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PARA QUE O ESTADO?

: ESPECULAÇÕES A PARTIR DE HOBBES,


NIETZSCHE E CLASTRES

Ronivaldo de Oliveira Rego Santos

O que é o Estado? Para que ele serve? São algumas das muitas questões que
emergiram até agora nestes encontros da pós-graduação. Mas talvez, mais importante ainda
seja identificar como as representações sobre o Estado tem se construído em nosso imaginário
individual e coletivo.
Nesta medida, este texto é uma tentativa de comparação sobre a noção de Estado
em alguns fragmentos de textos de Hobbes, no Leviatã, de Nietzsche em Genealogia da
Moral e Clastres, no ensaio Sociedade contra o Estado. Tal tarefa, sobretudo provocadora,
tem me causado algumas horas de ruminação sobre tudo o que se discute nos encontros, pois
encontrar semelhanças e dessemelhanças analíticas em textos de períodos históricos diferentes
nos tem proporcionado reflexões importantes.
Mais ainda, poder discutir tanto o estado quanto outras questões com pensadores
como Nietzsche, com a profundidade necessária, pessoalmente tem me ajudado muito. Faço
essa inferência por que me lembro de algumas aulas da graduação que professores falavam
que Nietzsche não construiu um pensamento que refletisse efetivamente as “coisas” que nos
rodeiam, ou então que “Nietzsche só criticou, não deu resposta”. Ora, será que muitos dos
malogros hoje existentes não são os resultados das receitas e respostas que amiúde são vistas
como a única via?
Mas nos atentemos a questão central deste breve escrito, que versa sobre a
comparação das representações do Estado nos pensadores já mencionados. O que se fará,
portanto, em uma perspectiva foucaultiana, é tentar entender o como1das representações de
uma figura tão paradoxal nas sociedades contemporâneas: O Estado. Para isso seguiremos
uma estrutura cronológica, isto é, do texto mais antigo para o mais atual: primeiro o Leviatã,
em seguida os parágrafos 16 e 17 da segunda dissertação da Genealogia da Moral e
finalmente Sociedade contra o Estado.
Hobbes e o Estado

1
Em Soberania e disciplina, Foucault fala sobre a importância de se pensar as relações de poder em suas micro
estruturas, em locais muitos específicos. A meu ver, tanto para o historiador quanto para o intelectual
preocupado e engajado, falar das microhistórias e das histórias vistas de baixo, isto é, desvinculadas da visão
oficial.
Hobbes trata do homem de forma universal, imutável, desconsiderando as
transformações históricas e sociais que o seu tempo imprimia. Seria desleixo ou método o
recurso utilizado? Parece muito mais proposital que ingenuidade. Bem, mas isso é outra
questão, que ainda não tenho preparo intelectual para responder.
Como foi possível perceber no decorre das aulas esclarecedoras, o princípio que
move o Leviatã é o contrato firmado pelos homens para dar fim à guerra. Isto é, segundo
Hobbes o Estado é o meio para acabar com “a guerra de todos homens contra todos os
homens”, que se encontram em estado de natureza. “Desta guerra de todos os homens contra
todos os homens isto é consequência: que nada pode ser injusto” 2. Para tanto, o Estado
deveria ser absoluto, indivisível e teria em um homem ou assembleia de homens a
personificação das vontades dos outros homens que lhes delegaram poder. Tal condição se dá,
entre outras posturas, pela supressão das paixões dos homens e de suas individualidades. Ora,
os homens não poderiam exercer suas vontades, enquanto o soberano poderia exercer a sua
indiscriminadamente.
Na perspectiva hobbesiniana, ao que parece, tal supremacia tornaria o Estado forte
e perene, pois evitaria os conflitos e as guerras. Mas a justificativa utilizada não é outro
argumento senão o do medo, do temor causado pelo Leviatã. O medo é o mecanismo que
provoca a submissão ao Estado, aos seus instrumentos e mecanismos de controle. Já a
remição ao mito fenício, o Leviatã, monstro marinho, que também é visto na bíblia aponta
para a necessidade do medo. Vejamos tal condição preliminar do estado no livro de Jó.

A força enorme que tem no pescoço lança o terror por onde passa.
Tem uns músculos duros e firmes; nem se encontra nele carne flácida.
 

O seu coração é duro como uma rocha, é como uma mó, de moinho.
Quando se ergue, até os mais valentes têm medo, e ficam paralisados de terror 3

A metáfora utilizada por Hobbes, embora ele aparentemente faça inferência contra
estes mecanismos no Livro IV4, aponta para o medo que causa o leviatã, logo o Estado. Se a
representação do Estado é a do monstro certamente a ordem e o controle das paixões e desejos
individuais também seriam efetivados por meio da coercitividade e do terror. Notadamente
não com este tom que Hobbes fala do medo, mas como algo necessário a manutenção do

2
Este trecho do leviatã faz-me lembrar de uma passagem de Os Irmão Karamazov, segundo a qual se Deus não
existe tudo é permitido. Se nos lembrarmos da ideia de um Deus mortal tal como no leviatã, poderíamos
conjecturar em analogia.
3
JÓ, 41; 22-25. Versão disponível em:https://www.biblegateway.com/passage/?search=J
%C3%B3+41&version=OL
4
Sobre as metáforas, Hobbes as vê como abusos da linguagem. “quando usam palavras de maneira metafórica,
ou seja, com um sentido diferente daquele que lhes foi atribuído, e deste modo enganam os outros” (Livro IV).
Nessa perspectiva não seria o Leviatã uma metáfora enganadora? E uma contradição de Hobbes consigo mesmo?
poder e da soberania do Estado. É somente com a manutenção da condição de medo que o
estado continuará forte e mantendo a liberdade e a segurança dos indivíduos.

Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe
conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz
de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela
ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros5.

A paz, portanto, é o resultado da força e do medo que o Estado exerce sobre os


homens. Esta é a única via para a manutenção da paz, o controle das paixões e dos desejos,
ainda que pelo uso da força e a difusão do medo. O problema é que, aparentemente, segundo
Hobbes, não há outro caminho, senão o dessa força quase divina que o Estado, o Deus Mortal,
exerce sobre os homens. Sobre essa questão quem nos ajuda na compreensão é Foucault, uma
vez que fala da única condição capaz de manter e legitimar a soberania o medo.

Não é, pois, a derrota que fundamenta uma sociedade de dominação, de escravidão,


de servidão, de uma maneira brutal e fora do direito, mas o que se passou da derrota,
depois mesmo da batalha, depois mesmo da derrota, e de certa maneira
independentemente dela: é algo que é o medo, a renúncia ao medo, a renúncia aos
riscos da vida. É isso que faz entrar na ordem da soberania e num regime jurídico
que é o poder absoluto. A vontade de preferir a vida à morte [...] (FOUCAULT,
1999, p. 109-110).

Foucault articula a o estatuto da soberania ao medo que os indivíduos tem de


perder a vida ou de levar uma vida com frequentes descontinuidades. Mas não se limita a isso,
pois fazer essa observação ela nos provoca a tentar entende, não o por que dessa coerção e
sim a maneira como o controle se estabelece nas relações do individuo com o estado e mais
especificamente quais os procedimentos utilizados para suprimir, vigiar e punir. E aqui não
esta se falando somente de ações ligadas à vias de fato e sim a uma série de operadores que
coagem, causando medo sem necessariamente violentar o corpo, mas a mente do indivíduos.
Ora, parece que Foucault não esta analisando um texto do século XVII e sim as
relações de poder contemporâneas. De fato isso não é uma inverdade, uma vez que as relações
atuais inspiram-se nos imperativos passados, ainda que estes estejam negando as condições
históricas, ou no mínimo tornando-as sem importância. Tal condição o filósofo francês chama
de representação trocada.

O que se encontra, o que se enfrenta, o que se entrecruza, no estado de guerra


primitiva de Hobbes, não são armas, não são punhos, não são forças selvagens e
5
LEVIATÃ, XVII.
desenfreadas. Não há batalhas na guerra primitiva de Hobbes, não há sangue, não há
cadáveres. Há representações, manifestações, sinais, expressões enfáticas,
astuciosas, mentirosas; há engodos, vontades que são disfarçadas em seu contrário,
inquietudes que são camufladas em certezas. Está-se no teatro das representações
trocadas, está-se numa relação de medo que uma relação temporalmente indefinida;
não se está realmente na guerra (FOUCAULT, 1999, p. 106).

Então o que faz Hobbes é criar imperativos em torno de condições preocupantes,


mas que não representariam os acontecimentos de fato. Ao criar uma conjuntura, um
imaginário, Hobbes nega toda a história dos acontecimentos que acometem o seu tempo. São
sinais e manifestações claras dos objetivos de Hobbes. Mas acima de tudo de trabalhar com
imutabilidade dos seres humano, provocando-os a busca ou construir algo acima deles, uma
vez que não são capazes de controlar seus desejos. Este é a representação trocada, isto é, falar
de uma história das mentidas, como bem destacou o prof. Eduardo. E mais, representações
trocadas que tentam transformar conjecturas em situações reais, fazendo assim que o Estado
seja algo mais que uma necessidade, mas se torne um ícone, um Deus, ainda que mortal.

Nietzsche: o Estado surge como um raio

A ideia de que o Estado tem uma origem, em certa medida, parcimoniosa como
assevera Hobbes, feita em acordo ou contrato entre os homens, não teria um algo de simplista
do ponto de vista histórico-filosófico? Ao que parece, a resposta seria sim, embora já tenha
observado que tal posição apresenta-se muito mais como um método do que como ignorância
de Hobbes.
Não obstante a isso, avançando alguns séculos, chagamos a uma posição menos
harmônica6 que a de Hobbes. A hipótese nietzschiana está ligada para além de um sentido a-
histórico, Nietzsche não descarta uma revisão histórica do acontecimento, embora também
não queira se prender única e exclusivamente a ele de maneira linear. Pretende, a meu ver,
entender os efeitos da constituição do Estado. Cabe dizer que o efeito principal do surgimento
do Estado seja justamente a concepção da “má consciência” (aliás, aqui também não inovo em
nada, pois isso posto pelo prof. Eduardo). Cumpre, portanto, tentar mostrar o como Nietzsche
articula sua hipótese nos parágrafos 16 e 17 da Segunda Dissertação de Genealogia da

6
Falo de uma posição harmônica porque, mesmo que Hobbes fale constantemente de guerra e dos conflitos, o
contrato que levaria a criação do Estado seria estipulado de forma diplomática, por pura e simples razão dos
homens. Não haveriam conflitos, os homens sentiriam a necessidade de ser organizarem em um Estado.
Moral, ou melhor, mostrar se realmente entendi algo sobre aquilo que discutimos em sala de
aula. Se possível fazendo um recurso comparativo com o texto de Hobbes.
Em o Estado grego, há impressões importantes sobre como se caracterizaria o
Estado, mesmo que sob uma perspectiva romântica 7, Nietzsche aponta para alguns problemas
importantes que acometeriam as condições de criação e manutenção do poder e da
estabilidade do Estado. Mas não só isso, Nietzsche já no referido texto aponta para a guerra
como pressuposto da criação do Estado ao mesmo tempo em que fala de como o estado é
legitimado, isto é, pelo direito gerado pela violência: “ É a violência que dá o primeiro
direito8”. Isso nos leva uma contraposição em relação ao postulado de Hobbes, poiso estado
não surgiria do contrato, mas da violência, para manter e legitimar outras violências que
ocorreriam já no sei do Estado. Ora quem ousasse transgredir as ordens e suposta paz
estimulada pelo Estado, seria castigado. “Castigo como declaração de guerra contra um
inimigo da paz, da ordem, da autoridade, que, se sendo perigoso para a comunidade, como
violador da paz, é combatido com s meios que a guerra fornece”9.
Então não há como dizer, historicamente, que o estado tenha surgido de um
acordo feito tranquilamente entre os homens que, a priori, estariam em guerra. Em tão
nietzsche diz que o Estado, representado pelas “bestas louras”, (...) são imprevisíveis, eles
vêm como um destino, sem motivo, razão, consideração, pretexto, eles surgem como o raio,
de maneira demasiado terrível, repentina, persuasiva, demasiado “outra”, para serem seque
odiados”. Nessa perspectiva, o estado, em momento algum pode surgir do contrato, e sim da
supressão de uma raça sobre a outra. Ambas as raças nômades, a mais forte e organizada
oprime e escraviza a mais fraca; para manter a organização, provocam a estaticidade, isto é, o
povo nômade passa a ser Estático, fácil de controlar. Ao mesmo tempo em que surge o Estado
surge a” má consciência”, talvez esta como efeito dos operadores estatais.
Segundo os argumentos de Nietzsche, este falso estado de paz provocou a “má
consciência” e por que não dizer a decadência humana, uma vez que o desenvolvimento do
estado moderno se caracteriza pela ligação com os preceitos religiosos 10. Ademias, mesmo
considerando que no parágrafo 17 Nietzsche fale que os semianimais eram povos
7
Sobre esta questão Owaldo Giacoia Junior, em Nietzsche: o humano como memória e como promessa, traz
reflexões importantes entre as quais destaco o ponto que mencionei: Com o afastamento dessa concepção
metafísica da natureza, produtora da ruptura com Schopenhauer e com Richard Wagner, a reflexão de Nietzsche
sobre o Estado, o direito e a política adquirem novos contornos, afastando-se decididamente da inspiração
romântica que marcava sua obra inicial.
8
NIETZSCHE, O estado grego, p. 18.
9
GM, Segundo dissertação, § 13.
10
Sobre a questão da decadência, algo que está inscrito especialmente em O Caso Wagner, há um texto recente e
interessante de Evaldo Sampaio: Porque somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche, da
Editora UNB.
desorganizados em sem normas, eu não considero (se é que posso fazer isso) que ele faça
apologia às bestas louras (essa foi uma interpretação nazista, ao que me parece).
Paradoxalmente, embora Nietzsche fale de força e arte, entendo que ela queira dizer que o
Estado somente provocou malogros, pois o povo errante perdeu sua capacidade de se
movimentar, de criar e até mesmo de guerrear, foi sucumbida a pressões e opressões, pois lhe
foi importa uma forma.
Mesmo se os fortes, organizadores, não tenham ressentimento, por estarem
profundamente ativos na incessante busca de manter a opressão (então há ressentimento),
nietzsche fala, a meu ver com ironia sobre isso, justamente por entender que a má consciência
surgirá em ambos os grupos, pois agora eles fazem parte do mesmo Estado “organizado”,
“harmônico” e em “paz”. Parece-me ainda, que a condição de nômade e errante seria
privilegiada, pois artística, em movimento, em transformação constante. Digo isso em função
destas passagens tanto do parágrafo 16 quanto do 17, respectivamente: “Vejo a “má
consciência” [resultado do surgimento do Estado] como profunda doença que o homem teve
de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu – a mudança que sobreveio
quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz.11”
Ora, o estado encerra, prende os instintos dos homens. Ao fazer isso suprimem
sua criatividade, sua coragem, sua destreza. Condena-os a uma forma, ao paradigma ideal que
não pode se desajustar da sociedade. Tal condição é também escrita no trecho a seguir:

Neles [bestas louras] não nasce a “má consciência”, isto é mais do que claro – mas
sem eles não teria nascido, essa planta hedionda, ela não teria existiria se, sob o peso
de seus golpes de martelo, da sua violência de artista, um enorme quantum de
liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou a menos o campo de visão, e
tornando-se latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força [...] esse
instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz
de desaforar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má
consciência12.

Ainda que exista um sentido artístico nas marteladas dos criadores do Estado,
Nietzsche não os libera da consequência mais nefasta da humanidade, que é a má consciência.
Mas, vejam que a grande questão versa sobre a supressão dos instintos libertadores do
humano, sobre a concentração desses no homem, fazendo-os sentirem raiva de si mesmos 13,
bem como reprimir, via mecanismos de violência, à vontade libertado. Daí vai surgir também
a culpa, que sempre é de si mesmo ou do outro. Perdem-se com estas repressões todas as
capacidades criadoras existentes no agir e o pensamento nômade (acho que vi isso no

11
GM, § 16, Grifo meu.
12
GM, § 17, grifos, em negrito, meus.
13
Cf. § 16.
Deleuze). A fixação, portanto, é que possibilita o controle, a vigilância e a punição condições
basilares que são os meios pelos quais o Estado mantém a “paz”. Nietzsche parece-me ser
contra toda essa construção, pois pode provocar o declínio do humano, bem como a supressão
de suas capacidades criadoras. A este tipo de organização proposta pelo Estado, a resposta de
Nietzsche talvez se encontre lá no texto O Estado grego, ao asseverar: “terei que entoar
oportunamente um canto de louvor à guerra”14. Guerra contra a mesquinhez humana, que
durante muito tempo foi difundida pelo próprio Estado, com suas artimanhas e astúcias.

Clastres: Estado, coisa de “civilizado”?

Uma das primeiras impressões que emanam do texto do Clastres é que a noção de
Estado, para nós, seres supostamente civilizados, é inata. Ele está ai, em potência, prontinho
para ser, por nós, representados. Nessa medida, a ideia de que as sociedades primitivas não
evoluem pela falta de Estado, nada mais é do que uma representação que nós impelimos sobre
eles. Em outras palavras, do lugar onde estamos, falamos que o lugar das tribos, são uma
espécie de não-lugar, onde não paz, somente barbárie. Sendo assim, fala-se tanto da
necessidade do estado nas sociedades primitivas, não por que esses povos realmente precisem,
mas sim porque entendemos, de cima de nosso etnocentrismo15, que ele é necessário.
Levando em consideração o que Clastres diz em contraposição aos Estados
modernos, este seria muito mais bárbaro e guerreador que os primitivos (este nome não soa
bem). Se colocarmos Clastres contrapondo-se a Hobbes, é bem provável que no Leviatã
haveriam guerras mais frequentemente que nas aldeias dos povos aborígines (esta
terminologia parece melhor). Mas os problemas estão além da simples esfera conceitual e
liga-se ao campo das relações de poder político e econômico.

Se, com isso, quisermos significar que as sociedades primitivas desconhecem a


economia de mercado onde são escoados os excedentes da produção, nada
afirmamos de modo estrito, e contentamo-nos em destacar mais uma falta, sempre
com referência ao nosso próprio mundo: essas sociedades que não possuem Estado,
escrita, história, também não dispõem de mercado 16.

O problema seria então a falta de produção dos bens materiais rejeita por esses
povos e sua ociosidade. Então, o que caracteriza um Estado é a sua capacidade de produzir e
estocar, e mais, o homem civilizado é aquele que vive determinado pelas leis do mercado, por

14
p. 21.
15
Clastres, p. 3.
16
Idem, p. 4.
sua capacidade de produzir, de comprar, em outras palavras, o homem civilizado, que vive no
Estado, é o escravo de si mesmo e das convenções.
Mesmo sem citar, não é difícil observar que tais convenções estão próximas ao
modelamento das forças segundo a perspectiva que tentamos interpretar o texto de Nietzsche
anteriormente. O que estou querendo dizer é que, se entendi bem, não há Estado sem que
exista a escravidão, seja ela de que forma for. Essa é uma das suas prerrogativas. Quando se
escraviza, se oprime, vilipendia e destroça. Quando isso acontece com povos diferentes
culturalmente o procedimento parece ser ainda mais sangrento, pois há um processo de
aculturamento antropofágico17. Os mecanismos podem ser muitos, mas o principal talvez seja
a educação, que ao tentar valorizar os povos sem muito contato, o fazem por meio de uma
cultura europeia, cristã e branca.
Outro meio importante está relacionado aos aspectos políticos. Nesse sentido
Clastres assevera que a verdadeira revolução na humanidade foi a criação do Estado. Diz
ainda que tal condição se fortifica na medida em que são os preceitos e permissões políticas
que irão legitimar o mercado e superprodução. Portanto, as mudanças estruturais não
modificaram em nada as condições políticas, uma vez que a política que determina e permite
a exploração.

A principal divisão da sociedade, aquela que serve de base a todas as outras,


inclusive sem dúvida a divisão do trabalho, é a nova disposição vertical entre a base
e o cume, é o grande corte político entre detentores da força, seja ela guerreira ou
religiosa, e sujeitados a essa força. A relação política do poder precede e fundamenta
a relação econômica de exploração. Antes de ser econômica, a alienação é política, o
poder antecede o trabalho, o econômico é uma derivação do político, a emergência
do Estado determina o aparecimento das classes.18

Tal constatação nega o princípio hobbseniano segundo o qual os homens fariam


um contrato harmoniosamente de dentro para fora e ao mesmo tempo converge com
argumento nietzschiano que diz ser o Estado algo repentino, que surge para organizar, mas ao
mesmo tempo oprime. Tudo isso ocorre para a manutenção do poder. E como bem diz
Foulcault, “O poder funciona”19. Mas constatação pior não é essa, e sim a que foi mostrado
pelo prof, Eduardo: “nós pactuamos com o Estado”. Na justa medida, é Foucault quem mostra
como pactuamos e somos signatários:

17
O ultimo termo eu apresento no sentido de Bauman, expresso em o Mal-estar na pós-modernidade. Segundo
Baumam, o estado precisa de alguns recursos para manter a ordem, entre eles está a supressão das diferenças. Ser
estranho causa a desordem no conjunto harmônico e homogêneo que é o Estado.
18
CLastres, p. 10.
19
Em defesa da sociedade, p. 35.
O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão
sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais
eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em
outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles.20

A denúncia é angustiante, uma vez que mostra a nossa própria incapacidade de


lidar com tais acontecimentos, haja vista que estamos de lado dos “civilizados”, mesmo que
não tenhamos as mesmas práticas. Talvez aqui a reflexão de Marx, n’A ideologia alemã seja
válida: nada adianta combater frases com frases. Falamos e criticamos as ações do Estado,
mas será que também não estamos sempre nos colando como superiores, pois não somos
capazes de viver sem os nossos aparatos tecnológicos, os carros e falamos que os povos
“primitivos” são atrasados?
O fato é que, ao que parece em nosso mundo civilizado, com história e com
Estado, vivemos muito mais em barbárie do que os povos descritos por Clastres. Vivemos em
mais conflitos e guerras que as tribos cuja obrigação do líder é colaborar com a sociedade, e
não o contrário (ao que parece são até mais éticos, mesmo que não conheçam o termo). Nesse
Deus mortal contemporâneo, onde todos são iguais perante a lei, isto é, o direito 21,
continuamos sendo muito mais belicosos. Os governantes preferem os seus interesses e nunca
a vontade, é melhor que os odiemos, desde que estejam com os bolsos cheios, enquanto para o
chefe de uma tribo: “prefiro ser amado e não temido por eles”22.
Tendo em vista esse debate, seria o Estado esse mal, que utiliza todos os seus
recursos para secularizar a guerra e não mais de estabelecer e manter a paz? Esta resposta não
tenho, nem me atreverei a tentar.

Considerações finais

20
Idem.
21
A meu ver o direito é o meio de segundo o qual o Estado exerce o “monopólio da violência física legitima”
(CLASTRES, p. 15). Tal condição também é vista em Hobbes.
22
Clastres, p. 18.

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