas de assistência.
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È importante relatar que um dos objetivos específicos da Reforma


Psiquiátrica é a substituição do modelo de atendimento centrado na hospitalização
por uma atenção integrada ao indivíduo em seu território a partir de uma rede de
atenção à saúde mental.
A Reforma Psiquiátrica procura consolidar a formação de uma rede
territorial de atenção em saúde mental diversificada, atendendo os diversos tipos
de problemas psiquiátricos. Essa rede propicia diferentes projetos assistenciais
que não limitam ao tratamento da doença mental em si, mas tratam o sujeito em
sua integralidade, visando à inserção social.
• Dimensão jurídico-política: no espaço manicomial o “louco”
não tem voz, cidadania e direitos. É considerado um sujeito incapaz,
irresponsável, inimputável, esse é o legado da psiquiatria tradicional. Porém, o
processo de Reforma Psiquiátrica procura romper esses estigmas e rótulos, um
exemplo é a Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, denominada Lei da Reforma
Psiquiátrica Brasileira.
• Dimensão sócio-cultural: propõe o deslocamento da loucura do
espaço médico e psicológico para os diversos espaços do meio social, criando
mecanismos de inserção social como grupos teatrais, de lazer, movimentos
sociais, entre outros.
32

Nesse sentido, os profissionais que atuam na saúde e, principalmente direta


ou indiretamente com as demandas da saúde mental devem estar preparados para
lidar com um modelo de tratamento baseado no território e na integralidade das
ações e dos serviços. Além disso, tais profissionais necessitam adquirir uma
postura desprovida de preconceitos e estigmas, voltada para a promoção social do
portador de transtorno mental.
Contudo, cabe ressaltar que, em que pese toda a articulação do MTSM e as
determinações, princípios e estratégias propostas pelas Conferências Nacionais de
Saúde Mental o Projeto do Deputado Paulo Delgado será sancionado no país doze
anos após sua proposição. No ano de 2001 a Lei Federal4 10.216 determinando a
substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede de atenção à saúde
mental.
Como se poderá observar, assim como aconteceu na Itália, a Reforma
Psiquiátrica no Brasil irá priorizar a desinstitucionalização dos pacientes
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psiquiátricos e tem o objetivo de consolidar o cuidado em saúde mental, ou seja,


focar na rede de cuidados da atenção básica, buscando desconstruir a lógica
excludente do hospital psiquiátrico e possibilitar ao doente mental estratégias para
a inclusão social.
Nesse novo modelo, a sociedade é chamada a assumir sua
responsabilidade com o portador de transtorno mental, e constata-se que o regime
aberto não oferece risco para ninguém, que o doente mental não é um
impossibilitado e que a inclusão social é mais eficaz para a sua reabilitação
psicossocial. Nesse sentido, a política de saúde mental necessita de ser
implementada a partir de uma agenda empenhada com a promoção, prevenção e
tratamento, na perspectiva da integração social e na produção da autonomia das
pessoas.
A Reforma Psiquiátrica Brasileira irá possibilitar a construção de uma rede
de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação
hospitalar; a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos

4
“Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o
oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas com transtorno mental, mas não institui mecanismos claros para a progressiva
extinção dos manicômios. A Lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o progresso da
Reforma Psiquiátrica no Brasil.” (Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde
Mental, 2005, p. 3)
33

psiquiátricos existentes e a consolidação de uma rede de atenção psicossocial,


como será abordado a seguir.

2.4.
Reestruturação da rede psiquiátrica e o processo de
desinstitucionalização

A partir de 1992 iniciam-se as mudanças institucionais no quadro da saúde


mental do Brasil. Tais alterações estavam interligadas ao Projeto de Lei Paulo
Delgado e atrelada aos movimentos sociais.
A década de 90 foi marcada pelo compromisso firmado pelo Brasil na
Declaração de Caracas e também pela realização da II Conferência Nacional de
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Saúde Mental, tais acontecimentos resultam nas primeiras normas federais


regulamentando a implantação de serviços de atenção diárias, fundadas nas
experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais Dia e também as primeiras
normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos.
O processo de redução dos leitos em instituições psiquiátricas e de
desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação passa a fazer
parte da política pública do Brasil a partir dos anos 90 e ganha expressiva
visibilidade em 2002 com normatizações do ministério da Saúde.
O processo de desinstitucionalização pressupõe transformações culturais,
políticas e sociais na sociedade e depende das três esferas de governo: federal,
estadual e municipal, pois, para implementar as alterações previstas pela Reforma
Psiquiátrica é fundamental que a União, estado e municípios estejam interessados
e articulados com os ideais da desinstitucionalização.
Segundo Rotelli (1991) o termo desinstitucionalização significa deslocar o
centro da atenção da instituição para a comunidade, distrito, território. Este termo
tem sua origem no movimento italiano de Reforma Psiquiátrica. A
desinstitucionalização tem um significado muito mais amplo do que simplesmente
deslocar o centro da atenção do hospício, do manicômio, para a comunidade. Para
o autor acima referido é o conjunto que é necessário desmontar
34

(desinstitucionalizar) para o contato efetivo com o paciente na sua “existência”


doente. Rotelli (1991) vê a desinstitucionalização como:

Um trabalho prático de transformação que contempla: a ruptura do paradigma


clínico e a reconstrução da possibilidade – probabilidade; o deslocamento da
ênfase no processo de “cura” para a “invenção de saúde”; a construção de uma
nova política de saúde mental; a centralização do trabalho terapêutico no objetivo
de enriquecer a existência global; a construção de estruturas externas totalmente
substitutivas à internação no manicômio; a não-fixação dos serviços em um
modelo estável, mas dinâmico e em transformação; a transformação das relações
de poder entre a instituição e os sujeitos; o investimento menor dos recursos em
aparatos e maior nas pessoas. (p. 56)

Destacamos, a seguir algumas ações que foram desenvolvidas para colocar


em prática a nova Política de Saúde Mental5 segundo o Ministério da Saúde
(2002):
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5
Dentre os principais instrumentos que definem a Política Nacional de Saúde no Brasil, de acordo
com o Ministério da Saúde, incluem-se: a) Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS /
SUS) 2001/2002; estabelece o processo de regionalização como estratégia de hierarquização dos
serviços de saúde e de busca de maior eqüidade; b) Lei nº 10.216 de 06/04/2001, redireciona o
modelo da assistência psiquiátrica, regulamenta cuidado especial com a clientela internada por
longos anos e prevê possibilidade de punição para a internação involuntária arbitrária ou
desnecessária; c) Lei nº 10.708 de 31/07/2003, Lei do Programa de Volta para Casa estabelece
um novo patamar na história do processo de reforma psiquiátrica brasileira, impulsionando a
desinstitucionalização de pacientes com longo tempo de permanência em hospital psiquiátrico,
pela concessão de auxílio reabilitação psicossocial e inclusão em programas extra-hospitalares de
atenção em saúde mental; d) Portaria SNAS nº 224 de 29/01/1992, regulamenta o funcionamento
de todos os serviços de saúde mental. Estabelece normas para o funcionamento de serviços
ambulatoriais e hospitalares; e) Portaria GM nº 106 de 11/02/2000, cria e regulamenta o
funcionamento dos Serviços Residenciais Terapêuticos. Esta Portaria tem papel importante na
consolidação do processo de substituição do modelo tradicional, pois possibilita desenvolver uma
estrutura de acolhimento ao paciente egresso de internação psiquiátrica de longa permanência e
sem suporte sócio-familiar; f) Portaria GM nº 251 de 31/01/2002, estabelece diretrizes e normas
para a assistência hospitalar em psiquiatria reclassificam os 39 hospitais psiquiátricos, define e
estrutura a porta de entrada para as internações psiquiátricas na rede do SUS; g) Portaria GM nº
336 de 19/02/2002, acrescenta novos parâmetros para a área ambulatorial, ampliando a
abrangência dos serviços substitutivos de atenção diária; estabelece portes diferenciados a partir de
critérios populacionais e direciona novos serviços específicos para área de álcool e outras drogas e
infância e adolescência; h) Portaria GM nº 2.391 de 26/12/2002, notificação das internações
psiquiátricas involuntárias; define critérios e mecanismos para acompanhamento sistemático, pelo
Ministério Público e instâncias gestoras do SUS, das internações psiquiátricas involuntárias,
configurando-se como um dos pontos necessários de regulamentação da Lei 10.216; i) Portaria
GM nº 2.077 de 31/10/2003, define os critérios de cadastramento dos beneficiários do Programa
de Volta para Casa, de habilitação dos municípios e de acompanhamento dos benefícios
concedido; j) Portaria GM nº 52 de 20/01/2004, cria o Programa Anual de Reestruturação da
Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS – 2004 reafirmando a diretriz de redução progressiva
de leitos; k) Portaria GM nº 1.608 de 03/08/2004, constitui o Fórum Nacional sobre Saúde
Mental de Crianças e Adolescentes, tendo em vista, a grave situação de vulnerabilidade deste
segmento em alguns contextos específicos, exigindo iniciativas eficazes de inclusão social; l)
35

• Redução progressiva dos leitos psiquiátricos de hospitais


especializados: o processo de mudança do modelo assistencial que vem sendo
conduzido visa à redução dos leitos de hospitais psiquiátricos acompanhada da
construção de alternativas de atenção no modelo comunitário.
• Qualificação, expansão e fortalecimento da rede extra-
hospitalar: os serviços de saúde como, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
Residências Terapêuticas em saúde, Clube de Convivência, entre outros.
• Programa permanente de formação de recursos humanos para
a Reforma Psiquiátrica: o avanço da Reforma Psiquiátrica no Brasil requer
ampliar as instâncias de capacitação dos diferentes agentes do cuidado no campo
da Saúde Mental para além das universidades. Requer o estabelecimento de bases
para criar programas estratégicos interdisciplinares e permanentes de formação em
saúde mental para o SUS, por meio de capacitação/educação continuada,
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monitoramento dos trabalhadores e atores envolvidos no processo da Reforma.


• Implantação do Programa de Volta para Casa: este programa
atende ao disposto na Lei nº 10.216 de 06/04/2001 e faz parte do processo de
Reforma Psiquiátrica, que visa reduzir progressivamente os leitos psiquiátricos,
qualificar, expandir e fortalecer a rede extra-hospitalar. Como estratégia principal
para a implementação do Programa foi instituído o auxílio-reabilitação
psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de
internações.
• Implementação da Política de Atenção Integral a usuários de
álcool e outras drogas: a Lei nº 10.216 de 06/04/2001, marco legal da Reforma
Psiquiátrica, ratificou as diretrizes básicas que constituem o Sistema Único de
Saúde: garante aos usuários dos serviços de saúde mental e, conseqüentemente,
aos que sofrem por transtornos decorrentes do consumo de álcool e outras drogas,
a universalidade de acesso e direito à assistência. Estabelece, como partícipes do
Programa de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, unidades de
atenção básica, CAPS ad, hospitais gerais de referência, a rede de suporte social
(associações de ajuda mútua) e, como características principais, estar implicada a

Portaria GM nº 1.935 de 16/09/2004, destina incentivo financeiro antecipado para Centros


Atenção Psicossocial em fase de implantação. (Ministério as Saúde, 2002, p. 120)
36

rede de cuidados em DST/AIDS e adoção da lógica de redução de danos, que é


estratégica para o êxito das ações desenvolvidas por essas unidades.
● Inclusão das ações de saúde mental na Atenção Básica: a atenção
básica em saúde se constitui como um espaço propício aos serviços com bases
territoriais que visam buscar modificações sociais, superar o viés da simples
assistência e incorporar uma nova forma de cuidar que ultrapasse os muros
institucionais.
O modelo de tratamento previsto pela Reforma Psiquiátrica Brasileira visa
atender às pessoas que necessitam de cuidados psíquicos em sua individualidade e
em sua relação com o meio social; possui caráter autenticamente democrático e
social, pois, busca os direitos do doente enquanto ser humano defende sua
cidadania e novas formas de tratamento; luta por mudanças de hábitos, por
mudanças culturais, por tecnologias e por uma nova ética na assistência ao doente
mental.
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De acordo com Barros (1994), o movimento de desinstitucionalização ao


revelar o manicômio como lócus de uma psiquiatria que se articula às imagens de
miséria, periculosidade social, marginalidade e improdutividade, irá centrar-se na
desconstrução desta imagem buscando um modelo de cuidado humanizado.
Goffman (1990) afirma que após um primeiro momento de denúncia da
violência das instituições totais, a desinstitucionalização assumiu um caráter de
desospitalização ou transinstitucionalização. Ou seja, ocorreu um processo de
altas administrativas para instituições não psiquiátricas. Nesse sentido, desse
processo resultou uma população que passava a girar de uma instituição para
outra, sendo que nenhum serviço assumisse a responsabilidade perante tais
pacientes.
Barros (1994) ressalta que os processos de desinstitucionalização partiram
da necessidade de por em discussão as instituições criadas no período que
Foucault denominou de grande Internação e da necessidade de redefinir para uns e
desconstruir para outros a noção de doença mental. Além disso, vale sinalizar que
é necessário desconstruir não apenas a instituição manicomial, mas também, as
idéias, noções e os preconceitos que a acompanham e modelam.
Ainda segundo Barros (1994), a desinstitucionalização seria desconstrução
quando é capaz de decompor o agir institucional, isto é, quando se compõe um
37

feixe de estratégias que desmonta e desconstrói as soluções para compreender os


problemas, usando os mesmos espaços, os mesmos recursos, decompondo os
sistemas de ações, de internação e de justificação no qual cada elemento se insere.
Com base na necessidade de se colocar em prática as ações previstas na
nova política de Saúde Mental são criados serviços de saúde e programas
enquanto estratégias de desinstitucionalização voltados para a qualificação,
expansão e fortalecimento da rede extra-hospitalar, com o objetivo de inserir o
portador de transtorno mental em suas atividades diárias, no convívio familiar e
na sociedade. São eles:

A) Residências Terapêuticas

Os Serviços Residenciais Terapêuticos como componente da Política


Nacional de Saúde Mental, surgem visando à superação do modelo
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hospitalocêntrico. Esses serviços consistem em moradias terapêuticas localizadas


geralmente no espaço urbano e visam responder às necessidades de moradias de
pessoas portadoras de transtorno mental egressas de hospitais psiquiátricos ou
não.
As Residências Terapêuticas promovem a inclusão dos portadores de
transtorno mental egressos de hospitais psiquiátricos a partir de uma equipe
técnica, de um cuidador e deve acolher no máximo oito moradores. De forma
geral, o cuidador deve apoiar os moradores nas tarefas, conflitos cotidianos do
morar, do circular na cidade visando à autonomia do usuário. Vale sinalizar que
os direitos de morar e de circular nos espaços da cidade e da comunidade são
fundamentais com a implantação da Residência Terapêutica e tais residências
estão referenciadas a um Centro de Atenção Psicossocial, bem como à rede de
saúde mental do município.
A implantação das residências terapêuticas exige dos gestores do SUS uma
permanente articulação com a comunidade, vizinhança, profissionais e agentes
comunitários de saúde. O Ministério da Saúde pautou-se pela orientação dos
municípios para a condução de um trabalho terapêutico com as pessoas que estão
saindo de hospitais psiquiátricos, respeitando cada caso e o ritmo de readaptação
de cada pessoa à vida em sociedade. (Ministério da Saúde, 2007)
38

B) Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são unidades de atendimento


intensivo e diário aos portadores de sofrimento psíquico grave, constituindo uma
alternativa ao modelo centrado no hospital psiquiátrico, caracterizado por
internações de longa permanência e regime asilar. Os Centros de Atenção, ao
contrário, permitem que os usuários permaneçam junto às suas famílias e
comunidades.
Os CAPS foram oficializados pela Portaria GM 224/92 que os define
como “unidade de saúde locais/regionalizadas que contam com uma população
adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados
intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou
dois turnos de quatro horas, por equipe multiprofissional. Atualmente, são
regulamentados pela Portaria nº 336/GM de 19 de fevereiro de 2002, tal portaria
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inclui os CAPS no Sistema Único de Saúde (SUS), reconhecendo sua


complexidade de serviços prestados e sua amplitude de atuação – tanto no
território onde se encontra, quanto na luta pela substituição do modelo
hospitalocêntrico de atenção à saúde.
Os CAPS têm a finalidade de acolher pacientes com transtornos mentais,
viabilizar a integração social e autonomia, fortalecer os vínculos familiares e
comunitários, oferecer atendimento psicossocial através de uma equipe
multiprofissional (psiquiatra, enfermeiro, assistente social, psicólogo, monitor de
oficina...).

Os CAPS visam: prestar atendimento em regime de atenção diária; gerenciar


projetos terapêuticos; promover a inserção social dos usuários através de ações
intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte, cultura, lazer; dar
suporte e supervisionar a atenção à saúde mental na rede básica PSF; regular a
porta de entrada da rede de assistência em saúde mental de sua área; coordenar
junto com o gestor local as atividades de supervisão de unidades hospitalares
psiquiátricas; manter atualizada a listagem dos pacientes de sua região que
utilizam medicamentos para saúde mental. (Saúde Mental no SUS, 2004, p.13)

De acordo com o Ministério da Saúde, "um CAPS é um serviço de saúde


aberto e comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele é um lugar de
referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais,
39

psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade ou persistência


justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário,
personalizado e promotor de vida, realizando acompanhamento clínico e a
reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos
civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários”. (Saúde Mental no
SUS, 2004, p.18)

C) Programa de Volta para Casa

O Programa de Volta para Casa foi instituído pelo Presidente Lula, por
meio da assinatura da Lei Federal 10.708 de 31 de julho de 2003 e dispõe sobre a
regulamentação do auxílio-reabilitação psicossocial a pacientes que tenham
permanecido em longas internações psiquiátricas. O objetivo deste programa é
contribuir efetivamente para o processo de inserção social dessas pessoas,
incentivando a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos
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assistenciais e de cuidados, facilitadora do convívio social, capaz de assegurar o


bem-estar global e estimular o exercício pleno de seus direitos civis, políticos e de
cidadania. Além disso, é uma estratégia de emancipação de pessoas com
transtornos mentais e dos processos de desinstitucionalização e redução dos leitos
psiquiátricos.
O Programa De Volta para Casa atende ao disposto na Lei 10.216 que
determina que os pacientes longamente internados ou para os quais se caracteriza
a situação de grave dependência institucional, sejam objeto de política específica
de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida. Para receber o auxílio
reabilitação do Programa a pessoa deve ser egressa de hospital psiquiátrico e ter
indicação para a inclusão em programa municipal de reintegração social.
Em conjunto com o Programa de Redução de Leitos Hospitalares de longa
permanência e os Serviços Residenciais Terapêuticos, o Programa de Volta para
Casa forma o tripé essencial para o efetivo processo de desinstitucionalização e
resgate da cidadania das pessoas acometidas por transtornos mentais submetidas à
privação da liberdade nos hospitais psiquiátricos brasileiros.
É necessário uma reflexão a respeito da constituição da rede de atenção
básica à saúde mental no Brasil, a partir das mudanças postas pela Reforma
Psiquiátrica. Considerando que a partir da Reforma Sanitária a proposta de
40

atenção básica à saúde reforça entre outros, o atendimento de base territorial, a


articulação em rede dos serviços e a integralidade das ações e a territorialidade
componentes essenciais para a realização do processo de desinstitucionalização.
Essa reflexão será desenvolvida no próximo capítulo quando abordaremos as
ações desenvolvidas pelo Programa Saúde da Família (PSF) e pelos agentes
comunitários de saúde que em muito podem contribuir enquanto substitutivos do
processo de institucionalização do portador de transtorno mental, uma vez que
ambos têm como proposta a prevenção e a integralidade das ações.
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A CLÍNICA DO SUJEITO: POR UMA CLÍNICA REFORMULADA E
AMPLIADA.

Gastão Wagner de Sousa Campos - 1996/1997

Este trabalho está dedicado à Franco Basaglia.

1- A CLÍNICA EM GRAMSCI, SARTRE E BASAGLIA:

Um trabalho sobre a Clínica que começasse discutindo com Gramsci, em


seguida citasse Sartre e, depois, rendesse homenagem à Basaglia. Um dos
primeiros médicos modernos a sugerir que as práticas em saúde deveriam se
orientar por uma fenomenologia materialista. Sim, Franco Basaglia sentiu-se
obrigado a responder de maneira concreta à materialidade horripilante
produzida pela psiquiatria aplicada em pacientes reclusos nos manicômios, e
este seu compromisso com a prática e com as pessoas pelas quais ele se
responsabilizara o impediram de operar apenas com conceitos críticos. Por isto
ele necessitou inventar alguma coisa que operasse no lugar do saber negado.
Paulo Amarante analisou este movimento de negação e de reinvenção das
políticas e das práticas em saúde mental em seu livro O Homem e a Serpente
(Amarante, P., 1996).
Em certo sentido, um pioneiro neste esforço de compatibilizar
determinação estrutural com processos mutantes operados por Sujeitos
concretos foi o filósofo e militante esquerdista Antônio Gramsci. Alguém com
quem a medicina nunca dialogou e a quem, a Saúde Coletiva, bastante
influenciada pelas várias nuances do chamado materialismo estruturalista,
sempre desdenhou. Pena, porque com isto perdeu-se uma oportunidade de
recolocar em cena alguém que, sem aderir ao idealismo, havia reconhecido o
potencial criativo das massas, dos agrupamentos e dos indivíduos. A
possibilidade de inventar o novo, apesar das determinações ou dos
condicionamentos estruturais, quer fossem eles biológicos, biográficos,
econômicos, políticos ou históricos. Isto lhe valeu a acusação de voluntarismo,
de subjetivismo e de hipervalorizar o papel instituinte dos sujeitos fazendo
história. E para ele se fazia história de múltiplas e variadas maneiras. Ele foi
um dos primeiros a falar em processos de mudança molecular: a educação, a
cultura, o trabalho, a política, a igreja, os meios de comunicação, em todos
estes espaços se construiria o novo ou se reforçaria a velha dominação. A
revolução não seria o único nem o principal meio para se constituir o novo em
novas sociedades (Gramsci, A., 1978). Basaglia recuperou muito de Gramsci
para pensar instituições e práticas sanitárias.
No entanto, Gramsci nunca chegou a elaborar uma Teoria sobre o
Sujeito. Sua prioridade era pensar o novo intelectual orgânico, o Maquiavel
moderno: o partido dos trabalhadores, que para ele seria o partido comunista.
Forneceu muitas indicações valiosas sobre a complexidade das relações sociais,
mas não trabalhou fundo a dialética alienação/libertação, ou seja, sobre as
maneiras de se produzir Sujeitos com altos coeficientes de autonomia e de
iniciativa em situações em que a maioria dos determinantes estariam voltados
para a produção da submissão.
Neste ponto, Basaglia viu-se obrigado a apoiar-se em Sartre. Um francês
originário do existencialismo radical, herdeiro de uma fenomenologia que
praticamente liqüidava qualquer relação dialética entre Sujeito e Objeto, ao
atribuir ao Sujeito quase que a responsabilidade total pela construção de
Sentido ou de Significado para as coisas ou para os fenômenos. Tudo partiria
do Sujeito, quase uma onipotência significadora de um Sujeito que nomeava o
Mundo, sem que fosse por ele influenciado. Pois bem, este mesmo Jean Paul
Sartre, mais tarde, tentaria modular esta perspectiva excessivamente subjetiva,
combinando-a com o marxismo. Deste esforço resultou um esboço de Teoria
sobre algumas possibilidades de desalienação dos Sujeitos. Sartre falava em
serialidade, em Grupos que repetiam comportamentos condicionados por
estruturas dominantes, mas apontava também para a possibilidade da
construção de Grupos Sujeitos, agrupamentos aptos a lidar com estas
determinações de forma mais livre, agrupamentos voltados para a construção
da liberdade, do novo e de modos de convivência mais justos. Inegavelmente,
há uma pitada de Freud em tudo isto, de qualquer forma, Sartre valorizava o
Sujeito dentro de uma perspectiva ao mesmo tempo humanista e materialista
(Sartre, J. P., 1963).
Mas e a Clínica com tudo isto? Basaglia aproveitou-se de todo este caldo
para repensar políticas e práticas em saúde. Amarante sintetiza bem a
contribuição de Basaglia com a seguinte frase:
"Se a doença é colocada entre parênteses, o olhar deixa de ser
exlusivamente técnico, exclusivamente clínico. Então, é o doente, é a pessoa o
objetivo do trabalho, e não a doença. Desta forma a ênfase não é mais
colocada no 'processo de cura', mas no processo de 'invenção da saúde' e de
'reprodução social do paciente' " (Amarante, 1996).
Bem, a perspectiva é bem fenomenológica: sai o objeto ontologizado da
medicina - a doença - e entra em seu lugar o doente. Mas não um enfermo em
geral, mas um Sujeito concreto, social e subjetivamente constituído. Toda
ênfase sobre uma existência concreta e sobre a possibilidade de se inventar
saúde para estes enfermos. Mas inventar saúde, para Basaglia, implicaria mais
do que uma intervenção técnica e estaria ligada à noção de reprodução social
do paciente. Noção esta profundamente influenciada pela perspectiva de
cidadania ativa e de protagonismo; ou seja, partia-se do reconhecimento do
paciente como uma pessoa com direitos, mas, ao mesmo tempo, argumentava-
se sobre a necessidade de preparar-se para fazer valer os próprios direitos,
construindo um mundo melhor para o Sujeito e para os outros. Uma miscelânea
de atividades políticas, gerenciais, de promoção e de assistência à saúde
(Basaglia, F., et al., 1985).
A proposta aqui desenvolvida parte deste patamar e compartilha desta
mesma convicção. A reforma da clínica moderna deve assentar-se sobre um
deslocamento da ênfase na doença para centrá-la sobre o Sujeito concreto, no
caso, um Sujeito portador de alguma enfermidade. Daí o título, Clínica do
Sujeito. Entretanto, mais do que louvá-lo é necessário dar mais alguns passos
nesta picada aberta por Basaglia. Primeiro, porque, agora, estar-se-ia
discutindo a clínica em geral e não apenas aquela praticada em manicômios; e,
segundo, porque, com certeza, os movimentos que operaram sobre inspiração
basagliana cuidaram muito mais do protagonismo político do que esclareceram
sobre a nova instituição que estavam reinventando.
Centrar a ação clínica sobre o Sujeito, tudo bem, no entanto, este Sujeito
seria um Sujeito concreto, não somente marcado por uma biografia singular,
mas também o seu corpo e sua dinâmcia corporal estariam marcados por uma
singularidade: algum tipo de enfermidade, ou de sofrimento ou de deficiência
relativa à maioria dos circundantes em um dado contexto social específico.
Colocar a doença entre parênteses é um ótimo exercício para quebrar a
onipotência dos médicos, mas nem sempre ajuda o enfermo. Evita que sofra
iatrogenia, intervenções exageradas, mas não, necessariamente, melhora sua
relação com o mundo. Como ressaltar o Sujeito trazendo junto sua
integralidade humana; humanidade que, no caso, incluie também distúrbios,
sofrimentos, dores, risco de morte, doença enfim?
Ou como produzir saúde para aqueles Sujeitos portadores de qualquer
enfermidade sem considerar também o combate a esta enfermidade? Assim,
partindo de Basaglia, creio, importante, buscar-se uma nova dialética entre
Sujeito e doença. Nem a antidialética positivista da medicina que fica com a
doença descartando-se de qualquer responsabilidade pela história dos Sujeitos
concretos, nem a revolta ao outro extremo: a doença entre parênteses, como se
não existisse, quando, na verdade, ela está lá, no corpo, todo o tempo, fazendo
barulho, desmanchando o silêncio dos órgãos. A doença está lá, dependendo
dos médicos e da medicina, é verdade, mas também independente da medicina;
dependente da vontade de viver das pessoas, com certeza, mas também
independente da vontade dos Sujeitos. Está lá, simplesmente, enquanto
processo humano de nascer, crescer, gastar a vida, minguar e morrer. E
sabendo que as coisas nem sempre acontecem nesta ordem exata, cartesiana.
Então, colocar a doença entre parênteses, sim, mas apenas para permitir a
reentrada em cena do paciente, do sujeito enfermo, mas, em seguida, agora, em
homenagem a Basaglia, sem descartar o doente e o seu contexto, voltar o olhar
também para a doença do doente concreto. Senão qual especificidade teriam os
serviços ou os profissionais de saúde?

2- A DOENÇA TOTAL OU A DOENÇA COMO PARTE DA VIDA


HUMANA:

Clínica do Sujeito? Sim uma clínica centrada nos Sujeitos, nas pessoas
reais, em sua existência concreta, inclusive considerando-se a doença como
parte destas existências. No entanto, a medicina não somente trabalha com uma
ontologização das enfermidades - as doenças são o verdadeiro objeto de
trabalho da clínica -, como acaba por tomar as pessoas por suas doenças. Seria
como se a doença ocupasse toda personalidade, todo o corpo, todo o Ser do
doente. Seu João da Silva desapareceria para dar lugar a um psicótico, ou a um
hipertenso, ou a um canceroso, ou a um poliqueixoso, quando não se acerta
imediatamente com algum diagnóstico. Fala-se até em uma arte psicopatológica
para se referir a pinturas elaboradas por doentes mentais, como se a doença
substituisse a mente, o cérebro, a vontade, todo o Ser do enfermo. Para a
medicina a essência do Sujeito seria esvaziada pela doença, a qual ocuparia o
seu lugar a posteriori.
Fazendo uma analogia com o conceito de Instituição Total de Goffman
(Goffman;1996) poder-se-ia falar em Doença Total. Para a medicina haveria
um apagamento de todas as outras dimensões existenciais ou sociais do
enfermo, a doença o recobriria como uma segunda pele, uma nova identidade.
As pessoas deixariam de ser velhas, jovens, pais ou mães, trabalhadores,
aposentados ou desempregados, músicos ou professores, e todos seriam
enfermos de alguma coisa, assim, pouco importaria lidar com a doença como
um dos componentes destas existências concretas. Não são sequer levantadas
questões sobre como combinar uma dada enfermidade e o Ser concreto
acometido, como combinar o enfrentamento de uma determinada doença com a
luta contra o desemprego, o combate a uma certa enfermidade com o
cumprimento de funções maternas, o cuidado e tratamento de um dado mal-
estar com a conservação de algum conforto e de algum prazer.
Esta polêmica haveria que se estabelecer com a Clínica, sem o que nunca
haveria Clínica reformada e muito menos ampliada. Uma enfermidade perturba,
transforma e até mata Sujeitos, contudo, apenas raramente, liqüida com todas
as demais dimensões da existência de cada um. Assim, hipertensões arteriais
semelhantes segundo critérios clínicos tradicionais, teriam conseqüências e
gravidades distintas conforme o Sujeito e o Contexto em questão. A clínica se
empobrece toda vez que ignora estas inter-relações, perdendo capacidade de
resolver problemas estritamente clínicos, inclusive.
Sugere-se, portanto, uma ampliação do objeto de saber e de intervenção
da Clínica. Da enfermidade como objeto de conhecimento e de intervenção,
pretende-se também incluir o Sujeito e seu Contexto como objeto de estudo e
de práticas da Clínica.
Entretanto, tratar-se-ia de uma ampliação, não de uma troca. O objeto a
ser estudado e a partir do qual se desdobraria um Campo de Responsabilidades
para a Clínica, seria um composto, uma mescla, resultante de uma síntese
dialética entre o Sujeito e sua Doença. Considerar a doença é muito importante
porque influie inclusive na definição sobre a que clínica se deveria recorrer. Em
casos de enfermidades ou de deficiências crônicas, de longa duração e, em
geral, incuráveis, pensar-se na Clínica do Sujeito. Em geral, estas pessoas
estariam quase sempre muito dependentes de algum tipo de apoio técnico
(medicação, hormônios, insulina, reabilitação física, etc), sujeitas a variação de
humor em virtude de suas enfermidades que os inferiorizam em relação à média
da espécie ou do contexto socio-cultural (terapia individual, trabalho em
grupo), e ainda mais expostas às dificuldades do contexto e que se
beneficiariam de programas sociais específicos(cooperativas de trabalho, apoio
educacional, viagens, habitações coletivas, etc). Enfim, pessoas com qualquer
destas características se beneficiariam de uma Clinica reformulada e amplida.
Nesta relação entre doença e Sujeito há, portanto, muitas posições
possíveis. Desde aquelas em que a doença ocupa grandes espaços na existência
do Sujeito, até outras em que a enfermidade é um risco na água, um evento
transitório e fugaz. Por outro lado, doenças semelhantes do ponto de vista
classificatório podem incidir de forma diferenciada conforme a história e os
recursos subjetivos e materiais de cada Sujeito. Os serviços de saúde deveriam
operar com plasticidade suficiente para dar conta desta variedade.
Sobra a questão: haveria mais de uma Clínica? O que seria a Clínica?
Haveria uma Clínica somente Clínica, uma Clinica sem adjetivos que a
qualificasse?

3- A CLÍNICA E SUAS VARIAÇÕES DE SEMBLANTE:

A medicina imagina a existência de uma clínica única, de uma clínica


totalizante: a clínica científica e ética. No entanto, trata-se de uma pura
declaração ideológica, talvez assentada sobre a preocupação em vender a
imagem de uma instituição racional e humana. Nos principais manuais de
Semiologia já se encontra que a Clínica seria ciência e arte(Campos;1992),
uma contradição em termos, já que ciência refere-se a saberes e procedimentos
normalizados e arte à invenção ou à improvisação. Historicamente, a instituição
médica vem resolvendo este dilema tratando de transformar a doença em objeto
científico, passível de elaborações estruturadas e, portanto, base de apoio para
uma ação orientada dos profissionais; ao mesmo tempo que imagina a relação
médico-paciente, ou seja, o trabalho com Sujeitos concretos, como vinculada
ao campo da arte e, portanto, do imprevisível; o espaço em que cada caso seria
um caso diferente dos demais.
Apesar de ideologia esta ideologia existe e, portanto, existe uma Clínica
clínica, pelo menos enquanto sistema de referência, e, convenhamos, alguns
sistemas de referência exercem bastante influência sobre a materialidade das
coisas e dos fenômenos. E no caso da Medicina, operar em nome de um
sistema de referência, ao mesmo tempo, duro de certezas e cheio de vazios,
tem lhe assegurado respeitabilidade e longevidade. Por este motivo, optou-se
por trabalhar com a idéia de semblantes, de faces ou de dobras da Clínica. Há,
de fato, na prática, inúmeras clínicas. Contudo, existie contiguidade entre elas,
mas há também muitas diferenças entre estas clínicas. Neste sentido, é
importante considerar três semblantes principais sobre os quais a Clínica se
apresenta. Há uma Clínica Oficial ( a Clínica clínica), uma Clínica Degradada e
uma outra Ampliada (Clínica do Sujeito).
Clínica Degradada ou Ampliada, sempre, em relação àquela considerada
Oficial, é óbvio. Degradada por quê? Este conceito procura reconhecer que
contextos socio-econômicos específicos podem exercer uma determinação tão
absoluta sobre a prática clínica, que esta teria sua potencialidade para resolver
problemas de saúde diminuída. Então o degradado aqui se refere a limites
externos impostos à potência da Clínica clínica. Muitos críticos da medicina
têm se valido destas degradações decorrentes de interesses econômicos
corporativos ou de políticas de saúde muito deficientes para criticar a Clínica
enquanto instituição(Illich;1975), este expediente lhes têm simplificado a
tarefa, gerando, contudo, bastante confusão. Quando uma empresa médica
dificulta o livre-arbítrio dos médicos, ou lhes impõem restrições independente
da gravidade de cada caso, a baixa eficácia das práticas não poderia ser
atribuída à clínica em si, mas àquela clínica degrada por aquelas condições
específicas. Outro exemplo, o modelo de Pronto-atendimento praticado em
milhares de instituições públicas brasileiras e que já foi brilhantemente
criticado por Ricardo Bruno, que o denominou de sistema de trabalho queixa-
conduta (Gonçalvez, R.B.; 1994). Ora, este estilo de trabalho viola princípios
básicos dos próprios manuais da Clínica Oficial; a degradação existente resulta
de uma mescla de uma política de saúde inadequada com um comportamento
alienado de médicos que a praticam, atendem os casos de uma forma
padronizada, quase que independente da gravidade e das necessidades de cada
um dos seus pacientes.
Portanto, há uma Clínica Degradada por interesses econômicos ou por
desequilíbrios muito pronunciados de poder. Toda vez que a racionalidade
estritamente clínica é atravessada por outras racionalidades do tipo instrumental
ou estratégica, há uma degradação de sua potencialidade teórica e perde-se
oportunidade de resolver problemas de saúde.
Não que se esteja imaginando uma situação ideal em que a racionalidade
clínica pudesse se desenvolver de forma pura. Isto seria idealismo, seria não
reconhecer o conceito de prática social, que afirma que toda ação de saúde é
uma prática sempre submetida a determinantes sociais, políticos e econômicos .
Entretanto, as organizações de saúde podem criar ambientes e situações mais
ou menos protegidos de todas estas determinações. Instituições mais ou menos
permeáveis a estas múltiplas forças e interesses em jogo. Existem serviços de
saúde que subordinam todas estas outras lógicas àquela da produção de saúde;
que sempre procuram assegurar supremacia ao interesse do paciente. Não que
esta postura seja sempre vencedora, o que se está reconhecendo aqui é a
existência de organizações em que o interesse econômico aparece antes que o
do paciente, em que a lógica política e de poder se sobrepõem à razão da cura
ou da reabilitação de pessoas. Isto produz uma Clínica Degradada.
No entanto, a Clínica Oficial (Clínica clínica) é também bastante
limitada. E estes limites, ao contrário daquilo divulgado pela ideologia médica,
não resultam apenas de aspectos obscuros - desconhecidos - dos processos
saúde-doença. Inúmeros autores demonstraram suas limitações ontológicas,
suas debilidades de constituição(Foucault;1980),(Canguilhem;1982). É verdade
que a Medicina sempre os ignorou. Recentemente, com a crise de custos e de
eficácia, sem nenhuma citação à estes críticos originais, constata-se alguma
abertura entre alguns epígonos da Instituição Médica. As Faculdades de
Medicina admitem rever o seu modelo pedagógico, por exemplo. De qualquer
forma, produziu-se abundante literatura criticando a Medicina Oficial. Pode-se,
inclusive, afirmar que nas últimas três décadas importante parcela da pesquisa
em Saúde Coletiva teve como objeto o estudo crítico das práticas médicas.
Demonstrou-se que a Medicina opera com um objeto de estudo e de trabalho
reduzido, o que traria implicações negativas tanto para o seu campo de saberes
quanto para os seus métodos e técnicas de intervenção (Camargo, Jr.;1990).
Além do mais, poder-se-ia constatar hoje, que esta redução autorizaria a
Clínica Oficial a se desresponsabilizar pela integralidade dos Sujeitos. Mesmo
a Clínica somente se responsabiliza pela enfermidade, nunca pela pessoa do
enfermo.
Este objeto de estudo e de intervenção estaria reduzido em múltiplas
dimensões: por um lado, um enfoque desequilibrado para o lado biológico,
esquecendo-se das dimensões subjetiva e social das pessoas. O que acarretaria
em saberes e práticas marcados pelo mecanicismo e pela unilateralidade de
abordagem. Por outro lado, aborda-se mais a doença do que o indivíduo, e
mesmo quando este é considerado, pensa-se em um indivíduo fragmentado, um
ser composto de partes que apenas, teoricamente, guardariam alguma noção de
interdependência. Este reducionismo tem inúmeras conseqüências negativas:
abordagem terapêutica excessivamente voltada para a noção de cura -
freqüentemente confundida com a simples eliminação de sintomas e, no melhor
dos casos, com a correção de lesões anatômicas ou funcionais - , ficando em
segundo plano tanto as possibilidades de promoção da saúde, ou de prevenção
e, até mesmo aquelas, de reabilitação. Além do mais, este objeto reduzido
autorizaria a multiplicação de especialidades, que terminaram por fragmentar,
em um grau insuportável, o processo de trabalho em saúde. Em decorrência,
vem se reduzindo a capacidade operacional de cada Clinico, estabelecendo-se
uma cadeia de dependência quase impossível de ser integrada em projetos
terapêuticos coerentes.
Todo este sistema vem produzindo relações bastante paradoxais com a
sociedade. Em certa medida, a Medicina nunca perdeu sua capacidade de
exercer controle social sobre a maioria das pessoas, seu papel de árbitro e seu
discurso competente sobre temas ligados à vida continuam vigentes. No
entanto, percebe-se, no dia-a-dia, um grau cada vez maior de alienação de seus
agentes em relação aos sujeitos concretos dependentes de seus cuidados.
Alienação, afastamento, desinteresse, fixação em procedimentos técnicos
padronizados, dificuldade para escutar queixas, impossibilidade de comunicar
qualquer coisa além da seqüência automática de procedimentos e, no entanto,
grande capacidade de influenciar o imaginário social. Talvez pela articulação
da Clínica com a Mídia e com o Complexo Médico-industrial. Talvez pela
funça social de adversários da morte e do sofrimento, talvez pela capacidade de
resolver uma séria de problemas de saúde e de aliviar muitos sofrimentos que a
Clínica, mesmo quando degradada, ainda conserve, por tudo isto, a Clínica
segue sendo uma instituição importante e influente. Um espaço em que as
pessoas investem afetos e esperanças, onde, ainda se produz valores de uso e,
inevitável, disputa-se poder, e, muitas vezes, transmuta-se valores de uso em
puros valores de troca, interesse econômico, realização de mais-valia dos
outros, quase nunca dos enfermos.
Pois bem, e a Clínica do Sujeito? Ampliada e revisada, revista. Disto
trata este trabalho. Contudo, ela teria que enfrentar e derrotar estes principais
nós críticos que a Clínica Oficial não tem conseguido sequer analisar e muito
menos resolver. Como criticar a fragmentação decorrente da especialização
progressiva sem cair em um obscurantismo simplista? Um obscurantismo que
negasse o progressivo desenvolvimento de saberes e de tecnologias. Haveria
que se enfrentar esse desafio não apenas se socorrendo do lugar comum pós-
moderno da transdiplinariedade. Os conceitos de Campo e Núcleo de saberes e
de responsabilidades tentaram operar esta difícil travessia. Depois articulá-los
às noções de Equipe (Clínico) de Referência - organização vertical do processo
de trabalho, organização baseada no Campo, espaço de uma clínica ampliada -,
com àquela de Apoio Especializado Matricial - organização horizontal do
processo de trabalho, em que se tenta combinar especialização com
interdisciplinariedade, especialistas apoiando o trabalho do Clínico de
Referência conforme Projeto Terapêutico coordenado pelo próprio Referência,
mas elaborado em permanente negociação com a Equipe envolvida na atenção
matricial. Além disto, superar a alienação e a fragmentação e o tecnicismo
biologicista, centrando-se no eixo da reconstituição de Vínculos entre Clínico
de Referência e sua clientela. Superar a fragmentação entre a biologia,
subjetividade e sociabilidade operando-se com Projetos Terapêuticos amplos,
que explicitem objetivos e técnicas da ação profissional e que reconheçam um
papel ativo para o ex-paciente, para o enfermo em luta e em defesa de sua
saúde, em geral, interligada, com a saúde de outros. Uma crítica que se
pretenda dialética da Clínica clínica está obrigada a desconstruir reconstruindo
alternativas concretas de saberes e de práxis: uma clínica reformulada e
ampliada.
4- ENTRE A ONTOLOGIA DA DOENÇA E A FENOMELOGIA DO
SUJEITO DOENTE: (UMA PRIMEIRA AMPLIAÇÃO DO OBJETO DE
TRABALHO DA CLÍNICA)

O objeto da Clínica do Sujeito inclui a doença, o contexto e o próprio


sujeito. Não há como ignorar a enfermidade, senão não seria clínica mas
sociologia ou filosofia existencial. E não há como abordar a doença sem
enquadrá-la dentro de uma certa ontologia. A doença existe e não-existe, antes
de Weber a clínica já operava, na prática, com um conceito muito semelhante
ao de tipo-ideal. Uma abstração concreta: a doença. Um Ser inanimada mas
dotado de animação externa. Um Ser provável, ainda que inexistente na prática.
Uma regularidade que nunca se repete exatamente igual. Então por que
considerá-los, estes padrões teóricos? Porque dentro da ontologia há todo um
mundo de certeza, que infunde segurança aos Sujeitos Operadores, ao agentes
de saúde. Tratar a doença como um Ser com identidade próprio é a base que
autoriza um profissional de saúde a intervir em casos concretos. O problema
ocorre quando este Ser da Doença substitui completamente o Ser realmente
existente e perde-se a capacidade de se operar com a singularidade de cada
caso. No entanto, saber sobre a hipertensão em geral ajuda bastante. Como
conhecer desdobramentos genéricos sobre o processo de gestação considerado
normal, também ajuda muito. E, embora se saiba que esta suposta normalidade
inexiste, saber sobre o tipo ideal de gestação ajuda. Ajuda mas atrapalha
também, atrapalha porque em nome desta abstração autorizam-se intervenções
descabidas, intervenções que desconhecem a variabilidade possível do singular.
Todo saber tende a produzir uma certa ontologia do seu objeto, tende a
transformar o objeto de análise em um Ser com vida própria. A política procede
assim com o Estado, os estados se transformam em Sujeitos, quase que
independente dos seres concretos que os operam. A medicina transformou-se a
si própria em um ser dotado de vida própria, com desenvolvimento,
enfermidades e capacidade de autocorreção. Toda padronização, toda
programação e todo planejamento implicam em supor um mundo de
regularidades. Um mundo em que as doenças seriam a mesma em cada uma de
suas múltiplas manifestações, um mundo em que estas variações jamais
destruiriam a identidade da doença, ou do problema institucional ou social
enfrentado por estas formas de práxis. Em resumo, aprender sobre uma práxis
pressupõe supor casos que se repetiriam mais ou menos iguais. Da ontologia à
ortodoxia, no entanto, há apenas um passo. Sobre estas supostas verdades, em
geral, organiza-se todo um sistema de poder, uma hierarquia de guardiães, de
fiéis defensores da identidade da ontologia contra a variação da vida.
Entretanto, tratados sobre a doença ou sobre a fisiologia padrão dos seres
humanos ajuda a clínica. Mais do que a ajudar, a torna possível.
O desafio estaria em passar deste campo de certezas, de regularidades
mais ou menos seguras, ao campo da imprevisibilidade radical da vida
cotidiana. Situação e estrutura. O saber seguro e preso às estruturas; ou a
imprevisibilidade caótica das situações sempre distintas. Como realizar este
percurso com segurança? Uma primeira resposta: o reconhecimento explícito
dos limites de qualquer saber estruturado já seria uma primeira solução, pois
obrigaria todo especialistas a reconsiderar seus saberes quando diante de
qualquer caso concreto. Sempre.
No entanto, fica a questão: Como realizar este trajeto do geral ao
particular com um pouco mais de segurança do que aquela, por exemplo,
exigida do artista? A Clínica como arte? Mas a vida de uma pessoa não é um
amontoado de argila ou de pedra que se possa atirar fora caso a intuição do
artista não tenha funcionado. Por isto é muito importante conhecer aspectos
genéricos dos processos saúde-doença-atenção. Por isto é importante aprender
com a variação, por isto é importante saber escutar e, mais, saber também
perscrutar o caso singular. E decidir, mas decidir ponderando, ouvindo outros
profissionais, expondo incertezas, compartilhando dúvidas. Por isto a Clínica
do Sujeito demanda trabalho em equipe e um agir comunicativo, Habermas e a
Clínica. A arrogância de um sábio que conhece quase toda a história de um Ser
inexistente pode atrapalhar mais do que ajudar. No entanto, há que se saber
sobre as regularidades possíveis.
Note-se como esta exigência básica da prática clínica é antagônica a
tendência contemporânea de realizar uma clínica sem riscos de insucesso.
Pressionados pelos sucessivos processos por má-prática, empresas e
profisionais de saúde, particularmente nos EUA, atuam apenas em situações em
que o risco de insucesso é muito pequeno. No fundo, todos perdem com este
novo círculo vicioso. A tendência medicalizante e intervencionista é substituída
por uma postura omissa. De um extremo ao outro, sem mediações mais
profícuas.
Neste sentido, as organizações de saúde, inclusive para assegurar o
exercício de uma Clínica de qualidade, estariam obrigadas a adotar uma cultura
da comunicação. E o primeiro passo é quebrar a arrogância pétrea da Medicina,
com seus doutores e com seus protocolos, que seriam bem-vindos, desde que
houvesse espaço para se duvidar deles, para que as Equipes agissem apoiado
neles mas duvidando deles. A Gestão Colegiada e a divisão dos serviços de
saúde em Unidades de Produção, compostas por Equipes multiprofissionais,
criam condições institucionais favoráveis à troca de informação e à construção
coletiva dos projetos terapêuticos. Construção coletiva, portanto; no entanto
evitando-se a diluição de responsabilidades e a omissão diante do desconhecido
ou diante do imprevisto.

Bibliografia:
- Amarante, Paulo; 1996. O homem e a serpente. Rio de Janeiro, editora
FIOCRUZ.
- Basaglia, F et al;1985. A instituição Negada, tradução de Heloísa Jahn. Rio
de Janeiro, editora Graal.
- Campos, Gastão W.S.;1992. Reforma da Reforma: repensando a saúde. São
Paulo, editora Hucitec.
- Canguilhem, G.;1982. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro, editora
Forense.
- Camargo, Jr.;1990. (Ir)racionalidade Médica: os paradoxos da clínica. Rio
de Janeiro, dissertação de mestrado Instituto de Medicina Social da UERJ.
- Foucault, M.;1980. O nascimento da Clínica. Rio de Janeiro, editora
Forense universitária.
- Goffman, E.;1996. Manicômios, prisões e conventos, tradução de Dante
Leite. São Paulo Editora Perspectiva.
- Gramsci, Antonio; 1978. Concepção dialética da história tradução de Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, editora Civilização Brasileira.
- Illich, I.;1975. A expropriação da saúde: gênese da Medicina. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira.
- Mendes-Gonçalvez, R.B.;1994. Tecnoloiga e Organização Social das
Práticas de Saúde. São Paulo, Hucitec.
- Sartre, J.P.;1963. Crítica de la razón dialética. Buenos Aires, ed. Lousada.
1

Gisele Dhein

PAUSA! Clínica. Clínica política. Clínica ampliada:


a produção do sujeito autônomo

Dissertação apresentada como requisito para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, área de concentração Psicologia Social.

Orientadora: Dra. Neuza Maria de Fátima Guareschi

Porto Alegre
2010
53

3 A CLÍNICA AMPLIADA

Para poder demonstrar como se constituem as práticas da clínica ampliada e quais os

sujeitos produzidos por ela, os manuais do Ministério da Saúde Clínica Ampliada (2004a) e

Clínica Ampliada e Compartilhada (2009) nos servem enquanto analisadores, uma vez que

possibilitam evidenciar os modos pelos quais o SUS produz as tecnologias de atenção à

saúde.

O documento Clínica ampliada (2004a) é um material emitido pelo Ministério da

Saúde, mais especificamente pelo Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. O

material é composto por dezoito páginas, nas quais encontramos, primeiramente, uma

contextualização sobre a implementação, pelo Ministério da Saúde, da Política Nacional de

Humanização (PNH), também conhecido como o movimento HumanizaSUS. Essa

contextualização faz-se necessária, pois esta cartilha compõe um conjunto de oito cartilhas

que foram emitidos por este núcleo, enquanto diretrizes para a implantação da PNH. As

demais cartilhas dizem respeito: ao acolhimento, à ambiência, à equipe de referência e apoio

matricial, à gestão, ao grupo de trabalho de humanização, ao prontuário transdisciplinar e

projeto terapêutico e à visita aberta. Posteriormente, a cartilha apresenta o conceito de clínica

ampliada com o qual os profissionais da saúde devem trabalhar, trazendo exemplos e dicas

práticas para sua operacionalização.

Já o documento Clínica Ampliada e Compartilhada, foi emitido no ano de 2009,

também pelo Ministério da Saúde, no entanto, vinculado à Secretaria de Atenção à Saúde, à

Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Este já é um documento

maior, onde em suas sessenta e quatro páginas encontramos os eixos nos quais a clínica

ampliada se sustenta, além de sugestões práticas. Diferentemente do material emitido em

2004, o qual apresenta-se muito mais enquanto uma apresentação – pois está confeccionado
54

em forma de slides – este material desenvolve os conceitos de forma mais explicativa. Novos

itens são incorporados à discussão, como, por exemplo, o projeto terapêutico singular.

Importante salientar também a ampliação do nome: de Clínica Ampliada passamos à Clínica

Ampliada e Compartilhada.

Destes documentos poderíamos elencar vários marcadores para discutir a clínica

ampliada. No entanto, detemo-nos em dois especificamente, os quais entendemos darem conta

da discussão que nos propomos. O primeiro é um marcador que atravessa os manuais de

forma contundente e tem muito a nos dizer sobre as práticas de atenção à saúde: a

humanização. Já o outro, diz respeito ao conceito de saúde – e nesse sentido ao conceito de

sujeito da saúde também – com o qual o SUS opera nesta política.

3.1 Humanização: a porta de entrada para clínica ampliada

A clínica ampliada apresenta-se enquanto tecnologia de humanização da atenção à saúde

no SUS. Da clínica enquanto tecnologia passa-se à clínica ampliada e compartilhada

enquanto tecnologia de humanização. Humanização entendida enquanto oferta de

“atendimento de qualidade articulando os avanços tecnológicos com acolhimento, com

melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos profissionais” (Brasil,

2004b, p. 6). O HumanizaSUS aparece enquanto política nacional norteadora para atenção e

gestão de todas as instâncias do SUS.

A humanização recebeu acolhimento na gestão do presidente Fernando Henrique

Cardoso (década de 1990), com a implantação do Programa Nacional de Humanização. No

governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (década de 2000), o programa recebeu

continuidade e incremento, alcançando a dimensão de Política Nacional de Humanização

(PNH)6.
6“Tanto a política como o programa dizem respeito a uma forma epistemológica e uma forma substantiva,
55

Primeiramente, em 2001, o Ministério da Saúde lança o Programa Nacional de

Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH). Este programa propunha um conjunto de

ações integradas com o objetivo de alterar os padrões de assistência aos usuários no ambiente

hospitalar público, enfocando a necessidade de ocorrer uma transformação cultural no

ambiente hospitalar. Esta deveria ser orientada pelo atendimento humanizado ao usuário,

entendendo que resultaria em maior qualidade e eficácia das ações desenvolvidas (Reis,

Marazina, & Gallo, 2004).

Em 2003, a nova gestão do Ministério da Saúde inicia a condução de uma proposta que

expandisse a humanização para além do ambiente hospitalar e estabeleceu a Política Nacional

de Humanização da Atenção e Gestão em Saúde no SUS – HumanizaSUS. Esta política

pretende ter um caráter transversal, visando atingir todos os níveis de atenção à saúde,

entendendo humanização como uma transformação cultural da atenção aos usuários e da

gestão de processos de trabalho que deve perpassar todas as ações e serviços de saúde (Brasil,

2004b).

A proposta do HumanizaSUS apresenta algumas diferenciações com as anteriores ao

incorporar no conceito de humanização – além dos direitos dos usuários e do “cuidar do

cuidador” – a necessidade da melhoria de aspectos organizacionais do sistema e dos serviços

de saúde, aspectos que se tornam fundamentais para proporcionar adequadas condições para o

desenvolvimento de medidas humanizadoras. Com isto, resgatam-se princípios e diretrizes da

construção do SUS, contidos nas leis e atos regulamentadores, tais como assistência integral,

universalidade, hierarquização e regionalização de serviços, além do controle social (Reis et

al., 2004).

A Política de Humanização entende humanização como a valorização dos diferentes

sujeitos – usuário, trabalhadores e gestores – implicados no processo de produção de saúde.

porém as políticas são diretrizes do sistema de saúde, enquanto os programas são modos de operacionalizar essas
diretrizes” (Bernardes & Guareschi, 2007, p. 464).
56

A Humanização, como um conjunto de estratégias para alcançar a qualificação da

atenção e da gestão em saúde no SUS, estabelece-se, portanto, como a

construção/ativação de atitudes ético-estético-políticas em sintonia com um projeto de

co-responsabilidade e qualificação dos vínculos interprofissionais e entre estes e os

usuários na produção de saúde. Éticas porque tomam a defesa da vida como eixo de

suas ações. Estéticas porque estão voltadas para a invenção das normas que regulam a

vida, para os processos de criação que constituem o mais específico do homem em

relação aos demais seres vivos. Políticas porque é na pólis, na relação entre os homens

que as relações sociais e de poder se operam, que o mundo se faz (Brasil, 2004b, p. 8).

A clínica ampliada entra enquanto diretriz para a implementação da PNH, entendendo

que esta dá conta do compromisso com o sujeito e seu coletivo, estimulando diferentes

práticas terapêuticas e coresponsabilizando tanto gestores quanto trabalhadores e usuários no

processo de produção de saúde (Brasil, 2004b).

Para Bernardes e Guareschi (2007), a humanização “é uma objetivação das práticas

discursivas produzidas pelo SUS” (p. 464), ou seja, ao ser uma prática discursiva, ela produz

sujeitos, produz modos de viver em um determinado espaço-tempo. Dessa forma, ela é uma

“tecnologia de vida” (p. 466), uma vez que produz maneiras de o indivíduo/usuário

“relacionar-se consigo mesmo, de tornar-se objeto de si por meio da humanização de si – um

si edificado pela relação que se estabelece entre saúde, vida e tecnologias” (p. 466).

No momento que a humanização, em forma de política, constitui um modo de

subjetivação no campo da saúde, percebemos que os sujeitos que são produzidos por essa

política dizem de sujeitos de “uma racionalidade que possibilite ao sujeito dar-se a conhecer a

si mesmo” (Bernardes & Guareschi, 2007, p. 466). Como veremos mais adiante, a

humanização é a 'porta de entrada' para uma clínica ampliada onde os sujeitos que se
57

produzem dizem de sujeitos psíquicos, isto é, usuários e trabalhadores subjetivados pelos

discursos da psicologia através de “tecnologias de conhecer a si mesmo” (Bernardes &

Guareschi, 2007).

Diferentemente do século XVIII, onde a humanização era uma forma de objetivar o

sujeito da razão, nos séculos XIX e XX, com a necessidade de uma neutralidade científica

objetiva, a humanização passa a ser algo também passível de controle. Como já vimos

anteriormente, torna-se necessário criar formas de governo que dêem conta desta nova

estratégia. É por meio de disciplina e de biopolíticas, que são estratégias de biopoder, que se

passa a governar a população.

O biopoder é uma conformação do poder em que os jogos de força investem na vida,

fundamentalmente nas formas de viver da população. O biopoder tem, como finalidade,

o fazer viver. O controle das populações investe na humanidade, no controle dos modos

de viver: habitação, natalidade, mortalidade, casamentos (Bernardes & Guareschi, 2007,

p. 467).

São através das políticas públicas que os governos conseguirão administrar a população.

As políticas públicas caracterizam-se, dessa forma, como biopolíticas. Os movimentos da

reforma sanitária e da redemocratização do Brasil, como vimos no capítulo anterior, mostram-

nos algumas outras formas de objetivação da humanização. Nesse sentido, a diferença entra

em jogo, sendo “a vida humana” (Brasil, 2004b, p. 9), “e as condições de vida da população”

(p. 9), isto é, as diferentes histórias de vida, que “criam a necessidade de diferentes

tecnologias de governo” (Bernardes & Guareschi, 2007, p. 469).

Ao ser uma política que tranversaliza diferentes práticas – sejam elas de atenção ou

gestão –, caracteriza-se enquanto uma diretriz que atravessa todas as instâncias e ações em

saúde. Assim, enquanto biopolítica, a humanização “não se volta para a vida, mas para as
58

distintas formas de vida” (Bernardes & Guareschi, 2007, p. 469). Dessa forma, ao considerar

a humanização uma biopolítica, não há como escapar das regras que as constituem e, nesse

sentido, a clínica ampliada ao se tornar uma “tecnologia de humanização da atenção e da

gestão no campo da saúde” (Brasil, 2004a, p. 4), acaba por subjetivar sujeitos “conhecedores

de si”, reforçando a “noção de um 'eu', de uma autoria nos processos de saúde (Bernardes &

Guareschi, 2007, p. 473).

Para Rose (2001a), essa forma de pensar, onde os indivíduos são vistos como “eus”,

emerge apenas no século XIX. É somente neste momento histórico que o ser humano é

compreendido desta forma, isto é, “como uma entidade naturalmente singular e distinta” (p.

33).

Antes de entrarmos na analítica do segundo marcador, vamos fazer uma pausa e

remontar um pouco aos acontecimentos que permeiam a clínica ampliada e algumas

mudanças que foram ocorrendo – seja de nomenclatura ou conceitual.

3.2 Pausa. Clínica, clínica política, clínica ampliada?

Atualmente, falar em clínica no SUS é falar em clínica ampliada. No entanto, nem

sempre este conceito esteve presente. A clínica ampliada é um conceito que surge em meio à

redemocratização do Brasil, quando as políticas públicas da saúde, educação, dentre outras,

estavam sendo formuladas sob uma ótica mais democrática. Paralelamente, vê-se,

mundialmente, um movimento muito forte na saúde mental, especificamente, na luta por uma

sociedade sem manicômios. Com isso, no Brasil, surgem os Centro de Apoio Psicossocial,

mais conhecidos como CAPs, que iniciam uma nova forma de assistência/atenção à saúde.

Em 1987 vemos aparecer as primeiras referências à clínica ampliada, muito mais vinculadas a

uma discussão de trabalho em equipe – multidisciplinaridade e transdisciplinaridade – e ao


59

conceito de saúde da nova Constituição, isto é, um olhar biopsicossocial ao usuário em

atendimento.

A discussão se estende durante a construção do SUS. Autores como Regina Benevides

de Barros e Eduardo Passos remetem suas produções a também estes temas. Além de

ocuparem cargos no Ministério da Saúde, sendo responsáveis pela implementação das

políticas públicas à saúde, são teóricos de referência nesta área (Benevides, 2005; Passos &

Barros, 2000).

No entanto, percebe-se que suas produções voltam-se à discussão de uma clínica

articulada com a transdisciplinaridade7 e a política. Em sua grande maioria, a clínica vem

desacompanhada da adjetivação “ampliada” ou “compartilhada”, remetendo, assim, à forma

tradicional da clínica. Além disso, vinculando a discussão à psicologia e à medicina somente,

como se a clínica fosse campo somente dessas duas disciplinas, evidenciando uma incoerência

com a questão da transdisciplinaridade, por exemplo (Passos & Barros, 2000).

Passos e Barros (2000), por exemplo, remetem suas discussões aos modelos de clínica,

fazendo críticas à psicologia e à psicanálise, e à medicina biocentrada. Direcionam seus

posicionamentos muito mais às questões epistemológicas da disciplina – afirmando que toda

clínica é transdisciplinar – do que propriamente às questões conceituais desta nova proposta,

da clínica ampliada.
7 Ressaltamos que nos materiais/documentos do Ministério da Saúde, em suas políticas e programas,
encontramos referência a interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade. Sabe-se que epistemologicamente há
diferenças entre o entendimento das fronteiras entre as disciplinas. Quanto à transdisciplinaridade,
encontramos em alguns documentos sua referência, mas sempre atrelado à “equipe transdisciplinar”,
remetendo ao trabalho em equipe. Autores como Benevides, Passos e Campos, no entanto, discutem e
problematizam estas políticas pelo viés epistemológico da transdisciplinaridade. Segundo Passos (2002), a
multidisciplinaridade é resultado de uma maneira de articular diferentes disciplinas na tentativa de dar conta
da complexidade do objeto e cuja complexidade faria dele como que um sólido de muitas faces e, para cada
face, seria exigido uma perspectiva disciplinar, um diagnóstico. Na multidisciplinaridade há a manutenção
dos limites identitários; os regimes identitários das disciplinas que estão articuladas e o regime identitário do
próprio objeto. Já a interdisciplinaridade tem-se um objeto que convoca duas ou mais disciplinas a se
articular. Esta articulação vai pressupor a criação de uma zona de intersecção, que vai tornar-se independente
e formar uma terceira disciplina, como é o caso, por exemplo, da Psicopedagogia. Tanto na
multidisciplinaridade quanto na interdisciplinaridade se tem a manutenção dos sistemas identitários, uma vez
que mantenho os sistemas de identidade, isto é, não há a desestabilização das fronteiras e sim, sua
multiplicação. No entanto, a transdisciplinaridade, para o autor, é pensada através do conceito de intercessor
de Deleuze, onde “a potência de diferenciação que um outro produz sobre um determinado regime identitário
desestabilizará o que nele havia de identidade” (p. 42).
60

Percebe-se que mesmo sendo um campo novo dentro da discussão da saúde coletiva, os

textos8 sobre o tema preocupam-se mais com as críticas à saúde pública e seus modelos do

que com a construção de um novo plano para a clínica. Contraditoriamente, defendem

relações transdisciplinares, mas perpetuam as discussões na clínica da psicologia

(principalmente fazendo críticas à psicanálise e a transposição de seu modelo ao campo da

saúde) e na clínica médica, deixando de lado muitas vezes as demais profissões da área da

saúde, como fisioterapia, enfermagem, nutrição, odontologia, por exemplo.

Regina Benevides foi Diretora de Programas da Secretaria Executiva do Ministério da

Saúde, coordenando a Política Nacional de Humanização (PNH) e a Política Nacional de

Promoção à Saúde entre os anos de 2003 e 2005. Interessante percebermos, que foi neste

período que foram lançadas as Cartilhas da Humanização, sendo a Clínica Ampliada uma

delas. Este foi o primeiro material oficial do Ministério da Saúde sobre a temática. Em 2005,

Benevides publica um artigo intitulado A psicologia e o Sistema Único de Saúde: quais

interfaces?9, onde coloca a Psicologia no entrecruzamento daqueles que ela considera os três

princípios das políticas públicas em saúde, quais sejam: o da inseparabilidade, o da autonomia

e coresponsabilidade e o da transversalidade. Traz, mais uma vez, a discussão da

indissociabilidade entre clínica e política. No entanto, em nenhum momento apresenta a

questão da clínica ampliada. No auge de sua discussão e implementação, nem mesmo os

gestores das políticas públicas se autorizam ao debate.

Talvez esses artigos trazidos até agora evidenciam uma transição quanto ao objeto da

psicologia. No momento em que ela passa a ocupar um lugar na saúde, mais especificamente

na saúde coletiva, algumas novas questões se colocam a ela. Questões que vão além do

indivíduo x sociedade ou individual x coletivo. Seu foco de investimento, seu 'objeto' de

intervenção não é mais o psíquico, não é mais a patologia, e sim, a promoção de saúde de um

8 Por exemplo, Paim e Almeida Filho (1998); Luz (1991); Campos (2003).
9 Este texto e fruto de uma palestra realizada pela autora no V Fórum Social Mundial, em 2005, em Porto
Alegre.
61

coletivo. Talvez resida aí a inquietação que trazíamos no início da dissertação, quando do

descontentamento frente a algumas produções científicas sobre a clínica. Ainda não nos

sentimos – aqui falo especificamente dos profissionais psi – autorizados a falarmos daquilo

que não conhecemos, e continuamos fazendo críticas a conceitos e teorias que não dizem mais

respeito da psicologia nesta nova ordem discursiva e institucional na qual ela está inserida.

Benevides (2005) nos dá algumas pistas sobre a despolitização das práticas psi10. Talvez

estas mesmas pistas podem ser pensadas para a Psicologia enquanto disciplina da saúde:

[...] é a partir da fundação da Psicologia nestas dicotomias que o individual se separou

do social, que a clínica se separou da política, que o cuidado com a saúde das pessoas se

separou do cuidado com a saúde das populações, que a clínica se separou da saúde

coletiva, que a Psicologia se colocou à margem de um debate sobre o SUS (p. 22).

Não é mais nem somente o biológico, nem somente o social, nem somente o psíquico

que estão em jogo. São todos eles e mais alguns outros atravessamentos que constituem

aquilo que nomeamos de “condições de vida de uma população”, isto é, aquilo que nomeamos

na saúde coletiva enquanto promoção de saúde. Nesta esfera, são outros olhares e outras

práticas que estão sendo demandadas. Talvez resida aí a transdisciplinaridade tanto sugerida

pelos autores outrora citados. Talvez a questão epistemológica sobre a constituição do objeto

da saúde coletiva seja anterior a formulação de programas e projetos de intervenção, como é o

caso da clínica ampliada.

No entanto, Gastão Wagner de Sousa Campos é quem começa a nos dar os primeiros

indícios daquilo que se entende por clínica ampliada – ou talvez seja ele quem começa a

nomear a clínica enquanto ampliada, que começa a se apropriar do termo. Segundo o autor, a

reforma da clínica moderna dá-se através do deslocamento da ênfase na doença para o

centramento sobre o sujeito concreto.

10 Antes de Benevides, Cecília Coimbra (1995, 2005) já trazia o debate sobre a despolitização das práticas psi.
62

Centrar a ação clínica sobre o Sujeito, tudo bem, no entanto, este Sujeito seria um

Sujeito concreto, não somente marcado por biografia singular, mas também seu corpo e

sua dinâmica corporal estariam marcados por uma singularidade: algum tipo de

enfermidade, ou de sofrimento ou de deficiência relativa à maioria dos circundantes em

um dado contexto social específico. Pôr a doença entre parênteses é um ótimo exercício

para quebrar a onipotência dos médicos, mas nem sempre ajuda o enfermo. Evita que

sofra iatrogenia, intervenções exageradas, mas não, necessariamente, melhora sua

relação com o mundo. Como ressaltar o Sujeito trazendo junto sua integralidade

humana; humanidade que, no caso, inclui também distúrbios, sofrimentos, dores, risco

de morte, doença enfim? (Campos, 2003, pp. 54-5).

O autor sugere, portanto, uma ampliação do objeto de saber e de intervenção da clínica.

O movimento da clínica é o mesmo do movimento do conceito de saúde na saúde coletiva: da

enfermidade como objeto de conhecimento e de intervenção, inclui-se também o sujeito e seu

contexto como objeto de estudo e de práticas da clínica (Campos, 2003). Dessa forma, ao

adjetivarmos o substantivo clínica, estamos acrescentando algo a ele. No nosso caso, estamos

qualificando a clínica. A pergunta que surge é 'com o que' estamos a qualificando.

Campos e Amaral (2007) sugerem duas ampliações fundamentais à clínica: uma diz

respeito ao objeto de trabalho e a outra ao objetivo do trabalho clínico. Na primeira, referem-

se “aquilo sobre o que aquela prática se responsabiliza” (p. 852), ou seja, diferentemente da

medicina tradicional (à qual se vincula o 'velho' conceito de clínica), onde a doença é o foco

de tratamento, temos uma ampliação para também os problemas de saúde, onde o risco e a

vulnerabilidade das pessoas entram em jogo. Isto é, “não há problema de saúde ou doença

sem que estejam encarnadas em sujeitos, em pessoas” (p. 852).

Quanto ao objetivo do trabalho clínico, vê-se a ampliação em busca da autonomia dos


63

usuários. Autonomia entendida, neste contexto, como a capacidade do usuário de

compreender e lidar com a rede de dependência que será submetido. Além da produção de

saúde (por meios curativos, preventivos, reabilitação ou cuidados paliativos), a clínica

ampliada se responsabilizará também “pelo aumento da capacidade dos usuários

compreenderem e atuarem sobre si mesmo e sobre o mundo da vida” (Campos & Amaral,

2007, p. 852). Ou seja, essas duas ampliações trazidas desafiam os trabalhadores em saúde a

lidarem não mais somente com a dimensão biológica da vida, para abarcarem também as

dimensões social e subjetiva, indo ao encontro da proposta do conceito de saúde, onde o

sujeito é compreendido em suas dimensões biopsicossociais.

Nesse sentido, a clínica ampliada entra na ordem discursiva da saúde. De um poder

voltado ao corpo – anátomo-política, vimos surgir também um poder voltado à vida –

biopolítia. É o biopoder enquanto racionalidade governamental do século XXI se organizando

e tomando corpo num Brasil em face de construção de suas políticas públicas. Uma resposta à

ordem neoliberal, onde a população passa a ser foco de investimento.

Para tanto, também, há alguns elementos da conjuntura científica e de política de saúde

que são favoráveis a estimular essa abertura cultural de médicos e de outros profissionais.

Além de uma aproximação de áreas do conhecimento que têm um entendimento sobre “o

funcionamento do sujeito quando considerado para além de sua dimensão orgânica ou

biológica” (Campos & Amaral, 2007, p. 853), como, por exemplo, a Psicologia, a

Antropologia, as Ciência Sociais, a própria Saúde Coletiva, há, também, programas e políticas

governamentais investindo nestas diretrizes.

Fim da pausa.
64

3.3 Do sujeito biológico ao sujeito biopsíquico: eis a ampliação!

Após a pausa, retomamos os documentos do Ministério da Saúde (Clínica Ampliada e

Clínica Ampliada e Compartilhada) para evidenciarmos as regularidades dos discursos que

produzem o(s) sujeito(s) da clínica através de alguns enunciados. Diríamos que esta pausa

talvez tenha nos trazido as maiores evidências para identificarmos os elementos que compõem

a “ampliação da clínica”. As dúvidas e colocações nela trazidas, são indícios para algumas

respostas às questões que nos fizemos anteriormente. Vejamos!

Segundo Campos (2003), “[...] a Clínica segue sendo uma instituição importante e

influente. Um espaço em que as pessoas investem afetos e esperanças, onde ainda se

produzem valores de uso e, inevitável, disputa-se poder” (p. 63). No campo da saúde, vê-se os

jogos de poder através das diversas disciplinas que compõem seu campo. Esses jogos são

evidenciada de diferentes formas, seja por meio de tecnologias de atenção ou modelos de

gestão, por exemplo.

Na saúde pública, o conceito de saúde – e consequentemente suas práticas – estavam

vinculados ao saber médico, numa intervenção voltada ao biológico, sendo as prevenções

muito mais epidemiológicas. Na saúde coletiva, com a incorporação de novas áreas do

conhecimento, e, em decorrência disso, mudanças conceituais, o poder se capilariza

(Foucault, 2007) e as práticas que emanam muitas vezes dizem de uma articulação estratégica

de algumas disciplinas. A clínica ampliada é um exemplo disso. Isto é, como veremos a

seguir, a clínica – que antes era uma clínica médica, voltada ao biológico – amplia-se com a

incorporação de alguns conceitos e técnicas da psicologia.

Veremos que a clínica ampliada nada mais é que uma clínica “biopsico”, onde a

medicina e a psicologia se aliam naquilo que delas é característico e específico. A psicologia

entra na área da saúde através da psicanálise. É através daquela que talvez seja sua
65

especificidade mais legitimada no campo científico que a psicologia consegue se enquadrar e

ter espaço na saúde. Ou mais ainda, como nos diz Rose (2008), “[porque] a psicologia através

do século XX ajudou a construir a sociedade em que nós vivemos e também o tipo de pessoa

em que nos transformamos” (p. 155).

Nesse âmbito, convém assinalar que parte do aporte significativo da psicanálise no

remanejamento dos paradigmas da Saúde foi dada pelo conceito de singularização do

acontecer psíquico. Vale dizer que enquanto a Psiquiatria procedia pelo estabelecimento

da ordenação do mal-estar dentro dos grandes quadros psicopatológicos, a psicanálise

propunha uma abordagem singular do paciente, no sentido de considerar a maneira

própria pela qual os pacientes conseguiam organizar o seu sofrimento dentro de um

sentido possível para eles. Torna-se mais claro que a questão sobre a qual se desenrola o

embate não incide sobre o indivíduo, mas sobre a singularidade do sujeito em sua

dimensão psíquica (Reis et al., 2004, p. 39).

O documento Clínica Ampliada e Compartilhada (2009) inicia respondendo à pergunta

Por que precisamos de Clínica Ampliada. Acentua dois aspectos importantes para a resposta:

o primeiro diz às diferentes correntes teóricas que contribuem ao trabalho em saúde,

acentuando aos enfoques biomédico, social e psicológico; e o segundo refere-se ao

compartilhamento dos diagnósticos e condutas em saúde com os usuários.

Interessante apontar, que não somente nesta resposta, mas nas demais respostas às

perguntas que o documento traz, os enfoques trazidos são somente os biomédicos e

psicológicos. Como o modelo biomédico tem sofrido muitas críticas dos teóricos da saúde

coletiva, a ênfase dada neste documento recai aos aspectos psicológicos. É nesse sentido que

passaremos a descrever e evidenciar alguns marcadores que nos permitem afirmar que o que

amplia na clínica é a psicologia, isto é, a clínica passa a ser não somente mais uma clínica
66

médica, mas também uma clínica psicológica, ou seja, uma clínica biopsico.

Assim, ao trazer o conceito de clínica ampliada e seus cinco eixos fundamentais, o

documento nos apresenta talvez de forma mais objetiva aquilo que entende por ampliação da

clínica. “A Clínica Ampliada busca construir sínteses singulares tencionando os limites de

cada matriz disciplinar (Brasil, 2009, p. 14)”. É através deste enunciado que o documento

evidencia aquilo que ele denomina “compreensão ampliada do processo saúde-doença” (p.

14) – primeiro eixo fundamental descrito. Compreensão ampliada que se limita aos aspectos

psicológicos e biológicos.

No segundo eixo fundamental, descreve “a construção compartilhada dos diagnósticos e

terapêuticas” (p. 15). Acentua a necessidade do compartilhamento dos diagnósticos.

Interessante observar que o primeiro material emitido pelo Ministério da Saúde, em 2004,

sobre a clínica ampliada, era nomeado tão-somente de Clínica Ampliada. Em 2009 vimos

acrescentado o termo compartilhada. A ênfase no material de 2009 recai muitas vezes no

“compartilhamento de diagnósticos”, fato este inexistente no material de 2004. No material

Clínica Ampliada vimos ainda uma concepção de sujeito ligada muito mais à crítica ao

modelo biomédico, ao centramento na doença. Àquilo que herdaria da psicologia ainda

aparece de forma incipiente.

Outro aspecto fundamental da clínica ampliada é a capacidade de equilibrar o combate à

doença com a PRODUÇÃO DE VIDA (Brasil, 2004a, p. 10).

O real significado e as expectativas das pessoas quando procuram um serviço de saúde

precisam ser trabalhados na clínica ampliada, para diminuir o número de doenças

causadas por tratamento médico e para não iludir as pessoas (Brasil, 2004a, p. 16).

Já no documento Clínica Ampliada e Compartilhada há o aparecimento de um

vocabulário da psicologia – principalmente da psicanálise – dando a entender que além da


67

ampliação, o compartilhamento sugerido pelo documento remete às trocas que podem ser

efetivadas entre a Medicina e a Psicologia. Compartilhamento de certa forma de uma mesma

área, uma vez que Sigmund Freud, médico de formação, e precursor da psicanálise, demonstra

em sua teoria alguns resquícios da clínica médica.

[...] por mais que frequentemente não seja possível, diante de uma compreensão

ampliada do processo saúde-doença, uma solução mágica e unilateral, se aposta que

aprender a fazer algo de forma compartilhada é infinitamente mais potente do que

insistir em uma abordagem pontual e individual (Brasil, 2009, p. 15).

Expressões como: “participação e adesão do sujeito no seu projeto terapêutico”,

“Projeto Terapêutico Singular”, “singularidades do sujeito”, “capacidade de escuta”,

“profissionais que apresentem algum sintoma para os serviços de saúde mental”, “capacidade

de ajudar cada pessoa a transformar-se”, “sentimentos inconscientes”, “perguntar por que ele

acredita que adoeceu e como ele se sente quando tem este ou aquele sintoma”, “vínculos e

afetos”, “outras possibilidades de diálogo”, “ouvir as associações causais”, “ajudando o

usuário a ampliar sua capacidade de superar a crise”, “implicações e interações”, “negação da

doença”, “procurar perceber a chamada contratransferência”, “procurar conhecer quais os

projetos e desejos do usuário”, “fazer a 'história de vida', permitindo que se faça uma

narrativa” – são alguns enunciados que nos permitem falar numa ampliação da clínica através

da psicologia.

Já no terceiro eixo, que se refere à “ampliação do 'objeto de trabalho'”, o documento

Clínica Ampliada e Compartilhada traz a discussão sobre o objeto de trabalho do profissional

da saúde, salientando que os profissionais são “responsáveis por pessoas” (p. 16), não

devendo reduzir-se a meros diagnósticos ou procedimentos. Para tanto, há a incorporação

neste documento da proposta de Equipe de Referência e Apoio Matricial, outra cartilha da


68

PNH, que no material emitido em 2004 não apresenta esta interlocução. Vê-se, assim, que a

ampliação da qual o documento nos fala é de uma ampliação no nível das relações, dos

sujeitos.

A própria questão da mudança de uma concepção de indivíduo/pessoa para uma

concepção de usuário/sujeito, remete a uma discussão muito comum na psicologia. Produção

de sujeitos, produção de subjetividade são discursos que, de modo geral, são atrelados à

psicologia. Como afirma Canguilhem (1972), “[o] declínio da física aristotélica, no século

XVII, marca o fim da psicologia como para-física, como ciência de um objeto natural, e

correlativamente, o nascimento da psicologia como ciência da subjetividade” (p. 104).

Rose (2008) nos mostra em seu artigo Psicologia como uma ciência social a

“'psicologização' da vida coletiva” (p. 156), isto é, a forma como problemas sociais são

abalizados em termos psicológicos no século XX. A criminalidade, questões de preconceito,

de educação, de saúde, passam a ser entendidos em termos de “dinâmicas psicológicas das

relações interpessoais” (p. 156).

Assim [...], isso não foi apenas uma questão da psicologia se estabelecer como uma

disciplina ou como uma profissão; é uma maneira característica de pensar sobre

profissões nas ciências sociais, como disciplinas que tentam exercer sua autonomia

como profissões e manter o controle de determinadas técnicas. Mas, com a psicologia

não foi assim. A psicologia foi uma disciplina muito generosa, ela se doou para todos os

tipos de profissões, da polícia a comandantes militares, numa condição de fazê-los

pensar e agir, pelo menos de alguma maneira, como psicólogos (p. 156).

Da mesma forma, vimos isto acontecer na saúde. As novas propostas de atenção e

gestão em saúde remetem a modelos de dinâmica de grupos propostos pela psicologia. Não é

à toa que a PNH traz em seu subtítulo a humanização enquanto “eixo norteador das práticas
69

de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS” (Brasil, 2004b). É a psicologia através de

seus saberes, mantendo e controlando determinadas técnicas de intervenção em saúde. É, de

alguma forma, a disciplinarização de técnicas – e corpos – através de saberes e práticas até

então exclusivas da psicologia.

Sendo um híbrido “entre os projetos administrativos e projetos filosóficos mais antigos”

(Rose, 2008, p. 157), a psicologia passa a ser incorporada pela saúde coletiva, de forma

estratégica, uma vez que ela poderá dar conta de lacunas ainda existentes no projeto do SUS,

principalmente no que diz respeito à gestão.

A psicologia ganhou seu poder [na saúde], precisamente pela necessidade desses órgãos

de administrar seres humanos à luz de um conhecimento de sua natureza, e, fazendo

isso, ajudou a dar uma nova legitimidade à autoridade: a autoridade deixou de ser

arbitrária (Rose, 2008, p. 158).

O quarto eixo fundamental da clínica ampliada é “a transformação dos 'meios' ou

instrumentos de trabalho”. Neste eixo “a capacidade de escuta do outro e de si mesmo, a

capacidade de lidar com condutas automatizadas de forma crítica, de lidar com a expressão de

problemas sociais e subjetivos, com família e com comunidade” (Brasil, 2009, p. 17) são

elencados enquanto técnicas/instrumentos de trabalho que são necessários à clínica ampliada.

Interessante perceber a incorporação de termos da psicologia na descrição das características

que são esperadas no ambiente de trabalho.

Por fim, o quinto eixo, trata do “suporte para os profissionais da saúde”. Talvez mera

coincidência, no entanto, a descrição do eixo nos remete à supervisão e/ou

terapia/acompanhamento individual que é indicado aos profissionais da psicologia. “É

necessário criar instrumentos de suporte aos profissionais da saúde para que eles possam lidar

com as próprias dificuldades, com identificações positivas e negativas, com os diversos tipos
70

de situação” (Brasil, 2009, p. 18).

Dessa forma, percebemos o quanto os eixos fundamentais da clínica ampliada estão

atrelados a conceitos e práticas da psicologia. Percebe-se que a ampliação da clínica dá-se,

como já mencionamos, através da psicologia, como evidenciamos com os enunciados acima.

3.4 O sujeito autônomo: o sujeito da clínica ampliada

Entramos agora na produção do sujeito da clínica ampliada, ou seja, no sujeito

autônomo. Tanto no material Clínica Ampliada quanto no Clínica Ampliada e Compartilhada

encontramos uma afirmação da necessidade do profissional da saúde proporcionar autonomia

ao usuário. Na medida em que governar é exercer uma ação sobre ações possíveis, age-se

sobre os sujeitos que devem ser considerados como livres, como autônomos.

Quanto mais longo for o seguimento do tratamento e maior a necessidade de

participação e adesão do sujeito no seu projeto terapêutico, maior será o desafio de lidar

com o usuário enquanto sujeito, buscando sua participação e autonomia em seu projeto

terapêutico (Brasil, 2009, p. 10).

[...] Isto ajuda a melhor compreender-se e a compreender o outro, aumentando a chance

de ajudar a pessoa doente a ganhar mais autonomia e lidar com a doença de modo

proveitoso para ela (Brasil, 2009, p. 25).

[...] E poder ajudar a pessoa doente a ganhar mais autonomia e lidar com a doença de

modo proveitoso para ela (Brasil, 2004a, p. 14).

E não são somente as práticas específicas – como a clínica ampliada, por exemplo – que

enfatizam a autonomia enquanto pressuposto. Na PNH, como consta na introdução do

documento Cartilha Ampliada, reitera que “os valores que norteiam esta política são a
71

autonomia e o protagonismo dos sujeitos” (Brasil, 2004a, p. 3). Ou seja, enquanto uma

democracia liberal de governo, as políticas públicas seguem uma racionalidade onde “noções

abstratas da liberdade do indivíduo são acompanhadas pela proliferação de práticas

racionalizadas que procuram moldar, transformar e reformar indivíduos” (Rose, 2008, p. 158).

Campos e Amaral (2007) apontam que a ênfase na autonomia remonta às décadas de

1980 e 1990, aparecendo articulada à doutrina neoliberal, pois esta visa maior respeito à

dinâmica de mercado, privatização de serviços públicos, constituição de organizações

autônomas, submetidas a mecanismos de concorrência. “Esse receituário, em teoria, seria

potente para estimular correções de rota, já que seriam eliminados os modelos de gestão

tradicionais dos sistemas públicos, considerados ineficazes e ineficientes” (p. 856).

Dessa forma, a psicologia corrobora com a prática governamental democrática vigente,

uma vez que proporciona tanto tecnologia humana quanto intelectual para regular cidadãos

democraticamente, isto é, “regrá-los através de suas relações com o outro, conhecendo e

modelando essas relações de acordo com uma concepção de como elas funcionam – alinhando

o governo com a dinâmica social daquilo que será governado” (Rose, 2008, p. 159). É a

integração do serviço com a comunidade, dos profissionais da saúde com os usuários e

controle social.

Nesse sentido, “analisar política públicas significa, muitas vezes, estudar o 'governo em

ação'” (Souza, 2006, p. 39). No nosso caso, estudar os efeitos de algumas instituições – como

a psicologia e também a medicina – enquanto balizadoras de algumas ações governamentais.

Interessante perceber que os elementos principais que compõem as políticas públicas nos

ajudam e evidenciar aquilo que Souza (2006) nos coloca como 'governo em ação'. Quais são

eles:

- a política pública permite distinguir o que o governo pretende fazer daquilo que de

fato faz;
72

- a política pública envolve vários atores, sejam eles governamentais ou não;

- a política pública é abrangente, não se restringindo a leis e regras;

- a política pública é intencional;

- a política pública, embora tenha impacto a curto prazo, é uma política de longo prazo.

No momento que entendemos a política pública num âmbito de intencionalidade,

podemos também olhar os documento Clínica Ampliada e Clínica Ampliada e Compartilhada

buscando evidenciar suas intencionalidades. Neste caso, a busca pela produção de uma

sujeito/usuário cidadão e autônomo, onde os pressupostos da cientificidade psicológica

possam auxiliar na produção deste sujeito, através de uma clínica não mais focada na doença

e sim no sujeito doente.

A subjetivação é, assim, o nome que se pode dar aos efeitos da composição e da

recomposição de forças, práticas e relações que tentam transformar – ou operam para

transformar – o ser humano em variadas formas de sujeito, em seres capazes de tornar a

si próprios como os sujeitos de suas próprias práticas e das práticas de outros sobre eles

(Rose, 2001b, p. 143).

Dessa forma, ao entender a clínica ampliada como “um compromisso radical com o

sujeito doente visto de modo singular; assumir a responsabilidade sobre os usuários dos

serviços de saúde; buscar ajuda em outros setores, reconhecer os limites do conhecimento dos

profissionais de saúde e das tecnologias por eles empregadas; e assumir um compromisso

ético profundo” (Brasil, 2004a, pp. 8-9), as ações governamentais já começam a dar indício de

como governam os sujeitos-cidadãos e sujeitos-trabalhadores.

Assim, voltamos à nossa pausa, onde elencamos algumas inquietações e algumas

evidências – tanto no plano acadêmico quanto no plano governamental – que agora passam a
73

tomar outro sentido. Pensar que os teóricos que são reconhecidos no campo da saúde coletiva

foram (e são) vinculados ao governo, faz-nos ler e refletir sobre seus escritos de outra forma.

No momento que escrevem as e sobre as políticas públicas, suas produções seguem uma

mesma intencionalidade. Interessante perceber que Regina Benevides de Barros é psicóloga e,

dessa forma, quando trazíamos do estranhamento dela não falar sobre a clínica ampliada em

seus artigos, permite-nos pensar que não havia necessidade para isso. Não havia necessidade,

pois a intencionalidade da política era de formar cidadãos autônomos e, dessa forma, falar em

implicação política diz muito mais desta intenção do que falar propriamente o que é a clínica

ampliada. A clínica ampliada é a própria psicologia no espaço das políticas públicas. E isto,

para ela, já era evidente.

Para mim, o que está em jogo aqui não é a questão psicológica de produção de

subjetividades, uma questão de alterar as maneiras pelas quais indivíduos se

“relacionam com seu eu”. Para mim, isso aprece ser uma questão aberta à investigação

histórica – uma história das relações que os indivíduos têm consigo mesmos. A

psicologia nasceu, como uma disciplina, dentro de uma variedade de projetos políticos

para o controle de indivíduos: teve uma vocação social desde o início (Rose, 2008b, p.

158).

Como salientamos no início do capítulo, a política de humanização, enquanto política

que tranversaliza as ações em saúde, corrobora com o incentivo à autonomia do usuário-

cidadão. As estratégias de governo se direcionam a equipes de referência e projetos

terapêuticos singulares, onde há a possibilidade “de uma gestão mais centrada nos fins

(coprodução de saúde e de autonomia) do que nos meios (consultas por hora, por exemplo) e

tende a produzir maior corresponsabilização entre profissionais, equipe e usuários” (Brasil,

2009, p. 32).
74

As equipes de referência aparecem enquanto solução para uma gestão menos

verticalizada, mais humanizada, pois a intenção é a de “possibilitar a troca de saberes e de

práticas em ato, gerando experiência para ambos os profissionais envolvidos” (Brasil, 2009, p.

33). Além disso, há uma responsabilização da equipe pelo usuário. Ao mesmo tempo em que

entendem que o usuário não será mais atendido, “aos pedaços” (p. 34), o sujeito é de

responsabilidade da equipe de referência, em todas as instâncias. Segundo o documento

Clínica Ampliada e Compartilhada (2009), a Equipe de Referência

é importante para a humanização porque, se os serviços e os saberes profissionais

muitas vezes “recortam” os pacientes em partes ou patologias, as Equipes de Referência

são uma forma de resgatar o compromisso com o sujeito, reconhecendo toda a

complexidade do seu adoecer e do seu projeto terapêutico (p. 39).

Vêem-se, mais uma vez, os discursos – que também são práticas – direcionando-se e

intensificando-se na produção de sujeitos livres e autônomos; governados pela liberdade e

autonomia. O Projeto Terapêutico Singular busca a “singularidade (a diferença) como

elemento central de articulação (lembrando que os diagnósticos tendem a igualar os sujeitos e

minimizar as diferenças)” (Brasil, 2009, p. 40). Uma forma encontrada para também “cuidar

do cuidador”, uma vez que este projeto abre espaço para as trocas entre a equipe e o

compartilhamento das dificuldades. O próprio documento equipara o Projeto Terapêutico

Singular à antiga “discussão de caso”. No entanto, no Projeto Terapêutico Singular, o usuário

participa da construção, pois “o caminho do usuário ou do coletivo é somente dele, e é ele que

dirá se e quando quer ir, negociando ou rejeitando as ofertas da equipe de saúde” (p. 47).

A Clínica Ampliada e a proposta do Projeto Terapêutico Singular são classificadas

enquanto solução para casos de difícil resolução que esbarram na clínica tradicional. A busca

por autonomia, tanto de usuários quanto trabalhadores, é intensificada nos discursos que
75

circundam o material de 2009. Governar por meio de estratégias de produção de si tem sido,

parece-nos, a saída das políticas públicas em saúde.


Reflexivo
CONCEITO DE INTEGRALIDADE NA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL NO
CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA
THE CONCEPT OF INTEGRALITY IN MENTAL HEALTH CARE IN THE CONTEXT OF PSYCHIATRIC REFORM

CONCEPTO DE INTEGRALIDAD EN LA ATENCIÓN EN SALUD MENTAL DENTRO DEL CONTEXTO DE LA


REFORMA PSIQUIÁTRICA

Cíntia Nasi1
Adriana Serdotte Freitas Cardoso2
Jacó Fernando Schneider3
Agnes Olschowsky4
Christine Wetzel5

RESUMO
A integralidade, no campo da saúde mental, visa permitir o contato e o acolhimento do sujeito em sofrimento
psíquico, com destaque na vertente assistencial, para a construção de redes de atenção integral em saúde mental.
O objetivo com este estudo é refletir sobre o princípio da integralidade e sua inserção na área da saúde mental.
Também se discute sobre esse princípio na rede de serviços substitutivos em saúde mental como dispositivo indicador
de uma nova maneira de pensar e de atenção em saúde mental. Para tanto, faz-se necessário que os profissionais
dos serviços de saúde desenvolvam um atendimento integral aos seus usuários, compartilhando experiências, com
a participação da família e da comunidade.
Palavras-chave: Saúde Mental; Assistência Integral à Saúde; Serviços de Saúde Mental.

ABSTRACT
In mental health care, integrality aims to enable an initial contact of patients with mental suffering. It emphasizes
the assistential service and the construction of full attention networks in mental health. This article aims to reflect
about the concept of integrality and its application in mental health care. It also discusses the importance of integrality
in the network of substitute mental health services as a means of promoting new ways of thinking about mental
health. With this goal, it is necessary that healthcare professionals provide an integral assistance to the patients by
sharing their experiences and stimulating the participation of the family and the community.
Key words: Mental Health; Comprehensive Health Care ; Mental Health Services.

RESUMEN
La integralidad, dentro del campo de la salud mental, tiene por finalidad permitir el contacto y la acogida al sujeto
en sufrimiento psíquico, sobre todo en el aspecto asistencial, para construir redes de atención integral en salud
mental. Este estudio tiene por objetivo reflexionar sobre el principio de la integralidad y su inserción en el ámbito
de la salud mental. Se debate también este principio en la red de servicios sustitutivos en salud mental como
dispositivos indicadores de una nueva forma de pensar y de asistencia en salud mental. Es necesario que los
profesionales de los servicios de salud dispensen atención integral a sus usuarios, compartiendo experiencias con
participación de la familia y de la comunidad.
Palabras clave: Salud Mental; Atención Integral de Salud; Servicios de Salud Mental.

1
Enfermeira. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: cintianasi@yahoo.com.br.
2
Enfermeira. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: aserdotte@hcpa.ufrgs.br.
3
Enfermeiro. Doutor em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). E-mail: jaco_schneider@uol.com.br.
4
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). E-mail: agnes@enf.ufrgs.br.
5
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Departamento de Assistência e Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: cwetzel@ibest.com.br.

remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 147-152,


139-146, jan./mar., 2009 147
A Antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana

INTRODUÇÃO redefinição mais radical da equipe de saúde e seus


processos de trabalho.1
A integralidade, como um dos princípios que norteiam
o Sistema Único de Saúde (SUS), vem ganhando Desse modo, a atenção integral em saúde pressupõe
destaque no campo da saúde mental, especialmente a que, além das ações curativas, tenha-se um enfoque
partir do Movimento da Reforma Psiquiátrica, que se especial nas ações de promoção, de prevenção e de
desdobra na sua vertente assistencial em uma proposta reabilitação, bem como que a organização dos serviços
de construção de redes de atenção integral na saúde e das práticas de saúde deve relacionar as ações em
mental. saúde coletiva com a atenção individual, sendo
necessário, para tanto, a horizontalização dos
A integralidade assume posição importante nas programas.7
discussões presentes desde a década de 1970, com as
manifestações pela redemocratização do País e pelo A noção de integralidade não admite conceber a ideia
Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, ganhando de que um usuário com várias enfermidades necessite
destaque como uma das diretrizes do Sistema Único encaminhar-se a pontos distintos do sistema de saúde
de Saúde (SUS), sob a denominação de “atendimento para a resolução de seus problemas. As práticas das
integral”. Tal diretriz tem sua relevância, já que vai contra equipes de saúde devem ser pensadas vislumbrando o
a formação médica de base flexneriana, reducionista, horizonte da população atendida, e não este ou aquele
que privilegia a especialização.1 programa do Ministério da Saúde. Assim, os serviços de
saúde não podem estar organizados exclusivamente
Nesse sentido, esse conceito passa a ser um dos para atender às doenças de uma comunidade, mas é
princípios que direcionam e ampliam as ações de saúde indispensável que sejam capazes de apreender
na busca de uma transformação no modelo de atenção, amplamente as necessidades da sua população, mesmo
e sua incorporação possibilita o questionamento do aquelas não contempladas ou que venham a surgir ao
paradigma biomédico, bem como uma crítica das longo do processo de trabalho.1
práticas de saúde.
Outro aspecto é que o conceito de integralidade
Vários autores têm discutido e desenvolvido esse também se aplica às respostas governamentais aos
conceito, evidenciando a importância dele no problemas de saúde. Também nas políticas é
desenvolvimento de saberes e práticas articulados com fundamental a busca de uma visão mais abrangente
a proposta do SUS.1-4 daqueles que serão alvo das políticas de saúde e a
Não se propõe, aqui, discutir a integralidade como um recusa em aceitar um recorte do problema que o reduza
conceito único, mas, sim, como articulador de diferentes a algumas das suas dimensões, o que configura a
olhares que permitem a (re)invenção da saúde numa integralidade.1
ótica mais flexível, criativa, que agrega diferentes Com base nessas delimitações, busca-se refletir sobre
saberes e modos de intervenção. o princípio da integralidade e sua inserção na área da
Assim, a integralidade é entendida em várias dimensões, saúde mental. Para tanto, pensamos que o conceito da
que não são estanques ou lineares, mas se entrelaçam integralidade pode ser discutido tomando por base três
e se complementam tendo em vista a complexidade sentidos propostos para o conceito integralidade como
do objeto da saúde. norteador de práticas, de organizações de serviços e
de políticas de saúde.1
Com base nesse fato, uma das dimensões do conceito
de integralidade remete à necessidade da identificação
do sujeito em sua totalidade, preconizando que o A INTEGRALIDADE NA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
cuidado de pessoas, grupos e coletividade consiste em
compreender o indivíduo nos contextos social, político Para discutirmos o princípio da integralidade na atenção
e histórico, relacionando-o à família, ao meio ambiente em saúde mental, faz-se necessária a contextualização
e à sociedade da qual ele faz parte.5 da transformação do modelo assistencial nesse campo
que, gradativamente, passa de uma lógica manicomial,
A ideia de que o indivíduo é um “ser humano completo” hospitalocêntrica, para o modo psicossocial, com a
e que aspectos do seu contexto devem ser considerados valorização do sujeito em sofrimento psíquico.
é uma reflexão que estabelece uma crítica à visão
reducionista e fragmentária dos sujeitos. Essa visão tem Tal transformação passou a ocorrer com o Movimento
suas origens na incapacidade de estabelecer uma da Reforma Psiquiátrica Brasileira, em um contexto de
relação com o outro, a não ser transformando-o em um redemocratização do País, e do projeto da Reforma
objeto.6 Sanitária. Esse movimento, de contestação da
psiquiatria vigente, foi influenciado, principalmente,
Esse aspecto da atenção integral está relacionado à pela psiquiatria democrática italiana, por volta do final
dimensão das práticas, cabendo quase que da década de 1970, que buscou operar uma mudança
exclusivamente ao profissional realizá-la. Refere-se a da psiquiatria tradicional para o modo psicossocial.
atributos ligados ao que se pode considerar uma boa
prática. Mas, mesmo que a postura dos profissionais seja Costa-Rosa 8 considera a subjetividade do doente
algo fundamental para a integralidade, em muitas mental, valorizando-o como cidadão e singularizando-
situações ela só se realizará com a incorporação ou lhe a existência. A luta é a favor da desospitalização e

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da desmedicalização, recolocando o usuário como organização delas. O cuidado ganha materialidade na
sujeito de sua vida. A interdisciplinaridade aparece atitude dos profissionais, nas tecnologias priorizadas,
objetivando a integralidade da atenção, considerando caracterizando-se como uma unidade nucleadora de
a liberdade do usuário, sua circulação nos serviços e na saberes e práticas sobre a integralidade, pois revela-se
comunidade e a territorialização do atendimento como como um fio condutor para a construção de saúde.12
modos de intervenção.
Assim, o cuidado pressupoõe capacidade de escuta e
Atribui-se, então, no modo psicossocial, importância ao disponibilidade para acolher e interagir com os sujeitos
sujeito, considerando-o como participante principal do que demandam atenção em saúde. O cuidado também
tratamento. Esse sujeito é visto como um ser inserido deve ser orientado para a busca da reabilitação
em um grupo familiar e social, que deve ser considerado psicossocial dos sujeitos e da reinserção social deles na
como agente das mudanças buscadas e incluídas no comunidade.
tratamento.8 Na saúde mental, podemos entender a integralidade
Na saúde mental, a integralidade da atenção objetiva como uma ação compromissada para romper
permitir o contato e o acolhimento do sofrimento barreiras, desmontando o ideal de hospitalização,
psíquico, apresentando respostas diferentes daquelas medicalização, isolamento e perda da autonomia
orientadas pelo modelo biomédico, que tem a doença como a melhor forma de intervenção. O que se procura
como foco de intervenção. O desafio que se coloca é é resgatar um conceito mais positivo sobre a loucura,
romper como a visão linear para ações de saúde e exigindo que o cuidado ocorra em diferentes espaços
abarcar uma gama plural de outros profissionais para e uma prática assistencial que considere a
uma prática clínica que exige individualização do sujeito subjetividade e a singularidade do sujeito em
para que sua subjetividade seja escutada.9 sofrimento psíquico, na qual a inclusão, a cidadania, a
autonomia e a solidariedade aparecem como
A noção de integralidade pode ser considerada, conceitos norteadores para ações integrais.13
também, como um eixo norteador de práticas e saberes
que não estão restritos à organização de serviços ou à Ainda contrapondo-se à lógica manicomial, surgem
criação de modelos ideais, sendo essa noção questões relativas à natureza ideológica e técnica, no
compreendida como acesso e equidade. Para tanto, não que diz respeito à condenação da segregação e ao
basta a criação de novas unidades assistenciais, mas, isolamento como método terapêutico. Nesse sentido,
sim, a ruptura com os valores segregadores de uma a negação do papel do isolamento em hospitais
cultura psiquiátrica centrada no manicômio.10 psiquiátricos e a compreensão de que o que deve ser
cuidado é o indivíduo e seus problemas, e não somente
Nesse sentido, concordamos que não é suficiente o seu diagnóstico, é que determinam um olhar integral
apenas a criação de novos serviços de saúde mental no atendimento em saúde mental.4
para a busca do princípio da integralidade, mas é
necessário articular propostas que considerem as As Portarias SNAS n° 189, de 19 de novembro de 1991,
dimensões políticas, sociais, técnicas e científicas para e a SNASn° 224, de 29 de janeiro de 1992, que
a construção de modos de atenção orientadas pelo regulamentaram a Política Nacional de Saúde Mental
paradigma psicossocial, procurando garantir uma no País, são contribuições importantes para a
ruptura com o atendimento prestado no modelo substituição da lógica manicomial para a psicossocial,
biomédico. incentivando a integralidade da atenção em saúde
mental.14
Essa transformação na saúde mental pressupõe a
inclusão de outros paradigmas na atenção aos sujeitos Além do mais, a Lei Federal nº 10.216, de abril de 2001,
em sofrimento psíquico, substituindo a palavra “tratar”, redireciona o modelo assistencial em saúde mental e
que leva a uma nomeação diagnóstica, por “cuidar”, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
termo que inclui várias dimensões a serem superadas portadoras de transtornos mentais. Destaque-se que nessa
no cuidado ao sujeito, uma vez que a pessoa em lei está previsto o atendimento integral ao sujeito em
sofrimento psíquico não pode ser reduzida a um sofrimento psíquico com serviços médicos, psicológicos,
conjunto de sintomas e causas.4 ocupacionais, de assistência social e de lazer.14
A noção de cuidado não é vista como nível de atenção Nossa posição vai ao encontro de que esse novo modo
do sistema de saúde ou como um procedimento técnico de cuidar em saúde mental preconiza a necessidade de
simplificado, mas como uma ação integral, que é tratar, uma Rede de Atenção Integral em Saúde Mental que
respeitar, acolher, atender o ser humano em seu ofereça um cuidado não excludente, de escuta, e
sofrimento.11 possibilite a inserção social dos sujeitos em sua
comunidade, em articulação com sua família.
A atitude de cuidar se apresenta quando alguém tem
importância para nós, recolocando para a saúde a Assim, a Rede de Atenção Integral em Saúde Mental
importância da subjetividade, pois o cuidado constitui deliberada na Segunda Conferência Nacional de Saúde
o meio e o fim das ações desenvolvidas pelos Mental é definida como “um conjunto de dispositivos
profissionais, servindo para interrogar os modos como sanitários e socioculturais que partam de uma visão
são produzidas as intervenções, bem como a integrada de várias dimensões da vida do indivíduo, em

remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 147-152, jan./mar., 2009 149


A Antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana

diferentes e múltiplos âmbitos de intervenção: problemas e suas potencialidades, e constituem locais


educativo, assistencial e reabilitação”.15 em que as crises devem ser enfrentadas, resultado que
são, geralmente, de fatores do indivíduo, de sua família,
Entendemos que essa rede deve ser formada por
eventualmente de seu trabalho e, seguramente, de seu
diversos dispositivos, substitutivos à lógica manicomial,
meio social.4
como CAPs, ambulatório especializado, internação em
hospital geral, residenciais terapêuticos, atenção nas Nessa posição de articulação e construção da Rede de
unidades básicas de saúde. Além do mais, essa rede de Saúde Mental, os CAPs devem cumprir sua função na
atenção deve buscar articulação com serviços de outras assistência direta e na regulação da rede de serviços de
áreas, como o serviço social, a cultura, a justiça, a saúde, com um trabalho em conjunto com as equipes
habitação, dentre outros. Corroborando, Alves 4 de saúde da família e agentes comunitários, bem como
considera a intersetorialidade e a diversificação como trabalhar na promoção da vida comunitária e da
componentes indissociáveis da integralidade, já que autonomia dos usuários, articulando os recursos
para lidar com problemas complexos há que diversificar existentes em outras redes sociossanitárias, jurídicas,
ofertas de maneira integrada e buscar articulação em cooperativas de trabalho, escolas, empresas, etc.18
outros setores.
Desse modo, a integralidade da atenção na Rede
Identificamos a riqueza de articulações em nível setorial Integral de Saúde Mental deve considerar o modo
para a área da saúde mental, já que nesse campo não singular das pessoas com transtornos mentais, ou seja,
basta somente o oferecimento de dispositivos ligados sua relação consigo e com o mundo, remetendo-nos a
à saúde, mas, também, de setores de cultura, lazer, de uma noção de clínica ampliada que organiza o cuidado
moradia, que possibilitem maior circulação dos sujeitos com a ideia de encontro do serviço com a comunidade
em sofrimento psíquico no espaço da cidade, e com o sofrimento psíquico apresentado pelo usuário.
promovendo a reinserção social e o resgate da O dia a dia dos serviços e seu contexto são elementos
autonomia. fundamentais, pois é nesse lugar que a vida acontece e
o cuidado é oferecido.
Para a construção da rede integral de atenção em saúde
mental, alguns conceitos e referências devem ser Além disso, é fundamental que o trabalho dos serviços
debatidos e incorporados, como a universalidade e a da Rede de Saúde Mental seja desenvolvido por uma
integralidade da atenção, a equidade, o sistema de equipe interdisciplinar de profissionais que busque a
referência e contrarreferência, a participação popular, interação interdisciplinar, com troca e produção de
as mediações sociais, a inserção social nas relações de saberes, visando à integralidade no atendimento dos
trocas sociais, a horizontalidade do sistema, a usuários. Entretanto, identificou-se que tal atendimento
habilitação social e a perspectiva da convivência dos interdisciplinar ainda é um desafio que necessita ser
diferentes.16 enfrentando pelas equipes de saúde mental, já que
muitas vezes o atendimento tem sido prestado por
A noção de integralidade da atenção ocorre pelo
profissionais atuando em uma mesma disciplina, em
reconhecimento no cotidiano dos serviços de que cada
conformidade com o modelo biomédico, sem haver
pessoa é um todo indivisível e social, que as ações de
complementaridade entre os saberes.
promoção, proteção e recuperação da saúde não
podem ser fragmentadas e que as unidades prestadoras Especificamente sobre o cuidado em Saúde Mental na
de serviço, em seus diversos graus de complexidade, Atenção Básica, as equipes de saúde da família devem
configuram-se como um sistema indissociável, capaz de ser preparadas na concepção geral da reforma
oferecer atenção em saúde mental. psiquiátrica e da reforma sanitária, considerando ambas
como processos sociais complexos cujo objetivo é a
Para promover a integralidade nas ações de saúde
melhoria da assistência médica quanto à promoção da
mental aos usuários em sofrimento psíquico, é
saúde e à construção de consciência sanitária nas
necessário o envolvimento de todos os níveis de
comunidades.19
atenção em saúde, desde os serviços da rede básica de
saúde, como os serviços especializados, como os CAPs, Saliente-se que, para a efetivação de uma Rede de
até a internação em hospital geral. Destaque-se que Saúde Mental que promova a autonomia, o respeito, a
nessa Rede de Atenção em Saúde Mental, os CAPs liberdade, a reinserção social dos seus usuários e a
deveriam ter a função de articulação, possibilitando almejada consolidação da Reforma Psiquiátrica
melhor fluxo e atendimento. Brasileira, é necessário muito mais que portarias e
legislações, embora se reconheça a extrema
Os CAPs compreendem unidades de atendimento em
importância que elas representam para a saúde mental.
saúde mental que oferecem aos usuários um programa
Para que tais parâmetros se efetivem, é fundamental a
de cuidados intensivos elaborado por uma equipe
criação de serviços de base territorial que fortaleçam a
multidisciplinar. 17 São dispositivos estratégicos,
rede de atenção à saúde mental, além do envolvimento
concebidos, inicialmente, como alternativa terapêutica
dos atores que fazem parte dela, ou seja, profissionais,
em substituição ao modelo centrado no hospital
usuários, familiares e comunidade.
psiquiátrico. Por serem comunitários, inserem-se em
determinada cultura, em território definido, com seus

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CONSIDERAÇÕES FINAIS consolidação desses, para que atuem possibilitando
diversas ofertas para uma diversidade de demandas dos
Assim, a compreensão da integralidade da atenção está sujeitos em sofrimento psíquico.
permeada pelo entendimento de que o sujeito é um
ser de amplas e diferentes necessidades que não podem Dessa forma, deve-se ter atenção para que os
ser abordadas de forma isolada e, por vezes, profissionais dos serviços de saúde prestem um
descontínua. Ao contrário, para que se possa planejar e atendimento integral, compartilhando experiências,
garantir a promoção e o exercício da saúde como com o envolvimento de familiares e da comunidade. É
qualidade de vida, é fundamental gerar o máximo de preciso disponibilizar um cuidado com o ser e não
interfaces possíveis, sejam entre as diferentes pastas e somente com a doença, levando em consideração as
serviços do campo da saúde, sejam entre outros experiências dos sujeitos, especialmente em serviços
campos.20 substitutivos ao modelo manicomial.

Entretanto, a integralidade talvez só se realize com o Torna-se necessário assumir a integralidade como um
estabelecimento de uma relação sujeito-sujeito, quer eixo norteador de novas formas de agir social em saúde,
nas práticas nos serviços de saúde, quer nos debates de uma nova forma de gestão de cuidados nas
sobre a organização dos serviços, quer nas discussões instituições de saúde, permitindo o surgimento de
sobre as políticas.1 experiências inovadoras na incorporação e no
desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais. É
Há necessidade de investimento na rede de serviços de preciso exercitar a prática de compartilhar saberes e
saúde mental tanto em relação a criação de serviços olhar os problemas em conjunto para, assim, cuidar de
que se contraponham à lógica manicomial como na forma integral.

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A Antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana

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Data de submissão: 24/6/2008


Data de aprovação: 2/6/2009

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O CUIDADO EM SAÚDE MENTAL: CAMINHOS POSSÍVEIS NA REDE DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

The Mental Health Care: possible paths in the psychosocial attention’s net

Mariana Peres Trajano¹


Suela Maiara Bernardes²
Magda do Canto Zurba³
_______________________
Artigo encaminhado: 31/03/2017
Aceito para publicação: 09/12/2017

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo apresentar reflexões sobre o tema
cuidado em saúde mental. Será discutido o conceito de Clínica Ampliada e a
trajetória da Psicopatologia, perpassando sua posição tradicional, como entidade
que estuda os transtornos mentais e intervém através das práticas curativas, até sua
posição crítica, onde promove uma nova forma de pensar o cuidado com pessoas
em sofrimento psíquico. Muitos desenhos do cuidado já foram pensados e
planejados. Todavia, os diversos olhares transbordam na prática e iluminam os
desencontros epistemológicos. Os caminhos possíveis neste cenário onde tantas
perspectivas se entrelaçam e se chocam são, em alguns momentos, invisíveis, mas
estão lá, à espreita de uma oportunidade para tomar conta do espaço. Neste
sentido, faz-se necessário pensarmos em premissas para que os conflitos
epistemológicos e práticos não absorvam o cuidado em saúde mental à um lugar
ineficaz e perigoso.
Palavras-Chave: Cuidado em Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica. Clínica.

ABSTRACT: The present study aimed to present reflections about mental health
care. The concept of extended clinic and psychopathology trajectory will be
discussed, extending its traditional position as an entity that studies mental disorders
and intervene through curative practices, to its critical position, where it promotes a
new way of thinking about caring for people in distress psychic. Many models of care
have already been thought out and planned. However, the various glances overflow
in practice and illuminate epistemological mismatches. The possible paths in this
scenario where so many perspectives are intertwined, and clashing are at times
invisible, but there are, on the lookout for an opportunity to take charge of space. In
this sense, it is necessary to think of premises so that epistemological and practical
conflicts do not absorb mental health care into an ineffective and dangerous place.
Keywords: Mental Health Care. Psychiatric Reform. Clinic.

¹ Psicóloga e Mestre Profissional em Saúde Mental e Atenção Psicossocial – UFSC


² Psicóloga e Mestre Profissional em Saúde Mental e Atenção Psicossocial – UFSC
³ Coordenadora do Mestrado em Saúde Mental e Atenção Psicossocial. KOAN -Núcleo de Pesquisa em
Psicologia da Saúde e do Desenvolvimento Humano/UFSC. Departamento de Psicologia - Universidade Federal
de Santa Catarina.

Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 1984-2147, Florianópolis, v.10, n.25, p.20-37, 2018.
1 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES
A Ciência da Saúde, assim como qualquer outra área do conhecimento,
evolui, desenvolve-se, ganha novos atores, perde outros, promove discussões
diferentes. Esta ciência percorreu um caminho importante e o positivismo fez parte
da construção do conhecimento da saúde. Para tanto, o pensamento positivista
atravessou a ciência e não seria diferente no que tange as práticas de saúde mental.
Os manuais de classificação dos transtornos mentais fizeram e ainda fazem parte
deste contexto. Assim, o CID-10 e o DSM-V, por exemplo, trazem ainda a busca por
uma classificação dos transtornos mentais, porém devem ser usados com cautela e
não como único instrumento de compreensão dos transtornos mentais. Logo, no
cuidado em saúde mental, buscamos compreender o sujeito em seu sofrimento
psíquico, sua dimensão histórica e social e não o transtorno mental em si,
dissociado da pessoa.
A herança estigmatizante e normativa das classificações servem de
exclusão e enquadramento social, sem compreender a história de vida do sujeito
que sofre e desconsiderando a construção vivencial e familiar. As formas de
avaliação, como nos manuais classificatórios, e mesmo nas práticas terapêuticas,
carregam em sua trama padrões normativos até os dias de hoje (AMARANTE, 1996;
AMARANTE e TORRE, 2007).
O surgimento do movimento da Reforma Psiquiátrica possibilitou um novo
olhar para a saúde mental, para a loucura, para o diferente. Busca ainda uma
mudança epistemológica da compreensão das pessoas que estão em sofrimento
psíquico e uma transição de paradigma. A loucura pode ser compreendida enquanto
fenômeno social. Retomaremos adiante alguns entraves surgidos também com
ideologias vindas da Reforma Psiquiátrica; pois corremos o risco de negar a doença,
idealizar a loucura e minimizar o sofrimento sentido pelo sujeito (CAMPOS, 2001).
De acordo com Bachelar (1996) não podemos invalidar os conhecimentos e
as ciências tradicionais. Para o autor, o surgimento de novas tendências, modelos e
posturas epistemológicas não significa que as antigas serão abandonadas de uma
hora para outra. Isto porque é difícil abrir mão do conhecido, do usual, do habitual.
Contribuindo com esta ideia de Bachelar (1996), Vasconcellos (2002)
também traz discussões epistemológicas importantes para a Ciência da Saúde. A
autora busca apresentar o novo paradigma da ciência, nomeando-o como
pensamento sistêmico. Isto se dá pelo fato de olhar o fenômeno com uma postura

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21
diferente da tradicional. O pensamento sistêmico favorece o pensamento complexo,
onde o foco é relacional; instável, disseminando a ideia de que não existe uma
causa e um efeito único para os acontecimentos e/ou fenômenos.
Neste sentido, suspender a doença e deixá-la entre parênteses, possibilita
compreender a história da pessoa e sua construção social e histórica. Esta postura
frente ao processo saúde/doença promove olhar para o sujeito, transformando a
clínica tradicional da exclusão social e instituindo a ruptura epistemológica com o
modelo hospitalocêntrico e medicalizante. (AMARANTE e TORRE, 2007).

2 CIÊNCIA TRADICIONAL
O nascimento da Psicopatologia ocorre no século XIX e é concomitante com
a história da loucura, que tem a área médica, mais especificamente a psiquiatria,
como sua detentora. Nesse período, a doença mental tinha como referência o
homem natural e normal, e este era o estado que precedia a doença. Essa
compreensão desvela o caráter positivista da Psicopatologia da época (MOREIRA,
2002).
A função da Psicopatologia Positivista era a teorização dos transtornos
mentais e da psiquiatria e da Psicologia clínica era a terapêutica, a explicação era
necessária, por vezes havia confusão em relação as finalidades de cada área. A
classificação a que a Psicopatologia da época proponha era identificar os sintomas
como normal e patológico. Estudos realizados por Canguilhem (1946), apontavam
que não era a ciência detentora do saber sobre o normal e patológico e sim a vida
enquanto um sistema de valores (MOREIRA, 2002).
As formas de avaliação, como os manuais classificatórios, e mesmo as
práticas terapêuticas são normativas ainda hoje. “Desta forma, é possível perceber
com clareza uma história dos processos avaliativos que demonstra a natureza
normativa e positivista do campo da avaliação e suas práticas” (AMARANTE e
TORRES, 2007, p. 42)

3 REFORMA PSIQUIÁTRICA E A PSICOPATOLOGIA CRÍTICA


Com os movimentos mundiais da Reforma Psiquiátrica, é notório as
transformações que vem acontecendo no campo da Saúde Mental. Franco Basaglia,
importante personagem da Reforma Psiquiátrica italiana, o movimento adquire
caráter de desinstitucionalização do hospital psiquiátrico. Basaglia não concordava

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com o tratamento despendido aos pacientes com transtornos psíquicos nos hospitais
e busca serviços substitutivos à internação psiquiátrica (AMARANTE, 2007).
A busca pela desinstitucionalização acontece devido à prática de poder
exercido pela psiquiatria da época, sendo que os pacientes ficavam longos períodos
internados e eram rendidos a coerção e submissão do modelo psiquiátrico . Assim,
há uma negação do saber psiquiátrico como ideologia e superação do paradigma
psiquiátrico (AMARANTE, 1996; COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2003):
No Brasil, o movimento aconteceu no final dos anos 80. Surge, então, a
possibilidade de cuidar das pessoas denominadas loucas longe da clausura dos
hospitais. Impossível desconsiderar os impactos dos movimentos da Luta
Antimanicomial e Reforma Psiquiatria em nosso contexto atual.
As Políticas de Saúde Mental, que promovem a reinserção psicossocial,
estão em concordância com as inquietações de Amarante (1996) quando o autor
discute sobre a desinstitucionalização da saúde mental e dos sujeitos em sofrimento
psíquico. Para o autor, a desinstitucionalização se dá a partir de algumas facetas:
epistemológica, técnico-assistencial, jurídico-política e cultural.
Entretanto, é na dimensão cultural, segundo Amarante (1996), que se
concretiza a desinstitucionalização. Neste lugar que está a transformação do
imaginário social sobre a loucura. Isto se dá através da aproximação do cuidado em
saúde mental nos diversos níveis de cuidado em saúde (UBS e outros espaços); dos
movimentos sociais, da inclusão social do sujeito em sofrimento psíquico nos
espaços sociais, etc.
No entanto, muito ainda é necessário para avançar no cuidado do sujeito em
sofrimento psíquico. Estudos demonstram a dificuldade dos profissionais em
compreender o processo de cuidado e de atenção psicossocial e ampliado. Isto se
dá pelo novo olhar e prática pensados nesse contexto, incluindo também nova
formação profissional e treinamentos nos dispositivos de saúde (DIMENSTEIN et.
al., 2012; RÉZIO et. al., 2015; PEIXOTO et. al., 2016; VASCONCELOS et. al., 2016;
LIMA et. al., 2013; ELY et. al., 2014; PEREIRA e SANTOS, 2012; CHAVES e
PEGORARO, 2013).
A transição paradigmática em que estamos vivendo pode ser compreendida
quando atentamos para a história da loucura e do cuidado das pessoas em
sofrimento psíquico até os tempos atuais. Estamos numa constante contradição e

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tensionamento entre as práticas positivistas e as práticas psicossociais. Como
afirma os autores,

“(...) o lugar da Saúde Mental é um lugar de conflito, confronto e


contradição. Talvez esteja aí uma certa característica ontológico-
social, pois isso é expressão e resultante de relações e situações
sociais concretas” (COSTA-ROSA, LUZIO, YASUI, 2003, p. 29).

A Reforma Psiquiátrica possibilita um novo olhar para a loucura, para o


diferente. Busca ainda, uma mudança epistemológica da compreensão das pessoas
que estão em sofrimento psíquico e uma transição de paradigma. A loucura pode ser
compreendida enquanto fenômeno social.
Para tanto, utilizemos a proposta basagliana, coloquemos entre parênteses
a doença e pensemos no cuidado do sujeito em sofrimento psíquico. Colocar entre
parênteses é compreendido pela fenomenologia como suspensão fenomenológica,
não se considera somente a doença ou o sintoma, mas o sujeito, sem esquecer que
a experiência da doença e o sintoma também fazem parte da existência do sujeito,
mas não apenas isso (AMARANTE e TORRE, 2007).
Suspender a doença, possibilita compreender a história da pessoa e sua
construção social e histórica. Olhar para o sujeito significa uma ruptura com a clínica
tradicional e “a doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia social e
política da exclusão e a ruptura epistemológica com a psiquiatria que adotou o
modelo de ciências naturais para pretender conhecer a subjetividade” (AMARANTE
e TORRE, 2007, p. 49)
A partir dos avanços da Reforma Psiquiátrica e da crítica à Psicopatologia
Positivista, é possível pensar em uma compreensão do sofrimento psíquico diferente
do modelo normativo, fragmentador e culpabilizatório do sujeito pela sua doença. A
Psicopatologia Crítica entende o sofrimento construído, também, pela esfera
histórica e cultural e, assim, busca romper com a responsabilização da pessoa pela
doença mental e é desideologizadora. A compreensão da Psicopatologia Crítica
permite um ensaio para um novo olhar na atenção das pessoas em sofrimento
psíquico. Com essas reflexões podemos pensar na clínica do sujeito, não a clínica
tradicional ou voltada à demanda das instituições. Mas uma clínica do olhar para o
sujeito e para suas relações (MOREIRA, 2002).

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4 O CAMINHO DA CLÍNICA PSICOSSOCIAL: A CLÍNICA AMPLIADA
A palavra clínica apresenta diversos significados. Apresentaremos aqui o
significado que contribui para os fins da Reforma Psiquiátrica. Assim, como o
desenvolvimento da ciência, como discutimos no início deste artigo, o significado de
clínica também passou por transições importantes, seguindo assim a potencialidade
das práticas e fazeres que vislumbram o cuidado com os sujeitos em sofrimento
psíquico.
A clínica ainda é vista por muitos profissionais da Reforma Psiquiátrica e
mesmo pelos profissionais da Saúde Pública como terapêutica, ineficiente e elitista.
Isso talvez decorra dos resquícios vindos da clínica psiquiátrica e da sua construção
de uma clínica voltada para a pessoa, para o individual.
Num primeiro momento, onde a ciência da saúde se dá de forma positivista,
objetiva e pragmática, a interrupção dos sintomas tem maior importância do que o
cuidado do sujeito na sua integralidade. A eficiência e a produção são vistas como
objetivo primordial na degradação da clínica. Esta clínica trabalha com a produção
de saúde de modo padronizado, ou seja, o interesse volta-se à economia
corporativa, independente da necessidade e da vontade da pessoa (CAMPOS,
2001).
A clínica tradicional trata o indivíduo, o interno, fazendo uma cisão entre
“dentro” e “fora” da pessoa. Essa forma de pensar se apóia numa ideologia de
construção biológica da loucura e culpabilização do sujeito por ser louco. No século
XX Freud com a psicanálise faz o resgate da escuta, nesse mesmo momento faz
uma cisão da subjetividade e do biológico e até hoje proporciona esse olhar
(CAMPOS, 2001).
Na década de sessenta, na América Latina, surgem os trabalhos da
epidemiologia social, decorrentes da medicina social, o que de alguma forma
persiste cindindo o homem, seu olhar é voltado para os grupos e comunidade com
bases epidemiológicas, criticando o fazer clínico. Criou-se um tensionamento entre a
clínica individual e as práticas coletivas e ambas acabam por exercer um
reducionismo frente ao sujeito. Ou só o individual está em questão ou só a
construção coletiva (CAMPOS, 2001).
Muitas vezes, quando falamos da influência social na construção da doença,
compreende-se, erroneamente, que a doença não faz parte do sujeito ou não deve

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25
ser levada em conta. Não podemos negar a doença, esta faz parte do contexto de
vida da pessoa, mas não só a doença, mas sim o sofrimento psíquico do sujeito.

“(...) é possível reconhecer no discurso de alguns membros da


comunidade antimanicomial certa idealização da loucura, negação
das dificuldades concretas e materiais do que significa viver como
portador de sofrimento psíquico e minimização do verdadeiro
sofrimento que se encarna nesses pacientes, por exemplo, no surto
psicótico” (CAMPOS, 2001, p. 102).

Para melhor compreensão e para repensar o fazer clínico na saúde,


Campos (2013) elenca três modelos para a clínica: a clínica oficial (clínica
tradicional), a clínica degradada e a Clínica Ampliada (a clínica do sujeito).
A clínica oficial tem seu alcance limitado. Sua concepção é voltada para o
biológico e preocupação com a doença. A doença sobressai a pessoa de modo
fragmentado, voltada para o esbatimento dos sintomas. Existe uma
desresponsabilização com a integralidade do sujeito, com a prevenção e a
promoção de saúde. As técnicas padronizadas persistem e são herdadas da ciência
positivista e reducionista, como o modelo biomédico (CAMPOS, 2013).
A clínica degradada responde aos interesses políticos e econômicos em que
a demanda precisa ser atendida. A interrupção dos sintomas tem maior importância
do que o cuidado do sujeito na sua integralidade, a eficiência e a produção são
vistas como objetivo primordial na degradação da clínica. Esta clínica trabalha com a
produção de saúde de modo padronizado, ou seja, o interesse volta-se à economia
corporativa, independente da necessidade e da vontade do paciente (CAMPOS,
2013).
A Clínica Ampliada ou do sujeito surge da mudança de olhar para o
fenômeno, de uma mudança epistemológica. Na Clínica Ampliada o olhar retorna ao
sujeito a partir da sua vivência social, histórica e também biológica. No entanto, não
só a doença e/ou os sintomas são tratados. Nessa forma de cuidado a incerteza e
questionamentos são aceitos, e também o trabalho em conjunto com outros
profissionais. O olhar é para pessoa em toda sua completude e existência. Trabalha-
se pela busca da autonomia e reformulação de suas vivências (CAMPOS, 2013).
Assim, para a construção de uma Clínica Ampliada nos serviços
substitutivos ainda precisamos avançar e mudar o modo linear em que os
profissionais compreendem o sofrimento psíquico. A qualificação dos serviços
substitutivos pode evitar as internações e reinternações, e assim o entra e sai de
hospitais, ou porta giratória (CAMPOS, 2001)

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26
O radical Klin traz a ideia de inclinação, não para baixo, mas para os lados,
no sentido de bifurcação, divergir, de buscar novos sentidos. E é a partir deste
significado que a Clínica Ampliada vai tomando forma. Teríamos assim uma das
acepções fundamentais, alcançando uma dimensão criativa, oportunidades de
transformação de estados e situações insustentáveis (COSTA-ROSA, LUZIO e
YASUI, 2003).
Aqui também não se trata mais de uma clínica do olhar, mas da escuta, ou
do ‘olhar’ que vai além do sintoma. A clínica como encontro, capaz de produzir
senso, sentidos; produção de sentidos no lugar de reprodução; como lugar onde as
identidades dos participantes já não estão predefinidas (COSTA-ROSA, LUZIO e
YASUI, 2003)
Seguindo esta discussão, Campos (2013) evidencia as ideias de Basaglia ao
discutir o que é a Clínica e qual o papel que esta tem no processo terapêutico do
sujeito que apresenta sofrimento psíquico. Segundo o autor, Basaglia fundamenta
sua teoria, prática e discussões nas ideias de Antônio Gramsci e de Sartre.
Basaglia procurou em Gramsci suporte para repensar as instituições e as
práticas sanitárias. Antônio Gramsci acreditava no potencial criativo das massas,
dos agrupamentos e dos indivíduos. Ressaltava a importância em pensar nas
diversas possibilidades em fazer história incluindo os espaços da sociedade como
lugares onde se dá a criação de novas ou o enrijecimento das velhas formas de
dominação (CAMPOS, 2013).
Porém, a leitura de Gramsci dá conta da complexidade das relações sociais
e não aprofunda-se sobre como se dá a produção dos sujeitos. Desta forma,
Basaglia ampara-se na teoria de Sartre para discutir o papel do sujeito quanto à
construção de Sentido ou de Significado para as coisas ou para os fenômenos. O
sujeito, então, seria responsável por tudo àquilo que acontecera com ele (CAMPOS,
2013).
Partindo destas ideias, Basaglia repensa políticas e práticas em saúde. A
partir destas reflexões, o autor, segundo Campos (2013), considera a doença como
fazendo parte de um contexto maior, o Sujeito e seu mundo. A clínica aqui se dá
através da reprodução social do paciente, trabalhando junto ao paciente seu
protagonismo e considerando este sujeito com direitos, cidadão.
Nessa perspectiva, trabalha-se pela busca da autonomia e reformulação de
suas vivências. Logo, para a prática da Clínica Ampliada ou clínica psicossocial, é

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27
preciso partir da compreensão da Psicopatologia Crítica que entende o sofrimento
da pessoa por meio da sua existência e de suas relações com o mundo. Passa-se a
compreender a integração da dimensão social nas enfermidades (COSTA-ROSA,
LUZIO e YASUI, 2003).

5 OS CAMINHOS TRILHADOS
Os caminhos trilhados para o desenvolvimento do cuidado em Saúde Mental
começam muito antes da Reforma Psiquiátrica no Brasil. O Sistema Único de
Saúde, conforme Lei nº 8080 (Brasil, 1990), prioriza a saúde como direito civil de
todos - dever do Estado – e norteia todas as ações da Saúde Mental nos
dispositivos de saúde; sejam eles na atenção básica ou na alta complexidade (PAIM,
2009).
Os princípios norteadores do SUS, que promovem o cuidado, são:
universalidade, integralidade e equidade. Estes princípios garantem aos cidadãos o
acesso livre aos serviços, com um olhar para o ser humano como ser total e
conforme suas necessidades e realidades. O SUS também estabelece diretrizes a
fim de fundamentar o processo de cuidado: regionalização, hierarquização,
descentralização, racionalização e resolução, complementaridade do setor privado e
a participação da comunidade na construção e fiscalização do SUS (PAIM, 2009).
O trabalho em saúde se difere do trabalho das ciências exatas. Para Merhy
(2014), o processo de cuidado em saúde acontece por meio do encontro do
profissional e sujeito que busca os serviços de saúde. Assim, os atos de cuidar 1 se
dão a partir do manejo do profissional no desenho deste encontro.
Campos (2013) deixa claro que a Clínica Ampliada não se dá através do
esquecimento dos saberes médicos, das generalidades diagnósticas, mas sim pela
escuta qualificada dos sintomas e do contexto do usuário que está no encontro com
o profissional. Para além da categorização, indo ao encontro da construção coletiva
da compreensão dos casos na equipe de saúde, diluindo as responsabilidades nos
dispositivos, com coparticipação das diversas áreas da saúde que permeiam o
cuidado em saúde.
A Política Nacional de Saúde Mental tem conquistado espaço no campo das
Políticas Públicas voltadas às pessoas em sofrimento psíquico a partir da Luta

1
Expressão utilizada pelo autor (MERHY, 2014) para designar os atos dos profissionais que visão
cuidar do usuário.

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28
Antimanicomial e com a Reforma Psiquiátrica. Desde a Lei 10.2016 de abril de 2001,
que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas em sofrimento psíquico e
redireciona o modelo assistencial em Saúde Mental, a atenção psicossocial vem
sofrendo mudanças significativas. A construção de Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) inicia com o intuito de prestar cuidado às pessoas em sofrimento psíquico.
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), conforme a Portaria N 3.088, de
dezembro de 2011, surge com o objetivo de descentralizar o cuidado em Saúde
Mental e o direciona para o território. Atualmente a RAPS é constituída pela atenção
básica em saúde, atenção psicossocial estratégica, atenção de urgência e
emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar,
estratégias de desintustionalização, estratégia de reabilitação psicossocial.
Com a constituição da RAPS outros serviços passam a fazer parte da
atenção psicossocial, buscando atender a pessoa em seu território. Dessa forma,
além do CAPS, é possível acessar outros serviços de cuidado em atenção
psicossocial em seu território.

“(...) o território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade,


o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O
território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e
espirituais e da vida, sobre as quais ele influi. Quando se fala em
território deve-se, pois, de logo, entender que está falando em
território usado, utilizado por uma população” (SANTOS, 2003, p.
97).

Com o cuidado sendo ampliado e percorrendo o território, lugar onde a


pessoa vive e circula, começa um movimento de cuidado na própria comunidade, no
lugar que se faz parte. Ao fazer parte de um território, a pessoa em sofrimento
psíquico não só recebe o cuidado da equipe de saúde, mas também da comunidade.
A partir de ong’s, centro comunitários e mesmo dos vizinhos, que muitas vezes
sinalizam à equipe de saúde algum sinal de vulnerabilidade. Assim, o cuidado torna-
se possível no território como substituição dos hospitais psiquiátricos, como afirma
Lancetti (2001):

“(...) a substituição dos cuidados nos hospitais psiquiátricos pelo


cuidado comunitário das pessoas que sofrem com transtornos
mentais é meta fundamental da organização de serviços de saúde. E
a estratégia para atingir essa meta é a intervenção conjunta da
equipe especializada em Saúde Mental e a equipe do ESF”
(LANCETTI, 2001, p. 166).

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29
A compreensão de RAPS do Conselho Federal de Psicologia inclui outros
componentes em relação ao Ministério da Saúde. O CFP (Conselho Federal de
Psicologia) tem como ponto de partida, como exposto na figura 1, incluindo além das
esferas da saúde, também áreas da Educação, Assistência, Social, Segurança
Pública, Recursos Comunitários, Idosos, Associações e Ong`s, Mulheres, Cultura,
Lazer e Esporte. Assim, podemos pensar a Atenção Psicossocial de modo mais
ampliado e com a participação de outras áreas.
Figura 1 – Rede de Atenção Psicossocial na concepção do CFP:

Fonte: Conselho Federal de Psicologia, 2011.

Este modelo de cuidado em rede propicia a articulação dos serviços de


saúde com as demandas da Saúde Mental, corroborando com a continuidade do
cuidado em todos os dispositivos da saúde, transformando o setor especializado em
mais um local de cuidado e não no único. Promovendo, assim, o olhar nas atenções
de baixa, média e alta complexidade. Para o funcionamento da RAPS o respeito aos
direitos humanos, com garantias de liberdade e autonomia, combate a estigmas e
preconceitos, e a diversificação das estratégias de cuidado, sob a ótica
interdisciplinar são diretrizes inerentes ao cuidado.
A RAPS foi estrategicamente pensada e estruturada a partir da lógica da
desisntitucionalização, indo ao encontro das discussões fomentadas pela Reforma
Psiquiátrica. Propõe a superação do modo de atenção hospitalocêntrico através do
enfraquecimento referencial do cuidado especializado e dos hospitais psiquiátricos.

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30
Desta forma, os dispositivos da rede, assim como os profissionais de saúde, são
direcionados a um movimento de tessitura de suas práticas, intervenções e
compreensão do sofrimento psíquico a partir da lógica de cuidado ampliado.

6 OS CAMINHOS POSSÍVEIS
Muitos desenhos do cuidado já foram pensados e planejados. Todavia, os
diversos olhares transbordam na prática e iluminam os desencontros
epistemológicos. Os caminhos possíveis neste cenário onde tantas perspectivas se
entrelaçam e se chocam são, em alguns momentos, invisíveis, mas estão lá, à
espreita de uma oportunidade para tomar conta do espaço.
Neste sentido, faz-se necessário pensarmos em premissas para que os
conflitos epistemológicos e práticos não absorvam o cuidado em Saúde Mental à um
lugar ineficaz e perigoso. Começaremos pelo território, onde “é o lugar psicossocial
do sujeito; é onde a vida acontece” (BRASIL, 2005, p. 13). Trazer o território como
balizador do cuidado em Saúde Mental nos proporciona pensar o sujeito em uma
totalidade. Um território, uma comunidade, um bairro, uma rua, uma vizinhança, um
número da casa. Instiga, desta forma, o olhar singular, cuidadoso para a história do
sujeito que experiência o sofrimento psíquico.
Pensar sobre o território nos obriga a questionar o cuidado através do
diagnóstico e da normatização de sintomas. Uma vez que eu olho o sujeito singular
e único, eu incluo no meu diagnóstico e na minha prática as minúcias desta
construção social do sofrimento psíquico e introduzo na minha prática as perguntas
para além dos sintomas, por exemplo, como acontece esse sofrimento? Para que
este sofrimento neste lugar? De que forma este sofrimento atinge este lugar, esta
família? De que forma isto foi construído? Será que existem outras pessoas que
apresentam sofrimentos semelhantes a estes? Como a família vê e lida com este
sofrimento? São questionamentos que vão tecendo uma nova perspectiva
epistemológica do cuidado.
Como você pôde observar, destacamos os “estes” e “istos” das perguntas
instigadoras. Por quê? Para quê? Bom, discutiremos, então, sobre outra premissa
importante para guiar a prática do cuidado em Saúde Mental com cuidado.
Pensamos que o diagnóstico faz parte do cuidado. Negar o diagnóstico e os
sintomas é o descuidado. Aproximarmo-nos de Amarante (1995) para refletir sobre

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31
este tema. O autor contribui no que diz respeito ao cuidado para além da
administração de fármacos e sintomas/diagnósticos:

“Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua existência e


em relação com suas condições concretas de vida. Isto significa não
administrar-lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir
possibilidades. O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de
violência e mortificação para tornar-se criação de possibilidades
concretas de sociabilidade a subjetividade” (Amarante, 1995, p. 494).

O que quer dizer tudo isto? O novo caminho do cuidado em Saúde Mental
busca agregar novas práticas, sem deixar de lado o já conhecido pelas Ciências da
Saúde. Não nega o conhecimento construído do cuidado biologicista, onde o foco do
cuidado é eliminação de sintomas. Mas promove uma reflexão sobre a construção
social e histórica do sujeito, construindo possibilidades diferentes de se colocar no
mundo.
A próxima premissa seria a participação e autonomia do sujeito para
construir possibilidades, estratégias, planos terapêuticos. Ou seja, estar presente e
se fazer presente nas escolhas do seu cuidado. Neste sentido, se apoiando no seu
conhecimento adquirido durante a formação profissional e prática, a equipe torna-se
facilitadora e mediadora do cuidado. O profissional não é o processo, mas sim faz
parte do processo de cuidado.
Vasconcelos (2003) busca através do empoderamento o “aumento do poder
e autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações
interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de
opressão, dominação e discriminação social” (p. 20). Pensar o empoderamento da
pessoa em sofrimento psíquico, no cuidado em Saúde Mental, possibilita a ela fazer
parte do seu processo de cuidado, refletindo, pensando, criando, visualizando novos
olhares sobre o seu território, suas escolhas, sua família e sobre si mesmo. Assim, o
empoderamento promove a mudança do sujeito.
Outro caminho importante para o cuidado em Saúde Mental é o trabalho em
equipe. Trabalhar em equipe no cuidado em saúde, e não somente em Saúde
Mental, é muito mais do que o envolvimento de conjunto de profissionais de áreas
diferentes que atuam num espaço em comum com uma população específica. O
cuidado em equipe requer um afinamento respeitoso. Não significa que o
profissional A precisa pensar igual ao profissional B, muito pelo contrário.
No entanto, existem parâmetros e normas reguladoras do cuidado inerentes
a cada classe profissional. Desta forma, o cuidado, primeiramente, deve ser pautado

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conforme a ética dos conselhos regionais e federais das respectivas áreas de
conhecimento. À exemplo, partindo da experiência das autoras deste artigo,
trazemos a Psicologia enquanto ciência e profissão que, apesar da multiplicidade de
olhares à respeito do cuidado em Saúde Mental, traz diversas normas reguladoras
das práticas em saúde do profissional psicólogo. Segundo o material construído pelo
CREPOP (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas, 2013),
a atuação nos espaços de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e de
rompimentos paradigmáticos do dito louco e da saúde/doença, tem de visar suas
estratégias de reinserção psicossocial para a cidade e não institucionalizar
novamente o cuidado e o tratamento no CAPS.
A interdisciplinaridade deve entrar como viabilizador da própria
desinstitucionalização. De acordo com o material do CREPOP (2013), a atuação do
profissional no serviço deve ser guiada não por teorias ou áreas do conhecimento,
mas sim pela desconstrução social da loucura e do dito louco. Não obstante, as
práticas devem ser pensadas para além do espaço físico do CAPS, porém com uma
equipe que secretaria este sujeito viabilizando o empoderamento e o protagonismo
social.
Desta forma, Bachelar (1996) discute que é impossível invalidar os
conhecimentos e as ciências habituais. Quando surgem novas tendências
epistemológicas, torna-se difícil abrir mão das compreensões e práticas ensinadas e
vivenciadas, uma vez que é irresistível presumir o jeito aprendido como o jeito mais
correto. Para tanto, o cuidado em saúde, aqui mental, é esse conjunto de saberes e
práticas, onde existe o biológico, o emocional, o ocupacional, o físico, a arte. É um
híbrido de saberes que juntos proporcionam o cuidado.

7 UM NOVO OLHAR PARA O SUJEITO


A visão da Clínica Ampliada se apoia na Lei 10.216 de 6 de abril de 2001
(BRASIL, 2001), que garante a proteção das pessoas com transtorno mental e
compreende o tratamento das pessoas em sofrimento psíquico num contexto
humanizado e ampliado, abrangendo as várias facetas do ser humano. Compreende
o sujeito na sua diversidade social e histórica, sem excluir os aspectos biológicos.
A compreensão da História da Loucura e seu lugar na sociedade, permite-
nos desconstruir um lugar de louco como infantil, anormal e incapaz. A loucura é

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construída na família e na comunidade. Somos sujeitos e sujeitados. Ao mesmo
tempo que construímos, também somos construídos.
A busca por um novo fazer na clínica, possibilita uma compreensão mais
ampliada da vivência de quem sofre. Neste sentido, refletir sobre o que baliza este
novo cuidado e esta nova clínica nos coloca em um lugar de constante busca e
compreensão. Apresentamos neste artigo as premissas para o caminho do cuidado
em Saúde Mental como partindo do território, do cuidado para além da
administração dos fármacos (desinstitucionalização), do empoderamento do sujeito
em sofrimento psíquico e do trabalho em equipe com uma postura respeitosa e
agregadora.

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MERHY, Emerson Elias & FRANCO, Túlio Batista
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

Por uma Composição Técnica do Trabalho em saúde centrada no


campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças
para os modelos tecno-assistenciais
For a Technical Composition of Health Work based on the relationship field and
light technology. Pointing to changes in the technical-assistance models

RESUMO
Emerson Elias Merhy1
Túlio Batista Franco2 A idéia central do artigo sugere que, ao realizar o cuidado, o trabalhador
opera um núcleo tecnológico no seu processo de trabalho, composto por
‘trabalho morto’ (instrumental) e ‘trabalho vivo’ em ato. Os dois formam
uma certa razão entre si, à qual chamamos de Composição Técnica do Trabalho
(CTT), que pode trazer a hegemonia do ‘trabalho morto’, quando o modelo
assistencial se caracteriza como médico-hegemônico, produtor de
procedimentos. A mudança do modelo assistencial pressupõe impactar o
núcleo do cuidado, compondo uma hegemonia do ‘trabalho vivo’ sobre
o ‘trabalho morto’, quando então se caracteriza uma ‘transição tecnológica’,
que no conceito aqui trabalhado, significa a produção da saúde, com base
nas tecnologias leves, relacionais, e a produção do cuidado de forma
integralizada, operando em ‘linhas de cuidado’ por toda a extensão dos
serviços de saúde, centrado nas necessidades dos usuários.

DESCRITORES: Pessoal de Saúde; Serviços de Saúde; Recursos Humanos em Saúde.

ABSTRACT
1 Médico sanitarista, professor livre The core idea of this article suggests that when performing care, the worker
docente da Universidade Estadual de operates a technological core within his/her work process, composed of a
Campinas (UNICAMP)
Dead Work (instrumental) and a Live Work. Both types form a certain reason
Departamento de Medicina Preventiva da
UNICAMP between them, which we call Technical Work Composition (CTT), that can
Rua Ana Fratta de Paula, 176 turn Dead Work homogeneous when the assistance-based model is
CEP 13104-028 – Rio de Janeiro – RJ characterized as a hegemonic physician, producer of processes. The change in
e-mail: emerhy@fcm.unicamp.br
the assistance-based model must cause impacts on the care core, turning
2
Psicólogo sanitarista, doutor em Saúde Live Work hegemonic over Dead Work, and this moment is called Technological
Coletiva pela Universidade Estadual de
Transition, which in the concept handled here means the production of health
Campinas (UNICAMP)
Assessor da Secretaria Municipal de based on light and relationship-based technologies and the production of
Saúde de Belo Horizonte care in an integral way, operating in “lines of care” throughout the health
Rua das Flores, 365/103 services, based on the users’ needs.
CEP 30460-210 – Belo Horizonte – MG
e-mail: tuliofranco@uol.com.br

316 Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003
Por uma Composição Técnica do Trabalho em Saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças para os modelos tecno-assistenciais

INTRODUÇÃO: MODELOS de organização da assistência é pro- arranjo de saberes da área (MERHY ,


TECNO-ASSISTENCIAIS NA SAÚDE duto dela (M ERHY, 2003). No âmbito 1991; CAMPOS, 1992). Esta produção
da Reforma Sanitária brasileira e está associada, portanto, aos pro-
Há algum tempo tem-se obser- nos primórdios da construção do Sis- cessos e tecnologias de trabalho, a
vado que a mudança do modelo tec- tema Único de Saúde (SUS), nas dé- um certo modo de agir no sentido
no-assistencial para a saúde depen- cadas de 1970 e 1980, o modelo as- de ofertar certos produtos e deles
de menos de normas gerais e mais sistencial, entendido como a forma obter resultados capazes de melho-
da produção da saúde, que se dá no de organização da assistência, or- rar a situação de saúde do usuá-
espaço da micropolítica de organi- ganizou-se para a distribuição dos rio, individual e coletivo. Assim, en-
zação dos processos de trabalho. Os serviços de saúde, de forma estru- tendemos que o campo de saberes e
estudos que têm se dedicado a ob- tural hierarquizada, formalizando práticas da clínica é parte fundamen-
servar e analisar a forma como se uma intervenção sobre o território. tal no debate sobre a organização da
produz saúde indicam que esse é um Neste cenário, o debate se organiza- produção da saúde, associado aos
lugar em que os sujeitos trabalha- outros saberes, sem excluir nenhum
dores, individuais e coletivos, agem campo específico. Estudada a com-
de forma interessada, isto é, de acor- plexidade dos problemas de saúde,
do com projetos próprios, sejam es- somente é possível resolvê-los, con-
tes de uma dada corporação, ou O MODELO ASSISTENCIAL tando também com multiplicidade de
mesmo da pessoa que ocupa um saberes e fazeres. Para melhor com-
SE CONSTITUI A PARTIR DE
certo espaço de trabalho. É um lu- preender a dimensão do problema que

gar de permanente tensão à medida


CERTAS CONTRATUALIDADES temos, recuperamos as contribuições
de Cecilio (1999) em torno da questão
que os interesses podem ser diver- ENTRE ESTES ATORES
sos, e como é um espaço de produ- das necessidades, em que os autores
SOCIAIS E POLÍTICOS apresentam uma taxonomia organi-
ção, por natureza há o encontro de
zada em quatro grandes conjuntos:
diferentes vontades, como a dos pró-
prios trabalhadores, dos usuários, Em se ter ‘boas condições de vida’
do governo instituído, dos mercados (...) ter acesso e se poder consumir
que se entrecruzam na esfera da va muito em torno da oferta e da toda tecnologia de saúde capaz de me-
lhorar e prolongar a vida (...) criação
saúde, entre outros. demanda por serviços, com um pro-
de vínculos (a)efetivos entre cada
Todos os atores que se colocam cesso de trabalho que operava cen- usuário e uma equipe e/ou um profis-
em cena, implicados com a produ- trado no conhecimento da vigilân- sional (...) necessidade de cada pes-
ção da saúde, governam certos es- cia à saúde, instrumentalizada pela soa ter graus crescentes de autono-
mia no seu modo de levar a vida.
paços, dado o grau de liberdade que epidemiologia, e com pouca inter-
existe no agir cotidiano do trabalho venção sobre as práticas desenvol- Identificamos o campo da saúde
em saúde. Isso pressupõe que o vidas no campo da clínica (MENDES , coletiva como o lugar privilegiado de
modelo assistencial se constitui 1994; F RANCO ; MERHY, 1999). fazer esta discussão, visto que con-
sempre, a partir de certas contratua- Temos buscado compreender os grega em torno de si os saberes da
lidades entre estes atores sociais e modelos assistenciais como formas área, como a clínica, epidemiologia,
políticos. Mesmo que esta pactua- de organização da produção de ser- planejamento, a psicanálise, filosofia,
ção se dê sob forte tensão, a forma viços, a partir de um determinado estando ainda aberta a incluir outros

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003 317
MERHY, Emerson Elias & FRANCO, Túlio Batista

como o saber da análise institucio- duz centrada no ato prescritivo, com- gular como cada profissional aplica
nal, que recentemente vem sendo in- pondo um modelo que tem, na sua seu conhecimento para produzir o
corporado ao campo de debate em natureza, o saber médico hegemôni- cuidado (M ERHY, 1997).
torno da saúde (L’ABBATE, 2003). co, produtor de procedimentos. Por Historicamente, a formação do
outro lado, estas podem se dar como modelo assistencial para a saúde
A MICROPOLÍTICA DE ORGANIZAÇÃO relações intersessoras estabelecidas
1
esteve centrado nas tecnologias du-
DO TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO no trabalho em ato, realizado no cui- ras e leve-duras, visto que, aquele
DO MODELO ASSISTENCIAL dado à saúde (MERHY, 2002). A estas, se deu a partir de interesses corpo-
chamamos de tecnologias leves, pelo rativos, especialmente dos grupos
Olhando sobre a conformação seu caráter relacional, que a coloca econômicos que atuam na saúde.
dos modelos assistenciais, com foco como forma de agir entre sujeitos tra- No plano da organização micropo-
na micropolítica de organização dos balhadores e usuários, individuais e lítica do trabalho em saúde, este
processos de trabalho, temos como coletivos, implicados com a produ- modelo produziu uma organização
primeira referência as contribuições do trabalho com fluxo voltado à
de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves consulta médica, em que o saber
(1994) que trouxe para este campo médico estrutura o trabalho de ou-
de análise, os conceitos de ‘tecnolo- tros profissionais, ficando a produ-
gias materiais’ para os instrumen- O TRABALHO EM SAÚDE É SEMPRE ção do cuidado dependente de tec-
tos e ‘tecnologias não-materiais’ para nologias duras e leve-duras.
RELACIONAL , PORQUE DEPENDE DE
o conhecimento técnico usados na Observando o fazer cotidiano de
produção da saúde. ‘TRABALHO VIVO ’ EM ATO , ISTO É, um trabalhador da saúde, no seu
Nossas observações têm concluí- O TRABALHO NO MOMENTO EM micro-espaço de trabalho, em espe-
do que, para além dos instrumentos cial a micropolítica que ali se desen-
QUE ESTE ESTÁ PRODUZINDO
e conhecimento técnico, lugar de tec- volve, temos constatado que, ao re-
nologias mais estruturadas, há um alizar o cuidado, ele opera, no seu
outro, o das relações, que se tem processo de trabalho, um núcleo tec-
verificado como fundamental para a nológico composto de ‘trabalho mor-
produção do cuidado. Partimos do ção do cuidado. As tecnologias ins- to’ (TM) e ‘trabalho vivo’ (TV) (FRAN-
pressuposto que o trabalho em saú- critas nos instrumentos, identifica- CO, 2003). No caso, ‘trabalho morto’
de é sempre relacional, porque de- mos como tecnologias duras, porque são os instrumentos, e é definido as-
pende de ‘trabalho vivo’ em ato, isto já estão estruturadas para elaborar sim porque sobre eles já se aplicou
é, o trabalho no momento em que este certos produtos da saúde, e ao co- um trabalho pregresso para sua ela-
está produzindo. Estas relações po- nhecimento técnico, identificamos boração. ‘Trabalho vivo” é o traba-
dem ser de um lado, sumárias e bu- uma parte dura (estruturada e outra lho em ato, campo próprio das tec-
rocráticas, onde a assistência se pro- leve, que diz respeito ao modo sin- nologias leves (MARX , 2001; MERHY,

1
“Intersessoras está sendo usado aqui com sentido semelhante ao de Deleuze, no livro Conversações, que discorre sobre a interseção que
Deleuze e Guattari constituíram quando produziram o livro Antiedipo, que não é um somatório de um com outro e produto de quatro mãos,
mas um ‘inter’, interventor. Assim, uso esse termo para designar o que se produz nas relações entre ‘sujeitos’, no espaço das suas interseções,
que é um produto que existe para os ‘dois’ em ato e não tem existência sem o momento da relação em processo, e na qual os inter se colocam
como instituintes na busca de novos processos, mesmo um em relação ao outro” (M ERHY, 2002. p. 50-51).

318 Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003
Por uma Composição Técnica do Trabalho em Saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças para os modelos tecno-assistenciais

2003). Este encontro em TM e TV no miliares, uma dada subjetividade que campos de necessidades relaciona-
interior do processo de trabalho re- expressa sua história e, portanto, este dos acima. Observamos que o ins-
flete uma certa correlação entre eles, conjunto deve ser olhado. Aqui ele tra- trumental e o ‘trabalho vivo’ estão
no núcleo tecnológico do cuidado. A balha com a transferência de conhe- juntos no processo de trabalho, mas,
esta correlação chamamos de Com- cimentos para o auto-cuidado, formas ao mesmo tempo, o TV exerce hege-
posição Técnica do Trabalho (CTT), diversas de intervir sobre sua subjeti- monia sobre o TM.
isto é, a CTT é a razão entre TM e TV. vidade, valorizando-o e aumentando Importa registrar que a CTT não é
Inferimos daí que a Composi- sua auto-estima e, assim, de forma mensurável, é um analisador quali-
ção Técnica do Trabalho, quando criativa, o projeto terapêutico deve ter tativo das tecnologias de cuidado
favorável ao ‘trabalho morto’, re- o objetivo de realizar ganhos de au- presentes no processo de trabalho
flete um processo de trabalho, tec- tonomia para viver a vida. (F RANCO, 2003). Se a razão existente aí
nologias duras dependente, volta- No segundo caso, há um proces- estiver centrada no ‘trabalho vivo’, é
do à produção de procedimentos e so de trabalho cujo núcleo de tecno- indicador que a relação entre traba-
quando, ao contrário, houver pre- lhador e usuário, para a produção da
dominância do ‘trabalho vivo’ em saúde, se dá sob parâmetros de im-
ato, haverá uma produção do cui- plicação mútua, no reconhecimento
dado centrado nas tecnologias le- que ali há o encontro de sujeitos que
ves. Como exemplo, utilizamos o O MODELO ASSISTENCIAL têm juntos protagonismos na produ-
trabalho de um profissional da
QUE ADVOGAMOS, PORTANTO, ção da saúde e, sobretudo, estão pre-
saúde, para atender à necessidade sentes diretrizes de intervenção/rela-
do usuário, no cuidado à hiperten-
DEVE OFERTAR TODOS OS ção de acolhimento, estabelecimento
são arterial. Aqui podemos dizer que RECURSOS TECNOLÓGICOS de vínculo e responsabilização.
pode haver duas alternativas de O modelo assistencial que ad-
AOS CUIDADO DOS USUÁRIOS
projeto terapêutico: 1 ) ele cuida do
a
vogamos, portanto, deve ofertar
problema de saúde, utilizando quase todos os recursos tecnológicos aos
exclusivamente dos exames e medi- cuidado dos usuários e mesmo
camentos, e tem um processo de tra- que este necessite, para sua assis-
balho centrado no ato prescritivo. Nes- logias está centrado no ‘trabalho tência, de insumos de alta tecno-
te caso, o núcleo tecnológico do cui- vivo’, formas de abordagens mais logia, o processo de trabalho pode
dado está centrado no ‘trabalho mor- relacionais, operando dentro da ainda ter no seu núcleo de cuida-
to’ (instrumental); 2 ) ele trabalha um
a
idéia de que no encontro entre tra- do, a hegemonia do ‘trabalho vivo’,
projeto terapêutico mais relacional balhador e usuário, este é também desde que aquela seja a necessi-
com o usuário e, mesmo utilizando- sujeito da produção da saúde e dade real do usuário e o acesso à
se do instrumental (exames e medi- pode, desta forma, ser também pro- mesma e sua utilização sejam sus-
camentos), reconhece que aquele usu- tagonista de atos cuidadores, gera- tentados pelo encaminhamento se-
ário, além de apresentar um proble- dores de autonomia. Esta forma de guro e trânsito tranqüilo em uma
ma de saúde, traz consigo uma certa agir para a produção do cuidado é dada ‘linha do cuidado’ que garan-
origem social, relações sociais e fa- capaz de intervir sobre os quatro ta a integralidade da atenção 2, isto

2
Sobre Integralidade e Linhas do Cuidado, ver Cecílio e Merhy (2003); Franco e Magalhães Júnior (2003).

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003 319
MERHY, Emerson Elias & FRANCO, Túlio Batista

é, o seu ‘caminhar na rede assis- vas tecnologias na produção da as- do modo de produzir saúde, no en-
tencial’ acompanhado pelo profis- sistência em dois hospitais, um pú- tanto, a micropolítica de organiza-
sional ou pela equipe com a qual blico e outro privado. No caso anali- ção do trabalho revela, especialmen-
formou seu vínculo, onde esta se sado, é notório o impacto que cau- te na atividade clínica, um núcleo
responsabiliza pelo encaminhamen- sa a incorporação tecnológica no do cuidado que continua operando
to do seu projeto terapêutico. É hospital, mudando o processo de um processo centrado na lógica ins-
como se houvesse um lastro de cui- trabalho, mas ao mesmo tempo, o trumental de produção da saúde
dado, sustentando todos os atos as- núcleo tecnológico do cuidado per- (F RANCO ; MERHY , 2003).
sistenciais ao usuário, o que pres- manece inalterado, isto é, centrado A saúde suplementar tem rees-
supõe a freqüente presença do ‘tra- no trabalho morto, pouco relacio- truturado sua produção, com o ob-
balho vivo’, a sustentar o princípio nal, o que revela a captura do ‘tra- jetivo de impactar os custos da as-
da integralidade da assistência e a balho vivo’ pelo instrumental, a sistência à saúde. Isto vem sendo
operação das linhas de cuidado. feito, introduzindo no campo da
micro-regulação do trabalho, dire-
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E trizes do managed care, que pres-
TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA: PENSANDO supõe o controle do ato prescritivo
A MUDANÇA NA SAÚDE, A PARTIR DA do médico, com base em protocolos
MICROPOLÍTICA DO PROCESSO A SAÚDE SUPLEMENTAR técnicos e a auditoria de um admi-
DE TRABALHO nistrador, ao qual, muitas vezes, é
TEM REESTRUTURADO SUA
delegado o poder de autorizar pro-
O debate em torno da reestrutu- PRODUÇÃO, COM O OBJETIVO cedimentos que fogem à norma pre-
ração produtiva da saúde vem se DE IMPACTAR OS CUSTOS viamente estabelecida. No entanto,
colocando em torno da discussão a produção do cuidado continua ten-
DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE
dos modelos tecno-assistenciais. do a hegemonia das tecnologias
Entendemos que a Reestruturação duras, apesar de haver impacto im-
Produtiva é caracterizada por um portante no processo de trabalho do
modo de produzir saúde, diferente médico, especialmente pela captura
de um certo modelo adotado em não valoração da tecnologia leve no do seu micro processo decisório.
momento anterior, em uma dada processo produtivo. (IRIART, 1999; MERHY , 2002).
unidade produtiva de saúde, que Outro processo de Reestrutura- Em todos estes casos, observa-
impacta processos de trabalho, sem ção Produtiva pode ser verificado mos que há mudanças em curso, a
no entanto operar uma mudança na no Programa Saúde da Família, que partir da alteração verificada no pro-
Composição Técnica do Trabalho em muitos casos, muda a forma de cesso de trabalho, mas ao mesmo
(CTT). Identificamos que há vários produzir, sem no entanto alterar o tempo, a Composição Técnica do
processos de Reestruturação Produ- processo de trabalho centrado nas Trabalho, isto é, a razão entre ‘tra-
tiva da saúde, em curso no Brasil. tecnologias duras. A formação da balho vivo’ e ‘trabalho morto’, no
Para ficarmos em três exemplos, de equipe, o deslocamento do traba- núcleo do cuidado, permanece sob
lugares diferentes, mencionamos o lho para o território e o incentivo hegemonia do segundo, nos revelan-
trabalho de Pires (1998) que relata ao trabalho de vigilância à saúde, do que não há uma alteração estru-
o processo de incorporação de no- dão uma idéia de que há mudança tural no modo de produzir saúde.

320 Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003
Por uma Composição Técnica do Trabalho em Saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças para os modelos tecno-assistenciais

O trabalho executado a partir da re- dutiva e Transição Tecnológica), mas ção secundária não teve o mesmo
lação entre sujeitos, acolhedor e pro- ao debruçarmos sobre os efeitos que tratamento por parte dos formula-
dutor de vínculo com responsabili- têm no cuidado ao usuário, um pro- dores das políticas de saúde, tendo
zação sobre a clientela, acompa- cesso produtivo guiado por uma ló- as formulações para gestão deste
nhando projetos terapêuticos cuida- gica instrumental e outro, por ‘tra- nível de cuidado, centrado sua aten-
dores, é suprimido por uma lógica balho vivo’ em ato, que pressupõe ção na questão da oferta e deman-
instrumental, tecnologias duras cen- uma lógica relacional, tecnologias da, sem no entanto avançar para
tradas, realizado a partir do ato leves dependentes, observamos que imaginar um cenário de construção
prescritivo. A mudança verificada são dois mundos muito distintos. de um modelo mais interativo com
nestes casos não chega a alterar de os outros equipamentos. A integra-
fato as estruturas do modelo assis- O TRABALHO VIVO COMO lidade pressupõe e, portanto, exige
tencial vigente, médico hegemônico POTÊNCIA INSTITUINTE PARA A um esforço em entender este outro
produtor de procedimentos. MUDANÇA DO MODELO ASSISTENCIAL conjunto de saberes e práticas no
A reestruturação produtiva pode cuidado à saúde. Ao mesmo tempo
vir a produzir mudanças no núcleo estes serviços têm sido um ‘nó críti-
tecnológico do cuidado, compondo co’ para gestores e usuários, onde
uma hegemonia do ‘trabalho vivo’ esses têm o seu ‘caminhar na rede’
e, neste caso então, passamos a tra- O TEMA DA INTEGRALIDADE dificultado por falta de integração
balhar com outro conceito, que aju- destes recursos assistenciais.
DA ATENÇÃO À SAÚDE GANHA
da a pensar a mudança neste nível, O tema da integralidade da aten-
no modo de produzir saúde, que é o RELEVÂNCIA E VEM SE PRODUZINDO ção à saúde ganha relevância e vem
de Transição Tecnológica. Esta é EM TORNO DE UMA IMAGEM DE se produzindo em torno de uma ima-
caracterizada por mudanças no gem de construção de ‘linhas do cui-
CONSTRUÇÃO DE ‘LINHAS DO CUIDADO’
modo de produzir saúde, impacta dado’, que significam a constituição
processos de trabalho, alterando a de fluxos seguros a todos serviços
correlação das tecnologias existen- que venham atender às necessidades
tes no núcleo tecnológico do cuida- dos usuários (CECILIO; MERHY, 2003;
do, a Composição Técnica do Tra- FRANCO ; MAGALHÃES JÚNIOR , 2003). Sur-
balho. É sempre um processo de O debate em torno da organiza- ge como um tema que é transversal
construção social, política, cultural, ção da assistência à saúde ocupou- ao conjunto de necessidades de saú-
subjetiva e tecnologicamente deter- se, até o momento, principalmente de, já mencionados neste texto. As-
minado. Assim deve configurar um da discussão em torno do equipa- sim, a integralidade aparece em todo
novo sentido para as práticas assis- mento hospitalar, pela flagrante he- núcleo de competências que se es-
tenciais tendo como conseqüência o gemonia do hospital na história da truturam em unidades produtivas
impacto nos resultados a serem ob- formação do modelo assistencial, e que ofertam cuidados à saúde. A ‘li-
tidos, por intermédio dos usuários de outro lado, a atenção básica sur- nha do cuidado’ disponibilizada aos
e na resolução dos seus problemas. giu como um projeto contra-hegemô- usuários movimenta-se acionada por
A princípio pode-se imaginar que há nico, ao qual se dedica grande par- certos projetos terapêuticos que re-
uma tênue linha divisória entre os te dos estudos e da literatura dispo- quisitam recursos para a assistên-
dois conceitos (Reestruturação Pro- nível. Entre estes dois pólos, a aten- cia aos usuários, e aí forma-se o en-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003 321
MERHY, Emerson Elias & FRANCO, Túlio Batista

contro entre o mundo das necessida- tre unidades produtivas em diversos CECILIO , Luis Carlos de Oliveira. As
des com o das intencionalidades dos níveis de atenção depende, fundamen- Necessidades de Saúde como Con-
trabalhadores protagonistas de cer- talmente, do esforço e vontade polí- ceito Estruturante na Luta pela In-
tas cartografias que vão se desenhan- tica em integrar estes serviços. Em tegralidade e Equidade na Atenção
do e dando forma à integralidade na outro nível, aparecem como funda- em Saúde. Rio de Janeiro: UERJ /IMS/
saúde. Este agir na saúde traz consi- mentais a rede de conversas que se ABRASCO , 2001.
go inúmeros elementos, inclusive os estabelece em cada serviço deste, que
FRANCO, Túlio B.; M AGALHÃES, J. R.
das tecnologias de cuidado, as quais vão compor a ‘linha do cuidado’.
Atenção Secundária e a Organiza-
sugerimos que tenham a hegemonia Esta deve ocorrer entre os trabalha-
do ‘trabalho vivo’ em ato, calçando dores, como parte integrante de uma ção das Linhas de Cuidado. In:

um trabalho mais relacional, tecno- rede de petição, onde há mútua im- MERHY, Emerson Elias et al. “O Tra-
logias leves centradas. Isto significa plicação com o processo produtivo balho em Saúde: olhando e experi-
romper com a lógica prescritiva da que é, por natureza, formado a par- enciando o SUS no cotidiano”. São
atividade assistencial, que a captu- tir dos saberes e fazeres, que vão se Paulo: HUCITEC, 2003.
ra do ‘trabalho morto’ exerce, em to- expressar em atos como o do acolhi-
FRANCO, Túlio B. Processos de traba-
dos os níveis da assistência. mento em cada serviço deste, a vin-
lho e transição tecnológica na saú-
Entendemos que para conseguir culação de clientela e responsabili-
de. Tese (Doutorado) – Universida-
operar satisfatoriamente a integra- zação com seu cuidado e sobretudo,
de Estadual de Campinas (UNICAMP ),
lidade, nos campos de necessidades para um trânsito seguro na linha do
SP, 2003.
descritos aqui, o espaço da micro- cuidado, é necessária uma gestão
política do processo de trabalho, eficaz por parte da equipe de saúde, GONÇALVES, R. B. M. Tecnologia e Or-
como vimos, aparece com evidên- à qual o usuário está vinculado, do ganização Social das Práticas de
cia na medida que este é um lugar seu projeto terapêutico. Isto se dá, Saúde. São Paulo: HUCITEC , 1994.
por excelência de encontro entre os com objetivo de garantir que os atos
IRIART, A. C. Atenção Gerenciada:
sujeitos trabalhadores e usuários, cuidadores sejam de fato eficazes
Instituinte a Reforma Neoliberal. Tese
portanto, onde se dá o agir no coti- para conseguir os resultados de au-
(Doutorado) – Universidade Estadual
diano do cuidado à saúde. tonomização, fazendo da integrali-
de Campinas (UNICAMP), SP, 1999.
Uma pergunta que surge freqüen- dade um importante dispositivo
temente em coletivos de trabalhado- para a abertura de muitos proces- L’ABBATE, S. A análise institucional e a
res e gestores dos serviços de saúde sos de mudança em toda rede as- saúde coletiva. Ciência & Saúde Co-
é: como isto se dá, ou seja, como sistencial. Sobretudo, age assim letiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, 2003.
operar para constituir ‘linhas de cui- como dispositivo instituinte do pro-
MARX , Karl. O Capital – Livro 1,
dado’ que agem interessadamente em cesso de trabalho e da produção do
Vol. 1. Civilização Brasileira, Rio
defesa da vida, centradas nas neces- cuidado em saúde.
de Janeiro, 2001.
sidades dos usuários? Aqui aparece
como fundamental, a necessária pac- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MENDES , Eugênio Vilaça et al. Dis-
tuação entre os diversos gestores dos trito Sanitário: o processo social de
serviços implicados em ofertar os re- CAMPOS , Gastão Wagner de Souza. A mudança das práticas sanitárias do
cursos em produzir o cuidado aos Saúde Pública e a Defesa da Vida. Sistema Único de Saúde. São Paulo:
usuários. A definição dos fluxos en- São Paulo: HUCITEC, 1994. HUCITEC, 1994.

322 Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003
Por uma Composição Técnica do Trabalho em Saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanças para os modelos tecno-assistenciais

MERHY , Emerson Elias. Saúde: A Car-


tografia do Trabalho Vivo. São Pau-
lo: HUCITEC, 2002.

. Um dos Grandes Desa-


fios para os Gestores do SUS:
apostar em novos modos de fabri-
car os modelos de atenção. In:
M ERHY, Emerson Elias et al. O Tra-
balho em Saúde: olhando e experi-
enciando o SUS no cotidiano. São
Paulo: H UCITEC, 2003.

P IRES, D. Reestruturação Produtiva


e Trabalho em Saúde no Brasil. São
Paulo: A NABRUME/CNTSS, 1998.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, set./dez. 2003 323
768 768

Ação Psicológica em Saúde


Mental:Uma Abordagem
Psicossocial

Psychological Action in Mental Health:


A Psychosocial Approach

Acción Psicológica en Salud Mental:


Un Abordaje Psicosocial

Edvânia dos Santos


Alves &
Ana Lúcia Francisco

Universidade
Católica de
Pernambuco
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2009, 29 (4), 768-779


769
PSICOLOGIA
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Edvânia dos Santos Alves & Ana Lúcia Francisco
2009, 29 (4), 768-779

Resumo: Este artigo se propõe refletir sobre aspectos pertinentes à clínica dos transtornos mentais, com
base na abordagem psicossocial. Nesse sentido, a prática complexa do saber/fazer, no contexto da referida
abordagem, apresenta-se no âmbito de uma clínica ampliada, ratificando a importância de se contemplar
a cultura e o cotidiano daqueles que buscam por atenção psicológica, o que implica o fazer clínico voltado
para a interlocução e a avaliação contínua de intervenções comprometidas com o sujeito sociohistórico.
Assim, tem-se uma clínica voltada para as múltiplas faces do humano – ­em sua singularidade e coletividade
–, problematizando as ações psicológicas em instituições e nas comunidades.
Palavras-chave: Abordagem psicossocial. Saúde mental. Práticas interventivas. Redes sociais.

Abstract: This article has as proposal to reflect about aspects that are related to the mental disorders clinic
in a psychosocial approach. In this direction, it presents the complex work in the context of the psychosocial
approach, considering the transdisciplinary perspective and ratifying the importance of contemplating the
culture and the daily life of those who demand for psychological attention, which means a clinic work that
includes dialogue and the continuous assessment of assistance committed to the social and historical subject.
Therefore, this is a clinic that takes into account the human being in his multiple aspects – individually and
collectively –, examining the psychological actions in institutions and communities.
Keywords: Psychosocial approach. Mental health. Psychological practice. Social nets.

Resumen: Este artículo se propone reflexionar sobre aspectos pertinentes a la clínica de los trastornos
mentales, con base en el abordaje psicosocial. En ese sentido, la práctica compleja del saber/hacer, en el
contexto del referido abordaje, se presenta en el ámbito de una clínica ampliada, ratificando la importancia
de contemplar la cultura y el cotidiano de aquéllos que buscan atención psicológica, lo que implica el hacer
clínico devotado a la interlocución y la evaluación continuada de intervenciones comprometidas con el sujeto
sociohistórico. Así, se tiene una clínica devotada para las múltiples caras del humano – en su singularidad
y colectividad –, haciendo problemáticas las acciones psicológicas en instituciones y en las comunidades.
Palabras clave: Abordaje psicosocial. Salud mental. Prácticas interventivas. Redes sociales.

Pensando o fazer psicossocial

A Psicologia, nas últimas décadas, tem refletido o individual e o coletivo. A abordagem


sobre sua postura teórica e metodológica por psicossocial contempla, portanto, articulações
meio de estudos e pesquisas que demonstram entre o que está na ordem da sociedade e
influências das relações sociais, econômicas o que faz parte do psíquico, concebendo o
e políticas nas dimensões intrapsíquicas, sujeito em suas múltiplas dimensões. Assim,
construindo um terreno fértil e propício ela considera a multidimensionalidade da
a ser explorado e vivido. Nesse sentido,
clínica, em que estão envolvidos aspectos
no campo da Psicologia, as abordagens
de interação entre o físico, o psicológico, o
caracterizadas como psicossociais têm-se
meio ambiente natural e o social. Em outras
mostrado mais atentas às demandas da área
palavras, essa abordagem compreende que a
social desde o final de 1950, na América
nossa história de vida é marcada pelas relações
Latina, conseguindo um espaço significativo
em rede, cujas estruturas social e familiar, bem
nas discussões e na construção de um corpo
como as experiências culturais, se manifestam
teórico próprio.
no dia a dia; concebe, pois, o sujeito como
As intervenções nesse campo, na perspectiva um todo que afeta e é afetado no mundo,
de Enriquez (1997), baseiam-se nos seguintes enfatizando a interação e a interdependência
elementos: as palavras, as representações dos fenômenos biopsicossociais e buscando
e as condutas, bem como as relações pesquisar a natureza dos processos dinâmicos
intersubjetivas, pois esses expressam, no subjacentes que compõem o homem em sua
cotidiano, tensões que afetam e confrontam vivência.

Ação Psicológica em Saúde Mental: Uma Abordagem Psicossocial


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PSICOLOGIA
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Edvânia dos Santos Alves & Ana Lúcia Francisco
2009, 29 (4), 768-779

As relações do sujeito com sua rede familiar consideram o lado empírico, o histórico, o
e comunitária passam a ocupar um lugar cultural e o científico dos agentes sociais.
privilegiado, convocando-se os atores Elas procuram conhecer a realidade desses
sociais envolvidos, em uma dada situação, a agentes em busca de possibilidades para
participarem da compreensão dos processos uma escuta mais analítica e atenta, e, ainda,
que os envolvem e a responsabilizarem-se interagem, refletindo e objetivando os saberes
pela transformação do seu entorno. da realidade atual, porquanto o mundo
interno e suas expressões se constroem nas
No que diz respeito ao transtorno mental, relações sociais.
faz parte dessa perspectiva superar a visão
que o concebe como unicamente da ordem Partindo dessa compreensão, o psicólogo
individual, dissociada das demais instâncias procura, para além do intrapsíquico, caminhar
em que vive o indivíduo. Ao contrário, tal – de forma cautelosa e comprometida com o
perspectiva propõe a criação e a reinvenção político e o ser sujeito em sua singularidade e
de caminhos para contínuas avaliações, coletividade –, alicerçando ações capazes de
a fim de que as ações se reflitam e se romper a individualização. Além do mais, tal
fortaleçam com base nas responsabilidades visão concebe o homem como ser histórico,
compartilhadas. perpassado e, ao mesmo tempo, porta-voz de
sua “época”, um ser autônomo-dependente
O referencial teórico de uma psicologia que reconhece sua cultura e a reconstrói,
voltada para o social norteia seus pressupostos criando e recriando dispositivos constitutivos
para a implicação mútua dos agentes, das relações humanas e institucionais.
considerando o universo simbólico presente
nos âmbitos de relações intra e interpessoais. A complexidade do ser
Por conseguinte, espera-se que os atores humano na abordagem
sociais envolvidos em dada situação e/ou
psicossocial
contexto construam a própria história, o
que implica comprometimento político e
A ação clínica, em uma perspectiva psicossocial,
consciência cidadã. Isso nos impulsiona
tenta compreender a complexidade do
a fazer a reavaliação crítica dos processos
ser humano em seus processos de troca e
relacionados à saúde/doença, à formação
no desenvolvimento de ligações baseadas
profissional e aos modelos assistenciais
nas experiências construídas. A adoção
desenvolvidos ao longo da história;
pressupõe, ainda, a posição de permanente dessa estratégia exige a consideração do
autocrítica sobre a nossa participação, como permanente intercâmbio das áreas social
profissionais, nesses processos. Tal como e psíquica na construção da subjetividade.
afirma Rosa (2003, p. 328): “É preciso assumir Segundo tal concepção, compreende-se o
espaços coletivos de decisão, de construção, mundo objetivo não como fator de influência
e, para tanto, a palavra precisa circular. Isso para legitimar a subjetividade, mas como
significa romper hierarquias, sobretudo a pertinente a sua construção. Assim, acredita-
hierarquia médico-paciente sobre a qual está se, o ser humano é permanentemente afetado
calcada a doença mental”. pelas histórias que o constituem como sujeito
no mundo, histórias que permeiam suas ações
As abordagens psicossociais se respaldam e relações, criando modos de subjetivação e
em campos teóricos diversificados que de sofrimentos.

Ação Psicológica em Saúde Mental: Uma Abordagem Psicossocial


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PSICOLOGIA
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Edvânia dos Santos Alves & Ana Lúcia Francisco
2009, 29 (4), 768-779

Conforme Safra (2004), “O ser humano como construção a partir de um campo


é a singularização de toda história da de forças, assim como a aproximação com
humanidade. Cada pessoa é única e ações horizontais na relação entre técnicos e
múltipla, pois, ao mesmo tempo em que instituições. Tal prática indica pontos relevantes
se individualiza, o faz presentificando seus que norteiam a interdisciplinaridade, a
ancestrais e aqueles com quem compartilha relação com o usuário e suas implicações
a sua existência” (p. 25). subjetivas e socioculturais; além disso,
indica a necessidade de estimular a família
Nessa perspectiva, o olhar complexo resgata e de criar meios a fim de que a sociedade
a dimensão ética do psicólogo, promovendo compreenda o sujeito com transtorno mental
e acolhendo processos permanentes e se responsabilize pela atenção e apoio a ele.
de transformação e inclusão do sujeito Nessa abordagem, os profissionais assumem
sociohistórico. Ademais, leva-o a repensar a assistência comprometida e envolvida com
outras possibilidades de ser e estar no mundo, ações dirigidas para a atenção ao sofrimento
abrindo espaços para as diferenças, para a integral, o que requer o questionamento de
desconstrução de conceitos rígidos e para a posições excludentes voltadas exclusivamente
busca de caminhos alternativos. para a atenção biológica e direcionadas
Conforme Safra
(2004), “O ser para as perspectivas fisiopatológicas do ser.
humano é a Conceber o homem em movimento é uma O cuidado deve fundamentar-se em uma
singularização
de toda história das metas da abordagem psicossocial, na visão que supere a dicotomia corpo/mente
da humanidade. consideração de que a consciência e a e outras tantas cisões perpetuadas ao longo
Cada pessoa é
identidade constituem elementos importantes de muitos anos, configurando-se como
única e múltipla,
pois, ao mesmo para a expressão da condição humana. uma prática apoiada em perspectivas em
tempo em que se Gaulejac (2001) refere-se ao homem como que a interdisciplinaridade seja um desafio
individualiza, o faz
presentificando um complexo de histórias simultâneas constante.
seus ancestrais construídas a partir da existência singular e
e aqueles
social. Questionar o lugar desse sujeito, o As experiências, os conceitos, vão sendo
com quem
compartilha a limite de sua autonomia e liberdade, é desafio significados e compreendidos no mundo
sua existência” permanente, e constitui uma das questões das relações psíquicas, sociais, culturais,
(p. 25).
fundamentais no campo da saúde mental. econômicas e outras, gerando peculiaridades
quanto às formas de atendimento às
Saraceno (1998) enfatiza a relevância da demandas, de modo a se reconhecerem as
abordagem psicossocial voltada para os diversas manifestações das experiências. A
usuários da saúde mental, pois fortalecê-los esse respeito, Naubern (2004) traz importante
implica criar instrumentos que potencializem reflexão:
o sujeito para a produção de projetos de
vida, no sentido da ressocialização. Nessa O momento é também o de uma mudança
direção, as atividades que envolvem os de olhar... ligado ao incerto, do olhar ligado
àquele que procura e não encontra mais do
usuários têm eficácia quando inseridas em
que respostas parciais e inacabadas, que
um campo repleto de sentidos produzidos não encontra objetos sólidos, mas corre
por ele (usuário) em relação à cultura e ao o sério risco de se perder por uma teia de
meio ambiente. articulações que não terminam. (p. 20)

A perspectiva psicossocial – no campo da Tal enunciado encontra eco nas propostas


saúde mental – reafirma a subjetividade relacionadas ao paradigma da complexidade,

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defendidas por Morin (1996). Elas revelam cindi-lo, escutando-lhe a individualidade


a concepção de homem como um conjunto e a coletividade, a afetividade e o que
de incertezas que busca elementos para se apresentava institucionalizado em seu
auto-atualização, mas que logo se percebe inconsciente e no mundo social. Nesse
em meio a ambigüidades próprias da sentido, a psicossociologia fundou seus pilares,
natureza humana. A propósito, entende- analisando o aspecto social e articulando-o
se complexidade como “um todo mais ao psíquico, assim como tem questionado o
ou menos coerente, cujos componentes sujeito das ciências humanas e sociais.
funcionam entre si em numerosas relações
de interdependência ou de subordinação, Conceber o sujeito como protagonista de
de apreensão muitas vezes difícil para sua história – aqui tomada como o que
o intelecto” Houaiss (2001, p. 776). E, constitui o lado humano na dimensão
segundo Morin (1996, pp. 274-287), o termo cultural, influenciado pelos símbolos, pela
complexidade reafirma uma relação de língua e, em conseqüência, pela sociedade
indissociabilidade, o homem implicado nesse – é mais uma das tarefas a que se propõe a
“todo mais ou menos coerente”, vinculado a abordagem psicossociológica. Acredita-se que
inúmeras teias que estabelecem elos quase o homem, ao assumir a própria historicidade,
imperceptíveis, mas integrantes do humano, cria e recria mudanças no mundo interno e
constituindo-o como sujeito em relação ao externo, gerando relações de sentido e de
outro e a si mesmo. Nesse contexto, ele se responsabilidades compartilhadas.
posiciona, se reorganiza constantemente,
questiona a própria postura. De acordo com A intervenção psicossocial nos
Levy (2001, p.72), atendimentos de saúde
a psicossociologia se define recusando
Torna-se um desafio permanente, no campo
o corte que institui uma divisão entre
os fenômenos psicológicos e sociais. Ela da saúde pública, fortalecer e contextualizar
afirma, como já o escrevia Bérgson (1932), as intervenções psicossociais, tendo em vista
que o “social é no indivíduo” como “o as mudanças que vêm sendo realizadas no
indivíduo é no social”, que o indivíduo
atendimento em saúde e até mesmo no
como tal não existe independentemente
da sociedade e de suas relações. conceito de saúde, transformações que, na
área de políticas públicas, trazem implicações
Em consonância com os mentores da significativas para a ação de uma clínica
Associação de Pesquisa e Intervenção ampliada.
Psicossociais – Araújo e Carretero –, Gaulejac
(2001) refere-se ao campo da Sociologia Essas intervenções, ainda que incipientes,
clínica ou psicossociologia como elemento trazem em seu bojo problematizações que,
que se constrói no espaço social a partir em suas raízes, se dirigem a uma questão
de projetos psicossociológicos. Conforme fundamental: como tornar o atendimento
o mesmo autor, a psicossociologia nasceu psicológico mais acessível e útil ao serviço
de práticas multidisciplinares que se público da saúde? Na medida em que a
comprometiam com questões marginalizadas perspectiva psicossocial se sustenta em um
pelo campo psi e pelo campo sociológico. campo de conhecimentos que envolve
As aludidas práticas demonstravam interesse a família, a abordagem transdisciplinar,
pelas múltiplas facetas do sujeito, sem o trabalho com grupos e a consideração

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da realidade social, a clínica ampliada Na área da saúde mental, a abordagem


parece caminhar na direção desse objetivo, psicossocial possibilita articular ciência, práticas
sobretudo se considerarmos a estreita clínicas e sociopolíticas, compreendendo os
vinculação que mantém com o conceito de atores em seu cotidiano, o que envolve
rede. as dimensões psíquicas, sociais e culturais
através das quais os protagonistas, individual
Esse conceito é, aqui, compreendido como e coletivamente, se posicionam.
uma necessidade de se estabelecer vínculos
entre as diversas esferas governamentais Atualmente, a saúde pública, especificamente
e não governamentais, a sociedade civil e a saúde mental, propõe-se a um olhar que
os recursos da comunidade, com vistas a procura romper o modelo hospitalocêntrico
fortalecer as organizações sociais como um dominante de tratamento, o que implica
todo na promoção da (re)inserção social e a desconstrução do lugar do “doente” e a
na construção da cidadania. Nesse sentido, potencialização de sua saúde e dos recursos
a constituição desse dispositivo se dá a partir de que dispõe.
das relações interpessoais que marcam seus
protagonistas. Assim, o sentido da intervenção psicossocial,
no espaço da saúde mental, busca superar
A partir da perspectiva de uma clínica a dualidade sujeito/objeto, saúde/doença,
ampliada, os serviços de saúde consideram individual/social, questionando a verticalidade
os atores sociais como agentes do fazer do tratamento e o poder biomédico. Nessa
cotidiano, incorporando a premissa de dinâmica, a clínica ampliada na saúde mental
assumir como referência o usuário, a família realiza intervenções com vistas à promoção de
e a comunidade em suas potencialidades, espaços de invenção e criação, objetivando
além de fortalecer, no âmbito multidisciplinar trabalhar a desinstitucionalização dos usuários
e multiprofissional, as relações dos grupos de serviços de saúde mental. Compreende-
em um território de vida onde os fazeres se se a desinstitucionalização não só como
constroem. mecanismo de redução de leitos em hospitais
psiquiátricos mas também como um conjunto
Mas acreditamos que o nosso maior desafio de ações que consideram os atores sociais em
seja o modo de operar esse dispositivo. Os suas experiências cotidianas, voltadas para
eixos que constituem as políticas públicas de a superação da condição de exclusão que,
saúde se efetivam quando criamos modos historicamente, estigmatiza esses atores. A
de fazer, saindo do âmbito das reflexões partir dessa perspectiva, não basta refletir
para o das ações. Interessa-nos, portanto, o sobre a desinstitucionalização a partir das
como fazer. Nesse caminho, a experiência relações de poder e da produção. Como
e as pesquisas nesse âmbito nos revelam a afirma Rosa (2003), “é necessário que essa
necessidade de permanente diálogo entre ruptura se estenda ao campo epistemológico,
os diversos campos do saber e os atores cultural e sociopolítico” (p. 329).
que compõem as redes de saúde, o que
pressupõe a formulação, a regulação e o Ainda que as ações na esfera burocrática
controle de políticas em proximidade e o sejam necessárias, tais como o cumprimento
reconhecimento do território em que são da legislação na busca da territorialização
realizadas. dos serviços e da descentralização dos

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atendimentos em saúde mental, essas que deram origem à reforma sanitária,


estratégias não se mostram suficientes. atrelada a outros atos políticos e sociais
Quando mantidas apenas nessa esfera, tais contrários à imposição militar na ditadura
ações parecem não contemplar as relações e, em conseqüência, a favor da legitimação
entre os fenômenos coletivos e sociais que dos processos democráticos e dos direitos
constituem os protagonistas na perspectiva humanos.
psicossocial. Os questionamentos sobre
a divisão de poder, por exemplo, não se Na atualidade, o desafio é construir uma
esgotam na perspectiva política de um grupo, política humanizada, voltada para a
mas revelam sentimentos e interações entre população, pensada e avaliada continuamente
seus agentes. Observamos, nos espaços de acordo com seus próprios princípios. No
coletivos da saúde mental, usuários dos campo específico da atenção à saúde mental,
serviços solicitando atenção: da família, as diversas instituições comprometidas com
da instituição, dos técnicos, da sociedade. as políticas de atendimento a essa demanda
Intervir junto a esses usuários implica apontam a necessidade de abordagem
promover transformações em práticas e psicossocial nas redes ampliadas, pautadas na
reconhecer que há vínculos entre instâncias intersetorialidade e na co-responsabilidade,
que até então pareciam distantes e isoladas, a fim de superar os modelos tradicionais,
sem perder de vista que o objetivo da ação sobretudo o hospitalocêntrico.
clínica é cuidar.
Um dos princípios propostos pelo SUS e
O fazer clínico na saúde mental que leva em consideração a singularidade,
buscando atender às demandas específicas
A prática da Psicologia dirigida para a saúde do sujeito em seu contexto, é e eqüidade.
mental e os princípios norteadores do Segundo tal princípio, as condições
Sistema Único de Saúde (SUS) se constituem sociais, econômicas e familiares, por serem
a partir da relação de intercessão com diferentes, requerem abordagem específica,
outros saberes. Como menciona Ribeiro caso a caso. Assim sendo, esse conceito se
(1996), o exercício profissional em saúde aproxima da diretriz de humanização das
mental tende a dialogar, de forma a criar políticas de saúde mental, o que possibilita
espaços para aproximações. É no entre que a criação de práticas e serviços de saúde
a criação acontece, é no limiar do poder com o olhar voltado para o cuidado integral
que os saberes podem revelar contribuições dos usuários e familiares, buscando, de
e reconstruir caminhos. forma sensível, competente e coerente,
compreender o contexto em sua totalidade.
A contribuição da Psicologia – em razão Então, a construção de espaços em que a
das diretrizes do SUS e da integralidade das necessidade de criação, de reinvenção de
ações por meio de um conjunto articulado modos de fazer e agir, é permanente, exige
e contínuo de reflexões e atitudes – se do profissional habilidade, sensibilidade
efetiva, verdadeiramente, quando consegue e comprometimento para legitimar o seu
reinventar o fazer das experiências para poder de contratualidade com os diversos
a construção de uma rede de relações atores envolvidos. Segundo Lévy (2001, p. 9),
entre aqueles que sofrem e suas reais “organizar-se, cooperar e criar coletivamente
condições sociais. O SUS – vale ressaltar – foi é, antes de tudo, recusar que um ‘senhor do
constituído sob a influência de movimentos sentido’ dite sua lei”.

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Torna-se possível discutir os conflitos gerados Nos anos 80, cresceu a necessidade de se
da intercessão entre saberes e disciplinas construir e se fortalecer outras possibilidades
quando se está junto ao outro, partilhando e de relação com o ser-cidadão proveniente
problematizando as situações que emergem de demandas que exigiam abertura para
no cotidiano das experiências. O jogo de diálogos e novas formas de organização
interesses e conflitos, portanto, transforma- na busca de alianças entre o Estado e a
se em elemento positivo e pode auxiliar o sociedade civil. A democratização incitou
desenvolvimento de instrumentos conceituais a ampliação de movimentos dirigidos para
e atuações integradas entre diversos saberes. as transformações, inclusive no campo da
De acordo com Campos (2000), as ações saúde mental. Os aspectos políticos, sociais,
psicológicas não articuladas nem voltadas culturais e econômicos passaram a ser
para a realidade socioeconômica e para cuidadosamente considerados na construção
as condições de vida dos sujeitos não das subjetividades, o que não implicava
reconhecem a condição de autonomia dos negar o aspecto psíquico, ao contrário,
atores sociais como protagonistas de sua permitia contextualizá-lo, possibilitando a
história. compreensão das múltiplas dimensões do
sujeito.
Francisco e Barbosa (2008), ao realizarem
breve reflexão sobre a evolução da Psicologia Na atualidade, o psicólogo que trabalha no
como ciência e profissão, chamam a atenção campo da saúde mental vem sendo convidado
para o fato de que é relativamente recente a participar de inúmeras ações que reivindicam
o questionamento acerca da pertinência do posições éticas e de compromissos mútuos
modelo das ciências naturais sobre as ciências entre profissionais, instituições, usuários e
humanas. Segundo os mesmos autores, familiares. Com certeza, trata-se de postura
que exige criatividade e disponibilidade para
É historicamente reconhecida a influência da lidar com situações de compreensão e de
ciência positivista, sobretudo na Sociologia
reconhecimento de um sujeito multifacetado.
e na Psicologia, influência que produziu um
saber em que sujeito e objeto, observador Segundo Freitas (1998), as influências de
e fenômeno observado deveriam se manter homem e de mundo que recebe o profissional
o mais distantes possível, distanciamento intervêm em sua postura e direcionam-lhe a
validado em nome de um maior controle, prática na ação clínica do âmbito social. Assim,
uma melhor medição e maior certeza em
o seu fazer/saber pode tanto contribuir para
suas possibilidades de previsão. (Francisco
& Barbosa, 2008, p. 12) manter a “ordem” da realidade social cotidiana
quanto para provocar transformações com
Nesse sentido, as ações freqüentes no campo reflexos no grupo.
da clínica eram pautadas em concepções
que, claramente, distanciavam o indivíduo A idéia de uma clínica cujo saber/fazer
de seu entorno. Como lembra Ferreira transgride a ordem vai além da concepção de
Neto (2004, p. 167), “a ética preconizada saúde/doença como dualidades opostas; ao
era da neutralidade asséptica e da atenção contrário, rompe essa lógica, pois compreende
à realidade subjetiva em detrimento da tal relação como necessariamente dialógica,
realidade material”. Tais ações, que não o que possibilita a construção de um sujeito
contemplavam os projetos sociopolíticos, capaz de reinventar-se e reinventar o seu
afastavam-se das experiências daqueles que modo de estar junto à família, nas instituições
solicitavam escuta como partícipes do social. e no corpo social e político que o atravessam.

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Gaulejac (2001, p. 37), ao refletir sobre a Com efeito, o individual e o coletivo


constituição do indivíduo, afirma: são imprescindíveis na abordagem da
psicossociologia francesa, assim como
Ele é o produto de uma história complexa as relações que permeiam os processos
que diz respeito, ao mesmo tempo, à constitutivos do inconsciente e do social.
sua existência singular, portanto, ao seu
Tal abordagem se volta para situações que
desenvolvimento psíquico inscrito numa
emergem de grupos, de organizações e
dinâmica familiar e à sua existência
social, vista como a encarnação das do cotidiano das comunidades, além dos
relações sociais de uma época, de uma possíveis vínculos entre os sujeitos. Nesse
cultura, de uma classe social. Todas essas contexto, a função do profissional deve
determinações não são equivalentes, primar pela relação contratual terapêutica
embora sejam dificilmente dissociadas.
na qual os envolvidos tecem diálogos em
direção a direitos e deveres, visando a co-
Nessa concepção, o cuidado com a saúde responsabilidades entre todos (profissionais,
mental apóia-se em uma rede de relações, usuários dos serviços e familiares).
no sentido de ativar, na comunidade,
intercâmbios e recursos disponíveis para Em situações assim, compreender os
manter um canal cooperativo com os usuários processos empáticos por meio das habilidades
que formam a rede. A noção de rede é que envolvem o cognitivo e o afetivo,
compreendida como unidades sociais que aproximando-se do outro, disponibilizando-
se fortalecem à medida que entrecruzam se ao sujeito que sofre, indica a possibilidade
recursos disponíveis, sejam formais ou de um caminho para uma prática em saúde
informais. Assim, o fortalecimento das redes mental humanizadora. Segundo Falcone
de assistência em saúde mental – acredita- (1999, p. 23),
se – possibilita a abertura de espaços para
A empatia tem sido considerada como um
movimentos de transformações. Mas isso não
atributo necessário aos psicoterapeutas
basta. É preciso também a disponibilidade dos e profissionais de ajuda. Ao adotarem
profissionais para enfrentar o desconhecido e uma atitude empática, esses profissionais
arriscar-se, responsavelmente, por caminhos contribuem para aumentar a auto-estima
de seus pacientes, favorecendo a auto-
inusitados, capazes de gerar reflexões e,
revelação, o vínculo terapêutico e a adesão
concretamente, mudanças de atitudes.
ao tratamento.

Clínica psicossocial
Portanto, no espaço de construção, a
interação parece minimizar o sofrimento
Nos espaços de inter-relações, seria
e possibilitar abertura para reflexão e ação
incoerente aprisionar o indivíduo em
sobre a angústia sentida. O profissional
dimensões psicológicas ou sociológicas e
se torna figura facilitadora para a qual os
negar os efeitos destes e de outros campos
afetos se direcionam de forma confiável e
na historicidade do sujeito. “O psiquismo (o
mental) e sua dinâmica”, para Levy (1994, acolhedora. A habilidade de estabelecer
p. 116), “são, por excelência, o lugar da vínculos, considerando a clínica e as
mudança, da possibilidade de desligamentos demandas familiares, constitui importante
e de novas combinações. As condições ferramenta na abordagem psicossocial.
materiais, objetivas, só têm valor de mudança
quando elas são apropriadas mentalmente ao O campo das intervenções psicossociais
nível de suas significações”. direciona-se para a potencialização das

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capacidades existentes no sujeito, visando à A tentativa de se estabelecer uma relação


sua autonomia, à superação das dificuldades dialógica no processo terapêutico expressa
vividas e à reinvenção e ao fortalecimento de certo esforço para minimizar o jogo de
caminhos possíveis. poderes nos quais os dispositivos estão
inscritos. Como nos faz refletir Foucault
Intervir implica contextualizar-se em (2007, p. 246), “o dispositivo... trata-se... de
determinada realidade, questionar ações certa manipulação das relações de força, seja
e tomar posições de transformação com para desenvolvê-las em determinada direção,
conscientização. A intervenção psicossocial seja para bloqueá-las...”. Nesse percurso,
– convém ressaltar – precisa ser constituída necessitamos de reavaliações contínuas em
com respaldo na atitude dialógica, ou seja, nosso saber/fazer.
deve criar diálogos e, daí, definir sentidos,
isso porque o princípio dialógico indica As reflexões de Basaglia (1985) acerca dos
a possibilidade de expressão dos atores pacientes institucionalizados ratificam o
envolvidos, rejeita formas de opressão e de pensamento de Foucault, na medida em
“coisificação” do ser em detrimento do ter. que trazem à tona a necessidade de se
Além do mais, considera o sujeito ativo e reconhecerem ações do social sobre o sujeito
potente em sua condição de reinventar o institucionalizado e, por conseqüência, do
instituído, e, dessa forma, articular um olhar instituído sobre o sujeito, além da exclusão
consciente para mudanças nos processos da como ferramenta de poder nas diversas
área social. esferas da formação humana. Ressalta que
a relação terapêutica impõe a necessidade
Compreende-se, então, porque, nas relações de se transpor as barreiras dos aspectos
terapêuticas pautadas pelo olhar psicossocial, fisiológicos ou unicamente emocionais e
a dialogicidade parece ser condição sine de se visualizar um campo mais ampliado
qua non. O cuidado envolve o processo onde se encontra o homem. No dia a dia
de relação sujeito-sociedade-consciência, das instituições, percebe-se que o sujeito
transformando as ações institucionalizadas. não só apresenta demandas geradas pelo seu
Nesse sentido, o não-estabelecimento de sofrimento psíquico mas também traz consigo
regras contratuais terapêuticas e o não- sofrimentos advindos de construtos sociais.
compartilhamento de afetos talvez não Assim, estar atento às diversas possibilidades
contribuam para se construir a dialogicidade do discurso e de seus significantes em
no cuidar. Torna-se importante, também, contextos amplos e complexos implica
avaliar cotidianamente as relações entre o comprometimento e responsabilidade
poder e o fazer, tensão constante na relação com aqueles que se apresentam frágeis e
terapêutica. No entendimento de Barus- necessitam de olhar cuidadoso e responsável.
Michel (2004), o sujeito social assume a
postura de protagonista quando se reconhece As problematizações aqui compartilhadas
como ator dos processos sociais e se apropria sugerem uma proposta de desconstrução de
do sentido de sua existência. Assim, a relação movimentos que defendem a unilateralidade
de encontro e de legitimidade na construção de ações no campo da saúde mental e
de uma vida social perpassa por questões que abrem a possibilidade de se compreender o
envolvem compromisso e construção de uma sujeito nas suas relações pessoais ou sociais,
ética (ethos-morada) fortalecida no contrato objetivando a (re) invenção de estratégias, o
terapêutico. que parece um caminho possível.

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Refletir sobre o papel do psicólogo e o deveres e direitos implica fortalecer agentes


atravessamento ideológico em suas ações exige de saúde mental na construção de seus
a reavaliação de conceitos e pré-conceitos próprios projetos e na conquista de espaços
em busca de postura comprometida. Assim, sociais, visando à convivência comunitária
assumir o olhar psicossocial, orientando a saudável em que o respeito, a singularidade,
população na busca de reconhecimento, as diferenças sejam condições fundamentais
ou melhor, de conhecimento de seus para relações socialmente éticas e justas.

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Edvânia dos Santos Alves*


Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco, psicóloga da Saúde Mental e da
Unidade Interinstitucional de Apoio Psicopedagógico do Estado de Pernambuco, Recife, PE - Brasil.

Ana Lúcia Francisco


Doutora em Psicologia Clínica – PUC-SP, professora e pesquisadora da Universidade Católica de Pernambuco,
Recife, PE - Brasil.
E-mail: ana.francisco@terra.com.br

*Endereço para envio de correspondência:


Rua Teles Júnior, 65/1802 - Aflitos, Recife – PE - Brasil - CEP: 52050-040
E-mail: edvaniaalves@uol.com.br

Recebido 26/09/2008, Reformulado 19/03/2009, Aprovado 18/04/2009

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Ação Psicológica em Saúde Mental: Uma Abordagem Psicossocial


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22

Visita Domiciliar em Saúde


Mental – O Papel do Psicólogo
em Questão
Mental health home visits – The psychologist’s role

Ana Paula da Cunha


Pietroluongo

& Tania Inessa Martins


de Resende

Centro Universitário
de Brasília
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2007, 27 (1), 22-31


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PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2007, 27 (1), 22-31

Resumo: Este artigo tem por objetivo principal discutir a visita domiciliar
em saúde mental, refletindo acerca dos sentidos construídos nas relações
estabelecidas entre os membros da equipe multidisciplinar, entre equipe
e família e intermembros do sistema familiar, e, assim, contribuir para a
capacitação familiar e conseqüente inclusão social do usuário de saúde
mental. Tendo como base a experiência em um hospital psiquiátrico do
DF, foi delineada uma tríade atitudinal para ancorar este trabalho dentro
dos pressupostos da reforma psiquiátrica: a ética, a ação teórica e a
postura reflexiva. Concluiu-se que é a partir do questionamento de
conceitos já naturalizados sobre a doença mental como incapacitadora e
alienante, e a família como culpada e incapaz de cuidar, que o usuário
pode ter a sua cidadania retomada. Por ser conhecedor da importância
das relações para a construção de sentidos e pela sua disponibilidade
para a escuta, definiu-se o papel do psicólogo dentro da equipe, na
visita domiciliar, como precursor dessa mudança relacional.
Palavras-chave: visita domiciliar, tríade atitudinal, capacitação familiar,
inclusão social.

Abstract: This article discusses the home visiting in mental health, bringing
up the meaning of the relationships built among the staff members,
inside the family attended and its members and among the staff and the
family.This way it can contribute to the family development and to the
user social inclusion. The study basis is an experience in a psychiatric
hospital and an attitude triangle was designed inside the psychiatric reform
principles: ethics, theoric action and reflexive atitude. Conclusions are
that questioning concepts as the inability of the psychiatric patient to
deal with the world, the family as the main question leading to the
disease and its inability to take care of the patient can lead the user to
regain his citizenship. Since the psychologist knows the importance of
the relations for the building of meaning and due to his capacity of
listening to others, his role in the home visiting staff was defined as the
forerunner of this relationship change.
Key-words: home visiting, attitude triangle, family development, social
inclusion.
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Visita Domiciliar em Saúde Mental – O Papel do Psicólogo em Questão

Diante do pressuposto da reforma psiquiátrica enquanto um fenômeno complexo e


de desinstitucionalização, proposto por existencial, a família é incluída no processo
Basaglia (1985), o núcleo de atenção ao usuário de tratamento, ou seja, como fenômeno
de saúde mental deixa de ser o hospital multideterminado, a família tem um papel de
psiquiátrico, e seu acompanhamento passa a extrema importância no acompanhamento do
estar diluído em vários centros de atenção sujeito que sofre, já que várias relações são
territorializados, como, por exemplo, CAPS/ estabelecidas no convívio com o usuário,
NAPS, hospitais-dia, hospitais-noite, relações essas que vão construir lugares e
residências terapêuticas, dentre outros. O formas de agir dentro do sistema familiar.
atendimento territorializado é importante, já
que a desinstitucionalização tem como Com a construção da loucura enquanto doença
principal objetivo a inclusão social do “louco”, orgânica, a família se sente, cada vez mais,
investindo em relações de apoio ao diferente excluída do processo de tratamento por não
dentro da comunidade. ter o instrumental necessário para lidar com
uma doença de fundo estritamente orgânico.
Como o usuário não vai estar mais recluso Além disso, com as primeiras construções dos
em uma instituição total (Goffman, 2003), mas saberes “psi” acerca do desenvolvimento
Com a construção infantil e da etiologia de alguns transtornos, a
da loucura sim, presente na sua comunidade, um
enquanto doença acompanhamento comunitário e familiar se família passa, também, a se sentir
orgânica, a família faz necessário. Com isso, pode-se dizer que
culpabilizada, fracassada em educar.
se sente, cada vez
mais, excluída do a comunidade, bem como a família nuclear,
processo de
Essa visão faz com que a família se sinta cada
serão os principais núcleos de acolhimento
tratamento por vez menos capaz de resolver os seus problemas
do sujeito com sofrimento mental grave. Os
não ter o e mais dependente dos técnicos que detêm o
instrumental principais dispositivos utilizados para o
necessário para
saber, construindo o que Brandão (2001)
acompanhamento da rede social do usuário
lidar com uma chama de ciclo de dependência.
doença de fundo
são a visita domiciliar, mais focada no trabalho
estritamente com o sistema familiar, e a terapia comunitária,
É importante ressaltar que a inclusão da família
orgânico. focada no trabalho com a comunidade em
no tratamento só é possível a partir do
geral.
momento em que se questiona a episteme
do paradigma médico dominante, ou seja, a
Este artigo irá discutir a visita domiciliar, sua partir desse questionamento, amplia-se a visão
importância, os efeitos e o papel do psicólogo acerca do tratamento da loucura – que deixa
dentro desse processo. Tomará por base a de ser apenas medicamentoso e passa a
vivência prática das autoras – em suas distintas abarcar a sua complexidade discursiva/
funções de estagiária e supervisora – em um relacional e psicodinâmica.
programa de visita domiciliar, implantado em
um hospital do DF. Com base na Lei nº De acordo com Brandão (2001), o
10.216, de 06.04.2001, que atende aos atendimento domiciliar reflete as limitações
pressupostos da reforma psiquiátrica, esse do atendimento institucional e da atuação
projeto tem por objetivo prestar atendimento individual do profissional, e, em saúde mental,
em domicílio para os pacientes que já dentro dos pressupostos da reforma
passaram pela internação psiquiátrica, visando psiquiátrica, de busca da inclusão social do
ao seu acompanhamento e reintegração social. louco pela quebra de padrões culturais e pela
O trabalho de visita domiciliar faz todo o forma de ver a loucura como um fenômeno
sentido, já que, com a desconstrução da complexo, a limitação da instituição e do
loucura como doença e reconstrução desta profissional se faz mais evidente.

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Pode-se dizer que o objetivo primordial da vendo-a como saída existencial legítima, outras
visita domiciliar é buscar a capacitação das facetas do sujeito que sofre começam a surgir,
famílias para que estas possam utilizar recursos seu discurso passa a ser valorizado bem como
próprios, a fim de resolverem os seus a sua capacidade para escolher e para resolver
problemas, incluindo-as no processo de problemas. A família pode começar a ver esse
tratamento (Brandão, 2001), já que é só a partir sujeito como um novo ser, alguém não mais
dessa capacitação que a família pode se sentir idealizado, normatizado, mas sim, um sujeito
segura e confiante para lidar com os problemas que, apesar, por exemplo, de delirar, tem
suscitados com o convívio com a loucura, muito a contribuir para o sistema familiar e
evitando as internações recorrentes e a social. Este novo olhar pode ajudar o sujeito a
conseqüente alienação social e a cronificação encontrar novos lugares nos sistemas aonde
do usuário de saúde mental. está inserido

A partir do paradigma emergente, onde se Com isso, pode-se concluir que um dos
coloca a importância da crítica epistemológica objetivos principais da equipe, na visita
para conseguir alcançar o sujeito que sofre, domiciliar, está na tentativa de integração e
desconstruindo pré-conceitos elaborados e de fazer compreender o discurso psicótico, já
que é só a partir dessa compreensão que novos
construídos socialmente, fala-se da
sentidos para os problemas demandados pela
necessidade de o profissional ter uma escuta A família pode
família podem ser descobertos, ampliando a começar a ver
diferenciada, escuta essa que abarque o
possibilidade de implementação de futuras esse sujeito como
sujeito, sem julgamentos ou tentativas de um novo ser,
ações.
encaixe deste na teoria. É importante salientar alguém não mais
que a crítica epistemológica é um dos princípios idealizado,
A valorização das saídas que a própria família normatizado, mas
norteadores da reforma psiquiátrica. sim, um sujeito
encontra para os impasses suscitados, bem
que, apesar, por
como a busca da habilidade de cada membro exemplo, de
Tenório (2001) destaca que um técnico só
do sistema para resolver os problemas delirar, tem muito a
pode chegar a compreender o sujeito e a contribuir para o
pontuais colocados na visita, também são
família a partir do momento em que ele se sistema familiar e
procedimentos que caracterizam a importância social, com a
permite sempre ser surpreendido com algo
da visita domiciliar. Essa valorização só é possibilidade de
novo que surge no relacionamento, que ele encontre
possível, como já foi explicitado anteriormente,
questionando os seus conceitos a priori. Essa um novo lugar nos
a partir da substituição das imagens sociais sistemas em que
atitude contribui para o surgimento de culpabilizadoras e incapacitadoras que o técnico está inserido.
momentos de subjetivação. em saúde mental, assim como a sociedade,
pode ter da família.
Enfocando a visita domiciliar, para que o
profissional possa abarcar a dinâmica familiar É a partir dessa valorização que a família pode
subjetiva, é necessária a modificação do se sentir segura e autônoma, construindo as
conceito e da culpa dos familiares com a suas saídas para a resolução de problemas.
conseqüente valorização de seus saberes e Com isso, pode-se notar que essa segurança
habilidades e da loucura enquanto doença favorece a sua autonomia e a independência
orgânica e incapacitante, devolvendo o poder com relação à instituição de referência,
de verdade à palavra do louco (Tenório, 2001). atingindo, assim, o objetivo de capacitação
No momento em que a equipe, dentro do familiar.
processo de visita domiciliar, abre a
possibilidade de subjetivação, a partir da De acordo com Silva (2001), a doença mental
desconstrução da psicose enquanto doença, é caracterizada por sua multidimensionalidade
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Visita Domiciliar em Saúde Mental – O Papel do Psicólogo em Questão

e multideterminação, e, com isso, deve ser fenômeno da loucura, resultado da valorização


abarcada em todos os campos: biológico, de diversos e diferentes saberes/percepções
psicológico, individual, familiar e social. Para acerca de um problema específico, que se
alcançar esse objetivo, o trabalho em equipe pode alcançar o sujeito, podendo compreender
multidisciplinar se faz de grande importância sua subjetividade sem dicotomizá-lo em uma
por sua heterogeneidade de saberes. Essa teoria específica, além de poder compreender,
característica da equipe permite aos também, a família em sua totalidade, já que
profissionais ter uma visão ampliada do esta, dentro de uma visão complexa sobre a
fenômeno da loucura. doença mental, tem um papel primordial para
o acompanhamento desse sujeito em sua lida
Um outro ponto de grande importância na com o social.
visita com equipe multidisciplinar é que esse
trabalho permite, também, que o sujeito que Assim, nota-se que as relações intermembros
sofre e sua família tenham maiores da equipe, dentro dos pressupostos
possibilidades de vinculação afetiva com reformistas, deixam de ser relações de poder
alguns dos profissionais, sejam eles quem unidirecional, onde o saber da psiquiatria
forem. Esse profissional seria o técnico de delimitava os outros saberes, para serem
referência, no qual a família se apoiaria para relações de horizontalidade, onde todo saber
falar de seu sofrimento. soma, sendo mais uma contribuição na forma
de ver o problema suscitado pela família, o
A equipe multidisciplinar pode ser estruturada que amplia, assim, as possibilidades de solução.
de duas formas: vertical e horizontal. A Pode-se dizer que a horizontalização, por seu
estrutura verticalizada ou hierarquizada, em princípio básico de valorização dos diversos
saúde mental, é marcada pela soberania do saberes, conta com uma construção conjunta
saber médico sobre os demais saberes. Esse intermembros da equipe, entre a equipe e a
tipo de estrutura está fundado no princípio família e intermembros da família acerca das
básico da psiquiatria tradicional de loucura saídas possíveis para os problemas suscitados
enquanto doença eminentemente orgânica. pelo sistema familiar.
Já a estrutura horizontalizada remete a uma
relação de aliança entre os saberes, onde a Com isso, conclui-se que é apenas com a
loucura é vista como plurideterminada, e, com horizontalização dos saberes dentro da equipe
isso, como um fenômeno de ordem que o trabalho multidisciplinar pode fazer
existencial e psicodinâmico. Tal estrutura está sentido em saúde mental, já que essa
mais condizente com o modelo de reforma horizontalização conta com um questionamento
psiquiátrica que passa a ver a loucura enquanto epistemológico maior, e, assim, dá abertura para
um fenômeno de ordem complexa, se compreender o sujeito em sua complexidade
abarcando a existência do sujeito em sua e multideterminação.
totalidade (biológica, psicológica, social/
relacional). Nesse sentido, o médico seria
As três dimensões atitudinais
mais um membro da equipe e o fator Diante da importância da visita domiciliar
biológico não seria a causa determinante, mas enquanto dispositivo que ajuda na inclusão
sim, mais um fator que contribui para a social do sujeito com sofrimento mental grave,
manutenção do sofrimento psíquico grave. que tipo de relação deve ser estabelecida para
que a família e o sujeito possam, realmente,
A horizontalização dos saberes faz todo o estar no lugar de sujeitos capacitados para lidar
sentido dentro da reforma psiquiátrica, pois é com seus problemas? Postulamos três
só a partir dessa ampliação da visão sobre o dimensões atitudinais que são de fundamental
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importância para que se consiga alcançar o evitam a tentativa da cosmovisão e narrativa,


objetivo de capacitação do núcleo familiar: a ou ainda, a tentativa de moldar os pacientes
ética, a ação-teórica e a postura reflexiva. em princípios universais” (p. 122). Com isso,
pode-se entender que a ação teórica tem por
De acordo com Araújo (2003), para se trabalhar objetivo evitar a “objetalização” do sujeito ao
em saúde mental dentro dos pressupostos pressuposto teórico dominante da equipe, ou
reformistas, faz-se necessária a construção de seja, que esse pressuposto não seja o norte
uma ética para a loucura, pois, além de a ética principal em que a equipe se baseia para
ser o princípio norteador de qualquer prática construir sentidos acerca das experiências
profissional em saúde mental, esta também vivenciadas na visita domiciliar, mas sim, que
perpassa pela questão da reconstrução da o sentido das experiências sejam resgatados
moralidade, ou seja, a atitude ética não seria na família, tendo por base seu cenário
apenas uma tentativa de reprodução da moral, subjetivo.
mas sim, uma reconstrução desta a partir do
contato com o outro. Ainda de acordo com Neubern (2004), a
teoria, como qualquer construto a priori, deve
A transformação do social é um dos princípios ser apenas uma referência, um ponto inicial
da luta antimanicomial. Segundo Lobosque na tentativa de se apreender a dinâmica
(1997), é necessária uma flexibilização dos familiar, e não um critério absoluto de verdade.
limites sociais para “fazer caber” a diferença. Nesse caso, a relação se inverte, já que, do
É só a partir dessa flexibilização que pode existir, singular, se constrói um geral, que pode e deve
realmente, uma inclusão social. estar aberto às novas construções e
interpretações. Essa visão vai de encontro à
Segundo Guarechi (2003), a ética seria
visão atual legitimada pelo paradigma
definida como uma postura crítica, na relação
dominante, em que, do geral naturalizado, Assim, pode-se
dialógica com o outro, diante de todo conceito dizer que a
constrói-se o singular (leis universais).
criado e institucionalizado. Essa dimensão da transformação da
moral, em visita
ética discute a importância da transformação, Dentro dessa dimensão da ação teórica, a domiciliar, teria
do aperfeiçoamento de todo o criado que, no teoria ganha o status de dinamicidade e como ponto de
caso específico da doença mental, seria o partida a
historicidade, ou seja, a teoria ou a técnica é
destituição da
discurso normatizador e culpabilizador da sempre relacionada a um sujeito específico, imagem social da
família, para que se possa ser ético, justo com está sempre aberta ao novo, ao singular de família enquanto
o outro. culpada e
cada dinâmica familiar. Segundo Gonzalez Rey incapacitada de
(2002), essa nova forma de atuação fala da cuidar.
Assim, pode-se dizer que a transformação da
transição de uma epistemologia da resposta
moral, em visita domiciliar, teria como ponto
para uma epistemologia da construção.
de partida a destituição da imagem social da
família enquanto culpada e incapacitada de
cuidar. Só assim pode-se entrar no cerne do Para que a família possa emergir enquanto
sofrimento familiar, encapsulado pela fenômeno singular e único na relação com o
normatização, e, desse sofrimento, buscar a técnico, a postura reflexiva, também, se faz
saúde que existe no sistema, permitindo que de grande importância. O sujeito é formado
os membros da família se sintam valorizados pelo social, ou seja, pelos espaços sociais em
e seguros para encontrar soluções criativas para que circula. Esses espaços sociais são de
o seu sofrimento. fundamental importância para a percepção que
o sujeito vai construir acerca de si e do mundo,
Segundo Neubern (2004), a ação teórica é fundando a sua configuração subjetiva, sendo
definida como “um conjunto de princípios que que, a partir dessa configuração, o sujeito vai
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Visita Domiciliar em Saúde Mental – O Papel do Psicólogo em Questão

atribuir sentidos aos fenômenos observados família. Segundo Guidano (1997), o sujeito não
e agir de acordo com esse sentido. observa o objeto, mas sim, experencia-o a
partir de seu próprio corpo. “Como seres
Um dos espaços sociais em que os técnicos humanos, não podemos fugir da nossa maneira
circulam é a própria instituição psiquiátrica, particular de ser” (p. 79).
que reproduz os construtos do paradigma
dominante passados na formação acadêmica A partir do momento em que se entende a
e moral: o técnico tem o saber, o usuário está percepção de um dado fenômeno enquanto
fora de si e precisa ser tutelado e ser paciente, intrinsecamente ligado à configuração subjetiva
a loucura é uma doença orgânica, e a família de quem observa, pode-se dizer que um
é incapaz de cuidar se não tiver a fenômeno nunca é visto de maneira pura, mas
instrumentalização necessária, que se adquire sim, personalizada.
a partir do conhecimento técnico.
Dessa forma, Andersen (1998) cita a existência
Com isso, o técnico constrói os conceitos sobre de tantas versões de uma dada situação
si, enquanto profissional, baseado nesses quantos forem os sujeitos que a observam.
construtos, além de também estar inserido Assim, a reflexão com a família tem por
no senso comum, que reproduz vários mitos objetivo desconstruir a relação ou-ou, onde
relacionados à loucura e à família. Dessa apenas um discurso traz a verdade, para
forma, pode-se dizer que, para se construir construir a relação tanto-como,
uma relação que subjetive a família, é horizontalizando o saber entre equipe e família.
necessária uma reforma pessoal, de reflexão Seria a passagem da atribuição de um saber
acerca dos valores dos próprios profissionais, único para o compartilhamento desse saber
construídos nos seus espaços sociais e (idem, 1998).
concretizados nas atitudes que estes
constroem com a família e com o usuário de Com isso, percebe-se que a postura reflexiva
saúde mental. ou reflexividade é um conceito que está
ancorado em duas dimensões diretamente
É a partir da reflexão de quais valores subjetivos relacionadas e que necessariamente devem
do técnico estão sendo passados no discurso, estar presentes na relação com a família: a
e que lugar está sendo construído para a família auto-reflexão, que permite que cada sujeito
a partir deste discurso, que o técnico pode se perceba de que forma os seus valores estão
diferenciar da família e buscar uma relação influenciando a forma de perceber a família e
onde essa possa surgir enquanto singularidade. de construir um lugar para esta, e a reflexão
É importante lembrar que a ética e a ação conjunta, que proporciona um
teórica só ganham vida na relação pela postura compartilhamento de percepções entre equipe
reflexiva, já que, como já foi discutido e família e amplia a compreensão acerca da
anteriormente, a equipe dá sentido aos dinâmica familiar.
conceitos a priori acerca de um sujeito
específico, sentido esse que é subjetivo e diz Pelo que foi discutido, conclui-se que, a partir
da configuração subjetiva de cada técnico. de uma relação ancorada nas três dimensões
Logo, a teoria e a moral não são puras, mas atitudinais (ética, ação teórica e postura
sim, pessoalizadas. reflexiva), pode-se construir um novo lugar para
a família, lugar onde se possa concretizar o
Além dessa dimensão da auto-reflexão, a objetivo da visita domiciliar de capacitação do
postura reflexiva também deve estar presente sistema familiar e, assim, ajudar na
em uma outra dimensão: a de refletir com a concretização do objetivo principal da reforma

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psiquiátrica: a inclusão social e cidadania do momentos, a reflexão acerca dos valores de


usuário de saúde mental. cada técnico, e, por outro lado, traz a limitação
teórica de sua atuação. Dessa forma, o
O papel do psicólogo acolhimento pode ajudar a equipe a encontrar
novas formas de lidar com a própria
De acordo com a prática vivenciada que está impotência, suscitada pelo contato com a
em reflexão no presente artigo, o psicólogo, loucura e com a configuração familiar.
por sua formação diferenciada, pode ter um
papel fundamental dentro da equipe Além dos papéis de acolhimento e
multidisciplinar, a escuta. É a partir da escuta intermediação realizados pelo psicólogo, este,
que o profissional pode proporcionar como conhecedor da função das relações
momentos de subjetivação do sistema familiar, dialógicas na construção de sentidos subjetivos,
favorecendo a ampliação da percepção da bem como do papel dos construtos sociais na
equipe e da própria família acerca dos construção dessas relações, pode exercer,
problemas suscitados por esta. também, o papel de incentivador da reflexão
técnica dentro da equipe. Ressalta-se que o
Um outro papel do psicólogo, que está acolhimento e a intermediação são resultado
intimamente ligado ao seu papel principal de da postura de escuta do profissional de
escuta, é a de ser um intermediador entre a Psicologia. Em outras palavras, por conhecer
instituição e a família, ajustando as demandas os processos relacionais, o psicólogo pode
e “limpando” os canais de comunicação. Essa ajudar a compreender, dentro de um espaço
atitude, em muitos momentos, é necessária, social, que lugares estão sendo construídos
já que a equipe institucional, pela grande para os sujeitos (equipe, usuários e família) e
demanda de visitas e falta de instrumental de que forma podem-se construir novas
teórico, muitas vezes pode entrar em conflito relações para que esses lugares sejam
com as famílias, conflitos esses que podem condizentes com os pressupostos da reforma.
ser solucionados pelo diálogo intermediado. Com isso, pode-se notar que é a partir da crítica
epistemológica, concretizada na posição do
Muitos conflitos que podem surgir entre equipe
psicólogo dentro da equipe, pela escuta
e família estão ligados à tentativa de
diferenciada, que novas formas de se relacionar
“objetalização” dessa família pela equipe. Essa
com a família e com os próprios membros da
“objetalização” é realizada como uma
equipe vão sendo delimitadas, e, assim,
tentativa de negação da impotência por parte
buscando a capacitação da família ao invés da
da equipe. A partir da vivência no projeto
normatização desta, e a inclusão do sujeito
“Vida em Casa”, observou-se que a saída
que sofre ao invés da sua exclusão e punição
encontrada pelos técnicos para lidar com a
por ser diferente.
impotência era, muitas vezes, a instauração
das relações de violência. É importante salientar que qualquer
profissional é capaz de estabelecer relações
Com isso, um outro papel do psicólogo surge:
que favoreçam a capacitação familiar. Se assim
o acolhimento da própria equipe. Esse
não fosse, o saber soberano apenas mudaria
acolhimento pode ser de grande importância
de especialidade, deixando de ser a psiquiatria
para os membros da equipe, incluindo o
para ser a Psicologia. Como a reforma tem
próprio psicólogo, para estes poderem suportar
como principal pressuposto a desconstrução
estar no lugar de não-saber, mesmo que a
família lhes atribua o poder de saber. da loucura enquanto doença eminentemente
orgânica, para ser vista em sua complexidade,
A posição de não-saber exige, em muitos não faz o menor sentido instituir um poder
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Visita Domiciliar em Saúde Mental – O Papel do Psicólogo em Questão

soberano ao psicólogo, já que, da mesma para o sujeito com sofrimento psíquico grave.
forma que no paradigma psiquiátrico, a visão Assim, mesmo com o atendimento domiciliar,
da loucura e da família seria reduzida, nesse é importante que esse sujeito tenha outras
caso, ao viés psicodinâmico. possibilidades de ser assistido, outros projetos
terapêuticos dos quais possa participar.
Na equipe Assim, pode-se dizer que o psicólogo, pelo seu Segundo Tenório (2001), há de haver tantos
multidisciplinar, o papel de escuta, pode ser o precursor do projetos terapêuticos quantos forem os sujeitos
grande desafio
movimento de reflexão e mudança. É que sofrem.
para todos os
técnicos é não só importante ressaltar que essa escuta
poder conhecer o diferenciada e conseqüentes acolhimento, O objetivo de capacitação familiar, como já
seu papel mas foi colocado, só pode ser atingido se o
compreensão e mediação só são possíveis se a
também conseguir
valorizar e formação desse psicólogo, assim como sua profissional de saúde mental buscar uma nova
reconhecer o atuação, privilegiarem o sujeito, o postura relacional, saindo da “objetalização”
papel do outro e normatização do diferente e do seu sistema
conhecimento e a compreensão deste, ao invés
como de
fundamental da pura “objetalização” e “psiquiatrização” do familiar. Essa postura pode estar ancorada, de
importância para social. acordo com este artigo, em três dimensões
se ter uma visão atitudinais: a ética, na busca da transformação
complexa dos
Na equipe multidisciplinar, o grande desafio do social; a ação teórica, que tem por objetivo
fenômenos. Só
assim pode-se ter para todos os técnicos é não só poder a flexibilização teórica para fazer caber a
uma equipe conhecer o seu papel mas também conseguir diferença, e a postura reflexiva, de
horizontalizada,
valorizar e reconhecer o papel do outro como fundamental importância para que as outras
aberta à reflexão e
a novas de fundamental importância para se ter uma duas dimensões possam, de fato, se
alternativas visão complexa dos fenômenos. Só assim concretizar e, assim, atingir a epistemologia
relacionais e de da construção.
pode-se ter uma equipe horizontalizada,
ação terapêutica.
aberta à reflexão e a novas alternativas
relacionais e de ação terapêutica. Além disso, neste artigo, foi discutida a
importância do trabalho em equipe. Segundo
Conclusão Brandão (2001), “a intervenção em equipe
possibilita que diferentes olhares auxiliem a
A partir do que foi discutido, pode-se concluir criação de diferentes hipóteses” (p. 90). Só
que, para ser um sujeito que tem seu lugar assim pode-se tentar vislumbrar a
na comunidade, o louco deve recobrar as suas complexidade do sistema familiar e da loucura.
referências afetivas e sociais. Só assim ele Dessa forma, pode-se dizer que o papel do
pode sair da alienação que a instituição da psiquiatra na reforma foge do lugar central de
exclusão promove. Para ter de volta essas atendimento à loucura, deixando de ser o
referências, é importante que esse sujeito em profissional de referência e passando a ser
sofrimento retorne à sua rede social. Esta deve equiparado aos outros saberes. Diante da visão
se sentir capaz de lidar com esse sujeito, da loucura enquanto complexidade, todos os
sentindo-se parte integrante do tratamento. É aspectos da vivência do sujeito passam a ser
nesse momento que a visita domiciliar pode considerados: sua configuração subjetiva, seu
ter um papel fundamental de capacitação do corpo fisiológico e a relação desse sujeito e
sistema familiar para que este possa se sentir sua família com o social.
seguro e confiante, podendo lidar com os
problemas suscitados pelo convívio com a De acordo com o que foi discutido, pôde-se
loucura sem a dependência dos técnicos. concluir que, para se ter essa visão ecológica
do adoecimento mental e da configuração
Salienta-se que, em muitos momentos, o familiar, faz-se necessária uma horizontalização
atendimento técnico é de grande relevância dos saberes dentro da equipe, horizontalização

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essa que pode ser promovida, inicialmente, para ser um profissional transformador desse
pelo profissional da Psicologia. social. Desta forma, sua atuação vai estar
ancorada nas três dimensões atitudinais
Esse profissional, por sua postura diferenciada
discutidas neste trabalho.
de escuta, pode, dentro da equipe, ajudar na
ampliação acerca da percepção de um
É só a partir dessa nova formação que o
problema específico suscitado pela família;
psicólogo pode privilegiar o sujeito, sua
fazer o papel de intermediação entre a equipe
e a família; e incentivar a reflexão técnica configuração subjetiva, subjetivando a
intermembros da equipe.Todos esses papéis demanda do usuário e de seu sistema familiar
só podem ser alcançados se esse profissional e ajudando a buscar as habilidades dentro do
tiver uma formação diferenciada, de crítica sistema para resolver os problemas suscitados,
epistemológica, deixando de ser um e, assim, buscar, propriamente, a saúde mental
profissional de reprodução e controle social ao invés da doença.

Ana Paula da Cunha Pietroluongo


Psicóloga graduada no Centro Universitário de Brasília – UniCEUB

Tania Inessa Martins de Resende


Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, psicóloga, psicanalista
e orientadora deste trabalho.

SQN 114 Bloco D Ap. 406, Asa Norte Brasília – DF CEP: 70764-040
Tel.: 92677777/ 99771763.

E-mails: anapaula.pietroluongo@gmail.com
tania@hades.com.br

Recebido 13/02/06 Reformulado 18/07/06 Aprovado 24/07/06

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ASSOCIAÇÕES ENTRE SUPORTE FAMILIAR
E SAÚDE MENTAL

Associations between family support and mental health

Mayra Silva de Souzaa, Makilim Nunes Baptistab


a
Mayra Silva de Souza: Doutoranda em Psicologia pela Universidade São Francisco - USF. Bolsista CAPES Itatiba, SP - Brasil,
e-mail: souza.mayra@gmail.com
b
Makilim Nunes Baptista: Doutor em Psiquiatria e Psicologia Médica, Docente do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em
Psicologia da Universidade São Francisco - USF. Bolsista produtividade CNPq. Itatiba, SP - Brasil, e-mail:
makilim.baptista@saofrancisco.edu.br

Resumo
A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas em ausência
de doença ou enfermidade. A saúde mental constitui-se como parte indispensável da saúde geral,
permitindo ao indivíduo o aproveitamento pleno de suas capacidades cognitivas, relacionais e afetivas,
o enfrentamento de dificuldades na vida, a produção no trabalho e a contribuição para ações em
sociedade. Os critérios para saúde e doença mental não podem ser considerados independentemente,
restritos ao indivíduo, uma vez que sua identidade a todo momento reflete uma experiência grupal. A
saúde mental resulta do bom funcionamento interno do indivíduo, bem como sua capacidade de
estabelecer ótimas relações com pessoas, sociedade e família. No grupo familiar, é possível que haja
uma predisposição à enfermidade, acarretando regressão, desintegração e ruptura na comunicação,
porém, quando as funções familiares primordiais são cumpridas, a possibilidade existente é a de um
potencial de promoção à saúde. O suporte familiar pode ser compreendido como manifestação de
atenção, carinho, diálogo, liberdade, proximidade afetiva, autonomia e independência existente entre os
integrantes da família e pode ser pensado como agente de proteção frente ao risco a doenças mentais,
e agente amortecedor frente aos eventos estressantes, o que sustenta a criação de programas de prevenção
e tratamento, visando ao restabelecimento da saúde.

Palavras-chave: Suporte familiar; Família; Saúde mental.

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208 Mayra Silva de Souza; Makilim Nunes Baptista

Abstract
Health is a complete state of physical, mental and social well-being, not consisting only in the
absence of illness or disease. Mental health can be considered an essential part of general health,
allowing the individual full use of his cognitive, relational and affective abilities, coping strategies,
work production and contributions to actions in society. The criteria for health and mental illness
cannot be considered independent ones, restricted to the individual, once his identity, in all
moments, reflects a group experience. Good health is a result of intern good function and the
ability to establish great relations to people, society and family as well. In the family group, the
existence of a tendency to illnesses is possible, resulting in communication’s regression,
disintegration and tearing, however, when primary family functions are fulfilled, the existent
possibility is of a potential to health promotion. Family support may be understood as attention,
care, dialog, freedom, affective proximity, autonomy and independence manifestations occurring
among family members and it can be thought as a protective agent towards mental health’s
risks and also, a softener agent facing stress events, what can support the creation of prevention
and treatment programs, considering health’s reestablishment.

Keywords: Family support; Family; Mental health.

INTRODUÇÃO estabelece seus primeiros vínculos de uma


convivência grupal. A família é que vai mediar a
A saúde mental é um conceito de difícil relação do indivíduo com o mundo, provendo apoio
definição, pois diferencia-se de acordo com cada afetivo e material (Ackerman, 1986; Campos, 2004;
cultura, em um dado momento histórico, em uma Ceberio, 2006). Quando a família consegue oferecer
determinada população, o que servirá de modelo a seus membros cuidado, carinho, atenção, diálogo,
para se considerar o que é um comportamento autonomia, empatia, afetividade, aceitação e
normal (conduta seguida pela maioria das pessoas liberdade, ela passa a funcionar como uma
que caracterizam essa população) e um importante fonte suporte, indispensável ao
comportamento desviante (como indica o próprio desenvolvimento saudável de seus integrantes.
nome, conduta explicada pela minoria das pessoas
que destacam-se por diferir das ditas “normais”). Histórico e evolução de conceito
(Loureiro, 2000; Pasquali, Gouveia, Andriola, de doença e saúde mental
Miranda & Ramos, 1996). Nota-se aqui, a influência
do aspecto cultural e histórico na consideração dos O conceito de doença mental vem
estados de saúde e doença mental. evoluindo desde as sociedades primitivas, nas
Ainda que seja difícil a conceituação da quais a causa da manifestação de tal doença era
saúde mental, vários outros aspectos se veem atribuída ao sobrenatural. Antigos egípcios,
imbricados e indispensáveis na determinação do hebreus e árabes acreditavam que manifestações
estado de saúde de um indivíduo. Assim, é importante como essas traduziam a possessão de maus
considerar o aspecto biológico, no que tange a uma espíritos, demônios e deuses irados (Ribeiro, 1996,
predisposição genética e hereditária do indivíduo Vietta, Kodato & Furlan, 2001).
para a doença mental, e também o aspecto sócio- Hipócrates, considerado o pai da medicina
psicológico, no que se refere à qualidade das relações moderna, introduziu explicações fisiológicas que
que o indivíduo estabelece com grupos, que pode negavam essa abordagem sobrenatural como
contribuir tanto para a saúde quanto para a doença justificativa para o comportamento anormal. Suas
mental. (Basic Behavioral Science Task Force of the explicações baseavam-se na noção de equilíbrio-
National Advisory Mental Health Council, 1996). desequilíbrio entre substâncias, sistemas e órgãos,
As relações mais profundas e duradouras nas quais o comportamento era resultante da
são estabelecidas dentro da família, principalmente alteração dos níveis de quatro humores (bile negra,
nos primeiros anos de vida. É nela que um indivíduo bile amarela, fleuma e sangue). O desequilíbrio de

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Associações entre suporte familiar e saúde mental 209

tais substâncias resultava em depressão, ansiedade com a mãe e é demonstrado de várias maneiras,
e alterações bruscas de humor (Holmes, 1997). porém, especialmente da maneira que o bebê é
Na Idade Média, e mais adiante no apoiado. Com o passar do tempo, o suporte se
Renascimento, os doentes mentais não eram expande, se originando cada vez de outros membros
considerados apenas como possuídos pelo demônio, da família, daí então dos colegas de trabalho e da
mas também como ameaça para a sociedade, comunidade, e talvez, em caso de necessidade
devendo ser perseguidos e mortos. Essa concepção especial, de um membro cuja profissão é de ajuda
deve-se à prevalência da religião cristã, que lançava humana. À medida que o fim da vida se aproxima, o
mão da ideia de luta constante entre as forças do apoio social, em determinadas culturas, outra vez se
bem contra as forças do mal (Bastos, 1997). origina, principalmente de membros da família.
As doenças mentais tornaram-se objeto de A primeira e essencial função psíquica da
uma ciência que acabara de surgir, a psiquiatria. As família é dispensar afeto, fundamental à
explicações para as desordens de comportamento, sobrevivência emocional dos recém-nascidos.
afetividade e pensamento, mais uma vez pautavam- Transmitir as experiências individuais e grupais
se numa abordagem orgânica, estudada a partir de acumuladas é uma tarefa psicológica e social, na
descobertas da neurofisiologia e da neuropsiquiatria. medida em que os pais colaboram com a formação
Mais tarde, as explicações para o comportamento da identidade pessoal de seus filhos. Cabe ainda à
anormal, concentraram-se em causas psicológicas e família o fornecimento de um ambiente adequado
as várias abordagens da psicologia explicavam essa para a aprendizagem empírica, assim como a
relação a sua maneira (Holmes, 1997, Ribeiro, 1996). mediação de informações com o universo
A saúde mental, para a Organização circunjacente (Osório, 1996). É fundamental na
Mundial de Saúde (2000) é o estado que permite ao dinâmica familiar a comunicação congruente,
indivíduo o aproveitamento total de suas capacidades direcional, funcional e com carga emocional; regras
cognitivas, afetivas e relacionais, o enfrentamento coerentes e flexíveis; liderança compartilhada com
de dificuldades na vida, a contribuição para ações em filhos de forma democrática; autoestima; relação
sociedade e a produção no trabalho. A partir desse conjugal integrada, porém de forma que possibilite
conceito fica explícito o caráter transdisciplinar da à família atuar como um todo, preservando a
saúde mental, uma vez que esta é influenciada por individualidade de cada um (Féres-Carneiro, 1992).
várias dimensões, inclusive a dimensão social. Sendo Ao cumprir essas funções e sendo
assim, os critérios para a saúde e doença mental não percebida como afetuosa, coesa, com boa
podem ser considerados independentemente, restritos comunicação, com regras flexíveis, mas com limites
ao indivíduo, uma vez que sua identidade, a todo e fronteiras claras, a família consegue fornecer a
momento, reflete uma experiência grupal. A saúde seus membros, instrumentos fundamentais ao
mental resulta do bom funcionamento psíquico crescimento individual e pode ser entendida como
interno do indivíduo, bem como sua capacidade de um sistema de suporte (Lidchi & Eisenstein, 2004).
estabelecer relações adequadas com pessoas, O suporte familiar é traduzido como o
sociedade e família. (Ackerman,1986; Ramos, 2002). cumprimento de determinadas funções da família,
tais como: coletar e disseminar informações sobre
o mundo, transmitir ideologias, ajudar na formação
Família e suporte familiar de identidades, oferecer serviços práticos de ajuda
concreta, apoio emocional, orientação e feedback e
A família é entendida como rede primária ainda guiar e mediar na solução de problemas,
de interação social e provedora de apoio indispensável servindo de refúgio para repouso e recuperação de
à manutenção da integridade física e psicológica do seus membros (Caplan, 1976 apud Campos, 2004).
indivíduo. Assim, a família torna-se referência nas Para Parker, Tupling e Brown (1979) o
crenças, valores e comportamentos do indivíduo, à suporte familiar se traduz na quantidade de cuidados
medida que pune ou premia suas atitudes, orientando- e proteção que os pais delegam a seus filhos, incluindo
o quanto à forma de agir (Campos, 2004). comportamentos de afeto, cooperação, sensibilidade,
De acordo com Cobb (1976), o suporte tem aceitação, indiferença, rigor, rejeição, punição,
início desde o início do ciclo vital, é melhor controle, superproteção, estímulo à autonomia e à
manifestado nas primeiras relações estabelecidas independência. Procidano e Heller (1983) apontam

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uma compreensão na qual o suporte é entendido A família, ao mesmo tempo em que é vista
como grau de satisfação pela família diante das como a mais importante fonte de suporte, é também
necessidades de informação, apoio e feedback. Para concebida como fonte mais importante de estresse
Moos (1990), suporte familiar inclui grau de confiança, para seus membros, afetando de maneira poderosa
afeto, apoio e ajuda entre os membros da família. nos processos de saúde e doença. Na família, o
Suporte familiar pode ser entendido como suporte se estrutura de forma mais consistente, pois
a capacidade da família em oferecer a seus membros: é nela que os vínculos tornam-se estáveis e duradouros
constância, cuidado, carinho, atenção, diálogo, e, talvez por isso, as crises que afetam o
informação, autonomia, empatia, afetividade, funcionamento familiar são estressantes. O estresse
aceitação e liberdade (Baptista & Oliveira, 2004). vivenciado na família está ligado ao comportamento,
Sendo assim, esse conceito refere-se às à necessidade e à personalidade de cada membro da
características psicológicas que a família oferece a família, o que gera impacto na interação com os
seu membro, o que se diferencia do conceito de outros membros do sistema familiar, algumas vezes
estrutura familiar, que se refere às características produzindo estresse. Os conflitos entre os membros
físicas tais como o número de pessoas pertencentes da família podem vir de comportamentos
a uma família, sua disposição e composição. De imprudentes, problemas financeiros e de objetivos
acordo com os estudos de McFarlene, Bellissimo e contrários (Campos, 2004).
Norman (1995), não há relação direta entre estrutura Segundo Féres-Carneiro (1992), a
familiar e suporte familiar, uma vez que as diferentes configuração da dinâmica familiar, cujo
estruturas familiares têm capacidade de oferecer funcionamento pode ser facilitador ou dificultador,
suporte familiar adequado. traduz a formação da saúde mental dos membros de
De acordo com Campos (2004), o efeito uma família. Para Zamberlan e Biasoli-Alves (1996),
principal do suporte fundamenta-se à medida que é a promoção de um saudável e adequado
percebido pelo receptor como satisfatório, de maneira desenvolvimento da criança está intimamente
que esse receptor sinta-se valorizado, amado, relacionada com a qualidade das relações e
reconhecido, compreendido, cuidado e protegido e, interações constituídas entre os membros da família.
ainda, fazendo parte de uma rede de informações e De acordo com Steinhausen (1985), mudanças no
recursos que com ele são partilhados. É essa funcionamento da família, no que tange às práticas
percepção que vai permitir ao indivíduo enfrentar o inadequadas de atenção às crianças, estão
ambiente, de forma a lhe trazer resultados positivos relacionadas com a gravidade dos distúrbios infantis.
que contribuam para o seu bem-estar psicológico, O provimento e o recebimento do suporte
aumento da autoestima e redução do estresse. familiar influi diretamente no bem-estar físico,
psíquico e social do indivíduo, sendo que a falta
desse suporte é um dos fatores que traduz
Suporte familiar e saúde mental predisposições à doença mental. A percepção e o
recebimento de suporte pelos membros da família,
As relações estabelecidas na família constituem fontes fundamentais para a manutenção
parecem constituir uma fonte de relações que da saúde mental, no que tange à promoção de
contribui nos processos de saúde ou doença. No benefícios nos processos fisiológicos (sistema
agrupamento familiar é possível que haja uma endócrino, cardiovascular e imunológico), ao
predisposição à enfermidade, ocasionando enfrentamento de situações estressantes, e no alívio
desintegração, regressão e ruptura na comunicação, dos estresses físico e mental. (Basic Behavioral
porém, quando as funções primordiais da família Science Task Force of the National Advisory Mental
são desempenhadas, tais como afeição, proteção, Health Council, 1996; Uchino, Cacioppo e Kiecolt-
formação social, autonomia, etc., a possibilidade Glaser, 1996).
existente é a de um potencial de promoção à saúde O relacionamento que os pais ou
(Féres-Carneiro, 1996). Segundo Osório (1996), o cuidadores estabelecem com a criança durante a
oferecimento de um adequado suporte pelo grupo infância é de suma importância. O afeto, a atenção
familiar favorece a superação das crises vitais, ou e o cuidado constante dispensado permite que a
melhor, da desestruturação causada por essas crises. criança se desenvolva normalmente. Já a não-

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transmissão desses cuidados pode aumentar a acolhidas por algum tipo de suporte, e que isso
probabilidade dessa criança manifestar distúrbios serviria então para diminuir as probabilidades destas
mentais e comportamentais, tanto durante a infância desenvolverem sérios problemas psicopatológicos
quanto em fases posteriores da vida (Organização e sentimentos de desesperança.
Mundial da Saúde, 2001). Em um estudo de revisão, Baptista,
Evidências científicas indicam que altos Baptista e Dias (2001), estudaram a estrutura e o
níveis de controle, especialmente a afirmação do suporte familiar como fatores de risco para a
poder (demandas acompanhadas por frequente depressão em adolescentes. Os autores ressaltam
punição física), podem ter consequências que não se pode pensar em uma causa específica
prejudiciais para a criança. Assim, a concepção de para o desenvolvimento da depressão, que é
controle tem sido distinguida de duas formas: a multifacetária, sendo influenciada por fatores
primeira forma de controle proporciona estrutura biológicos/genéticos, psicológicos e sociais.
ao indivíduo, baseia-se em padrões racionais para o Porém, as rápidas mudanças sociais familiares, no
comportamento infantil, envolvendo comunicação que tange às mudanças na composição, estrutura
e encorajando a criança a se desenvolver, ser física e, consequentemente, nas regras e papéis da
independente, cooperar e conviver em sociedade; a família, acabam por colaborar com a prevalência
segunda forma combina rigidez com cumprimento de depressão na população adolescente. A família
de regras fixas com pobre fundamento, ainda deve ser considerada como amortecedora
desencorajando o desenvolvimento de atributos frente aos eventos estressantes, enfrentados no
positivos na criança (Basic Behavioral Science Task cotidiano de adolescentes.
Force of the National Advisory Mental Health O estudo de McFarlene, Bellissimo e Norman
Council, 1996). (1995) avaliou a associação entre a estrutura familiar,
Parker, Tupling e Brown (1979) postularam a integração familiar e o bem-estar dos filhos na
que os pais que dispensam afeto e são empáticos adolescência, estabelecendo o contraste de famílias
permitem que o filho tenha uma maior autoestima e intactas com aquelas que foram afetadas por alguma
isso proporciona proteção contra a depressão na fase mudança. Foi feita uma pesquisa com 810 estudantes
adulta. Os autores explicaram que a superproteção de 11 escolas de um único sistema educacional. Os
está relacionada à depressão através da inibição da resultados indicaram que a configuração familiar não
autonomia e da competência social. Ao desencorajar foi o principal fator determinante na eficiência da parte
a independência e nutrir uma expectativa de que as funcional da família. Em vez disso, a maneira como os
consequências não dependem de respostas, o pais tratam os filhos foi considerado o fator
abandono e a depressão são providos quando são determinante para a integração familiar e o bem-estar
enfrentados os fatores de estresse. dos adolescentes. Os cuidados da mãe e do pai foram
Kashani, Canfield, Borduin, Soltys e Reid associados à integração familiar saudável ao passo que
(1994) investigaram a relação da percepção familiar a superproteção foi negativamente associada a este
em crianças e o suporte social para o comportamento resultado. As famílias nas quais houve morte de um
de desesperança destas. Participaram dessa pesquisa dos pais pareceram funcionar (integrar-se) tão bem
100 crianças pacientes psiquiátricas que como as famílias cujos pais estavam sempre presentes,
responderam uma série de medidas de autorelato, mais uma vez ressaltando a ideia que a função familiar
incluindo o Social Support Questionnaire-Self Report, a não é determinada pela estrutura. No entanto, não está
Scale of Independent Behavior, e a Hopelessness Scale for bem estabelecida ainda a inexistência da associação
Children. Crianças com baixo nível de suporte familiar entre saúde mental e estrutura familiar.
e social mostraram-se mais desatentas, ofensivas e Bassuk, Mickelson, Bissel e Perloff (2002)
não-cooperativas. Em adição, crianças que investigaram o papel de vários membros da família,
relataram menos pessoas suportivas em suas vidas diferenciando os pais e os filhos, e descobriram que
apresentaram alto nível de desesperança. Esses a relação com os irmãos proporcionou resultados
dados enfatizam a conexão entre sistemas de suporte positivos para a saúde mental (frequentemente
social, psicopatologia e desesperança. Esses mais forte que a relação com os pais). Em algumas
relacionamentos poderiam indicar que crianças famílias pobres que compuseram a amostra, as
necessitam sentir que estão sendo cuidadas e relações entre irmãos podem ter assumido um nível

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maior de importância por causa de rupturas na composta por 3801 adultos. Os resultados sugerem
família de origem e a falta compreensível de uma que ter um dos pais com doença mental aumenta a
criação consistente por parte dos pais, resultando probabilidade dos eventos de vida estressantes
no estresse inevitável associado à pobreza. Quando resultarem em depressão, porém, ainda não se sabe
os adultos são incapazes de fornecer proteção, a que se deve esse aumento (fatores genéticos ou
segurança, e alimentação, os irmãos podem recorrer ambientais) . A separação por divórcio dos pais,
uns aos outros. associada com eventos de vida estressantes, apontam
Determinadas experiências infantis, como para o aumento da vulnerabilidade para problemas
maus tratos emocionais por parte dos pais ou psiquiátricos e alcoolismo. E a separação por morte
cuidadores, perda dos pais, seja por separação de um dos pais não interage com eventos de vida
(divórcio) ou por morte de algum deles, podem estressantes no sentido de afetar a probabilidade de
resultar em prejuízos duradouros no desen- problemas psiquiátricos, ao menos nesse estudo.
volvimento das crianças e adolescentes, compro- McLeod (1991) concluiu que o evento da
metendo a vida adulta (Heim & Nemeroff, 2001). perda de um dos pais por divórcio estava mais
Bemporad e Romano (1993), em uma revisão acerca fortemente relacionado com consequências negativas
das experiências infantis e depressão na vida adulta, na vida adulta do que a perda por morte. E as
encontraram um alto grau de disfunções nas histórias correlações dos eventos de perda e das consequências
infantis de pacientes deprimidos, quando negativas eram mais fortes nas mulheres do que nos
comparados aos controles. Nesse estudo, a homens. A morte de um cônjuge pode aumentar a
depressão adulta relacionou-se com mau tratamento probabilidade do outro ficar doente ou morrer, ao
na infância, como rejeição e falta de afeto. menos durante dois anos. E os viúvos que não se
Em uma meta-análise, que reuniu dados casam novamente têm maiores taxas de mortalidade
de 2432 sujeitos, foi encontrada uma associação do que os que casam (Ramos, 2002).
significativamente alta entre a perda de um dos pais Kendler, Neale, Keesler, Health e Eaves
com indivíduos que sofriam de depressão, quando (1992), examinaram a relação entre perda dos pais
comparados aos que não sofriam de depressão. A antes dos 17 anos e psicopatologia na idade adulta.
perda de um dos pais antes dos 11 anos relacionou- Essa relação variou de acordo com o tipo de perda
se com mulheres deprimidas; e o fato de ter perdido (por separação conjugal ou morte dos pais) e de
a mãe mais cedo ainda poderia representar um risco acordo com a forma de psicopatologia. A perda dos
aumentado para a depressão. (Patten, 1991). pais por separação conjugal associou-se
Bron, Strack e Rudolph (1991) estudaram principalmente com maior risco para depressão e
328 pacientes com depressão, desordem distímica ansiedade generalizada. Já a perda por morte da mãe
ou desordem de ajuste com humor deprimido. Eles especificadamente relacionou-se ao maior risco para
foram questionados sobre perdas sofridas na infância transtorno do pânico e perda por morte dos pais,
por morte de um ou ambos os pai e também por tanto morte materna como morte paterna, associou-
divórcio dos pais com pelo menos um ano de se a risco maior para fobias.
separação. Não houve estatísticas significativas Em uma amostra japonesa composta por
entre experiências de perda na infância e tipo de 122 pacientes internados com quadro de depressão
depressão, sexo e idade. Contudo, foi encontrado unipolar e 94 que nunca estiveram deprimidos foi
um aumento na incidência de tentativas de suicídio comparada a ocorrência de perda dos pais por morte
naqueles pacientes com experiências de perdas na e por separação conjugal antes dos 17 anos de
infância, por separação dos pais e por morte de um idade. A perda por morte materna foi
deles, sendo o aumento da tendência suicida significativamente mais comum em depressivos
atribuído principalmente à perda do pai. que no grupo controle. E a perda por separação dos
Landerman, George e Blazer (1991) pais teve tendência aumentada no grupo deprimido
investigaram a vulnerabilidade de adultos para (Knugi, Sugawara, Aoki, Nanko, Hirose &
desordens psiquiátricas diante da separação dos Kazamatsuri, 1995).
pais antes dos 10 anos de vida, devido a divórcio ou Luecken (2000) estudou a associação
morte e diante da presença de doença mental nos entre perda por morte de um dos pais, sentimentos
pais durante os primeiros anos da infância. Os de hostilidade, depressão, suporte social e
dados obtidos foram de uma amostra estratificada qualidade das relações familiares em adolescentes.

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Associações entre suporte familiar e saúde mental 213

Participaram dessa pesquisa 30 estudantes mental (Ackerman, 1986; Baptista, 2004; Basic
universitários que experimentaram a morte de um Behavioral Science Task Force of the National
dos pais antes dos 16 anos, e 31 estudantes em Advisory Mental Health Council, 1996; Bassuk,
condição controle. Foram utilizados questionários Mickelson, Bissel, & Perloff, 2002; Campos, 2004;
para medir o suporte social (The Interpersonal Support Féres-Carneiro, 1992; Kashani, Canfield, Borduin,
Evaluation), a hostilidade (Cook Medley Hostility Soltys, & Reid, 1994; OMS, 2001; Ramos, 2002;
Scale), a depressão (Beck Depression Inventory) e a Souza, 2007). Pensando numa forma de
qualidade das relações familiares (Moos Family intervenção para a saúde mental, programas que
Environment Scale). Aqueles com perda de um dos enfatizem o suporte da família podem atuar como
pais apresentaram altos escores de hostilidade, agente preventivo e protetivo frente aos riscos
maior intensidade de sintomas depressivos e menor para doenças mentais, o que sustenta a criação de
suporte social apenas quando apresentavam pobres programas de prevenção e tratamento, visando o
relações familiares atuais. restabelecimento da saúde.
Souza (2007) estudou a relação entre o
suporte familiar e a saúde mental em 520 universitários,
utilizando o Inventário de Percepção de Suporte REFERÊNCIAS
Familiar (IPSF) e o Questionário de Saúde Geral de
Goldberg (QSG). Foram encontradas correlações Ackerman, N. (1986). Diagnóstico e tratamen-
significativas entre os instrumentos, o que demonstra to das relações familiares. Porto Alegre:
que a percepção de demonstrações de afeto, carinho, Artes Médicas.
expressões verbais e não-verbais, habilidade na
resolução de situações-problema, sentimentos Baptista, M. N., Baptista, A. S. D., & Dias, R. R.
positivos, tais como inclusão e compreensão, além do (2001). Estrutura e suporte familiar como fa-
estabelecimento de relações de confiança, liberdade tores de risco na depressão de adolescentes.
e privacidade entre os membros da família, colaboram Psicologia Ciência e Profissão, 21(2), 52-61.
para menor sintomatologia de estresse psíquico, desejo Baptista, M. N., & Oliveira, A. A. (2004).
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revisão, é possível destacar características Family processes and social networks.
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e a saúde mental, como a investigação da estrutura
familiar, sexo, raça, curso, nível econômico. Outras Bassuk, E. L., Mickelson, K. D., Bissel, H. D. &
variáveis ainda se mostram relacionadas, a saber: Perloff, J. N. (2002). Role of kin and nonkin
eventos de vida estressantes, estratégias de support in the mental health of low-income
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relevantes no estudo com os construtos envolvidos. Janeiro: Revinter.
O estudo da associação entre suporte
familiar e saúde mental fundamenta-se na crescente Bemporad, J. R., & Romano, S. (1993).
importância que vários autores têm dado ao fato Childhood experience and adult depression:
de que as relações sociais podem ter um papel a review of studies. American Jour nal
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214 Mayra Silva de Souza; Makilim Nunes Baptista

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de mestrado, programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Psicologia, Universidade São
Francisco, Itatiba.

Psicol. Argum. 2008 jul./set., 26(54), 207-215


Estratégia da Atenção Psicossocial e 1209

participação da família no cuidado em


saúde mental
| 1 Magda Dimenstein, 2
André Luis Sales, 3 Ellen Galvão,
4
Ana Kalliny Severo |

Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir Psicóloga, Doutora em Saúde
1

Mental pelo Instituto de


Psiquiatria da UFRJ, professora
como familiares de portadores de transtornos mentais da UFRN. Pesquisadora do
CNPq. Endereço eletrônico:
têm experienciado as mudanças nas políticas da área, o magda@ufrnet.br
que pensam sobre as novas demandas de participação e 2
Psicólogo pela UFRN.
como as mesmas têm impactado na sua relação cotidiana Bolsista de Apoio Técnico pelo
CNPq. Endereço eletrônico:
com os serviços de saúde mental e nas práticas de cuidado andreluislfs@gmail.com

junto a seus familiares. A pesquisa foi realizada no 3


Graduanda em Psicologia na
UFRN. Bolsista de IC/CNPq.
ambulatório de saúde mental de Natal entre novembro Endereço eletrônico: ellen_
ufrn_galvao@yahoo.com.br
de 2008 e fevereiro de 2009, como parte de um trabalho
4
Psicóloga, Mestre em
de mestrado que objetivava analisar processos de Psicologia pela UFRN e
Professora do Curso de
cronificação em curso nesse serviço. Foram realizadas Psicologia da Universidade
12 entrevistas, sendo sete com familiares e cinco Potiguar. Endereço eletrônico:
akssevero@gmail.com
com usuários. Os resultados evidenciam as inúmeras
dificuldades dos familiares junto às novas propostas de
cuidados em saúde mental, que interferem diretamente na
perspectiva de corresponsabilização posta pela Estratégia
da Atenção Psicossocial. Acreditamos que tal construção
entre técnicos e familiares deve vir acompanhada de
ações de suporte às famílias, de mudanças nos modos
de trabalho e gestão, bem como de avanços em relação
às políticas de inclusão social e reabilitação psicossocial,
de fortalecimento de mecanismos de controle social,
de estímulo ao empoderamento dos usuários e
familiares no sentido de fazer avançar o processo de
desinstitucionalização em saúde mental.
 Palavras-chave: reforma psiquiátrica; saúde mental; Recebido em: 27/10/2009.
reabilitação psicossocial, co-responsabilidade, família. Aprovado em: 30/04/2010.
1210 Introdução
A Reforma Psiquiátrica em curso no país, com o envolvimento de diversos atores
| Magda Dimenstein et al. |

sociais, tem por objetivo substituir o modelo hospitalar, segregador, excludente


e tutelar que por muito tempo teve, e ainda tem, a primazia nos cuidados no
campo dos transtornos mentais (AMARANTE, 1995). Os avanços dessas
discussões culminaram na criação de uma série de políticas públicas que têm
como objetivo a redução progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos, pari
passu a construção de uma rede de serviços substitutivos capazes de prestar
assistência mais qualificada à população que outrora dependia exclusivamente do
hospital. Os principais recursos que hoje estão implementados como alternativas
terapêuticas aos manicômios são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
Serviços de Residência Terapêutica (SRTs), os leitos psiquiátricos em hospitais
gerais, o Programa de Volta para Casa e os atendimentos prestados pelas equipes
de saúde da Atenção Básica (BRASIL, 2004).
Esses dispositivos visam a estabelecer cuidados em saúde mental dentro de um
modelo de atendimento integral que preza a permanência dos indivíduos na sua
comunidade, favorecendo a formação de vínculos estáveis e garantindo seus direitos
de cidadãos. O intuito deste movimento é mudar o paradigma manicomial de
atenção ainda vigente no país e, em seu lugar, consolidar o paradigma psicossocial.
Isto implica mudanças de diversas ordens, desde realocar as verbas do setor – que
se concentravam historicamente nos dispositivos hospitalares – para os serviços
substitutivos, até os modos de trabalho desenvolvidos pelas equipes dentro do
cotidiano dos serviços (Consoli; Hirdes; Costa, 2009; Hirdes, 2009).
Um dos pontos críticos das transformações em curso diz respeito à participação dos
familiares no cuidado e reabilitação do portador de transtorno mental (WAIDMAN;
ELSENS, 2005). A proposta deste trabalho é pensar as implicações da adoção do
paradigma psicossocial (COSTA-ROSA, 2003), enquanto política que direciona as
ações em saúde mental, em relação ao lugar da família nesse processo.
Tomaremos o Paradigma Psicossocial e o Paradigma Psiquiátrico
Hospitalocêntrico Medicalizador como modelos de referência no campo da
saúde mental. Paradigma é entendido aqui como uma “agregação dos diferentes
vetores das pulsações tanto em termos de ação instituinte quanto de resistências
do instituído no campo da Saúde Mental” (COSTA-ROSA, 2006, apud YASUI;
COSTA-ROSA, 2008, p. 28).

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


O Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador fundamenta- 1211
se no princípio doença-cura, em uma organização de serviços estratificada

Estratégia da Atenção Psicossocial e participação da família no cuidado em saúde mental


e hierarquizada, com a busca de remissão de sintomas. Já o Paradigma
Psicossocial compreende o processo de saúde-doença como “processos sociais
complexos e que demandam uma abordagem interdisciplinar” (Yasui;
Costa-Rosa, 2008, p. 29). Está inspirado nos movimentos reformistas que
visam a colocar a existência de sofrimento e as condições materiais de produção
deste como foco do tratamento. Preza práticas sociais que possibilitem a
inclusão de indivíduos que historicamente são alvo de forte exclusão social,
estigma e preconceito. Em outras palavras, o paradigma psicossocial preconiza
um trabalho na perspectiva da desinstitucionalização, não focada na cura da
doença, na readaptação dos indivíduos, na normalização dos sujeitos, mas
na existência de sofrimento humano como objeto real de uma intervenção
(Rotelli; Leonardis; Mauri, 2001).
Na perspectiva acima, a família representa um problema. O paciente deve ser
isolado na medida em que esta é tomada como fator determinante no processo
de enlouquecimento e adoecimento (BORBA; SCHWARTZ; KANTORSKI,
2008; COLVERO; IDE; ROLIM, 2004). A experiência da loucura é tomada
como doença mental justificando e fundamentando tratamentos que têm
por base a medicação, o isolamento, a exclusão e adoção de uma perspectiva
moralizante. O foco do tratamento é a doença em si, tomada como decorrente
de uma patologia orgânica. Portanto, a família é mais um elemento patógeno
que precisa ser eliminado. As mudanças que vêm se processando no campo
da saúde mental indicam uma perspectiva diferente em relação ao lugar da
família, que vem sendo chamada a atuar como corresponsável pelo cuidado e
reinserção social de seus membros (BIELEMANN et al., 2009; CAMATTA;
SCHNEIDER, 2009; BORBA; SCHWARTZ; KANTORSKI, 2008;
COLVERO; IDE; ROLIM, 2004).
Sendo assim, nosso intuito é discutir como familiares de portadores de
transtornos mentais têm experienciado essas mudanças nas políticas da área, o
que pensam sobre as novas demandas de participação e como as mesmas têm
impactado sua relação cotidiana com os serviços de saúde mental e nas práticas
de cuidado junto a seus familiares, de modo a contribuir para uma melhor
compreensão do lugar desses familiares dentro desses arranjos de cuidado.

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


1212 O Paradigma Psicossocial e as
demandas para família e/ou cuidadores
| Magda Dimenstein et al. |

O uso que fazemos aqui do termo “paradigma” diz respeito também a uma
aproximação da forma como ele é usado por Kunh (2006). Trata-se de um
conjunto de conceitos e arranjos que são tomados como válidos para que seja
possível, a partir dele, construir conhecimento. Um paradigma forneceria os
fundamentos sobre os quais uma dada comunidade científica desenvolve suas
atividades. Ele seria algo parecido com um “mapa” a ser usado pelos cientistas
na exploração da natureza. Este guia de observação, este referencial sobre o qual
as práticas se erigem é algo que modela a produção do conhecimento. É esta
aproximação que nos interessa, na medida em que estão em voga hoje diversos
princípios orientadores para o trabalho em saúde mental, que estão exercendo
uma função paradigmática. Tais princípios são diferentes dos outrora vigentes
e, sendo assim, seus efeitos se materializam de outros modos no cotidiano dos
indivíduos que são alvo desse cuidado (CAMATTA; SCHNEIDER, 2009;
SILVA; SADIGURSKY, 2008; CAMPOS; SOARES, 2005).
Como dito anteriormente, a principal característica do modelo tradicional
hospitalocêntrico e manicomial é estar ancorado no princípio da doença-cura,
atendo-se, preferencialmente, ao aspecto orgânico do sofrimento – fator do qual
decorre a ênfase em terapêuticas medicamentosas. Sua base tende a ser atualizada
cotidianamente pela via de atendimentos centrados em sintomatologias,
classificações nosológicas e pela prática da reclusão – fruto da aliança histórica
entre loucura, pobreza e exclusão (FOUCAULT, 2004). Há no horizonte uma
perspectiva de cura e de normatização/normalização das condutas (COSTA-
ROSA, 2003). O atendimento ao paciente se dá de forma segmentarizada, dentro
de uma perspectiva de especialidades múltiplas, mas atuando em separado. Não
estão previstos atendimentos conjuntos, nem muito menos trocas de informações
e planejamento das ações dos diferentes profissionais. O instrumento a partir
do qual eles se comunicam é o prontuário – muitas vezes preenchido de modo
burocrático e com poucas informações sobre a vida do paciente.
No que diz respeito ao Paradigma de Atenção Psicossocial, situado na
interface entre Saúde Mental e Saúde Coletiva, parte-se do entendimento de
que saúde-doença é resultante de processos sociais complexos, demanda uma
abordagem interdisciplinar e intersetorial e a construção de uma diversidade

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


de dispositivos territorializados de atenção e de cuidado. Nele, o sujeito em 1213
sofrimento é o alvo da intervenção. Seu entorno social, seu contexto de vida,

Estratégia da Atenção Psicossocial e participação da família no cuidado em saúde mental


trabalho e relações sociais são tomados como fatores importantes no processo de
atenção. A medicação passa a ser encarada como mais um recurso – e não como
o único e principal artefato ao redor dos qual todos os demais orbitam. Para
além do tratamento medicamentoso, são investidas novas formas de atenção e
cuidado que prezam pela interdisciplinaridade, pelo intercâmbio, pela mistura,
pela mixagem de diferentes saberes, de modo a produzir uma intervenção que
considere a complexidade dos problemas relacionados à saúde mental, visando,
especialmente, à construção de redes sociais de suporte nas quais o indivíduo
possa se inserir (YASUI; COSTA-ROSA, 2008).
A aposta é no aumento do poder de contratualidade, de modo que os
portadores de transtornos mentais possam construir laços, participar da vida
cotidiana, circular nos mais diversos espaços sociais. A perspectiva de reclusão
presente no paradigma manicomial é abolida na medida em que a vida cotidiana
e os laços sociais são valorizados e retomados, caracterizando a Estratégia da
Atenção Psicossocial como eminentemente territorial. Como foi dito acima, o
foco da atenção e do cuidado não é a doença, nem muito menos seus sintomas
na perspectiva biológica e normalizante, mas a existência de sofrimento e as
condições materiais de produção de vida e, consequentemente, de produção de
saúde e adoecimento. De acordo com a perspectiva de reabilitação psicossocial
proposta por Saraceno (1996), um foco importante a ser trabalhado é a questão
do poder de contratualidade. Este seria a capacidade do indivíduo de realizar
suas trocas afetivas e materiais dentro do meio social. Os manicômios são espaços
onde o nível das trocas é eminentemente baixo, devido, dentre outros fatores, ao
caráter assimétrico das relações que lá se estabelecem. Na perspectiva desse autor,
aumentar o poder de troca e a circulação dos indivíduos dentro dos espaços da
cidade onde estas trocas acontecem deve ser uma das preocupações centrais dos
movimentos reformadores.
Franco Basaglia, psiquiatra reformista italiano que influenciou fortemente o
processo de reforma desencadeado no Brasil, já defendia em 1960 o fortalecimento
dos vínculos existentes entre familiares e profissionais que atuam nos serviços.
Entendia que essa articulação é a base de uma perspectiva de corresponsabilização
do cuidado – vista como fundamental na proposta terapêutica defendida

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


1214 atualmente pelos reformadores no país. Basaglia também apontava como
fundamental a transformação dos modos de relação com os indivíduos
| Magda Dimenstein et al. |

portadores de sofrimento mental. Nesse ponto, defendia o reordenamento das


posições, papéis e mesmo das motivações que se presentificam no ato de cuidar.
Segundo ele, as ações de cunho mais terapêutico são aquelas que combatem a
infantilização do doente, sua manutenção na condição de inválido, de incapaz, e
que favorecem uma vida menos tutelada (BASAGLIA, 1991).
Muitos são os desafios nesse processo de transformação dos modos tradicionais
de cuidado em saúde mental, passando pela formação dos profissionais, até os
interesses políticos e econômicos da indústria farmacêutica, que vê na mudança
de modelo uma potencial perda de mercado (YASUI; COSTA-ROSA, 2008).
Entretanto, um dos pontos mais desafiantes na atualidade é a adesão da família a
esses novos princípios, pois uma implicação direta dessa mudança paradigmática
para familiares e cuidadores de portadores de transtornos mentais é a necessidade
de corresponsabilização pelo cuidado. Os vínculos com os familiares que tendiam
a ser enfraquecidos durante os longos períodos de internação (CAMATTA;
SCHNEIDER, 2009; SILVA; SADIGURSKY, 2008; CAMPOS; SOARES,
2005) passam a ser prezados, cultivados e trabalhados dentro da perspectiva de
atenção territorial (COSTA-ROSA, 2003).
Dimenstein e outros autores (2007) indicam que o investimento das políticas
públicas na família não é recente. Desde o século XIX, o Estado tem direcionado
seus esforços no sentido de ter a família como aliada e multiplicadora de seus
princípios visando à produção de um ordenamento social. No campo da saúde
pública, isso fica evidenciado especialmente em políticas sociais mais recentes, como
o SUS, PACS, Sistema Único de Assistência Social (SUAS) etc. No entanto, essas
alianças sempre estiveram pautadas em perspectivas etnocêntricas e normativas
acerca dos modelos familiares, do seu funcionamento, da sua dinâmica social e
psicológica, bem como dos modos como cuidam uns dos outros. Seus saberes e
práticas foram desconsiderados, tornando-os meros consumidores de prescrições
calcadas no modelo biomédico e coadjuvantes dos mais diversos especialistas.
Melman (2001) analisa que, historicamente, o aprisionamento do louco
em hospitais psiquiátricos foi justificado por teorias médicas que afirmavam
a necessidade do seu isolamento da família, ora explicando que a família
precisava ser protegida da loucura, prevenindo-a das influências negativas

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


como indisciplina e desordem moral, ora porque a família foi tomada como 1215
propiciadora de doença mental. A família era encarada como um fator adoecedor

Estratégia da Atenção Psicossocial e participação da família no cuidado em saúde mental


do qual o indivíduo adoecido deveria se proteger e se afastar para que a cura fosse
alcançada. Além disso, a exclusão familiar do tratamento devia-se ao fato de ser
vergonhoso socialmente ter um membro em sofrimento mental dentro de casa.
Essas concepções ainda circulam e estão presentes em nosso imaginário cultural,
tornando ainda mais problemática a adesão dos familiares ao tratamento.
Contudo, as relações entre a família e o portador de transtorno mental foram se
modificando a partir das produções científicas e culturais em torno da loucura.
A antipsiquiatria e as propostas reformistas da Psiquiatria Democrática Italiana,
a partir das décadas de 1960 e 1970, detiveram atenção especial à forma como
a família vinha sendo escamoteada pela psiquiatria. Além de realizarem uma
crítica ao modo como o saber médico-psiquiátrico contribuía para a manutenção
da situação de abandono dos indivíduos dentro dos manicômios, convocaram as
famílias a se inserirem no tratamento, na medida em que passaram a questionar
a base psiquiátrica de compreensão da loucura e da própria família.
Observa-se, de um modo geral na literatura do campo, que as mudanças nas
formas de tratamento oferecidas aos pacientes portadores de transtorno mental
produzem nas famílias o sentimento de desamparo, descuido, incapacidade
de prestar um cuidado adequado e despreparo para enfrentar situações de
crise e o manejo do cotidiano. Além disso, também enfrentam dificuldades
financeiras de atender às necessidades de novos medicamentos e atividades extra-
hospitalares, bem como fragilidade emocional provocada pelo adoecimento de
um dos membros da família (Jorge et al., 2008; NAVARINI; HIRDES,
2008; borba; SCHRANK; kantorski, 2008; dimENSTEIN et al.;
2007; ROMAGNOLI, 2006; CAMPOS; SOARES, 2005). Alguns autores,
discorrendo sobre as insatisfações e dificuldades enfrentadas por esses familiares,
apontam os mesmos precisam manejar constantemente
a dificuldade para lidarem com as situações de crise vividas, com os conflitos familia-
res emergentes, com a culpa, com o pessimismo por não conseguir ver uma saída aos
problemas enfrentados, pelo isolamento social a que ficam sujeitos, pelas dificuldades
materiais da vida cotidiana, pelas complexidades do relacionamento com o doente
mental, sua expectativa frustrada de cura, bem como pelo desconhecimento da doen-
ça propriamente dita, para assinalarmos, algumas dentre tantas outras insatisfações
(Colvero; Ide; Rolim, 2004, p. 198).

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


1216 Dessa forma, tais estudos indicam a necessidade de dar mais suporte às famílias
e/ou cuidadores, de modo a ampará-los nesse contexto de mudanças, seja na vida
| Magda Dimenstein et al. |

familiar, seja em termos da responsabilização, pelo cuidado e da relação com equipe


e serviços de atenção. O presente trabalho é fruto de uma pesquisa que teve como
um de seus eixos de investigação as implicações da mudança em termos de atenção
para as famílias de usuários de serviços de saúde mental. Tem ainda por objetivo
traçar alguns caminhos na perspectiva de corresponsabilização família/técnicos.

Apresentação do campo e procedimentos metodológicos


A pesquisa1 foi realizada no ambulatório de saúde mental de Natal, entre
novembro de 2008 e fevereiro de 2009, como parte de um trabalho de mestrado2
que objetivava analisar processos de cronificação em curso nesse serviço. O
Ambulatório de Saúde Mental está em funcionamento desde 2001, apenas no
período da manhã, e disponibiliza atendimento em grupo, consultas, oficinas
terapêuticas, bem como passeios, sessões de cinema e outras atividades que
trabalhem na perspectiva da reinserção social, ainda que com menor frequência.
A equipe do serviço é composta por dez técnicos, sendo três psicólogas, uma
assistente social, uma filósofa, uma arte-educadora, uma auxiliar de enfermagem
e três psiquiatras. Os procedimentos realizados foram análise dos prontuários e
livros de registros do serviço de saúde objetivando traçar um perfil da clientela,
rodas de conversa (Afonso; Abade, 2008) com os técnicos, observação do
cotidiano do serviço e entrevista semiestruturada com alguns usuários e familiares
definidos a partir desse perfil. Priorizamos os usuários que já pudessem estar de
alta do serviço e os familiares correspondentes.
A partir das informações levantadas junto aos registros do serviço – tipo de
atendimento prestado pelo serviço ao indivíduo, tempo de inserção no serviço,
grau de instrução, contexto familiar onde está inserido, renda mensal e distrito
sanitário onde reside –, realizamos quatro rodas de conversa com parte da equipe
técnica do serviço (com exceção dos psiquiatras), abordando principalmente
o tema da cronificação dos usuários dentro dos serviços substitutivos. Este
tema disparou outras questões, como a falta de assistência da rede básica em
saúde mental, as atividades realizadas no serviço, a demanda atendida, a falta
de articulação do serviço com a comunidade, a participação das famílias dos
usuários no tratamento e o tema da alta do serviço.

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


Nessas rodas de conversas junto à equipe, selecionamos dez usuários que 1217
já poderiam estar de alta para integrar a segunda parte da pesquisa. A partir

Estratégia da Atenção Psicossocial e participação da família no cuidado em saúde mental


dessa escolha, contatamos os usuários e fizemos uma visita domiciliar com a
finalidade de entrevistar os cuidadores. A entrevista foi guiada por um roteiro
semiestruturado que abordava os seguintes aspectos: necessidades de cuidado do
usuário; dificuldades encontradas pelos familiares para atendê-las; participação
do ambulatório na oferta de cuidados; impacto da saída do usuário do serviço e
os recursos comunitários e de assistência à saúde de que os participantes dispõem.
Dos dez usuários selecionados, encontramos apenas sete com os quais se realizou
as entrevistas – os endereços dos outros três não foram localizados. Ainda que
não tivesse sido o planejado, optamos por realizar entrevistas com os usuários
que estavam presentes no momento das visitas. Ao todo foram realizadas 12
entrevistas, sendo sete com familiares e cinco com usuários. O registro das
atividades de pesquisa foi feito a partir de diários de campo e de gravação –
previamente autorizada pelos participantes – das entrevistas.

Resultados e análise
Sobre os usuários e seus familiares
Os usuários entrevistados nesta etapa específica da pesquisa fazem parte dos 214
cadastrados no ambulatório no momento em que se realizou a investigação. Apesar
da inexistência de muitas informações nos prontuários, observamos que o perfil
predominante no serviço é de usuários do sexo feminino, solteiros e natural de
Natal-RN. A faixa etária da maioria está entre 41 e 50 anos, e o grau de instrução
é bastante diversificado, sendo que o nível fundamental incompleto se destaca.
Quanto à renda, a grande maioria não possui salário ou benefícios sociais. Muitos
usuários residem com familiares e/ou cônjuge e os domicílios localizam-se
predominantemente nos distritos sanitários leste e oeste da cidade de Natal. Muitos
apresentam o diagnóstico de esquizofrenia, têm histórico de internação psiquiátrica,
são oriundos de outros serviços substitutivos como CAPS e Hospital-Dia e fazem
uso do ambulatório, especialmente em função das consultas psiquiátricas mensais.
Dos 214 usuários, 42% utilizam o serviço para consultas psiquiátricas,
participação no grupo Bom Dia – espaço de acolhimento onde os usuários conversam
sobre diferentes temas escolhidos por eles e os técnicos fornecem avisos acerca das
atividades e dinâmica do serviço e oficinas. O restante vai ao ambulatório apenas

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


1218 para consultas psiquiátricas e participação no grupo. Dos sete usuários encontrados
que tinham indicação de alta pela equipe, apenas cinco concordaram em participar
| Magda Dimenstein et al. |

da pesquisa. Estavam na faixa etária de 50 a 60 anos e frequentavam o ambulatório


há mais de seis anos, indo às consultas psiquiátricas e participando de atividades
como as oficinas de arte e do grupo Bom Dia. Apenas uma mora sozinha, porém
perto da mãe, e os outros usuários residem com o que categorizamos enquanto
família mais ampla, que engloba pais, sobrinhos, cunhados, irmãos, tios(as),
vizinhos e outros. Quanto ao histórico de internação psiquiátrica desses usuários,
apenas dois usuários foram internados. Quanto à passagem por outros serviços
substitutivos, apenas um usuário já havia passado por outros serviços e os outros
não possuíam dados nos prontuários nesse sentido.
Em relação aos familiares entrevistados, seis eram mulheres e apenas um homem,
com idades variando, sobretudo, entre 30 e 50 anos. As mulheres entrevistadas
variavam bastante em seu grau de parentesco com o usuário, existindo irmã,
cunhada, duas filhas, mãe, esposa. O homem entrevistado era filho da usuária.
Pelos dados disponíveis, observamos que a maior parte dos familiares não tem
participação ativa nas atividades propostas pelo ambulatório. Eventualmente
acompanham o usuário, pelo fato de considerarem que eles têm autonomia para se
deslocarem sozinhos. Quanto à situação de moradia, o número de pessoas da família
residentes no mesmo domicílio varia, predominando cinco pessoas por casa. Essas
famílias residem no Distrito Sanitário Oeste do município de Natal, área carente da
capital que apresenta graves indicadores sociais, a saber: maior índice de mortalidade
infantil da cidade; maior índice de gravidez precoce e maior incidência de doenças
sexualmente transmissíveis e Aids. Além disso, a Zona Oeste apresenta o maior
índice de homicídios, além de um nível bastante alto de transgressões cometidas
pela população jovem. É uma área da cidade com pouca oferta de opções de lazer e
cultura, bem como de dispositivos de apoio social e comunitário.
Ressaltamos que a ausência de muitos dados no serviço acerca desses usuários
e seus familiares reflete a falta de um trabalho mais consistente pela Secretaria
Municipal de Saúde do município, de estimular e organizar o uso das ferramentas
institucionais tais como os prontuários, de maneira que sirvam, de fato, para
orientar as equipes dos diferentes serviços por onde passa esse usuário, em termos
do seu histórico de vida, incluindo questões sanitárias, familiares e sociais. Além
disso, a ausência de informações dificulta o trabalho das equipes, no sentido

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


de pensar intervenções contextualizadas de acordo com os recursos pessoais, 1219
familiares e sociais disponíveis em seu entorno.

Estratégia da Atenção Psicossocial e participação da família no cuidado em saúde mental


A seguir, apresentaremos os resultados encontrados a partir dos eixos que
compuseram o roteiro de entrevista, a saber: necessidades de cuidado do usuário,
dificuldades encontradas pelos familiares para atendê-las, participação do
ambulatório na oferta de cuidados e os recursos comunitários e de assistência a
saúde de que os participantes dispõem e utilizam.
Sobre as dificuldades enfrentadas pelos familiares, observamos que eles
buscam estimular a autonomia dos usuários, instigando a saída de casa sem
companhia, a realização das atividades cotidianas e o controle sobre sua própria
medicação como forma de compartilhar responsabilidades. Em função disso,
declararam que os usuários não necessitavam de nenhum cuidado especial,
pois eles eram independentes para sair, resolver seus problemas, realizar
atividades de casa. Entretanto, esses mesmos familiares, quando indagados sobre
dificuldades enfrentadas para prestar o cuidado, relataram falta de tempo, falta
de conhecimento específico sobre o transtorno mental, falta de habilidade e
suporte para lidar com situação de crise e com as mudanças ocorridas na rotina
familiar mediante a situação de adoecimento. Indicaram a necessidade de, em
certos momentos, adotar uma postura de maior vigilância, queixando-se, então,
de sobrecarga física e financeira, tendo em vista que esta é apenas mais umas
das inúmeras funções que exercem em seus contextos familiares. Tais achados se
juntam a uma diversidade de estudos que apontam para este acúmulo de função
como algo que torna a questão do cuidado ao indivíduo em sofrimento mental
crônico ainda mais complexa (NavarinI; Hirdes, 2008).
A situação de não poder atender às demandas de cuidado tem gerado um
desconforto para os familiares, provocando um sentimento de culpa muito forte.
Notamos, assim, que o convite a uma maior participação familiar tem levado
essas famílias a desejarem integrar-se mais aos projetos de cuidado dos usuários.
Contudo, este imperativo de participação familiar, que implica a realização de
uma série de atividades, inclusive fora do espaço doméstico, acaba contribuindo
para a sobrecarga visivelmente sentida entre tais cuidadores, o que reforça
a necessidade de serem também acolhidos pelas políticas da área (BORBA;
SCHWARTZ; KANTORSKI, 2008; JORGE et al., 2008; NAVARIN;
HIRDES, 2008; COLVERO; IDE; ROLIM, 2004). E isso foi claramente

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


1220 percebido na pesquisa: os familiares são convocados a participar, percebem sua
importância no processo, mas não têm disponibilidade para isso. Por outro lado,
| Magda Dimenstein et al. |

os profissionais se queixam dessa ausência e do aumento de trabalho para a equipe


que tal ausência provoca. Dessa situação derivou o reconhecimento, pela equipe,
da necessidade de oferecer algum tipo de suporte para estas famílias, de modo
que possam sustentar uma perspectiva de corresponsabilização pelo cuidado.
Contudo, na rotina no ambulatório, existem poucos espaços e momentos onde
este acolhimento e suporte ao familiar são discutidos como uma prática de
cuidados básicos a ser incorporada e ofertada.
Já nas conversas com os usuários sobre suas necessidades de cuidado, evidenciou-
se que o ambulatório de saúde mental é utilizado como um espaço de lazer,
socialização e diversão. Notamos que estes usuários não estão vinculados a outros
serviços de saúde, nem a outros espaços sociais, mantendo-se no restrito circuito
casa-serviço-casa. Isso indica que, além das demandas de acompanhamento e
seguimento psiquiátrico, que poderiam continuar a ser atendidas no ambulatório,
esses usuários necessitam circular em outras redes que possam dar suporte às suas
diversas necessidades de saúde e socialização. Em função disso, a possibilidade
de desvinculação do serviço ou de “alta” é incômoda, sendo vista como algo
extremamente negativo ou mesmo como punição por mau comportamento.
Em outras palavras, encontramos um cenário onde o ambulatório ocupa
lugar central no cotidiano dos usuários e familiares, suprindo precariamente
necessidades de assistência, de suporte social e assessoramento às famílias. O
fato de os usuários serem egressos de longos períodos de CAPS II e estarem em
condição de maior estabilidade torna o ambulatório o ponto final de ancoragem
de pessoas que poderiam seguramente estar vinculadas às equipes de saúde da
família, às unidades de atenção básica, com retaguarda dos CAPS em caso de
necessidade e/ou crise. Por outro lado, é uma segurança para as famílias que se
sentem cotidianamente desamparadas e exigidas de participar de um processo
do qual foram historicamente excluídas, conforme ressaltado anteriormente. A
convocação de que se faça presente no tratamento tem sido vista como um ato
autoritário, um exercício de poder no qual o Estado/profissionais impõe(m) uma
diretriz e as mesmas têm que cumprir de um momento para o outro.
Nas entrevistas, um familiar discutia a duração das internações e não entendia
por que agora eram tão curtas, quando outrora os pacientes passavam meses dentro

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


dos hospitais, o que dava certo alívio às famílias. Se isso não é mais possível, se a 1221
assistência extra-hospitalar e a reinserção social são as metas da reforma, as famílias

Estratégia da Atenção Psicossocial e participação da família no cuidado em saúde mental


têm apresentado resistências para se engajar nos projetos terapêuticos. Quando a
internação era a única alternativa, o peso que representa um indivíduo acometido
por uma doença crônica era reduzido, como apontam nossos participantes
e a literatura (CAMPOS; SOARES, 2005; SILVA; SADIGURSKY, 2008;
CAMATTA; SCHNEIDER, 2009). Assim, “frente ao impacto do adoecimento,
as possibilidades de trocas afetivas que, de fato, sejam verdadeiras ficam reduzidas,
impondo aos familiares a vivência de sentimentos e emoções que são difíceis de
elaborar e entender” (Borba; Schwartz; Kantorski, 2008, p. 589).
Portanto, não tem sido um processo muito simples para estas famílias aderir às
perspectivas de tratamento preconizadas pelo paradigma psicossocial, fato este que,
somado à desassistência que ainda existe, faz com que alguns familiares resistam à
implementação das novas propostas de cuidado.
Entendemos, assim, que as dificuldades encontradas por usuários, familiares
e equipes de saúde mental são decorrentes, em parte, das mudanças em curso em
termos dos modelos assistenciais e do que isso representa em termos de organização
dos serviços, da rede de saúde, dos modos de trabalho, gestão e participação da
família no cuidado. Produzir um cuidado em saúde mental baseado no acolhimento,
no vínculo e na responsabilização requer o enfrentamento dos problemas em
relação ao modo de funcionamento dos serviços substitutivos e da rede de saúde
de uma forma geral. Sabemos que há uma articulação precária entre os CAPS e
a rede de atenção básica, bem como da necessidade de repensar sua função na
rede, rever o modelo de funcionamento ambulatorial pregnante e a formação
acadêmica dos profissionais, que é insatisfatória para o cuidado de portadores de
transtornos mentais. Além disso, as possibilidades de referenciamento são pequenas
em função da precariedade da rede de serviços substitutivos na nossa realidade e
destes com a rede SUS como um todo. Sabemos, por sua vez, que isso decorre de
um desequilíbrio entre os recursos e investimentos da área hospitalar e da atenção
básica e da falta de uma rede de atenção não hospitalar e comunitária ampla e
efetiva, fruto de um planejamento inadequado de como se tem dado a transição
entre os modelos (Desviat, 1999; Lima; Silva, 2004).
A quantidade de Centros de Atenção Psicossocial do tipo III – onde é possível
realizar internação em caso de crise – ainda é pequena, existindo hoje apenas

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


1222 41 serviços em todo o território nacional, sendo que não há nenhum em Natal.
A existência de leitos psiquiátricos em hospitais gerais ainda é insignificante,
| Magda Dimenstein et al. |

existindo apenas 40 no país. Os Centros de Convivência e Cultura estão restritos a


51, indicando claramente a carência desse dispositivo importante para a circulação
dos usuários na rede social, também indisponível na nossa realidade (BRASIL,
2009a). Dificuldades como estas são usadas pelos movimentos antirreforma para
questionar a eficácia da atenção à saúde mental extra-hospitalar. A expansão dos
CAPS tipo III e a implementação de leitos em hospitais gerais são apontados
pelo Ministério da Saúde como os pontos nodais a serem trabalhados neste
momento da reforma (BRASIL, 2009b). Assim, o cenário de dificuldades dos
serviços substitutivos em atender à demanda crescente, de dar respostas à crise
e oferecer suporte às famílias, dificuldades aparentemente resolvidas no modelo
manicomial, tem produzido insegurança e descrédito junto a alguns familiares,
no que diz respeito ao movimento da reforma psiquiátrica.
Por fim, isso aponta para questões importantes em termos de organização das
práticas profissionais nos serviços substitutivos, no que diz respeito à incorporação
das famílias no processo de reinserção social de portadores de transtornos
mentais. Essas pessoas apresentam dificuldades em termos de autonomia e
integração social, que repercutem no funcionamento familiar. Mudar uma lógica
de cuidado em saúde mental que avance no sentido da não exclusão das mesmas
não se consegue sem oferecer apoio, assessoramento e capacitação às famílias para
lidar com seus membros. A primeira preocupação da equipe é que tais familiares
tenham informações claras, atualizadas e consistentes sobre os rumos da política
de saúde mental e da realidade dos serviços locais, como funcionam, quais seus
objetivos e sua equipe de cuidadores. Sem isso, ficam vulneráveis às informações
distorcidas, na maioria dos casos, veiculadas na mídia, acerca da falta de êxito das
propostas reformistas.
Em segundo lugar, é preciso ajudar as famílias em termos da estruturação da
sua vida cotidiana e convívio com seu familiar, orientá-las em termos de estratégias
práticas de manejo da enfermidade, esclarecer sobre as propostas terapêuticas,
compartilhar informações sobre diagnóstico, medicação, o que fazer em situação
de crise, dentre outros aspectos. Estimular a família acerca da participação nas
diversas redes de suporte social e comunitário que possam existir no seu entorno,
bem como em associações de familiares e usuários de saúde mental, são ações

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


importantes também. Além disso, é preciso discutir as condições em que se 1223
encontra essa família, sejam financeiras, sociais, emocionais, etc, para daí traçar

Estratégia da Atenção Psicossocial e participação da família no cuidado em saúde mental


as reais possibilidades de suporte familiar e, consequentemente, que ela possa ser
um recurso ativo no processo de cuidado e reinserção social desse usuário.
Sabemos que nem todas as famílias se engajam e se responsabilizam pelo
cuidado de seus membros, o que dificulta em muito o processo de trabalho nesse
campo, mas a maioria desses familiares está implicada e participa, apenas não se
sente preparada para cuidar, tem medo e não recebe nenhum apoio e capacitação
dos serviços. É nesse sentido que chamamos atenção para a urgência em incorporar
os familiares às propostas terapêuticas e de reabilitação de acordo com o paradigma
psicossocial, pois sem eles as possibilidades de êxito ficam reduzidas.

Considerações finais
Do complexo panorama exposto, evidencia-se que a construção da corresponsabilidade
entre técnicos e familiares, no que toca ao cuidado no campo da saúde mental,
deve vir acompanhada de ações de suporte às famílias, de mudanças nos modos de
trabalho e gestão, bem como de avanços em relação às políticas de inclusão social
e reabilitação psicossocial, de fortalecimento de mecanismos de controle social, de
estímulo ao empoderamento dos usuários e familiares, no sentido de fazer avançar
o processo de desinstitucionalização em saúde mental.

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| Magda Dimenstein et al. |

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Notas
1
Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq na forma de Bolsa de Produtividade em
Pesquisa, Apoio Técnico, Mestrado e Iniciação Científica.
2
Pesquisa de Iniciação Científica vinculada ao projeto de mestrado “A cronificação nos serviços sub-
stitutivos na rede de saúde mental de Natal/RN” (SEVERO, 2009).

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1226
Abstract
| Magda Dimenstein et al. |

The Psychosocial Care Strategy and family


participation in mental health care
This study aimed to discuss the way that families of
individuals with mental health disturbances experience
the political changes in the area, what they think about
the new participation demands and about the impact
that these demands have on their daily relations with
the mental health services, and on their family care
practices. The study was conducted from November
2008 to February 2009 in a mental health service in the
city of Natal, Brazil. It is part of a master´s dissertation
project that sought to analyze the chronic processes
in this service. The results brought into evidence the
several difficulties experienced by family members with
the new mental health care proposals, that directly
interfere in the co-responsibility perspective proposed
by the Psychosocial Care Strategy. We believe that in
order to promote the mental health deinstitutionalization
process, the construction of co-responsibility between
technical workers and family members must include:
supportive actions to the families; changes in the work
and management modes; advances in the social inclusion
and psychosocial rehabilitation policies; mechanisms for
the strengthening of social control; and empowerment
stimulus for the client and his family members.

 Key words: psychiatric reform; mental health; psychosocial


rehabilitation, co-responsibility, family.

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1209-1226, 2010


artigo

A IMPORTÂNCIA DA ABORDAGEM FAMILIAR


NA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA

THE IMPORTANCE OF FAMILY APPROACH IN THE PSYCHOSOCIAL CARE


FIELD: AN EXPERIENCE REPORT

RESUMO: A iniciativa de escrever sobre as tera- ABSTRACT: The initiative to write about systemic Ana Flávia Dias
pias sistêmicas de família no contexto da Atenção family therapies in the context of Psychosocial Tanaka Shimoguiri
Psicossocial partiu de experiências de uma das Care cames from the experiences of one of the Doutoranda e Mestra em
pesquisadoras enquanto terapeuta de família e researchers, who is a family therapist and works Psicologia pela Universidade
ao mesmo tempo trabalhadora de um Centro de in a psychosocial alcohol and drug center. This Estadual Paulista “Júlio de
atenção psicossocial álcool e drogas. Este artigo article intended to make a brief contextualization, Mesquita Filho” – Faculdade
se destinou a fazer uma breve contextualização, from the National Policy on Drugs, of the treat- de Ciências e Letras de
partindo da Política Nacional sobre Drogas, das ments offered to the patients and their families in Assis/São Paulo/ Brasil;
ofertas de tratamento disponíveis para os pacien- the psychosocial alcohol and drug center, and, Terapeuta Ocupacional;
tes e suas famílias nos Caps, e, principalmente, mainly, by a case report, from a practical expe- Terapeuta de Família e de
por um relato de caso, a partir de uma experiência rience, the applicability of systemic therapies in Casal
af_tanaka@hotmail.com
prática, buscou-se sublinhar a aplicabilidade das psychosocial establishments was emphasized, as
terapias sistêmicas nos estabelecimentos psicos- a further treatment for drug addiction. The results
sociais, como mais um recurso de tratamento à of the research reiterate the importance of inser- Fernanda Silveira
dependência química. Os resultados da pesquisa ting family care in mental health services. Serralvo
reiteram a importância de inserir o atendimento à Assistente Social; Terapeuta
família nos serviços de saúde mental. Keywords: family therapies, Caps, psychiatric de Família e de Casal;
reform, national policy on drugs. Membro da Associação
Palavras-chaves: terapia de família, Caps, re- Brasileira de Terapia de
forma psiquiátrica, política nacional sobre drogas. Família – ABRATEF
fserralvo@live.com

A reforma psiquiátrica brasileira e a atenção psicossocial

Ao longo da história, a psiquiatria clássica, baseada no conhecimento do corpo


biológico, constituiu-se hegemonicamente como principal, e muitas vezes, único
meio de tratamento para as psicopatologias (Amarante, 1995; 2003; 2007), den-
tre elas a dependência do álcool e outras drogas. No decorrer dos anos as diver-
sas problemáticas psíquicas passaram a ser atendidas em diferentes instituições
sociais, passando pelos hospitais gerais e instituições psiquiátricas até chegar às
instituições extra hospitalares, com destaque para os Centros de Atenção Psicos-
social (Caps).
Assim como nos demais países, aqui no Brasil, a situação dos pacientes nos hos-
pitais psiquiátricos era deplorável; muitas vezes, ocorreram agressões físicas, estu-
pros, trabalho escravo, uso do eletrochoque e da camisa de força, levando até mes-
mo a algumas mortes não esclarecidas (Pereira, 2011; Amarante, 2007). Foi neste
esteio que surgiram os movimentos da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), Recebido em: 28/09/2016
a fim de redirecionar a assistência preponderante em Saúde Mental, no sentido Aprovado em: 07/03/2017

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de torná-la menos hospitalocêntrica e intervenção e torna-se uma experi-
70 NPS 57 | Abril 2017
e mais comunitária. A RPB também ência nas vidas dos sujeitos. “A com-
deu visibilidade para outras formas plexidade aponta para a superação do
de tratamento, inclusive com a articu- paradigma clássico inaugurado com a
lação de diferentes saberes e práticas dualidade cartesiana da causa-efeito”
até então negligenciados (Shimoguiri (Amarante, 2003, p. 54).
& Périco, 2014; Pereira, 2011; Rinaldi
& Bursztyn, 2008; Yasui, 2006; Ama- Desinstitucionalizar não se restrin-
rante, 1995; 2003; 2007; Costa-Rosa, ge e nem muito menos se confunde
1987), por exemplo, as terapêuticas com desospitalizar, na medida em
que incluem as relações familiares. que desospitalizar significa ape-
A iniciativa de escrever sobre as Te- nas identificar transformação com
rapias Sistêmicas de Família no con- extinção de organizações hospita-
texto da Atenção Psicossocial partiu lares/manicomiais. Enquanto de-
de experiências de uma das pesquisa- sinstitucionalizar significa entender
doras enquanto terapeuta de família e instituição no sentido dinâmico
ao mesmo tempo trabalhadora de um e necessariamente complexo das
Caps álcool e outras drogas (CAPSad). práticas e saberes que produzem
Nesta direção, este trabalho se des- determinadas formas de perceber,
tinou a fazer uma breve contextuali- entender e relacionar-se com os fe-
zação, partindo da Política Nacional nômenos sociais e históricos (Ama-
sobre Drogas quanto às ofertas de tra- rante, 1995, p. 49).
tamento disponíveis para os pacientes
e suas famílias nos Caps, e, principal- Os Caps são os principais responsá-
mente, por um relato de caso, a partir veis pelas estratégias de desinstitucio-
de uma experiência prática, buscou-se nalização, por exemplo, pela organi-
reiterar a aplicabilidade das terapias zação da rede substitutiva ao hospital
sistêmicas nos estabelecimentos psi- psiquiátrico, por isso são tão impor-
cossociais, como mais um recurso de tantes. São serviços de saúde munici-
tratamento. pais, abertos e comunitários que ofe-
Os ideais da atenção psicossocial recem atendimento diariamente com
não se encerram no fechamento dos objetivo de realizar o acompanhamen-
hospitais psiquiátricos, mas abran- to clínico e a reinserção social pelo
gem toda uma desconstrução de pa- acesso ao trabalho, lazer, exercício dos
radigmas socialmente estabelecidos e direitos civis e fortalecimento dos la-
mantidos pelas práticas de exclusão e ços familiares e comunitários; a aten-
violência (Shimoguiri & Périco, 2014; ção psicossocial inclui no tratamento
Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2009; Ya- o contexto familiar e sociocultural,
sui & Costa-Rosa, 2008). Com efeito, indo além do que tradicionalmente
trata-se de um processo complexo de caracterizava a clínica médica (Brasil
recolocar o problema, de reconstruir 2002a; 2002b). Nos Caps têm-se uma
saberes e práticas sobre o sofrimento pluralidade de orientações, que vão
psíquico e de estabelecer novas rela- desde aquelas voltadas para os mode-
ções sociais. Amarante (2003) apon- los médicos psiquiátricos, de cunho
ta o conceito de complexidade como nosológicos, àquelas que abrangem
fundamental para se pensar a RPB e mais a dimensão da clínica ampliada
a atenção psicossocial, então, a doen- (Rinaldi & Bursztyn, 2008), todavia,
ça deixa de ser um objeto de estudo apesar dos avanços e conquistas, a

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 57, p. 69-84, abril 2017.

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compreensão do que é saúde ainda se considere tanto sua articulação com A importância da abordagem
pauta no modelo biomédico (Costa- a realidade psicossocial na qual es- familiar na atenção 71
psicossocial
-Rosa, 2013; Shimoguiri & Périco, tão inseridos quanto sua capacida- Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
2014; Pereira, 2011). de de invenção (Romagnoli, 2005,
p. 253).
Os CAPS são instituições pequenas
na estrutura, mas com múltiplas Dada a complexidade de um quadro
formas de atendimento, que in- de dependência de substâncias psicoa-
cluem visitas domiciliares, atendi- tivas, as ações direcionadas às relações
mento médico com fornecimento familiares são valorizadas pelo Minis-
de medicação, psicoterapia, ofici- tério da Saúde (Brasil, 2002a; 2002b).
nas, acompanhamento terapêutico, Assim, partimos da hipótese de que o
atendimento à família, trabalho as- atendimento à família segundo a te-
sistido e atividades de lazer. [...] os rapia sistêmica pode contribuir para
CAPS estão estruturados de forma que de fato haja um acompanhamento
a ter uma grande maleabilidade, po- integral, pois passa-se a compreender
dendo lidar com virtualmente qual- o contexto de vida do sujeito em tra-
quer situação na assistência àqueles tamento, sua historicidade. De acordo
que, em outros tempos, estariam com Romagnoli (2005), o trabalho com
condenados a passar seus dias entre famílias na atenção psicossocial é um
as paredes de um hospital psiquiá- campo em desenvolvimento, em que há
trico (Amarante, 2003, p. 123). muito que se conhecer. Moreno e Alen-
castre (2003) postulam que conviver
Na abordagem biopsicossocial, com os familiares tem sido uma tarefa
o foco que em vez de estar na doen- difícil para as equipes dos serviços de
ça, deveria estar nas interações entre Saúde Mental, que acabam por rotu-
pessoas, portanto é necessário incluir lar as famílias e responsabilizá-las pelo
a comunidade e a família. Ainda há adoecimento de um de seus membros.
poucas considerações sobre outros
fatores socioculturais envolvidos nos
impasses psíquicos desencadeadores A atenção aos usuários de
de crises (Nunes, 2006), sendo que o álcool e outras drogas na
objetivo do tratamento, no mais das Saúde Coletiva
vezes, continua restrito à dimensão
psicológica e orgânica do indivíduo. Não diferente do que ocorria com os
Segundo Pereira (2011), a maioria das outros tipos de impasses psíquicos e
intervenções possuem caráter pedagó- sociais, a assistência ao usuário de ál-
gico e assistencialista, não inserindo cool e outras drogas era sobremaneira
elementos essenciais no tratamento, hospitalocêntrica, marcada pelo pre-
como os recursos do território; e, ain- conceito e estigmatização, inadequada
da, excluindo ou dando pouca ênfase para execução de projetos terapêuticos
à família. específicos que vislumbrem a produ-
ção de saúde tal como idealizada no
Pela postura de culpabilização e Sistema Único de Saúde. Pensando
isolamento da família no tratamen- nisso, propôs-se que:
to de doentes mentais, existe ain-
da pouco conhecimento efetivo da […] o atendimento às pessoas usuá-
especificidade desses grupos que rias de álcool e outras drogas e seus

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familiares seja integral e humaniza- A PNAD reforça a necessidade de
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do, realizado por equipe multidisci- ações de reinserção familiar, social e
plinar, na rede de serviços públicos ocupacional, introduzindo o concei-
(UBS, CS, PSF, NAPS, CAPS, hos- to de trabalho em “Rede”, sendo que
pital-dia e unidade mista para tra- podemos considerar a família um dos
tamento de farmacodependência, componentes dessa rede, além de ou-
serviço ambulatorial especializado, tros componentes como a comunida-
atendimento 24 horas), de acor- de e a escola (Cruz & Ferreira, 2011;
do com a realidade local (Brasil, Duarte, 2011). Dessa forma, a atuação
2002c). dos profissionais não pode se restrin-
gir ao ambiente dos CAPS, mas deve
No Ministério da Saúde não exis- estender-se a visitas domiciliares,
tiam ações sistemáticas relativas ao atendimentos grupais de família, entre
tratamento e prevenção das depen- outros. Essa visão implica que o trata-
dências, sendo esta uma falha notável mento não inclua apenas os profissio-
nas políticas de saúde, os poucos am- nais e serviços de saúde, mas também
bulatórios e serviços de atendimento os familiares e outras pessoas da co-
existentes trabalhavam sem articula- munidade, que podem ser facilitadores
ção e de forma assistemática (Cruz & do tratamento (Cruz & Ferreira, 2011).
Ferreira, 2011). Somente em 2005, ti- As abordagens familiares têm se
vemos a publicação Política Nacional des­tacado como uma estratégia para o
sobre Drogas – PNAD (Brasil, 2005); tratamento de dependentes de álcool e
os princípios fundamentais que nor- outras drogas no Brasil (Cruz & Fer-
teiam essa política são: reira, 2011; Duarte, 2011). Entretanto,
• atenção integral: o usuário deve ressaltamos que o reconhecimento da
ser visto de forma geral e não importância do contexto familiar ainda
apenas na questão específica da não compartilhado por todo, ademais,
saúde; há poucas pesquisas sobre a aborda-
• base comunitária: o cuidado do gem familiar no tratamento para de-
usuário deve acontecer priori- pendência química (Oliveira, 2012).
tariamente na comunidade, no
espaço onde ele vive, perto da
família; O lugar da família na Saúde
• territorialização: cada unidade Mental
deve atender um espaço determi-
nado, para facilitar o vínculo; Philippe Pinel (2007) apontava três
• lógica da redução de danos: não causas principais para a alienação: he-
existe o objetivo único de se che- reditariedade, influência de uma edu-
gar à abstinência, pois o principal cação corrompida e desregramento no
objetivo das ações de tratamento modo de viver; essas seriam as “cau-
é melhorar a qualidade de vida sas morais”, os fatores predisponentes
dos usuários; para o adoecer. O tratamento proposto
• intersetorialidade: a questão do objetivava a substituição do ambiente
tratamento não é só da saúde, onde residia o paciente para curá-lo,
por isso é necessário que se con- já que a família era responsabilizada
cretizem parcerias para incluir o como causadora de doença, na medi-
usuário em outros espaços de ci- da em que não tinha controle sobre a
dadania. educação falha e as paixões insuportá-

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veis que acometiam o sujeito, logo, o dificuldades em todo o núcleo fami- A importância da abordagem
“doente mental” deveria ser separado liar, portanto, a família seria uma es- familiar na atenção 73
psicossocial
da família, buscando-se reproduzir no trutura para ser tratada e transforma- Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
asilo um modelo funcional de família, da (Moreira, 1983; Minuchin, 1982).
onde era enfatizada a reeducação mo- “As famílias passaram a ser entendidas
ral baseada em normas de “bons cos- como sistemas que possuem um fun-
tumes” (Pinel, 2007). cionamento e uma forma de comuni-
A família foi banida do tratamento cação que precisam ser modificados,
ao “alienado mental”, cabendo apenas pois causam sofrimento em um dos
ao asilo e ao poder médico “curá-lo”. seus componentes” (Moreno & Alen-
Cabe ressaltar que havia determina- castre, 2003, p. 45).
ções para os familiares ficassem longe De acordo com o pensamento sistê-
dos pacientes durante o período de mico, a família é uma unidade dinami-
internamento, só podiam visitá-los camente estruturada e condicionante
quando a instituição permitia, pois dos fenômenos humanos. O grupo
acreditava-se que havia piora da sinto- familiar deve ser visto como um todo
matologia quando o paciente entrava no qual seus membros se encontram
em contato com seu núcleo familiar; articulados em diferentes níveis, mas
até as correspondências antes de se- todos em interação. Nesta perspectiva,
rem entregues eram avaliadas pelos família não se restringe à somatória de
profissionais, para não propiciarem seus membros, mas deve ser entendida
“reações negativas” no doente (Mo- dialeticamente, de maneira que qual-
reno & Alencastre, 2003). Enquanto quer movimento em qualquer parte
a instituição psiquiátrica manteve-se interfere em todas as outras (Mioto,
como centro da assistência, a família 1998). A visão sistêmica da família
teve pequena ou nenhuma participa- supõe a integração de várias áreas de
ção nos tratamentos em Saúde Mental. conhecimento: medicina, psicologia,
Por volta dos anos de 1950, a An- sociologia, antropologia etc. Nas dé-
tipsiquiatria foi impulsionada na In- cadas de 70 e 80 do século XX, hou-
glaterra. A Antipsiquiatria, um dos ve uma ampliação de várias escolas
movimentos da Reforma Psiquiátrica, das chamadas abordagens familiares
questionou a estrutura social, ponde- sistêmicas, as terapias passaram a ser
rando que os sofrimentos psíquicos mais colaborativas, dialógicas, sob a
são produções sociais, advêm de inter- influência das ideias do movimento
-relações subjetivas (Pereira, 2011). construcionista social, de maneira que
Neste cenário, as teorias relacionadas essa forma de tratamento psicológico
à abordagem familiar tiveram seu auge passou a ser mais utilizada.
nos anos 50 e 60 do século XX (Me- No contexto da assistência às pes-
nezes, 1981), visto que os movimentos soas com problemáticas referidas ao
de Reforma Psiquiátrica culminaram alcoolismo e à dependência química,
com a saída dos pacientes dos hospi- recentemente, o atendimento familiar
tais. De volta aos núcleos familiares, tem se destacado dentre os modos de
eles trouxeram consigo a necessidade tratamento, pois a adicção é um fenô-
de novas teorias que incluíssem a fa- meno complexos multicausal, que en-
mília no tratamento. volve não só aspectos biológicos, como
Os novos pressupostos teóricos de- também psicológicos e relacionais,
fendiam que o diagnóstico, anterior- além do que o uso de álcool e outras
mente restrito ao paciente, indicava drogas gera muito desconforto, sofri-

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mento psíquico e crises no sistema fa- a introjeção desta estrutura, portanto
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miliar. No Brasil, houve mudança no é responsável pela transmissão de pa-
que se refere aos modelos assistenciais drões de relacionamento (Berenstein,
à família, somente a partir de 1980, 2002; Cruz & Ramos, 2002). “A famí-
concomitante ao início da Reforma lia, como uma unidade, desenvolve
Psiquiátrica Brasileira (RPB). um sistema de valores, crenças e ati-
Foi na II Conferência de Saúde Men- tudes face à saúde e doença que são
tal que a família teve sua representati- expressas e demonstradas através dos
vidade assegurada, constando como comportamentos de saúde-doença dos
recomendações evitar culpabilizá-la seus membros” (Stanhope, 1999, p.
e promover seu atendimento integra- 503).
do inserido no contexto comunitário Com efeito, antes de traçar qual-
e social, outrossim, a Terceira Confe- quer projeto terapêutico junto ao usu-
rência buscou reiterar a importância ário de álcool e drogas é importante
da família como aliada na redução do atentarmos para os aspectos familia-
sofrimento psíquico, prevendo cuida- res, pois “é na família que o indivíduo
dos domiciliares e enfatizando a im- aprende a se relacionar com o mundo”
portância da formulação de estratégias (Duarte, 2011, p. 10), e a família sem-
nas quais os familiares estejam incluí- pre será para o sujeito um referencial
dos (SENAD, 2011). Nos caminhos da de comportamento e atitude diante da
RPB, a família é apontada como fator vida. No âmbito da prática, podemos
essencial para as transformações rela- observar os inúmeros desafios do tra-
tivas aos cuidados junto aos sujeitos balho com os sujeitos que recorrem ao
em sofrimento psíquico (Romagnoli, CAPSad e suas famílias, o que vemos é
2005; Moreno & Alencastre, 2003). que, na maioria das vezes, a família é
excluída das terapêuticas (Brasil, 2004;
O trabalho de desinstitucionaliza- Senad, 2011; Bordin, Figlie & Laran-
ção constitui-se um esforço per- jeira, 2004).
manente de desconstruir condutas Quando os sujeitos vivenciam si-
tidas como únicas e verdadeiras e tuações de crises, a participação da
construir na multiplicidade de fato- família no tratamento tem se mostra-
res que envolvem o relacionamento do fundamental; as diretrizes do SUS
do portador de sofrimento psíqui- concebem a família de “forma integral
co e seus familiares uma experiên- e sistêmica, como espaço de desen-
cia de convivência, a mais saudável volvimento individual e de grupo, di-
possível (Moreno & Alencastre, nâmico e passível de crises” (Pagani,
2003, p. 46). Minozzo & Quaglia, 2011, p. 40), de
maneira que o sistema familiar deve
A RPB trouxe uma visão mais am- ser objeto de cuidado e promoção da
pliada que permitiu compreender saúde na Atenção Psicossocial. Entre-
que “o sofrimento, antes tomado ape- mentes, intervenções na família e/ou
nas como algo individual, passou a na rede social dos alcoolistas e droga-
ser visto como parte de um contexto dictos apresentam melhores resulta-
onde outras pessoas estão envolvidas e dos quanto ao tratamento se compa-
também merecem cuidado e atenção” rados a intervenções individuais (Paz
(Mioto, 1998, p. 21). A família está re- & Colossi, 2013; Moreira, 2004; Payá
lacionada com a experiência compar- & Figlie, 2004; Berenstein, 2002). Nes-
tilhada de uma estrutura grupal e com ta direção, Geberowicz (2004) afirma

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que intervenções com a família com- da abordagem familiar como um re- A importância da abordagem
plementam a função de outros trata- curso necessário das propostas de familiar na atenção 75
psicossocial
mentos, tanto em nível ambulatorial atenção psicossocial. Os nomes aqui Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
quanto de internação. utilizados são todos fictícios, a fim
Todavia, consoante com a Senad de preservar a identidade dos sujei-
(2011), os programas de tratamento tos e das instituições. Alice, 14 anos,
enfrentam um impasse considerável: chegou ao CAPSad com queixas de
se por um lado, a família é a base para comportamentos disruptivos: uso de
a saúde, por outro lado, muitos am- drogas, nervosismo, crises de choro,
bientes familiares predispõem seus dificuldades escolares e heteroagressi-
membros ao uso abusivo de álcool e vidade. No momento, estava abrigada
outras drogas. Entende-se que a famí- numa instituição de acolhimento (a
lia pode ser um fator de proteção ou de qual chamaremos de “Raio de Luz”)
risco para o abuso de substâncias psi- devido à tentativa de suicídio da mãe
coativas (Moreira, 2004; Payá & Figlie, com posterior internação psiquiá-
2004; Berenstein, 2002). Para dimen- trica da mesma por dependência de
sionarmos o exposto basta citar que crack. Desde o abrigamento, as ina-
filhos de pais dependentes de álcool dequações comportamentais intensi-
e/ou outras drogas têm uma chan- ficaram-se, culminando inclusive em
ce quatro vezes maiores de também episódios de autoagressão com cortes
se tornarem dependentes (Patterson, (cutting). A família, composta pela
1982; Brickman et. al, 1988; Wang et. mãe e mais três filhas, além de Alice,
al, 1995), mas, mesmo que famílias em vivia em situação extrema de vulne-
que os pais são dependentes possam rabilidade, desde privações físicas e
influenciar que os filhos também o materiais, indo de condições péssimas
sejam, considerando as interações de- de moradia à violência sexual sofrida
senvolvidas no sistema familiar, é im- pelas meninas.
prescindível excluir a visão psicopato- Da primeira união estável de Cristi-
logizante da família, que faz com que na (mãe), nasceram Eliane (16 anos) e
os agentes de saúde culpabilizem-na Elaine (15 anos), e da segunda união,
pelo surgimento do problema, bloque- Alice (14 anos) e Aline (11 anos), im-
ando as possibilidades de convivência: portante frisar que os dois cônjuges
“essa postura não só persegue o grupo que Cristina tivera eram dependentes
em questão, como também não con- de drogas. As meninas não tinham
tribui para ajudar no estabelecimento contato nenhum com os pais ou com
de vínculos de acolhimento do sujeito, a família extensa, apenas com a espo-
nem para que essas famílias utilizem o sa do avô materno, quem esporadica-
serviço como apoio e referência” (Ro- mente lhes prestava algum cuidado. Os
magnoli, 2005, p. 252). atendimentos em Terapia Sistêmica de
Família foram propostos em razão das
complexidades em questão e dos fato-
Estudo de Caso res multicausais para o adoecimento
de Alice. Assim, mediante aprovação
Optamos por incluir no texto um re- da equipe do CAPSad iniciou-se o tra-
lato de caso, o qual torna mais com- tamento. Sempre havia uma educado-
preensível como nossa experiência ra social do “Raio de Luz” que levava
prática foi sistematizada para inte- Alice ao CAPSad e acompanhava a fa-
grar a discussão sobre a importância mília nas sessões.

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Sessão 1 poderiam participar, informou ainda
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que Cristina não fora visitar as filhas
No primeiro atendimento foi feito durante a semana, que tivera uma re-
contrato terapêutico de 12 sessões e caída no uso de drogas e, que, portan-
aplicada a Entrevista Familiar; esta- to, também não viria para sessão. Alice
vam presentes, Cristina, Alice e Aline. falou sobre a visita da avó, que a mes-
A mãe relatou dificuldades para criar ma lhe contara que a Cristina havia
as filhas, pois sozinha não conseguia sido agredida por não pagar dívidas de
suprir as necessidades financeiras do droga. Na impossibilidade de falar so-
lar, também assinalou que as filhas bre o sentimento que isso lhe causava,
eram “rebeldes” e não obedeciam. In- Alice desenhou uma faca, simbolizan-
teressante destacar que Alice não era do o sentimento de raiva e a vontade
apontada como paciente identificada que lhe dava de se cortar para sentir-se
no discurso da mãe. As meninas foram aliviada. Aline brincava com bonecos
muito resistentes ao contato, falaram no chão da sala, desatenta a essas ques-
palavrões e estiveram completamente tões, provavelmente pela pouca idade.
alheias a regras e limites, sendo que a Com o recurso da casa de madeira e
mãe não era para elas figura de autori- os bonecos de pano, propôs-se brincar
dade. Foi sugerido que em conjunto, as de “casinha”. As irmãs colocaram cada
meninas elaborassem um desenho da boneca num cômodo da casa e a mãe
família, pois era notável que elas não no quarto, deitada na cama. Alice tirou
se engajariam na entrevista. a roupa da mãe e contou que a mesma
Observou-se que as fronteiras do vivia nua, pois se prostituía para com-
sistema familiar eram sobremaneira prar drogas, falou que por várias vezes
aglutinadas, a mãe faz aliança com a presenciara cenas de sexo; apresentou
filha mais nova, a única que respeita alterações de humor, gritou e xingou,
minimamente seu papel de autoridade. dizendo sentir muita raiva. Utilizando
Cristina, por vezes, apresentou com- a terapia da narrativa, trabalhou-se a
portamentos infantilizados, por exem- reconstrução dessa história, enfatizan-
plo, mostrar a língua para as filhas do conotações positivas sobre a mãe e a
durante uma discussão; percebeu-se família. Essa terapia se baseia na teoria
que a autoridade, ora era exercida pela do construtivismo, Sequeira (2012) diz
avó das meninas, ora pela filha mais que quando contamos a história de ou-
velha. Os diversos comprometimentos tra forma, isso muda o que pensamos
advindos do uso de drogas fazem com e o que sentimos. Aline ficou por toda
que um dos filhos, usualmente o mais a sessão fazendo “comidinhas” e pen-
velho, assuma a posição de filho paren- teando os cabelos das bonecas, não ex-
tal (Osório & Valle, 2009), passando a pressou o mesmo sofrimento da irmã,
exercer a função do genitor acometido. provavelmente porque não tinha ampla
compreensão e crítica dos fatos.

Sessão 2
Sessão 3
Compareceram apenas Alice e Aline, a
educadora social, informou que, Eliane A assistente social do “Raio de Luz” in-
e Elaine teriam atendimentos no Cen- formou que Cristina falecera devido a
tro de Referência Especializado em As- um quadro de overdose, relatou que Ali-
sistência Social (CREAS), por isso não ce tinha agredido outras crianças e havia

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se cortado com cacos de vidro. Apesar ajuda para buscar a mãe e mostrar-lhe A importância da abordagem
da ausência de Cristina, os atendimen- o caminho do céu. Considerando a familiar na atenção 77
psicossocial
tos foram mantidos, considerando que demanda ainda emergente, a Cadeira Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
é possível lançar mão do raciocínio sis- Vazia foi utilizada de novo. Alice ver-
têmico mesmo se um único membro balizou que não estava mais ligando
do sistema familiar se dispõe ao aten- para a morte da mãe, ocasião em que
dimento. Vieram para a sessão Alice e se usou a técnica Duplo (Gonçalves,
Aline. Alice, com falas desconexas e afe- 1998), com fins de assinalar sua difi-
tos dissociados, ora dizia amar a mãe e culdade para reconhecer e lidar com
sentir sua falta, ora dizia não ligar para a dor do luto. Na técnica do Duplo, o
sua morte, e mesmo tê-la desejado. No- terapeuta fala como se fosse o pacien-
vamente foi utilizada a terapia da nar- te, como se estivesse traduzindo em
rativa, visualizando ressignificações do palavras o que a paciente expressa por
sofrimento do luto. Aline relatou que es- emoções e gestos. Também foi utiliza-
tava bem, contou que, enquanto tomava da a técnica do Espelho (Gonçalves,
banho para ir ao velório, a mãe apareceu 1998), para facilitar o reconhecimen-
no banheiro para dizer que estava mo- to dos afetos associados à ausência da
rando no céu com deus. O significado mãe; no Espelho, o terapeuta dramati-
da morte para a criança varia de acordo za a fala do paciente maximizando os
com a idade (Bromberg, 1994). postos-chaves.
A educadora social falou que, prova-
velmente, a guarda de Elaine ficaria com
a avó materna e a de Eliane, com uma Sessão 6
tia, e quanto à Alice e à Aline, a equipe
do “Raio de Luz” estava tentando viabi- Partindo do referencial do psicodra-
lizar visitas do pai. Informou que Aline ma, propôs-se a construção do brasão
trocaria de período letivo, não podendo da família, no intuito de elencar as
mais comparecer aos atendimentos. principais características relacionais
familiares. Alice rememorou histó-
rias de gestações não planejadas e
Sessão 4 agressões domésticas, uso de álcool e
outras drogas pelos avôs, tios, pais e
Foi utilizada com Alice uma técnica da primos e prostituições. Confeccionou
gestalt-terapia, a Cadeira Vazia (Me- na massa de modelar um pênis, as-
negazzo & Zuretti, 1992). A terapeuta sociando-o à promiscuidade da mãe.
sentou-se numa poltrona e pediu que Novamente utilizou-se a terapia da
Alice imaginasse que quem estava ali narrativa como via de significação-
era Cristina. Alice, ambivalente, ao -elaboração desses conteúdos emer-
mesmo tempo em que pedia que a mãe gentes.
voltasse, proferia xingamentos, dizen- Antes de entrarmos para sétima ses-
do que a odiava; chorou muito e pediu são, a educadora contou que as irmãs
para ir embora. mais velhas seriam desabrigadas nos
dias subsequentes, também o pai pas-
saria a visitar Alice e Aline semanal-
Sessão 5 mente, podendo levá-las para passar a
tarde de sábado com ele. Segundo ela,
Alice trouxe uma chave, referindo ser Alice recusava atendimentos com a
“a chave do inferno”; pediu à terapeuta psicóloga do “Raio de Luz”.

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Sessão 7 Cristina havia falecido. Foram feitas a
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escuta e o acolhimento, ao final do aten-
Com a terapia da narrativa, foi propos- dimento, conversei com ela sobre a pos-
to que Alice recontasse a história da sibilidade de convidarmos seu pai para
saída das irmãs do Lar, e da reaproxi- dividir conosco aquele espaço, proposta
mação do pai, fazendo conotações po- a qual ela aderiu sem resistência. Feito
sitivas disso. Foi conversado com ela contato com ele, acordamos sua partici-
que o fato das irmãs morarem separa- pação a partir da décima sessão.
das não desfaria o vínculo ou o senti-
mento que elas tinham uma pela ou-
tra. Alice confeccionou porta-retratos Sessão 10
com fotos suas para as irmãs levarem
para a casa nova. Vieram José (pai), Alessandra (esposa
de José), Alice e Aline, que não tivera
aula naquele dia. Os três fizeram a es-
Sessão 8 cultura da família (foto), atividade que
lhes impôs muita dificuldade, pois as
Alice contou que as irmãs e a avó fo- meninas mal conheciam a madrasta, e
ram visitá-la. Apresentou-se tranquila não viam o pai há mais de seis anos. A
e com menos confusão de afetos. So- foto foi remontada várias vezes, o que,
bre o pai, contou que foram ao merca- de fato, expressa o esforço dessa família
do e depois fizeram lanche, que ela e para recompor-se nos seus novos rear-
Aline gostaram de ficar com ele. Para ranjos, até que por fim conseguiram
sessão, utilizou-se o recurso lúdico finalizar a proposta. As meninas foram
“Jogo da Vida”, trata-se de um jogo no hostis com Alessandra e com o pai,
qual os participantes vivenciam estres- este, por sua vez, destacou o sentimen-
sores do ciclo vital. Nas etapas do jogo, to de culpa por ter estado ausente tanto
Alice respondeu com os mesmos pa- tempo, e o quanto isso agora compro-
drões comportamentais da mãe, tias e metia sua função de autoridade, no
primas: abandono dos filhos, no senti- sentido de impor regras e limites.
do de não conseguir exercer autorida- Em conversa com a assistente social
de sobre eles; reproduziu situação de do “Raio de Luz”, a mesma me infor-
evasão escolar e não conseguiu pensar mou que José e Alessandra estavam
num trabalho formal, profissão. Pon- sendo bastante receptivos às orienta-
tuados tais aspectos observados, uti- ções, que a equipe via boas perspectivas
lizando a terapia da narrativa, Alice de desabrigamento; informou também
falou sobre esses legados familiares. que, após aproximação do pai, Alice
melhorara muito, estava sem intercor-
rências no “Raio de Luz” ou na escola.
Sessão 9

Na intenção de trabalhar a repetição Sessão 11


de certos comportamentos na família,
assistimos ao vídeo “Vida Maria”, Alice Veio apenas Alice, pois o pai e a ma-
teve ampla compreensão do assunto, drasta estavam trabalhando. Antes que
verbalizou não querer ser igual à mãe, qualquer atividade fosse sugerida, ela
e, nesse momento, chorou compulsiva- fez um pedido, disse que precisava fa-
mente, contou que fazia dois meses que lar com a mãe, que se sentia culpada

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pela sua morte, que achava que ela ti- Discussão A importância da abordagem
nha morrido porque deus estava cas- familiar na atenção 79
psicossocial
tigando-a por não ser uma boa filha. É preciso compreender que as famílias Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri

Mais uma vez, introduzimos a cadeira enfrentam impasses intensos para vi- Fernanda Silveira Serralvo

vazia, Alice, ao contrário do que fazia ver os processos de transição e adap-


usualmente, não xingou a mãe, chorou tação exigidos no decorrer do ciclo
muito, pediu-lhe perdão e despediu-se de vida familiar, o que, muitas vezes,
dela. Para a décima segunda sessão, resulta na impossibilidade de evolução
que seria a última, pedi que o pai e para uma nova estrutura, perpetuando
Aline comparecessem. assim, padrões disfuncionais de com-
portamento. O ciclo de vida da família
abrange uma série de eventos previsí-
Sessão 12 veis ou não, que tencionam a organiza-
ção familiar; é na fase de transição, de
Foi proposto confeccionar um mural superação de um dado problema, que
de fotos, onde a nova história daquela a família se encontra mais vulnerável.
família seria escrita. O novo brasão re- Falamos em estressores horizontais do
presentativo da família produzido por ciclo de vida familiar quando se trata
Alice foi um coração, e ao lado dele, de eventos previsíveis, por exemplo, o
as meninas escolheram fixar a música nascimento dos filhos ou a adolescên-
“Coração com Buraquinhos”. Conver- cia dos mesmos (Pagani, Minozzo &
samos sobre a música escolhida por Quaglia, 2011).
elas, contaram que se identificavam Além dos estressores horizontais,
muito com a história das personagens, temos os estressores verticais que cor-
era uma música de uma novela infantil respondem à cultura própria de cada
cujo enredo era a vida de crianças num família, onde circulam seus próprios
orfanato; falaram do “Raio de Luz” e códigos: normas de convivência, re-
do CAPS, pontuando que coisas boas gras ou acordos relacionais, ritos, jo-
aconteceram, apesar da situação ruim gos, crenças ou mitos familiares, com
que as trouxe para os atendimentos. um modo próprio de expressar e in-
A família respirava ares de espe- terpretar emoções e comunicações;
rança de uma vida nova, mas não sem assim as ações são interpretadas num
muitos impasses que já se enunciavam, contexto de emoções e de significa-
pois, era certo que o pai precisaria de dos pessoais, familiares e culturais. As
muito apoio nesse processo de assun- principais características, estressores
ção da guarda das filhas, por isso, mes- verticais, observadas do sistema fa-
mo encerradas as 12 sessões, mantive- miliar atendido que nos chamaram a
mos o espaço à disposição, explicando atenção foram: estilos de comunicação
que poderíamos retomar os atendi- defeituosa, violência doméstica, filho
mentos havendo demanda. Quanto à parental, além de alguns padrões fami-
Alice, seguiu inserida no CAPS, em liares transgeracionais repetitivos, por
acompanhamento individual e grupal; exemplo, respostas ineficazes e estere-
ela e a irmã foram residir com o pai, otipadas para resolver problemas, se-
e, na medida do possível, visto que o parações, gestações sem planejamento
período de adaptação é naturalmente e abuso de álcool e drogas.
difícil, seguiam sem maiores proble- A adolescência é uma das etapas
mas. O pai e a madrasta tornaram-se do desenvolvimento de maior vulne-
assíduos ao tratamento no CAPSad. rabilidade para experimentação e uso

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abusivo de substâncias psicoativas. cluir simultaneamente saúde e doença,
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Neste período, o papel protetivo dos indivíduo e coletivo; essa é a perspec-
pais é indispensável, deve haver uma tiva que deve nortear o processo de
clara definição hierárquica no sistema trabalho. No tocante ao tratamento da
familiar (Silva & Padilha, 2011), além dependência química, acredita-se que
do que a organização familiar é um as- a terapia familiar está diretamente li-
pecto determinante no prognóstico do gada à diminuição/interrompimento
quadro de dependência química. do consumo de drogas (Braun, Della-
Na maioria das sessões terapêuticas, zzana-Zanon & Halpern, 2014; Payá,
estava presente apenas um membro da 201; Schenker & Minayo, 2004), de
família, o que, por sua vez, não desca- acordo com Halpern (2001, p. 123) “a
racteriza a terapia familiar, pois ainda drogadição pode ser considerada um
que os demais membros da família problema familiar”, outrossim, as rela-
não tenham participado integralmen- ções familiares são elementos-chaves
te das sessões, não foram excluídos do tanto para a prevenção quanto para a
tratamento já que o norte de todo o predisposição ao consumo de drogas
trabalho realizado foi a teoria sistêmi- (Edwards, Marshall, & Cook, 1999;
ca, dessa forma, mesmo quando aten- Schenker, 2008); tanto que Mason e
demos uma única pessoa da unidade Spoth (2012) defendem que interven-
familiar, a terapêutica se volta para as ções focadas na família são eficazes
relações, para as interações. para tratar o uso precoce de drogas
Após 12 semanas de atendimentos, entre adolescentes.
houve melhoras quanto às demandas Consideramos que o grande avan-
trazidas, sobremaneira, destacamos o ço das terapias sistêmicas é o deslo-
retorno do pai à família e o posterior camento do eixo de compreensão do
desabrigamento das meninas, que fo- problema individual para o familiar/
ram residir com ele. Também a cessa- social que tem como consequência
ção de alguns sintomas pontuais que o acolhimento da família como uma
Alice vinha apresentando, dentre eles, unidade que necessita de cuidado. Essa
o uso de drogas, o que nos leva a pen- postura pressupõe um novo olhar so-
sar que este comportamento em muito bre as possibilidades das famílias para
se referia às relações familiares fragili- enfrentarem suas crises. Impõe-se a
zadas, visto que equacionados os pro- necessidade não só de reconhecer a
blemas fundamentais do sistema fami- importância do atendimento ao grupo
liar, a adolescente interrompeu o uso familiar, mas também de oferecer uma
de drogas, inclusive, ao término da te- atenção singular que leve em conta as
rapia familiar a equipe do CAPSad co- especificidades de cada família consi-
gitava a possibilidade de Alice receber derando sua história, estrutura, dinâ-
alta e ser acompanhada pelo CREAS. mica e sua inserção no contexto social.
O pressuposto de que as demandas
de ajuda que interpelam os serviços de
Considerações saúde mental necessitam ser compre-
endidas para além dos aspectos indi-
Trabalhar com a perspectiva sistêmi- viduais do sujeito identificado como
ca de família implica conceber que a “doente”, mas dentro de um contexto
saúde da família vai além da soma da amplo onde toda a família está incluí-
saúde dos indivíduos que a compõem. da, é o ponto de partida para o desen-
A análise da saúde da família deve in- volvimento de formas de atenção aos

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usuários da saúde mental coletiva que ser incluída no tratamento da depen- A importância da abordagem
incorporem a família como aspecto dência química” (Braun, Dellazzana- familiar na atenção 81
psicossocial
basal da visão psicossocial. É essencial -Zanon & Halpern, 2014, p. 136), mas Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
considerar que: cada caso tem sua peculiaridade, sen-
do que os resultados não serão sempre
A família que exclui é também a fa- os mesmos, ou seja, a interrupção no
mília que poderá acolher. A família consumo de drogas. Sobre isso, cabe
“problemática” é também a famí- considerar que o objetivo principal
lia que carrega a “solução”. Assim, não é necessariamente promover a
numa visão baseada no paradigma abstinência, mas sim buscar melhoria
da complexidade, pode-se pensar a na qualidade de vida. A política de re-
família como um espaço de risco, e dução de danos visa diminuir as con-
também, como contexto de prote- sequências adversas do uso de álcool e
ção, sem que haja exclusão ou sepa- outras drogas para a pessoa, a família
ração das partes (Dios, 1999, p. 83). e a sociedade, diminuir o impacto dos
problemas socioeconômicos, culturais
Neste ponto, enunciamos a necessi- e dos agravos à saúde associados à de-
dade da inserção das terapias sistêmi- pendência de substâncias psicoativas,
cas de família como novos dispositivos, tendo no horizonte não apenas uma
consoantes com a atenção psicossocial abordagem curativa, mas, sobretudo,
e os ideais de reforma psiquiátrica. a prevenção/promoção, que inclui os
Após o trabalho de revisão bibliográ- contextos familiares e comunitários
fica, e, levando em conta nossas expe- como primordiais para a produção da
riências profissionais, concluímos que saúde.
os tratamentos que incluem a família
são atualmente recomendados como
abordagens efetivas para o tratamen- Referências
to do abuso de álcool e outras drogas.
Entretanto, salientamos que as sín- Amarante, P. (1995). Loucos pela vida:
dromes de dependência química são a trajetória da reforma psiquiátri-
multideterminadas, trazendo à baila ca no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro:
fatores subjetivos do dependente, fa- Fiocruz.
tores familiares e ainda problemas so-     . (2003). A (clínica) e a refor-
ciais macroestruturais. No caso espe- ma psiquiátrica. In: P. Amarante
cífico que trouxemos para discussão, (Org.) Archivos de Saúde Mental e
observa-se que o uso de drogas foi um Atenção Psicossocial (pp. 45-65). Rio
evento pontual na vida da adolescente, de Janeiro: Nau.
uma resposta inadequada às rupturas     . (2007). Saúde mental e aten-
constantes no sistema familiar, por ção psicossocial. Rio de Janeiro:
outro lado, no CAPSad geralmente Fiocruz.
atendemos casos mais complexos de Berenstein, I. (2002). Contemporary
dependência, marcados pelo uso crô- familial problems or nowadays fa-
nico de álcool/drogas e por ciclos de milial situations: invariance and no-
abstinência e recaídas. velty. Psicol. USP São Paulo, 13 (1),
Em última análise: “É possível afir- 21-32.
mar que a inclusão da família é um dos Bordin, S., Figlie, N. B. & Laranjeira, R.
fatores que favorecem a recuperação e (2004). Aconselhamento em Depen-
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PROIBIÇÃO ÀS DROGAS E VIOLAÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS

Maria Lucia Karam

1. “Guerra às drogas” e expansão do poder punitivo

As notáveis mudanças registradas no mundo contemporâneo, os avanços no campo da


informação e das comunicações, a integração planetária, a inauguração de uma era digital não têm
apontado para a superação dos desequilíbrios econômicos e sociais. Ao contrário, a desigualdade, a
pobreza, a marginalização subsistem e se aprofundam por toda parte.
Rompidas delimitações espaciais e temporais, os riscos que sempre acompanharam as
atividades humanas, apenas se diversificando conforme estas se diversificam, adquirem nova
dimensão, sua percepção se tornando globalizada, vizinha, assustadora. Na era digital, os riscos não
são percebidos apenas como um resultado possível da ação, com consequências positivas ou
negativas, mas sim sob uma forma predominantemente negativa, como uma ameaça – e uma
ameaça muito próxima.
A necessidade de controle dos marginalizados, excluídos das próprias atividades produtivas,
aliada a essa percepção negativa dos riscos, a sentimentos difusos de incômodo e de medo, a
relações sociais baseadas na competição, no imediatismo e na ausência de solidariedade no convívio,
coloca a busca de um ideal de segurança no centro das preocupações da maioria. Tudo isso propicia
a expansão do poder punitivo que vem se registrando em escala global desde as últimas décadas do
século XX.
A maior intervenção do sistema penal, peça-chave para o controle de marginalizados e
dissidentes, torna-se a propagandeada solução para todos os apontados males, sendo apresentada,
em todo o mundo, por políticos dos mais variados matizes, não só como uma fácil – mas decerto
falsa – resposta aos anseios individuais por segurança, mas até como um pretenso – mas
obviamente inviável – instrumento de transformação social.1
Alimentando-se de totalitárias propostas de troca da liberdade por segurança, de danosas
ideias que colocam a ordem acima da dignidade e das vidas de seres humanos; de inúteis e
autodestrutivos desejos de vingança; de intensificadas buscas de bodes expiatórios; de renovadas
fantasias acerca de crimes e de penas, o poder punitivo se expande e, com sua expansão, aprofunda
a violência, os danos e as dores tradicionalmente provocados pela atuação do sistema penal.

1
Sobre as tendências punitivas contemporâneas, à direita e à esquerda do espectro político, ver Karam (2009.a).
A expansão do poder punitivo incorpora ao controle social exercido através do sistema penal
parâmetros bélicos que exacerbam a hostilidade contra os selecionados sofredores concretos e
potenciais da pena, ao acrescentar às ideias sobre o “criminoso” – tradicionalmente visto como o
“mau”, o “outro”, o “perigoso” – e a seu papel de “bode expiatório” o ainda mais excludente perfil
do “inimigo”2.
Principal instrumento propiciador dessa contemporânea expansão do poder punitivo é a
proibição às drogas tornadas ilícitas, materializada na criminalização das condutas de seus
produtores, comerciantes e consumidores. Globalmente inaugurada no início do século XX, a política
proibicionista subiu de tom a partir da década de 1970, passando a explicitamente associar o
sistema penal à guerra. Com efeito, em 1971, o então presidente norte-americano Richard Nixon
declarava uma “guerra às drogas”, que logo se expandia para o mundo. A disseminada expressão
“guerra às drogas” deixa explícita, em sua própria denominação, a moldura bélica que dá a tônica do
controle social exercitado através do sistema penal nas sociedades contemporâneas.
Materializando-se na criminalização de condutas massivamente praticadas em todo o
mundo, a proibição às drogas tornadas ilícitas forneceu e fornece o impulso requerido pela
consolidação de uma globalmente uniforme tendência punitiva3 e uma expansão do poder punitivo
sem paralelos.
Após a declaração de guerra, o número de pessoas encarceradas nos Estados Unidos da
América por crimes relacionados a drogas aumentou em mais de 2.000%. Em duas décadas, entre
1980 e 2000, o número total de presos norte-americanos passou de cerca de 300.000 para mais de 2
milhões4, transformando a antiga “land of the free” no país que mais encarcera em todo o mundo.
O Brasil segue a mesma tendência, tendo hoje a quarta maior população carcerária do
mundo. São mais de 500 mil presos: conforme dados do Ministério da Justiça eram 548.003 em
dezembro de 2012, o que corresponde a 287,31 presos por cem mil habitantes. A média mundial
(em maio de 2011) é de 146 por cem mil habitantes. Nos últimos vinte anos o Brasil praticamente
quadruplicou sua população carcerária. Se o crescimento do número de presos nos Estados Unidos
da América, após anos de estrondoso aumento, parece ter chegado a seu auge, estancando ou

2
O “inimigo” é aquele que assume o perfil do estranho à comunidade, a quem, por sua apontada
“periculosidade”, não são reconhecidos os mesmos direitos dos pertencentes à comunidade e que, assim,
desprovido de dignidade e de direitos, perde sua qualidade de pessoa, tornando-se uma “não-pessoa”. Ver
Zaffaroni, E.R. (2006).
3
Sobre a globalizada atuação do sistema penal e o lugar de destaque ocupado pela “guerra às drogas”, ver
Andreas, P. e Nadelmann, E. (2006).
4
Em dezembro de 2011, os presos norte-americanos eram 2.239.800. Fontes: US Department of Justice, Bureau
of Justice Statistics; International Centre for Prison Studies.
apresentando ligeira queda nos últimos anos5, no Brasil o crescimento é ininterrupto. Em 1992, eram
74 presos por cem mil habitantes; em 2004, 183 por cem mil habitantes; em junho de 2011, 269 por
cem mil habitantes. Acusados e condenados por “tráfico” que, em dezembro de 2005 (a partir de
quando começaram a ser fornecidos dados relacionando o número de presos com as espécies de
crimes), eram 9,1% do total dos presos brasileiros, em dezembro de 2012, chegavam a 26,9%. Entre
as mulheres, essa proporção alcança praticamente metade das presas (47,35%), tendo chegado a
quase 60% no ano anterior (em dezembro de 2011, eram 57,62%)6.
A “guerra às drogas” não é e nunca foi propriamente uma guerra contra as drogas. Não se
trata de uma guerra contra coisas. Dirige-se sim, como quaisquer outras guerras, contra pessoas: os
produtores, comerciantes e consumidores das selecionadas substâncias psicoativas tornadas ilícitas.
Mas, não exatamente todos eles. Os alvos nessa guerra são os mais vulneráveis dentre os
produtores, comerciantes e consumidores das drogas proibidas; os “inimigos” nessa guerra, são seus
produtores, comerciantes e consumidores pobres, não brancos, marginalizados, desprovidos de
poder.
Nos cárceres dos Estados Unidos da América, repletos de condenados por crimes
relacionados às drogas tornadas ilícitas, sua população não está representada de maneira uniforme.
Os índices de prisões de afro-americanos são muito superiores aos índices de prisões de brancos, em
gritante desproporcionalidade com sua presença na população como um todo. Negros são dez vezes
mais suscetíveis de serem abordados, revistados e detidos do que brancos. Negros formam 13,5% da
população dos Estados Unidos da América, mas 37% dos que são detidos por violações a leis de
drogas são negros; mais de 42% dos que estão em prisões federais e quase 60% dos que estão em
prisões estaduais por violações a leis de drogas são negros. A taxa de encarceramento nos Estados
Unidos da América é de 716 presos por 100 mil habitantes. Quando se consideram apenas os
homens afro-americanos, sobe para cerca de 4.700 presos por 100 mil habitantes. Na África do Sul,
em 1993, à época do apartheid, eram 815 por 100.000 habitantes os homens negros sul-africanos
nas prisões7.
O encarceramento massivo de afro-americanos nos Estados Unidos da América nitidamente
revela o alvo e a função da “guerra às drogas” naquele país: perpetuar a discriminação e a

5
Se em dezembro de 2011, os presos norte-americanos eram 2.239.800, correspondendo a 716 presos por cem
mil habitantes, em 2007, eram 2.298.041, correspondendo a 758 por cem mil habitantes. Fontes: US Department
of Justice, Bureau of Justice Statistics; International Centre for Prison Studies.
6
Fontes: Ministério da Justiça do Brasil; International Centre for Prison Studies.
7
Fontes: FBI; Bureau of Justice Statistics, US Department of Justice; Substance Abuse and Mental Health
Services Administration; Human Rights Watch; The Sentencing Project.
marginalização fundadas na cor da pele, anteriormente exercitadas de forma mais explícita com a
escravidão e o sistema de segregação racial conhecido como Jim Crow8.
O alvo preferencial da “guerra às drogas” brasileira também é claro: os mortos e presos
nessa guerra – os “inimigos” – são os “traficantes” das favelas e aqueles que, pobres, não-brancos,
marginalizados, desprovidos de poder, a eles se assemelham.
A explícita opção bélica deixa claro o descompromisso com os direitos fundamentais dos
indivíduos: guerras e direitos humanos são naturalmente incompatíveis. Violência, mortes, doenças,
encarceramento massivo são o resultado dessa danosa e sanguinária política, institucionalizada nas
convenções internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU)9 que impõem as diretrizes
criminalizadoras adotadas pelas legislações internas dos mais diversos Estados nacionais em matéria
de drogas. Característica marcante de tais diplomas internacionais e nacionais é a sistemática
violação a princípios garantidores positivados em normas inscritas nas declarações internacionais de
direitos e constituições democráticas.

2. Proibição e contrariedade a normas fundamentais

Os dispositivos criminalizadores que institucionalizam a proibição e a “guerra às drogas”


partem de uma distinção arbitrariamente feita entre substâncias psicoativas tornadas ilícitas (como
a maconha, a cocaína, a heroína, etc.) e outras substâncias da mesma natureza que permanecem
lícitas (como o álcool, o tabaco, a cafeína, etc.). Tornando ilícitas algumas dessas drogas e mantendo
outras na legalidade, as convenções internacionais e leis nacionais introduzem assim uma arbitrária
diferenciação entre as condutas de produtores, comerciantes e consumidores de umas e outras
substâncias: umas constituem crime e outras são perfeitamente lícitas; produtores, comerciantes e
consumidores de certas drogas são “criminosos”, enquanto produtores, comerciantes e
consumidores de outras drogas agem em plena legalidade. Esse tratamento diferenciado a condutas
essencialmente iguais configura uma distinção discriminatória inteiramente incompatível com o
princípio da isonomia.

8
Sobre esse ponto é indispensável a leitura da obra de Michelle Alexander (2010).
9
São três as convenções da ONU sobre a matéria, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre
entorpecentes de 1961, que revogou as convenções anteriores e foi revista através de um protocolo de 1972; o
Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de
entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena). Ainda ao tempo da Liga das Nações,
já tinham sido estabelecidas convenções internacionais sobre drogas, a primeira delas a Convenção
Internacional sobre o Ópio, adotada em Haia em 23 de janeiro de 1912. A imposição de criminalização só se
concretiza, porém, com as convenções da ONU.
Situado na base do modelo do Estado democrático e destacadamente positivado em normas
fundamentais inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas10,
o princípio da isonomia exige que o mesmo tratamento seja dado e os mesmos direitos sejam
reconhecidos a todos que estejam em igualdade de condições e situações. Como na feliz afirmação
de Fábio Konder Comparato, direitos nunca podem ser reconhecidos a alguns apenas, ou a uns mais
do que a outros.11
O tratamento diferenciado somente é admissível quando exista uma correlação lógica entre
a peculiaridade diferencial acolhida e a desigualdade de tratamento em função dela conferida. Essa
peculiaridade diferencial há de estar radicada na diferença que as coisas, pessoas ou situações
possuam em si mesmas, não se autorizando a discriminação quando nelas não se encontram fatores
desiguais. Há de se notar ainda que não existem duas situações tão iguais que não possam ser
distinguidas, da mesma forma que inexistem situações tão distintas que não possuam algum
denominador comum em função do qual possam ser equiparadas, por isso não sendo qualquer
distinção entre as situações ou as pessoas que estaria a autorizar a discriminação, a eventual
existência de alguma diferença havendo de ser efetivamente relevante para o tratamento
diferenciado que se quiser introduzir legislativamente12.
Certamente, não há qualquer peculiaridade ou qualquer diferença relevante entre as
arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas e as demais drogas que permanecem lícitas.
Todas são substâncias que provocam alterações no psiquismo, podendo gerar dependência e causar
doenças físicas e mentais. Todas são potencialmente perigosas e viciantes. Todas são drogas. Seus
efeitos mais ou menos danosos dependem, muito mais, da forma como quem as usa se relaciona
com elas do que de sua própria composição. Uma droga mais potente consumida com moderação
pode ter efeitos menos danosos do que uma droga menos potente consumida abusivamente. Como
há muito já mostrou Claude Olievenstein, “o problema da droga não existe em si, mas é o resultado
do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sócio-cultural”13. Se, assim mesmo, se
quisesse levar em conta tão somente o maior ou menor potencial danoso de cada droga em si
mesma (seus efeitos primários), a arbitrariedade do tratamento diferenciado se revelaria ainda mais

10
Declaração Universal dos Direitos Humanos – “Artigo VII. Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem
qualquer distinção, a igual proteção da lei. (...)”.
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – “Artigo 14. 1. Todas as pessoas são iguais perante as
cortes e tribunais. (...)”.
Constituição Federal brasileira – “Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.
11
Comparato, F.K. (1996).
12
Ver Bandeira de Mello, C.A.(1993).
13
Olivenstein, C. (1984).
claramente, pois algumas drogas lícitas são potencialmente mais danosas, em sua própria
composição, do que algumas drogas tornadas ilícitas.14
A violação ao princípio da isonomia estampada na proibição criminalizadora das condutas de
produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas
já demonstra a manifesta incompatibilidade das convenções internacionais e leis nacionais em
matéria de drogas com normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e constituições
democráticas.
Mas, a violação a princípios garantidores inscritos nessas normas fundamentais vai além. As
convenções internacionais e leis nacionais que discriminatoriamente proíbem condutas de
produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas
criam crimes sem vítimas, ao criminalizarem a mera posse daquelas substâncias e sua negociação
entre adultos, assim violando a exigência de ofensividade da conduta proibida.
A criminalização de qualquer ação ou omissão há de estar sempre referida a uma ofensa
relevante a um bem jurídico alheio, relacionado ou relacionável a direitos individuais concretos, ou à
exposição deste bem jurídico a um perigo de lesão concreto, direto e imediato. Condutas só podem
ser proibidas se forem aptas a causar dano ou perigo concreto de dano a um bem jurídico alheio,
isto é quando impedem a possibilidade de seu titular usar ou se servir (isto é, dispor) do objeto
concreto relacionado ao bem jurídico (tais como a vida, a saúde, o patrimônio, etc.)15. Ainda quando
eventualmente reconhecíveis bens jurídicos de caráter coletivo, estes hão de estar sempre
referenciados a direitos individuais concretos.
A desvinculação de regras criminalizadoras da afetação de direitos individuais concretos dilui
o indivíduo em uma abstrata coletividade, despersonalizando-o e conduzindo-o ao anônimo papel
de instrumento a serviço de fins que, divorciados da referência individualizada, sacrificam a
liberdade e alimentam totalitarismos de todos os matizes. A visão de que abstratos interesses de
uma também abstrata sociedade devessem prevalecer sobre os direitos individuais não esconde
essa inspiração totalitária. A sociedade há de ser concretizada. A sociedade não é algo abstrato, mas
sim o conjunto de indivíduos concretos. Os ditos interesses da sociedade só se legitimam quando
referidos a bens individualizáveis.
Em uma democracia, o Estado não está autorizado a intervir em condutas que não envolvem
um risco concreto, direto e imediato para terceiros, não estando assim autorizado a criminalizar a

14
Ver Nutt, D.; King, L.A.; Saulsbury, W.; Blakemore, C. (2007).
15
Conforme a apropriada conceituação de Eugenio Raúl Zaffaroni, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar (2000),
o bem jurídico é uma relação de disponibilidade de um sujeito com um objeto. Embora costumeiramente o bem
jurídico seja identificado ao objeto (como a vida, a saúde, o patrimônio, etc.), o que o direito protege (ou
pretende proteger) não é o objeto em si mesmo, mas sim a possibilidade que o sujeito tem de usar ou de se servir
(ou seja, de dispor) daqueles objetos concretos.
posse para uso pessoal de drogas ilícitas, que, equivalente a um mero perigo de autolesão, não afeta
qualquer bem jurídico individualizável. Também não está o Estado autorizado a intervir quando o
responsável pela conduta age de acordo com a vontade do titular do bem jurídico, não estando
assim autorizado a criminalizar a venda ou qualquer outra forma de fornecimento de drogas ilícitas
para um adulto que quer adquiri-las, conduta que, tendo o consentimento do suposto ofendido,
tampouco tem potencialidade para afetar concretamente qualquer bem jurídico individualizável.
Leis que desconsideram o consentimento do titular do bem jurídico e criminalizam a conduta
do terceiro que age de acordo com sua vontade ilegitimamente criam um mecanismo destinado a
indiretamente impedir que aquele titular do bem jurídico exerça seu direito de dele dispor (no caso
em foco, dispor de sua própria saúde). A proibição de uma conduta teoricamente lesiva de um
direito de um indivíduo não pode servir, ainda que indiretamente, para tolher a liberdade desse
mesmo indivíduo que a lei diz querer proteger.
Como há muito assinalava Bustos Ramírez, “cuando se sanciona el tráfico de droga y
todos los actos relativos o que le sirven de presupuesto, ciertamente lo que se está haciendo
es impedir o prohibir el consumo”16.
A realização dos direitos fundamentais não se compatibiliza com a obstrução e
impedimentos a desejos e direitos dos próprios titulares dos bens para os quais se direciona a tutela
jurídica. A racionalidade indispensável aos atos de governo, em um Estado democrático,
evidentemente, não convive com a contrariedade aos anseios e aos direitos dos próprios titulares
dos bens destinatários da tutela jurídica. O Estado democrático não está autorizado a substituir o
indivíduo em decisões que dizem respeito apenas a si mesmo. Em uma democracia, o Estado não
pode tolher a liberdade dos indivíduos sob o pretexto de pretender protegê-los. Ninguém pode ser
coagido a ser protegido contra sua própria vontade. Intervenções do Estado supostamente dirigidas
à proteção de um direito contra a vontade do indivíduo que é seu titular contrariam a própria ideia
de democracia, pois excluem a capacidade de escolha na qual esta ideia se baseia.
O princípio da legalidade e o princípio das liberdades iguais submetem todo poder estatal ao
império da lei e asseguram a liberdade individual como regra geral, situando quaisquer proibições e
restrições no campo da exceção e condicionando sua validade ao objetivo de assegurar o igualmente
livre exercício de direitos de terceiros. Enquanto não atinja concreta, direta e imediatamente um
direito alheio, o indivíduo é e deve ser livre para pensar, dizer e fazer o que bem quiser. Essa
afirmação, que reproduz o conteúdo do princípio das liberdades iguais, é uma conquista histórica da
humanidade, proclamada nos ideais das revoluções francesa e americana do século XVIII. No artigo

16
Bustos Ramírez, J. (1990).
4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da França de 1789, já se afirmava que “a
liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudica terceiros”.
Daí se extrai o conteúdo do princípio da exigência de ofensividade da conduta proibida, que,
além de se vincular ao postulado da proporcionalidade, extraído do aspecto material da cláusula do
devido processo legal, também claramente se vincula ao próprio princípio da legalidade, dada a
sólida relação deste com o princípio das liberdades iguais.
Partindo da violação ao princípio da isonomia e à exigência de ofensividade da conduta
proibida, as convenções internacionais e leis nacionais que discriminatoriamente criminalizam a
produção, o comércio e o consumo das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, ainda
vão mais além. À medida que cresce o tom repressor, multiplicam-se regras que, estabelecendo
especial rigor penal e processual contra condutas relacionadas àquelas substâncias proibidas, sob a
falaciosa alegação de que tais ilegitimamente criminalizadas condutas não poderiam ser controladas
por meios regulares, reiteram e ampliam a contrariedade a princípios garantidores inscritos nas
declarações internacionais de direitos humanos e constituições democráticas17.

3. Inadequação da proibição para a consecução de seu objetivo explícito: falência e danos

Passados 100 anos da proibição, com seus mais de 40 anos de guerra, os resultados são
mortes, prisões superlotadas, doenças se espalhando, milhares de vidas destruídas e nenhuma
redução na disponibilidade das substâncias proibidas. Ao contrário, nesses anos todos, as
arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas foram se tornando mais baratas, mais potentes,
mais diversificadas e muito mais acessíveis do que eram antes de serem proibidas e de seus
produtores, comerciantes e consumidores serem combatidos como “inimigos” nessa nociva e
sanguinária guerra.
A própria Organização das Nações Unidas que, em 1998, tomada por delirante euforia,
prometia um mundo sem drogas em dez anos18, posteriormente teve de reconhecer a expansão e
diversificação do mercado das drogas ilícitas. Em recente relatório, o Secretariado de seu Escritório
para Drogas e Crimes (UNODC) estimou que, de 153 milhões a 300 milhões de pessoas entre 15 e 64
anos teriam usado uma substância proibida pelo menos uma vez no ano de 201019. O mesmo
relatório, destacando o fato da maconha continuar a ser a droga ilícita mais utilizada, seguida pelas

17
Ver Karam (2009.b).
18
Na Sessão Especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGASS) de 1988 foi lançado o slogan que se
tornou famoso “A Drug-Free World – We Can Do It”, transmitindo a anunciada intenção de erradicar todas as
drogas ilícitas – da maconha ao ópio e à coca – até 2008.
19
Relatório do Secretariado para a 56ª Sessão da Comissão de Drogas Narcóticas (CND), em março de 2013.
anfetaminas, revela que foram identificadas quarenta e nove novas substâncias psicoativas,
consumidas em Estados membros da União Europeia em 2011, número superior às quarenta e uma
novas substâncias identificadas em 2010 e às vinte e quatro em 2009.
Dados da Drug Enforcement Agency (DEA) apontam que, em 1970 – ou seja, antes da
declaração de “guerra às drogas” –, 4 milhões de pessoas nos Estados Unidos da América, maiores
de 12 anos, tinham usado uma droga ilícita, correspondendo a 2 por cento da população de então,
enquanto em 2003 esse número era de 112 milhões, correspondendo a 46 por cento da população20.
Em pesquisas periodicamente realizadas nos Estados Unidos da América entre alunos de escolas
médias as respostas têm sido que é mais fácil comprar drogas ilícitas do que cerveja e cigarros21.
As apreensões realizadas em operações policiais, que, antes da declaração de “guerra às
drogas” se faziam em quilos e, agora, se fazem em toneladas, além de revelarem a expansão da
produção e do comércio, ao reduzirem momentaneamente a oferta, acabam por proporcionar uma
imediata supervalorização das mercadorias, assim criando maiores incentivos econômicos e
financeiros para o prosseguimento daquelas atividades econômicas tornadas ilegais.
Por outro lado, eventuais êxitos repressivos em determinado local conduzem a um mero
deslocamento dos empreendimentos ilícitos. Recentemente, parte significativa da produção de
cocaína na Colômbia se deslocou para o Peru, em movimento que simplesmente inverte o que
aconteceu nos anos 1990, quando houve um deslocamento da produção do Peru e da Bolívia para a
Colômbia22.
Eventuais êxitos repressivos muitas vezes também acabam por incentivar produtores,
comerciantes e consumidores a buscar outras substâncias, podendo conduzir – como, de fato, têm
conduzido – à chegada ao mercado ilegal de novos produtos mais lucrativos e/ou mais potentes em
seus efeitos primários (efeitos derivados da própria natureza da substância). Assim reconheceu o
diretor-geral da Polícia Federal brasileira, por ocasião de conferência internacional realizada no Rio
de Janeiro em 2010: pretendendo louvar um suposto sucesso da repressão, acabou por afirmar que
dificuldades impostas pela repressão à produção de cocaína fizeram com que as “quadrilhas de
traficantes” buscassem uma alternativa que se concretizou no crack.23 Este não é apenas o caso do
crack. O ópio que costumava ser fumado ou bebido acabou sendo substituído pela heroína injetável.
Durante a proibição do álcool nos Estados Unidos da América, no período de 1920 a 1933, o

20
Substance Abuse and Mental Health Services Administration (SAMHSA).
21
Johnston, L.; Bachman, J.; O'Malley, P. (2001).
22
The New York Times (13/06/2010); The Economist (02/04/2013).Veja-se ainda UNODC: World Drug Report
2012.
23
27ª International Drug Enforcement Conference, realizada no Rio de Janeiro em abril de 2010. Veja-se
matéria em O Estado de São Paulo (27/04/2010).
comércio de cerveja e vinho perdeu espaço para vendas de outras bebidas alcoólicas mais fortes,
mais concentradas, lucrativas e perigosas, como uísque e gin.
O fracasso da proibição, além de ser evidente, seria facilmente previsível. Drogas são usadas
desde as origens da história da humanidade. Milhões de pessoas em todo o mundo fizeram e fazem
uso delas. A realidade tem mostrado que, por maior que seja a repressão, esse quadro não muda:
sempre há e haverá quem queira usar essas substâncias. E havendo quem queira comprar, sempre
haverá pessoas querendo correr o risco de produzir e vender. Os empresários e empregados das
empresas produtoras e distribuidoras das substâncias proibidas, quando são mortos ou presos, logo
são substituídos por outros igualmente desejosos de acumular capital ou necessitados de trabalho.
Essa é uma lei da economia: onde houver demanda, sempre haverá oferta. As artificiais leis penais
não conseguem revogar as naturais leis da economia.
O fracasso da política proibicionista demonstra a inadequação das regras constantes das
convenções internacionais e leis nacionais que discriminatoriamente criminalizam as condutas de
produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas
para atingir seu declarado objetivo de eliminar ou pelo menos reduzir a circulação de tais
substâncias psicoativas. Não bastassem, pois, as originárias violações ao princípio da isonomia e à
exigência de ofensividade da conduta proibida e as acrescidas violações a outros princípios
garantidores inscritos em normas fundamentais, a insistência na aplicação de tais ilegítimas regras
criminalizadoras, demonstradamente inadequadas para atingir o fim a que se propõem, ainda se
revela contrária ao postulado da proporcionalidade, já na consideração do primeiro de seus
requisitos.
Mas, o manifesto fracasso da proibição não é o dado mais relevante de sua inadequação. A
proibição não é apenas uma política falida. É muito pior do que simplesmente ser ineficiente. Mais
do que a inaptidão para atingir o declarado objetivo de eliminar ou pelo menos reduzir a circulação
das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, a proibição acrescenta danos muito mais
graves aos riscos e os danos que podem ser causados pelas drogas em si mesmas. O mais evidente e
dramático desses riscos e danos provocados pela proibição é a violência, resultado lógico de uma
política fundada na guerra.
Não são as drogas que causam violência. O que causa violência é a proibição. A produção e o
comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas.
Não há pessoas fortemente armadas, trocando tiros nas ruas, junto às fábricas de cerveja,
ou junto aos postos de venda dessa e outras bebidas. Mas, isso já aconteceu. Foi nos Estados Unidos
da América, entre 1920 e 1933, quando lá existiu a proibição do álcool. Naquela época, Al Capone e
outros gangsters trocavam tiros nas ruas, enfrentando a polícia, se matando na disputa do controle
sobre o lucrativo mercado do álcool tornado ilícito, cobrando dívidas dos que não lhes pagavam;
atingindo inocentes pegos no fogo cruzado.
Hoje, não há violência na produção e no comércio do álcool, ou na produção e no comércio
de tabaco. Por que é diferente na produção e no comércio de maconha ou de cocaína? A resposta é
óbvia: a diferença está na proibição.
Só existem armas e violência na produção e no comércio de maconha, de cocaína e das
demais drogas tornadas ilícitas porque o mercado é ilegal. É a ilegalidade que cria e coloca no
mercado empresas criminalizadas que se valem de armas não apenas para enfrentar a repressão. As
armas se fazem necessárias também em razão da ausência de regulamentação e da consequente
impossibilidade de acesso aos meios legais de resolução de conflitos.
Estudos apontam que o aumento da repressão acaba por aumentar também a violência,
especialmente homicídios24. Sem dúvida, a “guerra às drogas” mata muito mais do que as drogas.
No México, a partir de dezembro de 2006, com a posse do presidente Felipe Calderón, a
“guerra às drogas” foi intensificada, inclusive com a utilização das Forças Armadas na repressão aos
chamados “cartéis”. Desde então, as estimativas são de 60 a 70.000 mortes relacionadas à
proibição25. A taxa de homicídios dolosos no México no período de 2000 a 2006 se mantinha em
torno de 9 a 10 homicídios por cem mil habitantes (em 2006 foi de 9,7). Após uma queda no ano
seguinte (em 2007 foi de 8,1), esse índice começou a subir, chegando em 2009 a 17,7 e em 2011 a
23,7 homicídios por cem mil habitantes26.
No Brasil, a taxa de homicídios é ainda superior à do México – aproximadamente 26
homicídios por cem mil habitantes27. Grande parte desses homicídios está relacionada aos conflitos
estabelecidos nas disputas pelo mercado ilegal. Grande parte desses homicídios está relacionada à
nociva e sanguinária política baseada na guerra. Na cidade do Rio de Janeiro, nos últimos anos, uma
média de vinte por cento dos homicídios dolosos – ou seja, um em cada cinco – tem sido resultado
de execuções sumárias em operações policiais de “combate” ao comércio varejista das drogas nas
favelas28. Policiais brasileiros são autorizados formal ou informalmente e mesmo estimulados a
praticar a violência contra os “inimigos” personificados nos vendedores de drogas das favelas.
Certamente, quem atua em uma guerra, quem deve “combater” o “inimigo”, deve eliminá-lo. Como
24
Werb, D.; Rowell, G.; Kerr, T.; Guyatt, G.; Montaner, J.; Wood. E. (2010).
25
Veja-se matéria do The Observer (08/08/2010), quando as mortes no México ainda estavam no patamar de
28.000. No início de 2012, o patamar subira para 50.000 mortes: The Washington Post (02/01/2012). Em 2013,
já se falava em 70.000 mortes: International Herald Tribune (08/03/2013). A precariedade das informações
conduz a que esses números se refiram a estimativas, podendo, na realidade, ser ainda maior o número de
mortes.
26
Fonte: UNODC (2012).
27
Fonte: Mapa da Violência 2012.
28
Dados sobre homicídios no Rio de Janeiro podem ser encontrados no Instituto de Segurança Pública do
Governo do estado. As mortes resultantes de ações policiais não são computadas nos dados sobre homicídios.
Vêm travestidas nos “autos de resistência”.
se espantar com a violência policial? Do outro lado, os ditos “inimigos” desempenham esse único
papel que lhes foi reservado. Matam e morrem, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade
imposta ao mercado onde trabalham.
A intervenção do sistema penal em um mercado que responde a uma demanda de grandes
proporções, como é a demanda pelas arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, traz
mais uma consequência inevitável: a corrupção. A amplitude do mercado ilegal faz da produção e
do comércio dessas substâncias proibidas a principal oportunidade de lucro vindo de negócios
ilícitos e, consequentemente, o maior incentivo à corrupção de agentes estatais. São bilhões de
dólares em circulação. A ONU estimou o valor desse mercado em US$ 320 bilhões no ano de 2003.29
Assim como a violência, a corrupção também é um acompanhante necessário das atividades
econômicas que se realizam no mercado posto na ilegalidade.
A ilegítima e inadequada proibição da produção, do comércio e do consumo das
arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, tendo por objetivo declarado a eliminação ou
pelo menos a redução da circulação dessas substâncias psicoativas, foi instituída e se mantém sob o
pretexto de proteção à saúde.
Esse pretexto de proteção à saúde já se dissolve, no entanto, na própria arbitrariedade da
seleção das drogas tornadas ilícitas. Como assinala Bustos Ramírez, “no hay argumento para
justificar la función declarada (protección de la salud pública) de la ley penal, pues no se
protege frente a toda droga la salud pública y, por otra parte, tampoco las drogas
ilegalizadas aparecen como aquellas con una mayor dañosidad social, sino todo lo contrario,
esto es, aquellas permitidas.”30
Mas, além de dissolvido na arbitrariedade da seleção das drogas tornadas ilícitas, o pretexto
de proteção à saúde revela o que talvez seja o maior dos paradoxos dessa danosa política: a própria
proibição causa maiores riscos e danos à mesma saúde que enganosamente anuncia pretender
proteger.
Com a irracional decisão de enfrentar um problema de saúde com o sistema penal, o Estado
agrava esse próprio problema de saúde. Com a proibição, o Estado acaba por entregar o próspero
mercado das drogas tornadas ilícitas a agentes econômicos que, atuando na clandestinidade, não
estão sujeitos a qualquer limitação reguladora de suas atividades. A ilegalidade significa exatamente
a falta de qualquer controle sobre o supostamente indesejado mercado. São esses criminalizados
agentes – os ditos “traficantes”, ou os “inimigos” da “guerra às drogas” – que decidem quais as
drogas que serão fornecidas, qual seu potencial tóxico, com que substâncias serão misturadas, qual
será seu preço, a quem serão vendidas e onde serão vendidas.
29
UNODC: World Drug Report 2012.
30
Bustos Ramírez, J. (1990).
No mercado ilegal não há controle de qualidade dos produtos comercializados, o que
aumenta as possibilidades de adulteração, de impureza e desconhecimento do potencial tóxico das
drogas proibidas. Overdoses acontecem, na maior parte dos casos, em razão do desconhecimento
daquilo que se está consumindo.
A ilegalidade cria a necessidade de aproveitamento imediato de circunstâncias que
permitam um consumo que não seja descoberto, o que acaba por se tornar um caldo de cultura para
o consumo descuidado e não higiênico, cujas consequências aparecem de forma dramática na
difusão de doenças transmissíveis como a Aids e a hepatite.
Com a proibição, as arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas são apresentadas
como um mal em si mesmas, sem que se levem em conta as diferentes formas em que pode se dar
seu consumo. Fazem-se campanhas aterrorizadoras, seguidas de imagens de degradação de pessoas
apresentadas como se representassem a totalidade do universo de consumidores, quando a própria
ONU reconhece que apenas 10 a 13% dos que consomem drogas se tornam usuários problemáticos,
sofrendo de dependência ou de outras doenças relacionadas àquelas substâncias.31 A falta de
credibilidade do discurso aterrorizador acaba por levar à desconsideração de quaisquer
recomendações ou advertências seriamente feitas sobre riscos e danos à saúde que realmente
podem advir de um consumo excessivo, descuidado ou descontrolado não só das drogas tornadas
ilícitas, como também de todas as substâncias psicoativas, ou mesmo dos mais diversos produtos
alimentícios.
A proibição sugere a ocultação, assim dificultando o diálogo, a busca de esclarecimentos e
informações, especialmente entre adolescentes e seus familiares ou educadores. Além disso, a
artificial distinção entre drogas lícitas e ilícitas, concentrando sobre estas últimas os medos e os
perigos anunciados, costuma conduzir à total despreocupação familiar e pedagógica com o eventual
abuso das primeiras. Por outro lado, a ideia de estar fazendo algo proibido, o apelo desafiador
daquilo que é ilegal e o lado aparentemente glamouroso da marginalização podem se tornar um
incentivo no que diz respeito às buscas, às descobertas e aos desejos que caracterizam a
adolescência, faixa etária em que as sensações provocadas pelas drogas costumam exercer especial
e natural atração e em que os controles internos são menos atuantes.
A proibição dificulta também a assistência e o tratamento eventualmente necessários, seja
ao impor “tratamentos” compulsórios, que, além de reconhecidamente ineficazes, violam direitos
fundamentais, seja por inibir sua busca voluntária, que pressupõe a revelação da prática de uma
conduta tida como ilícita. Muitas vezes, essa inibição tem trágicas consequências, como em

31
Veja-se, por exemplo, o relatório citado na nota 19.
episódios de overdose em que o medo daquela revelação paralisa os companheiros de quem a sofre,
impedindo a busca do socorro imediato.
A proibição ainda impõe obstáculos até mesmo ao livre emprego das arbitrariamente
selecionadas drogas tornadas ilícitas com fins terapêuticos, como, dentre tantos outros usos
reconhecidamente eficazes, no uso da maconha para aliviar dores, náuseas e perda de apetite em
pacientes com Aids ou sob tratamento quimioterápico.
Ainda com reflexos no campo da saúde, devem ser mencionados os danos ambientais
provocados pela repressão, seja diretamente com a erradicação manual de plantas proibidas e,
ainda pior, com as fumigações aéreas de herbicidas sobre áreas cultivadas, como ocorreu na região
andina, especialmente com o Plano Colômbia, seja indiretamente, na medida em que a erradicação
manual ou química não só provoca o desflorestamento das áreas atingidas, como as multiplica,
levando os produtores a desflorestar novas áreas para o cultivo, geralmente em ecossistemas ainda
mais frágeis. Além disso, como acontece na comercialização dos produtos proibidos, também no que
se refere à produção, a clandestinidade provocada pela proibição impede qualquer controle ou
regulação, o que naturalmente eleva os riscos e danos ambientais. Pense-se, por exemplo, no
despejo no solo ou em rios de resíduos tóxicos resultantes do processamento químico das plantas
colhidas. Agindo na ilegalidade, produtores das substâncias proibidas, além de terem de evitar maior
exposição à repressão, não estão submetidos a quaisquer restrições, despejando os resíduos tóxicos
nos lugares que lhes forem mais convenientes, sem qualquer atenção para com o ambiente.

4. A necessidade de legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas

Mudar esse quadro é necessário e urgente. O fim da insana e sanguinária “guerra às drogas”
e a substituição da proibição por um sistema de legalização e consequente regulação da produção,
do comércio e do consumo de todas as drogas são passos primordiais para conter a expansão do
poder punitivo; para afastar leis violadoras de direitos fundamentais; para eliminar a violência e a
corrupção provocadas pela proibição; para efetivamente proteger a saúde.
Legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas não significa
permissividade, como insinuam os enganosos discursos dos partidários da fracassada e danosa
proibição. Ao contrário. A legalização significa o fim do mercado clandestino e, assim, o começo de
um sistema de regulação daquelas atividades. Legalizar significa exatamente regular e controlar, o
que hoje não acontece, pois um mercado ilegal é necessariamente desregulado e descontrolado.
Legalizar significa devolver ao Estado o poder de regular, limitar, controlar, fiscalizar e taxar a
produção, o comércio e o consumo dessas substâncias, da mesma forma que o faz em relação às
drogas já lícitas, como o álcool e o tabaco32.
Não basta descriminalizar a posse para uso pessoal ou legalizar apenas uma ou outra
substância considerada mais “leve”, como a maconha. É preciso sim legalizar a produção, o comércio
e o consumo de todas as drogas. Quanto mais potente e mais perigosa uma droga, maiores razões
para que seja legalizada, pois não se pode controlar ou regular algo que é ilegal. É preciso que a
produção, o comércio e o consumo de todas as drogas venham para a luz do dia, para assim se
submeterem a controle e regulação.
Legalizar tampouco significa que haveria um aumento incontrolável do consumo, como
insinuam os enganosos discursos dos partidários da fracassada e danosa proibição. Pesquisa
realizada pelo Zogby, nos Estados Unidos da América, em dezembro de 2007, registrou 99% de
respostas negativas à indagação sobre se, uma vez legalizadas drogas como cocaína ou heroína, os
entrevistados passariam a consumi-las, assim se projetando um consumo de tais substâncias em
proporções semelhantes às já ocorrentes. Na Holanda, onde o consumo de derivados da cannabis é
acessível nos tolerados coffee-shops, o percentual de seus consumidores entre jovens é bastante
inferior ao registrado nos Estados Unidos da América33.
Vale notar que a única diminuição significativa no consumo de drogas, nos últimos anos, foi
de uma droga legalizada: o tabaco, cujo consumo, inclusive no Brasil, se reduziu pela metade.34 Esse
resultado foi obtido sem proibição, sem “guerras”, sem prisões. Ninguém foi morto ou preso por
produzir, vender ou usar tabaco. Ao contrário, foram instituídos muito mais eficientes programas
educativos e regulações (vedação de publicidade, restrições ao consumo em lugares públicos, maior
divulgação dos danos provocados pelo tabaco), além de todo um esforço de desconstrução do
glamour do cigarro.
Por outro lado, é preciso ter claro que a legalização não significa que todos os problemas
estarão solucionados. A legalização não é, nem pretende ser, uma panaceia para todos os males. A
necessária legalização apenas porá fim aos riscos e aos danos criados pela proibição, assim
removendo uma grande parcela de violência, o que já significa enorme conquista para o bem-estar
social e a segurança pública. Com efeito, não há como se ter “guerra às drogas” e segurança pública
ao mesmo tempo. Preocupações verdadeiras com a segurança pública também exigem o fim da
proibição. Eliminando a violência provocada pela “guerra às drogas”, a legalização também eliminará

32
Vejam-se sugestões para regulamentação do mercado das drogas em Transform Drug Policy Foundation
(2009).
33
O percentual de consumidores entre jovens de 15 a 24 anos na Holanda gira em torno de 12%, enquanto nos
Estados Unidos da América esse percentual é de cerca de 27% entre os jovens de 18 a 25 anos Fontes: European
Monitoring Center for Drugs and Drug Addiction (2005); National Survey on Drug Use and Health (2004-
2005).
34
Ministério da Saúde (2009).
a maior fonte de renda advinda de atividades ilícitas. Os rendimentos gerados nas atividades de
produção e comércio das drogas legalizadas se integrarão às finanças legais, como são integrados os
rendimentos obtidos com a produção e o comércio das drogas já lícitas. Impostos serão pagos e
recebidos pelos Estados, da mesma forma que são pagos e recebidos os impostos devidos pelos
produtores e comerciantes das drogas já lícitas. E os Estados ainda economizarão o dinheiro gasto
com a repressão e com suas consequências. Os recursos econômico-financeiros assim
redirecionados poderão ser investidos em programas e ações voltados para a promoção da saúde e
da educação, para a construção de moradias decentes, para a criação de postos de trabalho, para a
preparação profissional, enfim, programas e ações efetivamente úteis socialmente.
A realidade e a história demonstram que o mercado das drogas não desaparecerá. As
pessoas continuarão a usar substâncias psicoativas, como o fazem desde as origens da história da
humanidade. Com o fim da proibição, estarão mais protegidas, tendo maiores possibilidades de usar
tais substâncias de forma menos arriscada e mais saudável.
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The Washington Post: “In Mexico, 12,000 killed in drug violence in 2011” – 02/01/2012.
http://articles.washingtonpost.com/2012-01-02/world/35441712_1_drug-violence-drug-killings-
drug-gangs
ARTIGO

FACILITANDO UMA CONVERSA SOBRE ÁLCOOL E


OUTRAS DROGAS: UM CONVITE À REFLEXÃO

FACILITATING A CONVERSATION ON ALCOHOL AND OTHER DRUGS: A CALL


FOR REFLECTION

VIRGINIA LUCIA DE RESUMO: Relato da experiência com alunos ado- ABSTRACT: Description of an experience with
MOREIRA BARBOSA lescentes, com a promoção de diálogo em torno teenager students, involving conversations about
do tema álcool e outras drogas, visando ampliar the alcohol issue as well as other drugs, aiming
Psicóloga, grupoterapeuta,
o ponto de vista do jovem para além do binômio to enlarge the point of view of youngsters to a
terapeuta de família,
proibir/legalizar. Partindo do paradigma da com- dimension beyond the forbid/ legalize binomial.
especialista para atendimento
a usuários de álcool e outras plexidade, na trilha do construcionismo social, e Based on the complexity paradigm, on the trail
drogas (Ipub/UFRJ). apoiado na lógica de redução de danos, o artigo of social constructionism, and supported by the
pretende contribuir para a discussão a respeito harm reduction logics, the article intends to fur-
e-mail: virginiabarbosa2@ ther contribute to the discussion concerning pre-
gmail.com das ações de prevenção. Foi utilizada como mé-
vention actions. The method used here was that
todo a facilitação sistêmica de processos cole-
of systemic facilitation for collective processes, in
tivos, na criação de contexto colaborativo e no
the creation of a collaborative context and in the
acompanhamento do processo de construção do
following up of the process for construction of the
saber coletivo. Alunos e professores entraram em collective knowledge. Students and teachers have
Recebido em 05/11/2011. contato com os múltiplos aspectos que envolvem gotten into contact with the multiple aspects that
Aprovado em 10/12/2011. o assunto, exercitaram a reflexão e experimenta- involve the issue, exercised reflection and experi-
ram o sentimento de protagonismo na busca de mented the feeling of protagonism in the pursuit
soluções para o enfrentamento do problema. of solutions to face the problem.

PALAVRAS-CHAVE: Álcool e outras drogas, cons- KEYWORDS: Alcohol and other drugs, social
trucionismo social, redução de danos, prevenção, constructionism, harm reduction, prevention, sys-
facilitação sistêmica de processos coletivos. temic facilitation for collective processes..

Alterar a consciência usando algum tipo de substância é um costume muito


antigo na história da humanidade, mas se restringia a contextos de festas e cele-
brações, em ocasiões de cunho religioso ou pagão. O uso circunscrito favorecia
o consumo moderado já que ficava relacionado ao momento, reduzindo os pre-
juízos potenciais associados às substâncias. No cenário contemporâneo, o que se
observa é um perfil de consumo mais atrelado à busca de prazer imediato e de
bem-estar ilimitado, muito de acordo com o tipo de sociedade em que vivemos –
imediatista e consumista.
Ao conversar sobre drogas é preciso estar atento aos significados que estão
acompanhando o termo, principalmente àqueles que remetem a valores morais,
socialmente construídos, muitas vezes forjados para atender interesses assentados
no controle social (Bucher, 1994). Ora, de que tipo de droga está se falando? São
tantos os tipos: fazem bem e fazem mal; usadas e abusadas; para remédio e para
veneno; para fazer rir; para fazer dormir; para acordar; para curar; para muitas
outras finalidades. Por que algumas são permitidas e outras são proibidas? De que
forma a sociedade irá lidar com o problema droga no futuro?

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O assunto álcool e outras drogas é principal risco enfrentado (Schenker Facilitando uma conversa
sobre álcool e outras drogas: 29
complexo e não cabe ficar limitado aos & Minayo, 2005). Além disso, é im-
um convite à reflexão
efeitos no organismo e aos prejuízos portante não se esquecer de que a Virginia Lucia de Moreira Barbosa
associados, mantendo o foco da abor- droga per si, a substância, não carrega
dagem na substância. Pelo critério de em seu substrato os descaminhos tri-
danos à saúde, de que forma se justifi- lhados por alguns.
ca o uso consentido de álcool e a proi- O ditado popular diz que prevenir
bição de outras drogas? é melhor do que remediar, e a adoles-
E já que tocamos no tema da proibi- cência tem sido o principal alvo das
ção, é com ele que chegamos às políti- campanhas de prevenção objetivando
cas – nacionais e internacionais – para evitar ou impedir o uso de drogas. Ge-
enfrentamento do problema (Chagas, ralmente baseadas no medo (Moreira,
2010). Qual é a estratégia adotada por 2006), essas campanhas não têm se
cada país e de que maneira os gover- mostrado eficientes e acabam por ficar
nantes e a sociedade têm se posicio- desacreditadas por entre a maioria dos
nado? A proibição ao uso de algumas rapazes e moças, que convivem com
substâncias não tem conseguido im- situações e experiências diversificadas
pedir o consumo, inclusive entre os em que conhecem tanto o consumo
jovens cujo primeiro contato ou expe- abusivo quanto o controlado. A maio-
rimentação têm acontecido cada vez ria relativiza a questão do lícito ou ilí-
mais cedo (Brasiliano, 2006). cito e descarta o discurso moralista.
O jovem é um ator de peso no qual Trabalhar a prevenção no caso das
se encena a trama da droga. Mal che- drogas não é a mesma coisa do que fa-
gando à adolescência, com alguma au- zê-lo em relação a moléstias como den-
tonomia conquistada, pode deparar-se gue, diabetes e outras, cujo sentido é o
com desafios e cobranças que invo- de se evitar que algo aconteça. Em rela-
quem maturidade, responsabilidade e ção às drogas psicotrópicas é diferente
escolha: o início da vida sexual (Ribei- porque é o individuo que vai ao encon-
ro, 2011), a profissão, seu papel na so- tro do efeito, da sensação, do imediato.
ciedade, dentre outros (Brasil, 1999). Quando se considera que na sociedade
Experimenta sentimentos contraditó- atual é quase impossível evitar a expe-
rios a respeito disso tudo, principal- rimentação, sob o ponto de vista do
mente por ainda estar sob a tutela de cuidado, e para alcançar efetividade,
adultos, dependente financeira e emo- a estratégia deve ser direcionada para
cionalmente (Raupp & Sapiro, 2009). alcançar a prevenção ao uso prejudicial
Nesse momento, o uso de algum ou à dependência (Rosenbaum, 2002).
tipo de droga pode ser uma tentativa É uma meta diferente daquela em
para – ou a própria – solução aos im- que se busca a abstinência como so-
passes enfrentados no dia a dia como, lução, invocando a necessidade de se
por exemplo, as exigências para ser promover reflexão (Freire, 2001) na
aceito no grupo de iguais ou a en- questão do uso de drogas, incentivan-
trada no território social mais amplo do que as escolas trabalhem o assunto
– o mundo dos adultos –, com regras com foco em resiliência, autonomia e
e compromissos que precisam ser as- responsabilidade (Campos, 2005).
similados (Ferreira, Farias & Silvares, Como deve ser o trabalho de pre-
2010). É também uma época de vul- venção ao uso indevido e/ou abusivo
nerabilidade, sem dúvida, mas o con- de álcool e outras drogas que promova
tato com a droga não é o único nem o a reflexão e que desenvolva o protago-

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nismo dentre os jovens? Como alertar Como contraponto à difundida po-
30 NPS 42 | Abril 2012
para o risco e o perigo sem escorregar lítica proibicionista (Rosa, 2010) trago
para o paternalismo? Como contribuir para o debate a lógica da redução de da-
para uma conscientização que amplie nos (Brasil, 2001). Esta estratégia ofere-
o ponto de vista do jovem para além ce uma compreensão ampliada sobre
do binômio proibir/legalizar? o uso de álcool e outras drogas, já que
Este artigo traz o relato da experiên- não se baseia exclusivamente na absti-
cia desenvolvida com alunos do últi- nência, apresentando uma abordagem
mo ano do ensino fundamental, com menos fragmentada e reducionista.
idades entre 14 e 15 anos, em que a Essa articulação pretende contribuir
ideia principal foi promover o diálogo, para a discussão a respeito das ações de
uma conversação (Anderson, 2009) em prevenção, tanto no âmbito das políti-
torno do tema droga. cas públicas quanto em outros setores
Ao propor o formato que será des- da sociedade civil, lançando luz sobre
crito mais adiante, busquei superar o a forma como estas têm sido elabora-
modelo mais comum onde o assunto é das, marcadamente influenciadas pelo
abordado por especialista-que-detém- discurso da biologia e com o foco diri-
-conhecimento. Ao contrário, cheguei gido ao usuário em potencial.
mais com perguntas do que com res- Mencionei meu comprometimento
postas, querendo saber que tipo de com a visão de mundo que pressupõe
conhecimento eles tinham; o que eles a complexidade e com isso me referi
pensam sobre o assunto; como rela- ao paradigma sistêmico como o “novo
cionam sua experiência com a infor- paradigma da ciência”, entendido aqui
mação que chega a eles e de que forma como uma nova maneira de pensar so-
se veem em relação ao tema. bre nós mesmos, e um questionamen-
Mas não foi a curiosidade pura e to em relação à atitude científica tra-
simples que determinou as perguntas dicional. De certa maneira, podemos
(Freedeman & Combs, 1996). Com- dizer que são formas de pensar que
prometida com a visão de mundo que servem de base para as formas de fazer.
pressupõe a complexidade, quis dar A forma de pensar e de fazer do
visibilidade aos diferentes aspectos paradigma tradicional, ou da ciência
que compõem o cenário onde o uso de moderna*, fundamentada sobre as
drogas está inserido, e chamar a aten- ideias racionalistas de Descartes, com
ção para a inter-relação existente; quis critérios de objetividade, certeza e ver-
incentivar a reflexão acerca do papel de dade (Grandesso, 2000), pressupõe
cada um neste contexto, em diferentes uma realidade existente a priori, pas-
níveis de participação na sociedade. sível de ser conhecida, representada e
Quando falo de visão de mundo que controlada. “Assim, o discurso filosó-
pressupõe a complexidade, me refiro fico da modernidade ressalta o caráter
ao paradigma sistêmico tal como foi desvendador de um sujeito que des-
formulado por Vasconcellos (2005): cobre verdades universais, que podem
novo paradigma da ciência. Partindo ser expressas em leis gerais, atemporais
desse paradigma, e na trilha do cons- e descontextualizadas” (idem, p. 50).
trucionismo social (Gergen, 2010), a Em relação à questão das drogas, a
proposta para prevenção ao uso inde- abordagem predominante sugere que
vido de drogas que apresento se dá na estas têm sido as premissas que servem
promoção de contexto para conversa- de orientação na busca por solução,
* Tendo como referência a
Idade Moderna, século XVII. ção e conhecimento coconstruído. na medida em que a complexidade do

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tema é reduzida à dimensão da subs- “realização retórica” momentânea, isto é, Facilitando uma conversa
sobre álcool e outras drogas: 31
tância, sem considerar as caracterís- a construção de uma história possível de
um convite à reflexão
ticas quanto ao efeito e outros aspec- si, no diálogo com outros. Virginia Lucia de Moreira Barbosa
tos que as diferem entre si. Também
homogeneizam os tipos de usuários Ao enxergar o usuário de drogas
(Pires, Carrieri & Carrieri, 2008) igno- como vítima da substância, o discurso
rando aspectos como padrão de consu- majoritário dissemina a ideia de que é
mo e contexto de uso, acreditando na preciso “combater o inimigo”, e cons-
possibilidade de “uma-regra-geral-pa- trói uma política de enfrentamento
ra-as-drogas”. Como essa perspectiva que tem se mostrado ineficaz, geran-
influencia o modo de fazer das ações? do um círculo vicioso que alimenta
Morin (1996) ressalta que é a par- a sensação de impotência diante dos
tir da nossa construção de mundo que desafios trazidos pelo aumento do uso
enxergamos os fenômenos de uma de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas.
forma que eles se “encaixem” em nos- Sendo assim, quais são as condições
sos modelos, sendo nossas crenças as necessárias para se desconstruir sen-
lentes através das quais enxergamos e tidos de fragilização e propiciar a (re)
compreendemos o mundo. Em relação construção de sentidos mais promis-
às drogas psicotrópicas, existem hoje, sores acerca do uso de drogas?
basicamente, duas lentes pelas quais a Na perspectiva construcionista, a
questão é abordada: a lente proibicio- linguagem não reflete a realidade, mas a
nista e a lente da redução de danos. constrói a todo o momento, “através da
A primeira apoia-se em um discurso utilização de determinadas descrições e
de déficit (Gergen, 2010) que estigma- explicações (...) a partir das condições
tiza o usuário – adoecendo e/ou crimi- sócio-históricas concretas dos sistemas
nalizando, fazendo uso de vocabulário de significação” (Rasera & Japur, 2007,
que desqualifica o indivíduo como, p. 22). Essa forma de compreender os
“drogado”, “viciado”, “dependente quí- eventos que perpassam a existência
mico”; quando não usam outras como, humana traz a possibilidade de que a
“fraco”, “coitado”, “problemático”. Um partir de novas descrições acerca do
equívoco gestado na noção tradicional tema drogas se chegue a soluções ainda
de linguagem, compreendida como re- impensadas na construção de políticas
presentação de uma dada realidade ob- de enfrentamento. Burr (1995) ressalta
servável. Usados no dia a dia para falar que conhecimento e ação andam jun-
de um comportamento, recursivamen- tos, e que as diferentes formas de des-
te estes termos acabam por alcançar crever o mundo implicam – ou convi-
status de verdade e passam a designar dam diferentes formas de ação/prática
o próprio sujeito que, sem escapatória, social. Como escrevi aqui anteriormen-
assume a identidade que lhe é confe- te, são formas de pensar que influen-
rida. Como diz Guanaes (2006, p. 43): ciam as formas de fazer. E se queremos
que o futuro traga novas formas de nos
(...) ao se descreverem e serem descritas relacionarmos com as drogas, pensar
por outros de determinadas maneiras, as sobre como temos lidado com o assun-
pessoas emergem como sendo pessoas de to até agora, e sobre os resultados obti-
um determinado tipo, com um conjunto dos, pode ser o início de um de proces-
de características pessoais. Assim, o que so que provoque mudança.
normalmente entendemos como sendo o A segunda lente, menos conhecida
si mesmo ou self pode ser visto como uma pela sociedade, é a lógica da redução

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de danos, que busca diversificar as pectiva da redução de danos, a preven-
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formas para lidar com a questão do ção não visa à abstinência ou à ausên-
uso de drogas em nosso país (Brasil, cia de contato com a droga, pois parte
2004). Redução de danos – ou RD – é do princípio de que o jovem conscien-
um conjunto de ações que visam mi- te tem menores chances de se envolver
nimizar as consequências adversas do com drogas de forma prejudicial.
uso de drogas. Essa estratégia de saú- Inspirada na ideia de responsabi-
de pública começou na Inglaterra, em lidade e consciência crítica que essa
1926, quando médicos entenderam visão oferece, a experiência que relato
que prescrever opiáceos para os de- neste artigo buscou propiciar a refle-
pendentes dessa droga era uma forma xão e a construção conjunta de possi-
de tratamento: no manejo da síndro- bilidades, a partir da experiência dos
me de abstinência, nas situações em próprios participantes, estimulando
que o uso não pode ser descontinuado o protagonismo cidadão daqueles a
sem risco ao usuário e/ou quando este quem o futuro pertence.
não pretende deixar de usar a droga. A
partir dos anos 1980, as ações baseadas
nesse princípio foram sistematizadas MÉTODO
em forma de programas, primeiro na
Holanda, tendo como principal obje- Para atingir o objetivo mencionado
tivo evitar a disseminação de hepati- acima, utilizei como método a facilita-
tes entre usuários de drogas injetáveis ção sistêmica de processos coletivos, na
(UDI) (Souza, 2007). criação de contexto colaborativo para
Souza (2007) observa a transfor- trabalho e no acompanhamento do pro-
mação da redução de danos ao longo cesso de construção coletiva. Descreve-
de seu percurso histórico, desde um rei a ferramenta de diálogo denomina-
conjunto de ações localizadas, até ser da World Café, e como esta foi usada
o paradigma que sustenta as ações na concepção e execução do trabalho,
governamentais de enfrentamento do cujo objetivo é a prevenção ao uso in-
problema droga. Ao deslocar o foco da devido de álcool e outras drogas.
atenção, do objetivo da abstinência
para a atenção e o cuidado ao sujeito, a
redução de danos oferece perspectivas FACILITAÇÃO SISTÊMICA DE
que provocam reflexão na forma de PROCESSOS COLETIVOS
compreender o uso de drogas.
Em relação à prevenção essa abor- Inicialmente, o termo facilitação foi
dagem tem a atenção voltada para o utilizado para um conjunto de práti-
uso abusivo e/ou prejudicial, seguindo cas voltadas para o manejo de grupos,
modelos de atenção que ampliam o através de procedimentos que visavam
modelo biomédico. Segundo Müller, à solução das dificuldades no trabalho
Paul e Santos (2008), foi a partir da dé- compartilhado, cabendo ao facilitador
cada de 1970 que a UNESCO* “passou ajudar o grupo a alcançar um objetivo
a enfatizar a abordagem preventiva ao comum; estimulando a discussão e a
abuso de drogas, tendo a escola como participação dos integrantes, sem ex-
o espaço principal para esse processo, pressar opiniões ou influir na tomada
* UNESCO – Organização pois parte significativa da população de decisões. Estas técnicas, desenvolvi-
das Nações Unidas para a passa por esta instituição”. (Müller, das a partir de um olhar para o funcio-
Educação, a Ciência e a Cultura
– na sigla em inglês. Paul, &  Santos, 2008, p. 3). Na pers- namento dos grupos e para o conteúdo,

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orientadas pelo racionalismo da ciên- Para o trabalho relatado, usei uma Facilitando uma conversa
sobre álcool e outras drogas: 33
cia moderna, foram sendo utilizadas ferramenta de diálogo (Bojer, 2010)
um convite à reflexão
em situações bastante diversas, como denominada World Café, metodologia Virginia Lucia de Moreira Barbosa
negociação e intermediação, gestão de que propicia que grupos, com desde
conflitos, tomadas de decisões e outras. dezenas até milhares de pessoas pos-
Isso fez com que a facilitação se tornas- sam estar juntas, envolvidas em conver-
se objeto de atenção e de reflexão sobre sações sobre questões que importam.
o fazer, com os facilitadores aprenden-
do a partir da própria prática.
Com o passar do tempo, as mudan- FERRAMENTA DE DIÁLOGO WORLD
ças na sociedade e nas organizações, e CAFÉ
a crescente necessidade de práticas que
estimulassem relações colaborativas e Partindo da suposição de que as
participativas geraram modificações pessoas têm o conhecimento e a sa-
e a facilitação adquiriu um perfil de bedoria para lidar com seus impasses,
acompanhamento para processos co- “o ‘world café’ é uma forma de, inten-
letivos, tornando-se um modelo e, se- cionalmente, criar uma rede viva de
gundo Fuks e Rosas (2009, p.26), “se conversas em torno de questões que
diferenciou rapidamente das formas importam”. (Bojer, 2010, p.130). A me-
tradicionais de trabalho grupal ou das todologia permite que se trabalhe com
abordagens institucionais, graças a grupos desde poucas até centenas de
sua comprometida orientação mais ao pessoas, pensando juntas e envolvidas
‘processo’ do que ao ‘conteúdo’”*. pela inspiração de uma sabedoria cole-
Para Hunter (1995), o facilitador tiva que é coconstruída, e que emerge
é um “guia de processo”, alguém que na tessitura de ideias e reflexões, e no
deve estar atento, que não interfere na compartilhamento de significados.
decisão do grupo, mas que não é nem Os criadores da técnica (Brown &
pode ser uma figura neutra. Ele cola- Isaacs, 2007) estimulam a criatividade
bora para a conversação e acompanha de quem a utiliza, pois o formato é bas-
o movimento do grupo, propiciando tante flexível e pode ser usado em situa-
o processo através de perguntas ou ções diversas, considerando o número
sugestões. de participantes, o contexto, o local e a
Fuks e Rosas (2009) e Bojer (2010) finalidade. Dessa forma, cabe ressaltar
concordam que a principal ferramenta que a maneira como a ferramenta foi
de que dispõe o FSPC (a sigla pode ser usada apresenta a solução encontrada
usada tanto para a facilitação quanto por mim para sua utilização.
para o facilitador) é a si mesmo. “A Na organização do processo, de-
habilidade de se conectar com clareza ve-se estar atento a sete princípios
e de maneira firme às intenções e aos (Brown & Isaacs, 2007) que ajudarão
princípios de um encontro ou proces- a potencializar o resultado das conver-
so está diretamente relacionada à quão sações: a) consciência do propósito – o
integralmente presente o facilitador motivo pelo qual as pessoas serão reu-
é capaz de estar. (Bojer, 2010, p.26).” nidas; b) criação de um espaço recep-
Além de si mesmo, o facilitador con- tivo e hospitaleiro – como o convite e
ta ainda com organizadores, algumas o espaço físico podem contribuir para
dinâmicas e exercícios que também uma atmosfera acolhedora; c) encon-
servem como ferramentas no decorrer tre perguntas relevantes para o grupo
do processo. – pode haver apenas uma ou diversas * Tradução da autora.

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questões a serem exploradas; d) esti- pequenos grupos, chega o momento
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mule a contribuição de todos – enco- de compartilhar no grupo grande, com
raje que todos contribuam com ideias todos os participantes, as ideias e a sa-
e perspectivas, mas permita que qual- bedoria que emergiram do encontro.
quer um possa participar apenas ou- É recomendado que seja construído
vindo, se este for seu estilo; e) conecte um painel gráfico, ou qualquer outro
perspectivas diversificadas – os parti- recurso onde todos possam visualizar
cipantes passeiam entre as mesas de a produção do encontro.
conversa e compartilham perspectivas
enriquecendo a possibilidade de novos
insights; f) escute os insights – o dom FACILITANDO UMA CONVERSA SOBRE
de escutar uns aos outros, a qualida- ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: A
de da escuta, talvez seja o fator mais PRÁTICA
importante para determinar o sucesso
de um “world café”; g) compartilhe as Os participantes foram alunos com
descobertas coletivas – a última fase do idades entre 14 e 15 anos, cursando o
world café, muitas vezes chamada de nono ano do ensino fundamental em
colheita, envolve a todos em uma gran- um colégio católico. Alguns profes-
de conversação a respeito das ideias sores das matérias regulares também
que apareceram. É importante poder participaram. Respeitados os proce-
capturar as ideias e talvez confeccionar dimentos éticos necessários, houve
um painel gráfico com os registros. cuidado com o anonimato dos parti-
A metodologia é inspirada nos cipantes e dos dados obtidos.
encontros criativos que geralmente O trabalho realizado teve início
acontecem em torno de uma mesa, a partir do pedido do colégio para
onde os participantes estão descon- uma palestra sobre o tema álcool. No
traídos e sentem-se estimulados a encontro com o coordenador res-
experimentar novas ideias e ações. ponsável, argumentei que as palestras
O ambiente deve ser organizado em tradicionais costumam surtir pouco
subgrupos, com os participantes de ou quase nenhum efeito no sentido
preferência em torno de uma mesa, da prevenção ao uso e/ou abuso de
com papel, lápis e/ou canetas colori- substâncias. Justifiquei o argumento
das. Acontecem duas ou três rodadas expondo a visão tradicional a respeito
de conversa, com aproximadamente das drogas, os resultados obtidos, e so-
vinte minutos, motivadas por pergun- bre a abordagem de redução de danos.
tas ou questões a respeito do assunto O diálogo estendeu-se à construção
que as reuniu. Devem-se evitar aque- da identidade na fase da adolescência
las questões que possam ser resumidas e a respeito de como nossa socieda-
com respostas do tipo “sim ou não”. de incentiva o consumo (inclusive de
No final de cada rodada de conver- substâncias). Dessa conversa surgiu a
sa, um dos participantes – chamado ideia de oferecer aos alunos um espa-
anfitrião, continua à mesa enquanto os ço de reflexão acerca da complexidade
outros procuram outro grupo ou ou- que o assunto “álcool e outras drogas”
tra pergunta/questão para a próxima abrange, ampliando a discussão para
rodada. Ao anfitrião cabe recepcionar os aspectos além do biologismo e do
o novo grupo e transmitir-lhes quais discurso jurídico/moral.
as ideias surgidas ali e incentivar novas As premissas (incentivadas pelo mé-
discussões. Depois das rodadas com os todo) da criatividade, flexibilidade e

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inovação permitiram o planejamento políticas de enfrentamento adotadas Facilitando uma conversa
sobre álcool e outras drogas: 35
do trabalho para ser executado em duas – proibicionismo e redução de danos
um convite à reflexão
etapas, sempre dentro do tempo de aula –, a necessária diferenciação entre as Virginia Lucia de Moreira Barbosa
que é de 45 minutos: a primeira etapa, ações para repressão, para tratamento
a de construção do contexto, consistiu e para prevenção; e outros. Esta é a di-
em estar com os alunos de cada turma mensão da complexidade.
separadamente, acompanhada de um Com o formato do trabalho enten-
professor, para explicar-lhes o forma- dido e com as informações da carti-
to e o objetivo do trabalho: haveria um lha em mãos, naturalmente começa-
encontro seguinte, onde a turma estaria ram as perguntas que geram debate.
dividida em subgrupos para conversar Considerando que a sensibilização foi
sobre uso de drogas. O debate aconte- atingida, este seria o momento para
ceria a partir de questões propostas por ampliar a discussão, o que acontecerá
mim, com a intenção de provocar refle- na etapa seguinte.
xão acerca do tema. Nessa etapa tam- Na segunda etapa do processo, cada
bém foi distribuído material impresso, turma de uma vez e no tempo de aula,
semelhante a uma cartilha e elaborado os alunos chegaram à sala arrumada
por mim, onde organizei informações em subgrupos, tendo mesas e cadeiras
gerais que foram subdivididas em qua- arranjadas de modo que cada parti-
tro eixos: “sobre drogas”, “sobre uso de cipante tivesse contato visual com os
drogas”, “sobre a adolescência” e “sobre outros. O tamanho do grupo deve ser
tudo isso e mais um pouco”. o suficiente para tanto enriquecer o
No primeiro eixo, “sobre drogas”, debate, quanto possibilitar que todos
foi abordado o aspecto químico pro- participem – nesse caso foram em
priamente dito, a classificação quanto média seis alunos por grupo. Em cada
à ação no sistema nervoso, e a dife- conjunto deste havia uma folha de pa-
rença entre dependência física e psí- pel com a questão a ser debatida.
quica, por exemplo. No eixo seguinte, As questões (também podem ser
“sobre o uso de drogas”, é incluída a notícias de jornal, textos, quadrinhos)
subjetividade, o usuário, não como apresentadas foram formuladas de
vítima ou algoz, mas como sendo a maneira a disparar a conversa, com
dimensão do imponderável e também ênfase na reflexão, evitando o forma-
o lugar da relativização quanto aos to que pode ser respondido com “sim”
prejuízos e o que se fazer com eles. ou “não”. Apenas a título de exempli-
“Sobre a adolescência” aproxima a ficação, posto que não haja modelo
discussão para o contexto vivido por para tal, cito dois exemplos de questão
eles, servindo a uma conexão com o apresentada: a) “O consumo de drogas
que é familiar ao jovem – o momento pela humanidade é muito antigo e o de-
que estão vivenciando, com os desa- sejo de alterar a consciência é universal.
fios e impasses inerentes. Gostando ou não, concordando ou não,
E por fim, “sobre tudo isso e mais não há mundo sem drogas. A partir des-
um pouco” traz a multiplicidade de sas afirmações, qual deveria ser o modo
aspectos e a inter-relação existente en- como vamos nos relacionar no futuro
tre eles, como por exemplo, o debate com as drogas?”; b) “Proibir o uso de al-
internacional sobre descriminalização gumas substâncias não tem conseguido
da maconha, a economia que gira em impedir que as pessoas façam uso delas.
torno do comércio legal e ilegal, o im- Além disso, o estigma que acompanha o
pacto sobre a economia dos países, as usuário dificulta que ele procure ajuda.

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Em sua opinião, que tipo de mudança momento da colheita de ideias, quan-
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seria necessária para que o objetivo es- do os anfitriões se reuniram e compar-
teja mais no controle de consumo do que tilharam as conversas de seus grupos
na proibição?” numa roda com todos os participan-
Os participantes foram orientados tes juntos. Aqui foi necessário, ainda,
sobre o objetivo da conversação pro- considerar o tempo de deslocamento
posta, que privilegia a diversidade de dos alunos de uma sala para outra, e a
opiniões ao invés da busca por con- chegada da turma seguinte.
senso. A ideia era que, a partir de um Eu circulava entre os grupos ouvin-
assunto que interessa a todos, eles pu- do a discussão, os debates acalorados,
dessem exercitar a escuta e a reflexão, às vezes tirando alguma dúvida; outras
tendo em mente que o método e a vezes estimulando a reflexão e a escuta
proposta do trabalho têm sua ênfase respeitosa àquele que pensa de forma
no processo de construção de diálogo diferente, colaborando para o foco não
e não no conteúdo. Durante a conver- se distanciar do debate proposto.
sação, cada anfitrião anotou as princi- Tive a engajada colaboração do pro-
pais ideias, para transmiti-las a quem fessor, que funcionou como cofacilita-
chegasse ao grupo na(s) próxima(s) dor, contribuindo com sua presença
rodada(s). O critério para escolha do para a disciplina e a organização dos
anfitrião não é predeterminado pelo alunos (e do tempo), e na elaboração
método “world café”. Contei com o au- do painel gráfico final com as ideias
xílio do professor regular, que escolheu compartilhadas pelos anfitriões. Ao fi-
antecipadamente em cada turma os nal as anotações dos anfitriões foram
alunos com habilidade para sintetizar e recolhidas, assim como os dois pai-
transmitir ideias. Isso agilizou a organi- néis – com os desenhos e com as ideias
zação dos subgrupos e poupou tempo. transcritas, e a sala preparada para a
É importante proporcionar formas próxima turma.
alternativas à oral como forma de ex-
pressão, potencializando a participação
de todos os alunos, e explorando a an- RESULTADOS
cestral vocação humana para usar de-
senhos e/ou grafismo ao expor ideias, Os alunos chegavam à sala demons-
contar história. Foi fixada sobre o qua- trando curiosidade e engajamento.
dro negro uma grande folha de papel Lembravam-se das orientações e fo-
em branco e foram oferecidos alguns ram logo tomando assento, os anfi-
pilots coloridos, onde o aluno interessa- triões assumindo seus lugares, física
do, a qualquer momento do processo, e simbolicamente. Houve quem fosse
podia desenhar ou escrever frases de ao painel para fazer grafismo, e quem
efeito, slogans e letras de músicas, desde participasse só ouvindo, porém atento,
que remetessem ao tema em debate. mas todos participaram.
O tempo de duração de cada rodada Por meio das questões propostas
sofreu uma adaptação para que pudes- os alunos entraram em contato com
se se acomodar à rotina de aulas do co- os múltiplos aspectos que envolvem o
légio. Portanto, ao invés dos habituais assunto, com mais atenção ao uso, ao
vinte minutos sugeridos pela metodo- invés da polarização entre o “é proi-
logia, fizemos cada rodada com dez bido proibir” e o “diga não às drogas”.
minutos (duas vezes). E foi reservado Esse fato atendeu à intenção do traba-
o tempo final de 10/15 minutos para o lho, ampliando o ponto de vista para

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além do biologismo, gerando novos com vocabulário e comportamento Facilitando uma conversa
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significados a respeito de ideias esta- aversivo, mas foi interessante ouvir
um convite à reflexão
belecidas. Digna de nota foi a maneira alguns termos sendo assimilados por Virginia Lucia de Moreira Barbosa
como os jovens estiveram dispostos eles, tais como “usuário”, “cuidado”,
à conversação, expressando opiniões “risco”, que trazem em seu bojo uma
e trazendo à tona o conhecimento compreensão ampliada acerca do
adquirido na sua experiência diária. tema. Ao assistir um rapaz explican-
Parece-me que o debate propiciou do a outro sobre o estigma que há nas
que essa experiência encontrasse eco palavras “viciado” e “drogado” e como
em uma perspectiva que se aproxima isso dificulta que a pessoa procure
mais da vivência cotidiana do jovem. ajuda, vislumbrei a possibilidade de
Chamou atenção a maneira próxima e mudança na abordagem atual, apon-
desassombrada como eles chegavam a tando na direção de novos significados
mim, fazendo perguntas e afirmações (Grandesso, 2000) para o entendimen-
provocativas, sem demonstrar cons- to do fenômeno do uso prejudicial.
trangimento. Entendo essa interação Um aspecto relevante foi a parti-
como sendo reflexo do enfoque que cipação e o interesse dos professores
a proposta apresenta, que privilegia que acompanharam o processo e que
o protagonismo dos participantes, se engajaram ativamente no trabalho.
dando voz e expressão à sua sabedo- De todos ouvi comentários sobre a
ria (Bojer, 2010), contribuindo para a originalidade da metodologia e do
discussão do modelo baseado no saber conteúdo oferecido, dizendo-se esti-
especialista (Vasconcellos, 2005). mulados a abordar o tema em sala de
Ficou claro que não há unanimida- aula sob o prisma da disciplina corres-
de entre eles quanto a proibir/legali- pondente – redação, matemática, geo-
zar o uso de alguma(s) substância(s), grafia, ciências e que tais. Por meio das
e foi importante que essa informação discussões, os alunos – e também os
tenha emergido, dando oportunidade professores – puderam experimentar
a uma reflexão sobre a necessidade de sentimento de protagonismo na bus-
integração das diferentes vozes repre- ca de soluções para o enfrentamento
sentativas da sociedade na discussão, do problema, exercitando a escuta
superando posições do tipo “ou isso atenta e respeitosa, princípio inerente
ou aquilo” (Gergen, 2010). Expres- ao contexto de trabalho colaborativo
saram confusão e desinformação a (Fuks & Rosas, 2009), gerador de so-
respeito de determinados conceitos luções compartilhadas.
como, “proibir/liberar” ou “legalizar/ Ao final dos encontros, à saída de
descriminalizar”, mostrando a neces- cada turma, os alunos vinham se des-
sidade de informação que diferencie pedir e falavam sobre o interesse des-
e esclareça as nuances existentes. Para pertado para o assunto, demonstran-
eles, como para a sociedade em geral, a do satisfação, e muitos manifestaram
principal forma de tratamento é a in- o desejo de outros encontros, “...com
ternação e o usuário é visto através do mais tempo pra conversar”.
véu do estigma que isola, manifestan- Esses são resultados observados in
do em relação às drogas o comporta- loco, durante a atividade e logo a se-
mento análogo ao dispensado à loucu- guir. Acredito que o tempo, trazendo a
ra no século passado (Delgado, 2003). possibilidade de outros e/ou novos en-
Muitos reproduzem o discurso he- contros, poderá proporcionar aspec-
gemônico do tipo “diga não às drogas”, tos ainda não observados, como por

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exemplo, acerca de se houve mudança dor de ensino fundamental do colégio,
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no ponto de vista que o participante interlocutor atento e coconstrutor da
tinha antes do trabalho. atividade, o desenho do trabalho se tor-
nou um instigante desafio à medida que
eram discutidos os limites e possibilida-
COMENTÁRIOS des para organizar os cerca de 180 alu-
nos, divididos em seis turmas, em um
No mundo todo existem encontros ambiente que propiciasse a conversação.
em torno da droga: seja para consu- A participação dos professores foi
mir, seja para comercializar, seja para um aspecto não previsto no desenho
pensar em como vamos nos relacionar original, mas que revelou a possibili-
com elas daqui para frente. dade de ampliar a proposta de trabalho
A proposta do trabalho em pre- realizada com os alunos, estendendo-
venção que apresentei está baseada na -a aos professores, funcionários e aos
ideia de que o jovem que desenvolve a pais. Imagino o dia em que poderemos
consciência crítica, não apenas em re- ter, em cada grupo ou mesa de discus-
lação ao uso de drogas, terá mais chan- são, a mescla desses atores e usufruir
ce de não se envolver em situações de a experiência de ver emergir a coope-
risco, reforçando recursivamente a ração. Que ideias poderão surgir em
participação cidadã. Para tal, parece direção à solução, com a participação
ser necessário propiciar acesso à infor- conjunta desses atores, com idades, vi-
mação mais ampla e que considere os vências e prioridades distintas?
múltiplos aspectos relacionados e esti- E não vamos esquecer o contexto.
mular à reflexão. Acredito que o cami- A experiência foi desenvolvida em (e
nho que leva à superação dos impasses para) um colégio católico, na zona sul
em relação ao uso de drogas passa pela da cidade do Rio de Janeiro/BR; os
forma como entendemos a questão alunos são moradores das redondezas,
(Morin, 1996). a maioria de classe média e com aces-
A adolescência costuma ser com- so a informações. O fato de esta ex-
preendida como um período crítico periência ter acontecido no ambiente
da vida, temido como uma fase de escolar e com o referido público, não
riscos em potencial para o indivíduo. invalida que o trabalho seja desenvol-
Entretanto, como apontam Ferreira, vido em outros contextos. Também o
Farias e Silvares (2010), “a questão da engajamento espontâneo dos profes-
universalidade ou não da adolescên- sores mostrou que os jovens não são os
cia é um tema importante e alguns únicos que podem se beneficiar com o
historiadores interessados nesse pro- fruto de uma reflexão acerca do tema.
blema defendem que a adolescência A postura de acompanhamento de
é uma construção social” (sem pa- processo, preconizada pelo método da
ginação). Ressaltam que essa etapa facilitação sistêmica de processos cole-
não precisa ser, necessariamente, um tivos, incentiva o aparecimento das di-
período turbulento. versas vozes que compõem o território
Nesse sentido, o colégio teve papel social. Em diferentes níveis de partici-
importante ao acolher a ideia e a pro- pação, toda a sociedade deve ser envol-
posta, investindo numa forma não con- vida na discussão do tema das drogas.
vencional de abordagem e dando cré- O método e as ferramentas (e o world
dito ao protagonismo do aluno. Com café é apenas uma delas) utilizados fo-
a colaboração engajada do coordena- ram os meios para se promover o en-

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gajamento e a cooperação na busca de às diferentes abordagens e propiciar a Facilitando uma conversa
sobre álcool e outras drogas: 39
soluções compartilhadas. conversação como caminho a novas
um convite à reflexão
Em cada encontro foi produzido um descrições podem desencadear novas Virginia Lucia de Moreira Barbosa
rico material, proveniente das anota- realidades e novas ações.
ções dos anfitriões, das folhas com os
grafismos dos alunos, e das anotações
feitas pelo professor no mural no mo- CONCLUSÃO
mento em que há a discussão entre os
anfitriões no final de todas as rodadas. Este artigo, assim como a experiên-
Esse material pode ser utilizado em sala cia relatada, procura apresentar uma
de aula para alimentar novas conversas, visão ampliada para a questão do uso
talvez relacionadas à matéria curricular de drogas, aliada a uma metodologia
como mencionou mais de um professor. que visa à promoção de diálogo e à
O trabalho revela o quanto há para reflexão. Sem intenção de compilar
ser feito e discutido, e quanto o jovem dados, já que o foco está no proces-
está disposto a participar. Torna-se im- so e não no conteúdo, considero im-
portante proporcionar o debate amplo, portante ter atenção aos aspectos que
de modo que as diferentes instâncias emergiram durante a conversação, e
representativas da sociedade possam que falam a respeito dos atores, do ce-
ser ouvidas e que nesse contexto o jo- nário, e da trama que sustenta a cena
vem, principal alvo das campanhas de no consumo de álcool e outras drogas.
prevenção, tome seu assento. Certamente muito ainda poderá ser
Reflexões sobre a prática são infin- acrescentado para colaborar com o
dáveis. No momento em que escrevo debate. O caráter inovador da propos-
já estive com os mesmos alunos mais ta, com o potencial de ajustes a serem
uma vez, porém agora eles já estão no feitos, suscitará, acredito, aprofunda-
primeiro ano do ensino médio, alguns mentos possivelmente ausentes aqui.
poucos não participaram do trabalho Espero que a incompletude estimule
anterior. A dinâmica foi a mesma, as o diálogo, alimentando outras e mais
questões propostas foram apresenta- conversações. Esse relato é uma contri-
das por meio de recortes de jornal que buição à discussão a respeito das ações
traziam opiniões bem diversas, de- de prevenção, lançando luz sobre a for-
senvolvidas por articulistas ou profis- ma como estas têm sido elaboradas e
sionais reconhecidos. Foi gratificante oferecendo uma proposta alternativa.
vê-los debatendo a partir de uma pers-
pectiva mais ampliada, mesmo cons-
ciente de que é um trabalho de médio REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
a longo prazo a desconstrução de con-
ceitos ainda arraigados que mantém o ANDERSON, H. (2009). Conversação,
foco na substância. Isso sugere a pos- linguagem e possibilidades: um en-
sibilidade de desenvolver um progra- foque pós-moderno da terapia. São
ma permanente sobre o tema para o Paulo: Roca (obra original publica-
colégio, ao invés de uma intervenção da em 1997).
anual, pontual e descontinuada. BOJER, M., ROEHL, H., KNUTH, M.,
Reconhecer que a forma como des- MAGNER, C. (2010). Mapeando diá-
crevemos os fenômenos criam reali- logos: ferramentas essenciais para a
dades e influenciam as ações (Burr, mudança social. Rio de Janeiro: Ins-
1995), gerar uma postura crítica frente tituto Noos.

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FRONTEIRAS

“CAMINHANDO LADO A LADO”: PRÁTICAS


COLABORATIVAS NOS TRATAMENTOS DE SAÚDE
MENTAL E USO DE SUBSTÂNCIAS*

OTTAR NESS RESUMO ABSTRACT


Apesar da importância das práticas colaborativas Although the importance of collaboration is
MARIT BORG na pesquisa e na teoria estar bem consolidada well established as a principle in research and
entre os profissionais da saúde mental, pouca in theory, what it actually means for practitio-
RANDI SEMB atenção tem sido dada ao que significa realmente ners to collaborate in practice, to be partners in
entrar e se engajar numa relação colaborativa. O a collaborative relationship, has thus far been
objetivo deste estudo foi identificar os principais given less attention. The aim of this study was
BENGT KARLSSON elementos e maneiras pelas quais os profissionais to identify key characteristics of the ways in
da saúde mental podem colaborar, na prática, com which mental health practitioners collaborate
Buskerud e Vestfold os usuários do serviço e suas famílias. Foi feito with service users and their families in practi-
University College, Noruega um estudo qualitativo, na modalidade pesquisa- ce. This was a qualitative action research study,
-ação, utilizando a abordagem da investigação with a cooperative inquiry approach that used
cooperativa incluindo discussões em grupo focal multi-staged focus group discussions with ten
multietapas com terapeutas, médicos, assistentes mental health care and social work practitioners
sociais e demais profissionais da área, especia- in community mental health and substance use
lizados em atenção e cuidado em saúde mental care. Thematic analysis was applied to identify
e uso problemático de substâncias. Utilizamos common characteristics. We identified three ma-
análise de conteúdo temática com o propósito de jor themes related to practitioners’ experiences
identificar características comuns.A partir da aná- of collaborative practices: (1) walking alongside
lise de conteúdo identificamos três grandes temas through negotiated dialogues, (2) maintaining
relacionados às experiências dos profissionais de human relationships, and (3) maneuvering rela-
práticas colaborativas: (a) caminhar lado a lado tionships and services. It appears that even with
através de diálogos negociados, (b) manter rela- the rich knowledgebase that has developed on
cionamentos humanos e (c) manejar relações e the merits of collaborative relationships, it con-
serviços. Concluímos que mesmo com a sólida tinues to be challenging for practitioners to reo-
e rica base de conhecimento que se desenvolveu rient their practice accordingly. The findings of
a partir das relações e práticas colaborativas, é this study indicate that the practitioners focus on
ainda um desafio para os profissionais reorientar a two types of processes as characterizing colla-
sua prática adequadamente. Nossas descobertas borative practice: one focusing on conversations
parecem indicar que os profissionais se concen- among practitioners and service users and their
tram em dois tipos de processos que caracterizam families and the other focusing on management
a prática colaborativa: um que foca nas conversas and control among health care providers, servi-
entre os profissionais e usuários dos serviços e ce sectors, and service users (i.e., inter/intra-
suas famílias e outro com foco na gestão e con- -system collaboration).
trole entre os prestadores de serviços de saúde,
* Este artigo foi originalmente setores de serviços e usuários de serviços (ou KEYWORDS: community mental health care,
publicado pelo International
seja, uma colaboração inter/intra). collaborative practices, co-occurring mental
Journal of Mental Health
health and substance use problems, recovery,
Systems (Ness et al., 2014,
PALAVRAS-CHAVE: saúde mental comunitária, shared decision-making, action research, coo-
8:55) e pode ser acessado em:
www.ijmhs.com/content/8/1/55. práticas colaborativas, comorbidades de pro- perative inquiry.
Tradução do inglês por Cristiane blemas de saúde mental e uso de substâncias,
Pessuti. Revisão técnica por superação, tomada de decisão compartilhada,
Leonora Corsini. pesquisa-ação, investigação cooperativa.
FUNDAMENTOS oferecer consistência na prestação do “Caminhando lado a lado”:
tratamento; ter competências rela- práticas colaborativas nos 7
tratamentos de saúde mental

A forma de engajamento – a maneira cionais; sair do lugar de “especialista” e uso de substâncias


Ottar Ness
como desenvolvemos um relaciona- (role blurring); e tomar decisões de
Marit Borg
mento com outra pessoa – influencia forma negociada (Laitila, Nikkonen, Randi Semb

o tipo e a qualidade das conversas & Pietilä, 2011; Strong, 2000, Strong, Bengt Karlsson

que podemos ter uns com os outros Sutherland, & Ness, 2011). Todos esses
e, da mesma forma, as conversas que conceitos complexos estão presentes
começamos a ter um com o outro nas “ideologias” dos profissionais e
irão influenciar o tipo e a qualidade em suas aspirações individuais, e en-
dos nossos relacionamentos. frentar essas complexidades pode ser
fundamental para determinar boas
Harlene Anderson práticas colaborativas e conversas dia-
lógicas (Anderson, 2012; Strong, Su-
No contexto atual dos tratamentos therland, & Ness, 2011).
em saúde mental os profissionais bus- Existe uma vasta literatura indi-
cam relações colaborativas e práticas cando que a base fundamental para
que incluam no processo a participa- as práticas colaborativas e conversas
ção ativa dos usuários dos serviços e dialógicas nos tratamentos em saúde
suas famílias (Beresford & Carr, 2012; mental é o relacionamento entre os
Karlsson & Borg, 2013). No centro usuários do serviços e os profissio-
dessas relações colaborativas estão a nais (Bordin, 1979; Sweeney, Fahmy,
competência e a capacidade das pesso- Nolan, Morant, Fox et al. 2014). Esta
as em ouvir, levar a sério um ao outro noção de colaboração tem sido descri-
e respeitar as diversas perspectivas, ta como o “cliente e o terapeuta for-
tanto no que diz respeito às relações mando uma parceria contra o inimigo
quanto à própria parceria em que essas comum, a dor do cliente” (Horvath &
pessoas se engajam (Anderson, 2012; Greenberg, 1994). Assim, o conceito
London, St. George, & Wulff, 2009; de colaboração carrega também um
Strong, Sutherland, & Ness, 2011). sentido de confiança, flexibilidade,
Para que a colaboração seja bem suce- trabalho em equipe, parceria, coope-
dida no tratamento em saúde mental é ração e trabalho conjunto visando ob-
preciso ainda haver um fluxo livre de jetivos compartilhados (Borg, Karls-
informação e compartilhamento dos son, & Stenhammer, 2013; Davidson,
feedbacks recebidos entre todos para Andres-Hyman, Bedregal, Tondora,
que tais informações se alinhem com Frey, & Kirk, 2008). A combinação
as mudanças de rumo que muitas ve- deste tipo de relação colaborativa com
zes acontecem (Sundet, 2011). a ideia de superação passa por um re-
Na literatura voltada para pesquisas posicionamento do profissional, que
sobre serviços e práticas que colocam se torna um expert em ajudar pessoas
a pessoa no centro da tomada de deci- a encontrar suas próprias formas de
são, existem várias premissas ou prin- administrar seus problemas e batalhas
cípios fundamentais. Tais princípios pessoais (Borg, Karlsson, & Stenham-
incluem poder trabalhar com crenças, mer, 2013; Borg & Kristiansen, 2004).
valores e prioridades às vezes antagô- A superação tem a ver com o empe-
nicos; administrar as relações de po- nho e o trabalho da própria pessoa no
der e o equilíbrio de poder; estabele- sentido de tocar sua vida e viver em
cer estratégias para engajar as pessoas; comunidade, apesar dos desafios que

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tem que enfrentar (como transtornos lorizam profissionais que transmitem
8 NPS 61 | Agosto 2018
de saúde mental e uso problemático esperança, compartilham poder, que
de substâncias), com e sem ajuda de estão disponíveis quando necessário,
profissionais (Borg, Karlsson, & Ste- que estão abertos para a diversidade
nhammer, 2013). No que concerne quando isso é útil, e que estão dis-
aos profissionais da área, as práticas postos a ampliar os limites do que é
orientadas para a superação têm a ver considerado o papel do “profissional”
com o que eles podem oferecer e fa- nesses serviços (Borg & Kristiansen,
zer para ajudar as pessoas em seu pro- 2004). Profissionais orientados para a
cesso de superação. Este suporte pode superação são aqueles que têm a co-
se dar tanto em nível pessoal (ou seja, ragem de abordar as complexidades e
através de relacionamentos estáveis) a individualidade das pessoas em seu
como em nível do sistema (defesa de processo de mudança, bem como de
direitos humanos, luta contra o estig- usar suas habilidades e experiência
ma) (Borg, Karlsson, & Stenhammer, profissional em prol de uma parceria
2013; Borg & Kristiansen, 2004; Davi- colaborativa.
dson, Andres-Hyman, Bedregal, Ton- Embora o significado de colabora-
dora, Frey, & Kirk, 2008). ção esteja bastante consolidado teo-
A partir de relatos em primeira ricamente no campo da saúde mental
pessoa sobre as lições aprendidas para (Horvath & Symonds, 1991; Norcross,
superar os problemas, fica evidente 2011), o significado de colaborar, de
que os processos de superação acon- ser parceiro ou se engajar numa rela-
tecem cotidianamente na vida dessas ção mútua de parceria tem recebido
pessoas (Borg & Davidson, 2008; To- menos atenção na literatura. Além
por, Borg, Di Girolamo, & Davidson, disso, é notável que, mesmo contan-
2011). As pesquisas mostram que os do com uma sólida base de conheci-
processos de superação são facilitados mento sobre colaboração e superação,
quando a pessoa tem uma vida signi- ainda seja um desafio para os profis-
ficativa, desempenhando atividades sionais poder efetivamente colocar
que façam sentido para elas (Behr- em prática essas ideias. Embora, em
man, 2005; Edward & Robins, 2012; geral, os profissionais queiram ser co-
Davidson, Andres-Hyman, Bedregal, laborativos, muitas vezes suas práticas
Tondora, Frey, & Kirk, 2008), enfati- revelam o contrário (Karlsson & Borg,
zando os pontos fortes, a orientação 2013; Ness, Karlsson, Borg, Biong,
para o futuro, e o restabelecimento Sundet, McCormack, & Kim, 2014;
da vida social e das relações de apoio Strong, Sutherland, & Ness, 2011).
(Borg & Davidson, 2008; Brooks, Mal- O objetivo deste artigo é apresen-
fait, Brooke, Gallagher, & Penn, 2007; tar as perspectivas dos próprios pro-
Ness, Karlsson, Borg, Biong, Sundet, fissionais sobre a prática colaborati-
McCormack, & Kim, 2014). A lite- va no trabalho conjunto com jovens
ratura sobre superação aponta ainda adultos com comorbidades em saúde
que as barreiras à superação incluem mental e uso problemático de subs-
a falta de uma ajuda “customizada” e tâncias, e suas famílias. A pergunta
ter de transitar em sistemas comple- que orientou o estudo foi: como os
xos e passar por serviços descoorde- profissionais de saúde entendem e des-
nados (Ness, Karlsson, Borg, Biong, crevem a prática colaborativa com es-
Sundet, McCormack, & Kim (2014). ses jovens adultos usuários do serviço e
Pessoas em processo de superação va- seus familiares?

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MÉTODO fansen, Svisdahl, & Veseth, 2013), esse “Caminhando lado a lado”:
grupo desenvolveu detalhadamente o práticas colaborativas nos 9
tratamentos de saúde mental
Desenho projeto de pesquisa elaborando, por e uso de substâncias
Ottar Ness
exemplo, os roteiros das entrevistas,
Marit Borg
O desenho geral do trabalho é de os critérios de inclusão, analisando os Randi Semb
uma pesquisa-ação na perspectiva dados e participando no planejamento Bengt Karlsson
da investigação cooperativa (Heron, e discussões ao longo de todo o pro-
1996). A Investigação Cooperativa cesso. O grupo de competência parti-
refere-se a uma variedade de aborda- cipou de todo o projeto, reunindo-se
gens e é considerada particularmente quatro vezes por ano durante a imple-
apropriada na pesquisa-ação com base mentação. O relatório que apresenta-
na tradição da filosofia participativa mos neste artigo foi extraído de uma
(Heron & Reason, 2001). As perguntas parte deste projeto.
que orientaram nossa pesquisa foram
identificadas a partir do envolvimen-
to dos profissionais de um serviço de COLETA DE DADOS
saúde mental e uso de substâncias que
atende crianças, adolescentes e suas Neste estudo adotamos discussões
famílias em um município da Norue- em grupos focais multiestágio com
ga. Foi, portanto, um desenho longi- o objetivo de envolver ativamente os
tudinal, qualitativo e cooperativo de profissionais na pesquisa. A discus-
pesquisa. Os pesquisadores e partici- são em grupo focal multiestágios é
pantes que desempenharam o papel caracterizada pela exploração de um
de co-pesquisadores trabalharam co- determinado tema ou fenômeno atra-
laborativamente na identificação de vés de várias discussões em grupo,
problemas, decidindo sobre os temas e é descrita por Hummelvoll (2008)
a serem investigados, selecionando o como uma investigação nos diálogos
escopo da pesquisa e desenhando os que surgem do material experiencial.
projetos a serem implementados (Re- Gravamos três discussões mensais em
ason, 1999). Uma pessoa que tinha grupos focais, e a partir deste material
experiência como usuário neste ser- transcrevemos as sessões. As discus-
viço participou como moderador, em sões do grupo focal foram realizadas
conjunto com o pesquisador, nas dis- com os participantes no papel de co-
cussões do grupo focal e foi inserido -pesquisadores, tendo o primeiro e o
como co-pesquisador neste projeto de terceiro autores participado de todas
pesquisa participativa. as discussões. As discussões do gru-
Como parte da metodologia de po focal duravam geralmente de uma
pesquisa-ação, criamos um “grupo de hora e meia a duas horas, e eram mo-
competência” para trabalhar com a deradas pelos pesquisadores que apre-
equipe da pesquisa em todas as etapas. sentavam os temas a partir de ideias
O grupo de competência consistiu em e práticas colaborativas vividas pelos
dois membros da família, dois usuá- participantes do trabalho. Os resumos
rios do serviço e três profissionais do das transcrições de cada reunião eram
município, embora eles não tenham compartilhados com os participantes
participado das discussões do grupo no início da reunião subsequente para
focal. Inspirado pelo conceito de pes- fornecer um contexto para uma con-
quisa participativa (Borg, Karlsson, versa mais profunda sobre a prática
Kim, & McCormack, 2012; Moltu, Ste- colaborativa. Dessa forma foi possível

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tanto articular o conhecimento profis- mentos, ideias e temas que emergiam.
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sional dos participantes quanto elevar O material foi em seguida codificado,
esse conhecimento a um nível supe- usando a pergunta da pesquisa como
rior de abstração. A abordagem aberta guia. As ideias iniciais e os temas
do mundo da vida (open life world ap- emergentes foram então condensados,
proach) foi incorporada nas discussões interpretados, rotulados e categoriza-
do grupo focal, atestando que o desen- dos e, posteriormente, condensados
volvimento e a compreensão dos pro- em um texto coerente que se fundiu
cessos das práticas colaborativas surgi- com os temas emergentes da primei-
ram das experiências profissionais. ra leitura. Os elementos significativos,
tais como citações e descrições dos
temas emergentes, foram identifica-
PARTICIPANTES dos, listados e agrupados e, em segui-
da, classificados em sete categorias
Os participantes foram recrutados temáticas tentativas: (1) construindo
no departamento de Serviços em Saú- uma relação de confiança e apoio; (2)
de Mental, Uso Problemático de Subs- criando contextos para a colaboração;
tâncias para Crianças e Famílias em (3) processos relacionais; (4) bases es-
um município do leste da Noruega. truturais e organizacionais para a co-
O critério foi o de terem pelo menos laboração; (5) objetivos dos próprios
dois anos de experiência no trabalho participantes; (6) negociando um ca-
com jovens adultos com problemas minho futuro; (7) foco nos contextos
concomitantes em saúde mental e uso da vida cotidiana e no envolvimento
de substâncias. Havia oito enfermei- colaborativo com a comunidade. Os
ros de saúde mental e dois assistentes dados foram examinados várias ve-
sociais, todos com especialização no zes para completar as categorias, for-
tratamento de saúde mental, uso pro- mando um arco temático abrangente.
blemático de substâncias e em terapia O grupo de competência também se
de família. Nas três discussões do gru- envolveu na discussão do processo de
po focal, seis integrantes participaram análise junto com os pesquisadores. O
três vezes, quatro participaram duas primeiro autor apresentou os achados
vezes e dois participaram apenas uma preliminares aos membros do grupo
vez. Aconteceram algumas ausências de competência em uma reunião. Os
devido a responsabilidades clínicas e membros do grupo de competência
enfermidades pessoais. em seguida leram os resumos, o que
deu a oportunidade de comentar ou
compartilhar ideias sobre como esses
ANÁLISE DE CONTEÚDO TEMÁTICA achados preliminares poderiam ser
compreendidos e relacionados às prá-
Para atender os objetivos do estudo, ticas colaborativas na perspectiva dos
o texto proveniente das transcrições profissionais dentro do município. A
das discussões do grupo focal foi ana- validade interna dos achados foi re-
lisado através de análise de conteúdo forçada pelas discussões do segundo,
temática (Braun & Clarke, 2006; Cla- terceiro e quarto autores durante o
rke & Braun, 2013). O primeiro autor processo de análise e pelo cruzamento
fez a análise inicial lendo as trans- dos resultados encontrados pelo pri-
crições para se familiarizar com os meiro autor. Também contribuíram
dados, anotando os primeiros pensa- na escrita do texto de descrição das

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 61, p. 100-119, agosto 2018.


categorias temáticas e nas discussões um dos participantes: Em uma cola- “Caminhando lado a lado”:
subsequentes. Pudemos identificar, boração frutífera, não se trata apenas práticas colaborativas nos 11
tratamentos de saúde mental
além disso, três grandes temas rela- de dar informações uns aos outros, mas e uso de substâncias
Ottar Ness
cionados às experiências dos profis- de acordar uma maneira de trabalhar
Marit Borg
sionais de práticas colaborativas no juntos para que possamos ter uma Randi Semb
tratamento da saúde mental e da de- compreensão conjunta de como proce- Bengt Karlsson

pendência. São eles: (a) caminhar lado der com o trabalho.


a lado, através de diálogos negociados; Discutimos também que o cami-
(b) manejar relações e serviços; e (c) nhar lado a lado a jovens adultos e seus
manter relacionamentos humanos. familiares envolve construir (ou nego-
ciar) um bom relacionamento. Eles
relataram que, quando trabalham com
APROVAÇÃO ÉTICA usuários do serviço, é “muito impor-
tante não assumir a vida deles, mas es-
O estudo foi conduzido em confor- tar com eles e ajudá-los no que eles que-
midade com os Comitês Nacionais de rem”. Nesta forma de caminhar lado a
Ética em Pesquisa da Noruega. A apro- lado, os participantes enfatizaram que
vação ética para a realização do estu- precisam ter flexibilidade na forma
do foi concedida pelo Serviço de Da- de trabalhar; precisam estar disponí-
dos das Ciências Sociais da Noruega veis para os usuários do serviço e suas
(NSD). Após a descrição completa dos famílias. Foi também destacada na
procedimentos aos participantes, obti- discussão a importância de informar
vemos seu consentimento por escrito. os usuários sobre seus direitos civis e
Além disso, asseguramos confidencia- humanos e sobre a natureza da assis-
lidade aos participantes. tência que podem receber dos pres-
tadores do serviço, para que possam
fazer suas próprias escolhas. Como
RESULTADOS disse um participante: “É importante
para os usuários saberem que estamos
Caminhando lado a lado através de disponíveis e que somos flexíveis; você
diálogos negociados não pode simplesmente sentar em seu
escritório; você precisa encontrar e co-
Os profissionais que participaram nhecer esses usuários onde eles estão, e
do estudo descreveram como a prática isso pode mudar muito rapidamente”.
colaborativa com jovens adultos com Os profissionais participantes tam-
problemas concomitantes em saúde bém falaram sobre como este cami-
mental e uso de substâncias incluia o nhar lado a lado envolve apoiar os
“caminhar lado a lado”. Descreveram usuários em seus desafios cotidianos.
este tipo de parceria como diálogos Nas palavras de um deles: “Sinto que
negociados em direção a uma meta meu trabalho é principalmente ajudar
mutuamente acordada. Disseram os usuários do serviço em suas ques-
ainda que, ao estabelecer uma parce- tões cotidianas, desafios escolares, no
ria colaborativa com um usuário do trabalho, em suas atividades, ter um
serviço, tinha sido crucial usar como lugar para morar etc. Então, tenho que
ponto de partida sua situação de vida, acompanhá-los e não lhes impor a mi-
suas esperanças e sonhos para, em nha forma de vida”. Encontrar formas
seguida, discutir a melhor forma de de trabalhar junto dessa maneira, ne-
trabalharem juntos. Nas palavras de gociando com as pessoas o caminho

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a seguir, exige “respeito pela integrida- os membros da família, mas sempre
12 NPS 61 | Agosto 2018
de e vida das pessoas”, como disse um existem dilemas, porque alguns usuá-
participante. No entanto, “isso nem rios regulam seu contrato de confiden-
sempre é fácil de fazer”, como observou cialidade, mas você precisa ser flexível,
um outro, particularmente devido a disponível e criativo para negociar uma
condições de trabalho muito rígidas e boa colaboração entre todos”.
a grande quantidade de casos que os Na discussão em grupo, os parti-
profissionais têm que acompanhar. cipantes enfatizaram que caminhar
Disseram não ser fácil ter paciência lado a lado dos usuários sem apressar
para atender as necessidades dos usu- o processo ajudou a estabelecer uma
ários do serviço a todo instante. Isso relação de confiança, desde que man-
porque muitas vezes eles tinham uma tivessem os objetivos dos usuários em
ideia prévia do que achavam que seria primeiro plano e negociassem manei-
importante os usuários fazerem para ras de continuar juntos.
melhorar sua vida. Colocar o clien-
te em primeiro lugar e apenas segui-
-lo ou segui-la requer deixar de lado MANTENDO RELAÇÕES HUMANAS
a própria percepção do que pode ser
mais útil e eficaz. Outro tópico sobre Outro tema explorado nos grupos
o qual falaram foi o acordo de confi- focais foi o de não desistir e de man-
dencialidade. Eles enfatizaram a im- ter relações humanas. Isto requer dos
portância de sempre negociar o acor- profissionais continuidade e disponi-
do de confidencialidade com usuários bilidade para poder “estar lá ao lon-
de serviços e familiares. Esta sempre go do tempo, junto com as pessoas”,
foi uma tarefa desafiadora para eles. como um deles disse. É importante
Como relataram, um dia, o usuário não desistir das pessoas; “você preci-
poderia autorizar os profissionais para sa dar mais do que as pessoas espe-
falar sobre questões sensíveis com ou- ram”, observou outro participante. O
tros profissionais ou com membros da profissional, sendo a pessoa de refe-
família e no dia seguinte retirar esse rência desses usuários, deve abordá-
consentimento. Isso pode ser conside- -los de maneira amigável, a partir
rado frustrante pelos praticantes e por de sua própria iniciativa ao invés de
membros da família que desejam mais esperar que os usuários do serviço te-
colaboração e envolvimento dos pro- nham a iniciativa de procurá-los. Um
fissionais com filhos ou filhas. Os par- dos participantes trouxe esta reflexão:
ticipantes também concordaram que “Tenho notado que é muito impor-
precisavam melhorar no engajamento tante visitá-los, ligar para eles, mes-
dos membros da família no serviço, mo que eles não tenham aparecido
embora isso sempre passe por nego- nos últimos encontros”. Este parece
ciar a forma como este engajamento se ser outro aspecto muito importante;
dará. Como observou um deles: “Você os profissionais aprenderam com os
também precisa dar tempo, estar dis- usuários do serviço que as pessoas
ponível e flexível para os membros da de referência mudam tanto que mui-
família para poder criar um contexto tas vezes eles desistem porque terão
seguro em que eles possam se engajar que contar sua história novamente
numa relação colaborativa.” Ao que para outra pessoa. “Não é apenas a
outro participante respondeu: “Esta- qualidade do tempo que importa, mas
mos tentando colaborar bastante com que você seja persistente ao longo do

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 61, p. 100-119, agosto 2018.


tempo para que os usuários saibam com esta miríade de elementos”. Nas “Caminhando lado a lado”:
que você está disponível para eles”. discussões dos grupos focais foi tam- práticas colaborativas nos 13
tratamentos de saúde mental
Mantendo relações humanas foi como bém trazida a preocupação com as e uso de substâncias
Ottar Ness
os profissionais conseguiram um inúmeras burocracias com as quais as
Marit Borg
envolvimento sério e concreto dos pessoas com problemas de saúde men- Randi Semb
clientes em sua prática cotidiana. Isso tal e uso de substâncias se deparam Bengt Karlsson

pressupõe enxergar cada cliente como quando pedem ajuda. Esses múltiplos
pessoa singular, e não desistir. Como sistemas acabam criando situações em
disse um dos participantes: “Traba- que os profissionais acabam tendo que
lhamos com pessoas que são diferen- gastar um tempo assessorando os usu-
tes; temos que estar lá para insistir ários em meio a esses sistemas com-
nos pontos fortes e nas possibilidades plexos, da mesma forma que precisam
dessas pessoas. São seres humanos ajudá-los com suas questões cotidia-
que estamos ajudando; não podemos nas. Nas palavras de um participante:
desistir deles”. Eles também disse-
ram que precisam ajudar os usuários Fico frustrado por essas pessoas
do serviço a enxergar suas próprias quando sei que elas têm tantos ob-
forças e possibilidades; “importante jetivos para sua vida, mas quando
que as ideias que os profissionais fa- vão usar os nossos serviços encon-
zem de como viver uma vida boa não tram tamanha burocracia e esse
sejam a medida; são os pensamentos, emaranhado de sistemas. O que
esperanças e sonhos próprios de cada temos que fazer então é ajudar es-
pessoa que precisam estar no foco”. sas pessoas em paralelo para que
Em suma, nas discussões do grupo, os não fiquem perdidas; precisamos
participantes reafirmaram que as prá- fazer quase o mesmo trabalho de
ticas colaborativas têm a ver com não motivação que fazemos quando ofe-
desistir, ser persistente, insistir nas recemos ajuda prática e convida-
relações humanas, mesmo se os sis- mos para as conversas, para que a
temas nos quais trabalham são frag- pessoa não se canse ao se deparar
mentados e difíceis de entender para com este sistema tão complexo e
pessoas que solicitam ajuda. emaranhado.

Os participantes relataram como


MANEJANDO RELAÇÕES E SERVIÇOS todos os diferentes aspectos da buro-
cracia, documentação e serviços frag-
Nos encontros nos grupos focais os mentados resultam em menos tempo
profissionais discutiram sobre as práti- para colaborar diretamente com as
cas colaborativas enquanto manjeo de pessoas pedindo ajuda. Nas palavras
relações e serviços. Como os serviços de um deles: “Por causa de todas as
no município (e em qualquer lugar no coisas que devemos fazer, fica tudo
sistema de saúde norueguês) são orga- muito demorado… O tempo que eu
nizados de forma bastante fragmen- disponho para os usuários do serviço
tada, eles estão de acordo de que “há agora é cerca de um terço menor do que
tantos atores nesta rede de colaboração antes... o tempo é consumido em lidar
– o usuário do serviço, os membros da com a burocracia, ter de escrever dife-
família, escolas, médicos, assistentes so- rentes relatórios etc.” Neste sentido, os
ciais, colegas, outros serviços etc. – que participantes enfatizaram a importân-
acho muito difícil manejar as relações cia de os usuários terem um coorde-

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 61, p. 100-119, agosto 2018.


nador para acompanhá-los. Também fazer juntos, ficando mais fácil requi-
14 NPS 61 | Agosto 2018
mencionaram ser importante que os sitar as diversas competências neces-
profissionais possuam uma visão geral sárias para ajudar um usuário.
de todas as atividades e redes de pres-
tadores de serviço que os usuários po- Por fim, foram discutidos os de-
dem acessar dentro do município. safios que um sistema fragmentado
Discutiu-se também sobre como apresenta, especialmente no estabele-
percebiam que os profissionais e ge- cimento de relações colaborativas com
rentes do serviço, de vários níveis hie- tantas pessoas e serviços diferentes no
rárquicos, às vezes se mostravam mais município. Assim, o manejo das rela-
leais ao sistema do que ao usuário en- ções e dos sistemas é de grande impor-
quanto ser humano. Um deles trouxe tância nas práticas colaborativas.
a reflexão: “Precisamos nos lembrar de
que o sistema precisa cuidar dos dese-
jos e necessidades dos usuários, e não o DISCUSSÃO
contrário”. Um dos participantes inter-
rogou: “Existem muitos profissionais e Apresentamos a seguir nossa dis-
serviços competentes no município, mas cussão em torno de dois processos de
será que estamos usando essas compe- colaboração um pouco diferentes, a
tências eficientemente?” Outro aspec- partir de nossas descobertas. São eles:
to importante no manejo de todas as (1) práticas colaborativas com usuários
relações e serviços seria poder contar do serviço e suas famílias e (2) práticas
com abordagens e estruturas de traba- colaborativas no nível do sistema.
lho flexíveis. Os participantes disseram
que é muito importante ter bons ge- Práticas colaborativas com usuários do
rentes, que realmente entendam o que serviço e suas famílias
é colaborar com pessoas que lutam, e
que não há um modo padrão de ajudá- Nossas descobertas sugerem que
-las: “Você precisa de bons gerentes que construir práticas colaborativas com
apoiem o que você faz e que realmente usuários e seus familiares no serviço de
saibam na prática como é fazer esse tipo saúde mental significa “caminhar lado
de trabalho”. No entanto, os participan- a lado” dessas pessoas. Para isso é pre-
tes disseram estar preocupados de que ciso que os profissionais utilizem como
seus gerentes ficassem tão envolvidos ponto de partida os objetivos, esperan-
com as tarefas de administração que ças e sonhos dos próprios usuários e
não tivessem tempo para acompanhar negociem maneiras de trabalhar juntos
ou apoiar seu trabalho. Discutiram a partir daí. Como os profissionais não
também a importância de conhecer podem fazer com que as pessoas “su-
pessoalmente outros profissionais de perem” seus problemas diretamente,
diferentes áreas dentro do serviço. Ale- os serviços precisam oferecer as pré-
garam que isso melhoraria seu modo -condições para que se estabeleçam
de colaborar e manejar o sistema. A relações que promovam a superação,
este respeito, um deles disse: fortalecendo as pessoas para que pos-
sam acessar as oportunidades e redes
É muito importante nos encontrarmos de apoio (Roberts & Boardman, 2014).
regularmente com outros profissionais Um profissional orientado para a supe-
prestadores de outros serviços para ração que trabalha em parceria com os
que possamos saber o que podemos usuários será capaz de acompanhá-los

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 61, p. 100-119, agosto 2018.


e apoiá-los em seus processos na vida, justificar e incentivar a discussão. Mas “Caminhando lado a lado”:
auxiliando na construção de relações devem, ao mesmo tempo, respeitar práticas colaborativas nos 15
tratamentos de saúde mental
e conversas. Em saúde mental e nos as preferências da pessoa e negociar e uso de substâncias
Ottar Ness
tratamentos para uso problemático de o caminho a seguir (Anderson, 2012;
Marit Borg
substâncias, relações e conversas são Strong, Sutherland, & Ness, 2011). Este Randi Semb
inseparáveis e se alimentam recipro- tipo de tomada de decisão comparti- Bengt Karlsson

camente (Strong, Sutherland, & Ness, lhada entre todas as partes interessadas
2011). A abordagem centrada na pes- é essencial nas práticas colaborativas
soa que os profissionais muitas vezes (Deegan, Rapp, Holter, & Riefer, 2008).
usam para construir uma relação co- É o imperativo ético no qual se baseia
laborativa com os usuários influencia o compartilhamento de decisões e a
o tipo e a qualidade das conversas que colaboração (Drake & Deegan, 2009).
eles poderão ter. Da mesma forma, as Manter relações humanas foi outro
conversas que os profissionais come- tema central na revelação dos proces-
çam a ter com cada usuário influen- sos nas práticas colaborativas. Isso sig-
ciarão o tipo e a qualidade da relação nifica que os profissionais sustentaram
que se estabelecerá (Anderson, 2012; a ideia de que os usuários do serviço
Topor & Denhov, 2012). são, em primeiro lugar, seres humanos
Por exemplo, o usuário do serviço e lutando com diferentes problemas de
o profissional trazem seu conhecimen- saúde mental e de uso de substâncias
to e “expertise” para a relação: pessoas (Davidson, 2005, Estroff, 1995). Pesso-
com problemas concomitantes pos- as com estes desafios de vida podem se
suem suas próprias percepções e ex- sentir envergonhadas, tentar por longo
periências significativas para si e para tempo esconder suas dificuldades e,
suas vidas, e os profissionais têm expe- muitas vezes, se sentirem estigmatiza-
riência nos processos de tratamento, das (Davidson, 2005). O estigma e a
na prestação de serviços e atividades discriminação têm um efeito incômo-
especiais. Além disso, também trazem do sobre a vida de muitas pessoas, di-
em sua bagagem conhecimentos pes- minuindo sua esperança e rebaixando
soais e experiências de vida, podendo sua autoestima (Corrigan, Rafacz, &
criar espaço para relações colaborati- Rüsch, 2011). Podem fazer com que se
vas e conversas dialógicas. Juntos de- sintam menosprezadas, suspeitas ou
senvolvem expertise e conhecimento, percebidas como difíceis de ajudar, não
que é uma forma intersubjetiva e com- cooperativas e desmotivadas (Ness,
partilhada de conhecer com base nas Karlsson, Borg, Biong, Sundet, McCor-
respectivas perspectivas. Dessa forma, mack, & Kim, 2014). Os resultados de
podem avançar na construção de di- nosso estudo sugerem a necessidade de
álogos e relações. O foco, no entanto, reconhecer a importância do contexto
está em identificar e nutrir a expertise e das relações. Isso representa uma
do usuário e fortalecer sua capacida- mudança no foco, da identificação da
de de lidar com a vida cotidiana. O doença para a ênfase nas vidas das pes-
usuário também ajuda a orquestrar soas, prestando atenção nos cotidianos
sua própria ajuda, compartilhando a dos usuários, suas atividades, traba-
tomada de decisão em todos os aspec- lhos, parcerias em desenvolvimento,
tos do tratamento. Se os profissionais no sentimento de pertencer e o de
tiverem uma opinião, por exemplo, ‘se sentir em casa’ (Borg, Sells, Topor,
sobre os participantes de uma equi- Mezzina, Marin, & Davidson, 2005;
pe de tratamento, devem expressá-la, Jensen, Borg, & Topor, 2010). Os seres

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 61, p. 100-119, agosto 2018.


humanos precisam de continuidade e fragmentado, sem contar com um pro-
16 NPS 61 | Agosto 2018
segurança, e em relacionamentos úteis, cesso de coordenação integrado, pode
autonomia e flexibilidade são ingre- resultar na duplicidade de serviços, na
dientes essenciais. Nossas descobertas falta de serviços críticos ou mesmo
sugerem que os processos das práticas em confusão, que resultam no que Le
colaborativas envolvem assegurar rela- Boutillier et al. (2014) nomeiam como
ções humanas igualitárias, que podem “prioridades concorrentes”.
evoluir para relações colaborativas e Profissionais que trabalham num
dialógicas ao longo do tempo (Ander- sistema de saúde mental sofrem para
son, 2012; Karlsson & Borg, 2013). sustentar uma prática colaborativa
com os usuários do serviço e familia-
Práticas colaborativas no nível do res, muitas vezes tendo que lidar com
sistema as forças internas ao sistema, tais como
a incapacidade de manter a continui-
Outro aspecto das práticas colabo- dade na prestação dos serviços ou a fal-
rativas que emergiu no estudo é a cola- ta de apoio do sistema como um todo.
boração entre sistemas. A ideia-chave Profissionais relatam que não recebem
é que os profissionais se tornem “de- o apoio contextual e de liderança ne-
fensores” dos usuários e familiares, cessários para caminhar lado a lado
trabalhando com as partes no sistema das pessoas que estão passando por
de atendimento e coordenando com dificuldade na vida. Isso significa que
outros prestadores de serviços, em di- estão identificando prioridades con-
ferentes níveis do sistema. A maneira correntes nas diferentes camadas do
como os profissionais fazem isso na sistema de saúde. Por exemplo, o as-
prática é manejar as relações e serviços pecto crítico da “ajuda útil” menciona-
disponíveis para os usuários e famílias. da pelos usuários implica que os profis-
Contextos organizacionais, sociais e sionais tenham a coragem de abordar
culturais são as fontes que moldam e as complexidades e a individualidade
influenciam as práticas colaborativas dos próprios processos de mudança e
(Borg & Kristiansen, 2004; Ekeland, a capacidade de usar suas habilidades
1999). A complexidade dos proble- e conhecimentos profissionais em uma
mas de saúde mental e a diversidade parceria colaborativa com os usuários
dos processos de superação devem ser no âmbito do sistema de tratamento.
consideradas nos contextos multifa- No entanto, os profissionais relatam
cetados em que são expressas tanto as que experimentam tensão entre o que
experiências dos usuários dos serviços sabem e percebem como útil para as
quanto a prestação dos serviço (Borg pessoas e a forma como os serviços
& Kristiansen, 2004). Profissionais e são organizados e desenvolvidos, o que
gerentes precisam estar cientes de que não estimula a autonomia e a flexibili-
a colaboração não ocorre no vazio. dade necessárias.
Como em qualquer relação, é influen- Os profissionais que participaram
ciada por muitos fatores, tais como deste estudo lidaram com essas ques-
atitudes significativas de colaboração, tões, flexibilizando algumas das re-
condições do ambiente, estruturas eco- gras do sistema, manejando o sistema
nômicas e contextos nos quais os en- em nome dos usuários dos serviços e
contros entre os profissionais de saúde seus familiares. Puderam se responsa-
mental e usuários do serviço ocorrem. bilizar por negociar nos vários níveis
Um sistema de tratamento de saúde do sistema de saúde e encontrar aber-

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 61, p. 100-119, agosto 2018.


turas para os usuários, protegendo-os bre colaboração e superação, continua “Caminhando lado a lado”:
de uma fragmentação prejudicial e sendo um desafio para os profissio- práticas colaborativas nos 17
tratamentos de saúde mental
tentando oferecer a eles o melhor tra- nais atuarem adequadamente. Além e uso de substâncias
Ottar Ness
tamento possível. disso, os profissionais percebem que
Marit Borg
os sistemas que deveriam apoiar as Randi Semb
parcerias colaborativas envolvendo Bengt Karlsson

LIMITAÇÕES METODOLÓGICAS serviços de bem-estar social, adminis-


trativos ou jurídicos, acabam muitas
Uma limitação deste estudo resi- vezes criando barreiras à colaboração
de na dificuldade de distinguir entre e à superação. Modelos de negócio e
o que é praticado e o que se acredita avaliações caracterizam a introdução
ser ideal em discussões de grupos fo- de uma Nova Gestão Pública (NGP)
cais. Uma boa abordagem alternati- neoliberal nos serviços atuais de saúde
va seria fazer um estudo de campo na Noruega (Hermansen, 2011). Sta-
participativo para descrever o que os msø (2009) afirma que profissionais
profissionais realmente fazem na prá- de saúde sentem que há maior foco na
tica colaborativa. Outra limitação é o eficiência e nos resultados do que na
desequilíbrio de conhecimento, pers- qualidade dos serviços.
pectivas, estratégias e objetivos entre Ness et al. (2014) propõem dois
pesquisadores, profissionais, usuários componentes críticos e interconecta-
dos serviços e familiares. Quão de- dos na prática colaborativa: (a) cola-
mocrático é um processo de pesquisa boração entre profissionais, usuários
quando pesquisadores bem instruídos e famílias/redes (isto é, processos de
convidam usuários e familiares a co- ajuda e de suporte); e (b) colaboração
laborar em um projeto de pesquisa? entre os prestadores de serviço, seto-
Serão equivalentes as relações colabo- res de serviços e usuários de serviços
rativas nas diferentes etapas do pro- (ou seja, processos do sistema). Os re-
jeto e na análise dos dados? A última sultados deste estudo indicam que os
limitação é que apenas profissionais profissionais, no processo de ajudar e
participaram das discussões em gru- apoiar as pessoas em superação, po-
pos focais; seria interessante convidar dem atuar tanto com foco na comuni-
usuários e membros da família para cação e nas relações quanto com foco
levantar semelhanças e diferenças em na gestão e controle do sistema, em
experiências de práticas colaborativas. vez de colaboração
Os praticantes enxergaram algumas
sutis habilidades de comunicação que
CONCLUSÕES poderiam ser mobilizadas para apoiar
os usuários em seus caminhos para a
Embora o significado da colabora- superação e relações futuras. Também
ção esteja bem estabelecido na teoria e fizeram uso de seu conhecimento do
na prática no campo da saúde mental sistema para apoiar os clientes com
(Horvath & Symonds, 1991; Norcross, quem trabalhavam. Muitas vezes era
2011), o significado de colaborar na necessário priorizar as necessidades
prática nem sempre está claro. O real da pessoa e colocá-las acima das exi-
significado de ser parceiro também gências do sistema. As competências
tem recebido pouca atenção na lite- profissionais englobam a coordenação
ratura. Vale a pena notar que, apesar dos dois componentes de colaboração
da extensa base de conhecimento so- acima citados para obter melhores

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 61, p. 100-119, agosto 2018.


resultados. Será necessário exami- serviços de saúde mental e abuso
18 NPS 61 | Agosto 2018
nar como essa coordenação pode ser de substâncias”, que tem o professor
realmente desenvolvida e manejada Marit Borg como diretor e o Dr. Ot-
em estudos futuros. Além disso, para tar Ness como principal pesquisador.
que a colaboração ocorra no segundo Este projeto recebeu financiamento
componente (ou seja, colaboração no do Conselho de Pesquisa da Norue-
nível de sistema), parece fundamen- ga de 2012 a 2015. Agradecemos o
tal contar com estruturas e processos apoio e a prestimosa ajuda de vários
organizacionais que promovam a co- funcionários e usuários dos serviços
laboração entre provedores, setores e e de organizações de família do mu-
usuários do serviço. nicípio onde a pesquisa foi realizada.
Sem uma estrutura consolidada de Agradecemos ainda aos professores
colaboração neste contexto, os profis- Hesook Suzie Kim e Larry Davidson
sionais ficam mais propensos a recor- por seus comentários e feedbacks no
rer à gestão, manipulação e controle esboço do artigo.
dos elementos do sistema ao invés de
se envolver verdadeiramente em pro-
cessos colaborativos com os usuários REFERÊNCIAS
do serviço de saúde mental. Além dis-
so, pode-se imaginar que os aspectos Anderson, H. (2012). Collaborative prac-
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Este trabalho é resultado do pro- Borg, M. & Kristiansen, K. (2004). Reco-
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ling. Asia Pac J Couns Psychother, OTTAR NESS “Caminhando lado a lado”:
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É PhD e terapeuta familiar. Ele tratamentos de saúde mental
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Ela trabalha como pesquisadora
nos tratamentos de saúde mental
em Buskerud e Vestfold University
© 2014 Ness et al.; licenciado College, Noruega.
BioMed Central. Este é um artigo de
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dução em qualquer meio, desde que nos tratamentos de saúde mental
o trabalho original seja devidamente em Buskerud e Vestfold University.
creditado. A renúncia do The Creative
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Acesso Livre

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 61, p. 100-119, agosto 2018.


Passos, E. H. & Souza, T. P. “Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””

REDUÇÃO DE DANOS E SAÚDE PÚBLICA: CONSTRUÇÕES


ALTERNATIVAS À POLÍTICA GLOBAL DE “GUERRA ÀS DROGAS”*
HARM REDUCTION AND PUBLIC HEALTH: BUILDING
ALTERNATIVES TO GLOBAL POLICY OF “WAR ON DRUGS”

Eduardo Henrique Passos


Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

Tadeu Paula Souza


Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil

RESUMO
A Redução de Danos (RD) vem se consolidando como um importante movimento nacional, impulsionando a
construção de uma política de drogas democrática. Neste artigo destacaremos o modo como a RD se constituiu
frente aos embates com as forças totalitárias da política global de “guerra às drogas”. Enfocaremos tanto aspectos
internacionais quanto aspectos nacionais que confluíram para a construção de uma política antidrogas. É dentro
desse cenário político que a RD vem se consolidando como uma outra política de drogas possível. Analisaremos
como a inclusão dos usuários de drogas em arranjos coletivos de gestão é uma importante direção clínica e política
do movimento da RD, definindo uma nova proposta de atenção em saúde. A partir desses espaços coletivos de cui-
dado, os usuários de drogas puderam tecer uma rede nacional de cooperação e de produção de uma luta comum.
Palavras-chave: políticas públicas; saúde pública; uso de drogas.

ABSTRACT
Harm Reduction (HR) has been consolidated as an important national movement, promoting the building of a
democratic drug policy. In this article we will highlight how HR has been shaped in the face of clashes with to-
talitarian forces of the “war on drugs” global policy. We will focus on both international and national aspects that
came together to build an anti-drug policy. It is within this political scenario that HR is consolidating itself as a
different and feasible drug policy. We intend to show the extent to which the inclusion of drug users in collective
arrangements of management is an important clinical and political direction of the HD movement, defining a
new proposal for health care. From these collective spaces of care, drug users have been able to weave a national
network of cooperation and production of a common struggle.
Keywords: public policies, public health, drug use

A Redução de Danos (RD) foi adotada como es- quando, a partir de 2003, as ações de RD deixam de ser
tratégia de saúde pública pela primeira vez no Brasil no uma estratégia exclusiva dos Programas de DST/AIDS
município de Santos-SP no ano de 1989, quando altos e se tornam uma estratégia norteadora da Política do
índices de transmissão de HIV estavam relacionados Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de
ao uso indevido de drogas injetáveis (Mesquita, 1991). Álcool e Ouras Drogas e da política de Saúde Mental.
Proposta inicialmente como uma estratégia de prevenção Esse processo de ampliação e definição da RD
ao HIV entre usuários de drogas injetáveis – Programa de como um novo paradigma ético, clínico e político
Troca de Seringas (PTSs) – a Redução de Danos foi ao para a política pública brasileira de saúde de álcool e
longo dos anos se tornando uma estratégia de produção outras drogas implicou um processo de enfrentamento
de saúde alternativa às estratégias pautadas na lógica e embates com as políticas antidrogas que tiveram suas
da abstinência, incluindo a diversidade de demandas bases fundadas no período ditatorial.
e ampliando as ofertas em saúde para a população de A construção de uma política de Redução de Da-
usuários de drogas. A diversificação das ofertas em saúde nos será analisada a partir da interface entre o processo
para usuários de drogas sofreu significativo impulso nacional de abertura política e a construção de uma

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política global de “guerra às drogas”. O lento processo inimigos transnacionais como são as “drogas” e o
de abertura política no Brasil foi acompanhado de rear- “terrorismo”, ampliando seu alcance temporal e espa-
ranjos macropolíticos que possibilitaram a manutenção cial, tornando seu estado cada vez mais permanente. A
de práticas autoritárias no interior do próprio Estado aposta na guerra como forma de manter a ordem social
Democrático. As políticas de drogas passaram a assumir acaba por torná-la um estado contínuo nas sociedades
uma posição estratégica nesta reforma estatal, impondo contemporâneas, ao invés de um estado de exceção.
impasses para o amplo processo de democratização e A amplitude transnacional do problema gerado
restrições para a atenção equânime, integral e universal pelo tráfico de drogas confere a essa guerra um caráter
as pessoas usuárias de drogas. difuso, ao mesmo tempo em que intensifica o controle
No cenário nacional, vivemos na década de 80, o social, identificando as drogas como a encarnação do
fracasso do, então, “milagre econômico”, o alto índice mal. No campo da guerra global às drogas toda hu-
da inflação, a explosão demográfica nos grandes centros manidade pode, por um lado, unir-se contra o mal e,
urbanos, aumentando os cinturões de pobreza nas perife- por outro lado, qualquer um pode ser um inimigo da
rias e favelas. A falência do modelo econômico nacional humanidade.
e o desemprego conjuntural vieram acompanhados do A guerra às drogas se tornou ao mesmo tempo
aumento do mercado ilícito. Podemos agregar a esse pro- um exercício de controle social e uma estratégia para
cesso econômico o sucateamento da educação pública e a ampliação da economia neoliberal a partir do exercí-
o aumento da violência urbana. É dentro desse contexto cio do poder e da violência. A economia neoliberal se
nacional que, no final da década de 80 e início da década fortalece através da intensificação de uma economia
de 90, o tráfico de drogas, sobretudo de cocaína, ganha bélica, já que a lógica de guerra às drogas e a lógica de
projeção tanto no mercado nacional quanto no mercado consumo não são lógicas opostas, elas se alimentam e
internacional (Batista, 1998, 2001). se fortalecem mutuamente.
As favelas e periferias urbanas passam a ocupar A lógica de guerra às drogas busca combater
um lugar estratégico para o forte mercado de drogas, a produção da substância, dividindo os países entre
recrutando jovens pobres para o tráfico. As disputas produtores, exportadores e consumidores, reprimindo
por pontos de venda de drogas entre facções inimigas a oferta dos países produtores, a procura dos países
e o enfrentamento direto com a polícia agregaram ao consumidores e a exportação nas fronteiras, portos e
mercado de drogas o mercado de armas, dando início aeroportos. Tal estratégia se baseia numa lógica ge-
a uma verdadeira guerra civil que se encontra inserida ográfica e desloca para os países periféricos a fonte
num “ciclo global de guerras”. causadora dos problemas gerados pelo trafico de dro-
No cenário internacional, as drogas - e posterior- gas. Tal estratégia bélica e econômica não inclui como
mente o terrorismo - passaram gradativamente a subs- problema a ser enfrentado a produção de subjetividade
tituir o comunismo como figura ideológica de ameaça consumista que movimenta o mercado internacional de
à democracia mundial (Batista, 2001; Negri & Cocco, drogas e que caminha de mãos dadas ao processo de
2005). A emergência da política global de “guerra às transnacionalização da economia de mercado.
drogas”, liderada pelos EUA, ampliaram e fortaleceram Nas sociedades de consumo os produtos são intan-
a economia bélica, fomentando práticas totalitárias em gíveis, como uma “sensação de bem-estar”, um “estilo
diferentes pontos do planeta, chegando a intervenções de vida”, uma “identidade pré-fabricada”. O marketing
militares diretas, como as ocorridas na Bolívia, no e os meios de comunicação investem, sobretudo, na
Panamá e na Colômbia (Karam, 2003). produção desejante como motor da economia. Dentro
A “guerra às drogas” e a “guerra ao terrorismo” desse contexto, as drogas se inserem numa rede de
trouxeram um novo sentido para o conceito de guerra, produção de substâncias que se agencia a uma ampla
na medida em que essas guerras passam a lidar com um rede de produção de subjetividade. As drogas permitem
“objeto” global que torna cada vez mais imprecisa a dis- acessar de modo prático, rápido e de qualquer lugar a
tinção entre “conflitos externos” e “segurança interna”. rede de produção de subjetividade consumista.
Enquanto as ditas “classes perigosas” eram o alvo da O tráfico de drogas não pode se reduzir à produção
segurança interna, os conflitos externos tinham como da substância, mas deve se estender ao plano de produ-
alvo de intervenção os ditos “inimigos”. Entretanto, ção de subjetividade consumista. Os produtos (drogas)
no mundo contemporâneo, as ameaças externas e as representam uma pequena parte do processo de produ-
ameaças internas tornam-se cada vez mais híbridas e, ção do mercado transnacional de drogas que, apesar de
a um só tempo, alvos de uma guerra globalizada (Negri ser uma prática ilícita, se beneficia e se fortalece dos
& Hardt, 2005). meios lícitos de produção de subjetividade. Da mesma
No atual estado de guerra global, as guerras forma, as favelas representam um pequeno ponto den-
passam a ser declaradas a inimigos não geográficos, tro de uma ampla rede transnacional, que se constitui

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como um plano que articula produção lícita e produção economia e do avanço da lógica neoliberal, ampliando
ilícita através de um diversificado cardápio de meios o poder repressivo do Estado-Mínimo e o poder de
de comunicação. Entretanto, ao focalizar esforços em governo do mercado transnacional sobre os próprios
combater a produção das drogas, as estratégias policiais Estados Nacionais. Estabelece-se uma aliança entre ter-
e militares assumem a função de controle social das ca- mos aparentemente contraditórios, mas que comungam
madas pobres, pois passam a localizar geograficamente de interesses comuns, de modo a preservar a lógica de
um processo de produção transnacional: responsabili- mercado. É neste cenário macropolítico que as drogas
zar as favelas e os países periféricos por um mercado tornaram-se um mal a ser eliminado pelo Estado e, ao
que é movimentado por uma lógica de consumo que é mesmo tempo, um produto a ser altamente consumido
acionada pelos países do primeiro mundo. pela classe média e alta.
No Brasil, práticas da ditadura, como a tortura, É nesse mesmo cenário, de constituição de uma
passaram a ser exercidas sobre comunidades pobres política de guerra às drogas, que ocorre a primeira ação
mediante uma intensificação do poder policial. Sobre de Redução de Danos no Brasil, em 1989, no município
a justificativa de defesa da democracia e combate às de Santos-SP. Santos vivia, nesse momento, um das ges-
drogas, forças antidemocráticas constituíram uma tões municipais mais promissoras para a implementação
complexa rede bélica no cerne da própria democracia. do Sistema Único de Saúde (SUS) através de práticas
Mais do que um combate às drogas, esse arranjo vem concretas que animariam o sentido de saúde democrá-
garantindo um exercício de combate às próprias forças tica. Apesar desse cenário, aparentemente favorável a
democráticas emergentes. Não estamos falando de práticas progressistas de atenção e gestão em saúde, o
guerra às drogas, e sim de uma repressão generalizada então secretário municipal de saúde, David Capistrano,
à própria democracia, um “Estado de Guerra” no cerne e o Coordenador do programa de DST/AIDS, Fábio
do “Estado Democrático de Direito” que se apoia ora Mesquita, sofrem uma ação judicial por adotarem a
sobre o eixo drogas, ora sobre o eixo terrorismo. estratégia de Redução de Danos, acusados de incentiva-
É dentro dessa lógica que, em 1998, instituiu-se rem o uso de drogas. Nessa época, Santos era conhecida
a “Secretaria Nacional Antidrogas, que, na sua origem, como “capital da AIDS”, cidade portuária, a maior da
subordinava-se à Casa Militar da Presidência da Repú- América Latina, lugar de trocas e encontros de todas
blica, transformada em 1999, sem perder seu caráter as ordens, ponto estratégico do tráfico internacional de
militarista, em Gabinete de Segurança Institucional do drogas. Dados epidemiológicos indicavam que 51%
Presidente da República” (Karam, 2003, p.79). dos casos de contaminação de HIV/AIDS estavam re-
O exercício de poder gerado no embate entre lacionados ao compartilhamento de seringa para o uso
forças democráticas e forças totalitárias constituiu de drogas injetáveis (Mesquita, 1991).
um jogo de contradições entre uma Constituição que A ação judicial que David Capistrano sofreu não
garante direito a liberdades individuais e uma lei do será tomada como um episódio de uma história pessoal,
Direito Penal que impede que as pessoas usem certas mas sim como um acontecimento político que evidencia
substâncias. Cabe destacar que a lei 6368/762 foi profe- o encontro entre as forças conservadoras que sustentam
rida em pleno período ditatorial e seu caráter autoritário uma política antidrogas e as forças progressistas que
não foi reformulado a partir da Constituição de 1988. adotavam a RD como uma estratégia em defesa da vida
A contradição do próprio arcabouço jurídico remete, e da democracia. A retaliação judicial e policial sofrida
antes de tudo, à conciliação sinistra entre democracia por essa secretaria municipal de saúde pôs em evidência
e totalitarismo sobre o eixo das drogas. a contradição da própria máquina estatal, na medida em
A repressão ao tráfico de drogas que se exerce que o poder judiciário suspende o direito constitucional
de forma mais violenta nas zonas de maior pobreza de acesso universal à saúde. É dentro deste enfoque, da
revela uma “falsa oposição” criada entre Estado Nação problematização entre políticas totalitárias e políticas
e Capitalismo Globalizado, que se atualizam sobre o democráticas que coexistem e compõem o funciona-
eixo drogas. O desafio é poder captar o momento em mento da máquina estatal, que iremos situar os embates
que as aparentes oposições determinam uma aliança travados pela RD no Brasil.
entre o avanço da lógica de consumo produzido pelo A restrição que sofre a RD no Brasil permite não
capital mundial e os modos de sujeição dos Estados só identificarmos atitudes arbitrárias, como a própria
Nacionais, ou seja, uma estranha e paradoxal aliança contradição do arcabouço jurídico do Estado. Essa ação
entre repressão e liberação. inconstitucional não pode ser explicada unicamente a
O modelo repressivo da política estatal contra as partir da Lei 6368/76, mas sim através dos meios pelos
drogas evidencia um modo de operar no qual o Estado quais o autoritarismo mantém práticas que limitam o
se vê às voltas com os efeitos da própria globalização da exercício da democracia.

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O paradigma da abstinência: articulação o saber criminológico, definiu uma forma, um enquadre,


entre justiça, psiquiatria e moral religiosa um “estrato” (Deleuze, 1988; Foucault, 1993) para o
usuário de drogas.
A tarefa de entender os embates recorrentes entre A histórica articulação entre poder psiquiátrico e
RD e os aparelhos de Estado acaba nos colocando diante direito penal se consolidou ao logo das décadas e pode
do conflito histórico que essa estratégia vem travando ser entendida como uma das forças contrárias à imple-
com a política antidrogas, legitimada judicialmente tal mentação da Redução de Danos no Brasil. A produção
qual a Lei 6368/76 vigente até o ano de 2006, quando histórica do estigma do usuário de drogas como uma
entrou em vigor a nova lei de drogas, 11.346/06. Expor figura perigosa ou doente nos permite compreender
as relações de poder que se teceram historicamente para parte dos problemas que a RD passa a enfrentar quan-
a produção de uma política de guerra às drogas exige do essa se torna um método de cuidado em saúde que
que realizemos uma análise micropolítica da política acolhe as pessoas que usam drogas como cidadãos de
antidrogas objetivando apreender seus dispositivos direitos e sujeitos políticos.
capilares de reprodução do paradigma da abstinência. A construção das políticas de saúde para usuários
Em outras palavras, mudaremos o objeto de análise: de drogas centradas no hospital psiquiátrico demarca
desviaremos o olhar antes lançado sobre o Estado e pas- uma significativa interferência do Direito Penal sobre
saremos a focalizar os dispositivos de poder (Deleuze, os procedimentos clínicos, como também uma aproxi-
1988, 1996; Foucault, 1988) que se consolidam junto mação entre práticas jurídicas e práticas médicas. As
da justiça e da Lei. É nesse ponto que encontramos a diversas retaliações judiciais que ações de RD vêm
proximidade entre a política antidrogas e o paradigma sofrendo no Brasil apontam para um embate que não
da abstinência. Veremos como a abstinência se torna um se reduz às limitações impostas pelo Direito Penal, mas
eixo articulador entre a justiça, a psiquiatria e a moral apontam para a delimitação imposta ao campo da saúde
religiosa que, em sua articulação, definem uma política constituída entre a psiquiatria e a justiça em torno do
do tratamento para usuários de drogas. paradigma da abstinência. Logo, compreender essas
Por paradigma da abstinência entendemos algo relações de poder obriga-nos a situá-las na articulação
diferente da abstinência enquanto uma direção clínica entre as práticas discursivas da psiquiatria e as práti-
possível e muitas vezes necessária. Por paradigma da cas não-discursivas das instituições de confinamento.
abstinência entendemos uma rede de instituições que O enfrentamento da RD não é só com o discurso da
define uma governabilidade das políticas de drogas e lei, mas também com as práticas não-discursivas das
que se exerce de forma coercitiva na medida em que instituições disciplinares. Em última instância, pode-se
faz da abstinência a única direção de tratamento possí- dizer que a RD coloca em questão as relações de força
vel, submetendo o campo da saúde ao poder jurídico, mobilizadas sócio-historicamente para a criminalização
psiquiátrico e religioso. e a patologização do usuário de drogas, já que coloca em
A articulação entre criminologia e psiquiatria no cena uma diversidade de possibilidades de uso de drogas
Brasil vem de um diálogo iniciado na segunda metade sem que os usuários de drogas sejam identificados aos
do século XIX, numa interlocução direta com o Direi- estereótipos de criminoso e doente: pessoas que usam
to Penal. Uma diferença entre essas duas disciplinas drogas e não precisam de tratamento, pessoas que não
consiste no fato de a criminologia surgir no interior querem parar de usar drogas e não querem ser tratadas,
do Direito Penal, enquanto a “psiquiatria se insurge pessoas que querem diminuir o uso sem necessariamen-
do exterior, disputando com o direito penal o papel de te parar de usar drogas.
gestora do criminoso, através de uma relação, progres- O Direito Penal e a psiquiatria explicam parte do
sivamente mais íntima, entre crime e doença mental” poder que submete os usuários de drogas. O poder dis-
(Rauter, 2003, p. 41). ciplinar opera por meio da normalização das condutas
Apesar das alianças, na história do Brasil, a rela- desviantes, em que o saber médico e o criminológico
ção entre criminologia e psiquiatria não foi harmônica privilegiam como objeto de intervenção o criminoso,
e complementar. A ambição da psiquiatria encontrou o louco, o delinquente, o “drogado”. Desse ponto de
resistência no interior do próprio Direto Penal, prin- vista, poderíamos facilmente concluir que os embates
cipalmente no século XX. Embora a psiquiatria tenha da RD acontecem, exclusivamente, contra os disposi-
conquistado um espaço dentro do Direito Penal, os tivos disciplinares: a prisão e o manicômio. Porém não
juristas determinaram um limite para essa atuação. É é somente dentro das prisões e dos hospícios que os
dentro deste jogo de poder que o usuário de drogas ora usuários de drogas são confinados hoje em dia. As ditas
se vê perante o poder da criminologia, ora diante do Comunidades Terapêuticas e Fazendas Terapêuticas
poder da psiquiatria; ora encarcerado na prisão, ora trazem outro elemento que não exclui a disciplina, mas
internado no hospício. O saber psiquiátrico, bem como a complementa: a moral religiosa.

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Passos, E. H. & Souza, T. P. “Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””

A moral cristã compõe, junto com a justiça e a de estratégias de mobilização e um sentido de luta para
psiquiatria, uma rede de instituições que tem por finali- as ações de RD. O sentido de luta, comum à RD, coloca
dade única e comum a abstinência. Porém, ao contrário um novo desafio para esse dispositivo. O objetivo da RD
da psiquiatria que se volta mais para a doença mental e não pode mais ser reduzido à prevenção de DST/AIDS,
da justiça que se volta mais para a delinquência, a moral da mesma forma que o objeto de intervenção desse mo-
religiosa inclui um terceiro elemento, a associação do vimento não se reduz a um confronto com a justiça.
prazer ao mal. O prazer da carne, que frequentemente
tem sido associado ao uso de drogas, é objeto histórico Produção e gestão do comum
de intervenção do poder pastoral e, atualmente, se as-
socia ao poder disciplinar; mas a gênese desse poder é Em 1994 boletins do Ministério da Saúde indi-
muito mais antiga do que a própria disciplina. O poder cavam que 25% dos casos de AIDS no Brasil estavam
da Igreja sobre os usuários de drogas se justifica muito associados ao uso indevido de drogas injetáveis (Mar-
mais por uma problemática do “prazer” do que, exclu- ques & Doneda, 1998). Essa realidade epidemiológica
sivamente, pela problemática da “razão”. Enquanto a exigia que a RD deixasse de ser uma ação pontual do
psiquiatria e a criminologia produziam verdades sobre município de Santos e se tornasse uma ação dentro da
a razão e práticas de “cura” do anormal, fosse louco política nacional. A construção dessa política passou
ou criminoso, a moral cristã atém-se aos desvios da por vários desdobramentos e interfaces em função do
“carne”, aos prazeres apetitosos. conjunto de instituições que se construíram ao redor do
A problematização moral do uso de drogas se tema AIDS/drogas.
assenta em certa medida em um conjunto de regras mo- Nesse mesmo ano (1994) iniciou-se um projeto
rais de fundamento cristão, naquilo que o cristianismo de articulação política em torno da interface AIDS e
historicamente definiu como conduta frente aos prazeres Drogas: “Projeto Drogas” do Programa Nacional de
da carne. Coube ao cristianismo situar o prazer sob signo DST/AIDS. Tal projeto contava com o apoio político
do mal e da morte, produzindo, segundo Foucault, uma e financeiro da Organização das Nações Unidas, por
inversão histórica na passagem da Antiguidade para a meio do Programa das Nações Unidas para o Contro-
Era Cristã. Dessa forma, o uso dos prazeres se tornou le Internacional de Drogas (UNDCP)3. Esse projeto
objeto de interdição moral e “poder-se-ia acrescentar buscou articular, em torno do tema drogas, a Coorde-
o alto valor moral e espiritual que o cristianismo, nação Nacional de Saúde Mental, o então Conselho
diferentemente da moral pagã, teria atribuído à absti- Federal de Entorpecentes - CONFEN - do Ministério
nência rigorosa, à castidade permanente, à virgindade” da Justiça e as Secretarias do Ministério de Educação
(Foucault, 1994, p. 17). Trata-se de uma malha fina, e do Desporto (Marques & Doneda, 1998). A RD foi
um poder capilar que, antes de fundar as práticas de inserida em diferentes programas e secretarias que
tratamento, fundou a própria individualidade pecadora. criaram, junto ao Projeto Drogas, diferentes linhas de
Nesta semiótica, o prazer passa a ser identificado a um intervenção estadual e municipal, principalmente a
espaço interior, regido pelos pensamentos, sentimentos: criação dos Programas de Redução de Danos (PRDs).
intenções obscuras da alma. O espaço interior do desejo, Como na Holanda, onde foram criadas as ações de
a vigília e o pecado original redefiniram a própria sub- troca de seringa entre usuários de drogas injetáveis, os
jetividade e as práticas que passaram a reger o prazer: PRDs foram fundados em muitos casos por usuários
confissão, retiro, punição. O poder pastoral sobre a carne de drogas responsáveis tanto pelos processos de gestão
atravessou séculos e constitui o mais longo diagrama quanto pelos processos de atenção, sendo denominados
de poder que Foucault pôde estabelecer. de Redutores de Danos.
É dentro deste eixo de problematização e produ- Ao inserir, no cenário nacional, um conjunto de
ção de verdades sobre o corpo e sobre o prazer que a estratégias de Redução de Danos, o PN - DST/AIDS
RD abre um novo campo de possibilidades clínicas, po- criou um jogo de articulações e tensões no interior da
líticas e existenciais. Sendo assim, não podemos reduzir própria máquina estatal. É esse jogo de tensões e arti-
os desafios que a RD vem enfrentando à sua dimensão culações que ocorreram no interior da máquina estatal
de embate com a Lei. A ação judicial que o Secretário que nos permite acompanhar como a RD vai aos poucos
de Saúde de Santos sofreu revelou um embate com as deixando de ser uma estratégia de prevenção as DST/
práticas de sujeição dos usuários de drogas, relações de AIDS e vai se tornando um novo paradigma, na medida
saber-poder que constituem na contemporaneidade o em que inclui os usuários de drogas como protagonis-
paradigma da abstinência, tecido entre o Direito Penal, tas dessas ações. Os investimentos do PN-DST/AIDS
poder psiquiátrico e a moral cristã. possibilitaram a criação de outro plano de sustentação
O encontro com essas relações de poder, construí- da RD, não mais local, mas sim nacional. A RD tornou-
das em torno do paradigma da abstinência, exige a criação se uma política de governo com pretensão de vir a ser

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política de Estado, encontrando forte tensionamento situada entre as ações locais disparadas pelas ONGs
com outros setores da máquina posicionados a favor de (associações) e a máquina de Estado, criando um atra-
uma política antidrogas. Apesar dos embates no âmbito vessamento entre as mesmas.
federal, foi na esfera municipal, no plano concreto das Mais importante do que localizar as instâncias de
ações que a RD sofreu as maiores restrições. Dessa formulação das ações de RD é analisar o modo como
forma, mesclavam-se um plano de articulação federal essas passaram a serem apropriadas pelos usuários de
e um plano municipal. drogas, gerando um grande efeito de mobilização (Mi-
Diante dessa realidade política, foi fundada, no nistério da Saúde, 2003b). A rede nacional de redutores
ano de 1996, a Associação Brasileira de Redutores de de danos passou a exercer um papel importante de
Danos (ABORDA), com a função de capacitar e arti- mobilização e articulação nacional por uma nova po-
cular os Programas de Redução de Danos. A ABORDA lítica de drogas. Mobilizadas em redes, as associações
mobilizou redutores de danos e usuários de drogas para passaram a lutar pelos direitos dos redutores de danos
que se organizassem politicamente, fundando diversas e dos usuários de drogas. Nesse contexto, algumas
ONGs pelo Brasil. associações foram fundadas por redutores de danos
A direção política da ABORDA foi ao encontro que trabalhavam em PRDs e passaram a se organizar
da necessidade dos redutores de danos de alcançarem politicamente, enquanto outras foram fundadas por
maior autonomia para gerir as políticas de RD, pois os usuários de drogas que lutavam mais abertamente pela
mesmos não encontravam ambiente favorável para se descriminalização do usuário de drogas dentro de uma
expressarem dentro dos PRDs. Por serem, inicialmente, proposta antiproibicionista 4.
aparelhos estatais, os PRDs encontravam-se inseridos As ONGs desempenharam um importante papel
num contexto institucional que impunha obstáculos à na história da RD no Brasil, já que, a partir delas, os
nascente militância dos redutores de danos e usuários redutores de danos puderam construir uma rede coop-
de drogas. A militância política forçou a criação de es- erativa e democrática. Entretanto, a criação das redes de
paços de gestão “exteriores” ao próprio Estado, como redução de danos não representou um desatrelamento
as associações nas quais os usuários de drogas viam a da máquina estatal. Ao invés disso, a mobilização dos
possibilidade de não serem identificados a doentes ou redutores de danos gerou uma estranha e paradoxal
criminosos (Ministério da Saúde, 2003b). A ABORDA relação com o Estado: receber financiamento do Estado
criou junto com as ONGs um método de inclusão das e, ao mesmo tempo, conjurar a política antidrogas ainda
minorias, que foi ativado, principalmente, pelos redu- hegemônica na máquina estatal.
tores de danos. Essa relação paradoxal da RD com o Estado leva à
A ABORDA, por meio de encontros nacionais e construção, na prática concreta dos redutores de danos,
redes de interação virtual (internet), colaborou na fun- de um novo sentido de política pública, não mais iden-
dação e articulação das ONGs. Dessa forma, as diversas tificada à política de Estado ou política de governo. Tal
ONGs, dentre elas a própria ABORDA, teceram uma sentido de público se expressa doravante como gestão
rede nacional de redutores de danos que contava com do comum (Benevides & Passos, 2005).
a participação tanto daqueles que atuavam em ONGs O plano de articulação política criada pelas as-
quanto dos que vinham dos PRDs que não fundaram sociações permitiu que os embates locais fossem in-
ONGs (Ministério da Saúde, 2003b). Redutores de seridos num circuito de trocas e mobilizações através
danos, travestis, usuários de drogas, profissionais de de redes nacionais. A inclusão do usuário de drogas
saúde, pessoas vivendo com HIV, estudantes e pes- nos serviços de saúde não só como um paciente, mas
quisadores criaram uma gestão democrática através de como ator corresponsável pelas políticas, vem sendo o
redes abertas de interação e cooperação, evitando que os desafio da RD. Nas associações de redutores de danos,
PRDs ficassem isolados e restritos a um contexto local. os usuários de drogas participam como agentes políticos
A consolidação dessa rede fez emergir um outro plano colaboradores na produção de redes de cuidado e de
de produção das políticas de RD, que não se reduzia comunicação, criando uma mobilização coletiva, uma
nem ao plano e local, nem ao plano estatal e federal. A gestão do comum.
tecedura dessa rede possibilitou a inclusão de grupos O que estamos chamando de comum? Tomemos,
minoritários num circuito de relação, em que se passou então, o conceito de “multidão” de Negri e Hardt
a trocar muito mais do que seringas descartáveis. O (2005). Segundo os autores, o conceito de multidão
método da RD foi, aos poucos, se descolando do foco se distingue tanto do de povo quanto do de massa. O
específico de prevenir, efetivado através do dispositivo povo preservaria um caráter identitário e unitário do
de troca de seringas, e assumiu objetivos mais amplos, governo. Uma certa tradição da filosofia política define
acionados por novos dispositivos de gestão e atenção. que somente o que é uno pode governar, seja o monarca,
A cooperação em rede fundou uma plataforma política o partido, o povo ou indivíduos. Para essa corrente

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Passos, E. H. & Souza, T. P. “Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””

filosófica, sujeitos sociais que não são unificados, mas (Campos, 2000, p. 42). Como exemplo, nas associa-
múltiplos, não podem governar, devendo pelo contrário ções de RD os usuários de drogas podem colaborar na
ser governados. produção de projetos, construir projetos, estabelecer
A multidão, ao contrário, é uma multiplicidade contratos, votar e se candidatar para a direção das ins-
composta por diferenças singulares que encontram na tituições em que participam.
gestão do comum um novo modo de governo. A RD in- Observa-se na experiência de gestão da RD que
dicou uma forma de governo da multiplicidade, lutando muitos usuários de drogas abandonam ou diminuem o
pela manutenção da heterogeneidade que se encontra uso de drogas quando experimentam um contexto no qual
numa multidão e ao mesmo tempo pela consolidação de se sentem acolhidos. Além disso, o uso abusivo pode
um compromisso comum, sem reduzir o usuário de dro- comprometer a execução de compromissos assumidos
gas a formas identitárias como o doente ou criminoso. coletivamente: seja o trabalho de campo, acessar outros
Através das associações, os usuários de drogas foram usuários de drogas em situações de vulnerabilidade,
incluídos numa gestão comum organizada em rede. participar de uma reunião nos conselhos municipais
Segundo Negri e Hardt (2005), a mobilização ou nas assembleias da associação de que faça parte. A
do comum segue dois aspectos: um aumento intensivo mobilização introduziu os usuários de drogas em redes
das forças democráticas na esfera local e um aumento locais de gestão comum, nas quais o consumo de drogas
extensivo das lutas, quando passam a se comunicar com é constantemente ressignificado por acordos coletivos.
outras lutas, constituindo uma organização em rede. Podemos observar, a partir da RD, uma construção
O modo como o movimento da RD foi se orga- coletiva e comum para as experiências com as drogas,
nizando permitiu que singularidades locais fossem in- indicando uma inseparabilidade entre atenção e gestão.
seridas numa rede de interação nacional e internacional. Mediante esse modo de organização, além de participa-
Podemos dizer que as associações de redução de danos rem na gestão das políticas, muitas pessoas cessaram ou
são como nós de uma rede que consolidou um movimen- diminuíram o uso de drogas: das pessoas que usavam
to social de grupos minoritários, dando passagem para drogas abusivamente, 70% dos que se tornaram redu-
uma gestão do comum baseada na diferença, articulando tores de danos deixaram de ser dependentes químicos
com outros movimentos sociais: luta antiproibicionista, (Lancetti, 2006). A RD evidenciou que o governo de uma
luta dos portadores de HIV, luta dos gays, travestis e associação, por exemplo, e o governo de si são instâncias
profissionais do sexo e luta antimanicomial. A RD se que se distinguem, porém não se separam.
coloca como uma luta que comunica e, sobretudo, cria Segundo Campos, o método da cogestão realizado
uma plano de comunicação entre lutas. em Espaços Coletivos nos permite pensar uma copro-
Nesse modo de organização, o movimento de RD dução de coletivos e de sujeitos autônomos. “Espaços
propôs e construiu uma gestão do comum exercida por existenciais contíguos, interagindo uns sob os outros,
uma multiplicidade, não reduzindo as singularidades a criando zonas autônomas, mescladas e de mútua in-
um governo unitário: uma gestão de grupos que lutam fluência, a que os Sujeitos estariam constrangidos a
pela expressão das diferenças, constituindo redes de desvendar e a lidar para seguir vivendo” (Campos,
mobilização e comunicação. 2000, p. 68). A gestão comum, ou cogestão, produz
O comum é este plano de comunicação entre lutas uma inseparabilidade entre coprodução de coletivos e
fazendo da gestão do comum o acordo que se tece entre coprodução de sujeitos autônomos, o que nos traz uma
os que estão em luta. Pensar a dimensão pública das importante indicação para analisarmos a inseparabili-
políticas de drogas como gestão do comum é afirmar dade entre governo comum e governo de si enquanto
a um só tempo que a prática democrática no campo da prática ou cuidado de si.
saúde é a condução comunitária da gestão e também a A criação de uma rede coletiva e participativa
gestão que se faz do que nos é comum, isto é, o comum produziu efeitos clínicos altamente significativos.
como agente da gestão e o comum como objeto da Chama a atenção, nesse caso, que a RD não impôs aos
gestão; o comum que gere e é gerido a um só tempo. usuários, como condição de participação coletiva, parar
de usar drogas. No entanto, cabe ressaltar que o método
O método da cogestão e o cuidado de si da RD propõe certas regras de conduta que devem ser
pactuadas coletivamente.
A mobilização em rede introduziu os usuários de Enquanto a abstinência está articulada com uma
drogas em diversos dispositivos de gestão, nos quais era proposta de remissão do sintoma e a cura do doente, a
possível compartilhar interesses singulares e construir proposta de reduzir danos possui como direção a pro-
diretrizes comuns. A gestão do comum é um modo de dução de saúde, considerada como produção de regras
operar com os efeitos gerados pela mobilização, é um autônomas de cuidado de si. No caso da RD, a própria
método de cogestão realizado em Espaços Coletivos abstinência pode ser uma meta a ser alcançada, porém

160
Psicologia & Sociedade; 23 (1): 154-162, 2011

mesmo nesses casos trata-se de uma meta pactuada, e Paradoxos e desafios


não de uma regra imposta por uma instituição. As regras
da RD, mesmo a abstinência, são imanentes à própria A partir de 2004, muitas associações tiveram
experiência e não se exercem de forma coercitiva, en- suas ações paralisadas e algumas acabaram pela falta
quanto regras transcendentais. de financiamento. O movimento da RD mostrou uma
A corresponsabilidade emerge como efeito da certa fragilidade e dificuldade de se manter ativo fren-
coprodução de saúde, uma vez que as regras de conduta te às descontinuidades e instabilidades das políticas
são criadas na situação de um encontro e a partir dos de financiamento do PN – DST/AIDS (Ministério da
vínculos que esse encontro é capaz de instaurar. Muitas Saúde, 2003b). Apesar de as associações terem ativado
vezes, os redutores de danos propõem determinadas importantes ações na consolidação desse movimento,
regras de conduta como, por exemplo, substituir crack a estreita relação com as políticas estatais eram mar-
por maconha, ou substituir a via injetável pela inalável. cadas por processos de terceirização e precarização do
Entretanto, o processo de corresponsabilização depende trabalho em saúde. Eis aí um jogo paradoxal diante do
do modo como os usuários de drogas se apropriam dessa qual se encontra o movimento da RD.
regra, depende das atitudes que começam a emergir desse Esses acontecimentos representaram uma frag-
encontro, gerando muitos desdobramentos possíveis, mentação da rede de redução de danos. Porém, o fim dos
pois são muitos os dispositivos que a RD dispõe para financiamentos a associações de RD foi antecedido por
dar continuidade a esse processo. O protagonismo dos um importante acontecimento institucional para a RD: a
usuários pode caminhar de uma dimensão mais indivi- Política do Ministério da Saúde para Usuário de Álcool
dual para uma dimensão mais coletiva, passando de um e Outras Drogas, criada em 2003 (Ministério da Saúde,
cuidado de si para um cuidado do outro, dependendo dos 2003a). Nesse momento, a RD passou por um grande
dispositivos que os usuários de drogas passam a integrar. rearranjo, migrando do campo exclusivo das políticas
Esses podem ser colaboradores no território, podem fazer de DST/AIDS e se tornando uma importante diretriz na
parte da gestão das associações, podem ser redutores de constituição dos Centros de Atenção Psicossocial Álco-
danos, ou podem simplesmente cuidar de si. ol e outras Drogas (Caps-AD). Apesar dos incentivos
É preciso entender como a criação de redes de criados pela Coordenação Nacional de Saúde Mental
cooperação altera a relação com as drogas à medida para implementação de ações de RD em Caps-AD, não
que delimita um território existencial para os usuários houve uma adesão significativa que permitisse uma
de drogas. O método empírico de cuidado se apresenta nova institucionalidade para a Redução de Danos.
como um pragmatismo clínico já que refuta uma moral Esses impasses político-institucionais colocam
aplicada de forma homogênea a todos os sujeitos, como, desafios para a continuidade desse movimento, que
por exemplo, a ideia transcendental de cura. O usuário vem ao longo doa anos ganhando novos contornos e
de drogas deixa de ser considerado um doente a ser cura- novas direções. Quais direções o movimento de RD vai
do, e os encaminhamentos passam a ser múltiplos: parar criar diante desses desafios? Que redes se constituirão?
de usar? Diminuir o uso? Substituir cocaína injetável Devemos manter essas perguntas vivas ativando e
por maconha? Usar somente nos finais de semana? acompanhando o devir do movimento da RD.
Não podemos esquecer, e certamente isto é o
mais essencial, que a RD é um método construído
Notas
pelos próprios usuários de drogas e que restitui, na
contemporaneidade, um cuidado de si subversivo às
* Agencia de financiamento: CNPq
regras de conduta coercitivas. Os usuários de drogas 1
A Lei de Entorpecentes 6368/76 foi sancionada no ano de
são corresponsáveis pela produção de saúde à medida 1976 e ficou em vigor até 2006, ano em que é sancionada a
que tomam para si a tarefa de cuidado. Reduzir danos nova lei de drogas: Lei 11.343 (http://www.planalto.gov.br/
é, portanto, ampliar as ofertas de cuidado dentro de um ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm)
cenário democrático e participativo. 2
Durou quatro anos, terminando em dezembro de 1998 e cus-
A RD se torna uma estratégia ampliada de clínica tou, aproximadamente, dez milhões de dólares, sendo cerca
que tem ofertas concretas de acolhimento e cuidado de 80% desse montante proveniente do Tesouro Nacional.
3
Dessas últimas, destaca-se a Associação de Usuário de Álcool
para pessoas que usam drogas, dentro de arranjos de
e Drogas de Pernambuco, fundada em 2002, constituindo-se
cogestão do cuidado, tendo como um dos principais de forma diferencial, pois a maioria dos associados não é
desafios a construção de redes de produção de saúde vinculada a projetos de troca de seringas, “embora se consi-
que incluam os serviços de atenção do próprio Sistema derem redutores, quanto ao significado político que o termo
Único de Saúde, Emergências Hospitalares e interna- tem” (Ministério da Saúde, 2003b, p. 21).
ções breves, Postos de Saúde, Estratégias de Saúde da
Família, Caps-ad.

161
Passos, E. H. & Souza, T. P. “Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””

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162
Revista UNINGÁ ISSN 2318-0579

SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS E A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO


REDUÇÃO DE DANOS

PSYCHOACTIVE SUBSTANCES AND THE PSYCHOLOGIST'S ACTION AS


DAMAGE REDUCTION

ERIKA BERNARDINO BARROS. Centro Universitário Ingá – Uningá.

Rod PR 317, n. 6114, Maringá-PR, CEP 87035-5, E-mail:


erika_barros_13@hotmail.com

RESUMO
Este artigo apresenta reflexões acerca da atuação do psicólogo na área das
chamadas substâncias psicoativas. De que forma o profissional se
responsabiliza pelo cuidado com os indivíduos? Em um primeiro momento,
apresenta-se uma periodização para história das substâncias psicoativas. Faz-
se uma revisão bibliográfica sobre o percurso do homem relacionado às
“drogas”. Em seguida, um apanhado sobre as Comunidades Terapêuticas (CT),
bem como o modo de funcionamento e estrutura dessas instituições. Ainda há
considerações voltadas para as Estratégias de Redução de Danos e seus
planejamentos para a intervenção junto ao usuário. A fim de cumprir os
objetivos propostos nesse trabalho, de pensar a atuação do profissional de
psicologia, finaliza-se com um comparativo pautado no Código de Ética. Assim,
esse artigo aponta olhares sobre a ética na saúde, que sustentam a postura
profissional do psicólogo.

PALAVRAS-CHAVE: Substâncias psicoativas. Ética. Redução dos danos.


Drogas. Psicologia.

ABSTRACT
This article presents reflections about the performance of the psychologist in the
area of so-called psychoactive substances. In what way the professional is
responsible for beware of individuals? In a first moment a periodization for
history of the psychoactive substances is presented. A bibliographical review is
done on the man's course related to "drugs". Then, a survey on the Therapeutic
Communities (CT) is made, as well as the mode of operation and structure of
these institutions. There are still considerations regarding Harm Reduction
Strategies and their plans for intervention with the user. In order to fulfill the
objectives proposed in this work, to think the performance of the psychology
professional, ends with a comparative guided by the Code of Ethics. Therefore,
this article points to the ethics of health, which support the psychologist's
professional posture.

KEYWORDS: Psychoactive Substances. Ethic. Harm reduction. Drugs.


Psychology.

INTRODUÇÃO

O presente artigo se constitui enquanto um trabalho de conclusão do


curso de Psicologia do Centro Universitário Ingá (UNINGÁ). A oportunidade de

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estágio, no Centro de Referência Especializado para pessoas em situação de


rua (CENTRO POP), propiciou o interesse pelo assunto substâncias
psicoativas, relacionado a estratégias de cuidado. Essa experiência, realizada
no ano de 2016, favoreceu a percepção e a sensibilidade em relação ao
usuário de “drogas”. Assim, surgiu o desejo de pesquisar sobre o assunto, em
especial sobre as Comunidades Terapêuticas e as Estratégias de Redução de
Danos. Busca-se compreender em que medida tais estratégias de cuidados
são coerentes com a atuação do profissional psicólogo.
Analisando a evolução histórica do homem e sua relação com
substâncias, nota-se que sempre houve o consumo de “drogas”. Também é
observado que nem todo usuário tem a relação de dependência, ou seja, é
necessário compreender a relação sujeito-substância-sociedade, para
compreendê-lo como dependente. Assim, tem-se a busca de prevenir e
amenizar as consequências causadas pelo uso abusivo de tais substâncias.
Abordam-se, nessa pesquisa, dois modelos de cuidado com aquele que
faz uso abusivo de álcool e “drogas”: o primeiro deles é representado pelas
comunidades terapêuticas, às chamadas instituições. São ligados à religião, às
práticas laborais, tendo como objetivo principal a internação e abstinência total.
Utiliza-se de um único modelo terapêutico para todos os pacientes; O segundo
é conhecido pela estratégia de redução de danos, que se caracteriza em criar
uma estratégia conjunta com o usuário. Não existe uma estratégia já
preestabelecida, ela é criada de acordo com os interesses e subjetividade do
usuário, a fim de amenizar os riscos causados pelas substâncias psicoativas.
Pretende-se ainda, por meio da análise comparativa com o código de
ética da Psicologia, estabelecer padrões esperados. Quanto às práticas
exigidas pela profissão, compreender qual dos modelos é mais coerente à ética
profissional.

MATERIAL E MÉTODOS

O presente estudo caracteriza-se como pesquisa bibliográfica. Essa


metodologia é considerada uma caixa de ferramentas para as ciências
humanas. Desenvolvida com base em materiais já elaborados, utiliza-se
principalmente de livros e artigos científicos disponíveis nos bancos de dados,
como Scielo e Revistas eletrônicas conceituadas. Segundo a literatura
consultada, a pesquisa bibliográfica trata-se de um trabalho científico, que tem
como objetivo permitir ao pesquisador contato com os estudos e materiais já
elaborados sobre o tema que será investigado (GIL, 2002).
Acredita-se que a realização de um levantamento histórico a respeito do
tema: “Consumo de substâncias psicoativas” possibilita alcançar o objetivo
proposto nesse investimento de pesquisa. Busca-se recuperar as relações do
uso das consideradas substâncias psicoativas nas primeiras civilizações, um
levantamento de como esse tema é abordado na atualidade, também as
estratégias de cuidado.
Ainda se propõe um levantamento breve sobre a história da Psicologia e
os princípios éticos na atuação do psicólogo, a fim de compreender em que
medida os modelos de cuidado estão relacionados à ética profissional.

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DESENVOLVIMENTO

ASPECTOS HISTÓRICOS DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS

A Organização Mundial da Saúde (OMS,1993) define: “substâncias


psicoativas como toda substância química, natural ou artificial, que modifica os
processos psicológicos ou a atividade mental dos seres humanos” (OMS, 1993,
p.69-82). Segundo o Conselho Regional de Psicologia (2013), a “Droga” faz
parte da experiência humana. Em toda a sociedade e em diferentes épocas,
existem registros da utilização de substâncias psicoativas. São consumidas
para diversas finalidades, como em rituais, atos sagrados, práticas curativas ou
mesmo por razões recreativas e lúdicas.
Nessa perspectiva plural, pode-se notar a existência de relatos sobre o
consumo de alguns tipos de substâncias psicoativas muito antes dos tempos
de Cristo. Por exemplo, a utilização da erva Cannabis, comumente conhecida
como maconha. O uso da Cannabis, com o propósito medicinal, é largamente
utilizado na Europa. No Brasil também há relatos do uso nesse sentido. Seu
uso está relatado desde 2.700 a.C. com esse propósito (BRASIL. 2014). Outro
exemplo é o café. Já foi visto como uma substância psicoativa ilícita, tendo até
mesmo o seu consumo proibido em alguns países, por ter efeitos estimulantes.
Conforme afirma Gorgulho (2012), na Rússia, a população era proibida de
consumir café, e quando consumido havia severas punições, há registros de
mutilação de algumas partes do corpo como o nariz ou orelhas.
Outra bebida muito consumida em nosso país e que detém uma história
e finalidade muito particular, ao ser associada como substância psicoativa, é a
cachaça. Sobre isso, temos que:
A cachaça é conhecida de muito tempo, desde os primeiros momentos
em que se começava a fazer do Brasil o Brasil. O açúcar para adoçar as bocas
dos europeus, como disse o antropólogo Darcy Ribeiro, da amargura, da
escravidão, a cachaça para alterar a consciência, para calar as dores da alma
(BRASIL, 2014, p. 12).
Podemos afirmar que as escolhas das tais substâncias estão na origem
das civilizações, pois fizeram e fazem parte da cultura do ser humano (BRASIL,
2014). O vinho, por exemplo, está inserido em períodos históricos e relatos
bíblicos, comprovando, assim, que a humanidade já desfrutava dos prazeres
das “drogas” sem tornarem-se dependentes delas. Ainda, de modo sutil, o
vinho passou a fazer parte de cerimonias religiosas como a católica, a judaica e
o candomblé (LESSA, 1998).
Existem relatos de que as “drogas”, consideradas alucinógenas, eram
utilizadas para fins de experiências místicas, para curar doenças e também
para pedir proteção dos deuses (ROEHRS et al., 2008). Isto é, substâncias
psicoativas que excitam o sistema psíquico. Assim como as anfetaminas, que
causam um efeito estimulante no indivíduo que a consome. Ambas não se
constituem enquanto um fenômeno recente, conforme aponta Lessa (1998):
As anfetaminas, ao serem lançadas em forma de comprimidos, em 1837,
ficaram conhecidas como a nova maravilha capaz de revigorar as energias e
elevar o estado de humor. Na segunda Guerra Mundial foram legalmente
“utilizadas pela população e pelos soldados para aplacar a fome, a fadiga e o
sono” (LESSA, 1998, p. 1).
É possível observar que as substâncias sintéticas - criadas em

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laboratórios com a finalidade de aumentar as capacidades físicas e psíquicas -


ao serem usadas por soldados em situações precárias de guerra, foram de
grande serventia para aumentar o sentido de alerta e vigia (LESSA 1998). O
ópio, em contrapartida, é uma substância natural, extraído da papoula, cujo
nome científico é papaver somniferum. Houve indícios do cultivo da papoula
datados há 5.000 anos, sendo descrita como a “planta da alegria”. Considerada
um poderoso analgésico, é utilizada em casos de fortes diarreias e doenças
oculares (DUARTE 2005).
Com o avanço da ciência, logo surgiram debates sobre as definições
acerca do descobrimento das “drogas” anestésicas, com o intuito de controlar
dores crônicas ou agudas, usadas muitas vezes como analgésicas. Uma das
contribuições é a de Friedrich Serturner, alemão, assistente de farmacêutico,
que trabalhou no isolamento de princípios ativos do ópio, realizando estudos e
experiências com a morfina. Por volta dos anos de 1820, essa substância se
tornou comercialmente disponível na Europa e na América do Norte. Onde se
popularizou e rapidamente cresceu como analgésico, contribuindo fortemente
para o avanço da medicina (DUARTE, 2005). Atualmente, existem muitas
“drogas” sintéticas com efeito tranquilizante, como as Benzodiazepinas, que
são utilizadas com a finalidade de aliviar tensões e permitir um sono mais
tranquilo. Fizeram e ainda fazem parte da cultura da medicação.
Conforme as informações supracitadas, é possível afirmar que sempre
houve o consumo de substâncias psicoativas. Também se pode afirmar que
esta utilização é/foi feita por todas as classes sociais. Para Roehrs et al.
(2008), o consumo está ligado à cultura e não se conhece nenhuma sociedade
que não tenha recorrido ao seu uso pelas mais diversas finalidades, tratando-
se de uma prática humana e milenar. O mesmo autor ainda afirma que é
incomum, nos dias de hoje, encontrarmos lares que não possuam bebidas
alcoólicas, ou outras variadas substâncias psicoativas como, calmantes,
sedativos, anfetaminas, que são utilizadas como uma visão fragmentada de
sua funcionalidade, denominando-os como “medicamentos prescritos”
(ROEHRS et al., 2008).
A utilização de substâncias psicoativas, durante muito tempo, não esteve
vinculada necessariamente a noção de “doença”. Porém, na
contemporaneidade, alguns fatores fazem com que essa relação fique mais
polissêmica. Há uma polêmica, que divide opiniões sobre: proibição, a
influência da religião, os quesitos da moral, os interesses do sistema capitalista
e até mesmo a finalidade de exercer controle. Como cita Lessa (1998):
No entanto, há uma tendência a enfatizar os perigos e malefícios que a
droga pode trazer, sendo ela associada à marginalidade, á violência, ao crime,
á degradação, dando à “falsa ideia de que está presente só nas classes
inferiores.” (LESSA, 1998, p. 1).
Sendo assim, conforme todas as informações expostas, deveríamos
considerar a historicidade das substâncias psicoativas. É preciso rever as
atuais práticas, buscar compreender a dinâmica e possível transformação
desse cenário. Parte-se então de um princípio e de um olhar diferenciado sobre
esse tema.
Para Fiore (2012), o uso das substâncias em questão também tem sua
importância para humanidade, pois auxiliam no tratamento de doenças, aliviam
a dor, amenizam a ansiedade, inspiram reflexões e suspendem a forma de
conhecer o mundo. Portanto, os seres humanos procuraram e continuarão

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Revista UNINGÁ ISSN 2318-0579

procurando o consumo de substâncias psicoativas.


Conforme apresentado nos relatos históricos, acredita-se que
determinadas substâncias psicoativas foram destinadas para cada grupo
econômico-social. Algumas, consumidas pelas elites sociais, e outras
produzidas para classes sociais mais desfavorecidas. Essa ditocomização
justifica elementos tais como os estereótipos e julgamentos morais, bem como,
certa glamourização em torno de algumas substâncias.
Nesta perspectiva, considera-se de extrema importância a compreensão
acerca de todos os elementos que envolvem esse problema/fenômeno, a fim
de que possam ser construídas saídas possíveis, para àqueles que
estabelecem relações não saudáveis com as substâncias psicoativas.

ESTRATÉGIAS DE CUIDADO

Na atualidade, as expressões de dependência química correspondem a


um fenômeno amplamente discutido. As “drogas” vêm sendo considerado como
um problema social e de saúde pública. Devido a essa concepção, várias
estratégias de cuidados foram criadas.
Dentre as práticas existentes, a estratégia da política proibicionista é
uma das mais antigas implantadas. Efetivou-se por volta de 1961, na época
havia um comprometimento em lutar contra as “drogas”, e para tanto, punir
quem produzisse, vendesse ou consumisse (FIORE 2012). As medidas
proibicionistas são alvo de muitas críticas, por se aliarem ao modelo na qual o
usuário de “drogas” é retirado do convívio social e encarcerado, perdendo
muitas vezes seus vínculos sociais e sua própria identidade. O que pode
causar uma morte social (PRATTA; SANTOS, 2009).
Não obstante às críticas, as pessoas, que faziam o uso abusivo de
substâncias psicoativas e necessitavam de cuidado especial, foram e ainda são
internadas em instituições psiquiátricas, juntamente com internos
diagnosticados com outros transtornos mentais. Gomes e Capponi (2012) citam
que esses métodos são retrógrados, pois além de desrespeitar os avanços já
consolidados em relação aos direitos humanos, estão conectados com muitos
outros interesses que formulam as políticas públicas. Para tanto, há uma luta
no movimento de Reforma Psiquiátrica, que tem como objetivo o fim da
instituição psiquiátrica, enquanto lugar de exclusão social e o isolamento
(JUSTI, 2010). De acordo com Arenari e Dutra (2016), a compreensão desse
fenômeno é importante para auxiliar na construção de políticas públicas
direcionadas a romper o ciclo vicioso da exclusão social.
Na mesma medida em que proíbe a produção, o comércio e o consumo
de drogas, o Estado potencializa um mercado clandestino. Esse movimento de
naturalizar a proibição, como única forma de solucionar a situação, cria novos
problemas (FIORE, 2012). Nesse contexto, deve-se reconhecer que as
“drogas” continuarão a existir. Cabe ao Estado promover controles sociais
necessários para gerar autocuidado, melhorar as formas de prevenção, estas,
ignoradas pelo proibicionismo (FIORE, 2012).
Ao encontro das informações supracitadas, está o estudo de Gorgulho
(2012). O autor afirma que existe a importância de se criar formas preventivas
efetivas que podem, de fato, auxiliar na redução de danos. Por exemplo:
educar a população. “Educar”, é um conceito amplo e discutido, mas, na
perspectiva adotada, educar seria desenvolver, não simplesmente, uma

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população obediente, mas sim crítica. Nesse sentido, uma sociedade educada
teria acesso às futuras formas de intervenção, com o objetivo de reformular os
métodos de prevenção quanto ao consumo de “drogas”.
A compreensão desses aspectos é fundamental para se refletir sobre o
modelo moral e idealizado. O desejo almejando em alcançar uma sociedade
livre de drogas, não condiz com a história da humanidade. Pode-se assim
pensar em estratégias e cuidados menos nocivos e respeitosos à autonomia
dos sujeitos.
Essas novas possibilidades devem ter como principal objetivo a eficácia
de sua ação: reduzir sintomas, pensar no indivíduo em sua totalidade. Portanto,
a título de explicação, nos deteremos a duas perspectivas de “cuidado”, sendo
estas as comunidades terapêuticas e as estratégias de redução de danos.

Comunidade Terapêutica

Historicamente, as comunidades terapêuticas (CT) surgiram com a


finalidade de tratar os soldados ingleses neuróticos, vindos da guerra em 1950.
A observação clínica do psiquiatra inglês, Maxwell Jones, baseia-se em
abordagens educativas, encenações dramáticas e discussões em grupo
(DAMAS 2013). De acordo com Oliveira (2017), esse método inicial de Maxwell
Jones foi logo desviado para o tratamento de “dependentes químicos”,
transformando práticas educativas em “penitências” religiosas, práticas laborais
como pilar de “cura”, partindo de uma ação voltada
á humilhação e a culpa, que, segundo a linha proposta, possibilita a mudança
do sujeito.
A situação nacional sobre CT hoje está incorporada, principalmente, às
igrejas evangélicas e católicas. Em 1968, na cidade de Goiânia, surge a
primeira Comunidade Terapêutica, denominada “Desafio Jovem”, originário de
um movimento religioso (FOSSI; GUARESCHI 2015). Deve-se evidenciar a
abertura de CT para grupos de ajuda, como Alcoólicos Anônimos (AA),
Narcóticos Anônimos (NA) e Amor Exigente, que tem como objetivo
proporcionar um espaço para a troca de sentimentos e experiências (SABINO;
CAZENAVE, 2005).
No Brasil, as CT são geralmente sítios ou fazendas nas zonas rurais e
periferias. Elas têm o objetivo de receber indivíduos com problemas
relacionados às substâncias psicoativas, prevalecendo o modelo religioso, a
prática laboral e ao modelo médico (DAMAS, 2013). Segundo Fossi e
Guareschi (2015), as CT se caracterizam por um modelo residencial, na qual o
usuário do serviço compromete-se com o programa de tratamento da
instituição. O tratamento pode durar de três meses a um ano, nesse período os
usuários são mantidos entre atividades laborais, psicoterapia individual ou em
grupo. Também contam com momentos para a espiritualidade, tendo, por
vezes, nesse processo a família atuando como coparticipante. As CT tem como
finalidade, uma transformação da personalidade, amadurecimento pessoal e
favorece uma possibilidade de melhor reinserção á sociedade. Por meio de
novos valores como: espiritualidade, responsabilidade, solidariedade,
honestidade e amor (SABINO; CAZENAVE 2005).
As CT estão intimamente ligadas á politica de segurança vinculadas ao
Ministério da Justiça. Assim, passam a ser conveniadas, funcionam contando
com os saberes e práticas religiosas de moralização dos sujeitos (FOSSI;

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GUARESCHI 2015). O público alvo, para esses tratamentos, são os indivíduos


que apresentam um padrão mais “grave” de dependência química. Geralmente,
a esses sujeitos, estão associados a problemas de ordem social, pobreza,
menor grau de escolarização, desemprego, problemas com a justiça, etc
(DAMAS 2013).
Tendo como perspectiva basilar Fossi; Guareschi (2015), concorda-se
que de um lado, o Ministério da Saúde, indica a Redução de Danos para
substâncias psicoativas, por outro, o Ministério da Justiça, a abstinência total,
por meio de políticas sobre as drogas (SENAD), tendo como premissa a
internação - inclusive a de longa duração, em comunidades terapêuticas.
Partindo dessa premissa, um relatório recente do Conselho Federal de
Psicologia indagou problemas graves em muitas comunidades, inclusive
tortura. Ademais, em inspeções realizadas, constataram-se diversas CT
trabalhando em sistema carcerário, na qual as pessoas são submetidas à
humilhação e tortura. Poucos profissionais da saúde, como: médicos,
psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, foram registrados, o que acabou
por desmoralizar ainda mais as CT (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
2015).
Entretanto, é importante pontuar que, essa metodologia de tratamento
para a dependência de substâncias psicoativas, requer uma atenção voltada
para o “isolamento” do mundo. Partindo ainda do pressuposto de que no
momento de saída da CT, o sujeito possa ter uma possível recaída, devido á
desadaptação social - já que a abstinência ocorreu em um local de privação
tanto da substância, quanto do grupo social (SABINO; CAZENAVE 2005).
Ao encontro está Fossi e Guareschi (2015), afirmando que as
características das CT, podem se relacionar com o modelo manicomial. O
surgimento dessas instituições se apoia na compreensão que a exclusão está
justificada pela necessidade de um local “protegido”, com regras, horários para
as atividades. Embora as CT tenham crescido de forma acelerada, existem
poucas evidências científicas sobre a eficácia e o modo de operação destes
métodos (DAMAS, 2013).
Portanto, as CT caracterizam-se por serem instituições totais, definidas
como um local de residência e trabalho. A partir do momento que segregam
uma grande parte dos indivíduos, todos com situações semelhantes, separados
da sociedade por um período de tempo e levam uma vida formalmente
administrada (GOFFMAN, 1961).
Observa-se que para esse tratamento de instituição fechada, é inevitável
o “choque cultural”, na qual se deve adquirir o sistema cultural e de valores da
própria instituição, quando adentram nas CT (DAMAS, 2013). Embasada em
um modelo moral, que dificulta o desenvolvimento da singularidade e
potencialidade dos internos. Consequência desse fato é a possível dificuldade
desse indivíduo ter uma recuperação duradoura, já que não há distinção entre
o uso, abuso e dependência de Substâncias Psicoativas. Por fim, o mesmo
programa terapêutico é aplicado a todos os usuários das instituições,
homogeneizando os problemas e necessidades apresentados pelos sujeitos.
(FOSSI; GUARESCHI 2015).
Desta forma, as comunidades terapêuticas utilizam-se de métodos de
recolhimento prisional - podem ser comparados com manicômios. O movimento
de Reforma Psiquiátrica mostrou ser desnecessário e ineficiente, além de
poder configurar-se como doutrinação religiosa e perda de identidade devido

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ao confinamento. Portanto, trata-se de um modelo rígido e ultrapassado para


características do mundo contemporâneo.

Reduções de Danos

A estratégia de “Redução de Danos” passou a ser considerada no Brasil


a partir da década de 1990. Seu inicio foi marcado com muita polêmica. Para
Silveira et al (2003) foi em Santos, no estado de São Paulo, que se deu início
ao uso das estratégias de redução de danos, onde se concentrava grande
parte dos casos de AIDS, decorrentes do uso de drogas injetáveis. A iniciativa
foi do médico sanitarista David Capistrano, que realizou programas de
distribuição de seringas. Nessa época, muitas pessoas foram processadas. Os
que lutavam pela Redução de Danos, eram julgados da mesma forma que
aqueles que cometiam o crime de tráfico de drogas (PETUCO, 2012).
Essas estratégias têm conseguido se manter e se solidificar. Foram
desenvolvidas a partir de ações de prevenção contra AIDS, ampliando e
englobando o conceito de vulnerabilidade. A iniciativa vem de movimentos
sociais, que se organizaram com o objetivo de promover ações voltadas para a
prevenção de comportamento de risco (MACHADO; BOARINI 2013). Ao
encontro dessa perspectiva, Petuco (2012) afirma que existem várias formas
para definir o que é “Redução de Danos”. É, portanto, construir outro olhar,
novas formas de intervenção comprometidas a respeitar as diferentes formas
de ser e estar no mundo. Eminentemente, é a promoção da saúde.
Essa abordagem se constitui em uma estratégia conjunta com o usuário.
Promovendo o autocuidado, minimizando o risco á saúde, concebendo
estratégias práticas, que o próprio indivíduo possa utilizar no seu cotidiano. É
construída de acordo com o interesse e experiência do próprio usuário
(SILVEIRA; RODRIGUES 2013). No entanto, para que ocorra de forma
completa, é necessário o estabelecimento de um vínculo e de diálogo entre
executores e os usuários dessas ações. Não há uma estratégia
preestabelecida que possa ser classificada como redução de danos, mas, sim
criada de acordo com a escolha e interesses individual (MACHADO; BOARINI
2013). Afirma ainda o mesmo autor, que deve delimitar qual o dano que se
pretende minimizar, a partir da relação entre o indivíduo que faz o uso da
“droga”, a substância propriamente dita e dos danos a ela associados
(MACHADO; BOARINI 2013).
Vivemos em um período de intensas reformulações de políticas públicas,
estratégias e ações voltadas para redução de danos. Em relação ao problema
do uso abusivo do álcool, criaram-se estratégias como instruções a garçons
sobre o consumo seguro de álcool, fornecimento gratuito de água potável e
campanhas “se for dirigir não beba” (MACHADO; BORINI 2013). Para Petuco
(2012), é uma nova forma de política pública centrada no sujeito, com o intuito
de promoção de saúde e cidadania, respeitando o princípio de que a saúde é
um direito de todos. Em relação às ações voltadas para o crack, incluem
confecções de cachimbos, evitando recipientes contaminados, protetores
labiais, projetos sociais que envolvam arte, trabalho grupal e informações
educacionais sobre doenças associadas ao seu consumo (MACHADO; BORINI
2013).
Cruz et al. (2003) admitem que o ideal seria que os indivíduos não
fizessem o uso, contanto não sendo isso possível, que, ao fazerem, façam-no

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com o menor risco possível. Em contrapartida, para Schenker e Minayo (2005)


a questão não é a “droga” em si, e sim, a relação que o indivíduo estabelece
com ela, essa influência é formada pelo universo de interação. Para tanto, não
tem como objetivo uma sociedade “livre de drogas”, mas parte de ações que
diminuam os danos provocados sobre o indivíduo e para a sociedade (CRUZ et
al., 2003).
As estratégias foram incorporadas na legislação brasileira de redução de
danos. São reguladas pela Portaria nº 1.028 do Ministério da Saúde
São conteúdos necessários das ações de informação, educação e
aconselhamento: I - informação sobre os possíveis riscos e danos relacionados
ao consumo de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência; II –
desestímulos ao compartilhamento de instrumentos utilizados para o consumo
de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência; III – orientação
sobre prevenção e conduta em caso de intoxicação aguda (overdose) (BRASIL,
2005, p.1).
Assim, a estratégia de redução de danos ganha visibilidade, por meio
da política do Ministério da Saúde para atenção integral aos usuários. Para
Silveira e Rodrigues (2013), as ações partem de um contexto sociocultural e
econômico, os profissionais que trabalham - a partir da ótica de Redução de
danos - procuram compreender a hierarquizar os riscos que transpassam as
práticas do uso de substâncias psicoativas. Partem de uma política que se
alinha aos pressupostos dos direitos aos usuários. Para que assim seja
garantido o devido funcionamento do serviço, regularizado também na Portaria
nº 3.088 Brasil (2011), na qual se devem respeitar os direitos humanos, garantir
autonomia e a liberdade das pessoas, combater os estigmas e preconceitos,
ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional.
De acordo com Silveira e Rodrigues (2013), o objetivo é possibilitar que
cada pessoa perceba o seu movimento e possa se recolocar diante disso,
construindo novas possibilidades de cuidado ao promover saúde.
Nessa perspectiva a estratégia de Redução de danos passa a ser
elaborada a partir de fatos e não partilha moral ou crenças. Utiliza-se de
medidas para diminuir os danos causados pelo uso de substâncias psicoativas,
mesmo que o indivíduo não pretende ou não consegue interromper tais
substâncias, portanto, não tem como prioridade, necessariamente, a
abstinência. Trata-se de uma abordagem realista, que fortalece a autonomia,
fomenta a responsabilidade individual e tem o intuito de ser isenta de
julgamentos.

RELAÇÃO ENTRE A PSICOLOGIA E ESTRATÉGIA DE CUIDADO

Historicamente a profissão de psicólogo esteve vinculada à elite. O


trabalho voltado para área clínica já foi significado como sinal de status social,
pelo acesso restrito as pessoas de classe média ou alta (PEREIRA; NETO
2003). Posteriormente, conforme citato por Pereira e Neto (2003), em
decorrência de funções legais, documentadas por leis, deu-se ao psicólogo a
possibilidade de trabalhar em diferentes campos. Dentre eles: organizações,
escolas, o campo para atividades sociais e atividades jurídicas. Portanto,
podemos considerar o psicólogo hoje como um profissional vinculado á
sociedade, na qual se deve desenvolver práticas que respondem às áreas
emergentes, atendendo indivíduos em situação de vulnerabilidade, sendo

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assim, um compromisso social na qual as políticas públicas estão inseridas


(CONSTANTINO, 2010).
Para Pereira e Neto (2003), para que uma ação possa ser reconhecida
como uma atividade profissional é preciso que organize seus interesses em
associações profissionais. Também que padronize uma conduta dos deveres,
responsabilidades, por meio de fiscalizações das condutas dos membros, entre
os quais habitualmente é denominado de Código de Ética Profissional. A
Psicologia, como qualquer outra profissão, constitui e define-se a partir de um
corpo de práticas. Práticas que buscam atender as demandas sociais, visando
um padrão técnico e normas éticas que garantam uma relação adequada do
profissional para com a sociedade como um todo.
Tendo como missão primordial assegurar um padrão de conduta, onde
estão explícitos os direitos, deveres que fortaleça o reconhecimento social
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2005).
Código este que entrou em vigor nos meados de 1975. A partir de então,
a profissão de psicologia passou a ser organizada e estabelecida, movimentou-
se a ter um conhecimento próprio e reconhecimento no mercado de trabalho,
percorreu várias reformulações (PEREIRA; NETO 2003). Sendo assim, os
princípios do Código de Ética, em sua última versão (2005), trazem que o
psicólogo deve basear o seu trabalho: no respeito, na promoção de
liberdade/da dignidade/da igualdade/da autonomia e da integridade do ser
humano. Ele, o profissional, deve se apoiar em princípios da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Além de promover a saúde e a qualidade de
vida, deve contribuir para a eliminação de quaisquer prática de negligência,
discriminação, exploração e violência, crueldade e opressão (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2005).
Para isso, a estratégia de cuidado deve seguir um planejamento,
estabelecer os objetivos e metas do tratamento, reconhecer a situação de
risco, criar estratégias de enfrentamento e aprender novas habilidades para
lidar com as fissuras (SILVA, 2012). Contudo, é importante o profissional
construir um diálogo entre o saber popular e o saber científico, manter por meio
de um contínuo aprimoramento teórico, não deve “patologizar” ou categorizar o
usuário, mas proporcionar um tratamento para que o sujeito tenha a
possibilidade de escolher aquilo que acredita ser melhor pra si, intervir e utilizar
de seus recursos teóricos e técnicos para esclarecer as alternativas. Também,
para possíveis consequências, contribuir para a prevenção e desenvolvimento
da autonomia (CONSTANTINO; 2010).
Portanto, segundo o Conselho Federal de Psicologia (2005), é vedado a
utilização de práticas psicológicas que violem os direitos dos cidadãos, como:
instrumentos de castigo, tortura ou qualquer forma de discriminação ou
violência. Existe incompatibilidade da prática profissional com algumas
estratégias de cuidados. As sociedades mudam, transformam-se e exigem uma
reflexão contínua sobre tais práticas.

DISCUSSÃO

Diante desse artigo é possível esclarecer, a partir de um resgate


histórico, a dinâmica da relação entre indivíduo, sociedade e substâncias
psicoativas. Observou-se que as mesmas foram usadas conforme época e
cultura. Sendo considerada no contexto atual como um problema de saúde

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pública, na qual utiliza-se de diversas estratégias de cuidado, como as C.T e as


R.D, perspectivas citadas no presente artigo. Durante muito tempo utilizou-se e
ainda utiliza-se de políticas proibicionistas, que estão relacionadas às
comunidades terapêuticas. São métodos que se constituem em instituições,
manicômios para a “recuperação” do usuário. Nessa linha há um confronto
entra a prática ética do profissional de psicologia, por negligenciar e patologizar
o indivíduo. As teorias que abordam a relação entre poder e conhecimento são
usadas como uma forma de controle social por meio de instituições sociais.
São considerados atos cruéis contra o usuário.
Segundo Xaud (1999), o agravante do funcionamento dessas
instituições, é que passam a ser um verdadeiro depósito humano. Elas
trabalham com camuflagem, discriminando, para esconder o problema dos
olhos da sociedade. Preferem ressaltar somente o problema da conduta anti-
social, como se o indivíduo pudesse ser e existir sozinho no mundo. Ao
contrário de promover o crescimento, o desenvolvimento social e pessoal,
promovem o isolamento, ainda que criados com as melhores intenções. É
neste movimento dialético que faz necessário ressaltar a estratégia de R.D.
Esse diferente propósito valoriza o autocuidado, reconhecendo que é
impossível superar os problemas que o consumo de “drogas” inevitavelmente
pode causar, percebendo com mais facilidade que nenhuma medida preventiva
será mais eficiente do que o fortalecimento de laços sociais (FIORE, 2012).
Portanto, muitos são os desafios a se enfrentar tanto nas C.T como nas
R.D, porém o profissional deve pautar dos princípios do código de ética que
estruturam a profissão, tendo em vista que, as sociedades mudam, as
profissões se transformam e isso exige também uma reflexão contínua sobre o
próprio código de ética que nos orienta (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, 2005). Conforme citado por Xaud (1999), esse processo exige
novos olhares, novas crenças, novas práticas, mudança na cultura de
atendimento. O desafio não é mudar o discurso, mas transformar o agir. É
adotar uma postura coerente e abandonar ideias de caráter moralista.
Despedir-se do modelo preconceituoso, de velhas práticas, contando nesse
processo, acima de tudo com uma equipe multidisciplinar.

CONCLUSÃO

Nessa reflexão foi possível constatar que “Substâncias Psicoativas”,


incluindo café, maconha, tabaco, lsd, Benzodiazepinas, entre outras, em algum
lugar do mundo foram ou ainda são proibidas. Esse artigo se elabora em torno
de problemas não somente relacionados ao uso de substâncias psicoativas,
mas também de politicas públicas e estratégias de cuidados para com o
usuário. Faz-se necessário a compreensão da relação entre substância,
indivíduo e sociedade, afim de que investimentos públicos sejam feitos nas
diversas áreas envolvidas como saúde, assistência social, educação e
trabalho. O que só é possível por meio de reflexão sobre os aspectos teóricos
partindo de uma conduta ética.
São encontrados muitos problemas referentes às estratégias de
cuidados. Deve-se permitir um planejamento terapêutico dentro de uma
perspectiva individualizada de evolução contínua, trabalhar a partir de uma
lógica multiprofissional, na qual tem como objetivo o desenvolvimento de
autonomia e potencialidade do indivíduo. Assim, não ficar presos aos velhos

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métodos de lidar com os problemas associados ao uso de “drogas”, que


segregam, estigmatizam e violentam os usuários, e sim, com o intuito de
oferecer um trabalho digno, práticas inovadoras, por respeitar os direitos
humanos, partir de uma ideia de acolhimento total, intervenção psicológica.
Como parte da equipe interdisciplinar, desempenhar um papel na promoção de
uma nova cultura de atendimento, um novo pensar, um novo fazer, envolvendo
mudanças de crenças e valores.
Portanto, não pensar que está “tudo liberado” ou “tudo proibido” em
termos de ética e moral. É necessário buscar e respeitar as escolhas e o direito
do indivíduo. Para a psicologia é importante que o psicólogo tenha uma
conduta de acordo com os princípios do Código de Ética, que não priorizem
crenças ou valores pessoais. Somente assim, terá uma postura profissional
frente os usuários, a equipe de trabalho e situações cotidianas, cujo objetivo é
garantir coerência profissional.

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DOI: 10.1590/1413-81232020252.09182018 595

Atenção à Crise em saúde mental: centralização e

opinião opinion
descentralização das práticas

Attention to the Crisis in mental health: centralization and


decentralization of practices

Marcelo Kimati Dias (https://orcid.org/0000-0001-9190-8222) 1


Sabrina Helena Ferigato (https://orcid.org/0000-0001-7567-7225) 2
Amanda Dourado Souza Akahosi Fernandes (https://orcid.org/0000-0001-8006-8117) 2

Abstract This article focuses on the attention to Resumo Este artigo desenvolve uma reflexão da
the crisis in mental health within the scope of Bra- atenção às situações de crise em saúde mental no
zilian public health policies. It sets out to show the âmbito das políticas públicas de saúde brasileiras.
theoretical and practical disputes of significance Tem como objetivo analisar as disputas de senti-
about the notions of crisis that unfold in different do teóricas e práticas sobre a noção de crise que
models of care in situations of urgency and emer- se desdobram em diferentes modelos de atenção
gency in mental health, as well as in challenges to às situações de urgência e emergência em saúde
the effectiveness of the care process in the health mental, bem como em desafios para a efetivação
network. The survey began with a descriptive and do processo de cuidado em rede. Partimos de um
exploratory study, with emphasis on the study of estudo exploratório, com ênfase na análise de
protocols and institutional documents in mental protocolos e documentos institucionais em saúde
health, from the sociotechnical standpoint. As an mental, à luz da abordagem sociotécnica. Como
original contribution of this article, the main so- contribuição original deste artigo, foram elen-
cio-technical dichotomies that emerged from the cadas as principais dicotomias sociotécnicas que
processes of attention to the crisis in Brazil (in the emergem dos processos de atenção à crise no Brasil
use of terminologies, clinical practice and atten- (no uso das terminologias, na prática clínica, na
tion models, the main challenges for consolidation conformação dos modelos de atenção em rede e em
of network care and in the vacancy regulation suas estratégias de regulação de vagas).
strategies) were highlighted. Palavras-chave Saúde mental, Saúde coletiva,
Key words Mental health, Public health, Urgen- Urgência, Emergências
cy, Emergencies

1
Departamento de Saúde
Coletiva, Universidade
Federal do Paraná. R. XV
de Novembro 1299, Centro.
80060-000 Curitiba PR
Brasil. kimati@hotmail.com
2
Departamento de Terapia
Ocupacional, Universidade
Federal de São Carlos. São
Carlos SP Brasil.
596
Dias MK et al.

Introdução Diante disso, o tema atenção à crise é uma área


com contradições: por um lado a saúde mental
Atenção à crise em saúde mental é o nome dado é estruturada a partir de referenciais norteados
a um conjunto de práticas de cuidado desenvol- pela inclusão, vínculo, conhecimento da história
vidas no âmbito do modelo comunitário de aten- e contextos do sujeito, valorização dos aspectos
ção e se desenvolve junto a usuários em situações subjetivos e respeito à temporalidade da crise5.
consideradas agudas e graves1,2. Na literatura na- Por outro lado, no setor de urgência predomi-
cional, o termo e suas práticas ganham impor- nam a objetividade e o pragmatismo de interven-
tância na medida em que a expansão da rede de ções pontuais, incluindo a otimização do tempo
saúde mental e a diminuição de leitos psiquiátri- gasto e de equipamentos para a intervenção. Da
cos redirecionaram as práticas assistenciais. Nes- mesma forma, a área de urgência e emergência
te contexto, a atenção à crise ganha significado desenvolve a formalização técnica de suas prá-
especial na medida em que propõe novas termi- ticas, especialmente na forma de protocolos6. Já
nologias, estratégias, mudanças na organização na abordagem psicossocial, prioriza-se a singu-
institucional e nas práticas de cuidados em con- laridade das intervenções a partir da avaliação de
traposição a um conjunto de discursos e práticas cada caso.
produzidos e abordados no interior de hospitais No Brasil, a existência de concepções antagô-
psiquiátricos. nicas que correspondem ao mesmo fenômeno,
A crise em saúde mental corresponde a casos coloca em evidência as disputas de sentido teó-
psiquiátricos considerados agudos, com referên- ricas e das práticas não só sobre a noção de cri-
cia na intensidade, frequência e gravidade de sin- se, mas sobre as diferentes abordagens em saúde
tomas em uma correspondência histórica entre mental. Um dos dispositivos capazes de eviden-
gravidade, periculosidade e internação psiqui- ciar essas disputas são os protocolos e documen-
átrica3. Esta perspectiva é hegemônica ainda no tos institucionais que servem como instrumentos
meio biomédico4. Neste sentido, o caráter agudo, norteadores de práticas de gestão e de cuidado
a noção de risco, necessidade de intervenção ime- em saúde mental.
diata e gravidade definem o espaço institucional Nesse artigo de opinião, a partir de um estu-
de cuidado. A maior parte dos quadros entendi- do reflexivo sobre esses documentos, procuramos
dos hoje como crise eram classificados como re- discutir o que denominamos como dicotomias
ferência médica, como urgência ou emergências sociotécnicas a serem superadas para o fortale-
psiquiátricas. Entretanto, há divergências entre cimento da rede de atenção psicossocial (RAPS),
estes termos. Atualmente, predomina o referen- e apresentar como essas dicotomias podem se re-
cial de que nem toda crise é uma urgência ou fletir na produção de diferentes modelos coexis-
emergência psiquiátrica e não pode ser manejada tentes de atenção à crise.
de forma acrítica com as mesmas tecnologias de
cuidado5.
Ainda com referência a conceituação biomé- Metodologia
dica, emergência é definida como a constatação
de condições de agravo à saúde que implicam em Este estudo foi elaborado a partir de reflexões
risco de morte ou sofrimento intenso, lesões irre- dos autores fundamentados em um estudo ex-
paráveis, normalmente caracterizadas por decla- ploratório de protocolos discutidos à luz de pro-
ração do médico assistente. Estes conceitos, no duções científicas no campo da saúde mental e
entanto, não distinguem eventos relacionados à coletiva brasileiras. Foram utilizados 2 diferentes
saúde mental e demais situações emergenciais, tipos de documentos: 1) protocolos de centrais
como traumas e doenças infectocontagiosas3. Em regulatórias e de serviços de atendimento móvel
publicação anterior4, discutimos como o termo à urgência (SAMU) que contivessem fluxos rela-
emergência ou urgência têm algumas aproxima- cionados à saúde mental. 2) protocolos relacio-
ções com a noção de crise sendo, entretanto, ter- nados à saúde mental de municípios que estabe-
mos insuficientes para incorporar todas as situa- lecem fluxos, serviços de referência em atenção à
ções denominadas como tal. A distinção está no crise. Todas as publicações identificadas haviam
fato de urgência e emergência terem como base sido escritas e divulgadas por órgãos oficiais e
a noção temporal de risco, ao contrário de crise. constituíam normas do funcionamento da rede
Definições de urgência e de emergência mé- pública de saúde. Os protocolos foram obtidos a
dica e no setor saúde em geral têm referenciais partir da procura sistematizada em sites oficiais
diferentes daqueles utilizados na saúde mental. de governos estaduais e municipais das capitais
597

Ciência & Saúde Coletiva, 25(2):595-602, 2020


brasileiras, assim como de municípios presentes ços como locais de atenção à crise, mas mediante
em regiões metropolitanas e municípios de gran- apoio técnico de serviços de urgência, bem arti-
de porte. Os documentos encontrados foram pu- culados com o restante da rede. Uma segunda ca-
blicados entre os anos de 2006 a 2016. A escolha tegoria de municípios, como o caso de Ribeirão
dos protocolos como documentos de eleição se Preto, Estado do Paraná e Florianópolis, é clara
deu por estes conterem informações oficiais que em estabelecer critérios para internação psiquiá-
se traduzem em normas operacionais. Essas nor- trica, com base exclusiva no quadro clínico iden-
mas induzem um conjunto de técnicas em detri- tificado. Uma terceira categoria, como o Muni-
mento de outras, produzindo impacto direto no cípio de Fortaleza, destaca diretrizes a partir de
processo de trabalho e de cuidado, com efeitos referenciais clínicos, mas não indica para a rede
sociais, clínicos e políticos específicos. Protocolos substitutiva, o que pode apontar para uma desar-
definem, por exemplo, quais as características do ticulação entre as redes.
usuário para que se defina seu acesso a um deter- Os documentos analisados apresentaram um
minado espaço institucional de cuidado na crise, contraste discursivo visível: ou adotavam uma
estipulam parâmetros de hospitalização e, assim, terminologia que remetia continuamente à re-
apresentam um retrato do funcionamento for- forma psiquiátrica e seus princípios norteado-
mal da rede, isto é, qual a atribuição dada a cada res ou adotavam uma terminologia pautada na
dispositivo, por exemplo, a partir da organização descrição diagnóstica psiquiátrica, envolvendo,
dos serviços, da concepção de saúde mental e de em alguns casos, a descrição de critérios diagnós-
um projeto de governo. ticos e estratégia de medicalização. No caso dos
Os documentos estudados estão no Quadro 1. protocolos do SAMU, com exceção de Curitiba,
Nossas análises se deram à luz da abordagem há sempre a referência do tipo de unidade móvel
sóciotecnica que, refere-se à inter-relação dos utilizada na ocorrência.
aspectos sociais e técnicos de uma organização7. Em relação ao processo de trabalho e a arti-
A sóciotécnica pode ser vista como uma decom- culação em rede, os municípios que apresentam
posição analítica (com posterior integração) de uma rede de saúde mental com serviços 24 horas
processos produtivos em seus elementos consti- (Curitiba e Belo Horizonte) apresentam formu-
tutivos8. Ou seja, nesse caso específico, utilizamos lação mais detalhada em relação à articulação en-
dessa abordagem para desvendar os requisitos e tre serviços. Isto se retrata no detalhamento dado
enunciados dos regimes tecnológicos e técnicos aos critérios de encaminhamento, à definição do
de intervenção em saúde mental e as possíveis tempo de permanência no serviço, finalidade da
influências destes na conformação dos modelos abordagem. Estes municípios, ainda, fazem uma
de atenção à crise, partindo do pressuposto que referência constante à importância do desen-
a eficácia (ou ineficácia) social da rede de aten- volvimento de projetos terapêuticos singulares,
ção às urgências e emergências em saúde mental como norteadores das práticas de um cuidado
sofre influência direta dos requisitos e protocolos interdisciplinar.
do seu sistema técnico-tecnológico, ao mesmo A caracterização dos documentos e, conse-
tempo em que pode explicitar suas contradições. quentemente, das redes de saúde mental que são
retratadas por eles, apresentam diferenciações
que estabelecem relação entre rede e diretrizes
Discussão apontadas nos protocolos. Este é o caso da pre-
sença de serviços de funcionamento 24 horas.
Rede CAPS 24 horas e regulação Municípios que os adotaram como modelo ins-
titucional de atenção tendem a realizar ações de
Os protocolos dos municípios analisados se atendimento à crise em um número maior de
diferenciaram em relação ao (1) aparato estrutu- pontos de cuidado e com referências interdisci-
ral para o cuidado, (2) a terminologia técnica e plinares. Este é o caso de Curitiba, que dispõe de
referenciais teóricos de base, (3) ao processo de serviço de psiquiatria que se desloca até os CAPS
trabalho e articulação em rede; e (4) o papel da para prestar apoio em situações de crise. Entre-
regulação das vagas. tanto, serviços comunitários de funcionamento
No item 1, a presença de serviços comuni- 24 horas são raros. Desde 2003 houve um avanço
tários de funcionamento 24 horas (CAPS-III) é lento na abertura de CAPS-III, que dá às redes de
um diferencial importante. Dois dos protocolos atenção mais recursos (humanos, espaços insti-
analisados, de Curitiba e Belo Horizonte, que tucionais, disponibilidade de leitos) para o aten-
possuem rede de CAPS III, entendem estes espa- dimento de usuários em crise. Entre 2002 e 2014,
598
Dias MK et al.

Quadro 1. Documentos.
Autor e ano de publicação Título e Município de Origem
1 Secretaria Municipal de Saúde Belo Horizonte Política de Saúde mental de Belo Horizonte
(2008)
2 Prefeitura Municipal de Curitiba (2016) A Gestão Participativa na Saúde de Curitiba
3 Secretaria Municipal de Saúde de Divinópolis- Protocolo Técnico Operacional de Regulação em
MG- Diretoria de Regulação de Saúde (2015) Saúde- SUS Divinópolis
4 Secretaria Municipal de Saúde de Colombo-PR Protocolo de Saúde Mental
(2011)
5 Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza- CE Protocolos de Regulação das Urgências- Normas de
(2016) Conduta Técnica e Gestora Para Profissionais do SAMU
6 Prefeitura de Londrina-PR, Núcleo de Estudos Protocolo de Saúde Mental de Londrina PR
de Saúde Coletiva (UEL)
7 Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis Protocolo de Atenção em Saúde Mental
SC (2010)
8 Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Protocolos do Programa de saúde mental
Preto (Alexandre F. Souza Cruz, coord de saúde
mental) 2016
09 Secretaria De Estado De Saúde De Minas Gerais Atenção em Saúde Mental
Belo Horizonte, 2006
10 Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (2006) Crise e Urgência em Saúde Mental
11 Secretaria Municipal de Curitiba, Departamento Protocolo de Atendimento Inicial ao Paciente
de Urgência e Emergência (2014) Psiquiatrico da Central de Regulação SAMU 192
12 Secretaria Municipal de Betim (2006) Protocolo De AssistênciaEm Saúde Mental - Agitação
Psicomotora E Abstinência Alcoólica

o número de CAPS no país cresceu de 208 para o conhecimento do modo de funcionamento da


2209, em contraste com a expansão de CAPS III, rede de saúde mental é valorizado.
de funcionamento 24 horas; para 38, em 2006; Outro aspecto importante a ser considerado é
para 85 unidades, em 20149. Outro elemento de- o fato da Política Nacional de Atenção às Urgên-
finidor das práticas de atenção à crise é o caráter cias não considerar a especificidade das deman-
da regulação de leitos psiquiátricos, definida pela das psiquiátricas, colocando-as no mesmo refe-
portaria 1899, de 2008, e pela portaria 148, de rencial de urgências clínicas5. Na Portaria 2048/
2012. GM (2002), que regulamenta o atendimento das
Num modelo de atenção à crise pautada na urgências e emergências, a urgência psiquiátrica
baixa interlocução entre as redes de saúde mental é entendida como uma das atribuições do SAMU
e urgência, a regulação tem o papel de distribuir em conjunto com a rede saúde mental, e, se ne-
vagas de internação em hospitais psiquiátricos cessário, a polícia e o corpo de bombeiros.
com critérios predominantemente biomédicos. Além das diferenças pautadas pela assistên-
Neste cenário, a terminologia para internação cia às urgências e emergências de forma geral e
passa por noções de periculosidade associadas as da saúde mental em específico, é importante
aos sintomas e por alguns sintomas chave que também a diferenciação entre as categorias psi-
são associados diretamente à internação psiquiá- quiátricas e aquelas incorporadas à saúde mental
trica (“risco de suicídio”, “agitação psicomotora”, no âmbito da reforma psiquiátrica. Esta diferen-
“delírios e alucinações”), presentes em boa parte ça diz respeito em especial à referência etiológica
dos protocolos. Esta regulação tem papel norma- impressa na noção de crise.
tivo, independente de processos de interlocução Autores apontam para o fato de que, para a
ou conhecimento prévio do funcionamento da psiquiatria tradicional, as crises implicam na de-
rede de saúde mental. sestabilização de um sistema aberto, que deixa
No segundo modelo descrito, a regulação de ter capacidade de manter sua homeostase2. A
negocia acesso de usuários a diferentes serviços, noção geral de crise implica em desequilíbrio e
preferencialmente comunitários, sendo o regula- as ações da psiquiatria clássica seriam no sentido
dor um interlocutor entre os serviços, e para tal, de resgate do equilíbrio, a intervenção no sujeito
599

Ciência & Saúde Coletiva, 25(2):595-602, 2020


individual com a utilização de fármacos e con- à crise, realizada por um serviço especializado,
tenção ou sobre o meio, tirando-o do convívio que por este motivo apresenta maior concen-
social e em práticas de internação em ambientes tração de poder, menor articulação com a rede
fechados3. Deste modo, as unidades de urgência e nele o conhecimento biomédico é hegemônico.
psiquiátrica constituiriam aparatos de normali- Esta caracterização implica em abordagens vol-
zação, contenção mecânica e/ou medicamentosa tadas a um conjunto de perfis clínicos e aborda-
e isolamento social. gens voltadas à estabilização. Este modelo tem
Além disso, a psiquiatria hegemônica, desde em prontos-socorros de psiquiatria e no próprio
o advento dos manuais diagnósticos, rejeita o hospital psiquiátrico as principais referências à
referencial etiológico como definidor de catego- atenção em situações de crise. O fluxograma de
rias médicas. Desde o início da década de 1980, atendimento a psicóticos em Ribeirão Preto é
a psiquiatria assume um referencial que ela pró- um exemplo deste modelo, na medida em que o
pria considera “ateórica”, pautada na definição espaço de cuidado (incluindo a hospitalização) é
de categorias por consistência epidemiológica, definido a partir da identificação de sintomas e
afastando-se de modelos teóricos explicativos10. ao resultado a abordagens médicas anteriores. Da
Neste contexto, urgências psiquiátricas seriam mesma forma, o fluxograma de atendimento do
definidas a partir de referencial descritivo, não Estado do Paraná define critérios de internação a
etiológico. partir de referenciais clínicos.
Numa segunda categoria, estão redes que
Atenção à Crise e Rede de Saúde dispõem de dispositivos de atenção centraliza-
dos, mas com grande capacidade de articulação
Na contramão desse processo, na concepção com o restante da rede. Este arranjo permite que
de crise a partir de um modelo etiológico de as práticas desenvolvidas em outros serviços do
base psicossocial, coexistem as situações de ris- município (em alguns casos os dispositivos mais
co e vulnerabilidade como determinantes para territorializados como os CAPS) sejam consi-
o adoecimento e possível agravo. Neste para- deradas, tornando as abordagens articuladas e
digma, o conceito de redes de atenção em saú- complementares. Algumas experiências nacio-
de vem sendo desenvolvido como uma crítica a nais, como o SUP (Serviço de Urgências Psi-
sistemas fragmentados, que estabelecem relações quiátricas), em Belo Horizonte, consideradas
hierarquizadas entre si, num conjunto incapaz de retaguardas especializadas em atenção à crise,
acompanhar as transformações epidemiológicas encontram-se articuladas com outros serviços,
ocorridas no país no último século11. A discussão têm período de permanência muito curto e atu-
acerca da centralidade (ser realizado num dispo- am de forma referenciada no Projeto Terapêu-
sitivo específico) ou não da atenção à crise per- tico Singular (PTS), desenvolvido pelo serviço
meia o desenvolvimento deste conceito. Uma das comunitário ao qual o usuário é vinculado. Im-
características das redes de atenção é ser poliár- portante salientar que, ainda que este modelo em
quica, isto é, com os diferentes pontos de atenção, geral adote um modo de produção que pode ser
estabelecendo entre si uma relação horizontal, o caracterizado como taylorista12, isto não implica
que contraria uma das características de sistemas no comprometimento da rede como um todo, o
excessivamente hierarquizados e com o investi- que depende também do quanto este serviço atua
mento de recursos ocorrendo predominante- “em rede”, isto é, seu grau de articulação com os
mente na rede hospitalar. Outra característica demais serviços.
é a relação que esta rede de serviços estabelece Um terceiro modelo, hipotético e convergen-
com o território ao qual é referenciada, uma vez te ao conceito de rede substitutiva, parte do re-
que este referencial pressupõe uma capacidade de ferencial de que o sistema como um todo deve
adequação das práticas de cuidado às caracterís- realizar cuidado à crise, ampliando o “lugar da
ticas da população de referência11. urgência” para uma rede de atenção à crise (e
A partir dos achados na análise dos docu- que inclui diferentes serviços da rede de atenção
mentos, foi possível propor uma tipologia na saúde/intersetorial e de suporte dos usuários).
qual são diferenciadas 3 categorias principais de Na medida em que o espaço institucional histo-
organização da rede em função do atendimento ricamente ligado a situações de crise é substitu-
à crise, a partir do binômio centralização x não ído por um conjunto de serviços em redes, esta
centralização. O primeiro deles é aquele no qual forma de atenção é diluída em diferentes espa-
o atendimento centralizado é realizado em um ços, em uma pluralidade de intervenções. Mais
dispositivo específico. Neste modelo, é a atenção do que isso, as abordagens devem ser norteadas
600
Dias MK et al.

por um projeto que preveja as situações de crise, cia/emergências se caracterizam como redes pa-
apontando para formas diferentes de abordagens ralelas13,14. Apresentam fluxos próprios, lógica de
com corresponsabilização entre serviços especia- condução própria e terminologia própria. Por
lizados, enfermarias de saúde mental em hospital exemplo, as redes de urgência tendem a ter no tri-
geral, atenção básica, rede de urgência/emergên- nômio SAMU – unidade de pronto atendimento
cia e rede intersetorial. (ou pronto socorro) – Hospital Psiquiátrico sua
Há diversos entraves para o desenvolvimen- rede de atenção preferencial. A utilização des-
to desta última estratégia, especialmente por te fluxo que culmina na internação psiquiátrica
que, cada um desses pontos da rede apresenta ocorre independente do usuário estar ou não em
linguagem, timing e aparelhagem muito diferen- acompanhamento num centro de atenção psi-
te daquela utilizada pela rede de saúde mental13. cossocial (CAPS). Autores apontam para o fato
Em estudo das demandas de saúde mental aten- de que este processo não só “devolve o usuário ao
didas pelo SAMU de Aracaju foi identificada na manicômio” como fortalece uma noção de que
coleta de dados que a maior parte dos pedidos a rede de atenção psicossocial é alternativa e de
de viatura são categorizados como “agitação”. Por baixa capacidade resolutiva13-15.
outro lado, a maior parte dos usuários atendidos A partir destes elementos, sistematizamos
é conduzida a prontos-socorros de urgência, não teórica e didaticamente, 3 modelos principais
para centros de atenção psicossocial, para onde de atenção à crise, com referência na legislação
são levados apenas 1,1% dos casos14. vigente (Portaria 3.088 MS/GM - RAPS) e no bi-
Estes dados se apresentam como um analisa- nômio centralização-descentralização, apresen-
dor da rede nacional a partir do qual é possível tados no Quadro 2.
inferir que as redes de saúde mental e de urgên-

Quadro 2. Modelos de atenção à crise em rede.


Atenção centralizada e Atenção centralizada e Rede integrada e
rede não integrada rede integrada autorregulada
Integração rede de urgência Baixa integração Grande integração Grande integração
e rede de saúde mental
Existência de serviços Sim (situações de Sim (situações de Não
específicos para crise são atendidas crises são atendidas
atendimento de crise exclusivamente nestes preferencialmente nestes
serviços) serviços)
Atendimento a situações de Não Sim ou não Sim
crise na rede comunitária
Regulação de leitos Normativa, baseada Considera capacidade Realiza internações
psiquiátricos em parâmetros dos serviços exclusivamente a pedido
médicos substitutivos atenderem dos serviços de referência. O
a crise. Negocia sistema se auto regula através
de projetos terapêuticos
compartilhados.
Serviços comunitários de Não Sim Sim
funcionamento 24 horas
Projeto terapêutico singular Não tem o projeto O projeto terapêutico é Todas as práticas de atenção
como norteador de práticas terapêutico como desenvolvido, ainda que à crise são pautadas na
em rede norteador. Modelo serviços de referência execução do projeto
terapêutico médico tenham práticas terapêutico do usuário,
centrado protocolares,com com assistência multi/
assistência multi/ interdisciplinar
interdisciplinar
Vinculação do usuário ao Baixa vinculação, Boa vinculação, o Ótima vinculação. Há um
serviço e do serviço ao o usuário recorre usuário/familiar recorre planejamento para situações
território exclusivamente à à rede de urgência de crise e o usuário participa
rede de urgência em como parte do projeto de sua formulação.
situações de crise. terapêutico
Fonte própria.
601

Ciência & Saúde Coletiva, 25(2):595-602, 2020


Considerações finais pecífico; (c) o cuidado médico-centrado e o cui-
dado em equipe interdisciplinar; (d) a atenção
Os conceitos discutidos implicam na adoção de centrada na rede hospitalar e a atenção em rede
tecnologias, técnicas e práticas de atenção à crise comunitária.
que modificam os resultados ou níveis de eficácia A partir dessa análise delineamos os princi-
em relação à superação e ressignificação da crise. pais modelos de intervenção à crise que emer-
Modificam também a relação entre profissionais gem desse campo de disputas técnicas e políticas
e usuários, produzem diferentes graus de partici- e que coexistem nas práticas de atenção à crise
pação de diferentes atores sociais, e portanto, por existentes no Brasil. O estudo, como um artigo
meio da técnica, fabricam novas respostas sociais de opinião que se distancia mais enfaticamente
à crise e à loucura. Ou seja, o técnico e o social da pretensão da neutralidade, foi construído com
produzem agenciamentos necessariamente em a perspectiva de sistematizar e construir elemen-
conjunto, produzindo movimentos de “co-mo- tos teórico-práticos para evidenciar os desafios
dificação”. da Reforma Psiquiátrica, mas, sobretudo para
Buscamos nesse artigo, traçar e discutir parte a afirmação de uma forma de abordagem à cri-
das dicotomias ou antagonismos sociotécnicos se construída em rede, com ênfase nos serviços
que ganham relevo na atenção à crise em saúde comunitários de saúde e em uma perspectiva de
mental no Brasil. Dentre elas, destacamos: (a) os transversalização do saber-poder entre profis-
antagonismos no plano das terminologias ou re- sionais e entre equipe e usuários para a atenção
ferenciais teóricos; (b) O aparato teórico-prático eficaz à de situações complexas como são os mo-
das redes de urgência/emergência em geral e as mentos de crise em saúde mental.
abordagens às urgências na saúde mental em es-

Colaboradores

O autor MK Dias trabalhou na elaboração do


texto, revisão, redação final; SH Ferigato também
trabalhou na elaboração do texto, revisão, reda-
ção final e a autora ADSA Fernandes trabalhou na
elaboração do texto, redação final e formatação.
602
Dias MK et al.

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sponível em www.saude.gov.br e www.saude.gov.br/ Aprovado em 25/06/2018
bvs/saudemental Versão final apresentada em 27/06/2018

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons
A noção de crise no campo da saúde
mental: saberes e práticas em
um centro de atenção psicossocial
Aline Gomes Martins1

RESUMO: Este trabalho é originado de pesquisa de mestrado que teve por objetivo
problematizar a noção de crise que dá sustentação à atuação dos centros de atenção psicossocial
(CAPSs), por meio de estudo realizado em uma unidade de atenção nesse formato. Foram
feitos levantamento bibliográfico em torno do tema, observações da rotina do serviço e
entrevistas com técnicos do CAPS. As entrevistas foram gravadas e submetidas à análise de
conteúdo, resultando em categorias de análise. Elas mostram que existe uma multiplicidade
de saberes e de noções convivendo, mas predomina a noção de crise aos moldes da clínica
médica. O sujeito é avaliado com base em seu comportamento, e não se abrem possibilidades
para outros tratamentos que levem em consideração aspectos subjetivos e intersubjetivos.
Palavras-chave: centro de atenção psicossocial; crise; saúde mental; clínica ampliada;
reforma psiquiátrica.

The notion of crisis in the mental health field: knowledge


and practices in a center for psychosocial care
ABSTRACT: This article is derived from a master’s research that aimed to question the
notion of crisis that supports the Centers for Psychosocial Care (CAPS) work, through a
study developed in a CAPS. It was made review about the topic, observation of the work
routine and interviews with employees from CAPS. These interviews were recorded and
submitted to content analysis, resulting in categories of analysis. They showed that there it a
multiplicity of knowledge and notions coexisting, but a sense of crisis based on the medical
clinic view prevails. The topic is assessed based on their behavior and does not give chance
to other treatments that take into account subjective and intersubjective aspects.
Keywords: psychosocial care center; crisis; mental health; expanded clinic; psychiatric reform.

1
Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mestre em Psicologia Social pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Doutoranda em Psicologia Social pela UFMG.
Endereço para correspondência: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Avenida Antônio Carlos,
6.627 – Campus Pampulha, Belo Horizonte, MG. CEP: 31270-901. E-mail: alinepsicomartins@gmail.com
Artigo recebido em: 09/07/2016. Aprovado para publicação em: 02/11/2016.

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A noção de crise no campo da saúde mental: saberes e práticas em um centro de atenção psicossocial

La noción de crisis en el campo de la salud mental:


conocimientos y prácticas en un centro de atención psicosocial
RESUMEN: Este trabajo se deriva de la investigación de maestría que tenía por
objeto cuestionar la noción de crisis, que apoya el trabajo de los Centros de Atención
Psicosocial (CAPS), a través del estudio realizado en una unidad de atención en ese
formato.. Fueron hechos literatura sobre el tema, observación del servicio de rutina y
las entrevistas con los técnicos de CAPS. Las entrevistas fueron grabadas y se sometió a
análisis de contenido, lo que resulta en categorías de análisis. Las entrevistas muestran
que hay una gran cantidad de conocimiento y coexistentes nociones, pero prevalece una
sensación de crisis para moldear la clínica médica. El sujeto se evalúa sobre la base de su
comportamiento y no se abren posibilidades para otros tratamientos que tengan en cuenta
los aspectos subjetivos e intersubjetivos.
Palabras clave: centro de atención psicosocial; crisis; salud mental; clínica expandida;
reforma psiquiátrica.

1 REVENDO A NOÇÃO DE CRISE


A palavra crise é polissêmica, ou seja, é permeada por significados e senti-
dos diversos. Ela está presente no nosso cotidiano desde o discurso mais corri-
queiro até os especializados em saúde mental dos centros de atenção psicossocial
(CAPSs), interesse deste trabalho.
De acordo com Leonardo Boff (2002), a palavra em sânscrito para crise é
kri, ou kir, e significa desembaraçar, purificar, limpar. No português, foram conser-
vadas as palavras acrisolar e crisol. O crisol é um elemento químico que purifica o
ouro, limpa-o. Portanto, crise apresenta, na sua origem filológica, a ideia de purifi-
cação. Em grego, crise (ou simplesmente krisis, krínein) significa decisão em um
juízo. Toda situação de crise, para ser superada, exige uma decisão, e seu processo
está rodeado de mudanças, criações e questionamentos.
Para Boff (2002), a crise possui vitalidade criadora, que leva a pessoa a
questionar sua existência e o mundo que a cerca. Ela é convocada a opinar e a
decidir. É um momento crítico, uma descontinuidade e uma perturbação na norma-
lidade da vida, quando algo é deixado para trás e abrem-se novas possibilidades de
ser e de estar no mundo.
Apesar de o momento de crise possuir dimensão de possibilidade, de inova-
ção, acarreta uma turbulência na vida de quem passa por ela, pois retira a pessoa do

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seu estado habitual de ordem e a coloca em uma situação de incômodo, de tomada


de decisão. Na crise, o sofrimento é inegável. A pessoa sente-se deslocada do lugar-
-comum, da rotina estável e segura, da experiência da maioria. Em um mundo de
identidades rígidas, essa experiência é dolorosa (BICHUETTI, 2000).
Especificamente no campo da saúde mental, é necessário levarmos em
consideração que qualquer esquema para definir crise deve analisar a organização
psiquiátrica existente em determinada época e em um momento histórico parti-
cular, uma vez que é problemática uma definição única de crise em saúde mental
(DELL’ACQUA; MEZZINA, 1991).
O levantamento bibliográfico exploratório realizado na pesquisa deixou
claro que existem basicamente duas noções de crise que se revezam na história
da saúde mental. Uma delas vincula-se a um saber de tipo biomédico, em que a
doença se resume ao sintoma. É uma noção típica dos autores da psiquiatria clássi-
ca: Pinel, Esquirol, Morel, Kraepelin, entre outros. A outra ideia de crise vincula-se
às iniciativas de reformas psiquiátricas que surgiram a partir da segunda metade do
século XX como crítica a esse saber, tais como a antipsiquiatria inglesa, a psico-
terapia institucional e a psiquiatria de setor francesas, a psiquiatria democrática
italiana e a luta antimanicomial brasileira.
Os autores da psiquiatria clássica, movimento que teve início no século
XVIII e que propagava a visão do louco como aquele desprovido de razão, lança-
ram um olhar ora moral, ora biologicista sobre a loucura, classificando-a como
doença e sugerindo uma forma de tratamento baseada na internação hospitalar, que
promovia a exclusão do doente mental do seio da sociedade, sendo o tratamento
feito no isolamento.
Durante a maior parte da história de atendimento ao paciente psiquiátri-
co, principalmente no período de predomínio da psiquiatria clássica, a crise foi
reduzida ao que podemos chamar de agudização da sintomatologia psiquiátrica.
Isto é, a uma gama de sinais e sintomas catalogados como característicos: delírios,
alucinações visuais e auditivas, agressividade, agitação psicomotora, embotamento
afetivo, entre outros. O objetivo dessa linha de raciocínio era a supressão da sinto-
matologia, a fim de atingir a homeostase, por meio de um modelo de adaptação e
estabilização do quadro de crise. Para os estudiosos da psiquiatria clássica, o que
rompe com a homeostase e com a organização mental do indivíduo é algo negativo
e destrutivo, que coloca o sujeito em um lugar não aceito socialmente (Ferigato;
Campos; Ballarin, 2007).
Nessa perspectiva, o hospital psiquiátrico representou o principal instru-
mento de intervenção em situações de crise. Dell’Acqua e Mezzina (1991) apontam

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A noção de crise no campo da saúde mental: saberes e práticas em um centro de atenção psicossocial

o papel central do hospital psiquiátrico no atendimento à saúde mental, o qual


permaneceu por muito tempo como carro-chefe do tratamento mental, por questões
históricas, ideológicas e sociais que não nos cabe aqui aprofundar1.
O hospital psiquiátrico, típico do modelo que antecede as reformas,
permitia o uso acrítico de esquemas técnicos impermeáveis e seletivos que
classificavam comportamentos e homogeneizavam grupos de problemas, para
os quais previa respostas, buscando interpretar as situações de crise conforme
parâmetros definidos e controláveis. Não se reconhecia o paciente como uma
entidade complexa; o sistema tendia a reduções, sendo a crise o ponto máximo
de simplificação. O serviço equipou-se para perceber e reconhecer a doença
por meio do próprio sintoma. A complexidade da existência de sofrimento do
sujeito reduzia-se a um mero sinal característico de crise (DELL’ACQUA;
MEZZINA, 1991).
Contrária às colocações da psiquiatria clássica, a antipsiquiatria, movimento
inglês das décadas de 1960 e 70, ampliou as concepções de crise por intermédio de
reflexões que iam além da sua sintomatologia, incluindo nela aspectos do contexto
social, familiar e relacional, aprofundando a reflexão sobre a vivência subjetiva da
crise e sua singularidade para o sujeito que a vivencia concretamente.
Com o movimento da antipsiquiatria, que propunha a desconstrução literal
do modelo hegemônico pregado pela psiquiatria clássica, a representação social da
loucura mudou. O chamado doente mental passou a ser visto como um sujeito que
fala e que questiona a realidade mediante a doença. Ele não é mais percebido como
um alienado da realidade, um desprovido de razão, mas o sujeito de sua história.
A antipsiquiatria, com outras propostas revolucionárias europeias
contemporâneas, como a psicoterapia institucional francesa e a desinstitucio-
nalização italiana, começou um movimento de reforma psiquiátrica centrado
na crítica ao próprio saber médico, e não apenas nas formas de tratamento
(AMARANTE, 1996).
Com o início da reforma psiquiátrica no Brasil, especialmente com o
movimento da luta antimanicomial, percebemos uma enorme mudança na assis-
tência em saúde mental, como a institucionalização dos CAPSs, equipamentos
públicos caracterizados como, entre outras funções de promoção da saúde mental,
serviços de atenção à crise e ao tratamento dos casos graves e persistentes de trans-
torno mental (BRASIL, 2002).

1
O hospital psiquiátrico como o principal instrumento de atendimento à saúde mental é abordado na
obra de diversos autores. Entre eles, destacam-se no cenário internacional: Michel Foucault (2006),
Erving Goffman (1987), Franco Basaglia (1985), Robert Castel (1978), Manuel Desviat (1999), e no cenário
nacional: Paulo Amarante (1998) e Eduardo Vasconcelos (1992).

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O abandono do hospital psiquiátrico e a constituição dos centros de saúde


mental como etapa fundamental do trabalho de desinstitucionalização trouxeram à
baila o problema prático e teórico da necessidade de se compreender a complexi-
dade coexistente ao aparecimento da demanda psiquiátrica e, de acordo com essa
demanda, a complexidade da crise (DELL’ACQUA; MEZZINA, 1991).
A reforma psiquiátrica prioriza a capacidade dos serviços de elaborar a
rede de relações e de conflitos psicossociais que constituem os limites da crise,
antes escondidos e banalizados em razão do processo de simplificação do modelo
biomédico, com base na centralidade do hospital psiquiátrico (DELL’ACQUA;
MEZZINA, 1991). No modelo que podemos chamar de “clínica ampliada”,
proposto pela reforma, o conflito que se manifesta com a crise não deve ser contido
nem ocultado pelo serviço, mas assumido como estímulo à transformação e ao
crescimento do próprio sujeito (LOBOSQUE, 2003).
Com a reforma psiquiátrica e os novos dispositivos de atenção à saúde,
podemos verificar que a noção de crise mudou significativamente. Ela passou
a ser encarada de maneira não uniformizante, de modo a permitir encontrar sua
especificidade na singularidade do sujeito. O sintoma passou a ser reelaborado
como significante de uma realidade que se torna inteligível. Objetivava-se conec-
tar o sujeito em crise ao seu sistema de relações e de recursos humanos, materiais
e simbólicos. O paciente deveria conseguir atravessar a crise conservando sua
continuidade existencial e histórica. A intervenção na crise podia ocorrer em
qualquer lugar, em lugares da vida do paciente, e a finalidade central dos novos
dispositivos de atenção à crise e da política da reforma eram a manutenção dos
vínculos do paciente e a construção de novas redes de relação (DELL’ACQUA;
MEZZINA, 1991).
A reforma psiquiátrica defende novas formas de pensar e agir em torno de
situações de crise, entretanto as práticas clínicas, muitas vezes enrijecidas, deter-
minam significações e consequentes intervenções que não levam em consideração
a sua complexidade nem o seu caráter subjetivo e intersubjetivo.
Na maioria das vezes, focalizamos a crise no indivíduo. Individualizando-a
e referindo-nos apenas ao paciente, não problematizamos o serviço, a instituição
psiquiátrica, as concepções que vigoram nos centros de atenção à saúde mental
nem o contexto de vida do usuário (DELL’ACQUA; MEZZINA, 1991). Para
Dell’Acqua e Mezzina, as individualizações da crise dizem respeito à impossibili-
dade dos serviços de se colocarem em crise, de questionarem a sua complexidade e
de entenderem que ela denuncia algo que vai além do sujeito, além da agudização
de sintomas característicos.

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A noção de crise no campo da saúde mental: saberes e práticas em um centro de atenção psicossocial

2 UM ESTUDO DE CASO CONCRETO


Passamos a relatar o estudo realizado em um CAPS de uma cidade do
interior de Minas Gerais que teve por objetivo central investigar os sentidos atribu-
ídos à noção de crise por seus profissionais. A metodologia utilizada dividiu-se em
três fases: a primeira constituiu a fase de exploração, na qual se buscou delinear
o objeto de pesquisa e a preparação para a entrada em campo e se compreendeu o
levantamento bibliográfico que subsidiou a discussão feita anteriormente; a segun-
da correspondeu ao trabalho de campo propriamente dito, no qual a pesquisadora
fez observações da rotina do serviço e entrevistas com os profissionais; e a terceira
e última etapa referiu-se à análise e ao tratamento do material empírico levantado.
O CAPS foi escolhido por ser um dispositivo que, segundo a Portaria
n.º 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002, que o regulamenta, está capacitado a reali-
zar prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e
persistentes (BRASIL, 2002).
Após três semanas de observações e de convívio no serviço, deu-se início
às entrevistas com os profissionais da saúde. Foi utilizada a entrevista semies-
truturada, composta de perguntas abertas e não diretivas, o que possibilitou aos
entrevistados discorrer sobre o tema proposto sem respostas pré-fixadas. Dos 11
profissionais que trabalham na instituição escolhida para o estudo, foram entre-
vistados seis (psiquiatra, psicóloga, enfermeira, técnica de enfermagem, farma-
cêutico e coordenadora). Todos são profissionais com formação superior na área
da saúde, exceto a coordenadora do serviço, que possui apenas o segundo grau
completo. Os demais trabalhadores (de apoio administrativo) não participaram da
entrevista, mas contribuíram com algumas informações. Também foram organiza-
das conversas com alguns usuários. As entrevistas e as conversas foram gravadas
e transcritas na íntegra.
As entrevistas foram analisadas sob o prisma da análise de conteúdo.
Para Minayo (2004), a proposta que acompanha a análise de conteúdo se refere à
decomposição do discurso e à identificação de unidades de análise ou grupos de
representações para categorização de fenômenos, movimento pelo qual se torna
possível reconstruir significados que apresentam compreensão mais profunda
da realidade do grupo estudado. A presença de determinados temas na fala dos
entrevistados denota os valores de referência e os modelos de comportamento
presentes no discurso. Após a leitura exaustiva das entrevistas transcritas e das
anotações das observações, foi possível agrupar os temas emergentes em catego-
rias de análise. Estas foram moldadas aos poucos, por conta da preocupação em

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construir categorias que obedecessem a critérios de homogeneidade, exclusividade


e consistência.
Com base na análise de conteúdo das entrevistas, foram formuladas quatro
categorias de análise que representam temas emergentes nas falas dos profissio-
nais. Esses temas articulam-se e estão presentes na rotina do serviço, compondo
os saberes e as práticas dos profissionais do CAPS em questão. São elas: hierar-
quização do saber; medicalização; supervalorização do protocolo; e, finalmente,
concepções de crise.

3 HIERARQUIZAÇÃO DO SABER
Um dos aspectos centrais encontrados nas observações das práticas e nas
entrevistas está descrito na categoria que denominamos de hierarquização do saber.
O CAPS é composto de saberes multiprofissionais, e cada profissional contribui, de
acordo com sua competência, com o tratamento do usuário. Essa contribuição deve
ser feita de forma conjunta e interativa, sendo fundamental a troca de informações
entre os membros da equipe interdisciplinar. Contudo, a análise das entrevistas
mostra que existe certo conflito entre esses saberes multidisciplinares e o lugar que
ocupam dentro do CAPS.

Como diz o outro, eu faço o que vem de lá, o que me mandar. [...] Eu não
acho nada, eu acho que eu tô aqui, mas vem a hierarquia. Médico, psicólogo
e nós aqui, pra cuidar. [...] Eu acho que é pelo respeito à hierarquia. Eu tenho
opinião, mas eu fico com ela pra mim, entendeu? (técnica de enfermagem).

Os especialistas presentes na instituição trabalham de forma isolada, sendo


o saber médico, como apontado na sequência, o ápice da pirâmide hierárquica de
saberes. Essa hierarquia culmina em uma relação de poder entre os pares, superva-
lorizando alguns saberes e negligenciando outros.

Quem dá a voz final do tratamento tem que ser o médico, né? Ele é que sabe
manusear as medicações. Se o pessoal insiste eu falo: — então, vamos usar
o seu [tratamento/conhecimento], vamos ver? [Risos.] Quem dá a voz final
do tratamento é o médico. Ele é aquele profissional que se especializou em
fazer a terapêutica (psiquiatra).

O lugar que o saber psiquiátrico ocupa no CAPS está relacionado à constru-


ção sócio-histórica do lugar social do médico. Para Foucault (2006), na clínica,
tão importante na história da psiquiatria, a palavra do médico aparece como tendo

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A noção de crise no campo da saúde mental: saberes e práticas em um centro de atenção psicossocial

um poder maior do que a de qualquer outra pessoa. Desde o início do século XIX
até os dias de hoje, o médico constitui, por meio da clínica, o mestre da verdade.
Na clínica, o doente é obrigado a reconhecer tudo o que se diz sobre ele. As marcas
do saber permitem que o médico reine no interior dos asilos e exerça o sobrepoder.
Esse jogo de saber e poder faz com que a figura de autoridade do psiquiatra se
corporifique no serviço.
Contrária à supremacia médica, Lobosque (2003) explica que os princí-
pios e as propostas dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico modificam
significativamente a forma de presença do psiquiatra nos equipamentos de saúde
mental. Isso porque a demanda deixa de ser endereçada de forma específica ao
psiquiatra. Um traço comum aos serviços substitutivos diz respeito ao fato de o
psiquiatra não ocupar posição central. O CAPS, como um dispositivo de atenção
à crise e aos transtornos graves e persistentes, foi criado a fim de oferecer ajuda
ao sujeito, mas sem exercer controle nem domínio, como o hospital psiquiátrico.
Segundo Lobosque (2003), cabe aos profissionais da saúde oferecer uma ajuda que
se encontre subordinada a um projeto político e social. Essa ajuda é chamada pela
autora de “clínica em movimento”, uma clínica que não caminha para si mesma,
mas combina e se articula com tudo o que se movimenta e se transforma na cultura,
na vida, no convívio entre os homens.
Sobre a fragmentação de saberes, ainda presente nos serviços substitutivos
ao hospital psiquiátrico, Dell’Acqua e Mezzina (1991) afirmam que os CAPSs,
por exemplo, com outros dispositivos, como os centros de convivência, tendem a
efetuar ações especializadas de reabilitação e ressocialização. Porém frequente-
mente essas intervenções são propostas de modo fragmentado e não coordenado.
Ainda que esses serviços contribuam para a diminuição de internação, não preveem
a elaboração do fracasso; são feitos para atender a necessidades específicas, são
seletivos e impermeáveis entre si.
Os profissionais que compõem o CAPS ainda não assumiram cabalmente o
referencial epistemológico da reforma psiquiátrica atual. A dimensão epistemoló-
gica refere-se ao conjunto de questões que se situam no campo teórico-conceitual
e que dizem respeito à produção de conhecimentos que fundamentam e autorizam
o saber-fazer médico-psiquiátrico. A desinstitucionalização proposta pela reforma
não se restringe à reestruturação técnica de serviços, de novas e modernas terapias,
mas torna-se um processo complexo de recolocar o problema, de reconstruir
saberes e práticas, de estabelecer novas relações (AMARANTE, 2009).

Eu acho que a ideia é bem individualizada, cada um tem a sua. É uma


questão de formação profissional. Dentro da formação você tem várias

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formas de abordar o transtorno mental. Cada um tem sua terapêutica, né?


Que é diferente da psiquiátrica, que é única, né? Diferente da psicologia.
Cada um segue um caminho pra chegar ao mesmo lugar. Cada um tem sua
técnica, diferente de cada um, e nesse aspecto a gente tem muita dificuldade
de discutir, pois são muitas linhas, o conceito da psiquiatria... Na hora da
discussão tem um conceito muito mecanizado, né? (psicóloga).

O circuito psiquiátrico, que contava apenas com o hospital, caminhou


em direção à articulação de um modelo operativo mais complexo, porém não se
modificou e ainda se encontra centrado na figura do médico e no seu saber.

4 MEDICALIZAÇÃO
A segunda categoria encontrada na análise das entrevistas expõe a impor-
tância atribuída à medicação no tratamento da crise. Embora o conceito de medica-
lização se refira a um processo mais complexo que apenas o uso excessivo de
medicação, pois significa reduzir à ordem médica problemas de ordem psicossocial
ou afetiva, o remédio é visto como principal agente fomentador da cura do pacien-
te. Essa categoria está intimamente relacionada com a anteriormente descrita, da
supremacia do saber médico.

Não existe tratamento ideal. Existe tratamento de acordo com os sintomas.


Pela pouca experiência que a gente tem, a gente medica tentando diminuir
aquilo que, aquele quadro de transtorno no qual ele apresenta. Você não tem
um plano terapêutico. Agora, quando há determinadas coincidências, a gente
segue o mesmo plano daquela coincidência, entendeu? Ou com doses menores
ou com doses maiores. Depende da resistência do paciente (psiquiatra).

O uso da medicação insere-se no campo da relação médico e paciente, em


que são estabelecidos lugares sociais nos quais o médico é aquele que sabe e o
doente aquele que espera, pacientemente, a cura. Nesse sistema vertical e hierár-
quico implicado no ato da prescrição e da receita médica, o medicamento atuará
na confirmação dessa relação de dependência do paciente para com o médico
(HORA, 2006).
As estereotipias e limitações do modelo médico-centrado, que parecem ainda
guiar as práticas de muitos profissionais desses serviços de saúde, contrapõem-se
às orientações que preconizam a atenção psicossocial sensível às complexidades e
às especificidades do sujeito em sofrimento psíquico (FERRAZZA, 2009).
Não pretendemos aqui questionar a eficácia da medicação no tratamento,
mas alertar para a importância de outras intervenções. A crítica que podemos

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A noção de crise no campo da saúde mental: saberes e práticas em um centro de atenção psicossocial

fazer ao CAPS em questão diz respeito ao papel primordial que a medicação


ocupa no tratamento do sujeito, especialmente quando em crise, e na dinâmica
do CAPS. Se é atribuído ao medicamento o poder de curar, de retirar do sujeito
o incômodo produzido pela doença, e nenhuma outra intervenção é utilizada,
a especialidade profissional que detém o conhecimento com relação à medica-
ção acaba por assumir o tratamento, retirando ou diminuindo a credibilidade de
outras práticas. Essa situação seguramente está relacionada com os saberes estan-
ques que existem no serviço e com a hierarquização que alguns profissionais
questionaram nas entrevistas.
Portanto, é prudente destacar as dificuldades em superar o modelo da
psiquiatria tradicional que parece se perpetuar, de maneira especial na estrutura
ambulatorial. Infelizmente, os CAPSs, dispositivos considerados estratégicos na
constituição da atenção psicossocial, não estão isentos do risco de se tornarem
serviços que reproduzem práticas medicalizadoras e de controle social tão caracte-
rísticas dos ambulatórios de saúde mental (FERRAZZA, 2009).

5 SUPERVALORIZAÇÃO DO PROTOCOLO
Os entrevistados fizerem repetidas referências à necessidade de se ter um
protocolo para orientá-los na forma de agir no serviço. Protocolos são considerados
importantes instrumentos para o enfrentamento de diversos problemas na assistên-
cia e na gestão dos serviços. Orientados por diretrizes de natureza técnica, organi-
zacional e política, têm como fundamentação estudos validados pelos pressupostos
das evidências científicas (WERNECK; FARIA; CAMPOS, 2009).
No CAPS estudado, fica a cargo de cada profissional adotar o protocolo que
lhe convenha, desde que em acordo com as diretrizes do Sistema Único de Saúde
(SUS). Ainda não existe no serviço um protocolo que “organize” o atendimento
e a forma como os profissionais devem proceder, de maneira especial no que diz
respeito à crise. Possivelmente, a dificuldade de comunicação entre os profissio-
nais, de interlocução entre os saberes, como apresentado na primeira categoria,
dificulta a construção do protocolo.
De acordo com os profissionais do CAPS, o protocolo ajudaria a definir
quem está em crise e quem não está. Além disso, determinaria como agir diante da
crise e quais procedimentos adotar.

A gente tem que protocolar e a gente ainda pretende adotar o protocolo.


Inclusive, na última reunião que nós tivemos aqui, a gente começou a rever
o protocolo de crise, justamente para isso, pra ter um roteiro a seguir, pois a

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gente não tem ainda e é o que a gente tá buscando agora, fazer o protocolo de
crise, o que é pra gente receber, o que não é pra gente atender. A gente tá com
essa missão, mas não temos ainda. Somente temos a avaliação do psicólogo
e psiquiatra (coordenadora).

Acreditamos que os profissionais do CAPS mencionaram o protocolo tantas


vezes por conta da necessidade que o serviço possui de se organizar e de permitir
que todos os saberes possam trabalhar em igualdade, tendo o mesmo instrumento
para guiá-los. Autores que discutem essa questão, como, por exemplo, Werneck
et al. (2009), sustentam que a existência do protocolo não garante ao serviço plena
funcionalidade livre de conflitos. Os protocolos apresentam limites. Por  isso,
embora alicerçados em referências científicas e tecnológicas, não devem ser
tomados para além de sua real dimensão. Sua utilização, desprovida de avaliação,
acompanhamento gerencial sistemático e revisões científicas periódicas, constitui
significativo risco de se produzir um processo de trabalho pobre e desestimulante,
em que planejamento e avaliação não acontecem e não há lugar para a renovação
nem para a inovação.
Os serviços de saúde devem prezar por um constante trabalho de avalia-
ção sobre o lugar que o protocolo assume. Mesmo que exista o protocolo para
facilitar a comunicação entre os membros da equipe e que ele seja um instrumento
que direcione o profissional, a atitude a ser assumida diante de cada caso deve ser
concluída por meio da equipe em conjunto com o paciente. O que há de primordial
no trabalho em equipe é a integração dos saberes, saber como lidar com a demanda
e com os progressos da ciência, e como escapar das armadilhas dos protocolos.
Para que seja construído um novo lugar para a loucura, é necessária uma
abertura epistemológica no processo de construção de saberes não protocolizados,
não definidos a priori. É tarefa de todo profissional de saúde deixar-se surpreender
pelas pessoas que acolhe a cada dia, oferecendo intervenções que se constroem
por meio do contato com o paciente. Isso não significa que o tratamento do sujeito
em crise deva se basear unicamente na experiência cotidiana e no improviso do
momento, mas sim estar aberto ao inesperado, à singularidade de cada paciente.

6 CONCEPÇÕES SOBRE CRISE


Essa última categoria de análise constitui a questão primordial da pesquisa.
Os profissionais do CAPS que participaram das entrevistas responderam, em um
determinado momento, à seguinte pergunta: o que é crise para você?

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A noção de crise no campo da saúde mental: saberes e práticas em um centro de atenção psicossocial

Cada profissional apresentou nas entrevistas sua ideia sobre crise. Por se
tratar de um estudo acerca de significações relacionadas a uma prática instituciona-
lizada de cuidado, as diretrizes do serviço tiveram reflexo no que diz respeito aos
posicionamentos. Desse modo, foi percebida, na fala da maioria dos profissionais,
a noção de crise vinculada à descrição de agudez da sintomatologia psiquiátrica,
que culminaria em comportamentos desviantes da normalidade.

Mais ou menos aquela questão, se o paciente está desorganizado, agitado,


depende muito do quadro atual, né? Geralmente é quem está mais desorga-
nizado. Quem está mais estabilizado, ou está assim com uma depressão leve,
aquelas pessoas que ficam numa depressão leve, aconteceu algum motivo,
não consideramos crise, aí encaminhamos para o PSF [Programa Saúde da
Família] de volta. Mais definido como o estado da pessoa atual. Mais desor-
ganizado, mais agressivo, com delírio mais persistente (coordenadora).

O que seria crise? Um indivíduo, um indivíduo que foge às normas do que


pede a sociedade. Nem sempre a sociedade pra mim está correta, mas desde
que ele esteja agredindo as pessoas na rua, desde que ele esteja delirando,
falando sozinho, cantando, fazendo um punhado de coisa que a sociedade
reprime, ele vem aqui e a gente tenta encaminhá-lo de maneira que ele volte
a se comportar dentro de um meio social mais brando, né? Que fique[m]
mais brando[s] os quadros de distúrbio de comportamento, de distúrbio de
percepção, distúrbio de conduta em relação à sociedade. Pra conviver bem
com ela, porque ela não aceita, né? (psiquiatra).

De acordo com Silva apud Silva et al. (2008), o que aparece como crise
são aqueles aspectos que causam certa ordem de estranheza e perturbação social.
Sem ressonância social, o fato psíquico em si é irrelevante. Essa concepção não
perpassa apenas a equipe de profissionais, mas também a sociedade. O ideal de
normalidade ainda está presente em nossa sociedade.
A família, quando chega com o familiar à emergência psiquiátrica ou a
algum serviço substitutivo de atenção à crise, é motivada por aquilo que correspon-
de à perturbação psíquica que gera certa ressonância social, por ser atípica e causar
estranhamento. Em alguns casos, o paciente é levado ao CAPS pela polícia ou
pelo corpo de bombeiros. Motivados pela estranheza do comportamento do sujeito,
esses dispositivos tendem a “recolher” o sujeito e levá-los até o CAPS, atribuindo
ao serviço a ideia de restauração da normalidade2.
2
De acordo com a coordenadora, o sujeito chega ao CAPS por meio de encaminhamento do Programa
de Saúde da Família (PSF), ou é levado pelo corpo de bombeiros, pela polícia e pela família. Quando o
paciente chega ao CAPS por outras vias que não o PSF, é classificado como “demanda espontânea”.

Mental - v. 11 - n. 20 - Barbacena-MG - Jan-Jun 2017 - p. 226-242 237


Aline Gomes Martins

Para um paciente em crise não há necessidade de um roteiro, ele vem trazi-


do. Ele vem quase que manietado pela família, pelos familiares, porque ele
tá trazendo um transtorno muito grande para a sociedade. [...] Normalmente
ele passa primeiro pelo psicólogo. [...] (psiquiatra).

A situação relatada é explicada por Laing (1978), quando o autor afirma que
a experiência de ser no mundo do indivíduo portador de uma patologia rompe com
o que é permitido no grupo social. Ele diz e faz o que não se pode. A loucura, por
não ser compreendida, é cerceada pela sociedade.
Em contrapartida, alguns profissionais, em certos momentos da entrevista,
defendem uma noção de crise para além da dimensão social e comportamental-
-sintomática, abrangendo todo o contexto de relações em que o sujeito está inserido
e levando em consideração aspectos subjetivos.

É algo que acontece com aquela pessoa, de qualquer ordem, de natureza


psíquica, né? Que paralisa ela, que interrompe ela e ela não consegue lidar
com seus relacionamentos, no seu trabalho, na sua vida familiar. Começa a
se sentir perturbada nas suas emoções, entendeu? (psicóloga).

Para atender a pessoas “em crise”, os profissionais da saúde precisam


apreender as diversas formas e os momentos da existência de quem sofre, sempre
considerando seu contexto sociocultural, histórico e familiar. O profissional da
saúde que está de acordo com as ideias da clínica ampliada busca oferecer uma
clínica singular e compartilhada com o sujeito. Nos momentos de crise, ele deve
funcionar para o usuário como um agente que liga e cimenta os fragmentos do
sujeito (KNOBLOCH, 1998).
As entrevistas mostram-nos que noções divergentes de crise convivem
dentro do CAPS. Alguns profissionais percebem a crise e lidam com ela com base
em uma perspectiva “comportamental”, caracterizando-a como um “desajuste
social”, um estado de agudização dos sintomas que compõem a doença. Outros se
permitem compreendê-la de forma diferente, como um acontecimento subjetivo
que deve ser tratado levando-se em conta toda a complexidade da vida do sujeito,
suas relações familiares, sociais e emocionais. Cada noção de crise se vincula a um
tipo de tratamento oferecido. A forma como cada profissional percebe esse aconte-
cimento gera consequências sobre a terapêutica oferecida.
O serviço parece encontrar-se em um processo de conflito epistemológico,
pois a escuta subjetiva nem sempre é compartilhada por todos os profissionais:

Tem muito profissional que apenas passa por aqui, que viu um paciente
agitado e foi embora. Tem profissional que questiona. Por que tal paciente

238 Mental - v. 11 - n. 20 - Barbacena-MG - Jan-Jun 2017 - p. 226-242


A noção de crise no campo da saúde mental: saberes e práticas em um centro de atenção psicossocial

tá aqui? Ele não tá agressivo. Hoje eu consigo compreender isso mais. Tem
funcionário que tá aqui há dez anos, por que ele não consegue compreender
isso, a perceber diferente a crise, que não é apenas estar agitado e eu conse-
gui? Eu acho que meu interesse me fez ver diferente. É isso. (coordenadora).

O CAPS é um serviço fruto da reforma psiquiátrica, portanto a noção de


crise que vigora dentro dele deveria estar de acordo com os saberes da reforma.
Todavia, ainda predomina nele uma noção de crise aos moldes da clínica médica,
aparecendo poucos questionamentos sobre ela.
Acreditamos que a situação ambígua vivenciada pelo serviço é decorrente
do referencial histórico-cultural que entende a loucura como doença e que ainda
se encontra enraizado na mente das pessoas. Estamos vivendo um momento de
construção de novos paradigmas.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na conjectura atual, com o movimento da reforma psiquiátrica, é possí-
vel perceber que vivenciamos uma dicotomia entre os saberes defendidos pela
reforma e o saber biomédico que predominou por muitos anos. A tentativa
incansável da reforma psiquiátrica é desmistificar as ideias que o saber biomé-
dico construiu sobre a loucura. Durante décadas, o louco foi encarado como
desprovido de razão, como um sujeito que deveria ter sua loucura domada por
meio da contenção física ou moral. Hoje, por mais que exista uma militância
objetivando quebrar esse paradigma, ainda convivemos com os resquícios da
época manicomial.
No CAPS onde foi realizada a pesquisa, fica clara essa dicotomia
de saberes, gerando como consequência conflitos de poder que refletem na
prática. Na lógica da clínica ampliada proposta pela reforma, nenhum saber
profissional tem mais valor que o outro. Todos os profissionais trabalham em
conjunto a fim de oferecer um tratamento que leve em consideração as dimen-
sões biopsicossociais que perpassam o sujeito e sua crise. Contudo, o CAPS
em questão encontra barreiras que impedem o serviço de funcionar conforme
essa lógica descrita.
As entrevistas permitem afirmar que a maioria dos profissionais não se
mostra à vontade para falar de crise. O tema parece instalar uma espécie de mal-estar
entre os profissionais. De acordo com Knobloch (1998), a clínica da crise é sempre
uma clínica do mal-estar, no sentido em que entrar no traumático é possibilitar

Mental - v. 11 - n. 20 - Barbacena-MG - Jan-Jun 2017 - p. 226-242 239


Aline Gomes Martins

o encontro com esse lugar estranho e, ao mesmo tempo, familiar. Esse mal-estar


dá-se por diversos aspectos: pelos frequentes paradoxos que a loucura e sua relação
com a sociedade nos impõem e pelos limites da técnica com os quais deparamos
no cotidiano da clínica.
Concluímos as colocações deste artigo com a fala de uma usuária do CAPS
sobre a temática da crise:

A minhas crises é um pandedê. Eu fico ruim mesmo. Aí eu fico mais no meu


mundo do que no outro e fica mais difícil ainda de recuperar. Parece que
o mundo fica diferente. Eu só quero andar, não ligo pros meus filhos, pra
minha família, só quero andar. Não sei falar da crise... É uma coisa estranha,
esquisita... Só quero andar, fugir dela... Mas não tem jeito. [...] Na verda-
de ninguém sabe... Nem esse povo tudo, esses doutor sabe falar dela. Você
sente... E sabe, mas não dá pra falar (usuária do CAPS).

A fala anterior ilustra muito bem a complexidade da crise pela constatação


de que ela talvez seja a obnubilação de nossa capacidade de linguagem. Capacidade
que, quando reassumida, já se encontra distanciada da vivência psíquica solapado-
ra. A ausência de representação não significa ausência de sensações nem de afetos;
ao contrário, seu transbordamento representa um acolhimento, na mesma medida
afetuoso, que possibilita suportar.
Por se tratar de um acontecimento particular que acomete cada pessoa à
sua maneira e gera consequências variáveis, não é possível um conceito definido.
É impossível falar sobre crise sem um referencial de análise. Com isso, forcemo-
-nos a aprender as diversas formas e momentos da existência que sofre, dentro e
fora da crise, sempre considerando seu contexto sociocultural, histórico e familiar.
Partindo desse ponto, estaremos mais próximos da denominada clínica ampliada,
localizando a crise no interior de uma série de fatores que dão a ela algum nexo e a
deixam mais próxima de nossa compreensão.

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Saúde em Debate
ISSN: 0103-1104
revista@saudeemdebate.org.br
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil

Dorsa Figueiredo, Mariana; Onocko Campos, Rosana


Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede
multicêntrica
Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 143-149
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773014

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ARTIGO ORIGINAL I ORIGINALARTICLE 143

Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde:


o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
Mental Health andprimary health care:
the matrix support building a multicentric net

"En medio de la marafia, Dios, la arafia':

Mariana Dorsa Figueiredo I


A1ejandra Pizarnik
Rosana Onocko Campos 2

1Mestre; doutoranda em Saúde RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Bdsica
Coleriva pelo Departamento de como uma das necessidades atuaispara a continuidade da Refàrma Psiquidtrica,
Medicina Preventiva e Social da
considerando que a atenção em Saúde Mental deve serfeita dentro de uma rede
Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usudrios. Em
(DMPSI FCMI UNlCAMI'). seguida, éproblematizado oapoio matricial como arranjo de gestãopara organizar
madorsa@hormail.com
as ações de Saúde Mental na Atenção Básica esua potencialidade como disparador
da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva
2 Doutora em Saúde Coleriv3;

professora do DMPS/FCM/UNICAMI'. e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde.
rosanaoC@mpc.com.br
PALAVRAS-CHAVE: Gestão; Saúde Mental; Atenção bdsica à saúde; Apoio
matricial.

ABSTRACT ln this article, it is argued the insertion 01Mental Health in the


basic system, as one 01the current necessities fór the continuity 01the Psychiatric
Refórm, considering that the attention to Mental Health must be made inside
an ample and linked net 01cares. After that, the matrix support is analyzed as a
powerful management arrangement to organize the actions 01Mental Health in
the basic attention and as a triggerfór the amplification olthe clinic in the health
teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system.

KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix


support.

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144 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

INTRODUÇÃO disciplinar, por meio de wna rede inrerligada de serviços


de saúde, a qual permira a arriculação das ações que, em
Saúde Menral, é uma necessidade inquesrionável.

Uma rede ou um emaranhado?


Duranre as últimas duas décadas, a implemenração UMA REDE MULTICÊNTRICA
do modelo dos Cenrros de Atenção Psicossocial (CAPS)
tem sido o principal investimento da política de Saúde Considerando a complexidade das demandas em
Mental no Brasil. O processo de extensão da cobertura Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão
desses serviços demonstra a crescenre e inrensiva difusão sobre a necessidade de arricular a assistência prestada
da rede substitutiva de Saúde Menral pelo país, numa nos CAPS com outros serviços de saúde, equipamentos
trajetória frutífera de teversão do modelo assistencial cen- sociais e a rede social nos territórios, na construção de
trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no
uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,
restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos
desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos
e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de
vínculos sociais.
desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as
Ainda que a clínica das psicoses e das neuroses
formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na
graves esteja baseada em cuidados intensivos de especifi-
lógica sanitária hegemônica (AMARANTE, 2001), o modelo
cidade de equipamentos como os CAPS (TEN6RJo, 2002),
dos CAPS ganhou grande visibilidade no decorrer da Refor-
a Atenção Básica rem um imporrante papel no processo
ma Psiquiátrica brasileira, ocupando wn lugar de destaque
de reinserção social, já que está imersa nos territórios e
na reorganização da assistência em Saúde Mental.
é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os
Porém, essa rede de atenção à doença mental grave,
usuários, quanto para suas famílias. Além disso, atende
ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde
a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e
e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo
de forma bastante afastada da rede de Atenção Básica é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos

à saúde, resultando num cerro descompasso entre as principais problemas de saúde. A questão mencionada

práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua aqui vai além da definição de qual serviço deveria se

acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra- incumbir das demandas de maior gravidade, se os CAPS

mentos imporrantes para o SUS, enquanto sistema ou a Atenção Básica, também, e está na relação a ser

unificado e integral, assim como para a eficácia ranto da construída entre os dois tipos de serviços.

Atenção Básica, quanto dos CAPS, devido a dificuldade O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define
de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção que um CAPS deve:
resolutiva em Saúde Mental.
Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS, responsabilizar-se { ..} pela organização da demanda
e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do
só poderá ser alcançada através da troca de saberes, prá-
seu território e{ ..} desempenhar opapel de regulador
ticas e de profundas alterações nas estrururas de poder da porta de entrada da rede assistencial. (BRASIL,
estabelecidas, instiruindo uma lógica do trabalho inter- 2004, p. 126).

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menml e Atençáo Básica à Sallde: o apoio mauiciaJ na consrruçáo de uma rede multicêntrica 145

Ora, se os CAPS forem considerados ordenadores da miséria em que se encontra a maior parte da população
rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se
o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação traduz em condições de existência favoráveis às dificul-
àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto dades afetivas, emocionais e relacionais.
almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)
com O conceito e imagem de uma rede multicêntrica, os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da
em que o CAPS pode funcionar como agenciador das carga mundial de doenças (OMS, 2001). No Brasil, o
demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-
lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de
na atenção se destacam, em determinado momento, de cuidados contínuos, intensivos (específicos dos CAPS).
acordo com O andamento do Projeto Terapêutico de cada Nove por cento da população apresenta transtornos
usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-
das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,
movimente para dar sustentação às necessidades dos pelos quais a Atenção Básica que deve responsabilizar-se
usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente (BRASIL, 2003).
para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar Existe, ainda, um componente subjetivo associado
em um suporte efetivo para as dificuldades que esses ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como
, . entrave ao tratamenro, à adesão as práticas preventivas e
usuanos possuem.
Assim, destaca-se a necessidade da integração dos até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,
serviços, há casos com uns entre os serviços, ou si tuações uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais
que dizem respeito tanto aos CAPS quanro à Atenção se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;
• A _ • A •
Básica. Seria o caso do usuário do CAPS, aquele da ou o paciente com cancer que nao encontra reslstenCla
região de abrangência de determinada equipe da UBS para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-
ou o garoto usuário de drogas que em dado momento ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF
precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é (CAMPOS, G.WS., 2003).
fundamental a articulação dos serviços, a discussão do Atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de
caso comum e o envolvimenro dos diversos arores no Atenção Básica vem tencionando a incorporação das
caso em q uestao. - dimensões subjetiva e social na prática clínica, através
É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio
Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade
que tem sido crescente a demanda pela atenção aos aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes
transrornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos se deparem cotidianamente com problemas de Saúde
geralmente sob a forma de queixas somáticas e 'nervosas', Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra
transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio- que 56% das equipes de PSF referem realizar 'alguma
nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do ação de Saúde Mental' (BRASIL, 2003), ainda que essas
abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos, equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com
são diversos os problemas advindos das faltas concretas esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade
na vida, geradas pela ordem socioeconâmica vigente. A com as famílias e as comunidades, elas se constituem

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. n. 78/79/80. p. 143-149. jan.ldt."Z. 2008


146 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

num recurso estratégico para o enfrentamento do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008) aprovou a criação
sofrimento psíquico. dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Similar
Além disso, a OMS e o Ministério da Saúde esti- ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os
mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos NASF são compostos por profissionais de diferentes áreas
profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori, especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de
uma demanda específica que justifique a necessidade Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e
de uma atenção especializada (BRASIL, 2003). É o caso resolutividade dessas equipes.
da senhora que se costuma denominar 'poli-queixosà,
e que representa uma demanda freqüente para a Aten-
ção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar
com sua existência pobre de sentido, com a ausência de O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAÚDE
espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos, E SAÚDE MENTAL
o empreendimento de longos processos psicoterápicos
e a administração de antidepressivos são insuficientes
"Onde a brasa mora e devora o breu
como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros
Como a chuva molha o que se escondeu
dispositivos de atenção, disparadores de produção de O seu olhar melhora o meu"
vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade Arnaldo Antunes e Paulo Tatit
(CAMPOS; NASCIMENTO, 2003).
Assim, na continuidade da Reforma Psiquiátrica Na proposta de Campos (1999), profundas refor-
... ..
e para propIcIar maIOr conSlstenCla as Intervençoes
-,,','
mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde
em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-
estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. O
na Atenção Básica, promovendo a interlocução entre autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo
os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi- que os antigos departamentos especializados (outrora
cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio
ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o especializado às equipes interdisciplinares.
conjunto de relações sociais que determinam desejos, Essas equipes, denominadas pelo autor como
interesses e necessidades, conforme Gastão Wagner de Equipes de Referência, têm como princípio a adscri-
Souza Campos (2000; 2003). ção de clientela, garantindo um sistema de referência
Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.
Atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado A relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-
por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse- tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.
rir a Saúde Men tal e outras áreas especializadas na Atenção Assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele
Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador é atendido por sua Equipe de Referência, o que per-
da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. Trata- mite o acompanhamento do processo saúde/doença/
se de uma importante discussão na atualidade, já que a intervenção (CAMPOS, 1999). Gradativamente, isto es-
estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada timula a responsabilização pela produção de saúde, pois
em nível nacional a partir da Portaria nO 154, na qual o quando o usuário passa a ter um nome e uma história,

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan.ldez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menral e Atençáo Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede mulricênrrica 147

a implicação da equipe rende a aumentar e as resposras ciplinar. A rransdisciplinaridade que, no sentido dado
profissionais a serem menos esrereoripadas. As Equipes por Passos e Barros (2000) é urna das grandes apostas
de Referência, porranro, seriam responsáveis por realizar do apoio matricial.
os projeros rerapêuricos, promovendo, assim, o vínculo
e a responsabilização. A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de
sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito
Dessa forma, o apoio marricial seria uma ferramen-
de desestabilização {..} da unidade das disciplinas e
ra para agenciar a indispensável insrrumentalização das dos especialismos. (p. 76).
equipes na ampliação da clínica', subverrendo O modelo
médico dominanre que se rraduz na fragmentação do A Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa
rrabalho e na produção excessiva de encaminhamentos, a compor a rede matricial de apoio. Consumi uma linha
muiras vezes desnecessários, às diversas especialidades, de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a
segundo Rosana Onocko Campos (2003). lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e
O apoio marricial se configura como um suporre romper com o sistema de referência e contra-referência,
récnico especializado (CAMPOS, 1999) que é oferrado a que produzem encaminhamenros consecutivos para as
uma equipe inrerdisciplinar de saúde, a fim de ampliar diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-
seu campo de amação e qualificar suas ações. Ele pode sabilização pela produção de saúde (CAMPOS, 1999).
ser realizado por profissionais de diversas áreas especia- A parrir de discussões clínicas conjuntas, apoio para
lizadas, mas esramos romando aqui a especificidade da a construção de projeros terapêuricos ou mesmo inter-
Saúde Mental, considerando que as questões subjerivas venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,
transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser visiras domiciliares, entre outras), os profissionais matri-
abordadas em roda relação rerapêutica. ciais podem contribuir para o aumento da capacidade
A proposta é que os profissionais possam aprender a resoluriva das equipes, qualificando-as para uma arenção
lidar com os sujeiros em sua complexidade, incorporan- ampliada em saúde que contemple a complexidade da
do as dimensões subjeriva e social do ser humano, mas vida dos sujeiros.
que esrejam acompanhados por alguém especializado Os atendimentos conjuntos com o profissional ma-
que lhes dê suporre para compreender e intervir nesre rricial têm uma imporrante função pedagógica, já que as
campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe- equipes podem aprender in loco a inrervir no campo da
cimentos e ações, hisroricamente reconhecidos como Saúde Mental e se aurorizar nas ações que nem sempre
inerentes à área 'psi', são oferrados aos profissionais de cabem nos prorocolos, lidando com situações de exclu-
saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar são social, violência, luro, as mais diversas perdas, que
sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimenro psí- não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a
quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria própria consulta clínica. Ou ainda quando se trata de um
uma oferta do núcleo profissional 'psi' ao campo dos usuário de referência do CAPS que está em tratamenro na
profissionais de saúde (CAMPOS, 2000), na construção Atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se
de um novo saber, um saber que se pretende transdis- inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com

ICampos, G. WS. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para cenrrâ-Ia num
sujeiro concreto e singular, porrador de cerra enfermidade. Ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeiros em sua tota-
lidade, considerando o biológico como dererminanre do processo saúde e doença, mas rambém incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e
cultural como outros determinanres.

Smidum ~bnt~, Rio de Janeiro, v. 32, n. 7809/80, p. 143-149, jan.ldez.. 2008


148 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

quadros psiquiátricos mais graves e o atendimenro Segundo Campos (1999), essa reordenação do
conjunto com O apoiador matricial pode proporcionar desenho institucional da rede de Atenção Básica per-
um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas
da doença mental, ajudando a diminuir O preconceito necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser
e a segregação da loucura. enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo
Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi- a gestão do processo de trabalho e a formação de outra
te distinguir as situações individuais e sociais, comuns subjetividade profissional, centrada no diálogo e na
à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela transdisci plinaridade.
Equipe de Referência e por outros recursos sociais do No entanto, deve-se reconhecer que a mudança
entorno, daquelas demandas que necessitam de uma da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial
atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre
na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-
ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade, lhada junto às equipes, instalando espaços destinados
pelo CAPS da região de abrangência. Pretende-se, com à reAexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e
isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de que possam ser continentes aos problemas na relação
Referência e profissionais matriciais, de modo que o entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,
encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento
de forma dialogada. do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com
Assim, é possível promover a eqüidade e o acesso, a pobreza e a violência. Todas essas questões podem
garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-
vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa- fissionais não tiverem espaços de reAexão e formação
vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção permanentes para processá-las, que sejam capazes de
em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a realimentar constantemente a potencialidade do apoio
articulação entre os profissionais na elaboração de proje- matricial, enquanto arranjo transformador das práticas
tos terapêuticos pensados para cada situação singular. hegemônicas na saúde.
O apoio matricial, portanto, provoca e explicita Assim, afirmamos a importância de espaços
uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual
papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-
as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos cias interligadas e complementares. Uma rede que,
diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais, sobretudo, incite o movimento de acordo com as
a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais
cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao
em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele
tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da
de Auxo, evitar práticas que levam à 'psiquiatrização' e à desresponsabilização, uma rede de salvamento e não
'medicalização' do sofrimento humano. de captura e impotência.

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menml e Atençáo Básica à Sallde: o apoio mauiciaJ na consrruçáo de uma rede multicêntrica 149

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