Você está na página 1de 19

CARTAS FAMILIARES E PESSOAIS: DA TEORIA SOBRE GÊNEROS DO

DISCURSO A UMA PRÁTICA DE ANÁLISE DESCRITIVA

WATTHIER, Luciane (PG – UNIOESTE) 1


COSTA-HÜBES, Terezinha da Conceição (Prof. Dra. - UNIOESTE) 2

RESUMO: Com a evolução dos gêneros discursivos, a carta familiar e/ou pessoal deixou de
ser utilizada como o único recurso para a interlocução entre pessoas que se encontram
distantes. Entretanto, trata-se de um gênero que revela peculiaridades fônicas, semânticas e
pragmáticas da época em que foram escritos, bem como da identidade das pessoas envolvidas
no processo de interação (escritor e destinatário). Assim, um dos objetivos deste estudo
consiste em realizar uma análise descritiva do gênero discursivo em questão, abordando seus
principais aspectos característicos enquanto um gênero do discurso primário. Apresenta-se,
portanto, no aporte teórico, reflexões acerca das teorias de Bakhtin (2000) sobre os gêneros
discursivos e a linguagem popular utilizada nas cartas. Abordam-se, ainda, outros estudiosos,
entre os quais Bronckart (2003), Marcuschi (2003), Baltar (2004), Bazerman (2006), Basílio
(1991). É pertinente lembrar que este estudo faz parte de uma pesquisa de mestrado em
Letras.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero discursivo, carta familiar e/ou pessoal, linguagem, cultura,


identidade.

RESUMEN: Con la evolución de los géneros discursivos, la carta familiar y/o personal dejó
de ser utilizada como el único recurso para la interlocución entre personas que están lejos. Sin
embargo, es un género que revela particularidades fonéticas, semánticas y pragmáticas del
momento en que fueron escritos, así como de la identidad de las personas envueltas en el
proceso de interacción (escritor y receptor). Así, uno de los objetivos de este estudio consiste
en realizar un análisis descriptivo del género en cuestión como un género del discurso
primario. Se presenta, por tanto, en los aportes teóricos, reflexiones acerca de las teorías de
Bakhtin (2000), sobre el género discursivo y el lenguaje utilizado en las cartas. Se abordan,
aun, otros estudiosos, entre los cuales (2003), Marcuschi (2003), Baltar (2004), Bazerman
(2006), Basílio (1991). Es pertinente recordar que este estudio haz parte de una pesquisa de
maestría en Letras.

PALABRAS-CLAVE: Género discursivo, carta familiar y/o personal, lenguaje, cultura,


identidad.

1 INTRODUÇÂO
1
Aluna de pós-graduação strictu sensu, nível de mestrado, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE). Bolsista Fundação Araucária.
2
Professora Orientadora – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
A utilização do gênero discursivo carta pessoal e/ou familiar (corpus da pesquisa), hoje, é um
pouco raro, devido ao surgimento de novos modelos de textos. Entretanto, há algum tempo
atrás, era o único meio de realizar a interação entre pessoas (parentes e/ou amigas) que se
encontravam distantes umas das outras, até mesmo por imigrantes que, por meio das cartas,
contavam a seus familiares, moradores de outros países, as novidades do novo país no qual
vieram morar. Tal fato exemplifica o processo de evolução sofrido pelos gêneros discursivos,
conforme descrito por Marcuschi (2003) e Baltar (2004), processo esse que será abordado no
decorrer deste texto.
Sendo parte de uma pesquisa maior, este trabalho apresenta uma análise descritiva do corpus
que está sendo estudado em um projeto de pesquisa elaborado para o Curso de Mestrado em
Letras, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Trata-se de um estudo
sobre cartas familiares e/ou pessoais, nas quais, busca-se identificar as marcas que as
constituem como pertencentes ao discurso primário, bem como investigar aspectos
linguísticos, culturais e identitários, tanto da época e do contexto em que este material foi
produzido, quanto das pessoas que integraram esse processo de interação, ou seja, o escritor e
o destinatário das cartas. No entanto, a análise presente neste texto focalizará apenas as
marcas que definem esse gênero como discurso primário, o que é realizado com base em um
estudo sobre os gêneros discursivos apresentado na primeira sessão do mesmo.
O interesse pelo estudo deste corpus surgiu a partir da compreensão de que a linguagem
representa aspectos da época em que é escrita, bem como da visão de mundo do autor, o que é
acentuado na escrita de textos informais e, principalmente, nas narrativas pessoais, as quais
podem ser contadas por meio de cartas. Conforme Bazerman (2006), as cartas pessoais e/ou
familiares estão abertamente ligadas às relações sociais e a escritores particulares, tornando-se
um material riquíssimo em particularidades de uma época e da cultura de um povo. Além
disso, expressam, na maior parte das vezes, o mais natural da comunicação humana, ou seja,
uma “conversa” informal, na qual é possível observar, portanto, um reflexo dos modos como
interagimos verbalmente no nosso cotidiano, constituindo-se como discursos ricos em
relações sociais, o que nos permite caracterizá-la, conforme Bakhtin (2000), como um gênero
discursivo primário.
Para uma melhor exposição do trabalho, o texto encontra-se estruturado em duas grandes
partes, estando a primeira constituída por reflexões teóricas acerca dos gêneros
discursivos/textuais (primários e secundários) e a segunda por uma análise descritiva da carta
familiar e/ou pessoal, abordando seu surgimento e características que nos permitem
compreendê-la enquanto um gênero do discurso primário, como linguagem, organização e
função social.

2 GÊNEROS DISCURSIVOS/TEXTUAIS

O estudo sobre pesquisas e reflexões já realizadas em torno da temática dos gêneros


discursivos/textuais é fundamental neste trabalho como forma de compreendermos algumas
das características próprias do gênero carta familiar, tanto em relação à sua forma, quanto à
linguagem e função cumprida pelo mesmo durante o processo de interação humana, pois é
este o material de análise que constitui nosso corpus de pesquisa. Antes de adentrarmos na
especificação da carta familiar, porém, é pertinente a compreensão do modo como utilizamos
os gêneros discursivos/textuais para a concretização da interação.
À exploração do assunto, vários teóricos já se dedicaram. Entre estes, começaremos citando
aquele que foi o precursor, ou seja, Bakhtin(2000) 3 , retomando suas reflexões e observando
de que forma as mesmas foram incorporadas em estudos posteriores. Para garantir essa
compreensão, estaremos abordando também outros teóricos, entre os quais estão Bronckart
(2003), Marcuschi (2003, 2006, 2008), Baltar (2004), Schneuwly & Dolz (2004), Motta-Roth
(2006), Bazerman (2006), Costa-Hübes (2008), entre outros.
Devido ao grande número de teóricos que estudam os gêneros discursivos/textuais,
observamos uma pequena variação de terminologias dentro desta temática, o que, inclusive, é
criticado por alguns autores, entre os quais Baltar (2004), que afirma que estas confundem a
compreensão de leitores, professores e alunos de língua materna. Entretanto, as variações são
reduzidas somente à nomenclatura “gênero discursivo” ou “gênero textual”, pois estes
pesquisadores, em sua grande maioria, são seguidores das teorias de Bakhtin (2000). Ao
abordarmos tais estudos, consideramos, portanto, a terminologia adotada por cada um.

2.1 GÊNEROS DISCURSIVOS/TEXTUAIS

Partindo de uma abordagem sócio-enunciativa de acordo com a qual a linguagem e o


pensamento são constitutivos do homem, Bakhtin (2000, 2002, 2004) demonstrou que seu
objeto de estudo pertencia aos mecanismos de interação verbal, fundamentando a existência

3
Temos Bakhtin como o precursor dos gêneros dentro da esfera que estamos estudando. Entretanto, sabemos
essa discussão não é nova, visto que a mesma já existia desde Platão e Aristóteles, que os tratavam a partir de
perspectivas diferentes.
da língua, a qual não é tratada apenas como forma, mas como um fenômeno social que torna
possível as relações sociais. Nas palavras do teórico,
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui
assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 2004, p. 122).

Vemos uma valorização da linguagem e da enunciação por parte de Bakhtin, uma vez que, a
todo momento, ele enfatiza a importância da interação verbal, já que é por meio da
enunciação que a língua torna-se uma realidade.
Em publicações de seguidores das teorias de Bakhtin, observamos também a mesma
valorização da língua e da interação. Bronckart (2003) afirma que a complexidade e a extrema
diversidade de suas formas de atividade, que permitem o acesso ao meio ambiente, bem como
sua representação, estão indissoluvelmente relacionadas à emergência da linguagem. É a
língua, portanto, que regula e serve de mediadora para todas as interações verbais, o que
justifica, de acordo com Bronckart, que sejam chamadas de sociais. Para Marcuschi, “a
interação humana é uma atividade constitutiva da própria linguagem e não simples
decorrência de suas virtudes imanentes” (MARCUSCHI, 2007, p. 77). Em outras palavras, a
interação não é apenas uma atividade que podemos desenvolver por meio da linguagem, mas
sim uma parte fundamental e constituinte desta.
Sem língua, portanto, não há interação e, sem interação, não há nenhum tipo de relação social,
pois, para Bakhtin, “todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão
sempre relacionadas com a utilização da língua”, a qual “efetua-se por meio de enunciados
(orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da
atividade humana” (BAKHTIN, 2000, p. 279). Os enunciados ficam disponíveis na sociedade
e são constituídos por esferas de utilização da língua, originando o que Bakhtin chama de
“tipos relativamente estáveis de enunciados” (Idem, 2000, p. 279), característica dada aos
gêneros do discurso.
Conforme o exposto, durante a interação humana, seja ela verbal ou não-verbal, utilizamo-nos
de enunciados já existentes na sociedade, selecionados conforme as necessidades de interação
e moldados conforme o ato comunicativo em que os indivíduos falantes estão inseridos. Isso
porque, conforme Bakhtin, “o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não
é o interior, mas o exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo” (BAKHTIN,
2004, p. 121). Cada esfera da sociedade possui seus enunciados próprios, que se diferenciam
daqueles utilizados em outras esferas, ou seja, sociedades diferentes possuem diferentes
repertórios de gêneros. O mesmo acontece ao tratar-se de épocas diferentes.
Os gêneros discursivos são, portanto, vários modelos de enunciados em particular, os quais
circulam socialmente, tornando possível a existência da fala e da escrita, uma vez que não
haveria como produzir um novo enunciado a cada momento, sem haver qualquer referência
para isso. O enunciado é, portanto, uma “unidade real da comunicação verbal” (BAKHTIN,
2000, p. 293) que se organiza de forma mais ou menos estável, elaborado por cada esfera
social, constituindo, então, um repertório de gêneros do discurso que vai se diferenciando e se
ampliando à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Em outras
palavras, o conjunto de gêneros discursivos de um grupo social é parte de sua cultura,
podendo ser utilizados no processo de identificação da comunidade.
Desse modo, os usos da língua não se dão por orações isoladas, mas, sim, por meio de
formações potenciais de gêneros que atuam no interior da linguagem, definindo seu caráter
dialógico. Para falar "utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, ou seja, todos os nossos
enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um
todo” (BAKHTIN, 2000, p. 301). A riqueza e diversidade dos gêneros discursivos são
imensas, não só porque as possibilidades de atividade humana são inesgotáveis, mas porque
“cada esfera dessa atividade humana comporta um repertório de gêneros do discurso que vai
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais
complexa” (BAKHTIN, 2000, p. 279).
Por isso, Bronckart (2003) afirma que, ao classificarmos os gêneros do discurso, não podemos
fazê-lo de forma racional, estável e definitiva, ou seja, apenas a partir da forma, mas, também,
e principalmente, a partir da função comunicativa que exercem durante a interação verbal.
Sob essa mesma perspectiva, Marcuschi afirma que estes modelos de enunciados não se
caracterizam nem se definem por aspectos formais, nem estruturais, nem linguísticos, mas por
“aspectos sócio-comunicativos e funcionais” (MARCUSCHI, 2003, p. 21). Em outro texto,
Marcuschi (2006) ainda acrescenta que o mais importante nos gêneros, hoje, é seu lado
dinâmico, processual, social, interativo, cognitivo, evitando a classificação e a postura
estrutural. Entretanto, isto não significa dizer que a forma de um gênero deva ser desprezada,
pois esta também deve ser levada em conta em tarefas de determinação de gêneros.
Devido a essa riqueza, ainda não se conseguiu nomear todos os gêneros existentes em nossa
sociedade, compreendendo-se que são em número ilimitado. Marcuschi (2003) comenta,
inclusive, sobre um grupo de linguistas alemães que chegou a nomear em torno de quatro mil
gêneros, exemplo de que não é possível chegar a uma classificação geral destes, fazendo uma
lista fechada de todos os modelos de enunciados existentes. Apenas como forma de
exemplificação, citamos alguns exemplos: uma carta familiar, um telefonema, artigo
científico, piada, bula de remédio, receita culinária, cartão de aniversário, artigo de opinião,
conversa entre amigos, aula expositiva, propaganda publicitária, reportagem jornalística,
bilhete pessoal, entre inúmeros outros.
Segundo Bakhtin, os gêneros do discurso são constituídos por três elementos principais, a
saber: “conteúdo temático, estilo e construção composicional” (BAKHTIN, 2000, p. 279), que
incorporam os valores da necessidade temática, a seleção dos recursos linguísticos, como
lexicais, fraseológicos e gramaticais, os participantes e suas intenções/vontades no ato da
interlocução. Trata-se, portanto, de características que definem os gêneros, as quais estão
ligadas, diretamente, ao objetivo comunicativo e ao tipo de relação existente entre as pessoas
participantes da interação, o que define seu conteúdo, linguagem e estrutura.
Para Bakhtin (2000) há, entretanto, uma característica essencial e constitutiva de um
enunciado: a existência de um destinatário, visto que todo e qualquer gênero do discurso
inicia uma relação dialógica. Sem um destinatário não poderia haver enunciado e, tampouco,
um gênero discursivo. Ao produzirmos um enunciado, portanto, o dirigimos a alguém, com
quem nos comunicamos por meio de um gênero discursivo, esperando dele uma resposta, a
qual, normalmente, se dará por meio desse mesmo gênero discursivo. Durante este processo,
realizamos aquilo que Bakhtin chama de relação dialógica, isto é, aquilo que liga “as unidades
da comunicação verbal, os enunciados completos” (2000, p. 358).
Conforme explana Bakhtin, esta “pode estabelecer-se apenas entre as coisas ou entre as
categorias lógicas (conceitos, juízos, etc.). A relação dialógica pressupõe uma língua, mas não
existe no sistema da língua” (BAKHTIN, 2000, p. 345). Marcuschi (2007), seguindo tais
orientações, afirma que sem a presença do outro, ou seja, do destinatário, não se desenvolve a
linguagem.
Considerando todas essas características impostas aos enunciados, constituintes dos gêneros
do discurso, Bakhtin (2000, 2004) considera que a interação verbal realiza-se por meio de
discursos, com todos os elementos linguísticos e não linguísticos, ou seja, verbais e não-
verbais, os quais se materializam em textos (orais e escritos), presentes no nosso dia a dia, e
não somente por meio de uma linguagem descontextualizada. Justifica-se, então, o fato de
Bakhtin preferir tratar esses enunciados relativamente estáveis como gêneros do discurso¸
associando a noção de gênero à de discurso. Outros pesquisadores associam a temática à
noção de textos, de onde se origina a nomenclatura gêneros de texto ou gêneros textuais.
Entretanto, isto não significa afirmar que esteja incorreto tratar esta terminologia, conforme
abordada por Bakhtin (2000), como gêneros textuais. Pelo contrário, como afirma Bronckart
(2003), apesar de os gêneros serem, mais frequentemente tratados como gêneros do discurso,
em algumas vezes, aparecem como gêneros de texto ou gêneros textuais, até porque os textos
representam a materialidade dos gêneros.
Nessa variação terminológica, podemos citar, também, os estudos de Costa-Hübes (2008) que,
adotando as duas terminologias, faz um esclarecimento sobre as mesmas, alertando que a
denominação de gêneros do discurso foram dadas por Bakhtin, sendo, portanto, definida em
relação ao discurso, enquanto que a de gêneros textuais origina-se das reflexões apresentadas
por Bronckart (2003), o qual se propôs, naquele momento de pesquisa, a estudar a arquitetura
interna dos textos a partir da compreensão dos gêneros como socialmente definidos e, por
isso, opta por denomina-los de gêneros de texto. Entretanto, deve-se frisar que, em momento
algum, desconsiderou-se as teorias de Bakhtin (2000), pelo contrário, Bronckart (2003) as
trouxe para dentro do texto, trabalhando com a estrutura interna destes.
Entre aqueles que preferiram adotar gêneros de texto, temos, primeiramente, Bronckart (2003)
e, posteriormente, Marcuschi (2003), Baltar (2004), Bazerman (2006) Schneuwly & Dolz
(2004). No entanto, hoje, já existem algumas publicações que privilegiam tanto uma quanto
outra denominação, utilizando a nomenclatura gêneros discursivo/textuais.
Poderíamos trazer aqui toda a reflexão acerca das teorias destes autores que adota a
nomenclatura gêneros textuais. Entretanto, devido ao pouco espaço que nos foi
disponibilizado, fazemos apenas retomamos suas principais teorias, uma vez que foi possível
observarmos, claramente, a grande influência de Bakhtin sobre a teoria dos demais autores
aqui estudados. De uma forma geral, têm-se os gêneros como modelos relativamente estáveis
de enunciados, elaborados e presentes em todas as formas de atividade humana, permeadas
pela linguagem. Sendo elaborados com o objetivo de responder às necessidades
comunicativas, compreendemos por que, da mesma forma como surgem, podem desaparecer,
pois se já não respondem a todas as expectativas humanas, havendo outros capazes de fazê-lo,
não há justificativa para que continuem servindo de instrumentos durante a comunicação
humana.

2.2 GÊNEROS DISCURSIVOS PRIMÁRIOS E SECUNDÁRIOS

Bakhtin (2000) afirma que os gêneros discursivos estão presentes em todo o tipo de atividade
humana permeada pela linguagem, pois servem para guiar e organizar nossas ações sociais.
Há, entretanto, algumas distinções entre a forma como utilizamos a linguagem nas diferentes
situações em que nos encontramos, o que reflete, diretamente, na caracterização do autor em
relação aos gêneros discursivos. Para Bakhtin, o uso típico da língua cria uma linguagem
natural, que compreende a duas esferas: os gêneros discursivos primários, usados na
comunicação interpessoal, e os gêneros discursivos secundários, selecionados para interações
que exigem maior planejamento. Tal diferenciação é considerada de grande importância para
o autor, permitindo a compreensão da “natureza complexa e sutil do enunciado” (BAKHTIN,
2000, p. 282).
O processo de elaboração de diferentes enunciados possui algumas particularidades. Os
gêneros do discurso primário, por exemplo, passam por um processo bem simples, não
exigindo um planejamento prévio nem um preparo por parte do enunciador, uma vez que são
usados na “comunicação verbal espontânea”, como diz Bakhtin (2000, p. 281), ou na
“imediatez”, conforme a explanação de Schneuwly & Dolz (2004, p. 31), predominando nos
usos orais da língua. Trata-se, portanto, de gêneros em que há a dominância de relações
espontâneas, cotidianas e imediatas. Por outro lado, ao tratar-se dos gêneros do discurso
secundário, teremos enunciados que exigem um preparo verbal de seu autor, pois são
elaborados para comunicação cultural mais complexa, com um predomínio de relações
formais, mediadas, principalmente, pela leitura e pela escrita.
Atendo-se a essa explanação, Bronckart afirma que os “discursos primários têm uma estrutura
que é dependente das ações não-verbais às quais se articulam” (BRONCKART, 2003, p. 60),
isto é, a linguagem não-verbal, incluindo gestos e comportamentos do enunciador durante a
realização de seus enunciados tendem a auxiliar o interlocutor durante a interpretação.
Bakhtin também já afirmava isso ao dizer que “a comunicação verbal é acompanhada por atos
sociais de caráter não verbal, dos quais ela é muitas vezes apenas o complemento,
desempenhando um papel meramente auxiliar” (BAKHTIN, 2004, p. 124). Os gêneros
secundários, por outro lado, não possuem relação com a linguagem não-verbal, uma vez que
seu enunciador deve comportar-se, sempre, de uma maneira neutra e formal perante o
discurso.
A utilização de um ou outro gênero na interação humana dependerá, diretamente, da situação
de fala, ou seja, do ambiente social, do objetivo comunicativo e da pessoa com quem
interagimos, o que influi diretamente na forma como moldamos nossos discursos. Segundo
Bakhtin, durante a interação humana, a palavra é orientada em função do interlocutor para
quem a palavra é dirigida, o que significa dizer que “variará se se tratar de uma pessoa do
mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver
ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos” (2004, p. 112).
Nesse sentido, em uma esfera da atividade e da comunicação humana informal, como a
família ou um grupo de amigos, por exemplo, os falantes podem utilizar os enunciados
pertencentes aos gêneros do discurso primário, como no caso da produção de uma carta
pessoal e/ou familiar, um bilhete pessoal, um diálogo informal, uma piada, entre outros. Por
outro lado, quando se exige um comportamento formal, utilizam-se os gêneros do discurso
secundário, como no caso de uma aula expositiva, de uma comunicação científica, da escrita
de um artigo científico, uma reportagem jornalística, um romance, entre outros.
Partindo destas reflexões, entendemos que, mesmo existindo milhares de modelos de gêneros
relativamente estáveis disponíveis para nosso uso durante a interação verbal, há uma restrição
para sua utilização. Os fatores para a escolha destes são observados a partir da situação
interativa, a qual determina gêneros do discurso secundários para relações sociais que
envolvem um nível maior de formalidade e gêneros do discurso primário para situações com
um nível menor de formalidade. Assim, quando analisamos um gênero, são essas, entre
outras, as características que revelam a natureza do mesmo, primário ou secundário, uma vez
que podem ser observadas, diretamente, na linguagem e na organização do discurso analisado.
Com base em tais reflexões, faremos uma análise descritiva do corpus de pesquisa.

3. ANÁLISE DESCRITIVA DO GÊNERO DISCURSIVO PRIMÁRIO CARTA


FAMILIAR E/OU PESSOAL

Na presente sessão temos, como objetivo, realizar uma análise descritiva de cartas familiares
e/ou pessoais, frisando que, quando falarmos de cartas familiares, estaremos nos referindo
àquelas destinadas somente às pessoas da mesma família a que pertence o remetente e,
quando nos referir às cartas pessoais, são aquelas endereçadas a outras pessoas, como amigos,
namorados, entre outros.
Com o objetivo de estudarmos o funcionamento e a organização da linguagem neste dois
modelos do gênero carta, nosso corpus foi composto por cinco cartas familiares e cinco cartas
pessoais, escritas entre os anos de 1944 à 1957, sendo apenas uma da década de 80, a qual, em
comparação com as demais, permitirá um estudo comparativo entre aquela época mais antiga
e essa, um pouco mais próxima de nosso contexto.
Entre as cartas familiares, temos remetentes que, na época, habitavam na cidade de
Ramilândia-PR, em comunidades pertencentes à zona rural, e que as escreveram com o intuito
de contar as últimas notícias a seus familiares, entre as quais, muitas são desastrosas,
revelando as condições precárias em que essas pessoas viviam, sem tratamentos adequados à
saúde, por enforcarem-se devido a problemas de depressão e morrerem por doenças que
poderiam ser curadas, como a hérnia e a úlcera, por exemplo. Além disso, temos um
remetente da cidade de Pindorama – RS. Trata-se de uma pessoa de origem alemã que, ao
contar notícias recentes, revela, em sua língua, traços da língua alemã, o que nos permite um
estudo sobre a linguagem familiar, uma vez que, tratando-se de uma formalidade, estes traços
não apareceriam.
Já em relação às cartas pessoais selecionadas, temos como remetentes, habitantes de Ijuí,
Rincão dos Pampas e Porto Alegre, todas cidades do Rio Grande do Sul. Nessas, temos três
remetentes distintas, que moravam na zona urbana, entretanto, apenas um destinatário, já que
são cartas de amor, as quais revelam a identidade do remetente que, apesar de ter três
mulheres apaixonadas por si, não queria casar-se, motivo pelo qual fazia todas sofrerem por
não terem seu amor correspondido. Essas cartas permitem um estudo da cultura do Rio
Grande do Sul, retratando aspectos culturais, como o falar desta região.
Durante a leitura de todas essas cartas que compõem nosso corpus de estudo, podemos
observar, claramente, uma distinção entre conteúdos temáticos, estilo e construção
composicional entre as familiares e as pessoais. De uma forma geral, compreendemos o
gênero carta familiar e/ou pessoal como um modelo de enunciado que circula socialmente,
caracterizado por conteúdos temáticos referentes a acontecimentos da vida cotidiana, um
estilo totalmente pessoal e informal e uma construção composicional que passa, rapidamente,
de um assunto a outro, sem muita preocupação com a forma da escrita, como se fossem vários
retalhos de assuntos informados ao destinatário. Entretanto, dependendo das intenções
discursivas do usuário, da relação entre remetente e destinatário, bem como do conhecimento
de mundo de cada um, acrescentam-se novas características a estes enunciados, sem
desconsiderar aquelas já existentes e próprias do gênero, visto que toda ação de linguagem
sempre será constituída por um processo de inserção individual no social. É nesse sentido que
teremos uma diferenciação entre as cartas familiares e as pessoais.
Durante as análises realizadas neste trabalho, adotamos a nomenclatura gêneros discursivos,
considerando que a carta pessoal e/ou familiar é constituída por enunciados, concretos e
únicos, os quais tornam possível a comunicação verbal, substituindo o contato face a face. Em
outras palavras, não levamos em consideração, apenas, o texto contido nestas como um
material acabado, mas, também, todo seu contexto de produção, por meio do qual é possível
abordar os aspectos culturais e identitários da época em que foram escritas, bem como do
remetente das mesmas.
Ao buscar a definição de texto e de discurso, encontramos que este último “é uma totalidade
viva e concreta da língua” (MARCUSCHI, 2006, p. 25), sendo, conforme Rodrigues (2001),
constituído pelo enunciado mais a situação social e interlocutores. Já o texto, para o mesmo
autor (idem), é constituído pelo texto, menos a situação social e interlocutores, ou seja,
palavras que não possuem sentido em si mesmas, necessitando ser lidas e interpretadas pelo
leitor para adquirirem um efeito de coerência. Isso quer dizer que são constituídos por
enunciados, visto que compreendem a interação verbal organizada conforme a situação social
em que a mesma acontece.
Baumgartner e Costa-Hübes (2007) também estudam a diferenciação entre texto e discurso.
Assim, para as autoras, o discurso implica num querer dizer num dado lugar e tempo,
representando a língua como um enunciado:
os parâmetros da situação de produção dos enunciados somados às apreciações valorativas dos locutores em
relação ao tema, a eles mesmos e ao outro determinam as dimensões do discurso, as quais, segundo Bakhtin, são
essenciais e indissociáveis (BAUMGARTNER E COSTA-HÜBES, 2007, p. 15).
O texto, por sua vez, ainda segundo as autoras, representa a língua como sistema, pois:
toma tão somente a materialidade lingüística, despida de sua vida/uso social, restando, então, a palavra nua,
elemento abstrato, descolado da realidade social (BAUMGARTNER E COSTA-HÜBES, 2007, p. 15).
Pautados nestas distinções entre texto e discurso, classificamos a carta pessoal e/ou familiar,
nosso material de estudo, como um gênero discursivo primário, caracterizando-se por
construir textos que substituem a interação humana oral, assemelhando-se muito à linguagem
falada. Segundo Silva,
a escrita de cartas pessoais nos coloca diante de uma situação semelhante à da conversa espontânea [...]. Não
existem, propriamente, imposições do gênero de discurso, decorrendo as possíveis restrições antes do tipo de
relação (mais ou menos íntima) entre os correspondentes [...]. De fato, tudo cabe na carta pessoal (SILVA, 1995,
p. 235).
Temos, assim, na carta, o mais natural da comunicação humana, isto é, um desenrolar de
linguagem de forma livre e espontânea, totalmente informal. Costa caracteriza o gênero
textual carta familiar como um enunciado escrito em estilo simples, no registro coloquial, cujo
conteúdo gira em torno de temas pessoais, “pois a interlocução se dá entre pessoas que se
conhecem ou são parentes próximos” (COSTA, 2008, p. 50).
Nesse sentido, por meio da carta familiar e/ou pessoal, é possível tratar de vários assuntos
referentes à vida cotidiana, sejam eles pessoais e/ou familiares. Como forma de
exemplificação, citamos trechos extraídos de cartas que fazem parte de nosso corpus de
estudo. No primeiro trecho, temos uma carta familiar, escrita em novembro de 1984, na qual o
remetente informa o destinatário, que se encontrava distante, sobre os últimos acontecimentos
com seus familiares:
[...] Hoje, com muita tristeza pegui caneta na mão para contar essas nossas noticias tristes, aqui nós estamos do
mesmo jeito sempre tristeza a morte do conhado era de ursa que não agüentou a operação. O antônio não está
nada melhor, cada dia está pior, a nona não anda nada boa [...] a nossa conhada Joana enforcou-se no dia 11 de
novembro [...] (Carta Familiar de I.H., em novembro/1984).
As palavras em destaque exemplificam a presença da linguagem familiar, ou seja, sem uma
preocupação com a forma da escrita, pois o interesse do remetente era, apenas, se fazer
entender. Observamos, portanto, uma escrita que não está de acordo com o português padrão e
que se aproxima mais da oralidade do que da escrita de textos formais. Remetente e
destinatário são pessoas simples, sem um conhecimento científico, o que pode ser observado
por nomearem as doenças de “hérnia” e de “ulcera” como era de ursa. Além disso, o
remetente escreve nomes de pessoas com as iniciais em minúscula quando a primeira letra
deveria ser em maiúscula e, também, não conjuga o verbo com as desinências de tempo e
pessoa (pegui – peguei).
Os trechos seguintes exemplificam cartas pessoais por tratarem de assuntos referentes a
namoros e decepções amorosas, o que revela, então, uma relação íntima entre os
correspondentes:
[...] tua carta ditou hosanas miraculosas na minha mente já entropecida pela desilusão da vida; e tua presença
ainda que simplesmente n’uma carta, privou-me de alguns momentos de suprema e indesejável tristeza [...]
(Carta Pessoal de Eny., em junho/1958).
[...] Vivi o dia todo na ilusão de ainda estar envolta por teus fortes braços. Atirei-me toda ao sônho de estar ainda
ao teu lado como nesta madrugada. Mas tudo não passou do sonho, da ilusão [...] (Carta Pessoal de G., em
novembro/1953).
[...] Obrigado a me amar tu não és, mas a não me fazer sofrer, tu és [...] (Carta Pessoal de N. M. S., em
março/1957).
Os trechos anteriores, parte de três cartas pessoais, são escritas por pessoas distintas, mas que
possuem um destinatário em comum pelo qual as três mulheres são apaixonadas, entretanto,
nenhuma correspondida a ponto de haver uma relação séria. Assim, o que se revela é a dor por
não serem amadas da forma como queriam e, ao mesmo tempo, a revolta por perceberem que,
ainda assim, esse homem não é sincero com elas. Quanto à linguagem utilizada nas mesmas,
essa é rebuscada pelo fato de as três mulheres terem um nível de formação melhor, tanto que a
remetente do segundo trecho é uma professora de língua portuguesa. Assim, apesar de
percebermos uma linguagem pessoal, esta não se distancia muito do português padrão.
O que pode ser claramente observado, tanto nas cartas familiares quanto nas cartas pessoais, é
a presença de uma relação íntima ou, ao menos, amigável com o destinatário que permite a
utilização dessa linguagem despreocupada de informalidade, semelhante à linguagem
cotidiana e familiar, visto que em um discurso formal casos como estes não seriam bem
aceitos. De acordo com Miranda, temos, então, a carta pessoal como um gênero “que permite
um acesso direto e incisivo aos seus interlocutores, além do conforto de poder comunicar
diversas modalidades de expressão” (MIRANDA, 2000, p. 43), o que se justifica pelas
características acima citadas e, principalmente, pela liberdade de expressão.
Quando se trata de estudos em relação à linguagem familiar ou popular, temos Bakhtin (2002)
como uma grande referência na área, pois retrata, de forma detalhada, toda a multiplicidade
das manifestações da cultura popular, englobando suas festas, espetáculos, ritos e obras
cômicas, desde seu surgimento, na Idade Média, até a forma como, hoje, na época moderna,
esta linguagem se manifesta nos enunciados, principalmente orais. E é a ele que recorremos
para a compreensão da linguagem utilizada nas cartas pessoais e/ou familiares.
Ao fazermos uma comparação entre a linguagem que utilizamos no cotidiano e a que
utilizamos em situações com um nível de formalidade, percebemos, facilmente, grandes
diferenças entre as duas. A primeira demonstra uma liberdade maior quanto às regras
gramaticais, organização e, principalmente, ao léxico. Já a segunda apresenta, sempre,
características totalmente contrárias, ou seja, uma linguagem presa às regras gramaticais e é
aceita em todo o tipo de ambientes sociais. Bakhtin (2002) justifica essa distinção explicando
que a linguagem formal resulta das proibições linguísticas da Idade Média, quando havia uma
dualidade entre línguas, entre aquela considerada oficial e a outra considerada popular. Sabia-
se da existência das duas, entretanto, somente a oficial era aceita em ambientes públicos
formais, reservando a outra somente para ambientes privados ou, então, para dias festivos,
quando se permitia uma liberdade linguística.
A cultura popular não oficial dispunha na Idade Média e ainda durante o Renascimento de um território próprio:
a praça pública, e de uma data própria: os dias de festa e de feira [...]. Um tipo especial de comunicação humana
dominava então o comércio livre e familiar. Nos palácios, nos templos, nas instituições, nas casas particulares
reinava um princípio de comunicação hierárquica, uma etiqueta, regras de polidez. Discursos especiais
ressoavam na praça pública: a linguagem familiar, que formava quase uma língua especial, inutilizável em outro
lugar (BAKHTIN, 2002, p. 133).
Havia, assim, todo um cuidado durante a comunicação oficial, não sendo permitido o uso
frequente de grosserias, de expressões e palavras injuriosas. Estas eram restritas à linguagem
familiar, a qual, segundo Bakhtin, converteu-se “em um reservatório onde se acumularam as
expressões verbais proibidas e eliminadas da comunicação oficial” (BAKHTIN, 2002, p. 15).
O emprego deste tipo de vocabulário na linguagem oficial significava uma violação das regras
da linguagem, revelando-se como um grau de protesto contra as concepções oficiais e as
regras de etiqueta, de cortesia, de piedade, de consideração e de respeito de hierarquia.
Estas características ainda hoje permanecem em nossa linguagem, sendo denunciadas por
esta diferenciação entre os gêneros do discurso primário e os gêneros do discurso secundários.
A carta pessoal e/ou familiar é, portanto, um gênero em que, frequentemente, observamos a
utilização da linguagem popular, devido à utilização do vocabulário informal e, também, por
aceitar casos de desvios gramaticais e interferência lingüística:
[...] Nunca pensei que fosses tão mesquinho que desses ouvido aos infames linguarudos que lá vão contar-te
asneiras. Mas muito menos esperei que fosses justamente tu à casa da Neusa inventar coisas que eu nunca disse.
Quem seria, senão tu. Com nenhuma pessoa falei a respeito da menina [...] (Carta Pessoal de G., em
novembro/1953).
[...] Hoje peguei a caneta na mão para das as nossas noticias da qui. Noz vamos indo de saude bem grasa a Deus.
Aqui tudo bem que começou chuva dia 4 de fevereiro deu bastante para as plantas e água. Qero pedir que lá
tinha chuvido antes me mande as respostas de lá [...] (Carta Familiar de L. H., em fevereiro/1982).
Nesses trechos citados, as palavras em destaque são aquelas que apresentam casos de desvios
gramáticas do português padrão e, também, a utilização de um léxico de baixo calão, próprio
mesmo de situações informais como essa, do primeiro trecho, em que a remetente fala
abertamente com quem ama, após o término da relação entre os dois, e, no segundo, em que o
remetente informa notícias recentes, por meio das quais podemos inferir que seja um morador
da zona rural, pois comenta sobre a plantação beneficiada com a chuva.
Para Bakhtin, a linguagem popular caracteriza-se como um tipo de “linguagem alegre, ousada,
silenciosa e franca” (BAKHTIN, 2002, p. 169), uma vez que representava um tipo de
liberdade para o povo que a utilizava. Por outro lado, a linguagem oficial possuía sempre um
tom de seriedade, refletindo a “hierarquia social instaurada, a hierarquia oficial das
apreciações (em relação às coisas e noções) e as fronteiras estáticas entre as coisas e os
fenômenos instituídos pela concepção oficial do mundo” (BAKHTIN, 2002, p. 368-369).
Nesse sentido, temos a linguagem popular marcada pela ausência de palavras e expressões
neutras e pela presença de palavras que poderão ser amáveis, elogiosas, lisonjeiras,
depreciativas, humilhantes ou, mesmo, injuriosas. Sendo uma das características essenciais do
enunciado a existência de um destinatário, este sempre deverá ser conhecido pelo remetente
das cartas, visto que estas são escritas “sempre a alguém, orienta-se para um interlocutor, fala-
lhe, fala por ele ou acerca dele” (BAKHTIN, 2002, p. 368).
Dessa forma, a escrita e o recebimento de cartas pessoais e/ou familiares, apesar de não
constituir um diálogo no qual tanto o enunciador quanto o destinatário estejam presentes, cara
a cara, há a concretização de um ato comunicativo indireto, portanto, uma reprodução de
conversas espontâneas e pessoais. Conforme Silva, “o ato de enviar uma carta e o fato de
recebê-la já criam uma situação comunicativa: está feito o contato” (SILVA, 1995, p. 235).
A existência de um destinatário ao tratar-se de cartas pessoais e/ou familiares pode ser,
facilmente, perceptível por meio do uso de vocativos e de verbos conjugados no modo
imperativo:
[...] Olha Armando tu não sabes dar o valor a sentimento à perda de uma dessas criaturas, porque pela graça
divina nunca tiveste este doloroso soco; [...] Pare um pouco e reflita se isso não é triste, não penses que eu
queria que tu te cobrisse de luto, absolutamente que não, mas pelo menos mais um pouco de consideração [...]
(Carta Pessoal de N.M.S., em novembro/1956).
[...] Porque Armando, diga-me porque preciso duvidar tanto de tua sinceridade? [...]. (Carta Pessoal de G., em
novembro/1953).
Nesses trechos, extraídos de duas cartas pessoais, as palavras em destaque mostram a
existência de um destinatário a quem as palavras são dirigidas. Trata-se de vocativos e verbos
conjugados no modo imperativo, os quais sugerem ao destinatário que se coloque no lugar da
pessoa que está escrevendo e sinta seu sofrimento.
Esta característica pode pertencer à linguagem familiar, uma vez que, conforme Basílio
(1991), não encontramos este aspecto na linguagem formal, pois, esta se caracteriza pela
neutralização da situação do falante em termos de individualização.
Embora não seja comum a utilização da linguagem oficial ou formal neste gênero textual, há a
presença de um tom sério, o que marca a única forma que, de acordo com Bakhtin (2002),
permite expressar a verdade e tudo o que é importante. Ou seja, uma linguagem com nuances
irônicos não seria aceitável quando se procura expressar seriedade. Na carta familiar de
N.M.S, escrita em novembro de 1956 (acima citada), percebe-se isso por meio de sentimentos
profundos que se revelam no decorrer das linhas escritas, no qual a remetente da carta revela
uma profunda decepção com seu amado, por este não ter respeitado seu sofrimento pela perda
de seu pai.
Essa transparência de sentimentos nas palavras da autora é, também, uma característica que
permite classificar a linguagem utilizada nas cartas pessoais e/ou familiares como semelhantes
à linguagem falada, uma vez que, de acordo com Basílio, são itens e processos que expressam
atitudes emocionais “usados na linguagem coloquial, em que é fundamental o uso da função
expressiva da linguagem” (BASÍLIO, 1991, p. 84), ou seja, a utilização de uma linguagem
subjetiva. Por outro lado, ao tratar-se da língua oficial, estas expressões de sentimentos não
ficam muito bem caracterizadas, ou são mostradas por meio de recursos estilísticos na escrita.
As características da linguagem oficial utilizada na Idade Média, na qual não se permitia
liberdade nenhuma, mesmo sofrendo algumas transformações, podem, hoje, ser observadas
nas interações verbais que realizamos. A partir do Renascimento, devido a toda negação que
era dirigida ao mundo oficial, percebeu-se uma
libertação conseqüente da seriedade mesquinha dos pequenos assuntos da vida corrente, da seriedade egoísta da
vida prática, da seriedade sentenciosa e malsã dos moralistas e hipócritas e, enfim, da imensa seriedade do medo
que se ensombrecia nos quadros lúgubres do fim do mundo, do Juízo Final, do inferno, e do paraíso e da tratitude
eterna (BAKHTIN, 2002, p. 334).
Com estas transformações, ocorreu, conforme Bakhtin uma “conquista familiar do mundo”
(BAKHTIN, 2002, p. 334) que permitiu ao homem um contato e uma liberdade maior com
ele, destruindo e abolindo todas as distâncias e interdições criadas pelo medo e pela piedade, o
que permitiu que a vida fosse retomada numa forma licenciosa e alegre. Por isso, mesmo
havendo, hoje, uma distinção entre a linguagem que utilizamos em situações informais e em
situações formais, ou seja, entre gêneros discursivos primários e secundários, temos uma
liberdade de expressão maior em relação à época antiga, a qual deixou-nos algumas heranças
linguísticas. Segundo as explanações de Bakhtin:
Na correspondência íntima, encontram-se, as vezes, termos grosseiros e injuriosos empregados num sentido
afetuoso. Quando se ultrapassa um certo limite nas relações entre certas pessoas e que elas se tornam
perfeitamente íntimas e francas, esboça-se uma mutação no emprego ordinário das palavras, uma distribuição da
hierarquia verbal; a linguagem se reorganiza num tom novo, francamente familiar; as palavras afetuosas parecem
convencionais e falsas, apagadas, unilaterais e sobretudo incompletas; a sua coloração hierárquica torna-as
inapropriadas à livre familiaridade que se instaurou, e por isso todas as palavras banais são banidas e substituídas
ou por palavras injuriosas, ou por palavras criadas a partir de seu tipo ou modelo [...]. A intimidade toma
emprestados os tons da antiga familiaridade, abolindo todas as fronteiras entre os homens (BAKHTIN, 2002, p.
369).
Bakhtin faz uma referência às palavras de dupla tonalidade, uma fusão do elogio e da injúria,
o que podia ser facilmente observado nas épocas mais antigas. Também como uma herança
linguística, esta característica sempre esteve e ainda está presente nas relações familiares,
inclusive nas cartas pessoais:
[...] Sei perfeitamente que é inútil aguardá a carta que me prometeste. Sentes-te muito magoado que, apesar de
tôdas as tuas experiências, não te dei motivos seguros para terminarmos nossas relações. Não meu amigo, desta
vez não passarei de culpada do fim do nosso romance, embora como tal me queiras deixar [...] (Carta Pessoal
de G., em novembro/1953).
Neste trecho, percebe-se a dupla tonalidade de palavras quando a remetente da carta trata o
destinatário como “amigo”, quando, na verdade, seus sentimentos são totalmente contrários
em relação a ele. Além disso, ao lhe dar o direito de estar magoado, quando foi ele, seu
amado, quem lhe magoou não pondo um fim na relação, ao mesmo tempo em que evitava
estar com ela.
Ao buscarmos informações sobre a origem deste gênero discursivo/textual, observamos,
entretanto, que as características informais nem sempre estiveram presentes nas cartas, uma
vez que seus primeiros usos eram restritos ao ambiente formal. Bazerman (2006), em um
estudo sobre a base social da carta, explica que seu uso inicial tinha, no Antigo Oriente
Próximo e na Grécia, o objetivo de estender o domínio de autoridades, servindo como meio de
divulgação de ordens, leis, códigos e proclamações, uma vez que os primeiros comandos
escritos ao lado de outros assuntos de Estado – militares, administrativos ou políticos – foram
feitos na forma de cartas. Estas eram entregues aos seus destinatários por mensageiros que
representavam o emissor das cartas, os quais deviam ler a mensagem em voz alta. Havia,
portanto, a concretização de relações sociais realizadas à distância por meio da carta.
A partir destes usos oficiais, as cartas foram evoluindo até chegar ao modelo familiar que hoje
conhecemos. Conforme comenta Bazerman,
as cartas evoluíram para incluir expressões de preocupação pessoal e, posteriormente, mensagens particulares. A
manutenção e ampliação dos laços sociais modificaram as relações estabelecidas através das cartas para além do
formal e oficial em direção ao pessoal. Cartas pessoais familiares tornaram-se comuns entre todas as classes do
mundo helênico e romano (BAZERMAN, 2006, p. 87).

Isto marca a rápida evolução sofrida pelos gêneros discursivos, uma vez que as cartas foram
criadas com um objetivo, sofreram algumas transformações, passando a serem utilizadas
como um meio de comunicação informal, que teve, porém, seu uso reduzido por sofrer uma
nova transformação, quando surgiram novos modelos de enunciados, como, por exemplo, o e-
mail, o romance e o scrap.
Frisamos, entretanto, que apesar da informalidade, naturalidade e uso da linguagem popular,
que permitem caracterizar o gênero discursivo/textual carta familiar como pertencente à
categoria dos gêneros primários, não é possível a afirmação de que se trata de textos simples e
sem importância. Pelo contrário, são discursos ricos em relações sociais, uma vez que essa
organização é um reflexo dos modos como interagimos verbalmente no nosso cotidiano. Para
Bazerman, a organização das cartas “só significa que elas nos revelam clara e explicitamente
a sociabilidade que faz parte de toda escrita” (BAZERMAN, 2006, p. 99).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos, neste trabalho, reflexões teóricas e análises acerca dos gêneros


discursivos/textuais e, mais especificamente, da carta familiar e/ou pessoal, a qual constitui o
corpus da pesquisa.
Em relação aos gêneros discursivos/textuais, há uma infinidade de publicações e estudos já
realizados, além de muitos outros que ainda estão surgindo. Tal fato pode justificar-se por ser
esse um tema atual dentro da linguística, ou seja, da década de oitenta mais ou menos, quando
Bakhtin iniciou seus estudos na área. Tem-se, Bakhtin, portanto, como o precursor da
temática dos gêneros discursivos. Entretanto, estes já vêm sendo estudados, a partir de outras
perspectivas, há, pelo menos, vinte e cinco séculos, uma vez que, conforme Marcuschi (2008),
sua observação iniciou-se em Platão, quando a noção de gêneros era ligada à literatura.
Atualmente, temos a noção de gênero discursivo/textual ligada, diretamente, ao estudo da
língua e, assim, do texto, do discurso e da sociedade, uma vez que não há como separar a
língua do contexto em que a mesma é usada. Dessa forma, por meio de análises de textos
escritos, podemos interpretar e analisar o contexto histórico e sociocultural da época em que
os mesmos foram produzidos, uma vez que a linguagem deixa explícitas as peculiaridades
próprias de um período da história e de uma cultura em particular, como no caso, aqui, da
escrita de cartas pessoais e/ou familiares.
Acreditamos, portanto, que nosso estudo sobre os gêneros discursivos/textuais esteja ligado à
sociedade quando estudamos a linguagem utilizada no gênero carta, a qual revela, a cada
trecho, marcas da nossa oralidade e, assim, toda uma relação dialógica e social existente entre
seu remetente e destinatário. E são estes os aspectos que permitem, também, o estudo da
cultura e da identidade.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: O Contexto de


François Rabelais. 5. ed. São Paulo: Annablume Editora, 2002.

________. Estética da Criação Verbal. (Trad. Maria E. Galvão e revisão por Marina
Appenzeller). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

________. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método


sociológico na ciência da linguagem. (Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira). 11. ed. São
Paulo: Hucitec, 2004.

BALTAR, Marcos. Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com o


jornal de sala de aula. Caxias do Sul: Educs, 2004.

BASÍLIO, Margarida. Teoria Lexical. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991.

BAUMGARTNER, Carmen Teresinha; COSTA-HÜBES, Terezinha da Conceição.


Revisitando alguns conceitos teóricos. In.: AMOP. Associação dos Municípios do Oeste do
Paraná. Sequência didática: uma proposta para o ensino da Língua Portuguesa nas séries
iniciais. [Organizadoras: Terezinha da Conceição Costa-Hübes e Carmen Teresinha
Baumgärtner]. Cascavel: Assoeste, 2007b. Caderno Pedagógico 02. P. 13-26
BAZERMAN, Charles. Cartas e a base social dos gêneros diferenciados. In: DIONÍSIO,
Ângela Paiva; HOFFNAGEL, Judith Chambliss (org.). Gêneros textuais, tipificação e
interação. Traduzido por Judith C. Hoffnagel. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 83– 99.

BRONCKART, Jean Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC,
2003.

COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2008.

COSTA-HÜBES, Terezinha da Conceição. O processo de formação continuada dos


professores do Oeste do Paraná: um resgate histórico-reflexivo da formação em língua
portuguesa. Londrina, PR: UEL, 2008 (tese de doutorado).

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Fenômenos da linguagem: reflexões semânticas e discursivas.


Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

________.Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKI, Acir


Mário; GAYDECZKA, Beatriz; BRITO, Karin Siebeneicher. Gêneros textuais: Reflexões e
ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p. 23-36.

________. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva;


MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Orgs.). Gêneros textuais &
ensino. 2.ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003, p. 19-36.

________. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola


Editorial, 2008.

MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. A arte de escrever cartas: para a história da epistolografia
portuguesa no século XVIII. In: GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella
(Org.). Prezado senhor, prezada senhora: estudo sobre cartas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 41 – 54.

RODRIGUES, R. H. A constituição e o funcionamento do gênero Jornalístico artigo:


cronotopo e dialogismo. São Paulo: PUC, 2001 (Tese de Doutorado).

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo:
Mercado de Letras, 2004.

SILVA, Vera Lúcia Paredes P. Ao correr da Pena: Aspectos da Organização Tópica em


Cartas Pessoais. In: HEYE, Jürgen (org.). Flores Verbais: uma Homenagem Lingüística e
Literária para Eneida do Rego Monteiro Bonfim no seu 70 aniversário. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1995. p. 231-246.

Você também pode gostar